De Batuque e Acalanto: uma análise da Missa Afro-Brasileira de Carlos Alberto Pinto Fonseca

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    FERNANDES, ngelo Jos. De Batuque e Acalanto:uma Missa Afro-Brasileira.... Per Musi, Belo Horizonte, n.11, 2005, p.60-72

    No ano de 1961, teve sua primeira atuao frente do coral Ars Nova, executando a MissaAeternae Christe Munerade Palestrina, a convite do regente titular maestro Sergio Magnani.Algum tempo depois, tendo terminado seus estudos na Europa, assumiu, definitivamente, a

    regncia titular deste coro, com o qual vem desenvolvendo um amplo trabalho como regente ecompositor. Sendo sua atividade profissional mais constante, este coro tem lhe servido deinspirao para a composio de inmeras obras corais.

    Uma das principais caractersticas de seu trabalho como compositor o interesse pela culturaafro-brasileira. Desde o perodo em que viveu na Bahia, essa cultura o tem influenciado deforma significativa, levando-o a compor inmeras peas baseadas em textos da umbanda e docandombl. Apesar da forte influncia da cultura afro-brasileira sobre a obra de Carlos AlbertoPinto Fonseca, o maestro, em entrevista declarou jamais ter ido a algum terreiro de candombl,acrescentando ainda sobre seu interesse por tal cultura:

    Tive vontade de escrever msica de inspirao afro-brasileira depois de ouvir um conjuntochamado Cantores do Cu, com uma sonoridade fascinante, incluindo vozes graves. Depoisde ouvir este conjunto, ganhei um livro

    2contento 400 pontos riscados, cantados e danados

    de umbanda. Comecei a partir dos textos deste livro a criar melodias por conta prpria(SANTOS, 2001).

    Sua obra mais importante a Missa Afro-Brasileira (de Batuque e Acalanto), composta em1971 para solistas e coro misto a cappella. Premiada em 1976 pela Associao Paulista deCrticos da Arte, como Melhor obra vocal do ano, a obra rene temas do folclore afro-brasileiro,intercalando trechos notadamente rtmicos e energticos, que remontam tradio da msicaafricana, com trechos mais meldicos, que ressaltam aspectos do acalanto e de outras formas

    encontradas na msica brasileira.

    A obra foi publicada pela Lawson-Gould music publishersnos Estados Unidos no ano de 1978(FONSECA, 1978), e, gravada pelo prprio compositor frente do coral Ars Nova, no ano de1989 (FONSECA, 1989), tendo como solistas Maria Eugnia Meirelles (soprano), Mara DalvaAlvarenga (contralto), Marcos Tadeu de Miranda (tenor) e Jos Carlos Leal (bartono).

    A deciso de compor a missa foi tomada em 1970, como forma de utilizar elementos da culturaafro-brasileira em uma obra sacra, com texto da liturgia catlica romana. Esta deciso foi umreflexo dos comentrios do Papa Joo XXIII que, na ocasio do Conclio Vaticano II, havia

    sugerido que os compositores de todo o mundo utilizassem elementos populares e folclricosde seus pases na composio de msica sacra.

    Carlos Alberto Pinto Fonseca afirma que, alm da cultura afro-brasileira, sua religiosidadefoi um fator de grande influncia na composio da missa. O compositor um homembastante mstico, que cultiva intensamente sua relao com Deus. De formao catlica,declarou que na poca em que escreveu a Missa Afro-Brasileira, ele freqentava umgrupo de meditao e tal prtica o influenciou de forma significativa no processocomposicional.

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    O livro a que o compositor se refere 400 pontos riscados e cantados de umbanda e candombl. 3.ed. Rio deJaneiro: Eco, 1962.

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    Este processo iniciou-se com alguns esboos que, em sua maioria, no foram utilizados. Aobra foi composta e concluda em aproximadamente trs meses, entre os anos de 1970 e1971, embora o compositor no tenha nenhum registro preciso a respeito das datas.

    Apesar de sua religiosidade, Carlos Alberto Pinto FONSECA (2002) declarou que inmerosfatores influenciaram o processo de composio da Missa Afro-Brasileira, mas que seu principalpropsito foi romper com os conceitos de sacro e profano, bem como de erudito e popular:

    Eu procurei na missa partir de dois pontos de vista: sair da concepo de erudito e popular,fazendo uma obra que fosse ao mesmo tempo erudita e popular, e tambm romper com aconcepo de msica sacra e profana...

    Foi com esse propsito que o compositor empenhou-se na composio de uma obra que fossefacilmente assimilada pelo pblico, evitando o uso da linguagem experimental ou de vanguarda:

    ... e a linguagem da missa no experimental. Minha proposta chegar aos coraes daspessoas atravs de algo que j assimilado por elas. Se pensarmos em informao eredundncia, a Missa Afro-Brasileira tem muito mais redundncia do que informao.(FONSECA, 2002)

    A obra marcada pela presena constante de elementos do folclore e da msica popular comoo baio, o vira portugus, as cantigas de ninar, as cantigas de roda, o canto de aboio, o samba-cano, a marcha-rancho e o choro. Observa-se ainda a presena constante da rtmica afro-brasileira, a utilizao de escalas modais e o uso da lngua verncula em alternncia e/ousuperposio com o latim.

    Na Missa Afro-Brasileira (de Batuque e Acalanto), o compositor chama de batuque3

    tudo o querepresenta a percusso afro, ou seja, todos os trechos que apresentam ritmos mais percussivosde origem afro sem denominaes especficas. Os acalantos,

    4por sua vez, so os temas de

    canes de ninar, os de cantigas de roda, alm da marcha-rancho, do choro e do samba-cano.

    No prefcio da partitura da Missa Afro-Brasileira, Carlos Alberto Pinto Fonseca afirma que osincretismo uma realidade no Brasil e que na composio da obra ele tentou expressar ossentimentos religiosos dos brasileiros, povo formado pela mistura do europeu, do negro e dosancestrais indgenas (FONSECA, 1978). A fuso do tradicional, representado pelo texto doOrdinrio da liturgia catlica, com o popular, representado pelos vrios elementos da cultura

    afro-brasileira d obra o carter sincrtico descrito pelo compositor.Apesar do carter sincrtico contido no ttulo da Missa Afro-Brasileira, impossvel afirmar queexista na obra uma insero direta de elementos do candombl ou da umbanda. No foram

    3 Batuque uma dana originria da Angola e do Congo. Sinnimo de batucada, uma das danas brasileirasmais antigas, se no for a mais, tendo sido constatada no Brasil e em Portugal j no sc. XVIII. Em algumasregies do estado de So Paulo, o batuque uma dana de terreiro, e no Rio Grande do Sul significa cerimniaafro-brasileira. Na verdade, a palavra batuque deixou de designar uma dana particular, e tornou-se um nomegenrico de determinadas coreografias e danas apoiadas em ritmos fortes realizados por instrumentos depercusso.

    4 Os acalantos so melodias simples e ternas. Seu texto pode, normalmente, apresentar figuras que causem

    medo, incentivando as crianas a dormir para evit-las. Outra caracterstica dos acalantos o uso do canto embocca chiusa ao final da cano, de modo a propiciar uma certa monotonia para adormecer a criana.

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    empregados instrumentos musicais (especialmente de percusso), to comuns a esses rituais,ou quaisquer expresses em dialeto africano. No existem na obra referncias a orixs, ou amelodias tradicionalmente associadas ao culto afro. A performance da obra no requer coreografias

    ou movimentos que lembrem as danas caractersticas de tais rituais. O compositor deu umagrande importncia ao ritmo, elemento vital nas religies afro-brasileiras, justificando, ainda queparcialmente, o sincretismo religioso citado no prefcio da partitura e nas entrevistas cedidas.

    Rafael Grimaldi da Fonseca, regente auxiliar do coral Ars Nova, afirma que a Missa Afro-Brasileira, muito mais do que resultado de um sincretismo religioso produto da estticanacionalista. Para ele, Carlos Alberto Pinto Fonseca marcadamente um compositornacionalista, que colhe os elementos afro-brasileiros da prpria esttica nacionalista e de outroscompositores nacionalistas, e no da pesquisa do folclore. Para ele, a missa no foi escritasob o ponto de vista de quem se envolveu e pesquisou, mas sob o ponto de vista da prpria

    escola nacionalista. (GRIMALDI, 2003).Entretanto, Carlos Alberto Pinto Fonseca no se julga um compositor nacionalista e tambmno considera a Missa Afro-Brasileiracomo uma obra pertencente a tal movimento, apesar desua essncia folclrica e popular. Apenas afirma que se trata de uma obra que tenta abolir asbarreiras entre sacro, profano, erudito e popular.

    De qualquer forma, inapropriado considerar a Missa Afro-Brasileira como uma missafolclrica

    5, como a Missa em Aboio de Pedro Marinho e a Missa Nordestina de Lindembergue

    Cardoso, que foram concebidas com base em elementos do folclore nordestino brasileiro.

    Outro fator determinante na composio da Missa Afro-Brasileirafoi o coral Ars Nova, suasonoridade e seu potencial tcnico-musical. O compositor afirma que escreveu a missa para oArs Novae suas condies tcnicas:

    O coro que eu tinha nas mos naquela ocasio apresentava um alto nvel tcnico e artstico.Poderia, inclusive estrear a obra. O coro tinha uma extenso vocal muito ampla, o que meproporcionou pensar na missa de forma mais exigente. Por isso, no uma obra para ser feitacom madrigais ou coros amadores que no possuam um trabalho vocal desenvolvido.FONSECA (2002)

    Assim como o coral Ars Novafoi fonte de inspirao para o compositor, os solos presentes na

    obra tambm foram escritos para cantores determinados:Mais ainda que o coro, os solos foram pensados nos solistas que eu tinha na poca,principalmente o solo de tenor, que fora escrito para a voz do Marcos Tadeu. Na ocasio eutinha Alcione Soares como baixo e Alba Machado de Souza, que era um contralto verdadeiro,com uma voz potente e rica em graves. FONSECA (2002)

    Carlos Alberto Pinto Fonseca considera a Missa Afro-Brasileiraa maior de suas obras, declarandoque, mesmo aps mais de trinta anos, ele no mudaria uma s nota de sua composio e queainda se emociona muito ao reg-la ou ao ouv-la FONSECA (2002).

    5 O Conclio Vaticano II deu um grande impulso secularizao da msica litrgica catlica, e neste contextosurgiram ento as chamadas missas folclricas, que eram missas compostas baseadas em materiais folclricos.

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    II. A ESTRUTURA DA OBRAA Missa Afro-Brasileira uma obra extensa que apresenta uma grande diversidade deelementos estilsticos. O compositor diz que uma obra mais longa do que o normal

    porque ele utilizou o texto oficial da Igreja Catlica que era ainda usado no ano dacomposio (1971) FONSECA (2002). A obra apresenta as cinco partes do Ordinrio:Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus/Benedictuse Agnus Dei. Essas partes foram divididas em 19movimentos dos quais, alguns so, ainda, divididos em sees em funo da variedade desuas caractersticas musicais.

    Assim, o Kyriefoi dividido em trs movimentos: Kyrie(c. 1-24),6Christe(c. 25-35) e KyrieII (c. 37-

    63); o Gloriaem quatro: Gloria(c. 1-20), Ns vos louvamos (c. 21-34), Gratias agimus(c. 35-140)e Quonian(c. 141-161); o Credoem cinco: Credo(c. 1-47), E se encarnou (c. 48-132), Et unamsanctam(c. 133-165), Et vitam (c. 166-173) e Amen(c. 174-193); o Sanctusem cinco: Sanctus

    (c. 1-27), Hosanna(c. 28-41), Benedictus(c. 42-62), Bendito Aquele(c. 63-83) e Hosanna(c. 84-104); e, por fim, o Agnus Deiem dois: Agnus Dei(c. 1-18) e Dona Nobis(c. 19-60).

    O compositor usa o latim e a lngua verncula, s vezes de forma superposta, s vezes deforma alternada. Em geral, o latim, considerado pelo compositor como uma lngua maispercussiva e articulada, usado nas partes de acompanhamento e em grande parte dos trechoscontrapontsticos. O portugus, mais brando, utilizado em todas as linhas meldicas. Ocompositor justifica a utilizao dos dois idiomas dizendo que:

    O uso do portugus e do latim no uma vontade de utilizar aquela forma arcaica que vem doperodo medieval como aqueles motetos com vrias lnguas superpostas. apenas uma questode fontica. O portugus muito brando, melhor para as melodias suaves. Enquanto que o

    latim mais percussivo e articulado, melhor pra percusso afro e para as linhas mais enrgicas.s vezes eu uso o portugus e o latim superpostos, s vezes em forma de responsrio, comoo incio do Gloriacomo se tivesse uma voz traduzindo a outra, e s vezes de forma alternada.Eu fao um bloco todo em latim e, depois, o repito em portugus... FONSECA (2002)

    Outro aspecto importante a presena de um motivo meldico condutor (Ex.1), cuja funo dar unidade obra. Tal motivo chamado pelo compositor de leitmotive aparece vrias vezesno decorrer da obra. Normalmente apresentado na linha do soprano, o motivo condutor acada vez harmonizado de forma diferente (Exs.2 e 3).

    6 Tanto a partitura editada como o manuscrito do compositor no apresentam numerao de compassos. Porisso, nesta anlise da obra, o Ordinrio foi numerado como um todo, apesar de sua diviso em movimentos.

    Ex.1: Motivo condutor da obra apresentado logo no incio do Kyrie(c.1-2).

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    Este motivo faz, em geral, referncia a Deus Pai. Segundo GRIMALDI (2003), todas as vezesque o texto faz referncia primeira pessoa da Santssima Trindade, Carlos Alberto Pinto Fonsecautiliza um motivo mais rtmico do que meldico, enquanto que, as referncias a Deus Filho aparecemem linhas mais meldicas do que rtmicas. como se o compositor usasse o Batuque para DeusPai e o Acalanto para Deus Filho. O mesmo acontece em relao dinmica. O compositorindicou dinmicas mais fortes para Deus Pai e dinmicas mais suaves para Deus Filho.

    A nica exceo encontra-se no fim de toda a obra, no Dona Nobis, onde h referncia a DeusFilho, o Cordeiro de Deus Agnus Dei(Ex.4) Para a exclamao Agnus Dei qui tollis peccata

    mundi dona nobis pacem o compositor utilizou o motivo condutor em fortssimo. Neste momento

    Ex.2: Primeira harmonizao do motivo condutor no Kyrie, c. 1-2.

    Ex.3: Apresentao do motivo condutor com nova harmonizao no Quonian(Gloria, c. 141-142).

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    da obra, as figuras de Deus Pai e de Deus Filho se juntam. Na verdade, o compositor consideroutal referncia s trs pessoas da Santssima Trindade formando o Deus Uno. Em entrevista,ele disse:

    Ao invs de terminar a missa de forma suave resolvi, depois de uma conversa com o Pe.Nereu Teixeira, termin-la com a exclamao Agnus Dei! Agnus Dei! O Dona Nobis como sefosse uma escada que leva ao cu. Depois de toda a turbulncia da missa com seus fortssimose apoteoses, entra o Dona Nobiscom aquela suavidade, e de repente, na segunda parte entraa exclamao: Agnus Dei, Agnus Dei, em fortssimo. Essa exclamao um pedido de socorroa Deus, dizendo a Ele que o mundo no est em paz. (FONSECA, 2002)

    Alm do motivo condutor, h uma srie de motivos meldicos que contribuem para a unificaoe coerncia da obra. Alguns deles so repetidos, criando uma inter-relao entre trechosdiferentes (Ex.5 e 6). Outros so apresentados uma nica vez na obra com a funo decaracterizar determinados trechos (Ex.7)

    Ex.5: Motivo inicial do Gloria(c. 1-2), apresentado nas linhas do baixo e do tenor.

    Ex.4: Motivo condutor apresentado duas vezes em seguida, com harmonizaes diferentes, onde ocompositor faz referncia ao Cordeiro de Deus utilizando o forte como

    dinmica Agnus Dei, c. 43-46.

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    Ao lado do motivo condutor e dos diversos motivos meldico-rtmicos encontram-se,principalmente nos trechos de melodia acompanhada, alguns motivos de acompanhamento.

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    Tais motivos de acompanhamento apresentam, de forma geral, caractersticas rtmicas e, emalguns casos, meldicas. So unificadores e recebem um tratamento base de repetiesrtmicas adaptados harmonia. Segue abaixo, como exemplo um motivo de acompanhamentoapresentado no Kyrie(Ex.8). Este motivo, formado por duas clulas rtmicas (a primeiraapresentada pelo tenor e a segunda pelo baixo) e caracterizado melodicamente pelo desenhode uma bordadura descendente, explorado ao longo de todo o Kyrie, mantendo as citadascaractersticas meldico-rtmicas adaptadas harmonia.

    7 Sendo um dispositivo unificador, o acompanhamento deve estar organizado de maneira similar quela de umtema, ou seja, utilizar um motivo: o motivo de acompanhamento (SCHOENBERG, 1996, p.108).

    Ex.6: Modificado ritmicamente, em funo do texto, o motivo inicial do Gloria reapresentado noCredo(c.7), com o texto factorem coeli et terrae.

    Ex.7: Motivo meldico do Ns te Louvamos (Gloria, c. 21-24).

    Ex.8: Motivo de acompanhamento apresentado no Kyrie(c. 7).

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    Existe, ao longo da obra, uma grande variedade de material meldico-harmnico: escalas modais(elia, drica, mixoldia, frgia e ldia), escalas tonais, escalas pentatnicas, escalas octatnicas,assim como melodias construdas sobre arpejos de acordes de stima, acordes de quartas e quintas

    superpostas e um pequeno cluster. Pode-se afirmar que cada unidade estrutural (movimentos/sees) da obra foi composta com base em um determinado material meldico-harmnico.

    Do ponto de vista harmnico, importante ressaltar a constante alternncia entre harmoniamodal e harmonia tonal. Na verdade, h uma predominncia da harmonia modal em funo domaior uso de escalas modais, que, em alguns trechos, se intercalam com material meldicotonal. Observa-se, ainda, a constante presena de funes harmnicas tradicionais da harmoniatonal (tnica, dominante e subdominante), mesmo em trechos modais.

    O ritmo tem papel de destaque, principalmente nos trechos chamados de batuque,

    caracterizados por sua essncia mais percussiva. Tal essncia cria uma certa complexidadertmica, verificada na formao de algumas clulas rtmicas e na sua combinao. Como emgrande parte da obra de Carlos Alberto Pinto Fonseca, de natureza afro-brasileira ou no,observa-se, ao longo da obra, o uso de ritmos pontuados, sncopas, contratempos, acentuaesem partes fracas do tempo ou em tempos fracos e uma grande quantidade de clulas rtmicasconstrudas a partir da subdiviso do tempo em quatro partes.

    Segue, abaixo, dois trechos que exemplificam a forma como o compositor trabalhou com osritmos. No primeiro exemplo, Carlos Alberto Pinto Fonseca combinou determinadas clulasrtmicas para criar um ritmo de batuque que se aproxima do baio. Trata-se de um trecho demelodia acompanhada, no qual a linha do soprano apresenta a melodia que tem comocontracanto a linha do contralto. As vozes masculinas se encarregam do acompanhamento(Ex.9). Usando a mesma textura de melodia acompanhada, o exemplo seguinte (Ex.10) mostracomo o compositor empregou o ritmo da marcha rancho. Neste exemplo, observa-se que ocompositor sugere aos tenores e baixos que cantem imitando instrumentos de percusso.

    Ex.9: Trecho do Kyrie(c. 13-16) que mostra como o compositor empregou o ritmo do baio.

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    No tocante textura, pode-se afirmar que o compositor utilizou o contraponto como principalmtodo de composio. Nos vrios momentos da Missa Afro-Brasileiraencontram-se trechos:homofnicos a quatro vozes; homofnicos em unssono oitavado; contrapontsticos baseadosna imitao de determinados motivos; contrapontsticos de melodia acompanhada (a melodiapode ser feita por determinada voz acompanhada pelas demais vozes ou feita por algum dossolistas acompanhado pelo coro); e, por fim, semicontrapontsticos.

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    III. SUGESTES PARA A PERFORMANCE DA OBRAA ltima etapa deste trabalho discute aspectos da preparao e execuo da obra, para osquais o prprio compositor chama a ateno:

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    Escolha do coro:No se pode ignorar o fato de que a Missa Afro-Brasileirafoi escrita para o coral Ars Nova, suasonoridade e seu potencial tcnico-artstico. Ao escolher o coro para sua montagem interessante que o regente considere, pelo menos, a sonoridade do citado coral: brilhante, ricaem harmnicos, baseada na impostao facial da voz e na cobertura da regio aguda.

    8 O semicontraponto no se baseia sobre combinaes tais como o contraponto mltiplo, as imitaes cannicasetc., mas apenas sobre o movimento meldico livre de uma ou mais vozes (SCHOENBERG, 1996, p.111).

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    Todas as sugestes e recomendaes apresentadas neste trabalho para a performance da obra foram fornecidaspelo prprio compositor em entrevistas cedidas a este autor.

    Ex.10: Trecho do Ns te Louvamos (Gloria, c. 21-24) que mostra como o compositor empregou oritmo de marcha rancho.

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    H a necessidade de um grupo de cantores que apresentem extenses vocais amplas, controlede dinmica em todas as regies, boa articulao e dico, alm de uma certa elasticidadevocal em funo das exigncias da partitura.

    Quanto ao nmero de cantores, recomenda-se que o coro no tenha menos que 32 vozes, emfuno da grande quantidade de divisi, e, nem mais que 60, o que poderia comprometer aclareza de articulao e a preciso do ritmo.

    Afinao:Analisando, separadamente, a linha de cada uma das vozes, observa-se uma srie dedificuldades de afinao de ordem meldica: sustentao de notas longas, desenhos meldicoscromticos, saltos e intervalos de difcil realizao para a voz, alm da constante presena demelodias modais. Como forma de resolver tais dificuldades, sugere-se, ao regente que, durante

    a leitura da obra, os naipes do coro sejam trabalhados separadamente. Pode-se ainda usartais dificuldades para a criao de vocalizes a serem trabalhados nos aquecimentos vocais noincio dos ensaios.

    Outra dificuldade de afinao a passagem de um trecho para outro. Neste caso, recomenda-se que o regente ensine o coro a se auto-afinar atravs de um exerccio que consiste narepetio dos dois ltimos compassos de um trecho at a primeira nota ou acorde do trechoseguinte.

    Preciso e clareza rtmicas:A realizao precisa e clara da rtmica da Missa Afro-Brasileira, para o compositor, um dospontos mais relevantes para uma boa execuo da obra. Vrios so os fatores que podemcomprometer o resultado rtmico: um nmero excessivo de cantores no coro, uma acsticacom excesso de reverberao, a impreciso do gestual do regente e a articulao deficientepor parte dos cantores.

    Para se conseguir uma execuo rtmica satisfatria, o compositor sugere duas prticas:

    Realizar, durante o processo de preparao do coro, um exerccio de antecipao dasconsoantes.Este exerccio consiste no recitar o texto, slaba por slaba, fazendo umapequena fermata na consoante da prxima slaba (FONSECA, 2002).

    Nos trechos mais percussivos, onde h clulas rtmicas formadas por colcheia pontuadae semicolcheia deve-se colocar uma pausa de semicolcheia no lugar do ponto(FONSECA, 2002). Assim, ter-se- uma colcheia, uma pausa de semicolcheia e umasemicolcheia. Da mesma forma, nas sncopas semicolcheia, colcheia e semicolcheia coloca-se uma pausa de semicolcheia aps a colcheia, transformando-a em umasemicolcheia (FONSECA, 2002). Assim, obtm-se duas semicolcheias, uma pausade semicolcheia e outra semicolcheia (Ex.11).

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    Explorao timbrstica:

    Ao contrrio das indicaes de dinmica e temporalidade, as indicaes referentes ao timbreideal para os vrios trechos da obra so bem raras. Entretanto, como se trata de uma obrabastante variada em seus elementos musicais, o regente pode buscar alternativas de exploraode timbres nas vozes dos cantores.

    O prprio compositor afirmou que utilizou o latim de forma mais percussiva e articulada. Almdisso, h tambm uma pequena utilizao de slabas como dum-du-rum para a marcao dedeterminados ritmos. De posse disso, possvel explorar o timbre dos naipes como se essesfossem instrumentos de percusso a partir da articulao do texto. Deve-se ainda, segundo ocompositor, cantar as linhas de acompanhamento com uma maior explorao das consoantes:

    O cantor deve cantar as slabas como se no tivesse vogal para tornar o acompanhamentomais percussivo. A explorao da ressonncia de consoantes como o m, por exemplo, podecriar um efeito de instrumentos de percusso mais graves (FONSECA, 2002).

    Clareza e transparncia do contraponto:Os trechos mais contrapontsticos exigem do coro uma sonoridade mais clara, aberta etransparente (FONSECA, 2002). Tal sonoridade pode ser trabalhada na preparao vocal docoro atravs de recursos da tcnica vocal.

    Para se adquirir uma maior transparncia nas linhas mais melismticas, o compositor sugere queos cantores cantem a nota na qual h a articulao da slaba na dinmica indicada, e as notas

    seguintes do melisma, uma gradao de dinmica abaixo daquela indicada (FONSECA, 2002).Os cantores podem, ainda, articular repetidamente a vogal da slaba a cada nota do melisma.

    Fraseado:Carlos Alberto Pinto Fonseca costuma valorizar intensamente a acentuao tnica das palavras,dando nfase s slabas tnicas e realizando pequenos decrescendos nas slabas tonas quesucedem.

    No seu trabalho como regente, estabeleceu um padro de fraseado. Segundo ele, as frasesdevem abrir e fechar. Tal processo inicia-se no princpio da frase na dinmica indicada e partedesta caminhando com um leve crescendo at o ponto culminante, seguindo com um levedecrescendo at o fim da frase, fechando-a prosodicamente (FONSECA, 2002).

    Ex.11: Exemplo de frase da linha dos baixos, com ritmos percussivos (Kyrie, c. 17-18). Na pauta decima est a forma como o compositor escreveu. Na pauta de baixo, como o ritmo deve ser executado.

  • 8/14/2019 De Batuque e Acalanto: uma anlise da Missa Afro-Brasileira de Carlos Alberto Pinto Fonseca

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    FERNANDES, ngelo Jos. De Batuque e Acalanto:uma Missa Afro-Brasileira.... Per Musi, Belo Horizonte, n.11, 2005, p.60-72

    Nos trechos mais lentos e expressivos, recomenda-se que se cante tudo legato, sem cortes ecesuras, com uso da respirao coral. O compositor diz que, nesses trechos, no devehaver respiraes entre frases, em hipteses alguma (FONSECA, 2002).

    Solos:De forma geral, as linhas de solo do soprano, do contralto e do baixo no apresentam grandescomplicaes musicais ou tcnicas a no ser a tessitura exigida. Entretanto, a parte de solo detenor bastante exigente. No s quanto tcnica, mas principalmente, quanto interpretao,quanto ao controle de todo o texto musical e quanto exigncia dramtica de alguns trechos.

    Acstica ideal para a performance:Concertos de msica coral a cappella, principalmente de natureza sacra, costumam funcionarbem em igrejas. Tal opo para a Missa Afro-Brasileira, provavelmente, a mais recomendvel.

    importante, entretanto, que o regente saiba escolher uma igreja que apresente condiesacsticas adequadas, sem excesso de reverberao. O tratamento contrapontstico dado obra, assim como a clareza rtmica to essencial em seu contexto, podem ser colocados emrisco em funo de uma acstica que apresente reverberao excessiva. Seja uma igreja ououtro tipo de sala, o local para a performance precisa ter uma quantidade de reverberaoequilibrada, a fim de facilitar a homogeneidade dos naipes, dar um certo brilho s vozes egarantir uma melhor afinao sem que haja comprometimento da clareza e da preciso.

    Referncias BibliogrficasFERNANDES, ngelo Jos. Missa Afro-Brasileira (de Batuque e Acalanto) de Carlos Alberto Pinto Fonseca:

    Aspectos Interpretativos. Campinas, 2004. Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Msica

    do Instituo de Artes da UNICAMP, para obteno do ttulo de Mestre em Msica.FONSECA, Carlos Alberto Pinto. Entrevista concedida a ngelo Jos Fernandes. (fita magntica). Belo Horizonte,

    2002.______. Missa Afro-Brasileira (de batuque e acalanto). New York: Lawson-Gould Music Publishers, 1978.______. Missa Afro-Brasileira (de Batuque e Acalanto). Ars Nova - Coral da UFMG. Regncia: Carlos Alberto

    Pinto Fonseca. Rio de Janeiro: Continental, 1989. 33 rpm, stereo. (Disco de vinil).FONSECA, Rafael Grimaldi da. Entrevista concedida a ngelo Jos Fernandes. (fita magntica). Belo Horizonte,

    2003.400 PONTOS RISCADOS E CANTADOS NA UMBANDA E CANDOMBL. 3. ed. Rio de Janeiro: Eco, 1962.SANTOS, Mauro Camilo de Chantal. Carlos Alberto Pinto Fonseca: dados biogrficos e catlogo de obras. Belo

    Horizonte, 2001. Dissertao apresentada Escola de Msica da UFMG, para obteno do ttulo de Mestre

    em Msica de Cmara.SCHOENBERG, Arnold. Fundamentos da Composio Musical. Traduo de Eduardo Seincman. So Paulo:Editora da Universidade de So Paulo, 1996.

    ngelo J. Fernandes: Regente natural de Itajub/MG. Bacharel em piano e Especialista emRegncia Coral pela Escola de Msica da Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG.Concluiu recentemente seu Mestrado em Msica, na rea de Prticas Interpretativas, peloprograma de ps-graduao em Msica do Instituto de Artes da Universidade Estadual deCampinas, UNICAMP, tendo sido orientado pelo Prof. Dr. Eduardo Augusto stergren.

    Atualmente doutorando em Msica, pelo mesmo programa.