DÉBORAH KAROLLYNE RIBEIRO · DÉBORAH KAROLLYNE RIBEIRO RAMOS LIMA ENTRE FIOS E NÓS: UMA ANÁLISE...
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DÉBORAH KAROLLYNE RIBEIRO RAMOS LIMA
ENTRE FIOS E NÓS: UMA ANÁLISE DA REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL
DE NATAL/RN
NATAL/RN
2018
www.posgraduacao.ufrn.br/ppgscol [email protected] 55-84-3342-2338
CENTRODECIÊNCIASDASAÚDEPROGRAMADEPÓS-GRADUAÇÃOEMSAÚDECOLETIVA
DÉBORAH KAROLLYNE RIBEIRO RAMOS LIMA
ENTRE FIOS E NÓS: UMA ANÁLISE DA REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL DE
NATAL/RN
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Saúde Coletiva, Centro de Ciências da Saúde
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
como requisito para a obtenção do título de
Doutor em Saúde Coletiva.
Orientadora: Professora Doutora Jacileide
Guimarães
Natal/RN
2018
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial Prof. Alberto Moreira Campos - Departamento
de Odontologia
Lima, Déborah Karollyne Ribeiro Ramos.
Entre fios e nós: uma análise da Rede de Atenção Psicossocial
de Natal/RN / Déborah Karollyne Ribeiro Ramos Lima. - 2018.
182f.: il.
Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, Centro de Ciências da Saúde, Programa de
Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Natal, 2018.
Orientador: Jacileide Guimarães.
1. Saúde Mental - Tese. 2. Serviços de Saúde Mental - Tese. 3.
Atenção a Saúde - Tese. I. Guimarães, Jacileide. II. Título.
RN/UF/BSO BLACK D585
AGRADECIMENTOS
“Não é sobre chegar no topo do mundo e saber que venceu,
é sobre escalar e sentir que o caminho te fortaleceu...
É sobre ser abrigo e também ter morada em outros corações
e assim ter amigos contigo em todas as situações...”
Trem bala – Ana Vilela
Com esses versos de Ana Vilela concluo uma das jornadas mais difíceis da minha
vida! Construída a incontáveis mãos. Ainda inebriada com as vozes, os lugares, os saberes e
os fazeres com os quais me deparei nesta caminhada, consigo reconhecer que mais importante
do que o produto final que apresento nessas mais de 63 mil palavras, é o processo de
construção do conhecimento que se deu ao longo desses quatro anos de doutorado. Por ora, a
certeza de que não coloco um ponto final ao terminar as considerações finais – certezas
provisórias, “verdades” com prazo de validade –, mas sim reticências... posto que a pesquisa,
a realidade e a própria vida estão em constante transformação e, por isso, o trabalho não para!
Para hoje e sempre, gratidão! Reconhecimento de que esta jornada intelectual não
poderia ter sido construída sem o apoio de tantos e quantos se fizeram e se fazem presentes
em minha vida. Por isso, dedico este trabalho e agradeço:
A Deus, Pai todo poderoso, fonte inesgotável de força, de vida, de graça... braço invisível que
me sustentou em tantos momentos angustiantes. Mais do que me sustentar, tenho certeza que
foi Ele que me levou nos braços em várias ocasiões.
Aos meus pais, Marcelo e Meristaine, que sempre me trouxeram a paz e a segurança, ouvidos
dispostos a compartilhar os dessabores da vida e as “dores” da produção intelectual. Minha
gratidão eterna aos maiores admiradores que conquistei nessa vida.
Ao meu esposo, Felipe, que trilhou junto comigo essa caminhada, que acredita mais em mim
do que eu mesma.
À minha tia, Goretti Ribeiro, grande influência na busca pela vida acadêmica, pelas
incontáveis horas de oração a mim destinadas, pelo apoio nos momentos que mais precisei e
pelo interesse que sempre demonstrou pelo meu sucesso pessoal e acadêmico.
Aos docentes do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da UFRN, pelo
comprometimento com que conduziram o curso e pelas profícuas discussões que
aprofundaram meus conhecimentos e contribuíram com a minha formação profissional e
humana.
Às minhas queridas amigas Aíla, Bruna, Karla e Rosimery, presentes que a vida acadêmica
me deu, fontes de apoio, de inspiração, de alegria e de juventude... A vocês meu amor de
irmã.
À minha orientadora, professora doutora Jacileide Guimarães, a mentora intelectual que vem
acompanhado meu crescimento ao longo dos últimos oito anos, apoiando minhas escolhas e
oferecendo o suporte que precisei para chegar até aqui.
Aos membros da banca examinadora, professores doutores Ana Karenina Arraes, Elizabethe
Souza, João Bosco Filho e Nadja Lapann, pela disponibilidade, pela ética e o
comprometimento com que avaliaram este trabalho e pelas valiosas contribuições que
realizaram.
Aos verdadeiros artesãos do SUS, diretores, trabalhadores e usuários, que construíram junto
comigo essa pesquisa.
A todos vocês os meus sinceros agradecimentos.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
Tecendo a manhã
João Cabral de Melo Neto
RESUMO
Esta tese encontra-se na interface entre a saúde coletiva e a saúde mental. Tem como objeto
de estudo a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), analisada do ponto de vista de sua lógica
organizacional e tendo como eixo norteador a articulação entre os serviços que a compõem.
Objetiva de maneira geral: analisar a RAPS Natal/RN, considerando o cuidado em território e
seus modos de articulação; e de maneira específica: elaborar um desenho da rede,
relacionando a capacidade instalada municipal, os fluxos assistenciais da atualidade e as
parcerias intersetoriais diretamente relacionadas à linha do cuidado em atenção psicossocial;
compreender os modos de articulação entre os serviços que a compõem, considerando a
continuidade do cuidado no território; propor estratégias para potencializar a referida rede de
atenção, com base nas especificidades loco-regionais. Trata-se de pesquisa qualitativa
norteada pelo Pensamento Complexo, de orientação moriniana, enquanto lente compreensiva
da realidade e do fenômeno em foco. Para a construção dos dados realizou-se circulação pelos
serviços de saúde que compõem os diversos pontos de atenção da RAPS Natal/RN para fins
de observação descritiva de rotinas e de atores em interação, além de sessões de grupo focal
com diretores, trabalhadores e usuários dos serviços de saúde visitados, totalizando 22
sujeitos. Recebeu aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário
Onofre Lopes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (HUOL-UFRN) em 03 de
abril de 2017 – CAAE 65226817.5.0000.5292 e parecer 1.997. Os resultados foram
construídos a partir do corpus originário das transcrições dos grupos focais, e divididos em
duas categorias de análise, a saber: 1) Dos fios emaranhados ao alinhavo de uma rede – que
consiste na apresentação da RAPS Natal/RN do ponto de vista gráfico e no tocante às
características do cuidado em saúde mental de base comunitária desenvolvido no município;
2) Sobre a articulação da RAPS: o religar de fios e de “nós” alinhavando a rede – na qual se
discutem as estratégias adotadas por atores, serviços e setores para promover interconexões
que favoreçam a continuidade do cuidado de saúde mental em território. Ainda na segunda
categoria, são debatidas problemáticas evidenciadas no cenário local e que trazem
implicações diretas ou indiretas para a articulação da RAPS e para a continuidade do cuidado
em território e que são denominadas como Os nós da rede. Em síntese, reconhecemos no
cenário local mais a existência de um continuum entre serviços do que de uma Rede de
Atenção à Saúde propriamente dita. Chamamos a atenção para a relação de recursividade que
julgamos se estabelecer entre o cuidado em território e a articulação da RAPS. De modo que,
um cuidado pautado na especialidade não-comunicante, na medicalização e na fragmentação
– como evidenciado com a pesquisa – é produto e produtor de uma rede que se articula
pontualmente, num alinhavo disparado por rótulos e intersubjetividades que atendem mais a
afinidades interpessoais e temáticas do que às necessidades de indivíduos e coletividades.
Apostamos na trindade “integralidade-compartilhamento do cuidado-intersetorialidade” como
pressuposto fundamental à construção do cuidado e do trabalho em rede, para que assim seja
possível extrapolar os fluxos assistências labirínticos rumo à concretização da RAPS em
território.
Palavras-chave: Saúde mental, Serviços de Saúde Mental, Atenção à Saúde.
ABSTRACT
This thesis is at the interface between collective health and mental health. Its research object
is the Psychosocial Care Network (RAPS, as per its Portuguese acronym), analyzed from the
viewpoint of its organizational logic and having as a guiding axis the articulation between the
services comprising it. It is broadly aimed: to analyze the RAPS Natal/RN, considering the
care in the territory and its modes of articulation; and specifically: to draw up a network
design, relating the municipal installed capacity, the current care flows and the intersectoral
partnerships directly related to the line of care in psychosocial care; to understand the modes
of articulation between the services comprising it, considering the continuity of care in the
territory; to propose strategies to enhance this network of care, based on loco-regional
specificities. This is a qualitative research guided by the Complex Thought, with Morin‟s
orientation, as an understandable lens of reality and of the phenomenon in question. In order
to collect data, we moved through the health services comprising the various points of care in
the RAPS Natal/RN for descriptive observation of routines and actors in interaction, and also
performed focus group sessions with directors, workers and users of the visited health
services, totaling 22 subjects. It was approved by the Research Ethics Committee of the
Onofre Lopes University Hospital of the Federal University of Rio Grande do Norte (HUOL-
UFRN), on April 3rd
, 2017 – CAAE 65226817.5.0000.5292 and opinion 1.997. The results
were built from the corpus originating from the transcripts of the focus groups, and divided
into two categories of analysis, namely: 1) From the tangled wires to the basting of a network
– which consists of the presentation of the RAPS Natal/RN from the graphic viewpoint and
regarding the characteristics of community-based mental health care developed in the
municipality; 2) Concerning the articulation of the RAPS: relinking wires and knots, basting
the network – where we will discuss the strategies adopted by actors, services and sectors to
promote interconnections that foster the continuity of mental health care in the territory. Still
in the second category, problems are debated evidenced in the local scenario and that have
direct or indirect implications for the articulation of the RAPS and for the continuity of the
care in territory and that are denominated like The nodes of the network. In short, we
recognize in the local scenario more the existence of a continuum between services than of an
RAS proper. We call attention to the relationship of recursion that we judge to be established
between care in the territory and the articulation of RAPS. So, care based on specialty,
medicalization and fragmentation - as evidenced by the research - is the product and producer
of a network that articulates in a timely manner, in a fodder triggered by labels and
intersubjectivities that they serve more interpersonal and thematic affinities than the needs of
individuals and collectivities. We are betting on the trinity of "integrality-sharing of care-
intersectoriality" as a fundamental presupposition for the construction of care and networking
so that it is possible to extrapolate flows of labyrinth assistance towards the realization in
RAPS territory.
Keywords: Mental health, Mental Health Services, Health Care (Public Health).
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Estrutura operacional das Redes de Atenção à Saúde ......................................
43
Figura 2 – Mapa da cidade do Natal/RN por Distrito Sanitário e contendo a localização
dos serviços que fizeram parte da pesquisa
.............................................................................................................................................
62
Figura 3 – Rede de Atenção Psicossocial de Natal/RN, considerando capacidade
instalada por Distrito Sanitário, fluxos assistenciais e parcerias intersetoriais
...........................................................................................................................
74
Figura 4 – Representação das características do cuidado em saúde mental evidenciadas
no território .......................................................................................................
83
LISTA DE ABREVIATURAS
AB: Atenção Básica
ACS: Agente Comunitário de Saúde
APS: Atenção Primária à Saúde
CAPS: Centro de Atenção Psicossocial
CAPS AD: Centro de Atenção Psicossocial especializado em transtornos decorrentes do uso
de álcool e outras drogas
CAPS i: Centro de Atenção Psicossocial infanto-juvenil
CC: Centro de Convivência e Cultura
CEDUC: Centro Educacional
CEI: Centro de Especialidades Clínicas
CEP: Comitê de Ética em Pesquisa
CIAD: Centro Integrado de Acolhimento ao Adolescente acusado de Ato Infracional
CnaR: Consultório na Rua
CNES: Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde
CNS: Conferência Nacional de Saúde
CNSM: Conferência Nacional de Saúde Mental
CRAS: Centro de Referência em Assistência Social
CREAS: Centro de Referência Especializado em Assistência Social
DS: Distrito Sanitário
eCR: Equipe de Consultório na Rua
ESF: Estratégia de Saúde da Família
HJM: Hospital João Machado
HMN: Hospital Municipal de Natal
HUOL: Hospital Universitário Onofre Lopes
NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família
PNSM: Política Nacional de Saúde Mental
PS/HJM: Pronto Socorro do Hospital João Machado
PTS: Projeto Terapêutico Singular
RAPS: Rede de Atenção Psicossocial
RAS: Rede de Atenção à Saúde
RAU: Rede de Atenção às Urgências
RN: Rio Grande do Norte
RPb: Reforma Psiquiátrica brasileira
SAD: Serviço de Atendimento Domiciliar
SAMU: Serviço de Atendimento Móvel de Urgência
SEMDES: Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social
SEMURB: Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo
SISREG: Sistema Nacional de Regulação
SMS: Secretaria Municipal de Saúde
SPA: Substância Psicoativa
SRT: Serviço Residencial Terapêutico
SUAS: Sistema Único de Assistência Social
SUS: Sistema Único de Saúde
UAP/HUOL: Unidade de Pronto Atendimento do Hospital Universitário Onofre Lopes
UBS: Unidade Básica de Saúde
UPA: Unidade de Pronto Atendimento
USF: Unidade de Saúde da Família
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 14
2 REVISÃO DE LITERATURA ..................................................................................... 20
2.1 UM PASSEIO PELA TRAJETÓDIA DA LOUCURA: DA GRANDE
INTERNAÇÃO À ATENÇÃO EM REDE TERRITORIAL ...........................................
20
2.2 A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL À LUZ DO PENSAMENTO
COMPLEXO: TENSÕES E CONTRADIÇÕES ...............................................................
39
3 OBJETIVOS .................................................................................................................. 56
3.1 OBJETIVO GERAL ..................................................................................................... 56
3.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS ....................................................................................... 56
4 MÉTODO ....................................................................................................................... 57
4.1 ARCABOUÇO TEÓRICO-METODOLÓGICO ......................................................... 57
4.2 CARCATERÍSTICAS DA PESQUISA ....................................................................... 60
5 RESULTADOS E DISCUSSÃO .................................................................................. 68
5.1 DOS FIOS EMARANHADOS AO ALINHAVO DE UMA REDE ........................... 72
5.1.1 A rede alinhavada ...................................................................................................... 73
5.1.2 O cuidado em território: bordando ilhas de resistência entre as remanescências do
manicômio ..........................................................................................................................
83
5.2 SOBRE A ARTICULAÇÃO DA RAPS: O RELIGAR DE FIOS E DE “NÓS”
ALINHAVANDO A REDE ...............................................................................................
109
5.2.1 Os nós da rede ........................................................................................................... 129
5.2.1.1 Estrutura operacional .......................................................................................... 129
5.2.1.2 A APS e o compartilhamento do cuidado em saúde mental ............................. 133
5.2.1.3 A Urgência e Emergência no contexto da RAPS ............................................... 138
5.2.1.4 A dialógica do CAPS ............................................................................................ 143
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 150
REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 155
APÊNDICES ..................................................................................................................... 167
Apêndice A – Roteiro para realização dos Grupos Focais ................................................. 167
Apêndice B – Roteiro para observação descritiva .............................................................. 168
Apêndice C – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido............................................. 169
Apêndice D – Rede de Atenção Psicossocial da cidade do Natal/RN considerando a
capacidade instalada por Distrito Sanitário e parcerias ......................................................
172
ANEXOS ........................................................................................................................... 180
Anexo A – Termo de Anuência HUOL .............................................................................. 180
Anexo B – Termo de Anuência SMS ................................................................................. 181
Anexo C – Parecer Consubstanciado do CEP/HUOL ........................................................ 182
14
1 INTRODUÇÃO
A Reforma Psiquiátrica brasileira (RPb) apresenta-se como o grande marco da
reorientação teórico-prática da loucura no Brasil. Nascida no interior do processo de
conscientização sanitária, eclode num campo profícuo de luta pelos direitos de cidadania, de
interrogação da relação entre Estado e sociedade, numa “utopia ativa de transformação social
que se faz e refaz cotidianamente... uma luta política para a transformação social”, como nos
fala Yasui (2010, p. 25).
Desde os primeiros anos do movimento de Luta Antimanicomial datado da década de
1970 até os dias atuais são incontestáveis os avanços conquistados em todo território nacional
e nos diversos âmbitos que conformam as múltiplas facetas da RPb – teórico-conceitual,
jurídico-político, técnico-assistencial e sociocultural (AMARANTE, 2003). Neste trabalho
assumiremos o desafio de aprofundar a discussão na dimensão técnico-assistencial da RPb,
com foco no arranjo organizativo dos serviços de saúde mental disponíveis em território, em
interface com a sua dimensão epistemológica – porém sem perder de vista as demais facetas
deste movimento. Isso porque reconhecemos que as formas de entender e de lidar com o
transtorno mental se interconectam e retroagem, refletindo diretamente nos modos como os
serviços se organizam para atender às demandas dos usuários.
No campo epistemológico ou teórico-conceitual vimos o aflorar de críticas e
questionamentos não apenas em relação à instituição asilar, mas, principalmente aos
pressupostos fundantes da psiquiatria e às estratégias de normalização e controle do “doente
mental”; o paradigma hospitalocêntrico e medicalizador aos poucos vai cedendo espaço à
abordagem psicossocial do sofrimento psíquico. Na esfera jurídico-política, a promulgação da
Lei no 10.216, seguida de um arcabouço normativo que compreende leis, portarias e decretos
ministeriais, reorientou a assistência em saúde mental no Brasil, o que, em última análise,
findou por legitimar uma série de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico que devem
funcionar de forma articulada e pautada na assistência em território. Transversalizando tais
transformações, apostou-se na clínica ampliada e na representação não-estigmatizante dos
transtornos mentais (COSTA et al., 2011).
Desde o ano de 2011, após a portaria 3.088/2011, esses serviços organizam-se
seguindo a lógica das Redes de Atenção à Saúde (RAS) – sistema integrado que opera de
forma contínua, proativa e voltado para as condições agudas e crônicas de saúde/doença
(MENDES, 2011) – estabelecendo, assim, a rede temática, e prioritária, de cuidados em saúde
15
mental: Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Conformam esta rede sete componentes, a
saber: Atenção Básica, Atenção Psicossocial Especializada composta pelos Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS), Atenção de Urgência e Emergência, Atenção Residencial de
Caráter Transitório, Atenção Hospitalar que é composta por leitos/enfermarias de saúde
mental em Hospital Geral e pelo serviço Hospitalar de Referência para atenção às pessoas
com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool
e outras drogas, Estratégias de Desinstitucionalização e Reabilitação Psicossocial (BRASIL,
2011a).
Como êxitos da saúde mental/atenção psicossocial brasileira na última década Pitta
(2011) elenca o aumento da acessibilidade ao cuidado em saúde mental, a redução de leitos
em hospitais psiquiátricos, a reorientação assistencial com foco na comunidade e nos espaços
de sociabilidade dos sujeitos. A estes pontos, Delgado (2015) acrescenta a criação e
ampliação de dispositivos substitutivos e iniciativas de geração de emprego e renda
articuladas às políticas de economia solidária. Macedo et al. (2017) destacam o
aprofundamento do processo de expansão e regionalização da rede de serviços ao longo dos
15 anos após a Lei 10.216, apesar da persistência de “vazios assistenciais” em diversos pontos
de atenção que geram fragilidade na cobertura da rede de serviços substitutivos.
Revisitando informativo eletrônico da Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e
outras Drogas, tem-se um panorama geral do processo de transformação do modelo
assistencial como também uma expectativa do estado de desenvolvimento da RAPS. Os dados
disponíveis no referido documento apontam para a construção de estratégias para
fortalecimento e qualificação da Atenção Básica (AB) – a exemplo da ampliação das equipes
de Saúde da Família, dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família e das equipes de Consultório
na Rua (eCR) – para cuidar das pessoas com necessidades decorrentes de transtorno mental
ou do uso abusivo de crack, álcool e outras drogas; ampliação da cobertura nacional de
Atenção Psicossocial Especializada1 que passou de 0,21 CAPS/100 mil hab. em 2002, após a
Lei 10.216/2001, para 0,80 CAPS/100 mil hab. em 2014, o que significa que ascendeu de uma
cobertura crítica ou insuficiente para outra considerada muito boa pelo Ministério da Saúde;
evolução do investimento financeiro federal com reversão – atingida em 2005 – nos gastos da
política pública com mais investimento na atenção comunitária/territorial; expansão da
1 O Indicador de cobertura CAPS/100 mil hab. foi criado para refletir a evolução da implantação da rede
substitutiva ao longo do tempo. Isoladamente, não reflete a expansão da RAPS e, portanto, a cobertura
assistencial. Para este indicador, utiliza-se o cálculo de cobertura ponderada por porte do CAPS. Assim, os
CAPS I têm território de abrangência e cobertura de 50 mil habitantes; os CAPS III e ad III, de 150 mil
habitantes; os demais CAPS (II, ad e i), cobertura de 100 mil habitantes (BRASIL, 2015).
16
Atenção Residencial de Caráter Transitório com a implementação de Unidades de
Acolhimento em dez estados brasileiros até o ano de 2014; ampliação de Serviços
Residenciais Terapêuticos e aumento no número de beneficiários do “Programa de Volta Para
Casa”, mudança no perfil/porte dos hospitais psiquiátricos em todo território nacional – até
2014 9,27% dos hospitais psiquiátricos tinham mais de 400 leitos enquanto que 48% tinham
até 160 leitos – e mais de 1.000 iniciativas de inclusão social pelo trabalho espalhadas pelos
26 Estados brasileiros; investimentos em Reabilitação Psicossocial que contemplaram
projetos relacionados à Economia Solidária e geração de trabalho e renda, alfabetização,
educação continuada, inclusão digital e cultural por intermédio de expressões artísticas e
culturais e comunicação audiovisual e no protagonismo de usuários e familiares que
contemplaram projetos de fortalecimento da inclusão e do controle social, criação e
fortalecimento de associações de usuários e familiares, atividades comunitárias, eventos e
publicações, encontro de coletivos e articulação em rede intersetorial e de saúde; além de
projetos de educação permanente que contaram com a presença de profissionais de 21 Estados
das cinco regiões do Brasil (BRASIL, 2015a).
Entretanto, apesar dos significativos avanços conquistados no cenário nacional, a
regionalização da saúde mental e criação da RAPS fez aflorar novos desafios à Política de
Saúde Mental brasileira. Como desafios e fragilidades atuais inerentes à atenção psicossocial
no Brasil, Delgado (2015) elenca graves problemas na gestão dos serviços que se referem: à
deficiência na estrutura dos serviços comunitários e precarização dos vínculos profissionais; à
baixa consolidação de consensos técnicos para funcionamento das equipes nos vários
dispositivos da rede de atenção; à ausência de mecanismos de avaliação permanente e à
disparidade entre a efetividade de serviços mesmo em contextos semelhantes; e a critérios
pouco claros de cobertura territorial efetiva, impedindo a avaliação de impacto. Além destes,
o autor ainda refere baixa densidade de articulação das ações intersetoriais e ausência de
estratégias claras para enfrentar a vulnerabilidade social dos indivíduos com transtorno mental
ou em uso abusivo de álcool e/ou outras drogas.
Lobosque (2011) enumera como desafios ora impostos à RAPS a atenção à crise,
principalmente pela escassez de dispositivos substitutivos que atendam 24 horas por dia.
Outro ponto colocado pela autora é a aproximação (ou seria o distanciamento?) entre AB e os
serviços especializados do tipo CAPS. A este respeito, Delgado (2015) pondera que tal
problemática não pode ser enfrentada apenas pela burocratização das ações nas redes de
atenção, mas perpassa pelo diálogo entre os modelos teóricos diversos que sustentam atenção
primária e atenção psicossocial. Lobosque (2011) segue argumentando sobre a formação de
17
laços entre os indivíduos e entre estes e a cidade, inclusão dos setores de educação, justiça
assistência social, direitos humanos na luta pela cidadania e o cuidado continuado em
território. Ademais, alerta para uma grave problemática, principalmente se considerarmos o
cuidado articulado em rede, relacionada à centralização do CAPS como organizador do
cuidado em território. Para a autora, os serviços de atenção psicossocial especializada têm
assumido, por diversos motivos, uma tendência de fecharem-se em si próprios no que cumpre
em convidar e convocar os diversos pontos da rede a atuarem como atores da territorialização
– e aí cabe um questionamento nosso: o serviço especializado fecha-se em si mesmo ou foi
sitiado por velhas barreiras invisíveis que isolam a doença mental nas paredes, agora, do
CAPS?
Diante do exposto, reconhecemos a importância da integração e da articulação de
todos os componentes da RAPS, assim como da participação ativa de outras instâncias para
além do setor saúde – a exemplo da assistência social, educação, justiça, dentre outras – para a
garantia da integralidade e da continuidade do cuidado em território. Por outro lado,
admitimos a existência de fatores complicadores no cotidiano da RAPS que tensionam a rede
e nos fazem questionar: persistem estruturas simbólicas e/ou materiais representativas do
manicômio e do poder médico-psiquiátrico atravancando a articulação entre os serviços e as
estratégias que conformam a rede de atenção?
Na perspectiva de operacionalizar a presente investigação partimos do
questionamento-chave: como se dá a articulação entre os pontos da Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS) do município de Natal com vistas a continuidade do cuidado em
território? Assumindo o desafio de analisar a RAPS em hologramaticidade com a RAS,
propomos a realização desta pesquisa que intenciona visitar os modos de articulação da RAPS
na perspectiva de (re)conhecer remanescências da ideologia manicomial, assim como de
outras fontes de tensão e travamento no cotidiano da assistência à saúde mental em rede.
Esclarecemos que a hologramaticidade aqui considerada se refere a um dos princípios do
Pensamento Complexo e contempla a ideia de que, assim como em um holograma, o menor
ponto da imagem contém a quase totalidade da informação. De tal modo, admite-se que a
parte está no todo que, por sua vez, está contemplado na parte. Explicitaremos mais
detalhadamente o princípio do holograma na revisão de literatura do presente estudo.
São pressupostos desta investigação:
O lidar teórico-prático, ou seja, a relação estabelecida entre os modos de compreender
a “loucura” e as formas de cuidar/tratar do sujeito que sofre de transtorno mental,
18
influencia e é influenciado pelos modos de articulação da RAPS, trazendo implicações
para a continuidade do cuidado em saúde mental no território e em perspectiva de rede
de atenção;
No âmbito da atenção à saúde em rede os componentes relativos ao cuidado em saúde
mental se isolam ao passo que são isolados por “muros manicomiais” persistentes,
forjando fluxos assistenciais estanques e/ou labirínticos tanto dentro da RAPS quanto
no contexto mais ampliado das RAS;
Os modos como se articula a RAPS/Natal trazem implicações para a continuidade do
cuidado em território que perpassam pela própria estrutura operacional e pela
interlocução entre os atores da própria rede – gestores, trabalhadores e usuários.
A presente pesquisa se justifica pela posição que a RAPS ocupa na lista de programas
prioritários do Ministério da Saúde em concomitância com o fato da articulação entre os
serviços ser uma de suas finalidades (BRASIL, 2011a). Diante da representatividade da
problemática da (des)articulação dos serviços como fator impactante no cotidiano da
assistência à saúde mental coletiva, pensar alternativas criativas e exequíveis reveste-se de
fundamental importância, especialmente no que se refere à elaboração de políticas, ao
planejamento e à gestão dos serviços de saúde mental. Outrossim, chamamos a atenção para a
necessidade de atualização do discurso e da concepção da rede de saúde mental a partir da
lógica das RAS, sobretudo em tempo de alteração que vem sofrendo a Política Nacional de
Saúde Mental através da Resolução nº 32 de 14 de dezembro de 2017 e da Portaria nº 3.588
de 22 de dezembro de 2017 (BRASIL, 2017a; BRASIL, 2017b).
O estudo em tela propõe lançar um “olhar-caleicoscópio” (CARVALHO;
AMARANTE, 1996) sobre a RAPS, captando a realidade em movimento, buscando abordar
os pontos cegos entre os espaços micro e macro da assistência à saúde mental. Pretende-se dar
voz aos sujeitos implicados em diversas realidades e posições assistenciais numa perspectiva
dialógica. Além disso, apresenta como potencialidades: o estímulo ao debate pela promoção
de um espaço coletivo para que os interessados reflitam e discutam sobre o cotidiano da saúde
mental tendo como fio condutor os modos de articulação entre os serviços; a convocação e a
oportunização da fala àqueles que circulam pela rede em busca de cuidado, sujeitos que
historicamente experienciam a política de saúde mental apenas por intermédio das atividades
19
desenvolvidas pelos técnicos no interior dos serviços especializados, mas que ao termo, trata-
se das suas próprias vidas.
Além da introdução, esta tese traz em seu corpo outras cinco seções. Desenvolvemos
na revisão de literatura, segunda seção do trabalho, uma aproximação teórica ao objeto
analisado mediante breve resgate histórico-conceitual sobre os modos de compreender e lidar
com o indivíduo que apresenta transtorno mental ao longo das épocas. A terceira seção desta
tese compreende a exposição dos objetivos gerais e específicos da pesquisa em tela. Em
“método”, temos a explicitação do arcabouço teórico-metodológico norteador da pesquisa,
como também as questões operacionais referentes ao presente estudo. Na quinta seção,
resultados e discussão, trazemos a apresentação de um desenho da RAPS/Natal, além das
falas dos sujeitos agrupadas em categorias e subcategorias de análise com as respectivas
discussões e reflexões. Na última seção, nossas considerações finais nas quais apresentamos a
síntese dos principais resultados da pesquisa, as limitações do estudo e, ainda, propostas que
julgamos pertinentes de serem pensadas e debatidas coletivamente para o avanço da
RAPS/Natal.
Esperamos que os resultados encontrados neste estudo contribuam para transpor
barreiras que segregam o componente especializado da rede e, assim, possa contribuir para a
efetivação de avanços em prol da concretização da RAPS. Ressaltamos a importância do
comprometimento de órgãos de formação, de gestores, de profissionais e de usuários nesse
processo, assim como, com os avanços da assistência à saúde mental brasileira.
20
2 REVISÃO DA LITERATURA
Neste capítulo desvela-se o marco teórico-conceitual que apoiará a problematização e
a discussão sobre a RAPS/Natal. Para aproximação teórica ao nosso objeto de estudo,
realizou-se revisão narrativa da literatura da área que contou com pesquisa em Bibliotecas
Virtuais em Saúde, Bancos de Teses e Dissertações, bases de dados eletrônicos, além de livros
e materiais impressos. Com o intuito de atingir o maior alcance possível de obras que
contemplassem direta ou indiretamente o problema em análise, não se delimitou marcador
temporal ou idioma, sendo a busca orientada por proximidade teórica/temática. O produto
desta busca será divido em duas seções, a saber: 2.1 Um passeio pela história da loucura: da
Grande Internação à atenção em rede territorial; 2.2 A Rede de Atenção Psicossocial à luz do
Pensamento Complexo: tensões e reflexões.
2.1 UM PASSEIO PELA HISTÓRIA DA LOUCURA: DA GRANDE INTERNAÇÃO À
ATENÇÃO EM REDE TERRITORIAL
Esta incursão pela trajetória da loucura é, antes de tudo, um esforço para revisitar
elementos que compuseram o cenário da saúde mental brasileira, na expectativa de
compreender as tensões e contradições que ora se apresentam no âmbito da atenção
psicossocial e em rede.
Para ousarmos este passeio, partimos de uma concepção de loucura como um
fenômeno histórico-social (COSTA-JUNIOR; MEDEIROS, 2007) e assumimos que as
transformações porque passaram o entendimento de loucura e o perfil da assistência prestada
às pessoas com transtorno mental foram influenciadas por pressupostos epistemológicos que
delimitam as formas de pensar da humanidade, em idas e vindas ideológico-conceituais
precipitadas por um emaranhado de contextos – histórico, político, econômico e religioso.
Reconhecemos, finalmente, que os diversos sentidos atribuídos à loucura não se sucedem
plenamente, mas se entrecruzam e se inter-relacionam, convivem, daí porque Pessotti (2001)
pondera ser discutível a afirmação de que o conceito contemporâneo de loucura é diverso do
que se apresentava na Antiguidade ou mesmo na Idade Média.
Salientamos que não temos a pretensão de rever a trajetória histórica contínua e
pormenorizada da loucura, visto a complexidade da temática e a dificuldade de organização
cronológica dos fatos. O que buscaremos é destacar períodos/fatos cruciais que propiciaram
21
transformações na compreensão da loucura e que, por sua vez, suscitaram mudanças nas
práticas destinadas aos chamados loucos.
É difícil pontuar, com precisão, as primeiras experiências da loucura no ocidente, o
que se publiciza é que antes do século XVII ela circulava entre as quimeras do mundo. Das
concepções mágico-religiosas aos primórdios do organicismo hipocrático reconhecem-se na
loucura sentidos e significados que convergem para a perda da razão ou do controle
emocional, seja por castigo divino ou por intervenção diabólica, seja por alteração orgânica
proveniente do desequilíbrio dos humores do corpo. Nesse período percebemos que, mesmo
não estando “entre muros”, a loucura já despertava olhares de soslaio por parte dos guardiões
da razão e das normas sociais. O tratamento a ela destinado pautava-se basicamente na
reparação social do transgressor da norma, em orações, jejuns e idas à igreja e, ainda, banhos
com águas medicinais e termais, como relata Pessotti (2001).
Na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, a “Nau dos Loucos” renascentista
figurou a experiência cósmica/trágica da loucura, que refletida nas artes, na literatura, no
imaginário, na academia, fazia da loucura uma experiência no campo da linguagem e dotou de
simbolismos essas “loucas barcaças” que libertavam as cidades do convívio com a insanidade.
Nesse período, os loucos que perambulavam pelas ruas da cidade eram deportados via navio,
levados por mercadores ou marinheiros para serem entregues às águas, como que num ritual
de passagem que o enclausurou num espaço de exclusão itinerante no qual ele permanecerá
por muitos anos (FOUCAULT, 2009). A que se considerar o caráter paradoxal assumido pela
Stultifera navis. Se por um lado, representava o fascínio do homem medieval pela loucura e
pela personagem do louco expresso em composições literárias (romanescas ou satíricas), por
outro materializava o desejo de afastar esses indivíduos do convívio social, de limpar as ruas
das cidades dessa presença, numa espécie de embrião de higienismo social (?).
Retomemos, então, o questionamento foucaultiano e reflitamos sobre o momento em
que a loucura passa a ser entendida como problema social e aprisionada, pelos domínios da
razão, entre os muros do Hospital Geral. Para abordar essa passagem da história da loucura,
Foucault (2009) faz uma incursão pelo classicismo2, na qual reconhecemos um paralelo entre
2 O Classicismo a que se refere a obra de Foucault “História da Loucura na Idade Clássica” é o movimento
literário ocorrido no século XVI; a manifestação, nas letras, de um movimento cultural mais amplo denominado
Renascimento. Imaginamos que a busca que o autor faz em obras literárias que abordam a loucura no período
renascentista tenha inspirado a nomenclatura do recorte escolhido por Foucault. Enfatizamos, então, que a
abordagem utilizada na obra difere do método cronológico de separação dos tempos históricos, comum em
escritos que buscam rememorar fatos marcantes da história. De tal modo, acreditamos que Foucault busca
retratar em sua obra acontecimentos que datam do fim da Idade Média (Renascimento) até a Idade Moderna,
culminando com o momento em que a psiquiatria toma a loucura como seu objeto de estudo e de exercício de
poder.
22
as características do período – especialmente o antropocentrismo e o racionalismo – e a
reorientação teórico-prática sobre a loucura. Imagina-se que o próprio contexto histórico-
social Renascentista de inspiração Humanista tenha apaziguado o misticismo que envolveu tal
fenômeno durante séculos.
Revisitando a História da Loucura na Idade Clássica é possível identificar
acontecimentos-chave que conformaram essa atmosfera de valorização da consciência crítica
de busca pela verdade e pelo controle do erro, num cenário de supervalorização da razão e da
reflexão moral. Reconhecida por Foucault (2009) como a “experiência crítica” da loucura,
teve como um de seus fatores precipitadores o cogito cartesiano – expresso pelo postulado
célebre “penso, logo existo”. Neste sentido, aos domínios da loucura relaciona-se o erro, a
ilusão, o julgamento equivocado da realidade.
Ao adotar a capacidade de pensar como contraposição à loucura e meio para conhecer
a verdade, o cogito cartesiano finda por aniquilar o louco como sujeito pensante e, ao fazê-lo,
aniquila a própria existência do louco enquanto sujeito.
Caminhando na esteira renascentista3, o mundo presencia a queda do teocentrismo e o
aflorar do antropocentrismo influenciando valores como a desmistificação da miséria em sua
sacralidade que, ao invés de ser exaltada, passa a ser suprimida. Neste sentido, e
potencializado pelo cisma da Igreja Católica provocado por Lutero – assim imaginamos –, vê-
se no Estado Absolutista que se formara a diminuição da sensibilidade religiosa à loucura, à
miséria e aos deveres assistenciais da Igreja pressionando a conformação de uma nova ética
do trabalho e de abominação da ociosidade. A este respeito, Vieira (2007) pondera que em um
mundo no qual os Estados substituem a Igreja nas tarefas de assistência, a miséria se torna um
obstáculo, passando de uma experiência religiosa que santifica para uma concepção moral que
condena.
Mas o que fazer com a leva de desviantes, ociosos e miseráveis que povoavam as
cidades, impedindo a “boa” marcha da sociedade? A solução encontrada pelo século XVII é
denominada por Foucault como “A Grande Internação” dos pobres e demais desviantes,
dentre eles, os loucos. O também nomeado Grande Enclausuramento “designa um evento
decisivo: o momento em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da
incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo; o momento em que
começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade” (FOUCAULT, 2009, p.78).
3 O Renascimento foi um movimento cultural decorrido entre os séculos XV e XVI que marcou a fase de
transição da Idade Média para a Idade Moderna. Foi responsável por transformações profundas no modo de viver
e pensar das sociedades, dentre as quais destaco o despertar da humanidade para uma esfera materialista e
humanista/antropocêntrica, e a concepção de ciência.
23
Para compreender o significado do Hospital Geral e do internamento nesse período,
assim como o ponto de ligação entre a loucura e a referida “estrutura da exclusão”, é
interessante considerar as características do mundo burguês que se encontrava em expansão,
no qual o “pecado” por excelência era a ociosidade. Nesse contexto, ao rever a constituição
histórica da doença mental, Foucault (1975) chama atenção para a categoria comum que
agrupou os que residiam nessas casas de internamento: a incapacidade em tomar parte na
produção, na circulação ou no acúmulo das riquezas. Ponderou o autor que “a exclusão a que
são condenados [os loucos] está na razão direta desta incapacidade e indica o aparecimento no
mundo moderno de um corte que não existia antes. O internamento foi então ligado nas suas
origens e no seu sentido primordial a esta reestruturação do espaço social” (FOUCAULT,
1975, p. 54). Para Prandoni e Padilha (2004) esses espaços de confinamento passam a
funcionar como fórmula de controle social para as multiplicidades humanas.
Pelo que se tem notícia, a inauguração do Hospital Geral de Paris no século XVII se
deu, a priori, por razões bem diversas da preocupação com a cura. Foi, antes de tudo,
precipitada pelo imperativo moral do trabalho e da condenação da miséria e de todas as
formas de inutilidade. Reconhecemos em Foucault (2009) que o internamento assumiu, ao
longo do tempo, um duplo sentido: mão-de-obra escrava ou muito barata em tempos de força
de trabalho escassa e reabsorção/ocupação de ociosos por um lado e, simultaneamente,
proteção social contra revoltas em tempos de expansão do modelo econômico.
Nesse período, o gesto que aprisiona traz significações políticas, sociais, religiosas,
econômicas e morais. Assim sendo, dentro do Hospital Geral “fia-se, tece-se, fabricam-se
objetos diversos que são lançados a preço baixo no mercado para que o lucro permita ao
hospital funcionar. Mas a obrigação do trabalho tem também um papel de sansões e de
controle moral” (FOUCAULT, 1975, p. 54). No entanto, o reconhecimento da inaptidão do
louco para o desenvolvimento de trabalhos necessários ao desenvolvimento da sociedade
gerou uma crise nesse modelo de “tratamento” da loucura que trará impactos diretos na
reformulação do asilo do século XIX.
Entre a segunda metade do século XVII e início do século XVIII Foucault (2009)
destaca a rede subterrânea que esboça a experiência moderna da loucura: práticas sexuais
desregradas, magia, alquimia, paixões desenfreadas. Tem-se, assim, a insanidade anexa a um
novo domínio: a razão se sujeita aos desatinos do coração e seu uso atrela-se ao discurso do
desregramento e da imoralidade.
Na idade clássica (fim da Idade Média e início da Idade Moderna) a loucura começa a
ser apreendida de modo obscuro como desorganização da família, desordem social, perigo
24
para o Estado. O internamento, em suas formas primitivas, funcionou como um mecanismo
social que se estendeu dos regulamentos mercantis elementares ao grande sonho burguês de
uma cidade onde imperaria a síntese da natureza e da virtude. Começa a se estabelecer, sob a
ordem da razão cristã, o parentesco entre a medicina e a moral na forma da repressão, da
coação, da obrigação, e da salvação. Aloca-se na ordem do desatino tudo que não é conforme
tudo que desvia da ordem familiar burguesa, no século XIX o conflito entre indivíduo e
família tornar-se-á assunto particular e assumirá aspecto psicológico (FOUCAULT, 2009).
Observa-se ainda, nesse período, a forte influência dos cânones religiosos na normalização de
condutas morais e éticas e, por conseguinte, nos sentidos da loucura e no reconhecimento do
ser louco.
Em síntese, nesse deslizamento da compreensão de loucura dos domínios medievais
para os renascentistas/modernos viu-se a moral social traçar uma linha que dividiu, ao passo
que excluiu e aprisionou os que estavam fora da norma. O Hospital Geral recolheu, alojou e
alimentou os pobres da cidade, ao passo que pôs “todo esse mundo de desordem, numa ordem
perfeita [que] pronuncia, por sua vez, o elogio à razão. Nesse „hospital‟, o internamento é uma
sequência do embarque” (FOUCAULT, 2009, p.43). Nesta passagem, Foucault faz uma
referência emblemática ao movimento de exclusão da loucura iniciado pela Nau dos Loucos
em suas viagens. A sequência do embarque seria a continuação da viagem do aquém para o
além, para qualquer lugar que estivesse à margem, a uma “distância sacramentada” da cidade
e da integridade social.
No século XVIII a trajetória da loucura começa a delinear novos caminhos que, apesar
de sinalizarem uma virada epistemológica, não levaram para outro lugar senão à exclusão.
Revisitando o cenário histórico-social que suscitou este deslocamento no sentido e nas
práticas relacionadas à loucura, deparamo-nos com uma série de acontecimentos que
culminaram na separação entre loucura e desatino e a convocação do médico para
controlar/normalizar/autorizar o internamento.
Inicialmente imaginemos um cenário cultural e intelectual de inspiração iluminista –
centrado na razão como a principal fonte de autoridade e legitimidade e marcado pela ênfase
no método científico e no reducionismo mecanicista – aliado às movimentações
revolucionárias na França dos anos 1789 e seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade e
pelo fim dos privilégios da nobreza e do clero. Amarante (2007) comenta sobre a importância
da Revolução Francesa como mola propulsora de diversas transformações econômicas, sociais
e políticas que trouxeram consequências para a medicina e para a história da psiquiatria e da
loucura e para o próprio hospital.
25
Por outro lado, o pensamento econômico da época formulava sobre novas bases a
noção de pobreza. Para Foucault (2009), a miséria aos poucos se separa das velhas confusões
morais, a indigência torna-se coisa econômica, já que devido à indústria nascente, precisando
de braços para o trabalho, o pobre volta a fazer parte do corpo da nação. Nesse momento, a
percepção da pobreza e da solução encontrada para ela no século XVII (o internamento) se
inverte, transformando também o sentido da assistência aos pobres.
O rico da Idade Média era santificado pelo pobre, o do século XVIII é
mantido por este... O pobre é reintroduzido na comunidade da qual tinha sido
expulso pelo internamento; mas agora tem um novo rosto. Não é mais a
justificativa da riqueza, sua forma espiritual: é agora sua condição de
existência. Através do pobre, o rico não mais se transcende, subsiste.
Transformada em coisa essencial para a riqueza, a pobreza deve ser libertada
do internamento e posta à sua disposição. E o pobre doente? Este é, por
excelência, o elemento negativo. Miséria sem recurso, sem riqueza virtual.
Este, e somente este, reclama uma assistência total (FOUCAULT, 2009, p.
410).
E assim, todas as outras figuras desviantes vão escapando do internamento, mas a
loucura permanece. Pela primeira vez no mundo cristão a doença se encontra isolada da
pobreza e de todas as figuras da miséria. Pobreza e desatino não se cruzam mais; loucura e
desatino se separam. Nos anos seguintes presencia-se a redução de internamentos por faltas
morais, por conflitos familiares e por aspectos benignos da libertinagem; prevalece o
internamento dos loucos (FOUCAULT, 2009). A esta altura, torna-se compreensível o
fracasso do trabalho como solução para todo tipo de miséria/loucura, ideário comum ao
hospital do século XVII e início do XVIII. Ao se perceber a inaptidão do louco ao trabalho e a
necessidade de adotar-se um regime diferenciado de aproveitamento para esse público,
evidenciam-se as fissuras dessa forma de precaução social.
De tal modo, e paulatinamente, o mundo correcional no qual a loucura está vinculada
aos erros, pecados e crimes começa a se deslocar. Embaladas pelo espírito revolucionário que
conclamou “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” vê-se o aflorar de denúncias políticas de
arbitrariedades, crítica econômica das fundações e da forma tradicional da assistência, pavor
popular pelas casas de internamento, a exemplo de Bicêtre e Saint-Lazare, impulsionando o
mundo a reclamar a abolição dessas práticas. Os reformadores e o próprio cenário
revolucionário da França quiseram suprimir o internamento como símbolo da antiga opressão,
para o que foram criadas algumas estratégias de retirada do pobre do hospital. O louco,
porém, tinha uma peculiaridade: restituído à liberdade poderia tornar-se perigoso, daí a
26
necessidade de contê-los. Para resolver esse problema as antigas casas de internamento
permaneceram reservadas aos loucos; “estes encontrar-se-ão no estado de serem os herdeiros
naturais do internamento e como os titulares privilegiados das velhas medidas de exclusão”
antes impostas à lepra nos antigos leprosários (FOUCAULT, 1975, p. 56).
Em Foucault (2009), vimos que silenciados os propósitos do desatino, vibraram as
vozes patológicas da loucura. Para Vieira (2007), essa passagem da experiência crítica da
loucura para a experiência médica se deu num contexto de reajustamento político, social e
moral da relação loucura versus desatino, diante do qual o internamento assume um valor
terapêutico e a medicina, então, apossa-se do asilo e de todas as experiências da loucura.
É interessante notar que a psiquiatria nasce em um contexto epistemológico que
compreende a realidade como um dado natural, capaz de ser apreendido em plenitude.
Partindo desse pressuposto, as ciências naturais buscavam a produção de um saber neutro,
positivo, cuja verdade revelada era incontestável. É nesse cenário que a racionalidade
científica se torna hegemônica na produção do conhecimento e a psiquiatria nascente – ao
passo que almeja estabelecer-se enquanto ciência – funda suas bases em um modelo
biomédico – a medicina mental – que tinha no hospital o locus de produção de saber. Foi
assim que, orientada pelo paradigma naturalista de inspiração cartesiana-newtoniana, a
psiquiatria forjou o conceito de alienação mental, conferindo, pelo saber que desenvolveu
sobre a doença, poder à prática dita terapêutica do internamento/isolamento.
A este respeito, Torre e Amarante (2011) comentam que o fim do “Grande
Enclausuramento” e o nascimento do alienismo pineliano inauguraram uma nova relação com
a loucura intermediada pela emergência de um saber denominado alienismo ou medicina
mental que, candidato a um estatuto de cientificidade, torna-se reconhecido posteriormente
sob a forma da psiquiatria e da clínica psiquiátrica.
Ao revisitar os primeiros passos do alienismo, Amarante (2007) relembra o cenário
pós Revolução Francesa de democratização dos espaços sociais no qual muitos médicos
foram atuar nos hospitais gerais com o intuito de humanizá-los e adequá-los ao novo espírito
moderno, libertando internos que ali estavam em decorrência do poder autoritário do Antigo
Regime. Neste momento, o hospital fora transformado em instituição médica por excelência e
a compreensão da loucura ganha os contornos ideológico-conceituais de alienação mental
enquanto distúrbio no âmbito das paixões, capaz de produzir desarmonia na mente e na
possibilidade objetiva do indivíduo perceber a realidade. Destaca-se que tal atitude não foi tão
somente altruísta, ao contrário, a medicalização do hospital se deu mais com o intuito de
27
anular seus efeitos negativos (diante da nova ordem mundial) do que visando uma ação
positiva sobre o doente ou a doença (SILVEIRA; BRAGA, 2005).
Na transição do hospital filantrópico para o hospital médico as funções de caridade e,
posteriormente, de controle social vão esmaecendo. Uma nova função é assumida: a de tratar
dos enfermos. Nesse ínterim, o médico ganha poder dentro do hospital (o que antes era
destinado prioritariamente ao clero) e este, impulsionado pelo ideal de cientificidade
característico da época, transforma-se em espaço de exame, de tratamento e de reprodução do
saber médico (AMARANTE, 2007). É oportuno notar que se delineava nesse cenário mais de
um enfrentamento e/ou tomada de poder. Chamamos a atenção para o fato de que se deu uma
mudança na prestação da assistência que então passava a ser hegemonicamente
secular/científica e masculina frente à assistência anterior religiosa e feminina. As irmãs de
caridade mandavam antes no que agora os novos médicos ordenam.
Segundo reflexões foucaultianas (FOUCAULT, 2006) em O nascimento da clínica e A
casa dos loucos o hospital como instrumento terapêutico é uma invenção do final do século
XVIII. Transformou-se em lugar de observação e de demonstração e constituía uma espécie
de aparelhagem complexa que devia fazer aparecer a doença. O internamento do século XIX
coincidiu com o momento em que a loucura é percebida com relação à conduta regular e
normal; momento em que aparece não mais como julgamento perturbado, mas como
desordem na maneira de agir, de querer, de sentir paixões, de tomar decisões, de ser livre.
Neste sentido, o papel do asilo no movimento de volta às condutas regulares era permitir o
surgimento da verdade da doença mental. Afastando-se tudo que possa confundir ou estimular
a doença, o hospital torna-se o espaço ideal de confronto no qual a vontade perturbada, a
paixão pervertida encontra uma vontade reta e paixões ortodoxas, promovendo o retorno às
condutas regulares.
Nesse novo formato hospitalar ganha destaque o combate à alienação pela figura de
Philippe Pinel e do seu tratamento moral. É notório o ato emblemático realizado por Pinel ao
libertar os loucos acorrentados e mal tratados nos hospitais de fins do século XVIII. Amarante
(2007) atribui a Pinel o lançamento das bases do alienismo, a elaboração de uma nosografia
preliminar da loucura, a consolidação do conceito de alienação mental e da profissão do
alienista, a fundação do primeiro hospital psiquiátrico, a determinação do princípio do
isolamento para os alienados, instaurando o primeiro modelo terapêutico nesta área. O
tratamento moral “consistia na soma de princípios e medidas que, impostos aos alienados,
pretendiam reeducar a mente, afastar os delírios e ilusões e chamar a consciência à realidade”
(AMARANTE, 2007, p. 33).
28
Freitas (2004) ressalta dois elementos fundamentais agregados por Pinel à psiquiatria
moderna: a descoberta de um resto de razão nos alienados e maníacos e o encontro, neste
espaço, do princípio da cura. Dito de outra forma, Pinel compreende a loucura como a
perturbação da razão ainda existente no indivíduo que, assim sendo, torna-se passível de
diálogo e de tratamento. De modo que o nascimento da psiquiatria moderna requer para si o
caminho para a reintegração do alienado ao círculo comunicativo.
No entanto, a contribuição de Pinel para a psiquiatria é controversa e encontramos na
literatura questionamentos e críticas acerca das práticas pinelianas no manejo da alienação
mental, principalmente pronunciadas por Foucault. Enquanto que uns colocam Pinel como o
“Pai da Psiquiatria” (PRANDONI; PADILHA, 2004) e promotor da humanização da loucura
e do hospital, Foucault (2009) defende que Pinel reforça e repagina a estrutura de exclusão
através da criação do asilo que, nas mãos do referido alienista, torna-se um instrumento de
uniformização moral e de denúncia social, no qual o terror agora é psicológico.
Libertação dos alienados ou o aprisionamento moral da loucura? Essa é a principal
reflexão do escrito foucaultiano denominado O nascimento do asilo, no qual destaca que esta
instituição surge como grande paradoxo da psiquiatria moderna que se funda no “mito de
Pinel” e na liberdade que de modo controverso exclui e aprisiona (FOUCAULT, 2006).
Gama (2012) apresenta duas perspectivas antagônicas sobre as quais se construiu o
campo psiquiátrico que tem Pinel como fundador. A primeira, de base foucaultiana,
descortina de modo crítico a psiquiatria como positivista com projeto de exclusão e considera
a captura da loucura pela psiquiatria como uma perda, uma violência discursiva e institucional
que transformou a experiência trágica da loucura na percepção de uma doença/erro. Partindo
de tais concepções, a intervenção clínica baseava-se na clausura, na correção, na vigilância e
no empobrecimento subjetivo. A segunda perspectiva compreende a psiquiatria como projeto
revolucionário, como uma nova possibilidade, como um ganho clínico. Apoiada nas
concepções de Marcel Gauchet e Gladys Swain, esta vertente diz que o enfoque dado por
Pinel aos alienados foi revolucionário, inaugurando a possibilidade teórico-prática da cura, em
que pese o caráter utópico de tais ideias, que tinha no relacionamento médico-paciente a base
do poder terapêutico do seu tratamento moral, ainda que fosse uma relação verticalizada.
Assim, embora seja comum o entendimento das contribuições de Pinel na construção
do saber psiquiátrico e na constituição da experiência médica da loucura, consideramos
pertinente a análise crítica da história e concordamos com Foucault ao referir-se ao asilo
como o espaço privilegiado de objetificação do louco, local de exercício da autoridade da
norma sobre a loucura, de vigilância e de julgamento. Para Gama (2012), a contradição do
29
projeto pineliano reside em ter aberto a possibilidade de cura ao mesmo tempo em que a
fechou numa instituição e essa característica marcou negativamente sua prática. Ainda
segundo esse autor, os alienistas remanejam a concepção do louco como o outro absoluto,
separado do mundo humano de forma intransponível, porém a psiquiatria nascente se mantem
presa à ideia de que o espaço fechado do asilo é necessário para que se possa construir a
conexão com o mundo interno do alienado.
Com o avançar do século XIX a produção de uma percepção dirigida pelo olhar
científico sobre o fenômeno da loucura a transforma em doença mental, objeto do
conhecimento da psiquiatria. Amarante (1995) rememora os paradigmas que conformaram o
saber psiquiátrico e observa que – num mundo de cientificidade aflorada – a psiquiatria segue
a orientação das demais ciências naturais e, centrada na medicina biológica, se limita a
observar e a descrever os distúrbios nervosos, intencionando um conhecimento objetivo do
homem. Entretanto, por trás dessa pretensa e alegada neutralidade e objetividade científicas,
acreditamos, assim como o referido autor, que o que se buscava tem mais vinculação com o
cenário de atores e poderes científicos e sociais.
A este respeito, trazemos uma passagem redigida por Foucault em O poder
psiquiátrico que revela o caráter autoritário que o discurso e a prática psiquiátrica assumem
durante os “anos dourados” da psiquiatria moderna:
Sobre teu sofrimento e tua singularidade, sabemos bastante coisas (de que
não duvidas) para reconhecer que é uma doença; mas conhecemos bastante
essa doença pra saber que não podes exercer sobre ela e em relação a ela
nenhum direito. Nossa ciência permite chamar de doença a tua loucura
e, desde então, somos, nós médicos, qualificados para intervir e diagnosticar
em ti uma loucura que te impede de ser um doente como os outros: será,
portanto, um doente mental (FOUCAULT, 1997, p. 56 – grifos nossos).
Em síntese, quando a loucura vira “coisa” médica nasce um saber e um poder
específico – o psiquiátrico; o hospital geral, agora asilo, transforma-se em lócus de tratamento
e a exclusão ganha contornos e justificativas terapêuticas. Veremos que o ideal da psiquiatria
positivista, de base hospitalocêntrica e centrada no saber/poder médico-psiquiátrico
influenciará até os dias de hoje a atenção em saúde mental, em que pese a reivindicação
diferente de movimentos contestatórios e os cenários de lutas e enfrentamentos forjados desde
a segunda metade do século XX.
Os alienistas seguem comandando a loucura, o louco e o asilo por décadas do século
XX, até que o cenário nos locais de internamento vai se tornando insustentável. Batista (2014)
30
relembra a situação dos hospitais psiquiátricos em meados do século XX: superlotação,
internações em tempo integral e de longa duração, funcionários insuficientes para atender à
demanda, alvos de denúncias de maus tratos. Além de condições sub-humanas em que se
encontravam os internos.
O hospital psiquiátrico se tornara, aquilo que Goffman (1961, p. 11) denominou de
Instituição Total: “local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com
situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo,
levam uma vida fechada e formalmente administrada”. As Instituições Totais quase sempre
funcionam como depósitos de internados, porém, apresentam-se ao público como
organizações racionais, conscientemente planejadas para atingir determinadas finalidades que
são oficialmente confessadas e aprovadas – no caso específico da psiquiatria, a cura ou
readaptação do doente mental ao convívio social (GOFFMAN, 1961).
Para resgatar o deslizamento epistemológico da psiquiatria contemporânea vamos
utilizar como marcador histórico a Segunda Guerra mundial. O contexto europeu do pós-
guerra circunscrito por dificuldades econômicas, privações, morte de milhares de homens nos
campos de batalha e de inúmeros doentes mentais nos asilos por má alimentação e falta de
cuidados promoveu uma atmosfera de repúdio a qualquer tipo de violência e desrespeito aos
direitos humanos. Por outro lado, reconhece-se a instituição psiquiátrica como espaço
cronificador e incapacitante, o que se torna mais grave pela necessidade premente de mão-de-
obra para reestruturação das cidades e de reintegração dos soldados aos campos bélicos.
Nesse contexto, sublinha-se a impotência das teorias e técnicas da psiquiatria
tradicional para fazer o alienado retornar às suas atividades sociais. A psiquiatria entra em
crise como disciplina teórica, um conflito no campo epistemológico da medicina mental que
se estabelece, segundo Birman e Costa (1994), entre um saber que historicamente se fez
instrumento de cientificidade sobre a doença mental e outro que reivindica a saúde mental
como objeto.
Torna-se fundamental “dinamizar a estrutura hospitalar, criar novas formas e
condições de tratamento para uma eficaz recuperação dos pacientes como sujeitos da
produção”, relembram Birman e Costa (1994, p. 50). Eis que surgem várias experiências
psiquiátricas pelo mundo, que variaram de acordo com o alvo das críticas e rupturas que
assumem mediante o hospital e ao saber-poder psiquiátrico, e que tentaram trazer respostas
para os novos problemas emanados pela contemporaneidade.
As críticas a esse modelo médico-psiquiátrico de manejo da doença mental
impulsionaram movimentos contestatórios ao redor do mundo que foram delineados seguindo
31
basicamente duas perspectivas: 1) os que defendiam uma psiquiatria reformada propondo
mudanças no espaço asilar para que se tornasse, efetivamente, terapêutico – são exemplos
desses movimentos reformistas a Comunidade Terapêutica, na Inglaterra, e a Psicoterapia
Institucional e de Setor, na França – e outros que propunham estender a psiquiatra ao espaço
comunitário – como a Psiquiatria Comunitária ou Preventiva, nos Estados Unidos; 2) e os que
sustentavam uma ruptura radical com os pressupostos da psiquiatria, pondo em questão o
poder da não-loucura (personificado no psiquiatra) sobre a loucura/o louco – como a
Antipsiquiatria na Inglaterra e a Psiquiatria Democrática italiana (BATISTA, 2014;
AMARANTE, 1995).
Apesar de representarem um avanço no lidar teórico e prático com a loucura, ou seja,
nas formas de entender e lidar com ela, as propostas reformistas não foram tão bem sucedidas
quanto era esperado. Entretanto, deixaram sementes que inspiraram outros movimentos,
inclusive o que se delineou no Brasil por volta da década de 1970. Para Rotelli (1994), tais
propostas negligenciaram a problemática da objetivação do paciente psiquiátrico, tampouco
colocaram a instituição da psiquiatria em discussão junto com o paciente – embora, pondere-
se, ora, se questionar a psiquiatria já parecia inatingível, imagine-se envolver o paciente neste
debate.
A Comunidade Terapêutica não conseguiu tocar a raiz do problema da exclusão, visto
ser esta a pedra angular que fundamenta o próprio hospital psiquiátrico e que, portanto, não
foi além do hospital psiquiátrico. A Psicoterapia Institucional foi incapaz de dialetizar a
relação dentro/fora (da instituição psiquiátrica) e inserir a loucura no espaço social. A
experiência francesa, por sua vez, conseguiu avançar para além do espaço asilar, tentando
conciliar o hospital psiquiátrico com os serviços externos, porém não fez nenhum tipo de
transformação cultural em relação à psiquiatria. A Antipsiquiatria, mesmo contribuindo para o
início de um processo de ruptura com o modelo assistencial vigente, acabou por elaborar
outro modelo teórico para a esquizofrenia que se afiliou a apenas a uma explicação causal
calcada nos problemas de comunicação entre as pessoas (ROTELLI, 1994; AMARANTE,
1995).
Merece destaque a Psiquiatria Democrática Italiana que se propôs a desconstruir
paradigmas e inventar novos caminhos. A tradição de Franco Basaglia – grande nome do
movimento italiano –, dotada de um discurso anti-institucional e antipsiquiátrico/anti-
especialístico, buscou negar, no sentido de desconstruir e superar, a instituição psiquiátrica, a
partir do próprio manicômio. Defendia-se, no entender de Pirella (1985), a negação da
contradição fundamental do manicômio marcada pela existência de um “tratamento” que se
32
aplica à base de opressão e punição por um lado e um “hospital” que ao invés de tratar,
destrói, por outro.
Para Basaglia, “o hospital psiquiátrico é considerado uma „instituição da violência‟
uma vez que exerce relação de opressão e de violência entre os que detêm o poder e os que
não o detém, culminando numa situação de exclusão do segundo pelo primeiro”. Basaglia
defendia a importância da tomada de consciência, por parte do doente, da situação de
violência e exclusão na qual vivia para que assim pudesse dialetizá-la e combatê-la
(BASAGLIA, 1985, p.101).
Em análise sobre a tradição basagliana, Amarante afirma ser esta um marco para o
movimento de Psiquiatria Democrática Italiana, pois abre as portas:
para a possibilidade de denúncia civil das práticas simbólicas e concretas de
violência institucional e, acima de tudo, à não restrição dessas denúncias a
um problema dos „técnicos de saúde mental‟... busca inventar uma prática
que tem na comunidade e nas relações que esta estabelece com o louco –
através do trabalho, amizade e vizinhança –, matéria-prima para
desconstrução do dispositivo psiquiátrico de tutela, exclusão e
periculosidade, produzidos e consumidos pelo imaginário social
(AMARANTE, 1995, p. 48).
Nesse ínterim, tem na desinstitucionalização como desconstrução de
saberes/práticas/discursos seu projeto estruturante.
O despertar para a subjetividade do doente – desviando o foco que antes era exclusivo
na doença – caracteriza o mais recente deslizamento na compreensão da loucura.
Identificamos como mote da reorientação epistemológica da psiquiatria contemporânea o
postulado basagliano conhecido como “colocar a doença entre parênteses”, fazendo emergir o
sujeito e seu contexto social e possibilitando a desconstrução do ideal do isolamento como o a
priori da cura da doença mental.
Para Amarante (2009), a atitude epistêmica de “colocar a doença entre parênteses”
simboliza uma ruptura teórico-conceitual com o saber naturalístico da psiquiatria ao mesmo
tempo em que denuncia política e socialmente a exclusão, representando, ainda, a recusa ao
reducionismo psiquiátrico de abranger o fenômeno da loucura através da simples nomeação
da doença mental. Para Rotelli (2001) esta atitude favorece a manifestação real da existência
da pessoa com sofrimento psíquico em detrimento da soberania do saber psiquiátrico.
Consideramos que as transformações conceituais e estruturais da cientificidade
médico-psiquiátrica foram impulsionadas também pelo próprio cenário intelectual/científico
de críticas ao paradigma tradicional da racionalidade científica em diversos campos do saber e
33
o aflorar de novas formas de pensar, das quais salientamos a complexidade em prol da
desmistificação do reducionismo, de superação da especialização e da fragmentação. A este
respeito, Soar-Filho (2003) reconhece na contemporaneidade o despontar de uma ciência
“novo-paradigmática” baseada no Pensamento Complexo como uma alternativa para que a
psiquiatria possa contribuir com a ciência do futuro.
Toda essa transformação epistemológica fez emergir novas buscas para o pensar e o
agir em psiquiatria/saúde mental, contribuindo assim, para o surgimento dos referidos
movimentos de contestação do hospital e da psiquiatria em nível mundial, aos quais
acrescentamos a Reforma Psiquiátrica brasileira. Julgamos pertinente enfatizar o movimento
brasileiro que, além de ter se inspirado nos erros e acertos das reformas mundiais, traz
avanços consideráveis, especialmente no que toca o seu forte teor político e social em
comunhão com a Luta Antimanicomial como movimento brasileiro.
No Brasil, a trajetória do lidar teórico-prático com a loucura tem como marco histórico
a inauguração do Hospício Pedro II, no Rio de Janeiro, em 1852, cujos primeiros anos foram
marcados pela superlotação e pelo conflito de autoridade entre a Igreja, e sua visão religiosa e
“caritativa” da gestão da loucura, e a classe médica. A ausência de um projeto assistencial
científico, como assim alegavam, e o distanciamento dos médicos do poder institucional
fizeram com que os alienistas imprimissem duras críticas ao hospício (TEIXEIRA, 1997).
Salientamos que o termo “caritativa” aparece entre aspas para enaltecer o caráter ambíguo que
assume nessa passagem. Apesar de o asilamento vestir-se com o manto da caridade cristã,
muitas foram as denúncias de maus-tratos e abandono ao qual estavam relegados não apenas
os ditos loucos, mas também, aqueles indivíduos considerados incompatíveis com o convívio
social e por este motivo encerrados nos porões das Santas Casas de Misericórdia e, mais tarde,
nos hospícios.
A instauração da República no Brasil, em 1890, abriu espaço para a implementação
dos ideais republicanos positivistas dos alienistas brasileiros da época, os quais reivindicavam
ao hospício o poder médico. Sob a prerrogativa de uma melhor assistência aos alienados e em
nome de princípios humanitários e científicos, as elites médica e política de então se unem e,
em uníssono, gritam: “Aos loucos, o hospício!”, campanha que reforça e consolida a
autoridade médico-psiquiátrica na gestão da loucura e do hospício brasileiro desde seus
primórdios. O período que se estende até 1920 constitui uma etapa do desenvolvimento da
psiquiatria em que se destaca a ampliação do espaço asilar no Brasil (AMARANTE 1994;
TEIXEIRA, 1997). E recrudesce até o fim da década de 1970.
34
A história brasileira de contestação ao saber médico-psiquiátrico se confunde com o
cenário nacional de redemocratização e conscientização sanitária, sendo esta impulsionada
pelos movimentos de Reforma Sanitária e Reforma Psiquiátrica brasileira (RPb). Para Tenório
(2002) o movimento de Reforma Psiquiátrica brasileira desdobrou-se de um amplo e
diversificado escopo de práticas e saberes iniciado pela Reforma Sanitária. Este movimento,
de cunho teórico-crítico às políticas de saúde do Estado brasileiro autoritário, lutava pela
reformulação do sistema nacional de saúde e tinha a importância analítica de resgatar a
cidadania subtraída como valor essencial nesse processo.
De tal modo, a RPb eclode pela força do Movimento dos Trabalhadores da Saúde
Mental e do movimento social de Luta Antimanicomial de meados da década de 1970 para
reivindicar “uma sociedade sem manicômios”, a desinstitucionalização de sujeitos e práticas e
a construção da cidadania da pessoa com transtorno mental.
Amarante (1995, p. 87) reconhece a RPb como um “processo histórico e de
formulação crítica e prática, que tem como objetivos e estratégias o questionamento e a
elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria”.
Aliamos a esta concepção a tese de Silvio Yasui (2010) que identifica a RPb como um
processo civilizatório de transmissão/assimilação de valores que, quando convertidos em atos,
revelam a disposição para a convivência com o que nos é diferente, para a aliança, para a
mudança, enfim, o interesse na construção de redes e laços de solidariedade, para uma melhor
organização de estratégias de cuidado na reinvenção do cotidiano do usuário de serviços de
saúde mental.
Amarante (2003) interpreta o processo de RPb através de quatro dimensões distintas,
porém interligáveis e inter-relacionáveis, a saber: dimensão teórico-conceitual ou
epistemológica – situada no campo da produção de saberes que fundamentam e autorizam o
saber/fazer da área –, a dimensão jurídico-política – que contempla a consolidação da RPb
como movimento social e como política pública no Brasil –, a dimensão técnico-assistencial –
relativa a construção de uma nova organização de serviços e de produção de vida – e a
dimensão sociocultural – que propugna a modificação das relações entre sociedade e loucura.
Para aprofundar conhecimentos relativos às dimensões da RPb sugerimos a leitura de
Amarante (1995) e de Ramos (2011), sendo esta última referência a dissertação de mestrado
intitulada Reinternações psiquiátricas no Rio Grande do Norte: implicações e impacto das
novas estratégias de atenção à saúde mental na qual rememoramos detalhadamente as
dimensões da RPb. Por hora, buscamos estabelecer diálogos, relacionar mudanças políticas e
avanços práticos influenciados pelo contexto epistemológico de desconstrução do paradigma
35
naturalista reducionista e o aflorar de uma nova forma de perceber a vida e o indivíduo em
sofrimento psíquico.
Torre e Amarante (2001) reconheciam no primeiro ano do século XXI, no Brasil, um
processo de transformação do lugar social do louco como sujeito político e ator social.
Certamente, tal transformação é resultante das iniciativas de ruptura com o objeto epistêmico
da psiquiatria tradicional, tornando-se a preocupação com a promoção à saúde mental uma
prioridade em detrimento da terapêutica curativa destinada à doença mental. Neste contexto, e
conforme leituras de Paulo Amarante, os principais conceitos epistêmicos da psiquiatria, tais
como, alienação/doença mental, isolamento terapêutico, cura, internação, são contestados,
reavaliados, desconstruídos e reinventados.
Para Torre e Amarante (2011, p. 46), “repensar o sujeito a partir de uma nova
concepção de loucura, nos leva à possibilidade de uma ruptura em relação à tradição filosófica
e cartesiana”. Nesse cenário, acompanha-se o movimento da negação institucional, no sentido
basagliano de destruir e superar o manicômio, para a invenção de uma instituição que,
conforme Rotelli (2001), privilegie a “existência-sofrimento” dos indivíduos em relação com
o corpo social. Com o despertar para a subjetividade dos sujeitos que tinham a experiência do
sofrimento psíquico, imaginamos a abertura de novos caminhos para o cuidado em saúde
mental, em que pese o apego ao quadro nosológico da doença ainda observado no cotidiano
da atenção psicossocial.
A mudança na forma de compreender a realidade, agora reconhecida como
socialmente construída, faz despertar técnicos da saúde mental e a sociedade em geral para as
condições de trabalho, tratamento e existência no âmbito psiquiátrico. As lutas e embates
travados, por sua vez, impulsionaram a estruturação jurídica e política deste movimento que
finda por estruturar-se enquanto política nacional – A Política Nacional de Saúde Mental
(PNSM). Tal sustentação jurídico-política possibilitou toda uma reorientação assistencial
apoiada na Lei 10.216/2001 (BRASIL, 2001) e materializada pela criação de serviços e
estratégias de apoio ao indivíduo em sofrimento psíquico que se encontra em processo de
desinstitucionalização.
A RPb teve como marcos jurídico-políticos a VIII Conferência Nacional de Saúde
(CNS), as Conferências Nacionais de Saúde Mental (CNSM) e a promulgação da Lei
10.216/2001 que ficou conhecida como a Lei da RPb (BRASIL, 2001). Os itens que
compõem o arcabouço normativo da RPb – esboçados em leis, portarias, programas,
estratégias e organização de atores sociais – objetivam, há décadas, oferecer o suporte
necessário para o exercício da cidadania da pessoa com transtorno mental no Brasil. Por meio
36
da organização dos serviços em território, da inclusão social pelo trabalho e do auxílio
financeiro ao indivíduo egresso de internação hospitalar, a PNSM representa o eixo que busca
a sustentação estrutural no território do novo paradigma da saúde mental brasileira – o
paradigma psicossocial.
Neste novo contexto prático e discursivo de reestruturação da assistência psiquiátrica o
conceito que se destaca por excelência é o de desinstitucionalização. Conforme Amarante
(1996) o lidar prático e teórico com a desinstitucionalização do usuário em sofrimento
psíquico confere à tradição basagliana e a RPb caráter peculiar de desconstrução de modelos e
iniciativas de ruptura com mecanismos institucionais e técnicos de abordagem ao transtorno
mental.
Com origem na Psiquiatria Democrática italiana, a desinstitucionalização configura-se
como uma crítica ao saber/fazer que orienta a prática psiquiátrica, promovendo uma ruptura
com o paradigma da psiquiatria clássica, no qual era necessário “separar para conhecer”. No
entender de Amarante (2007), esta tendência apresenta-se como a desmontagem do conjunto
de aparatos teórico, técnico, terapêutico e assistencial asilar para que se possa restabelecer a
relação com os sujeitos em sofrimento psíquico, ou seja, a humanidade.
Para Rotelli (2001), o verdadeiro objeto do projeto de desinstitucionalização é a
ruptura com o paradigma clínico e com a relação mecânica causa-efeito na análise da
constituição da loucura. O que se objetiva não é mais a cura e sim a emancipação do sujeito
que sofre, não é mais a reparação, mas a reprodução social das pessoas; produção de vida e
produção social são objetivo e prática da “instituição inventada”. Produção social que, em
Franco Rotelli, admitimos se tratar da reinserção do sujeito em sua existência-sofrimento no
modo de consumo e de produção, em outros modos materiais de “ser para o outro, aos olhos
dos outros” um sujeito e não uma patologia. Nesse ínterim, o ideal de tratamento corresponde
à reconstrução das pessoas como atores sociais, transformação dos modos de viver e sentir o
sofrimento e a valorização do potencial terapêutico das trocas sociais.
Enfim, o processo de desinstitucionalização denota mais que a retirada do indivíduo da
instituição asilar na qual se encontra internado, significando o esforço de entendimento da
instituição em sua complexidade e a abertura para a transformação dos saberes que orientam
as formas de perceber e interagir com os fenômenos sociais e históricos sobre o adoecimento
mental e as práticas terapêuticas.
Para respaldar a desinstitucionalização de sujeitos e de práticas assistenciais, foi
instituída e regulamentada uma série de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico e que
devem funcionar de forma articulada e pautada na assistência em território. Desde o ano de
37
2011, após a portaria 3.088/2011, esses serviços organizam-se seguindo a lógica das Redes de
Atenção à Saúde (RAS) – sistema integrado que opera de forma contínua, proativa e voltado
para as condições agudas e crônicas (MENDES, 2011) – conformando, assim, a rede temática
(e prioritária) de cuidados em saúde mental: Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) (BRASIL,
2011a). Neste contexto, desinstitucionalizar compreende, conforme Dimenstein e Liberato
(2009, p.9), “ultrapassar fronteiras sanitárias e enfrentar o desafio da intersetorialidade e do
trabalho em rede”.
Outro ponto que merece destaque na experiência brasileira de reforma psiquiátrica é
sua busca pela transformação do lugar social da loucura, o que para Yasui (2010, p. 172)
“implica transformar as mentalidades, os hábitos e costumes cotidianos intolerantes em
relação ao diferente, buscando constituir uma ética de respeito à diferença”.
A este respeito, Ernesto Venturini, em seu livro A linha curva: o espaço e o tempo da
desinstitucionalização, atualiza “velhas reflexões” sobre a objetivação dos usuários do
circuito manicomial e traz à luz do debate encontros e conflitos que emergem com o fim do
manicômio: com a entrada de novos atores em cena, novas vozes se embaralham, eis que
surge a necessidade de “reabilitar a cidade”. Na obra, o autor critica o formato/divisão das
cidades que, cheias de muros e barreiras reais e/ou imaginárias, não estão preparadas para os
diferentes. Venturini ainda chama a atenção para a importância do capital social para o
sucesso da desinstitucionalização, ressaltando que características como solidariedade e
cooperativismo podem auxiliar nesse processo. Finalmente, reconhece leveza, rapidez,
exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência como as palavras-chave da
desinstitucionalização (VENTURINI, 2016).
Pensando as obras de Yasui (2010) e de Venturini (2016) em outros termos, e sob
inspiração moriniana (MORIN, 2001), reconhecemos que a busca por “um novo lugar social”
para a loucura perpassa também por uma “reforma do pensamento”. Reforma esta, que
entendemos referir-se à construção de um novo modo de pensar a saúde mental capaz de unir
e solidarizar conhecimentos separados – a exemplo dos pressupostos da ciência biomédica,
das ciências políticas, sociais e humanas e, ainda, os saberes da tradição – de modo que a
psiquiatria desnude-se do positivismo noológico e abra-se para a humanidade do “doente” em
seus espaços de contratualidade – que para Saraceno (2010) são o habitat, a rede social e o
trabalho com valor social. Espera-se, assim, a construção de uma ética de união e
solidariedade entre humanos que traria consequências existenciais, éticas e cívicas, assim
como se imaginou com a efervescência dos movimentos de reforma psiquiátrica na Itália e no
Brasil.
38
Nesta busca pela transformação cultural do lugar da loucura e do trato/convívio com o
“louco”, reconhecemos a importância do lidar teórico-prático com operadores como
subjetividade, reciprocidade, espacialidade (para além da nosografia arquitetônica) e
temporalidade como fator preponderante para a continuidade do processo de
desinstitucionalização – condição sine qua non para o alcance de boas práticas em
experiências no contexto da RPb (RAMOS, 2017).
Das últimas décadas do século XX e as primeiras do século XXI percebemos uma
transformação no que se refere ao reconhecimento da complexidade no conceito de loucura –
sustentado por uma concepção de loucura enquanto experiência humana – com a consequente
defesa de outras formas de conviver, substituindo-se a ideia de cura como restabelecimento da
normalidade pela noção de cura como invenção da saúde (LOBOSQUE, 2011). Nesse ínterim,
“a cura se torna ação de produzir subjetividade, sociabilidade – mudar a história do sujeito
que passa a mudar a história da própria doença”. O paciente do hospício torna-se usuário de
um sistema de saúde que luta para produzir cidadania ao invés de cura. Percebem-se,
sobretudo, a incitação da autonomia (agora reconhecida) do sujeito em sofrimento psíquico, a
ampliação da clínica e a responsabilização coletiva (TORRE; AMARANTE, 2001, p. 80).
De acordo com Pitta (2011, p. 4.588), na primeira década dos anos 2000 o tratamento
do transtorno mental “deixa de ser a exclusão em espaços de violência e morte social para
tornar-se criação de possibilidades concretas de subjetivação e interação social na
comunidade”. Numa concepção atualizada da RPb, se busca responder às necessidades
decorrentes do sofrimento psíquico e do uso abusivo de drogas de modo não asilo-confinante,
reduzindo danos e desvantagens sociais do confinamento e apostando em várias estratégias de
intervenção intersetorial ampliada – a exemplo dos serviços de referência para cuidados
específicos, iniciativas de emprego e renda, trabalho protegido, lazer assistido, dentre outros
(PITTA, 2011).
Entretanto, mesmo diante dos avanços conquistados no lidar teórico-prático da
loucura, ainda é possível constatar no cotidiano da saúde mental brasileira dificuldades e
retrocessos que impedem o pleno avançar da RPb. Os “novos crônicos” apontados por
Desviat (2008), a “capsização” referida por Amarante (2003), o “capsicômio” – espectro do
confinamento que, na contemporaneidade, ganha novas roupagens sem perder sua velha
atitude – denunciado por Vasconcelos e Mendonça-Filho (2009), retrocessos na PNSM, além
de outros desafios de ordem técnico-assistencial como cobertura extra-hospitalar, implantação
de leitos psiquiátricos em hospitais gerais, saúde mental na atenção primária,
desinstitucionalização de pessoas em situação de longa permanência hospitalar e a
39
dependência química no atual contexto da atenção psicossocial (FAGUNDES JR. et al., 2016)
– os quais serão debatidos na próxima seção do presente estudo.
Neste ponto, cabe retomar o questionamento de Batista (2014) se essa consolidação
da rede substitutiva ao hospital psiquiátrico significa dizer que a “estrutura de exclusão”
mencionada por Foucault acabou. Pergunta a que ele mesmo responde negativamente,
subsidiando-se em diversos autores da área.
Com base nesta incursão pela trajetória da loucura, ponderamos que a “estrutura de
exclusão” não foi de fato superada. Admitimos que ela ganhou uma nova roupagem, mais
flexível, camuflada num simulacro de cuidado territorial; uma espécie de liberdade vigiada
que traz à tona o antigo “Panóptico de Bentham” que, na contemporaneidade, ganha
contornos ideológicos. Como disse Foucault (2009, p. 12): “aquilo que outrora foi fortaleza
visível da ordem tornou-se agora castelo da nossa consciência”.
Discutiremos, a seguir, o atual modelo de atenção à saúde mental no Brasil, buscando
contemplar as tensões e contradições que permeiam o cenário brasileiro.
2.2 A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL À LUZ DO PENSAMENTO COMPLEXO:
TENSÕES E REFLEXÕES
Neste tópico, aprofundaremos as discussões que compreendem a dimensão técnico-
assistencial da RPb, mais especificamente o novo desenho organizativo que se propõe a
oferecer assistência integral, contínua e de base comunitária ao usuário em sofrimento
psíquico. Neste artesanato intelectual, iremos trilhar a interface saúde mental/saúde coletiva
para que assim possamos compreender a lógica que orienta a organização e estruturação dos
serviços de saúde mental substitutivos ao hospital psiquiátrico. Lançando, assim como
Carvalho e Amarante (1996), um “olhar-caleidoscópio” sobre a RAPS, almejamos pensar a
rede viva, em movimento, reconhecendo a sinergia que se estabelece entre esta e as RAS. O
“olhar-caleidoscópio” corresponde, no entender dos autores, ao exercício de percepção e
análise da realidade para além dos espaços micro e macro, na tentativa de enxergar as relações
que os atravessam.
Para iniciar esta discussão julgamos pertinente resgatar o cenário de transformações
ideológicas e jurídico-políticas que prepararam o terreno para o estabelecimento das RAS
como uma estratégia potente no contexto sociosanitário brasileiro. Manobra que supomos
necessária diante da hologramaticidade que se reconhece entre RAS-RAPS e que, em analogia
40
ao pensamento de Morin (2015), nos autoriza a reconhecer que a RAPS está na RAS, que, por
sua vez, está na RAPS.
Imaginemos, então, um cenário marcado pela ampliação do conceito de saúde no qual
o processo saúde-doença passa a ser reconhecido como produto e produtor de uma complexa
rede de produção social. Tal redirecionamento fez avançar no Brasil o entendimento da saúde
como resultante de complexas redes multidimensionais que envolvem elementos biológicos,
subjetivos, sociais, econômicos, ambientais e culturais atuando de maneira simultânea e
inseparável na experiência concreta de sujeitos e coletividades (BRASIL, 2009a). Por outro
lado, reconheçamos que a reformulação da Constituição Federal em 1988 e a criação do
Sistema Único de Saúde (SUS), ao definir a saúde como direito de qualquer cidadão e dever
do Estado, fomentou transformações no setor saúde balizadas pelos ideais de universalização
e democratização do acesso aos serviços, equidade e integralidade da assistência.
Outro elemento a ser considerado nessa trama são as transformações no próprio
cenário sanitário e epidemiológico brasileiro, que, assim como os demais países em
desenvolvimento, apresenta-se marcado pela coexistência de condições agudas e crônicas, a
exemplo dos transtornos mentais e comportamentais e de toda problemática inerente ao uso de
drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas.
Com a nova sensibilidade do conceito ampliado de saúde na percepção dos processos
saúde-doença e dos contextos a eles vinculados, emerge a necessidade de inovações que
permitam a criação de múltiplas respostas no enfrentamento da produção saúde-doença. Neste
sentido, as RAS surgem como uma alternativa para recompor a coerência entre uma situação
de saúde marcada pela tripla carga de doenças – que envolve uma agenda não concluída de
infecções, desnutrição e problemas de saúde reprodutiva, doenças crônicas e crescimento da
morbimortalidade por causas externas – e o sistema de atenção à saúde, objetivando, assim,
transpor a assistência fragmentada, episódica, reativa e focada nas condições e eventos agudos
e na agudização das condições crônicas (OLIVEIRA, 2015; MENDES, 2010).
No âmbito da saúde mental, paralelamente, as mudanças nas formas de compreender o
transtorno mental e de cuidar do indivíduo em sofrimento psíquico (como exposto ao longo
do primeiro tópico desta revisão) passam a exigir novas formas de estruturação e de
organização dos serviços – assim como de itinerário dos usuários – em prol da
desinstitucionalização da assistência em saúde mental, com ênfase no tratamento extra-
hospitalar, da inclusão social da pessoa com transtorno mental (AMARANTE, 1995), da
humanização da assistência, valorizando-se o protagonismo, a autonomia e a participação
social dos sujeitos.
41
Para Yasui (2010), foi no contexto de críticas ao modelo hospitalocêntrico de
abordagem do transtorno mental e de politização da questão da saúde mental, que foram
produzidas reflexões que fomentaram movimentos de ruptura epistemológica, criação de
experiências de cuidado contra-hegemônicas, mudanças em normas legais e efeitos
socioculturais. Em síntese, reconhecemos que o cenário efervescente de mudanças teórico-
práticas e políticas que envolveu o setor saúde, de maneira geral, e o campo da saúde
mental/atenção psicossocial, de modo específico, culminou, mais recentemente, com a
reestruturação do sistema de saúde brasileiro de atenção à saúde mental segundo a lógica das
RAS com a criação da RAPS.
A Portaria Ministerial no 4.279/2010 conceitua a RAS como “arranjos organizativos de
ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas, que integradas por meio de
sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado” .
Tem como característica a formação de relações horizontais entre os pontos de atenção, está
centrada na necessidade de saúde da população, assumindo responsabilidade na atenção
integral e contínua, além de oferecer um cuidado multiprofissional comprometido com os
resultados sanitários e econômicos (BRASIL, 2010a, tl 4).
Para Mendes (2011) a RAS apresenta-se como um conjunto de serviços de saúde
organizados poliarquicamente e vinculados entre si por uma missão única, por objetivos
comuns e por uma ação cooperativa e interdependente que busca aprofundar e estabelecer
interrelações entre os diversos nós que o compõe, o que implica e possibilita continuidade e
integralidade da atenção. Silva e Magalhães Junior (2013, p.85) comparam a RAS a uma
“malha que interconecta e integra estabelecimentos e serviços de saúde de determinado
território, organizando-os sistematicamente para que os diferentes níveis e densidades
tecnológicas de atenção estejam articulados e adequados para o atendimento integral ao
usuário e para a promoção da saúde”.
Em síntese, esse novo arranjo organizativo propõe a integralidade e continuidade do
cuidado, a integração e interação de serviços e a construção de vínculos horizontais entre
atores e setores em contraposição à fragmentação de programas e práticas clínicas, ações
curativas isoladas em serviços e especialidades. Por este motivo, a organização dos serviços
em RAS é reconhecida como uma “estratégia para qualificar a atenção e a gestão do SUS”
(BRASIL, 2009a, p. 06).
São basicamente três os elementos constitutivos da RAS: população adscrita, estrutura
operacional e modelos de atenção à saúde. A estrutura operacional da RAS, por sua vez, é
composta por uma série de elementos que compreende o centro de comunicação focado na
42
Atenção Primária à Saúde (APS) enquanto ordenadora da RAS e coordenadora do cuidado;
pontos de atenção secundária e terciária; um sistema logístico conformado pelo cartão de
identificação das pessoas usuárias, prontuário clínico eletrônico, sistema de acesso regulado à
atenção e sistema de transporte em saúde; e sistemas de apoio diagnóstico e terapêutico,
assistência farmacêutica e Sistemas de Informação em Saúde (SIS); além de um sistema de
governança responsável pelo exercício da autoridade política, econômica e administrativa
para gerir os negócios do Estado (BRASIL, 2010a).
Devido à necessidade de enfrentamento de vulnerabilidades, agravos ou doenças
específicas que acometem as pessoas ou as populações, foram organizadas cinco redes
temáticas consideradas prioritárias no atual contexto sanitário brasileiro, sendo elas: a Rede
Cegonha, a Rede de Atenção às Urgências e Emergências, a Rede de Atenção às Doenças
Crônicas, a Rede de Cuidado à Pessoa com Deficiência e a Rede de Atenção Psicossocial
(BRASIL, 2010a). Empenharemos nossas análises sobre esta última, a RAPS.
Diz-se rede temática, pois visa oferecer respaldo técnico-assistencial para o caminhar
do usuário por uma linha de cuidado que toca uma necessidade específica desse indivíduo. A
linha de cuidado, por sua vez, é a imagem pensada para expressar o caminho a ser percorrido
pelos sujeitos no sentido de atender, com segurança, às necessidade de saúde. A linha de
cuidado, que é disparada pelos Projetos Terapêuticos Singulares, incorpora a ideia de
integralidade da atenção, uma vez que contempla dentre as possibilidades terapêuticas ações
de prevenção, cura e reabilitação – integralidade vertical – além de serviços inseridos tanto no
sistema de saúde quanto entidades comunitárias e da assistência social – integralidade
vertical. Tem no acolhimento, no vínculo e na responsabilização suas diretrizes (FRANCO;
FRANCO, S/D).
No contexto da atenção em rede, destacam-se como verdadeiramente temáticos os
pontos de atenção secundária e terciária, uma vez que aí estão alocados os serviços
especializados e de alta complexidade. Entretanto, admitimos uma relação de
complementaridade entre os serviços especializados e a APS na conformação das próprias
redes temáticas – a exemplo da RAPS. Por isso, afirmamos que as redes temáticas
complementam e são complementadas pelos demais componentes da RAS, incluindo-se os
sistemas de apoio e logístico.
Esta relação de complementaridade entre as redes temáticas na conformação do todo
da assistência em rede se dá pela superação da dicotomia entre os programas verticais e
horizontais, rumo ao estabelecimento de “programas diagonais, em que se combinam os
objetivos singulares de determinadas condições de saúde com uma estrutura operacional que
43
organiza, transversalmente, a APS, os sistemas logísticos, os sistemas de apoio e o sistema de
governança” (OPAS, 2011, p. 26-27).
Na figura 1, um esboço da estrutura operacional das RAS´s na qual se observa a APS
como ponto em comum a todas as redes temáticas que são, por sua vez, transversalizadas por
sistemas de apoio e logísticos. Assim sendo, qualquer que seja “o tema” ou, dito de outro
modo, a linha de cuidado que contempla a demanda posta pelo usuário, estará, em tese,
inseparavelmente absorvida na/pela RAS. De tal modo, ainda que esta demanda esteja
diretamente relacionada à saúde mental, ela suscitará a transversalização de ações dentro da
rede, extravasando para pontos de atenção não especializados e necessitando do suporte dos
sistemas de apoio e logísticos comuns a todas as RAS´s.
Figura 1 – Estrutura operacional das Redes de Atenção à Saúde.
Fonte: Adaptado de Mendes (2011).
É importante reconhecer que esses componentes apresentados na figura 1 se
entrecruzam durante o caminhar dos sujeitos pelo território, que técnicos e usuários se
conectam, dialogam, e assim vão tecendo as diversas RAS em prol das necessidades de
cuidado apresentadas pelos indivíduos.
Uma das dificuldades é que no atual contexto da atenção em rede alguns temas
(componentes temáticos) – a exemplo do transtorno mental e do uso abusivo de álcool e
44
outras drogas –, por várias questões, vão ficando segregados. Barreiras vão sendo postas e
transformando as curvas do território em labirintos que circunscrevem especialidades e
especialistas. Igualmente difícil é reconhecer que para fazer valer a integralidade da atenção é
preciso “emaranhar” as linhas de cuidado, “transdisciplinarizar”, e, enfim, admitir a
coexistência de múltiplas facetas nos processos saúde-doença de um usuário, que, em última
instância, é um ser multidimensional.
Enquanto uma RAS temática, a RAPS apresenta-se como um arranjo organizativo de
ações e serviços de saúde de diversas complexidades assistenciais. Foi organizada a partir da
necessidade de enfrentamento de vulnerabilidades relacionadas aos transtornos mentais e ao
uso abusivo de crack, álcool e outras drogas. Em linhas gerais, objetiva ampliar e promover o
acesso à atenção psicossocial da população em geral e garantir a articulação e integração dos
pontos de atenção das redes de saúde no território, qualificando o cuidado por meio do
acolhimento, do acompanhamento contínuo e da atenção às urgências (BRASIL, 2011a). Nas
palavras do coordenador de saúde mental, álcool e outras drogas do Ministério da Saúde em
2015, a RAPS é uma expressão da RPb para o fortalecimento do SUS como política de Estado
(BRASIL, 2015a, tl 5), uma vez que possibilita e potencializa a integralidade do cuidado de
base territorial ao indivíduo em sua existência-sofrimento.
A nova proposta organizacional para a saúde mental incorporou novos serviços,
estratégias e ações para promover integralidade, continuidade e longitudinalidade do cuidado.
De acordo com a portaria 3.088/2011 a RAPS é constituída por sete componentes (BRASIL,
2011a):
Atenção Básica, no qual estão alocadas as Unidades Básicas de Saúde (UBS), os
Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), as Equipes de Consultórios na Rua e
os Centros de Convivência e Cultura;
Atenção Especializada, que conta com os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) em
suas diversas modalidades – CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPS ad II, CAPS ad III e
CAPS infanto-juvenil – definidos por ordem crescente de porte/complexidade e
abrangência populacional;
Atenção de Urgência e Emergência através do Serviço de Atendimento Móvel de
Urgência 192 (SAMU), a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) 24 horas, portas
hospitalares de atenção à urgência/pronto socorro, UBS e os CAPS tipo III que
funcionam 24 horas;
45
Atenção Residencial de Caráter Transitório composta por Unidade de Acolhimento e
pelos Serviços de Atenção em Regime Residencial, entre os quais estão as
Comunidades Terapêuticas;
Atenção Hospitalar que é composta por leitos/enfermarias de saúde mental em
Hospital Geral e pelo serviço Hospitalar de Referência para atenção às pessoas com
sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack,
álcool e outras drogas;
Estratégias de Desinstitucionalização como os Serviços Residenciais Terapêuticos e o
“Programa de Volta para Casa” que consiste no auxílio reabilitação para pessoas com
transtorno mental egressas de internação de longa permanência (BRASIL, 2003);
Reabilitação Psicossocial através de iniciativas de geração de trabalho e renda,
empreendimentos solidários e cooperativas sociais.
Notem-se nesta proposta organizativa dois pontos interessantes ao debate. O primeiro
deles se refere aos pontos secundário e terciário de atenção, os quais ofertam determinados
serviços especializados, dependendo da área temática de abordagem da RAS – Centros de
Atenção Psicossocial, serviços hospitalares especializados, estratégias de
Desinstitucionalização e de Reabilitação Psicossocial, no caso da RAPS. Com exceção dos
pontos de atenção secundária e terciária, que são verdadeiramente temáticos, todos os outros
atuam de maneira transversal, conferindo sinergia entre as RAS. O segundo ponto é a
interligação que se percebe entre a RAPS e a Rede de Atenção à Urgência que se materializa
pela participação do SAMU e das UPA´s na urgência psiquiátrica. Ainda que, na perspectiva
das redes poliárquicas não haja entre os pontos de atenção das redes relações de
principalidade ou subordinação para o desenvolvimento do cuidado integral e continuado
(MENDES, 2011), veremos que esta interface traz implicações para o cotidiano do cuidado
em rede de saúde mental.
Esta rede assistencial específica, da maneira como foi pensada e instituída no ano de
2011, reveste-se de fundamental importância por propor meios para a desconstrução do
aparato manicomial e para a continuidade da assistência em território. Ainda que
reconheçamos os avanços conquistados a partir da criação da RAPS, não negamos as
dificuldades vivenciadas por seus atores nos movimentos de tessitura da rede, seja pelos “pés”
do usuário que ao circular por serviços e estratégias desbrava caminhos e possibilidades de
46
atenção, ou pela perspectiva dos trabalhadores que se articulam para o compartilhamento do
cuidado.
Neste trabalho, pretende-se trazer à baila uma reflexão de RAPS que transcende a
mera justaposição de serviços como parâmetro de análise, para colocar em questão o modo
eles estão se relacionando, reconhecendo a existência e conformação de uma “rede viva” que
se estabelece no cotidiano dos serviços e dos indivíduos que por eles circulam (BRASIL,
2009a). “Rede viva”, pois formada por serviços e pessoas em relações dinâmicas, dialéticas e
dialógicas que se articulam em um processo complexo, individual e coletivo e que envolve
setores e, principalmente, atores e seus saberes, símbolos, afetos, memórias, entre outros
aspectos.
Para lançar esse olhar ampliado sobre a RAPS nos subsidiaremos de conceitos
fundamentais da Complexidade como a dialógica, a recursividade organizacional, o
holograma, além do “tetragrama” da Complexidade conformado pela “fórmula
paradigmática” ordem-desordem-interação-organização. Recorremos ao auxílio das lentes
compreensivas da Complexidade por sua capacidade de reconhecer a interconexão entre as
múltiplas dimensões da realidade e a inter-relação entre cada ser vivo, ambicionando refletir
sobre as articulações que foram/são destruídas pelos cortes entre disciplinas, entre categorias
cognitivas e entre tipos de conhecimento (MINAYO; TÔRRES, 2012). Tal característica
parece-nos interessante em face da própria ideia de atenção em redes de saúde e ao apelo de
integralidade que emana das entrelinhas das portarias ministeriais 4.279/2010 e 3.088/2011.
O princípio dialógico nos auxilia a entender os fenômenos como simultaneamente
antagônicos, concorrentes e complementares; nos permite manter a dualidade no seio da
unidade e, assim, conceber a existência da ordem em meio a desordem. A recursão
organizacional, ou recursividade, indica a compreensão de que efeitos de um processo são
também seus coprodutores; é uma ruptura com a ideia linear de causa/efeito, de
produto/produtor, já que tudo que é produzido volta-se num ciclo “autoconstitutivo, auto-
organizador e autoprodutor”. O holograma, por sua vez, refere-se à ideia de que a parte está
no todo, assim como o todo está na parte, de modo que as partes não dão conta de explicar o
funcionamento do todo. Assim, estimulam a utilização de procedimentos científicos mais
dinâmicos, interativos, recursivos e não-lineares (MORIN, 2015; BEDIN; SCAPARRO,
2011).
O tetragrama da Complexidade propõe a dialogicidade entre os termos ordem-
desordem-interação-organização como uma fórmula paradigmática para conceber o jogo de
formações e transformações sem esquecer a complexidade do universo. Dentro dessa
47
perspectiva, compreende-se a ordem como ideia de determinação, estabilidade, constância,
regularidade, repetição; já a desordem é vista como acaso, agitações, dispersões, colisões,
irregularidades e instabilidades, desvios no processo, choques, encontros aleatórios,
acontecimentos, ruídos e erros. Atualmente, a ideia de ordem está ligada a ideia de interação,
de modo que ordem e desordem, mesmo parecendo “inimigas”, se espiadas por olhos
desatentos, cooperam de certa maneira para organizar o universo (MORIN, 2013). Neste
sentido, são como duas facetas de uma mesma moeda.
Com base no exposto, defendemos que para que a rede instituída através de leis e
portarias ministeriais se concretize no território é mister a construção cotidiana das relações
em rede, seja com base no trabalho vivo em ato como defendem Quinderé, Jorge e Franco
(2014), seja por meio de articulações entre os serviços de saúde, as equipes, os saberes
(científicos, interdisciplinares e da tradição), as práticas e as subjetividades, conforme Franco
(2006). Esclarecemos que o trabalho vivo em ato é um conceito desenvolvido por Emerson Elias
Merhy e que, em linhas gerais, refere-se ao trabalho humano no exato momento em que é executado e
que determina a produção do cuidado. Para maiores informações sobre a temática sugerimos a leitura
da obra Saúde: a cartografia do trabalho vivo (MERHY, 2002).
Outro ponto evocado à luz do debate é a necessidade de se considerar as características
sociais, culturais, físicas e funcionais dos pontos – serviços – que conectam a rede para o
estabelecimento de arranjos e rearranjos que supram as necessidades sociais e de saúde dos
usuários, como alertam Antonacci et al. (2013).
Neste sentido, consideramos, assim como Mendes (2011), que as redes não são,
simplesmente, um arranjo poliárquico entre diferentes atores dotados de certa autonomia, mas
um sistema que busca aprofundar e estabelecer padrões estáveis de inter-relações –
estabilidade que admitimos ser relativa, pois em movimento, já que reconhecemos a própria
complexidade da vida com suas idas e vindas, encontros e desencontros. A rede transcende o
ajuntamento de serviços, ela requer a adoção de elementos que deem sentido a esse
entrelaçamento de ações e processos (SANTOS; ANDRADE, 2013). Como um modelo
complexo de promoção da saúde, como pondera Almeida-Filho (2006), a rede equivale a
estruturas sistêmicas abertas em constante mudança, totalidades compostas por partes inter-
relacionadas, elementos mutantes, conexões e parâmetros.
De tal modo, e inspirados pela tradição moriniana, admitimos a RAPS como um todo
complexo, que se concretiza no cotidiano dos serviços, em território, por meio de inter-
relações concretas e intersubjetivas que sofrem influência do contexto histórico (tradição) e
social desses indivíduos. Sendo constituída por nós – modo como Mendes (2011) denomina
48
os pontos de atenção distribuídos em território e responsáveis pela oferta de serviços – e por
ligações materiais e imateriais que os comunicam – às quais denominaremos fios – que se
materializam através dos fluxos assistenciais, das relações interpessoais e das linhas de
cuidado.
Em nossa análise, nos subsidiaremos de um jogo de palavras em torno do termo “nós”
(da rede) com o intuito de contemplar tanto os componentes objetivos – serviços/pontos de
atenção – quanto alertar para o componente subjetivo que permeia e transversaliza toda RAS
e, por extensão, a RAPS. Assim sendo, advertimos que o termo grafado entre aspas (“nós”),
denota também o pronome pessoal do caso reto em primeira pessoa do plural e chama a
atenção para o componente subjetivo da rede, os atores sociais; já quando redigido sem as
aspas (nós), estaremos nos referindo ao entrelaçamento de um ou mais fios dessa rede, aos
pontos de atenção, alertando para o seu componente objetivo. Neste último caso também se
aplica o sentido figurado da palavra nó como aquilo que causa dificuldade, empecilho.
Compreendemos os “nós” da rede como os sujeitos e suas subjetividades – gestores,
trabalhadores, usuários – envolvidos na construção e concretização, em território, das RAS.
Julgamos pertinente convocá-los ao debate, pois concordamos com documento do Ministério
da Saúde no qual se admite que não existe rede de saúde que não passe, primeiramente, pelas
relações interpessoais e processos de trabalho, sendo todo sujeito um ser em conexão com
outros seres e outras vidas e, no horizonte, inserido numa rede de produção de subjetividade
(BRASIL, 2009a). Por fim, considerar as subjetividades, as relações e as interações dos atores
no caminhar em busca do cuidado em território sinaliza para uma abordagem complexa do
fenômeno que reconhece a complementaridade antagônica – dialógica – que se estabelece
entre os componentes objetivos e subjetivos da RAPS. Além de reforçar o protagonismo dos
indivíduos no processo saúde-doença e na conformação dos serviços de saúde.
Assim como Arruda et al. (2015), reconhecemos o sistema de saúde como um sistema
complexo com conexões e interconexões dentro e fora do setor saúde. Reconhecemos
também, a própria formação da rede de saúde como um fenômeno complexo, pois cada
conexão possui características próprias, uma vez que envolve profissionais, e um corpo de
saber, e usuários com características peculiares, em diferentes contextos e situações. Assim
sendo, a RAPS está situada em um contexto multidimensional, com múltiplas conexões e
inter-relações.
Arriscando uma leitura preliminar da RAPS sob o olhar da complexidade,
reconhecemos a objetividade das leis e portarias ministeriais, dos serviços e das
normatizações que os conformam. Percebemos também a subjetividade inerente aos atores
49
dessa rede e à interação entre eles, às emergências do cotidiano dos serviços e ao território em
toda sua dinamicidade. Entre eles e junto com eles, conformando essa rede viva,
reconhecemos ordem e desordem em constante interação. É no diálogo e na
complementaridade entre estes componentes que a rede se concretiza, se auto-organiza e
avança.
O princípio da dialogicidade se apresenta no contexto da RAPS também no que
concerne a coexistência entre modelos de atenção e serviços com diferentes inclinações
assistenciais – cura, prevenção, reabilitação –, diversas especialidades, níveis e
complexidades dentro da mesma rede temática. Além destes pontos, salientamos a relação
dialógica que se estabelece entre o dentro/fora dos serviços de saúde, principalmente no
contexto da atenção psicossocial, que na atualidade desencadeia tensões na rede.
Acrescentamos que, enquanto “rede viva”, a RAPS vibra “ao som” ou não dos
movimentos dos atores sociais que por ela circulam ao passo que são regidos pelas políticas
que a institucionaliza. Temos nesta sentença, a expressão da recursividade que delineia os
atores – gestores, trabalhadores, usuários/familiares e a comunidade em geral – como
produtos e produtores da RAPS.
Tais indicativos nos fazem reconhecer a RAPS como um sistema auto-eco-
organizador. Para Morin:
“o sistema auto-eco-organizador tem sua própria individualidade ligada às
relações com o meio ambiente muito ricas, portanto dependentes. Mais
autônomo, ele está isolado. Ele necessita de alimentos, de matéria/energia,
mas também de informação, de ordem. O meio ambiente está de repente no
interior dele e joga um papel coorganizador. O sistema auto-eco-
organizador não pode, pois, bastar-se a si mesmo, ele só pode ser
totalmente lógico ao abarcar em si o ambiente externo. Ele não pode se
concluir, se fechar, ser autossuficiente” (MORIN, 2015, p.33, grifo
nosso).
A este respeito, Arruda et al. (2015) salientam que as organizações têm a capacidade
de se auto-organizar mas sua autonomia depende de energia, informação e relação com o
mundo exterior no que toca o ambiente, a cultura, os costumes de uma sociedade. Dessa
forma, (re)organizam-se tanto de acordo com as demandas que a população apresenta, como
de acordo com o conhecimento e experiências que os profissionais e gestores dispõem para
atuarem.
No contexto da RAPS, essa dependência com o “mundo exterior”, se apresenta com
maior força ao considerarmos a atualidade do cuidado em saúde mental que suscita a saída do
50
hospital psiquiátrico e a ocupação dos espaços da cidade por parte dos usuários e que apregoa
a vida em comunidade e a livre circulação pelo território, com as tensões e contradições
típicas deste convívio. Assim sendo, fechar-se em si mesma ou, dito de outro modo,
negligenciar essa abertura à comunidade – ao social – vem causando tensões e contradições
na própria rede.
Partindo dessas conjecturas, imaginamos ser primordial garantir a articulação e
integração dos pontos de atenção das redes de saúde no território, tanto é que este se configura
como um dos objetivos gerais da RAPS (BRASIL, 2010a). Reconhecemos também, as
implicações dessa articulação entre atores/serviços/setores para a integralidade e continuidade
da assistência. Tais constatações nos impeliram a realizar uma aproximação teórica às
experiências brasileiras de cuidado em saúde mental em rede. Engendramos, então, sondagem
preliminar cujo interesse era o arranjo organizacional dos serviços de saúde mental,
articulação, potencialidades e limitações dessa “nova” proposta.
A busca se deu nas bases eletrônicas de dados da Biblioteca Virtual em Saúde, do
Portal de Periódicos da Capes, do Banco de Teses da Capes e da Biblioteca Digital Brasileira
de Teses e Dissertações. Foram utilizados o descritor “saúde mental” articulado à palavra-
chave “Rede de Atenção Psicossocial” pelo operador booleano AND. Foram selecionados 21
trabalhados, dos quais eram 12 artigos e nove dissertações.
O que se viu na breve aproximação teórica foi o CAPS como o cenário privilegiado
para as investigações científicas, por vezes considerado como o “lugar do louco” e o
responsável pelo mandato social da loucura (MIRANDA et al., 2014) – o que fora afirmado
por Delgado (2015) e corroborado em revisão integrativa realizada por Ramos, Paiva e
Guimarães (no prelo). Evidenciamos que muito se fala sobre a necessidade e a dificuldade de
articulação entre os serviços que compõem a RAPS, porém pouco se problematiza sobre os
modos de articulação, as potencialidades e as dificuldades de promovê-la, como também
possíveis alternativas de transposição das barreiras encontradas. Percebe-se nas publicações
analisadas que a assistência à saúde mental, grosso modo, ainda não incorporou plenamente o
discurso e a lógica da assistência em rede, “as relações em rede” são ainda incipientes e
carecem de uma maior aproximação à matriz conceitual das RAS.
Sobre os modos de articulação da RAPS encontramos maior ênfase na inter-relação
entre a APS e o CAPS e abordagens como: articulação da rede de saúde mental promovida
através de rodas de conversa realizadas por uma profissional “articuladora de saúde mental”
(ALMEIDA; ACIOLE, 2014); a articulação da rede a partir da articulação entre Estratégia
Saúde da Família (ESF), CAPS e NASF (MIRANDA et al., 2014); o apoio matricial feito por
51
uma equipe de referência como estratégia potente de articulação da rede (SOUSA et al.,
2011).
Em se tratando das potencialidades da RAPS elencam-se: a construção/fortalecimento
de uma rede solidária e cooperativa de saúde mental municipal e regional (ALMEIDA;
ACIOLE, 2014); avanços no cuidado em saúde mental de base comunitária e na inserção da
saúde mental na APS, utilização de ligações telefônicas como estratégia de comunicação entre
os profissionais (SILVA, 2013); trabalho coletivo e dialógico (BALLARIN et al., 2011);
comunicação dentro da rede favorecida pelo uso de tecnologias leves como a escuta e o
vínculo e proporcionada pelo matriciamento (SOUSA et al., 2011).
As dificuldades de articulação da RAPS foi o tema mais recorrente nas publicações
analisadas. Em síntese, os autores elencam como fatores associados a tal problemática:
desarticulação entre os serviços substitutivos (atenção especializada) e AB seja por pré-
conceito dos profissionais, seja por dificuldades de comunicação ou por desconhecimento
sobre os fluxos assistenciais agravado pela incipiência dos esforços de aproximação entre os
serviços (MIRANDA et al., 2014; ANTONACCI et al., 2013; SILVA, 2012; ONOCKO-
CAMPOS; BACCARI, 2011; GAZABIM et al., 2011; SEVERO; DIMENSTEIN, 2011;
TEIXEIRA JR, 2010; AZEVÊDO, 2010); pouca flexibilidade nos fluxos assistenciais,
cristalizando a construção de trajetos assistenciais mais dinâmicos (TEIXEIRA JR., 2010);
falta de sistematização para as trocas de informações sobre os usuários e para os
encaminhamentos dentro da rede (MIRANDA et al., 2014; VIEGA, 2012); intervenções
fragmentadas e pouco flexíveis (SEVERO; DIMENSTEIN, 2011); dificuldades políticas,
inclusive aquelas relativas ao desinteresse pela saúde mental e precarização dos vínculos
trabalhistas (MIRANDA et al., 2014; SILVA, 2012).
A este respeito, Arruda et al. (2015) constatam que apesar de, teoricamente, estarem
organizadas em graus crescentes de complexidade, na prática os usuários esbarram em um
fluxo truncado, burocrático e desarticulado, agravado pelo fato de não considerarem (por
vezes) as necessidades e os movimentos reais das pessoas dentro do sistema.
De maneira geral, confirma-se a constatação de Souza e Carvalho (2014) de que se
constituem redes que privilegiam articulações funcionais entre os equipamentos que pouco se
comunicam com os territórios em que vivem os usuários, num modus operandi hegemônico
que tem na rede o lugar de oferta técnica de cuidado, numa tendência ao isolamento temático
e à supervalorização dos serviços especializados. A este respeito, Lancetti (2016) comenta
sobre algumas características dos serviços especializados em saúde mental, mais
52
especificamente o CAPS, alertando para a sua centralização em si mesmo, reclusão
tecnocrática e tristeza burocrática.
Com base nos achados, e tendo ainda a articulação entre os serviços como fio
condutor, sentimo-nos impelidos a um processo reflexivo que perpassa por dois pontos
principais.
O primeiro deles refere-se à priorização de serviços e profissionais especializados, o
que poderia indicar o predomínio de ações curativistas voltadas para a doença mental
enquanto negligencia-se a integralidade da atenção e o exercício da cidadania. Indício
problemático, visto que para dar conta da complexidade humana o cuidado deve ser prestado
à pessoa em sua totalidade como referem Demarco et al. (2016). Reconhecemos que a busca
por serviços especializados em saúde mental/psiquiatria é importante, considerando-se às
demandas específicas dos sujeitos que caminham pela linha do cuidado em atenção
psicossocial. O que colocamos em questão é quando a atenção especializada assume um
caráter não-comunicante, ou seja, não busca a interação complementar entre os demais
componentes da RAS/RAPS ficando o cuidado restrito ao CAPS ou ao hospital psiquiátrico.
O segundo ponto remete aos modos de articulação fragilizados que, quando
existentes, antepõem a relação APS-CAPS, ficando os outros componentes da RAPS à
margem do processo. Sobre este segundo tópico, esclarecemos que não é a intenção
minimizar a importância dos serviços especializados no contexto da RAPS, mas sim elevar o
nível e a complexidade do debate, abrindo possibilidades para outros focos de análise. Além
de alertar para a posição lacunar que os serviços de urgência e emergência vêm ocupando na
referida rede, com possíveis complicações para a continuidade do cuidado em território.
A impressão que se tem é que ao se colocar sob os holofotes da ciência (e do senso
comum?) a temática atenção psicossocial, uma linha abismal se estabelece, separando “deste
lado da linha” os componentes específicos/temáticos da RAPS e isolando “do outro lado da
linha” os demais componentes da rede. Esclarecemos que no campo do conhecimento, o
pensamento abismal consiste em conceder à ciência moderna o monopólio da distinção
universal entre o verdadeiro e o falso, em detrimento de outros dois corpos alternativos do
conhecimento: a filosofia e a teologia. O caráter exclusivista deste monopólio se encontra no
centro das disputas epistemológicas modernas entre formas de verdades científicas e não-
científicas. Neste contexto, o pensamento abismal é um sistema de distinções visíveis e
invisíveis no qual as invisíveis constituem o fundamento das visíveis. As distinções invisíveis
são estabelecidas em dois universos: o universo “deste lado da linha” e o universo que está
“do outro lado da linha”. O que está “deste lado da linha” é o que existe, é a realidade; “do
53
outro lado da linha” desaparece como realidade, se converte em não existente, nenhuma forma
relevante ou compreensível de ser, já que não pode ser comprovado (SANTOS, 2009). Com
essa analogia, cogitamos que dentro do contexto da atenção psicossocial em rede parece
existir uma linha imaginária que coloca os serviços especializados como “o lugar” do
cuidado, ficando à margem – por vezes esquecidos – do processo saúde-doença-cuidado os
demais componentes da RAPS (e fora dela), em que pese a relevância destes à continuidade
do cuidado em território.
Assim, a parte se separa do todo de maneira praticamente inatingível, a essência do
cuidado em rede é pulverizada pelo domínio da especialidade e do saber-poder médico
psiquiátrico, o que, a nosso ver, apresenta-se como um dos grandes paradoxos da RAPS.
Paradoxo, pois, assim como reconhecemos uma interdependência hologramática entre RAPS-
RAS, aceitamos a existência deste mesmo princípio entre os componentes temáticos (CAPS,
hospitais psiquiátricos, residências terapêuticas, entre outros) e os componentes transversais
(APS, urgência e emergência, hospitais gerais) da rede em análise – já que, em tese, cada
componente possui dentro de si a lógica organizacional da atenção em rede, além do que, é na
inter-relação que se constituem enquanto RAS.
Alertamos para a negligência que se observa em relação à interdependência entre os
serviços de saúde mental e os próprios recursos do meio ambiente/comunidade/sociedade, que
se torna mais preocupante se considerarmos a imprescindibilidade desta relação (serviço-meio
ambiente/comunidade/sociedade; dentro/fora) para o modelo de atenção psicossocial ao qual
se afilia a RAPS – fato constatado pelo vazio teórico encontrado na presente revisão
bibliográfica e em revisão semelhante (RAMOS; PAIVA; GUIMARÃES, no prelo).
Colocamos à reflexão esse “fechamento”/“aprisionamento” dos componentes
temáticos da RAPS enquanto uma contradição provocada pela atmosfera cultural na qual está
inserida em que ainda se encontram vestígios da lógica manicomial e predomínio do poder
médico-psiquiátrico como balizador das relações entre atores, serviços e setores. O que
também, cogitamos, pode ser potencializado pelo esmaecimento da militância que nos anos
dourados da RPb conclamava uma “sociedade sem manicômios até o ano 2000”.
Inspirados em Arruda et al. (2015) trazemos à luz do debate desafios para pensar a
RAPS na perspectiva da Complexidade. O primeiro deles é a distância entre a intenção
(portarias ministeriais 4.279/2010 e 3.088/2011) e o gesto concreto de oferecer um
atendimento integral, contínuo e efetivo aos usuários, inclusive com profissionais habituados
a assistência focada nas partes e não no todo articulado e interdependente do sistema de
saúde.
54
A este respeito, há que se considerar nessa trama o compromisso dos trabalhadores da
saúde mental com a concretização da rede e a continuidade do cuidado. Questionamo-nos se a
atmosfera de críticas e de luta dos trabalhadores que envolveu e nutriu o movimento de RPb
foi obnubilada ao longo desses quase 40 anos? Para Zgiet (2013), frustrações desencadeadas
pela cronificação do quadro do usuário ou até mesmo pela impossibilidade de controle do
processo de trabalho, ou ainda em virtude da organização dos serviços e da expectativa quanto
à relação profissional-usuário são fatores dificultadores para os profissionais. A nosso ver, em
que pese as tensões e contradições da RAPS e do trabalho em rede, é mister trazer
trabalhadores, usuários e sociedade para discutir alternativas para transpor as barreiras que ora
se apresentam face à linha do cuidado em atenção psicossocial e investir na formação
permanente dos técnicos, indivíduos que estão na ponta do sistema implementando (ou não)
as políticas públicas de saúde.
O segundo ponto que se coloca em reflexão é a exigência de flexibilidade e olhar
dinâmico por parte da gestão das RAS para que estas transcendam o mero emaranhado de fios
com pontos incomunicáveis (ARRUDA et al., 2015). Sem a flexibilidade e readaptação do
sistema a partir das diversidades regionais tão caras à atenção em rede, vê-se cair por terra a
rede plástica, horizontal e sensível às mudanças prevista por Almeida-Filho (2006).
Reconhecemos o avanço inegável da desinstitucionalização da assistência em saúde
mental potencializado pela criação da RAPS. Entretanto, consideramos a existência de
realidades problemáticas no contexto da assistência à saúde mental em rede que perpassam,
entre outros pontos, articulação entre os serviços que a compõem e emergência de fluxos
assistenciais labirínticos. O que nos faz pensar com Perrusi (2010) e questionar: “a lógica
asilar acabou?”. Questionamento ao qual o próprio autor responde negativamente, construindo
sua argumentação considerando que, apesar de praticamente ninguém na saúde mental
defender o asilo – exceto os nichos de poderio médico-psiquiátrico – caso compreendamos a
lógica asilar como toda lógica institucional de assistência, esta será sempre potência de
qualquer processo de institucionalização no campo da saúde mental (?), seja hospitalar ou não
– o que se constata pela centralização da atenção à saúde mental nos CAPS como lugar novo
de velhos hospícios (como já explicitado ao longo desta revisão).
Neste sentido, a saúde complexa e transdisciplinar como proposta por Spagnoulo e
Guerrini (2005) – com interação e troca de saberes, numa dinâmica construtiva e criativa, de
forma essencialmente transdisciplinar – parece ainda incipiente. As constatações desta revisão
nos colocam a impressão de que o cuidado em rede ainda é uma realidade distante, utópica
até, seja pela desmobilização de pessoas e grupos sociais para uma luta coletiva por melhores
55
condições de vida e saúde, como referem Spagnoulo e Guerrini (2005), seja pelo
esmaecimento político-ideológico e sociocultural dentro do próprio movimento de RPb
(RAMOS; PAIVA; GUIMARÃES, no prelo).
Entretanto, a existência de esforços mesmo que pontuais e localizados conferem
fôlego às manobras de reestruturação da assistência à saúde mental em rede e nos impulsiona
a retomar as palavras de Eduardo Galeano citadas por Amarante (2007, p. 104): “a utopia está
lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o
horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a
utopia? Serve para isso: para que eu caminhe”.
A utopia, então, nos serve de catapulta para que pulemos os muros que ora se
apresentam à efetivação teórico-prática da atenção à saúde mental em rede. Salientamos que
os “muros” aos quais nos referimos assumem a conotação de barreiras ideológico-
paradigmáticas que, ao transporem o campo imaginário-conceitual, se concretizam no
cotidiano da RAPS como um divisor de espaços. No interior dessa divisão, ao mesmo tempo
abstrata e concreta, se desenvolve a predisposição a um “sectarismo assistencial” que separa,
ao passo que sitia, “o que compete à saúde/doença mental” como se o indivíduo não fosse um
todo complexo e como se a saúde mental pudesse ser dissociada da atenção à saúde.
Poderes, rótulos, julgamentos, preconceitos e ganância, para Rodrigues e Scóz (2003),
conformam esses “muros” nas mentes dos sujeitos que, fomentados pelo saber médico
psiquiátrico clássico de compreensão do hospital como fonte curativa e pelo estigma do
diferente, do louco, do insano, obstaculizam a essência do cuidado em saúde mental.
Acreditamos que as formas como os atores da RPb e da RAPS compreendem e lidam com a
“loucura” e com o “louco” – certamente impregnados por essas barreiras ideológicas –
determinam a forma como essa rede se concretiza no cotidiano dos serviços, inclusive os
modos como os atores, serviços e setores se (des)articulam com o intuito de oferecer um
cuidado integral ao sujeito em sofrimento psíquico.
56
3 BJETIVOS
3.1 OBJETIVO GERAL
Analisar a Rede de Atenção Psicossocial do município de Natal/RN, considerando o cuidado
em território e seus modos de articulação.
3.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS
- Elaborar um desenho da Rede de Atenção Psicossocial de Natal, relacionando a capacidade
instalada municipal, os fluxos assistenciais da atualidade e as parcerias intersetoriais
diretamente relacionadas às linhas do cuidado em atenção psicossocial;
- Compreender os modos de articulação entre os serviços que compõem a Rede de Atenção
Psicossocial de Natal, considerando a continuidade do cuidado no território;
- Propor estratégias para potencializar a Rede de Atenção Psicossocial de Natal, com base nas
necessidades/limitações encontradas no cenário local.
57
4 MÉTODO
Essa sessão contempla o caminho metodológico percorrido para a abordagem do
objeto de estudo da presente investigação, e está dividida em dois tópicos, a saber: 4.1
Arcabouço teórico – no qual apresentaremos as lentes compreensivas que orientam nossa
visão/compreensão do fenômeno analisado; 4.2 Caracterização da pesquisa – que abordará as
questões operacionais, tais como, caracterização do tipo de estudo, cenário e sujeitos da
pesquisa, apresentação dos procedimentos de coleta e análise das informações, assim como
aspectos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos.
4.1 ARCABOUÇO TEÓRICO
O caminhar teórico desta tese buscou trilhar a interface entre a Saúde Mental e a
Saúde Coletiva, apoiando-se nos escritos foucaultianos sobre a loucura, na abordagem de
Eugênio Villaça Mendes acerca dos Modelos de Atenção e das Redes de Atenção à Saúde,
além de referências consagradas, e outras emergentes, no âmbito da Atenção Psicossocial e da
Reforma Psiquiátrica brasileira. Ademais, nos valemos do Pensamento Complexo, de
orientação moriniana, enquanto lente compreensiva da realidade e do fenômeno em foco
(MORIN, 2015, 2013, 2001). Salientamos que os princípios fundamentais da Teoria da
Complexidade sobre os quais nos subsidiaremos nesta tese foram explicitados ao longo da
revisão de literatura.
O Pensamento Complexo teve sua origem nas correntes de pensamento sistêmico,
estas, por sua vez, originárias da biologia, da cibernética e da física, tendo suas primeiras
elaborações a partir do biólogo Ludwig Von Bertalanffy através da obra seminal “Teoria
Geral dos Sistemas”, lançada no ano de 1973. Apoiados em Minayo (2014), pontuamos como
principais características da teoria geral de Bertalanffy a observação de uma ordem
hierárquica na organização dos seres vivos que, superpostas em vários níveis, vão dos
sistemas físicos e químicos aos biológicos, sociológicos e políticos; esses sistemas são abertos
e interconectados, instáveis em permanente dinamismo recursivo, tendo na interação entre
eles um ponto problemático para todos os campos científicos.
O paradigma sistêmico pode ser traduzido em várias expressões, das quais se
destacam: o Pensamento Complexo de Edgar Morin; o Paradigma da ordem a partir da
desordem fundamentado por Ilya Prigogine; o Paradigma da auto-organização a partir do
ruído com base em Henri Atlan, além da referida Teoria Geral dos Sistemas. Diferencia-se
58
das teorias tradicionais em três dimensões epistemológicas: 1) a noção de complexidade dos
fenômenos, a partir da qual se admite o entrelaçamento de causas na constituição dos eventos;
2) o reconhecimento da instabilidade do mundo dos seres vivos – e, por conseguinte, do
próprio tecido social – o que abre o precedente para o reconhecimento de uma lógica na
desordem; 3) a ideia da intersubjetividade na constituição e compreensão da realidade,
opondo-se à crença da existência de um conhecimento/de uma verdade que seja externa ao
sujeito (MORIN, 2013; MINAYO, 2014).
Atualmente, apesar de não propor técnicas de investigação científica, o pensamento
sistêmico vai conquistando espaço como uma lente compreensiva que se propõe a subverter a
mente compartimentalizada, iluminando as interações e buscando fazer as diferenças e as
oposições se comunicarem. Tais características mostram-se relevantes para o campo da saúde,
tendo em vista as múltiplas facetas que envolvem os processos saúde/doença. Apesar de ainda
constituir-se como prática incipiente no campo da saúde, o pensamento sistêmico apresenta-se
como um caminho de possibilidades que se abrem para a investigação de objetos que
envolvem a vida, o mundo, as práticas sociais, em que pese as dificuldades epistemológicas e
práticas para a transposição das dicotomias analíticas (MINAYO, 2014; ALMEIDA-FILHO,
2006).
O Pensamento Complexo, também referenciado como Complexidade, Teoria da
Complexidade ou Paradigma Complexo, vem sendo desenvolvido, na tradição moriniana,
desde a década de 1960. Edgar Morin traça seu caminho a partir da teoria da informação, da
cibernética, da teoria dos sistemas, do conceito de auto-organização e da microfísica, mais
especificamente do conceito de sistema aberto no qual sujeito e objeto mantem relação
(sujeito/ambiente; sistema/ecossistema). O reconhecimento das relações sujeito/objeto
representa um dos precedentes que se abre para a virada paradigmática que propõe a
integração das realidades banidas pela ciência clássica (MORIN, 2015).
Neste sentido, a complexidade é entendida como “o tecido de acontecimentos, ações,
interações, retroações, determinações, acasos que constituem nosso mundo fenomênico”, “se
apresenta com os traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da desordem, da
ambiguidade, da incerteza”. De tal modo, a Teoria da Complexidade ambiciona exercer um
pensamento capaz de lidar com o real e com ele dialogar e negociar, privilegiando as
“articulações entre os campos disciplinares que são desmembrados pelo pensamento
disjuntivo, que isola o que separa e oculta tudo que religa, interage, interfere” (MORIN, 2015,
p. 13).
59
O pensamento complexo é animado por uma tensão permanente entre a aspiração a um
saber não fragmentado, não compartimentado, não redutor, e o reconhecimento do inacabado
e da incompletude de qualquer conhecimento. Reconhece a inventividade e a criatividade,
reintegra o acaso, resgata a unidade complexa que liga o pensamento que reduz e o
pensamento que engloba, além do reducionismo e do holismo, numa dialetização (MORIN,
2015).
Para Santos (2013), utilizar-se das lentes compreensivas do Pensamento Complexo
significa assumir princípios e pressupostos teóricos importantes e significativos como
intersubjetividade, incerteza, interioridade, mudança, auto-organização, emergência,
causalidade circular e multidimensionalidade. Em outras palavras, é reconhecer o princípio da
incompletude e da incerteza – as imperfeições do cotidiano. Isto posto, admitimos a
coexistência dos referidos princípios como produtos e produtores do tecido social que serve
como pano de fundo para a concretização da RAPS em território.
Salientamos que na linguagem da complexidade moriniana, a causalidade circular
refere-se, basicamente, a ideia recursiva que compreende “que tudo que é produzido volta-se
sobre o que o produz num ciclo ele mesmo auto-constitutivo” (MORIN, 2015, p. 74). Neste
sentido, rompe com a ideia linear de causa-efeito que, com base na História Natural da
Doença e na tríade agente-meio-hospedeiro, busca explicar os processos saúde-doença.
Justificamos nossa opção teórico-conceitual inicialmente por ser uma abordagem que
se contrapõe ao reducionismo e ao determinismo positivista hegemônico, nos possibilitando
lançar um olhar ampliado diante do fenômeno estudado, que é essencialmente complexo. Por
outro lado, consideramos que os seres humanos e a própria sociedade – porque não dizer dos
Sistemas de Saúde? – estão em constante construção-desconstrução-reconstrução, daí a
necessidade de lidar com o inesperado e com as certezas provisórias. Assim sendo, inspirados
em Amarante (2007, p. 18) ao referir que a própria “natureza do campo da saúde mental vem
contribuindo para que comecemos a pensar de forma diferente, não mais com este paradigma
da verdade única e definitiva, mas sim em termos de complexidade, de simultaneidade, de
transversalidade dos saberes”, reconhecemos, como Arruda et al. (2015), a possibilidade do
diálogo entre o pensamento complexo e os fenômenos envolvidos na busca da integralidade
das RAS, e, por extensão, da RAPS.
Por fim, para analisarmos a RAPS julgamos pertinente nos subsidiarmos dos
pressupostos teórico-filosóficos do Pensamento Complexo para, assim como refere Minayo
(2014), iluminarmos seus pontos cegos, nos movimentando no terreno das inter-relações e
interconexões. Ademais, compactuamos com o posicionamento de Santos (2013, p. 94) ao
60
afirmar que “pesquisar a partir do enfoque da complexidade implica em dar ênfase àquilo que
liga, religa e sustenta os vínculos entre os sujeitos da pesquisa, garantindo a construção, a
produção e a criação do conhecimento científico”.
4.2 CARACTERIZAÇÃO DA PESQUISA
Trata-se de uma pesquisa com abordagem qualitativa e enfoque exploratório-
descritivo que teve a Rede de Atenção Psicossocial da cidade do Natal-RN como objeto de
estudo. Foram utilizados o grupo focal e a observação descritiva como técnicas para
construção dos dados, sendo estes analisados de acordo com as orientações da análise de
conteúdo temática. Trabalhamos, nesta tese, com a perspectiva da “construção” ou invés da
coleta de dados. Nossa posição se fundamenta na própria linguagem da Complexidade que
admite a realidade como algo em construção, de modo que não está pronta/acabada e, como
tal, não é passível de ser captada ou coletada
A abordagem qualitativa é indicada devido a sua característica de buscar a questão do
significado e da intencionalidade dos atos presentes nas relações e nas estruturas sociais,
valorizando-se os aspectos subjetivos, que por natureza são impossíveis de serem sintetizados
em dados estatísticos. Para Minayo (2000, p. 11) essa é uma abordagem que não se preocupa
em quantificar, mas em “explicar os meandros das relações sociais consideradas essência e
resultado da atividade humana, criadora, efetiva e racional, que pode ser apreendida através
do cotidiano, da vivência, e da explicação do senso comum”.
O enfoque exploratório-descritivo, comum em estudos que se propõe a analisar e
descrever determinado fenômeno, apresenta-se pertinente a nossa pesquisa pelo fato de
possibilitar o aumento da familiaridade entre pesquisador e sociedade, fato ou fenômeno, bem
como o acúmulo de informações detalhadas sobre o objeto de estudo.
A pesquisa foi realizada no município de Natal, capital do Estado do Rio Grande do
Norte, cuja população estimada para o ano de 2017 foi de 885.180 habitantes distribuídos em
167,264 km2 de extensão territorial (IBGE, 2018). Atualmente, a rede de serviços de saúde do
município está dividida em cinco Distritos Sanitários (DS), a saber: Sul, Leste, Oeste, Norte I
e Norte II.
Neste cenário, estudamos serviços de diversos níveis de atenção à saúde – primária,
secundária e terciária – que compõem a RAPS da cidade em foco com vistas a atingir a maior
aproximação possível à realidade da assistência à saúde mental em rede.
61
Os serviços nos quais as informações foram construídas foram selecionados de
maneira aleatória dentro da representação de cada DS, buscando contemplar os diversos
componentes da RAPS (em conformidade com a capacidade instalada no município), assim
como os cinco DS da cidade. De tal modo, compuseram o cenário da pesquisa cinco USF,
sendo uma em cada DS, quatro CAPS, sendo dois localizados no DS Oeste, dois no DS Leste,
uma UPA situada no DS Norte II, a Unidade de Atenção Psicossocial localizada no Hospital
Universitário Onofre Lopes (UAP/HUOL) e um Serviço Residencial Terapêutico, ambos
localizados no DS Leste. Tais unidades de saúde encontram-se representadas, na figura 2
(página 62), por ícones em formato de estrela. Além dos serviços contemplados no estudo em
tela, a referida figura apresenta o mapa do município, contendo a divisão da cidade por DS,
bem como a localização de cada bairro. Estas informações serão importantes para
compreendermos melhor o desenho da RAPS Natal/RN, o qual será apresentado na figura 3
(página 74).
62
Figura 2 – Mapa da Cidade do Natal/RN dividido por Distrito Sanitário e contendo a
localização dos serviços que fizeram parte da pesquisa.
Fonte: Adaptado de Natal (2007).
Participaram do estudo 22 sujeitos – diretores, trabalhadores e usuários dos serviços
loci –, selecionados intencionalmente por conveniência, ou seja, de maneira não-probabilística
e privilegiando sujeitos sociais que julgamos dispor de uma visão abrangente sobre a
dinâmica dos serviços da RAPS, suas dificuldades e potencialidades, assim como do trabalho
em rede. A construção da amostra seguiu orientações de Deslauriers e Kérisit (2010) e de
Dyniewicz (2009), sendo delimitada pelo critério da saturação teórica.
63
Para Minayo (2014, p. 197) o critério de saturação teórica refere-se ao “conhecimento
formado pelo pesquisador, no campo, de que conseguiu compreender a lógica interna do
grupo ou da coletividade em estudo”, o que é balizado à medida que se consegue o
entendimento das homogeneidades, da diversidade e da intensidade das informações
necessárias para a pesquisa que se pretende empreender.
Como critérios de inclusão, utilizamos para os diretores dos serviços selecionados
como cenário da pesquisa o desempenho de funções relacionadas à gestão/administração do
serviço. Para os trabalhadores, consideramos o exercício de funções assistenciais em um ou
mais serviços que compõem a RAPS/Natal. Para os usuários, pensamos a inserção em
serviços de saúde mental e participação na rotina e nas atividades neles desenvolvidas,
condições de comunicação durante o período de construção das informações e disponibilidade
para participar da sessão de grupo focal.
Foram excluídos da pesquisa os diretores e trabalhadores desligados de suas funções
ou desvinculados dos serviços, aqueles que estavam de licença, gozando férias ou de atestado
médico no período da construção de dados, o que aconteceu em um único caso. Quanto aos
usuários, seriam excluídos os que retirassem de maneira voluntária o seu consentimento para
participação da pesquisa, fato que não ocorreu.
A seleção dos sujeitos se deu durante as visitas in loco. Na ocasião, foram explicitados
os objetivos do estudo e o convite foi lançado aos trabalhadores, diretores e usuários,
considerando os critérios de inclusão já mencionados. Foi solicitado aos diretores e
trabalhadores que discutissem entre si e nomeassem, dentre eles, um profissional do serviço
para participar do grupo focal. Nossa intenção ao adotarmos tal postura foi possibilitar a
operacionalização da construção dos dados, ao passo que facultamos à participação àqueles
que se sentissem mais à vontade em debater a temática em grupo.
Explicitamos aos trabalhadores que durante o processo de seleção dos possíveis
sujeitos desta pesquisa eles observassem os seguintes pontos: dentre os trabalhadores
selecionados não deveria estar o diretor da unidade; deveriam ser representantes de categorias
profissionais diferentes da categoria do diretor – já que este também participaria da pesquisa
alocado em outro grupo (grupo dos gestores) –, para que assim fosse possível atingir um
maior número de representação das várias categorias profissionais que atuam na assistência à
saúde mental.
A construção dos dados aconteceu no período de maio a outubro de 2017 e contou
com a realização de sessões de grupo focal e observação descritiva de serviços e estratégias
que compõem a RAPS Natal/RN.
64
Para acesso aos registros sobre cobertura/capacidade instalada, fluxos assistenciais e
existência de parcerias intersetoriais, nos valemos de busca na bibliografia da área e em
informativos eletrônicos da saúde mental, na Secretaria Municipal de Saúde (SMS) – mais
especificamente na Coordenação Municipal de Saúde Mental – e junto aos gestores
responsáveis pelos serviços que compuseram o cenário do estudo. As informações
encontradas compuseram um desenho da RAPS/Natal que considera a capacidade instalada
por DS, os fluxos assistenciais e as parcerias intersetoriais diretamente relacionadas à linha do
cuidado em atenção psicossocial – o qual será apresentado nos resultados, página 74.
O grupo focal foi realizado tanto como técnica para construção dos dados quanto com
o intuito de complementar as observações do campo. Buscamos, com a aplicação desta
técnica, oportunizar aos participantes um ambiente propício ao debate e discussão sobre a
RAPS/Natal, o que nos possibilitou ter acesso a informações privilegiadas dentro do contexto.
Para Minayo (2014) o grupo focal é um tipo de entrevista ou conversa que se
estabelece em grupos pequenos e homogêneos e que objetiva obter informações e aprofundar
a interação entre os participantes e entre eles e o pesquisador. A referida técnica de coleta de
dados possibilita a reflexão sobre uma proposta ou tema, ao mesmo tempo em que se ouvem e
se discutem respostas/propostas uns dos outros; as discussões que acontecem dentro do grupo
focal não precisam, necessariamente, chegar a um consenso (DYNIEWICZ, 2009).
Foram realizadas quatro sessões de grupos focais, sendo uma com gestores que contou
com a participação de sete sujeitos, uma com seis trabalhadores e duas sessões com o mesmo
grupo de usuários, contando a primeira sessão com nove participantes e a segunda com seis.
Informamos que a ausência de três sujeitos na segunda sessão do grupo com os usuários foi
justificada por indisponibilidade de ordem pessoal dos sujeitos em comparecer no dia e
horário marcados. Certamente, esse desfalque trouxe alguma implicação para o produto final
do grupo, visto que cada indivíduo é único e traz dentro de si peculiaridades e diferentes
formas de interagir e de circular pela rede. Entretanto, mesmo com as ausências, conseguimos
atingir os objetivos da sessão que contou com reflexões e discussões potentes e
enriquecedoras. Resolvemos, então, manter o caráter aberto do grupo dos usuários e não
excluir esses indivíduos da pesquisa, entendendo que se esta exclusão se confirmasse, aí sim,
estaríamos desconstruindo a potência do grupo e da primeira sessão.
As sessões de grupo focal tiveram duração média de uma hora e meia (noventa
minutos), conforme indicação da literatura, e partiram de um roteiro que contou com duas
questões disparadoras (APÊNDICE A). As reuniões aconteceram na Escola de Saúde de
Natal, campus universitário sob a coordenação de um moderador (neste caso, a própria
65
pesquisadora) auxiliado por um relator, local de fácil acesso e previamente acordado com os
participantes, em horários adequados à disponibilidade dos envolvidos. As reuniões foram
gravadas em áudio e posteriormente transcritas e registradas, juntamente com as observações
e as citações dos participantes.
A observação descritiva foi utilizada como instrumento complementar para
aproximação à realidade empírica e focalizou os pontos que compreendem o objeto de estudo
da investigadora, os quais se encontram especificados no Apêndice B. Realizada entre os
meses de maio e outubro de 2017, contou a visitação às unidades de saúde que compuseram o
cenário da pesquisa e a estratégias do tipo fóruns, debates e capacitações que envolveram
gestores, trabalhadores, usuários, pesquisadores, estudantes e simpatizantes da saúde mental –
as quais serão detalhadas durante a apresentação dos resultados. Cada serviço e estratégia foi
visitado no mínimo duas vezes, tendo cada visita entre 1 e 4 horas de duração.
Em geral, a pretensão foi contemplar os serviços de saúde que atendem à demanda em
saúde mental no que se refere ao acolhimento dos usuários, aos caminhos percorridos por
usuários e profissionais dentro da RAPS/Natal e as interlocuções entre esta rede temática e
ações intersetoriais de suporte ao cuidado em saúde mental. O melhor dia e horário para as
visitas de observação foi acordado previamente com o diretor de cada serviço. Salientamos
que as observações encontradas foram registradas em um diário de campo, conforme
orientações de Minayo (2014). Neste instrumento, anotamos informações provenientes de
conversas informais, comportamentos ou expressões que diziam respeito ao tema da pesquisa,
ao modo como os processos investigados se organizam e funcionam na prática e
incongruências entre o que foi dito ao pesquisador e o que é feito na unidade.
Para análise dos dados utilizamos como referencial a análise de conteúdo temática.
Para Minayo (2014), fazer uma análise temática consiste em descobrir os núcleos de sentido
que compõem uma comunicação, cuja presença signifique alguma coisa para o objeto
analisado. Operacionalmente a análise de conteúdo temática desdobra-se em três etapas: 1)
Pré-análise: retomada das hipóteses e dos objetivos iniciais da pesquisa, seguida da leitura
flutuante do conjunto das comunicações, de modo que o pesquisador permita-se impregnar
pelo conteúdo e constituição do corpus; seguida da elaboração dos recortes e categorização;
2) Exploração do material: investigação dos dados brutos para que pudéssemos alcançar o
núcleo de compreensão do texto; 3) Tratamento dos resultados obtidos e interpretação, com
inferências e interpretações acerca dos achados.
Reconhecemos a tendência crescente de utilização de softwares para análise de dados
na pesquisa qualitativa, fomentada, inclusive, pela busca de reconhecimento e rigor
66
científicos, sistematização, credibilidade e transparência na análise dos resultados (SOUZA;
SOUZA, 2016). Algumas literaturas da área chamam atenção para desvantagens no uso de
pacote de softwares para fins de analise de dados qualitativos, alertando para a possibilidade
de perda de controle no processo de codificação ou mesmo excesso de codificações,
comprometimento da análise em profundidade, aumento desnecessário na quantidade de
dados recolhidos, além da impossibilidade de se separar o investigador do programa utilizado
para as análises (COSTA; REIS, 2017). Controvérsias à parte, optamos, nesta pesquisa, por
não utilizar softwares para análise dos resultados.
A postura adotada baseia-se na inclinação da pesquisadora ao processo de artesanato
intelectual inerente à pesquisa científica, principalmente à abordagem qualitativa. Nossa
inspiração vem de Gondim e Lima (2002) que, seguindo a esteira de Pierre Bourdieu,
concebem a pesquisa como um “artesanato”, ou seja, como um trabalho no qual está presente
a marca do autor. Sendo assim, interessa-nos como investigadores assumir, de fato, o papel de
artesão-chave em todas as etapas do estudo em tela.
Esta pesquisa seguiu os preceitos éticos e legais dispostos nas Normas para Pesquisas
Envolvendo Seres Humanos presentes na Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de
Saúde (BRASIL, 2013). Foi encaminhada para apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa do
Hospital Universitário Onofre Lopes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(HUOL-UFRN), recebendo aprovação desta instância em 03 de abril de 2017 – CAAE
65226817.5.0000.5292 e parecer 1.997.883 (ANEXO A). Salientamos que todos os sujeitos
da pesquisa leram e assinaram, em duas vias, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(APÊNDICE C).
Para o estabelecimento e manutenção do sigilo da identidade dos sujeitos da presente
pesquisa, atribuímos aos participantes pseudônimos. Fomos buscar inspiração nos pontos de
bordado em uma alusão ao “trabalho sobre tecido em que se criam ornatos com fios de
diferentes tipos introduzidos por meio de agulhas” (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 314).
Reconhecemos a semelhança entre o referido trabalho de artesanato e a RAPS na medida em
que a identificamos como uma trama ou um desenho de possibilidades de atenção à saúde,
construído pelo movimento dos atores num tecido social. Assim sendo, registramos nossa
homenagem a esses atores, verdadeiros artesãos do SUS e da RAPS, atribuindo-lhes nomes
dos diversos tipos de pontos utilizados na bordadura.
São 22 os sujeitos desta pesquisa, assim identificados: Anjour, Brocatelo, Treliça,
Areia, Aresta, Margarida, Caseado, Matiz, Abelha, Coral, Cordonê, Escada, Folha, Bainha,
Rococó, Pétala, Renascença, Ponto Cruz, Corrente, Estrela, Haste e Nó Francês. Salientamos
67
que a nomenclatura dos pontos foi distribuída aleatoriamente entre os sujeitos da pesquisa,
sem nos preocuparmos com qualquer tipo de semelhança de gênero ou de modelo.
68
5 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os resultados deste estudo são provenientes da realização de grupos focais e da
circulação por serviços e estratégias que compõem a RAPS Natal/RN – visita aos serviços de
saúde e à Coordenação Municipal de Saúde Mental, participação em reuniões do Fórum
Intersetorial4 promovido pela Prefeitura Municipal do Natal e do Fórum de Direitos Humanos
e Saúde Mental5, participação em oficinas e capacitações promovidas pela Unidade de
Atenção Psicossocial do Hospital Universitário Onofre Lopes (UAP/HUOL), visita ao Centro
de Convivência e Cultura (CC) e à Associação Potiguar Plural6. Este caminhar, que se
estendeu para além do espaço físico dos serviços de saúde e da especialidade psiquiátrica, nos
possibilitou vivenciar interações/conexões de saberes e fazeres, observar rotinas e construir
dados referentes à capacidade instalada municipal, aos fluxos assistenciais e às parcerias
intersetoriais voltadas para o campo da saúde mental municipal.
Vale ressaltar as dificuldades vivenciadas durante o processo de circulação pela rede e
de seleção dos sujeitos da pesquisa, especialmente no que se refere à adesão de diretores e
trabalhadores da Atenção Básica (AB), de trabalhadores do Serviço Residencial Terapêutico
(SRT) e da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) selecionados para compor o cenário desta
pesquisa. Apesar de diversas tentativas, tanto de modo presencial quanto via e-mail e/ou
aplicativo de mensagens de celular, não obtivemos resposta desses representantes acerca do
convite para participação na pesquisa.
É preciso comentar que ao longo da caminhada percebemos diferenças significativas
na forma como fomos recebidas/ouvidas por cada grupo de sujeitos. Com algumas exceções,
4 Evento realizado pelo Sistema Municipal de Políticas Públicas sobre Drogas (SISMUD) que visa sensibilizar os
profissionais sobre a importância da intersetorialidade e da interligação das secretarias para a resolução das
demandas. As reuniões do fórum são mensais e acontecem em três etapas: na primeira se concentram os serviços
dos DS Norte I e II; no segundo encontro se fazem presentes os representantes dos DS Leste, Oeste e Sul; na
terceira reunião é realizado o fórum geral com todos os DS. A cada mês é debatida uma temática específica,
previamente escolhida pelo comitê organizador. Constitui-se em um importante espaço para construção de
vínculo entre os profissionais de diversos setores. 5 As reuniões do Fórum de Direitos Humanos e Saúde Mental acontecem nas dependências do Departamento de
Saúde Coletiva da UFRN e reúne gestores (inclusive representantes das coordenações estadual e municipal de
saúde mental), trabalhadores, usuários, estudantes e pesquisadores. Em reuniões mensais, debatem sobre o
cenário estadual e municipal da saúde mental, além de abordarem temas de relevância política para a
consolidação da RPb e do cuidado em rede territorial de atenção. 6 A Associação Potiguar Plural, ou simplesmente Plural, é uma organização complexa em significado e atuação
e, como tal, difícil de ser definida em caracteres. Apresento-a como um grupo formado por psicólogos,
estudantes do curso de Graduação em Psicologia, usuários da saúde mental e qualquer pessoa inclinada à
temática. Apresenta fins terapêuticos e políticos e se destina a oferecer apoio ao usuário da saúde mental,
estimular a autonomia e a livre circulação pela cidade. É também um espaço de luta pela cidadania e por um
cuidado digno, espaço de diálogo e de fortalecimento do usuário, tendo como marca a sua inserção e
representação em várias instâncias e eventos como Conselho Municipal de Saúde, Congressos (ABRASME,
ABRASCO, entre outros), fóruns, seminários e afins, sempre na luta “por uma sociedade sem manicômios”.
69
os técnicos se mostraram arredios, foi mais difícil o estabelecimento de um diálogo efetivo,
principalmente nos serviços da APS. Pareciam absorvidos pela rotina do serviço, ávidos por
seguirem desempenhando suas atividades, tal como Charles Chaplin em Tempos Modernos –
guardadas as devidas proporções. Sem desconsiderar o compromisso com a produtividade, o
desejo seria também de fugir da exposição provocada pela pesquisa? Medo de trazer à tona
práticas há tempos desenvolvidas sob o tapete do comodismo e que não são bem vistas no
novo contexto da atenção em rede? A temática “saúde mental”, ainda que inerente ao
processo de trabalho em rede de saúde, não interessava a esses indivíduos? Questionamentos
que por ora ficam sem resposta, pois escapam do objeto em análise, ainda que o tangenciem.
Deixamos aqui o alerta, plantamos a semente para que novos estudos sejam empreendidos na
perspectiva de ensaiar respostas para estas questões.
Por outro lado, sentimos os usuários mais abertos ao diálogo. A possibilidade de
participar da pesquisa parecia uma oportunidade para sair da invisibilidade, um espaço
potente de fala e de exercício do “ser gente”.
O grupo focal formado pelos diretores das unidades contou com a participação de sete
indivíduos, sendo que destes dois eram representantes da APS (mais especificamente de
USF), três eram diretores de CAPS (cujas modalidades não serão reveladas para não expor, de
maneira indireta, a identidade dos sujeitos), um sujeito representava a UPA e um participante
na representação do SRT. Em relação às categorias profissionais dos sujeitos do grupo,
conseguimos atingir representatividade interdisciplinar, o que confere abrangência de pontos
de vista em relação ao fenômeno estudado. De modo que foram dois biólogos, uma jornalista,
um enfermeiro, uma assistente social, uma nutricionista e uma técnica de enfermagem.
De maneira geral, a discussão foi harmônica com pouquíssimos pontos de divergência
entre os participantes. O grupo evitou embates, contradições entre serviços e entre
posicionamentos, expressando-se de forma suave. O conflito, quando gerado, parecia ameaçar
a todos. Os diretores foram enfáticos ao abordarem a fragilidade e insipiência da RAPS,
entretanto, comentaram algumas estratégias e ações pontuais que assinalam avanços discretos
na articulação da rede. Identificamos nas falas pontos de tensão dignos de serem pensados e
debatidos. A vivência do grupo focal aproximou os diretores e, no mínimo, tensionou a rede.
O grupo focal realizado com os trabalhadores dos serviços que compuseram o cenário
desta pesquisa contou com a participação de seis indivíduos, sendo que destes um era
representante da APS (mais especificamente da USF), quatro do CAPS – nas modalidades II,
III, AD e infantil – e um da UAP/HUOL. Em relação às categorias profissionais tivemos uma
70
profissional de educação física, uma terapeuta ocupacional, uma Agente Comunitária de
Saúde, uma técnica de enfermagem e duas psicólogas.
Em linhas gerais, o grupo enaltece os pontos positivos da RAPS, atenta para os
avanços no cuidado em saúde mental no território e na própria rede, comentam sobre a
existência de uma boa articulação, apesar dos gargalos emergirem durante os discursos, tais
como, dificuldade de articulação entre UBS e Centro de Referência Especializado em
Assistência Social (CREAS), entre CAPS e UBS, fragilidade da rede de urgência e
emergência. Concordam na maioria dos pontos colocados para a discussão, havendo conflito
em relação à parceria intersetorial SUS e Sistema Único de Assistência Social (SUAS)
quando a maioria dos serviços relatam dificuldades, com exceção do CAPS i, e em relação ao
isolamento da RAPS e sua tendência de valorização da especialidade, afirmação com a qual
todos concordaram, com exceção de um sujeito da pesquisa representante de CAPS.
Foi evidente a frágil participação da APS frente à discussão de pontos nevrálgicos e de
nítidas críticas feitas pelos representantes dos serviços especializados quanto à atuação da AB
no cuidado em saúde mental no território. Tal fato se revela também na abstenção desse ponto
da rede frente ao convite e às sucessivas tentativas da pesquisadora em conseguir
representação desse público no grupo focal em questão. A relatora se questiona sobre a
influência de relações de saber/poder no silenciamento da participante ou, por outro lado, uma
suavização das críticas e embates das demais participantes do grupo sobre a UBS/ESF frente
às limitações já comentadas.
O grupo focal realizado com os usuários dos serviços que compõem a RAPS Natal
representou um grande desafio: discutir RAS com um público que esteve à margem desse
processo por décadas, experienciando as políticas de saúde a partir das atividades
desenvolvidas pelos técnicos no cotidiano dos serviços e do SUS.
Neste caso, para fazer fluir a discussão foram utilizadas estratégias de transposição da
linguagem, de modo a aproximar a temática discutida à realidade e ao contexto de vida dos
participantes. Para tanto, as questões disparadoras do debate foram inseridas paulatinamente,
daí justifica-se a realização de duas sessões de grupo focal com o mesmo grupo. A primeira
sessão buscou discutir como os indivíduos fazem quando precisam de cuidados na área da
saúde mental; na segunda sessão discutiu-se sobre o tratamento atual, os serviços de saúde
mental e o caminhar desses usuários pela RAPS.
Participaram da pesquisa nove sujeitos. São usuários que circulam por diversos
serviços de saúde: CAPS, ambulatório de saúde mental, Centro de Convivência (CC), UBS,
71
além da Associação Potiguar Plural. Salientamos que na segunda sessão três usuários não
puderam comparecer, ficando esta com seis participantes.
Na visão da relatora, o grupo congrega pessoas que não temem falar de seus conflitos,
limitações, traumas e angústias, assumindo publicamente seus acometimentos mais graves
como tentativas de suicídio e episódios de sofrimento vivenciados nas instituições
psiquiátricas. De maneira geral, a discussão fluiu com raros pontos de divergência de opinião,
o que aconteceu em relação à experiência da internação psiquiátrica e à gestão autônoma de
medicação.
Reconhecemos nessas sessões de grupo focal grande importância para a formação de
redes e politização da visão sobre a saúde mental. Durante o segundo encontro um dos
participantes aproveita para desmistificar o que ele acredita ser comum nas reuniões da saúde
pública que é o fato das pessoas falarem sobre saúde de uma forma burocrática e normatizada
o que, no entender do sujeito da pesquisa, contribui para as pessoas ficarem isoladas. Com
isso, o participante conclama a ampliação e aproximação – religação – dos vínculos.
O material proveniente das sessões de grupo focal passou por análise e foi
categorizado de acordo com a proximidade semântica dos núcleos temáticos identificados. A
exposição dos resultados foi dividida em duas categorias analíticas construídas a partir do
corpus originário das transcrições dos grupos focais, a saber: 5.1 Dos fios emaranhados ao
alinhavo de uma rede, que consiste na apresentação da RAPS Natal/RN tanto do ponto de
vista gráfico – onde nos esforçamos para dispor em um desenho da rede a capacidade
instalada por DS, os fluxos assistenciais identificados, assim como as parcerias intersetoriais
diretamente relacionadas à linha do cuidado em atenção psicossocial – quanto no tocante às
características do cuidado em saúde mental de base comunitária desenvolvido no município –
ao que se tem acesso mediante os recortes de falas dos sujeitos da pesquisa. 5.2 Sobre a
articulação da RAPS: o religar de fios e de “nós” alinhavando a rede, na qual serão
discutidas as estratégias adotadas por atores, serviços e setores para promover interconexões
que favoreçam a continuidade do cuidado de saúde mental em território.
Optamos por apresentar as falas dos sujeitos da pesquisa, os pontos de reflexão e de
discussão reunidos em um grande grupo. Isto porque partimos do pressuposto de que todos os
participantes da pesquisa são, antes de tudo, atores da RAPS, independentemente da posição
que ocupam dentro da rede – diretores, trabalhadores ou usuários. Reconhecemos que cada
um desses indivíduos vivencia o cuidado em rede territorial em diferentes perspectivas,
porém, interessa-nos religar saberes e pontos de vista numa articulação pulsante que almeja
extrapolar “lugares” ou funções e valorizar vivências e experiências. Ademais, consideramos
72
também que estes indivíduos estão em permanente interação dentro do cotidiano dos serviços
e da rede como um todo, o que é particularmente interessante para esta pesquisa.
As falas serão apresentadas seguidas da identificação, por pseudônimo, dos sujeitos.
Acompanhará o pseudônimo, a letra D para identificar a fala do diretor de unidade, a letra T
para o trabalhador e U quando se tratar da fala de usuário – como em D_Anjour, T_Cordonê,
U_Estrela, por exemplo. Optamos por identificar a posição de onde se fala – diretor,
trabalhador ou usuário – na expectativa de reconhecer indícios de hierarquia nas relações em
rede, de identificar onde cada um desses sujeitos tem voz, ou seja, quem tem o monopólio da
fala sobre determina temática, e ainda perceber a influência das relações de poder nas formas
de viver/ser a rede e de circular por ela.
5.1 DOS FIOS EMARANHADOS AO ALINHAVO DE UMA REDE
Da circulação pela RAPS emergiram diversas informações, um verdadeiro
emaranhado de fios que nos revela a complexidade desta rede. Nesta tessitura, os atores em
circulação e atividade no território conformam, em conjunto com o contexto social no qual
estão inseridos, uma trama que agrega tensões, contradições, instabilidades e incertezas. Na
RAPS, são várias as portas de entrada e as possibilidades de saída, num itinerário curvilíneo,
por vezes labiríntico, marcado por barreiras físicas, ideológicas e institucionais.
Com o auxílio do Pensamento Complexo, buscamos compreender esse emaranhado de
fios e desvendar a atualidade da RAPS Natal/RN. Para tanto, admitimos como pressuposto
fundamental que esta é uma realidade inacabada e, como tal, em constante transformação,
sofrendo influências dos micro e macro contextos nos quais se concretiza (MORIN, 2015).
Assim sendo, o panorama que será apresentado representa mais um esboço de uma
rede que se encontra em construção; alinhavada, pois em fase de expansão e criação de
serviços, em que pese a redução de equipes, e com fluxos assistenciais embrionários –
especialmente se considerarmos a implementação da linha de cuidado em atenção psicossocial
–, embora haja um esforço de pactuação e repactuação de fluxos assistenciais entre atores,
serviços e setores.
Os resultados reunidos nesta categoria serão apresentados em dois tópicos. O primeiro
deles, 5.1.1 A rede alinhavada, contemplará o desenho da RAPS Natal/RN. Consideramos,
neste desenho, a rede viva que se constrói em território mediante a circulação e interação de
gestores, trabalhadores e usuários. Uma rede que ultrapassa os limites do normativo – portaria
73
3.088/2011 – pois congrega serviços e modelos de atenção para além do legalmente instituído,
mas que foram considerados pela representatividade que alcançam no cenário estudado.
No segundo tópico, 5.1.2 O cuidado em território: bordando ilhas de resistência entre
as remanescências do manicômio, abordaremos as características do cuidado produzido em
território que, como veremos, influenciam e são influenciadas pelos modos de articulação da
própria rede de atenção.
5.1.1 A rede alinhavada
Na perspectiva de desembaraçar os fios dessa trama complexa, iniciamos com a
apresentação da RAPS Natal/RN. Nossa intenção é desvendar os dispositivos territoriais,
assim como os fluxos assistenciais e parcerias intersetoriais referentes à linha de cuidado da
atenção psicossocial identificadas em nível municipal para, então, compreendermos como se
tem desenvolvido o cuidado continuado em território.
O desenho apresentado na figura 3 (página 74) foi elaborado a partir de informações
provenientes dos sites da SMS, da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo
(SEMURB/Natal), da Sala de Informação em Saúde da Prefeitura Municipal do Natal, do
Cadastrado Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), do Observatório de Direitos
Humanos da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SEMDES/Natal), além de
dados provenientes da Coordenação Municipal de Saúde Mental, de anotações feitas em
diário de campo da pesquisadora e de relatos dos sujeitos desta pesquisa.
Na figura, que tem como imagem de fundo o mapa do município do Natal/RN
recortado de acordo com a distribuição dos DS, temos a localização dos componentes da
referida rede de atenção, congregando os itens instituídos em portaria ministerial (Portaria
3.088/2011) e os dispositivos extra-hospitalares que atendem à demanda em saúde mental,
ainda que se afiliem a outro modelo assistencial – como é o caso dos Centros de
Especialidades Clínicas, Ambulatórios de saúde mental e unidades mistas. É importante
ressaltar que consideramos apenas os serviços vinculados ao SUS.
74
Figura 3 - Rede de Atenção Psicossocial de Natal/RN, considerando capacidade instalada por Distrito Sanitário, fluxos
assistenciais e parcerias intersetoriais.
Fonte: Elaborado pela pesquisadora, 2018.
75
Para proporcionar melhor visualização e compreensão do desenho, optamos por expor
em cada DS o ícone que identifica a existência de determinado componente, não estando
relacionadas, no desenho, as quantidades e/ou tipos específicos de serviços dos quais dispõe a
rede objeto de análise. Dito de outra forma, consta no desenho a variedade de componentes
disponíveis em cada DS. Para ter acesso a maiores detalhamentos sobre a capacidade instalada
no município (serviços e localizações), conferir o Apêndice D.
Observando o desenho, percebe-se uma variedade considerável de elementos, o que
confirma o crescimento/desenvolvimento da RAPS Natal/RN. A rede dispõe dos seguintes
componentes/serviços: no componente Atenção Primária em Saúde, identificamos a
existência de Posto de Saúde, Unidades Básicas de Saúde, Unidades de Saúde da Família,
Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), Equipes de Consultório na Rua e o Centro de
Convivência e Cultura; no componente Atenção Psicossocial Especializada, identificamos a
existência de Centros de Atenção Psicossocial dos tipos II, III, AD II, AD III e infantil; na
Atenção de Urgência e Emergência encontram-se no território Unidades de Pronto-
Atendimento (UPA) e o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), além do
Pronto Socorro do Hospital João Machado (PS/HJM); no que se refere à Atenção residencial
em caráter transitório encontra-se, em fase de construção, a Unidade de Acolhimento da
Saúde; no componente Atenção Hospitalar, o município dispõe de enfermarias especializadas
em hospitais gerais – como é o caso da UAP/HUOL e dos leitos disponíveis no Hospital
Municipal de Natal, além destes mencionam-se os leitos do Hospital Maria Alice que ainda
não foram habilitados (e por isso não foram considerados no desenho) – e de serviços
hospitalares de referência para a atenção às pessoas com sofrimento mental e necessidades
decorrentes do uso de álcool e outras drogas como o HJM, a Casa de Saúde Natal e a Clínica
Santa Maria, que apesar de não estarem oficialmente relacionados à RAPS, têm participação
significativa no cotidiano da saúde mental do município em foco; em relação às estratégias de
desinstitucionalização, localizamos os Serviços Residenciais Terapêuticos; não identificamos
até o final do prazo estipulado para a construção de dados desta pesquisa – outubro de 2017 –
nenhuma iniciativa relacionada ao componente Reabilitação Psicossocial (que são aqueles
referentes às iniciativas de geração de trabalho e renda e às cooperativas sociais).
Ainda em relação ao desenho da rede, comentamos a coexistência de modelos
assistenciais no território, fato que se evidencia através da permanência de serviços como
unidades mistas, ambulatórios e Centros de Especialidades Clínicas Integradas – os CEI´s. Ao
que tudo indica, tais serviços ainda possuem representatividade considerável no cuidado em
atenção psicossocial no município.
76
Sobre esta questão, Mendes (2011, p.102), em análise histórica da saúde pública
brasileira, alerta para os esqueletos da matriz “inampsiana” presentes na atualidade. Tais
esqueletos são representados por serviços do tipo centros de especialidades médicas,
policlínicas, pequenas unidades isoladas produtoras de cuidados especializados, entre outros e
vêm resistindo e se multiplicando com novos significantes, porém mantendo “a mesma
significação indevida das antigas catedrais flexnerianas”. O que preocupa, na realidade
estudada, é que muitos usuários só tem acesso a esse tipo de cobertura, o que certamente traz
implicações para a integralidade do cuidado e para o próprio modelo de atenção psicossocial.
Obviamente, a reorganização dos serviços per si não é capaz de transformar paradigmas e
processos de trabalho, mas, certamente, a coexistência de lógicas paralelas e não
complementares de atenção dentro da RAPS ao invés de promover auto-organização e avanço
da rede, fragilizam-na.
Analisando por DS podemos perceber como área de menor cobertura assistencial, em
termos de variedade de serviços disponíveis, o DS Norte I que, em se tratando de serviços da
RAPS definidos em portaria ministerial, apresentam apenas aqueles alocados na APS e a UPA
como referência para atendimento de urgências psiquiátricas. Avaliamos o DS Leste como o
mais completo em termos de variedade de componentes da RAPS já que lá encontramos
serviços da APS, elementos da atenção psicossocial especializada, SRT, enfermarias de saúde
mental em hospital geral, além de unidade mista, ambulatórios, CEI´s e as sedes de DS e da
própria SMS.
Na tentativa de suprir os vazios assistenciais nos DS e aumentar a capacidade de oferta
de serviços, existe uma pactuação em nível municipal que promete ampliação da cobertura.
No caso específico da atenção psicossocial, esta pactuação se dá da seguinte maneira: o CAPS
II Oeste oferece cobertura aos DS Oeste, Norte I e Norte II; o CAPS i Oeste, por sua vez,
atende a demanda de todo o município; o CAPS III Leste, abrange os DS Leste e Sul; o CAPS
AD III Leste é referência para os DS Leste, Oeste e Sul; e finalmente o CAPS AD II Norte
atende às demandas suscitadas pelos DS Norte II, Norte I e Oeste. No que se refere ao
atendimento em nível hospitalar o que se dispõe é: o HUOL e o Hospital Municipal de Natal
(HMN), ambos localizados no DS Leste, oferecem cobertura assistencial para todo o
município; a Casa de Saúde Natal, a Clínica Santa Maria e o HJM, situados no DS Sul
abrangem a demanda de todos os DS.
Para pensarmos a cobertura assistencial e até mesmo a repercussão da distribuição
espacial dos serviços para a continuidade do cuidado em território revisitemos, ainda que
brevemente, os principais modos de organização sanitária da cidade.
77
A cidade do Natal/RN está dividida em quatro regiões administrativas – Norte, Sul,
Leste e Oeste – e em cinco DS – Norte I e II, Sul, Leste e Oeste, como mencionado no tópico
destinado à caraterização da pesquisa. Essa configuração sanitária entrou em vigor no ano de
2005 com o intuito de atender às peculiaridades sociodemográficas e sanitário-
epidemiológicas locais e à necessidade de intervenção do Poder Público com racionalização
estratégica de condutas (NATAL, 2007).
A Região Administrativa Norte ou Zona Norte congrega os DS Norte I e Norte II e é a
maior da cidade, tanto em área territorial quanto em termos população (é a que mais cresce),
acomodando 38,3% dos habitantes e atingindo a terceira posição em termos de densidade
demográfica dentre as quatros zonas da cidade. Está separada das demais zonas de Natal pelo
Rio Potengi. A Zona Sul, na qual está localizado o DS Sul, é a segunda maior zona de Natal
em extensão territorial e a terceira mais populosa da cidade, com 20,5% da população
natalense. É a região de maior renda mensal média por domicílio e de menor densidade
demográfica. A Zona Leste é a menor de Natal, tanto em termos populacionais, com cerca de
14,1% da população do município, quanto em extensão territorial e também a que menos
cresce, apresentando maior densidade demográfica frente às demais. Compreende bairros
importantes para o comércio e é a região mais central da cidade. Nela está a segunda maior
renda média mensal por domicílio. A Zona Oeste, na qual está localizado o DS Oeste, é a
segunda mais populosa do município, concentrando 27,1% da população de Natal, a terceira
maior em área territorial e a segunda no que se refere à densidade demográfica. Possui o
maior índice de analfabetismo e a segunda menor renda média mensal por domicílio
(MEDEIROS, 2016; NATAL, 2014).
Ao observarmos a capacidade instalada apresentada na figura 3 (página 74) e
analisarmos o breve panorama ora explicitado, percebemos algumas inconsistências no
próprio processo de distritalização da cidade que podem influenciar o acesso e a circulação
dos indivíduos pelas linhas de cuidado. Pensando a linha de cuidado da atenção psicossocial,
já que é o objeto de estudo do presente trabalho, O DS Norte I, por exemplo, é o menos
assistido em termos de capacidade instalada, mesmo estando na área de maior vulnerabilidade
do município. O DS Leste concentra a maior variedade de serviços, sendo que é a menos
populosa e apresenta a segunda maior renda média mensal da cidade – um fato que sabemos
que influencia na procura por serviços públicos de saúde. Reconhecemos que a capacidade
instalada não é garantia de acesso aos serviços nem de qualidade do cuidado prestado.
Entretanto, julgamos pertinente trazer a temática à baila, principalmente se considerarmos o
contexto da atenção em rede territorial.
78
Outro ponto a ser considerado são as barreiras geográficas e as distâncias percorridas
pelos usuários na busca por cuidados em saúde, principalmente numa cidade de grandes
dimensões como é o caso da capital potiguar. A este respeito, um dos sujeitos da pesquisa
comenta:
É muito complicado para o usuário sair de uma área Oeste [que não tem
CAPS AD] – [ainda que tenha] como referência o CAPS AD Leste ou o
CAPS [AD] da Zona Norte – fazer esse trajeto quando ele teria muito mais
possibilidade de dar continuidade ao seu tratamento se ele estivesse numa
área do [seu] território (D_Brocatelo).
Quando pensamos em barreiras geográficas – a exemplo do Rio Potengi que separa a
Zona Norte das demais regiões de Natal – nos remetemos às possíveis implicações tanto para
o desenvolvimento desta área em relação às demais localidades do município quanto para o
acesso dos usuários aos serviços de saúde. Neste caso, o fluxo é dificultado seja ele partindo
dos demais DS rumo aos DS da Zona Norte, seja no sentido inverso. A partir da fala de
Brocatelo, ao mencionar a dificuldade vivenciada por usuários em busca de cuidado em
outros DS, pensamos o quão penoso é para o sujeito. Não só pelo tempo e o desgaste físico
que se empreende nesse trajeto, mas também pelo impacto financeiro do traslado, ainda que
seja feito por transporte coletivo.
O município de Natal/RN encontra-se em fase de construção de fluxos assistenciais no
que tange a linha de cuidado em atenção psicossocial. Ao longo da circulação pelo território e
em reflexões disparadas nas sessões de grupo focal, concluímos que na atualidade da RAPS
Natal coexistem dois caminhos percorridos por usuários e uma proposta de fluxo que tenta
ganhar corpo no cotidiano da rede. Para explorarmos esses fluxos assistenciais identificados
com a pesquisa, utilizaremos três situações ilustrativas e que estão esquematizadas na Figura
3 (página 74).
Imaginemos o território marcado por linhas invisíveis que representam as inúmeras
possibilidades de circulação e de interação entre atores, serviços e setores. Apesar de infinitas
possibilidades, é preciso, para fazer fluir a RAS, o estabelecimento do caminho que deverá ser
percorrido pelo usuário a partir da demanda que ele apresenta, e é justamente esse “caminho”
que buscamos tornar visível na Figura 3. Vale salientar, que os fluxos pactuados e
implementados no cenário estudado dizem respeito ao atendimento de urgência psiquiátrica.
A primeira situação está assinalada em linhas verdes e representa o fluxo
implementado até o término do período de construção de dados desta pesquisa. Ressaltamos
79
que ele é voltado para a urgência em saúde mental disparada pelo uso de substâncias
psicoativas (SPA). Assim sendo, a entrada desse usuário na RAPS Natal/RN pode acontecer
tanto via APS com encaminhamento para a atenção psicossocial especializada (CAPS),
quanto por demanda espontânea diretamente para o CAPS. Digamos, então, que o indivíduo
segue acompanhamento territorial no CAPS – ou APS, caso seja matriciado – e por algum
motivo apresenta a necessidade de um atendimento de urgência desencadeado pelo uso de
SPA. Neste caso, são duas as possibilidades: na primeira, o indivíduo segue diretamente para
o PS/HJM, levado por ambulância do SAMU ou em transporte particular, e lá permanecerá
até a estabilização do quadro, de onde retornará para seu domicílio e continuará seguindo o
acompanhamento territorial; na segunda, o indivíduo dirige-se até a UPA de seu território,
levado via ambulância do SAMU ou em transporte particular, chegando lá passa por um
acolhimento com classificação de risco no qual a equipe avalia e decide se este usuário poderá
ser estabilizado na própria UPA e na sequência voltar para o segmento territorial, ou se ele
deve ser encaminhado para tratamento no HJM, de onde retornará ao domicílio. Ressaltamos,
que das situações elencadas a que acontece com mais frequência é a segunda. A
implementação do referido fluxo assistencial para SPA promoveu a diminuição dos
atendimentos de urgência psiquiátrica no PS/HJM voltados para esta demanda, segundo a
coordenadora de saúde mental do município7.
A segunda situação está representada pela linha de tom púrpura corresponde a um
fluxo “extraoficial”, uma situação que não é a ideal, mas que acontece com frequência na
realidade do município e está mais associada à urgência psiquiátrica por surto psicótico
decorrente de transtorno mental. Acompanhando a situação esquematizada na Figura 3
(página 74), temos um indivíduo que segue acompanhamento em serviços de atenção
psicossocial especializada e por algum motivo entra em crise. Neste caso, o que acontece com
frequência é o direcionamento desse usuário diretamente para o PS/HJM, fato que
sobrecarrega o serviço e prejudica a qualidade da assistência. O referido itinerário terapêutico
pode ser encontrado na fala de alguns sujeitos desta pesquisa:
Bem, quando eu surto e quando tem um carro na minha casa ou também
chama o SAMU, entra no carro e vai direto pra o João Machado, não vai pra
o CAPS, vai pra o João Machado pra saber se tem espaço pra ser internado.
Mas às vezes o João Machado diz que não tem vaga nenhuma e pergunta se
é do CAPS e somos direcionados para o CAPS (U_Bainha).
7 Fala em evento intitulado “Oficina de compartilhamento do cuidado na RAPS/Natal: inovação em saúde mental
e fortalecimento de acordos”, realizado no auditório do Departamento de Farmácia Centro de Ciências da Saúde
(UFRN) em 13 de Dezembro de 2017.
80
Quando eu tô legal eu vou pra UBS do bairro, aí quando eu tô precisando
muito eu vou me medicar lá no João Machado e aí quando ela me vê ela quer
me internar [a psiquiatra de plantão?], mas eu não fico mesmo. Minha irmã
assina, eu venho pra casa e depois vou pra o CAPS, aí minha médica toma
conta (U_Rococó).
A gente tem o hábito ainda do paciente que teve uma crise você manda para
o João Machado. Eu acho que ainda tem aquela ideia que o João Machado é
o único hospital... eu não sabia que eu podia pegar um paciente meu e
mandar pra UPA (D_Caseado).
A terceira situação está materializada em linhas azuis e representa a proposta de fluxo
para o atendimento ao usuário em crise psiquiátrica decorrente de transtorno mental e foi
apresentada na oficina anteriormente referida. Vale salientar que este fluxo ainda encontra-se
em estágio embrionário, mas que apresenta potencial para oferecer uma resposta satisfatória
com vistas ao cuidado em território que se diferencia por retirar o protagonismo do PS/HJM
no atendimento à urgência psiquiátrica. No exemplo, o indivíduo entra na RAPS a partir da
APS, sendo de lá encaminhado para a atenção psicossocial especializada de onde segue
acompanhamento territorial. Ocorrendo uma urgência, o indivíduo segue para a UPA de
referência em seu território, sendo levado em ambulância do SAMU ou em veículo próprio.
Na UPA, seria feito o acolhimento com classificação de risco e a equipe então definiria se este
usuário seria estabilizado na própria UPA (com o auxílio de protocolos de atendimento e com
a retaguarda de uma equipe de referência alocada no HMN), retornando posteriormente ao seu
domicílio, ou se seguiria o encaminhamento para estabilização no HMN, onde o usuário
ficaria por um período máximo de 48h, de onde seguiria para domicílio, para o CAPS, para o
hospital psiquiátrico ou para o hospital geral, dependendo da necessidade. No cenário local, a
participação do CAPS III na atenção à crise é praticamente inexistente.
A partir da exposição e explicação dos fluxos encontrados na realidade da RAPS
Natal, é possível inferir as dificuldades vivenciadas pelos profissionais e usuários na busca
pelo compartilhamento do cuidado. Acreditamos que a ausência de fluxos pactuados, ou
estando esses fluxos em fase de construção, compromete o processo de articulação entre os
atores, tendo em vista que, em muitos casos, os serviços não se reconhecem enquanto
responsáveis por determinada demanda, fazendo com que o usuário fique vagando por
itinerários labirínticos, culminando com a superlotação dos serviços de atenção psicossocial
especializada e do hospital psiquiátrico. A este respeito, um dos sujeitos comenta durante
sessão de grupo focal:
81
Uma coisa importante é ver esse fluxograma onde isso fique muito claro pra
equipe que compõe aquele lugar que em alguns serviços isso não é
compreendido pela equipe e aí a própria equipe questiona determinado tipo
de condução e isso é um fator bastante complicado (D_Brocatelo).
Esse déficit identificado na estrutura fundamental da RAPS Natal/RN representa uma
contradição significativa, já que é justamente o estabelecimento de fluxos e a pactuação entre
atores, serviços e setores que a compõem que fundamentam o seu estabelecimento enquanto
uma rede de saúde.
Merece destaque na figura 3 (página 74) as parcerias intersetoriais. Optamos por
incluí-las no desenho esquemático da RAPS Natal por acreditarmos na potência da
intersetorialidade – que é produzida a partir da própria rede – para o sucesso da continuidade
do cuidado em território, principalmente se considerarmos as peculiaridades socioeconômicas
do público ao qual se destina a referida rede de atenção. Outro ponto que despertou o desejo
de incluí-las/considerá-las foi o interesse em fomentar uma cultura da intersetorialidade, de
promover este despertar para as características sociais que permeiam a demanda por serviços
de saúde mental no Brasil. Almejamos conferir visibilidade aos arranjos intersetoriais como
um contraponto a subutilização desse tipo de articulação, especialmente no que se refere ao
estabelecimento dos fluxos assistenciais.
Mais uma vez, priorizando a inteligibilidade da figura, decidimos apresentar no
desenho uma representação dos serviços vinculados a outros setores, para além da saúde,
agrupados por semelhança das atividades que neles são desenvolvidas. Sendo assim, temos
que: no componente assistência social alocamos os serviços do tipo Centro de Referência de
Assistência Social (CRAS), Centro de Referência Especializado de Assistência Social
(CREAS), o Albergue Municipal e o Centro Pop; no componente Serviço socioeducativo
estão representados os Centros Educacionais (CEDUC´s) e o Centro Integrado de
Acolhimento ao Adolescente acusado de Ato Infracional (CIAD), ambos destinados a
adolescentes que estão cumprindo medidas socioeducativas; destacamos que são três as
unidades de acolhimento da assistência social encontradas no município de Natal, porém para
segurança dos indivíduos nelas abrigados o endereço é sigiloso e por este motivo aparecem no
desenho da rede distribuídas aleatoriamente no território. Para maior detalhamento dos
serviços e suas respectivas localizações confira-se o Apêndice D. Destacamos que foram
considerados no desenho aqueles serviços que mantem umas relação forte com a atenção
psicossocial, o que, no cenário estudado, aconteceu com os serviços da assistência social e os
socioeducativos.
82
Lançando o olhar para os DS´s, percebe-se, mais uma vez, que o Norte I apresenta a
menor cobertura em termos de aparato Intersetorial diretamente relacionado à atenção
psicossocial, dispondo apenas do CRAS e da colaboração de igrejas e pastorais. Os demais
DS´s contam com o apoio da assistência social, de serviços socioeducativos, igrejas e ONG´s.
Destacamos que no DS Leste concentram-se os serviços da assistência social destinados à
população que vive em situação de rua – Albergue Municipal e Centro Pop –, dentre os quais
se encontram muitos usuários da atenção psicossocial, principalmente do CAPS AD III Leste.
Acreditamos ser esta uma localização estratégica, tendo em vista que o DS Leste é situado no
centro da cidade, local de grande circulação de pessoas e ponto em que se constata a
circulação e/ou permanência de pessoas em situação de rua.
É interessante ressaltar que o público do CAPS AD tem peculiaridades que
influenciam o fluxo pela rede com uma tendência de deslizamento para urgência/emergência
devido a crises de abstinência/overdose e para a assistência social. Questionamo-nos se este
deslizamento seria fomentado pelo próprio fluxo assistencial já implementado na realidade
municipal (e representado na figura 3 em linhas verdes) e que encaminha à UPA os indivíduos
em crise desencadeada por substância psicoativa. Nestes casos, a relação com a APS, apesar
de extremamente necessária, ainda é incipiente. Percebemos também uma relação forte entre
o CAPS i e os serviços da Assistência Social, assim como com as medidas protetivas voltadas
para o menor infrator, provavelmente porque muitos deles têm envolvimento com álcool e
outras drogas.
No caso dos CAPS voltados para atenção ao usuário com transtorno mental parece
existir uma melhor interação com a APS e com os serviços intersetoriais, porém essa relação
não representa a situação proclamada em portarias e cartilhas ministeriais. No caso dos DS
que não possuem cobertura CAPS, seja para transtorno mental ou para casos que envolvem o
uso/abuso de álcool e outras drogas, é mais comum a interação entre a APS e os serviços da
assistência social do tipo CRAS e CREAS.
Até aqui vimos o crescimento da RAPS Natal/RN em termos de expansão da
cobertura, de variedade de serviços instalados, de indícios de parcerias com instâncias
intersetoriais em busca da concretização de um cuidado integral em território.
Em contrapartida, identificamos fragilidades importantes para a organização e
estabelecimento desse aglomerado de componentes assistenciais enquanto uma RAS,
principalmente no que se refere à implementação de fluxos assistenciais, não apenas através
de atos normativos e pactuações entre secretarias e técnicos de referência, mas também
mediante a legitimação social dessas possibilidades de cuidado.
83
Reconhecemos no caráter inacabado da RAPS Natal/RN um alinhavo em sua
expressão dialógica. Se por um lado, traz consigo as lacunas e dificuldades inerentes a um
modelo de atenção que tenta ganhar corpo mediante as aberturas proporcionadas pelas
transformações no modo de pensar e de fazer em saúde/saúde mental, por outro se evidencia
no inacabado a potência da plasticidade, a esperança, a possibilidade de reinvenção. É
partindo dessa rede alinhavada que pensaremos o cuidado em território.
5.1.2 O cuidado em território: bordando ilhas de resistência entre as remanescências do
manicômio
Com o auxílio das reflexões dos grupos focais e da circulação pela rede foi possível
reconhecer, ao desemaranhar e religar os fios soltos encontrados durante a realização desta
pesquisa, características do cuidado em saúde mental produzido no território.
Como é possível observar na figura 4, evidenciamos que características contraditórias,
dentre as quais algumas consideradas incompatíveis com o modelo de atenção psicossocial e
em rede, convivem lado a lado, gerando tensões e contradições na dinâmica do cuidado em
rede e influenciando os modos de articulação da RAPS – como veremos mais adiante, na
segunda categoria.
Figura 4 – Representação das características do cuidado em saúde mental evidenciadas no
território.
Fonte: elaborado pela pesquisadora com base nos dados da pesquisa, 2018.
84
Iniciaremos o debate trazendo à tona aspectos que se configuram, a nosso ver, como
remanescências do manicômio materializadas em um simulacro de cuidado que envolve
características como medicalização, fragmentação, especialização não-comunicante e
desacolhimento.
A predominância de um caráter medicalizador no cuidado em saúde mental produzido
no cenário estudado se revela nos excertos abaixo e em outras passagens ao longo da
exposição e discussão dos resultados, ainda que agrupadas em outra categoria de análise.
Vejamos os recortes de falas:
Nós trabalhamos a saúde mental no território, mas a gente ainda observa que
o índice medicamentoso é muito alto e isso faz com que o nosso usuário crie
uma dependência. Talvez eles nem precisem, talvez o diálogo, uma escuta
qualificada reverta esse quadro da dependência medicamentosa (D_Areia).
Pessoas que perdem um ente querido ou qualquer coisa que aconteceu, que
naquele momento teve uma depressão e o médico passou um
antidepressivo... Eu tenho certeza que tem muito paciente que toma
psicotrópico por tomar, porque ´minha vizinha deu, eu me senti bem,
dormi‟... (D_Caseado).
Eu tô bem, já estabilizou a doença, tomo remédio, quando eu tô sentindo que
vou ficar um pouco mal eu procuro o CAPS – procuro a minha médica – e lá
ela ajusta o remédio aí eu fico de boa de novo (U_Estrela).
Debruçando-nos sobre as falas de Areia, Caseado e Estrela é possível perceber a
existência de uma prática associada ao uso indiscriminado do medicamento, que tem como
pano de fundo a medicação como recurso de escolha em detrimento do acolhimento e de
outras estratégias de suporte psicossocial, fato que já era apontado por Guarido (2007) quando
alertava para os avanços da medicalização como forma majoritária de intervenção terapêutica
em saúde mental na contemporaneidade. Além disso, encontramos indícios de uma
redefinição das formas de lidar com as dificuldades inerentes à vida humana em sociedade
que passam a ser “diagnosticadas”8 e tratadas como problemas médicos – a exemplo dos
processos de perda e luto, das inquietações provenientes da precariedade socioeconômica e do
desemprego, dentre outros aspectos.
A ideia da medicação como uma panaceia para os problemas da vida é discutida em
Dantas (2009, p. 564) que pensa “a medicalização como um conjunto de práticas que acabam
8 O termo encontra-se entre aspas porque é utilizado nesta passagem em alusão ao sistema de diagnóstico
médico-psiquiátrico baseado no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) que há décadas
vem assumindo a hegemonia no manejo da doença mental (e por que não dizer do doente mental?).
85
consolidando o medicamento como uma resolução rápida para todo e qualquer problema da
vida”. Para a autora, o medicamento se apresenta como um aparato que, baseado em alta
tecnologia, promete solucionar as inquietações existenciais dos indivíduos.
Para Costa-Rosa (2013) a medicalização é um fenômeno social, cultural e subjetivo de
múltiplas determinações. Em uma crítica à razão medicalizadora que tem no consumo de
psicofármacos um sintoma social dominante, o autor discute a ampliação do termo
medicalização que pode ser aplicado à prática de qualquer trabalhador da equipe
interprofissional, basta que coloque no centro de sua ação a resposta-psicofármaco a priori;
ou que só consiga ver os impasses sob o prisma do médico, fazendo encaminhamentos
obrigatórios como sequência de sua prática; e opere no laço social o Discurso Médico,
respondendo com diagnósticos nosológicos.
Costa-Rosa (2013) aponta, em seu estudo, para a existência de um modo particular de
uso de psicofármacos nas práticas atuais de atenção ao sofrimento psíquico, subsidiando-se de
dados que revelam um aumento no uso de psicofármacos em diversos municípios da região
Sudoeste do Brasil, além da magnitude da prevalência da prescrição de ansiolíticos, de
antidepressivos e de estabilizadores de humor.
A este respeito, levantamento nacional sobre o uso indiscriminado de psicotrópico
publicado em informativo produzido pelo Fórum de Medicalização da Educação e da
Sociedade traz dados consideráveis acerca do consumo de Clonazepan no Brasil entre os anos
de 2007-2014. O que nos desperta particular interesse, justamente pelo relato de Caseado (um
dos sujeitos da pesquisa) ao debater sobre o cuidado em saúde mental:
Quando a gente vê o paciente já chega dizendo assim: ´eu tomo
Clonazepam!´; ´eu quero uma receita de Diazepam!´. (D_Caseado)
O Clonazepam é um benzodiazepínico prescrito para transtornos de ansiedade e de
humor, disponível no mercado em 68 diferentes formulações sendo uma delas o Rivotril®, da
Roche. O consumo de Clonazepam vem aumentando constantemente, tendo apresentado um
salto de mais de 200% nas vendas a partir de 2010. No ano de 2012 foi o 13° medicamento
com o maior volume de vendas em reais. Em 2013, o Brasil tornou-se o maior fabricante da
substância, ano em que o RN ocupava o quarto lugar no ranking de venda de caixas do
referido medicamento por cada 1.000 habitantes. Em Natal, capital do RN, o consumo foi de
51,425 caixas /1000 habitantes, superando o consumo da cidade de São Paulo e sendo o 3°
86
maior consumidor de Clonazepam a cada 1000 habitantes do território nacional (FÓRUM DE
MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DA SOCIEDADE, 2015).
Há que se discutir também a posição que o remédio ocupa no imaginário popular,
como é possível observar na fala de Corrente (um dos sujeitos desta pesquisa):
Mas aí eu coloco na minha cabeça [que] é horrível [tomar medicação], mas é
ruim com ele e pior sem ele [o medicamento] (U_Corrente).
A este respeito, Costa-Rosa (2013, p. 183) pondera que “em meio à medicalização,
como representante social das respostas à dor, o indivíduo acaba não vendo outro recurso que
entregar-se ao médico e seu arsenal”. Como Simão Bacamarte – o alienista de Machado de
Assis – que recolheu à casa de orates praticamente uma cidade inteira e, em nome da ciência,
os segregou, experimentou e medicou. Enquanto isso, a população atônita assistia (e se
submetia!) aos desmandos do seu alienista (ASSIS, 2009).
A fala de Corrente faz pensar também sobre a existência de uma nova “política” de
enfrentamento da vida e de ajustamento de condutas, na qual o alívio praticamente imediato
produzido pela dureza da tecnologia se sobressai em detrimento do trabalho leve, sensível,
porém demorado – por ser contínuo –, inerente a outras estratégias de suporte psicossocial. O
fator “tempo-resposta”, aparentemente, vem ganhando espaço no cotidiano de serviços, de
usuários e da sociedade em geral.
É interessante retomar as falas de Caseado e de Corrente para, junto com Tesser
(2006), pensarmos a medicalização como um agente transformador da cultura das populações,
de modo a influenciar a capacidade de enfrentamento autônomo da maior parte dos
adoecimentos e das dores cotidianas. Para o autor, a medicalização social traz como um de
seus subprodutos a “bola de neve” crescente e infindável da demanda espontânea por atenção
médica para todos os tipos de problemas, queixas, dores e incômodos – o que poderá ser
observado ao discutirmos alguns dos problemas relacionados à estrutura operacional da RAPS
que emergiram durante a realização desta pesquisa, a exemplo da grande demanda por
atenção psiquiátrica, dificuldade de acesso dos usuários aos serviços especializados, dentre
outros.
Vale ressaltar que nossa intenção ao trazer a temática da medicalização para o debate
não é desfazer dos benefícios da medicação psicotrópica para o sujeito que apresenta
transtornos mentais ou está em situação de abuso de álcool e outras drogas, mas sim
problematizar a redução da segunda situação à primeira e pôr em questão, assim como
87
Guarido (2007), os efeitos de um discurso que naturaliza a existência e os sofrimentos e que
revela a banalização do diagnóstico e o uso irrestrito de medicações como intervenção diante
da vida.
Refletindo sobre a medicalização enquanto o excesso indesejado de intervenções em
saúde, Camargo Jr (2010) traz para a discussão dois aspectos que julga fundamentais sobre a
temática: a existência de um complexo médico-industrial que traz a lógica comercial para a
área da saúde; e a possibilidade de criação de novas doenças ou expansão da definição das
existentes de modo a ampliar o mercado de consumo para determinadas drogas ou testes
diagnósticos. O autor ainda alerta para a manipulação do conhecimento como estratégia
mercadológica, o que se dá pela distorção de pesquisas científicas em prol de interesses do
complexo médico-industrial. Em nossa concepção, tais fatores não podem ser
desconsiderados no tecido de acontecimentos que influenciam a produção do cuidado em
saúde mental de base territorial.
Revisitando as reflexões e discussões produzidas durante as sessões de grupo focal,
aliadas às leituras sobre a temática, identificamos no caráter medicalizador do cuidado
produzido em território uma das remanescências do manicômio na RAPS Natal/RN. Novo
bordado com velhos fios?
Se a psiquiatria moderna inaugura a possibilidade de cura da loucura aprisionando-a
entre as paredes do asilo do século XIX, numa versão contemporânea vemos o aflorar de uma
nova fisionomia para o manicômio a partir da medicalização. Costa-Rosa (2013, p. 173) nos
fala sobre os suprimentos medicamentosos e sua capacidade de redesenhar as funções do
velho asilo, com as quais se repõe “pela via do consumo de medicamentos, todos os infelizes,
os queixosos desajustados, os improdutivos para o trabalho e para o consumo”, daí porque o
autor defende a desmedicalização como meta radical do Paradigma Psicossocial – impossível
ler este trecho e não rememorar o Hospital Geral do século XVII descrito em Foucault (2009).
Como alternativa à medicalização do discurso e das práticas no contexto da saúde
mental coletiva, defendemos, assim como Antonacci (2015, p. 29), a reorientação/reinvenção
de práticas alinhadas ao modelo de atenção oposto ao manicômio; “práticas capazes de
promover a construção de projetos de vida individuais e subjetivos no território das pessoas”
que sofrem com transtornos mentais, estimulando e popularizando outras estratégias de
suporte psicossocial como possíveis alternativas ao uso abusivo de psicotrópicos.
Uma segunda característica evidenciada no cuidado produzido em território diz
respeito à fragmentação da atenção e do próprio entendimento/reconhecimento da linha de
cuidado em atenção psicossocial. Vejamos os recortes:
88
Porque a saúde mental é justamente um paciente que ele tem um tratamento
que vocês fazem [atenção especializada] e o que eu ofereço que é a urgência
e emergência (D_Aresta).
Porque a logística dos serviços ainda é direcionada em caixinhas, por
exemplo a caixinha do HIV, a caixinha do hipertenso, a caixinha do
diabético, a caixinha da saúde mental e essas caixinhas hoje não se
comunicam e é muito complicado (T_Coral).
Uma vez uma paciente chegou lá no CAPS [dizendo]: „mas eu soube que
aqui no CAPS tem tudo!‟ E eu digo: mulher, não tem! A gente vai precisar
“retalhar” um pouquinho. Vai ter um cuidado aqui e outro cuidado acolá,
termina que às vezes precisa articular um cuidado (D_Brocatelo).
Pensando sobre as falas de Aresta, Coral e Brocatelo percebemos que, apesar de se
colocarem como parte da rede – em passagens do tipo “as pessoas acham que rede é um
serviço, rede somos nós!” (D_Anjour) – é notória a dificuldade que alguns sujeitos da
pesquisa têm de aplicar uma “visão em rede” e de lidar com as diferentes funcionalidades
terapêuticas dentro da própria transversalidade que o trabalho em rede exige. Dificuldade esta,
provavelmente relacionada à própria formação em saúde de base flexneriana.
No depoimento de Aresta vemos a redução da saúde mental ao ato terapêutico, além
da separação entre o que é de responsabilidade da atenção especializada e o que é atribuição
da urgência e emergência. É fato que numa RAS cada componente desempenha funções
peculiares, no entanto, é preciso que exista uma lógica organizacional que a transversalize,
além de um sentimento de pertença e de responsabilização compartilhada entre os nós da rede.
Em Coral e em Brocatelo vemos homem e cuidado “retalhados”, situação que nos faz
relembrar Tesser e Luz (2008) quando comentavam sobre o “esquartejamento” que o saber da
biomedicina operou no doente, passando a privilegiar, em suas ações, as “doenças
biomédicas”.
Coral traz, em tom de crítica, a lógica reducionista de organização dos serviços de
saúde que ainda operam orientados por diagnósticos/patologias. Mas e o que existe entre esses
fragmentos? Aquilo que liga esses retalhos é simplesmente relegado à invisibilidade? Ao se
negligenciar a comunicação entre essas “caixas do saber”, se esquece que o hipertenso pode
ser também diabético, dependente químico e soropositivo para o HIV – e nesse caso, a que
rede pertenceria esse indivíduo “multipatológico”? Os excertos a seguir reforçam tal
questionamento.
89
Os usuários da saúde mental têm um comprometimento clínico muito mais
agravado do que qualquer outro paciente crônico pelo uso prolongado das
medicações. Eles têm um índice de diabetes maior, um índice de hipertensão
mais [elevado]... [dificuldades] em relação ao cuidado odontológico... outras
comorbidades, digamos assim (D_Brocatelo).
Esse paciente psiquiátrico também precisa ter atenção clínica e essa atenção
clínica a gente não encontra na rede, muitas vezes (D_Margarida).
Os recortes apresentados expressam situações que envolvem organização dos serviços,
práticas profissionais e deixam escapar nas entrelinhas a existência de espaçamentos/lacunas
que, a nosso ver, são potencializados pela falta de comunicação entre os técnicos que estão à
frente dos serviços. São lacunas que contribuem para a quebra da continuidade do cuidado em
território e para o estabelecimento de “traços” ao invés de linhas de cuidado – como alerta um
dos sujeitos da pesquisa ao afirmar que “quando não há esse estreitamento [entre sujeitos] a
linha [do cuidado] não existe, são traços” (T_Folha).
A fragmentação de sistemas e práticas de saúde é preocupação antiga e expressa pela
primeira vez no Relatório Dawson, em 1920. As discussões atuais sobre a temática apontam
para a existência de um descompasso entre a situação de saúde das populações – caracterizada
por uma tripla carga de doenças – e as respostas sociais engendradas para enfrentá-las – foco
nas condições agudas ou agudização das condições crônicas (MENDES, 2011; OPAS, 2011).
Para a Organização Pan-Americana da Saúde, seria esta fragmentação a causa da
descontinuidade da atenção à saúde (OPAS, 2011).
A nosso ver, a fragmentação de sistemas e práticas de saúde não se relaciona,
exclusivamente, ao descompasso entre situação de saúde versus resposta do sistema. Como
também não seria a fragmentação o único responsável pelas dificuldades enfrentadas para o
cuidado continuado e em rede.
Pensando sobre a fragmentação evidenciada durante a realização desta pesquisa e
ensaiando a aplicação de um “olhar-caleidoscópio” sobre a situação, reconhecemos que uma
lógica fragmentadora flutua entre os micro e macro contextos da saúde. Imaginamos existir
uma linha invisível que atravessa e interliga desde a decomposição do corpo em partes
(sistemas, órgãos, células), perpassa (e orienta?) pela organização fragmentada de políticas e
sistemas de saúde – divisão entre condições agudas e crônicas, especialidades médicas,
diagnósticos – e resvala em práticas assistenciais segmentadas e com pouca (ou nenhuma)
comunicação com o contexto sociocultural de indivíduos e coletividades, reafirmando a
segmentação do ser humano nas esferas biológica, psicológica, social, cultural, espiritual.
90
Resquícios da razão cartesiana na qual “separar para conhecer” é condição fundamental? De
certo que sim.
As RAS emergem num contexto de transformação nas formas de pensar e fazer saúde
que, considerando as mudanças no cenário epidemiológico e a necessidade de reorganização
do sistema de saúde, buscam transpor a barreira da fragmentação e, assim, oferecer respostas
compatíveis com as demandas de saúde da população. Entretanto, para que as RAS
estruturem-se em território, conquistem legitimidade social, e, de fato, rompam com a
fragmentação ainda persistente na lógica da atenção é fundamental reconhecer, assim como o
fazem Dias, Freitas e Gama (2013), que a noção de rede implica a existência de canais de
interlocução entre os diferentes serviços, reconfigurando o aglomerado de instituições de
saúde de diversos níveis de complexidade como uma rede articulada.
Diante a fragmentação evidenciada no cuidado produzido em território, seguiremos
pela via da integralidade como uma alternativa para a transposição dessa barreira que se
coloca frente à atenção em rede.
Roseni Pinheiro compreende a integralidade como um dos princípios doutrinários do
SUS, meio para concretizar o direito à saúde e como fim na produção de uma cidadania do
cuidado, no sentido de um cuidar integral. Para a autora, integralidade em saúde refere-se ao
“conjunto articulado de ações e serviços de saúde, preventivos e curativos, individuais e
coletivos, em cada caso, nos níveis de complexidade do sistema” (PINHEIRO, 2008, p. 256).
Mattos (2006), por sua vez, amplia o campo de debate ao buscar discutir os sentidos
da integralidade, ressaltando a polissemia do termo e tomando como ponto de partida alguns
dos sentidos de uso assumidos pela referida palavra. Traz, em sua obra, a integralidade
enquanto um conjunto de valores que funcionam como indicador da direção que se deseja
imprimir ao sistema, suas práticas de saúde e à transformação social. Sem negar a existência
de outros significados e aplicações para o termo, discute basicamente a integralidade em três
sentidos: como traço da boa prática médica, como modo de organizar as práticas e como
configuração de políticas especiais/específicas.
Enquanto um traço da boa prática médica, a integralidade se apresenta na maneira
como os profissionais de saúde respondem à demanda posta pelos usuários dos serviços,
buscando reconhecer no sujeito mais do que um sistema biológico disfuncional. No que se
refere ao modo de organizar as práticas de saúde, tem-se a integralidade como um princípio
de organização contínua do processo de trabalho nos serviços de saúde, que se caracterizaria
pela apreensão das necessidades de saúde de um grupo populacional mediante diálogo entre
diferentes sujeitos e entre seus diferentes modos de perceber as necessidades de serviços de
91
saúde. Refere-se, ainda, às configurações de políticas públicas que incorporem medidas
voltadas tanto para a prevenção quanto para a assistência. De maneira geral, tendo por base
qualquer um desses três sentidos, “integralidade implica uma recusa ao reducionismo, uma
recusa à objetivação dos sujeitos e talvez uma afirmação da abertura para o diálogo”
(MATTOS, 2006, p. 65). Reconhecemos, assim como Nasi et al. (2009), que as diversas
dimensões da integralidade não são estanques ou lineares, mas se entrelaçam e se
complementam – e retroagem – tendo em vista a complexidade do objeto da saúde.
No campo da saúde mental, a integralidade vem se destacando impulsionada,
principalmente, pelo movimento de RPb que se desdobra, em sua dimensão técnico-
assistencial, na proposta da atenção em rede territorial de atenção ao sofrimento psíquico e às
vulnerabilidades decorrentes do uso/abuso de álcool e outras drogas. Ao serem incorporados
no âmbito da saúde mental, os princípios da integralidade põem em questão o paradigma
biomédico – hospitalocêntrico medicalizador (COSTA-ROSA, 2013) – soberano durante
séculos na orientação das práticas destinadas ao “doente mental” e abrem espaço para o
reconhecimento, no cotidiano dos serviços, de que o indivíduo que sofre é um todo indivisível
e social e, como tal, carente de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde/saúde
mental (NASI et al., 2009).
Diante do exposto, retomamos os discursos dos sujeitos, em especial o de Aresta, para
junto com Mattos (2004), defender que em qualquer nível de densidade tecnológica, qualquer
que seja a inclinação terapêutica do serviço, é fundamental para a atenção em rede que haja
uma articulação entre promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde dos
indivíduos, em defesa da vida.
Reconhecemos, pois, a fragmentação da atenção e do ser humano como um desafio à
concretização da RAPS e à continuidade do cuidado em saúde mental no território. Assim,
pretendemos com essa discussão, tecer um elogio à integralidade da atenção enquanto
alternativa para potencializar o acolhimento das necessidades da saúde mental em espaços de
liberdade, superando as dificuldades de articulação e corresponsabilização entre os serviços
de saúde, assim como sugerem Bedin e Scaparo (2011).
Isto porque compreendemos, inspirados em Bosco-Filho (2015, p. 119), a
integralidade como um “instrumento para que possamos pensar estratégias de religação no
universo da saúde”, já que, ao reconhecer a essência biopsicossocial do indivíduo, suscita
operadores conceituais e práticos para criação de pontes entre os “retalhos” anunciados por
Brocatelo e entre as “caixinhas das patologias” sinalizadas por Coral (ambos sujeitos desta
92
pesquisa), para a religação entre a “parte” referente à atenção especializada e o “todo” da
atenção à saúde.
Uma terceira característica do cuidado produzido em território no cenário estudado
emerge das falas dos sujeitos como a busca e a presença marcante da especialidade médico-
psiquiátrica e do serviço especializado de suporte à saúde mental – o CAPS –, como vemos
nos recortes a seguir:
O psiquiatra do SUS, que eu faço [acompanhamento] lá no CAPS não tenho
o que dizer, super gente fina, faz o balanceamento dos remédios. Só é
complicado porque é de dois em dois meses só (U_Corrente).
Eu localizei nas Rocas em 2001 um médico, lá passei quatro anos [até que]
fechou e depois veio pra Ribeira, aí quando é agora fecha de novo. Pra não
dizer que não tem médico, tem um médico que vem de três em três meses e
passa um papel, mas esse papel se eu não tiver o dinheiro pra comprar não
tem o remédio (U_Nó Francês).
Mas quem disse que ele quer ir lá pra o médico de saúde da família?! Ele até
vai, mas ele vai pedir um encaminhamento pra o especialista... Quando
chega lá [no CAPS], se a gente faz o acolhimento e diz que ele não é pra lá,
é confusão (D_Anjour).
Durante as reflexões em grupo focal a medicação e a consulta com o médico psiquiatra
foram temas recorrentes nos três grupos. Parece ainda estar viva, não só no imaginário, mas
também no cotidiano de atores e serviços, a relação que se estabelece entre o indivíduo com
transtorno mental/abuso de drogas e a figura do médico psiquiatra. Com esta observação, não
pretendemos negar a importância das consultas especializadas para o cuidado continuado em
território. Nossa intenção é pôr em questão o modo como vem sendo realizadas tais consultas
e a relação de principalidade que elas continuam tendo frente ao repertório de estratégias de
suporte psicossocial disponíveis na atualidade.
Em Corrente, a satisfação com o profissional porque faz o balanceamento dos
remédios dá a tônica do discurso e deixa escapar nas entrelinhas que para o sujeito é isso que
importa ou que é isso que se espera no encontro com o profissional. Ao lamentar os encontros
“esparçados” com o psiquiatra e colocar este como um fator complicador (para o tratamento?
Ou para seu bem-estar psicológico?), Corrente nos faz refletir e questionar: estar na presença
do psiquiatra, indivíduo que naquele momento detém o saber-poder em relação ao mal que
aflige aquele indivíduo, o faz se sentir mais seguro? A figura do psiquiatra estaria associada
ao medicamento que, por sua vez, seria o ícone da saúde, passaporte para o transitar pela/com
a cidade?
93
Reconhecemos o entrelaçamento de fatores que contribuem para a supervalorização da
especialidade psiquiátrica, principalmente quando assume um caráter não-comunicante com
os demais saberes implicados na atenção psicossocial. Tesser e Luz (2008) comentam sobre a
expertise que o especialista, “o curador”, detém e lhe permite interpretar as queixas do doente,
reorganizar o vivenciado dando sentido a ele e executar ações em saúde-doença, preventivas
e/ou terapêuticas – o que certamente proporciona ao usuário uma sensação de segurança e
esperança de que terá sua demanda atendida com a maior brevidade possível.
Vasconcelos e Mendonça-Filho (2009) colocam em discussão se a lógica que
funcionava no interior dos muros institucionais teria se estendido ao campo social, o que faria
com que fossem criadas com os serviços substitutivos, em especial o CAPS, novas formas de
cronificação de “doentes”, agora a “céu aberto” e com “muros invisíveis”. Imaginamos que a
lógica que conforma esses “muros invisíveis” se espalha pelas malhas (in)visíveis da
sociedade, fazendo retornar ao psiquiatra e ao serviço especializado o indivíduo “marcado”
pelo rótulo psiquiátrico (leia-se diagnóstico).
Rememorando a própria trajetória da loucura, como se vê em Foucault (2009), é
sabido da captura da “doença mental” pelo saber da ciência psiquiátrica desde o século XIX,
ainda que a partir do final do século XX tenhamos presenciado uma série de movimentos
contestatórios e de ruptura com o saber da psiquiatria clássica. É inegável que séculos de
hegemonia do saber médico-psiquiátrico e sua prática hospitalocêntrica, associada ao contexto
de ascensão capitalista e neoliberal que fomentou (fomenta?) a indústria da loucura, deixaram
marcas tanto nos modos de fazer da saúde mental – no que compete processos de trabalho das
equipes, organização dos serviços, até mesmo na (re)formulação de políticas públicas
(reportamo-nos às alterações sofridas pela PNSM através da resolução no
32 e da Portaria no
3.588, ambas no ano de 2017) – quanto no imaginário popular de usuários, familiares e da
sociedade em geral.
Ainda sobre a presença marcante da figura do psiquiatra – ícone da especialidade/ do
especialista – no cuidado em saúde mental produzido na RAPS Natal/RN acrescentamos à
discussão a ideia de uma “mentalidade hiperdisciplinar” (MORIN, 2001) – e o discurso de
Anjour sinaliza para essa questão – que concentra o saber sobre saúde mental/psiquiatria na
figura do psiquiatra. Julgamos que esta “mentalidade hiperdisciplinar” não seria exclusiva da
ciência, mas acabaria invadindo e sendo absorvida pelo senso comum, materializando-se,
grosso modo, em atitudes como a busca, por vezes desnecessária, pela consulta com o médico
especialista, assim como menciona o sujeito da pesquisa.
94
Analisando a fala de Nó Francês, destacamos dois pontos que precisam ser
comentados, ainda que brevemente, em face da complexidade do fenômeno em análise nesta
tese. O primeiro é relacionado à frieza das relações entre profissional-usuário que se resume
na renovação de receitas, sinalizando para uma prática desacolhedora – que será discutida
mais adiante. O segundo ponto tem a ver com a influência das condições socioeconômicas no
cuidado de base territorial, principalmente quando este é pautado no uso da medicação e na
consulta médica.
É preciso considerar a participação dos determinantes sociais da saúde, no caso
específico, as condições socioeconômicas, na condição de vida e saúde do usuário da saúde
mental. Em análise bibliométrica sobre os determinantes da saúde no Brasil Carrapato,
Correia e Garcia (2017) alertam para a influência dos rendimentos materiais na condição de
saúde dos sujeitos, na medida em que permitem o acesso a bens e serviços que, de maneira
direta ou indireta, impactam na saúde – a exemplo de atividade física, aquisição de
medicação, atividades de lazer, terapias complementares, bom estado nutricional, além da
relação entre condição socioeconômica e o consumo de álcool e drogas.
Podemos reconhecer ainda, nas falas dos sujeitos, a marca da dependência subjetiva
em relação aos serviços e profissionais especializados. Os recortes abaixo sinalizam para essa
realidade:
Eu já ia na oitava vez querendo me matar, foi o [internamento] que salvou
minha vida. Deus em primeiro [lugar] e depois a clínica X. Os médicos
muito bons, os enfermeiros, o pessoal da cozinha, me trataram super bem
(U_Corrente).
Eu me sentia seguro, já dava uma força dando banho nos pacientes e os
enfermeiros ali sempre olhando se tava tudo bem [sobre período de
internações sucessivas em hospital psiquiátrico] (U_Pétala).
Para compreender as amarras subjetivas que ligam o cuidado em saúde mental à
especialidade e, por vezes, fazem com que usuários e profissionais recriem itinerários é
interessante considerar o histórico da saúde mental/psiquiatria e (re)visitar memórias do
manicômio – tendo sido algumas delas evocadas durante as sessões do grupo focal, relatos
definidos por um dos participantes como uma “descrição impressionante, tipo memórias de
cárcere manicomial com suas periculosidades, insalubridades, penosidades”
(U_RENASCENÇA).
Ao considerar a história de vida e de saúde/doença dos sujeitos torna-se compreensível
o fato do usuário, especialmente aquele que passou por experiências traumatizantes na
95
instituição manicomial ou na vida social – como as sucessivas tentativas de suicídio de
Corrente – encontrar no serviço especializado e/ou no contato com o especialista segurança,
um “lugar comum” onde se possa fazer entender e, ao mesmo tempo, fugir de uma sociedade
que ainda não é tão “receptiva ao que lhe é diferente” – como apontava Yasui (2010). Por
outro lado, colocamos em questão a necessidade que o sujeito sente de pertencimento ou de
estar sob a responsabilidade de um serviço, ao ser liberado do internamento em hospital
psiquiátrico. Como se o serviço fosse um ponto de apoio, no qual estará sempre de prontidão
um profissional para lhe dizer o que fazer e por onde “andar sua vida”. Veremos, na categoria
5.2.2 Os nós da rede, que essas são questões que repercutem na própria articulação da RAPS
analisada por influenciar o estabelecimento de fluxos que circulam ao redor dos serviços
especializados e dificultar o compartilhamento do cuidado com os demais pontos da rede.
Refletindo sobre as falas dos sujeitos um questionamento aflora: estariam os serviços
especializados negligenciando o uso de estratégias para promover o empoderamento dos
usuários de modo que eles sintam-se capazes de desenhar seus próprios caminhos e formas de
“andar a vida”? Por outro lado: estariam os serviços da APS, enquanto coordenadora do
cuidado e ponto de intersecção entre as RAS temáticas, se omitindo a abordar, junto à
comunidade, temáticas que contemplem saúde e cidadania do sujeito que sofre com
transtornos mentais ou pelo abuso de drogas, lícitas ou ilícitas?
Com este último questionamento, provocamos a APS para a transposição do caráter
biomédico que vem permeando a educação em saúde desenvolvida nos referidos serviços,
privilegiando temáticas diretamente referentes aos processos do adoecimento dos corpos. É
preciso considerar a interligação – e por que não a interdependência? – que se estabelece entre
produção de saúde, produção de cidadania e produção de vida e a implicação da APS na
construção da cidadania do usuário da saúde mental.
Para pensar sobre os questionamentos formulados, enveredamo-nos pelos caminhos da
educação popular em saúde e sua potência enquanto prática da liberdade – Freire (2011) –,
para que esses sujeitos se tornem, de fato, atores da produção de cuidado e de saúde. Neste
ponto, relembramos Paulo Freire em sua Pedagogia do Oprimido e conclamamos o
desenvolvimento de processos de educação em saúde que visem o empoderamento, o estímulo
ao auto-cuidado e a potencialização de outros espaços do cuidar, para além do CAPS.
A Educação Popular em Saúde firma-se como portadora da coerência política da
participação social e das possibilidades teóricas e metodológicas para transformar as
tradicionais práticas de educação em saúde em práticas pedagógicas que levem à superação
das situações que limitam o viver humano com qualidade (BRASIL, 2007). Tal referencial
96
parece-nos fundamental para que seja possível interagir com o meio social na tentativa de
empoderar sujeitos para interferirem em seus contextos sociofamiliares em prol de
transformações relacionadas ao convívio com indivíduos em sua existência-sofrimento.
Na área da saúde, mais especificamente tomando como base o nosso objeto de estudo,
podemos compreender como oprimidos os indivíduos em sofrimento psíquico e seus
familiares, que subjugados às ideologias e práticas dos profissionais, serviços, políticas de
saúde e estigmas sociais opressores, perpetuam sua dependência ideológica para com a
medicina e com o hospital psiquiátrico como o lugar social do “louco” e da cura da “loucura”.
Assim sendo, a “Pedagogia do Oprimido” desenvolve-se na perspectiva de superação
de uma educação bancária, na qual o educador “deposita” os conhecimentos no educando que
os recebem, guardam e armazenam, por uma educação problematizadora que estimula o senso
crítico e reflexivo do educando. Nesta perspectiva, a educação problematizadora se
fundamenta no diálogo educando-educador, visando instrumentalizar o homem para ser livre
e independente para transformar sua realidade (FREIRE, 2013).
Partindo dessas reflexões, e rompendo com o paradigma da educação para a saúde de
cunho estritamente biologicista, mecanicista e fragmentado, espera-se construir junto com
usuários e familiares a ideia de que eles têm autonomia para manejar as situações cotidianas
na perspectiva de recorrerem às internações psiquiátricas apenas em último caso, além de
adquirirem autonomia para gerenciarem, de acordo com suas peculiaridades, o
acompanhamento/tratamento em nível territorial.
Sem reforçar o discurso culpabilizante, pretendemos enaltecer o compromisso ético e
político de gestores e trabalhadores, de instituições de formação/educação profissional e de
pesquisa, de usuários, familiares e da sociedade em geral com a transformação social e com
uma nova forma de pensar e fazer em saúde – e sua interface com a saúde mental. Uma
reforma do pensamento que reconheça a complementaridade entre as especialidades para que
assim, a especialização, importante para atenção psicossocial, adquira um caráter comunicante
com as demais disciplinas e saberes, potencializando novos espaços de cuidado em
comunidade.
Durante as sessões de grupo focal emergiram indícios de uma prática desacolhedora
para com os usuários, seja na AB ou em outro ponto da RAPS, seja durante a circulação
desses indivíduos pela rede ou em consultas médicas especializadas.
Esclarecemos que o “desacolhimento” ao qual nos referimos não se trata do “antônimo
de acolhimento”, ou seja, de um “acolhimento hostil, indelicado”, tal como descrito em
dicionário da língua portuguesa (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 622). Pretendemos, sim,
97
sinalizar para a lacuna de práticas de produção e promoção de saúde que implicam
responsabilização do trabalhador/equipe pelo usuário. O “desacolhimento” ao qual nos
referimos também põe em questão a ausência de uma escuta qualificada, com respeito às
queixas e às inseguranças dos usuários, como condição fundamental para análise da
demanda apresentada e garantia de uma atenção integral, resolutiva e responsável (BRASIL,
2010b).
Vejamos o que dizem os sujeitos da pesquisa:
Quando chega lá [no serviço] entra uma palavra que está muito em uso
verbalmente, mas ela não ocorre na prática, que é acolhimento. Muitas vezes
com a questão da escuta o paciente voltaria satisfeito de quem primeiro
escutou ele com qualidade e resolveria boa parte dos problemas. Como ele
não tem essa escuta, ele ganha mais um nicho no problema dele (D_Anjour).
Ele [o psiquiatra] apenas vai olhar por outro prontuário e aí pergunta e baixa
a vista. Aí vai e olha por aquele envelope passado, olha só assim e „tome, tá
aqui [a receita]! (U_Nó Francês)
O que acontecia, eu digo assim acontecia sendo bem otimista, era [o usuário]
chegar lá [na atenção básica], achar que a pessoa tem uma cara estranha e
dizer: „ Não, esse com essa cara estranha é pra o CAPS‟. Nem acolher, nem
escutar... (D_Treliça).
Eu acho que por Natal ser uma cidade avançada, nisso ainda tá muito
precário, ainda está engatinhando, justamente nessa receptividade
(U_Corrente).
Analisando os recortes das falas de Anjour, de Nó Francês, de Treliça e de Corrente,
de imediato percebemos que a lacuna deixada pela falta do acolhimento nas práticas de saúde
é notada tanto por técnicos quanto por usuários dos serviços. Indício preocupante, tendo em
vista a potencialidade do acolhimento enquanto postura ética, estética e política para a
valorização das subjetividades e singularidades dos sujeitos que circulam pelos serviços, para
a elaboração de Projetos Terapêuticos Singulares e para a organização dos fluxos
assistenciais. Postura ética, uma vez que se refere ao compromisso de acolher o outro em suas
diferenças, seus modos de viver, sentir e estar na vida; estética porque implica a invenção de
estratégias que contribuem para a dignificação da vida e do viver; política porque demanda o
compromisso coletivo de “estar com” o outro, potencializando protagonismos e vida nos
diferentes encontros (BRASIL, 2010b).
Anjour aborda a dificuldade de uma prática desacolhedora tanto na AB quanto nos
serviços de urgência e emergência – e isso fica claro durante sua participação nas discussões
98
do grupo focal. Entende-se, pela fala do sujeito, que a lacuna deixada pelo desacolhimento
finda por atravancar os fluxos dentro da RAPS, visto que as queixas, por não serem escutadas
com qualidade, acabam gerando encaminhamentos equivocados, desestimulando o usuário
que vaga por fluxos labirínticos que se estabelecem aos arredores dos serviços especializados,
ainda que não seja lá o local indicado para atender a necessidade. Em Treliça, vemos o
preconceito balizar o atendimento e gerar encaminhamentos desresponsabilizados e fluxos
disparados por rótulos. Silêncio que parece gritar que “o lugar do louco é (agora) no CAPS!”.
As dificuldades para o acolhimento da pessoa em sofrimento mental na ESF é tema
recorrente na literatura da área. Encontram-se justificativas como despreparo e falta de
capacitação, insegurança do profissional no manejo com a pessoa em sofrimento psíquico e a
incipiência de ações de saúde mental na ESF – aí já ponderamos que a própria dificuldade da
equipe influencia também na incipiência de tais ações no contexto da ESF (ANJOS, ET AL.,
2015). Coutinho et al. (2015, p. 521), com base em revisão integrativa da literatura, afirmam
“que o processo de acolhimento ainda não está totalmente sistematizado nos modelos de
atenção à saúde, podendo ser esta a justificativa para as dificuldades apresentadas por
profissionais e usuários”.
Sobre estes aspectos, acrescentamos o preconceito fomentado por uma cultura
manicomial ainda arraigada no imaginário de técnicos e da sociedade em geral, os processos
de trabalho que, considerando a demanda crescente por atenção em saúde agravada pela
inconsistência das equipes de AB, dificulta a realização de atividades que demandem tempo e
sensibilidade, como é o caso do acolhimento. Some-se o fato da ESF ainda trabalhar com foco
em Programas específicos, em consonância com políticas focalizadoras e que, por vezes, não
se comunicam entre si.
Na fala de Nó Francês o desacolhimento se dá durante a consulta com o especialista,
situação na qual, supostamente, o indivíduo “marcado” pelo diagnóstico psiquiátrico teria
garantido um espaço de escuta. O que se vê, porém, é a ênfase na medicação e a humanização
da assistência lançada para “o outro lado da linha”. A fala do sujeito da pesquisa nos faz
ponderar se no atual contexto da atenção psicossocial o medicamento ainda é, para muitos
profissionais (especialistas!), a pedra angular do tratamento. Neste ponto, concordamos com
crítica formulada por Anjos et al. (2015) ao constatarem que quando se delega ao
medicamento esse papel de centralidade, está implícita nessa postura a reafirmação da
concepção de que o sofrimento encontra-se no corpo físico – uma espécie de elogio à velha
separação mente/corpo –, sendo o remédio capaz de promover compensação e fazer retornar o
equilíbrio.
99
Ao nos depararmos com situações como as expressas nas falas de Nó Francês, Anjour,
Corrente e Treliça nos questionamos quem, de fato, foi posto entre parênteses: a doença,
como conclamou Franco Basaglia, ou o sujeito? Num contexto mais ampliado poderíamos até
cogitar como seria possível sustentar o ideal de rede de atenção à saúde mediante o
esmaecimento das tecnologias leves de cuidado, com a negligência da micropolítica das
relações e do trabalho vivo e o embrutecimento das sensibilidades.
Reconhecemos a importância do acolhimento para a reorientação do modelo técnico-
assistencial em saúde e para fazer fluir o caminhar dos usuários pelas RAS. No campo da
saúde mental coletiva admitimos, assim como Jorge et al. (2011), a exigência de tecnologias
leves, aliadas à perspectiva emancipatória de operar o cuidado em conformidade com os
pressupostos da RPb – visando construção da autonomia, corresponsabilização e exercício da
cidadania – como condição fundamental para a integração de serviços e organização das
redes.
Isso porque é no processo de escuta e acolhimento que se processa a interpretação
mútua entre o que o serviço pode oferecer e o que usuário deseja em sua vida cotidiana, o que,
por sua vez, contribui com a construção de relações dentro das práticas de saúde que buscam a
produção da responsabilização clínica e sanitária e a intervenção resolutiva. Neste
movimento, têm-se a reestruturação do cuidado integral em saúde mental, com a transposição
de conceitos como “patologia” e de diagnósticos psiquiátricos, ressaltando a subjetividade e a
singularidade de cada indivíduo que é atendido (JORGE et al., 2011; PINHEIRO, 2008).
De tal modo, a argumentação até agora construída nos permite traçar uma linha de
raciocínio que religa acolhimento - articulação de redes – integralidade - continuidade do
cuidado em território. É justamente por aceitarmos essa relação de interdependência
recursiva que julgamos pertinente o debate.
No desacolhimento evidenciado no cuidado produzido no cenário estudado
identificamos uma das remanescências do manicômio. Firmamos nossa posição no
reconhecimento de características como a negação de um espaço de fala/escuta e valorização
da subjetividade, a participação do usuário resumida ao seguimento de um fluxo de
encaminhamento, por vezes equivocado, a comunicação entre técnicos e usuários restrita a
transmissão unilateral e verticalizada de informações que, na maioria das vezes, se referem
ao uso da medicação – numa espécie de mortificação do eu daquele sujeito “portador de um
transtorno mental”. A impressão que dá, ao ler os relatos dos sujeitos da pesquisa , é que são
dois mundos sociais e culturais diferentes que caminham juntos com um ponto de contato
100
oficial – o diagnóstico psiquiátrico –, mas sem interpenetração, características que nos
remetem às instituições totais descritas por Goffman (1961).
Face aos indícios de uma prática desacolhedora evidenciada no cotidiano da RAPS
Natal/RN, defendemos como alternativa a ideia de um binômio “acolhimento-
compartilhamento” como estratégia potente para a continuidade do cuidado à saúde mental
em território. Um binômio, para reforçar a noção de inseparabilidade entre o acolhimento e o
compartilhamento do cuidado para fazer fluir a atenção em rede territorial. Anjour, um dos
sujeitos da pesquisa, tece comentários neste sentido:
Como eu acolho vai fazer totalmente a diferença e como eu encaminho esse
paciente, para qual [serviço] ele deveria ser encaminhado vai fazer outra
diferença mais imensa ainda (D_Anjour).
Sai de cena a noção de encaminhamento, pois nos remete à ideia de indicação de
caminhos que poderão ser seguidos, ou não, sem que haja, necessariamente, uma
responsabilização do profissional para com o usuário. Convoca-se, então, a ideia de
compartilhamento do cuidado de modo que usuários e trabalhadores de diferentes serviços
estejam igualmente implicados na construção e concretização das possibilidades de cuidado
em território. Assim como no artesanato dos galos para a tessitura das manhãs, em João
Cabral de Melo Neto9, é mister que o profissional que recebe o usuário – no que está implícita
a escuta e o acolhimento do seu “grito” –, lance-o a outro profissional que o recebe e, por sua
vez, lança-o a outro, num movimento contínuo, responsável e orientado pelas necessidades de
saúde do indivíduo, interligando serviços e setores, tecendo a RAPS.
Até aqui, discutimos sobre características do cuidado em saúde mental de base
territorial produzido no cenário estudado que, a nosso ver, se configuram como
remanescências do manicômio no cotidiano da RAPS. Reconhecer o uso indiscriminado de
psicotrópicos, a fragmentação de sujeitos e práticas, a especialização não-comunicante, com
centralização na figura do médico psiquiatra, e o desacolhimento nos faz pôr em questão o
cuidado produzido em território e perguntar, em analogia à canção10
, “que cuidado é esse”?
Partimos, então, do entendimento de cuidado como “um „modo de fazer‟ que se
caracteriza pela „atenção‟, responsabilidade‟, „zelo‟ e „desvelo‟ „com pessoas e coisas‟.
Enquanto uma das dimensões da integralidade em saúde, o cuidado suscita acolhimento,
vínculos de intersubjetividade, escuta dos sujeitos, “trabalho interdisciplinar e articulação dos 9 Para mais informações conferir o poema “Tecendo a manhã” de autoria de João Cabral de Melo Neto,
disponível na epígrafe do presente trabalho. 10
“Que país é esse?”, música de autoria de Renato Russo, gravada pela banda brasileira de rock Legião Urbana.
101
profissionais, gestores dos serviços de saúde e usuários em redes, de modo que todos
participem ativamente, para a ampliação do „cuidado‟ e fortalecimento da rede de apoio
social” (FIOCRUZ, 2009, tl 1). Assim, o cuidado pressupõe capacidade de escuta e
disponibilidade para acolher e interagir com os sujeitos que demandam atenção em saúde. No
âmbito da saúde mental, o cuidado também deve ser orientado para a busca da reabilitação
psicossocial dos sujeitos e da reinserção deles na comunidade (NASI et al., 2009).
Utilizando como subsídio a compreensão de cuidado a qual nos afiliamos, julgamos
que o cuidado em saúde mental de base territorial, nos modos como evidenciado durante a
pesquisa, não vem sendo desenvolvido em sua plenitude, comprometendo a potencialidade
que a atenção territorial e em rede possui. Seria, então, um simulacro de cuidado que ainda
não incorporou o modelo de atenção em rede, tampouco o ideal de clínica ampliada?
Aceitamos que modificar as práticas na direção de uma ampliação da clínica se
traduz no enfrentamento da clínica ainda hegemônica que toma a cura da doença como
objeto, que reduz a avaliação diagnóstica à objetividade positivista clínica e/ou
epidemiológica e que define a intervenção terapêutica considerando, predominantemente, os
aspectos orgânicos (BRASIL, 2009b). Neste sentido, reconhecemos que se faz necessário o
estranhamento das práticas, pôr em questão como estamos cuidando, como estamos
compartilhando com os demais serviços e setores implicados com a atenção psicossocial.
Buscar incorporar a proposta da clínica ampliada – de compromisso com o sujeito, de
reconhecimento dos limites dos saberes, de fomento da corresponsabilidade entre os
diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde e de defesa dos direitos dos
usuários (BRASIL, 2009b) – parece-nos fundamental para pensar alternativas de
transformação rumo à qualificação do cuidado em saúde mental no território e à efetivação da
RAPS.
Em contraste com esse cenário um tanto desolador, encontramos no caminhar por
serviços e estratégias que compõem a RAPS Natal/RN e durante as sessões de grupo focal
evidências de transformações da atenção em saúde mental, para além da ampliação da
capacidade instalada. Tais mudanças refletem a saúde pensada em outra perspectiva, uma
“nova” forma de olhar e de realizar o cuidado compartilhado, as quais, inspirados nas
mensagens de esperança redigidas pelo professor João Bosco Filho, chamamos de “ilhas de
resistência” (BOSCO-FILHO, 2015).
Sob influência de pensadores como Joel de Rosnay, Conceição Almeida, Ilya
Prigogine, Edgar Morin, Bosco-Filho resolve apostar em “ilhas de resistência”, ou seja, em
experiências de boa gestão do setor saúde, nas quais o autor “deposita” suas esperanças de um
102
futuro melhor para a saúde brasileira. Sem desconhecer os diagnósticos negativos, opta por
trilhar caminhos que possibilitem o enfrentamento das dificuldades e a organização de novas
possibilidades (BOSCO-FILHO, 2015).
Assim, nesta pesquisa, consideramos “ilhas de resistência” as experiências exitosas
com as quais nos deparamos ao longo da caminhada, nos encontros e desencontros que
afloram da/pela pesquisa científica. São iniciativas pontuais, umas com maior visibilidade
social, mas que conferem fôlego aos movimentos de RPb e à concretização da RAPS no
cenário local. São iniciativas de compartilhamento do cuidado, estratégias de suporte
psicossocial como Tenda do Conto, Tapera da falação, trabalho com grupos terapêuticos em
USF, caminhadas, além de fóruns, oficinas e capacitações que têm como público-alvo
trabalhadores dos diversos serviços da saúde e da assistência social.
Para nós, essas “ilhas de resistência” são bordadas com fios de esperança pelas mãos
de talentosos artesãos empenhados em redirecionar caminhos, transpor muros reais e
imaginários, fazer a RAPS acontecer no dia-a-dia de atores e serviços.
Das iniciativas observadas em território, elencamos o desenvolvimento de oficinas e
capacitações, disparadas tanto pela SMS quanto pela UAP/HUOL, voltadas para os diversos
componentes da RAPS Natal/RN, possibilitando a criação de um espaço para o diálogo e
promovendo a sensibilização dos profissionais para a lógica do cuidado psicossocial em rede,
além da existência de um movimento em nível estadual de reuniões mensais entre a
coordenação estadual de saúde mental e diretores de todos os CAPS do RN.
O esforço empreendido pela gestão municipal e distrital (aquela que responde por cada
DS) é reconhecido também durante as sessões de grupo focal, como identificado nos recortes
abaixo:
Todos esses conceitos de matriciamento, de acolhimento, eu acho que a
coordenação de saúde mental tem essa preocupação desde o ano passado
[2016] promovendo muitas oficinas, fóruns, capacitações exatamente porque
é um processo difícil. Porque é muito tempo cada um no seu quadrado e não
acontecendo essa articulação (D_Treliça).
A gestão [em nível de DS] hoje acredita em um compartilhamento [do
cuidado] e ela toma isso pra si e tenta fazer com que os serviços se reúnam
(T_Escada).
Eu não sei se foi estratégia do município de Natal de criar fóruns entre os
serviços e nesses fóruns as pessoas se encontram e falam e isso aproxima... e
a gente tá conseguindo resolver melhor, sem culpabilizar o outro, e se apoiar
(T_Abelha).
103
Durante a circulação pela RAPS Natal/RN tivemos a oportunidade de participar de
algumas dessas iniciativas. De fato, reconhecemos nesses eventos um espaço potente para
construção de vínculos, para a sensibilização à essência do cuidado em rede, para a abertura a
novos horizontes que apontam para práticas de saúde compartilhadas entre os profissionais de
diferentes serviços, além do setor saúde. No entanto, reconhecemos que esta é, ainda, uma
discussão atrelada aos serviços, na pessoa dos técnicos e gestores municipal e estadual.
Julgamos, então, que seria interessante ampliar esse espaço de discussão de modo a envolver,
no debate, os usuários, familiares e a academia – docentes, discentes e pesquisadores da área,
numa tentativa de fazer esse debate sair do serviço e ocupar os espaços da cidade.
A “nova” forma de olhar para a saúde mental e para o sujeito que sofre, assim como de
buscar estratégias, ainda que pontuais, de compartilhamento do cuidado e de suporte
psicossocial são evidenciadas em alguns momentos da discussão grupal. Vejamos:
Antes a gente ficava muito fechado no nosso próprio território, dentro de
quatro paredes. A gente até brinca [dizendo que] a gente não vai
ressocializar ninguém entre quatro paredes. A gente tem que ir pra o mundo
(T_Abelha).
A gente se preocupa pra evitar internações e fortalecer esse cuidado com a
rede e com a família. Porque hoje não é mais o paciente do CAPS, o paciente
do HUOL. É o paciente da rede, é o paciente da RAPS, é o paciente da linha
[de cuidado]... É um compartilhamento do cuidado, não é uma
responsabilidade só do serviço (T_Cordonê).
O tratamento hoje é um pouco mais humanizado. Você não é uma doença,
você está com uma doença momentaneamente. Já pensou uma gripe por 10
anos? Você é um gripado, um gripado compulsivo, um gripado recorrente! É
terrível isso! (U_Renascença).
Sobre a fala de Abelha, gostaríamos de pontuar a experiência que tivemos durante o
período de circulação pela RAPS Natal/RN. Acompanhamos atividades realizadas fora das
paredes do serviço, a exemplo do grupo de caminhada composto por técnicos e usuários de
um CAPS da cidade. A atividade, que é realizada toda terça-feira pela manhã, acontece no
Parque das Dunas e representa um momento de convívio e interação grupal entre os usuários
do serviço e entre eles, a natureza e a comunidade. Entretanto, percebemos que essa saída do
espaço físico do serviço especializado ainda assume mais uma característica de atividade
disparada/estimulada/vinculada ao serviço especializado do que uma postura empoderada e
cidadã do usuário que busca desbravar os espaços da cidade.
104
O comentário de Cordonê nos fez lembrar uma sessão de compartilhamento do
cuidado que tivemos a oportunidade de participar no serviço em que o referido sujeito
trabalha e que aconteceu durante o período de circulação pela rede. Na ocasião, foi possível
perceber a preocupação e o compromisso da equipe com a continuidade do cuidado em
território. As reuniões de compartilhamento do cuidado acontecem entre profissionais de
diferentes serviços da rede, com abrangência multidisciplinar e intersetorial, para elaboração
do Projeto Terapêutico Singular (PTS) do usuário, programação da alta hospitalar e
planejamento do cuidado continuado em território. Essa é uma atividade que é desenvolvida
para todos os casos atendidos no serviço (REGISTROS FEITOS EM DIÁRIO DE CAMPO,
2017).
Apesar de termos evidenciado a predominância de um caráter medicalizador do
cuidado produzido em território, vimos também a utilização de outras estratégias de suporte
psicossocial, implementadas em algumas USF no município. São iniciativas que, ainda que
pontuais, vão conquistando espaço na APS, fazendo a diferença na construção de práticas
inovadoras, abertas às sensibilidades e que buscam romper com a lógica da doença. Vejamos
os recortes a seguir:
São experiências [nas quais] a gente vem desenvolvendo uma ação
preventiva... Tenda do conto, Tapera da falação... É mais uma escuta, é a
partir dali que o usuário vai recordando lembranças, pessoas que perdeu.
Então tem todo um [cenário montado em cima das memórias do usuário],
objetos antigos lembrando a infância... (D_Areia).
A gente fez uma roda, uma terapia, e a gente viu que esse pessoal que
tomava psicotrópico, que tava com a vida meio agitada, muitos
melhoraram... Gosto muito de trabalhar com parceria com o CRAS, com as
igrejas, com ONG´s, tem o CREAS também e eu acho que é uma ótima
parceria pra gente pra trabalhar esses grupos terapêuticos (D_Caseado).
As atividades relatadas por Areia trabalham a saúde mental no território de maneira
transversal, são iniciativas que vem fazendo a diferença na realidade municipal. Caseado, por
sua vez, comenta sobre uma iniciativa voltada para o público que, aparentemente, tem um
histórico psiquiátrico, o que julgamos um avanço dadas as dificuldades de acolhimento ao
público da saúde mental no contexto da APS – situação que será discutida em maior
profundidade na categoria 5.2.2 Os nós da rede.
A tenda do conto surgiu em 2007 nas unidades de saúde de Panatis e Soledade I,
ambas localizadas na Zona Norte de Natal (DS Norte II), chegando a receber menção honrosa
105
no seminário nacional de humanização em 2009. Os encontros para compartilhamento das
narrativas de vida acontecem no galpão da unidade de saúde, que é ambientada por
trabalhadores e usuários. Cada indivíduo leva para ornamentar a tenda algum objeto afetivo
que represente um momento significativo na vida daquele sujeito e que possa ser
compartilhado com os demais. Os encontros representam um espaço aberto à escuta e são
movidos por princípios como respeito à vida e acolhimento de singularidades e diversidades.
“A cada encontro, novos horizontes surgem convocando trabalhadores e usuários a uma
reversão da lógica medicalizante que enfraquece o outro, reduzindo-o à sua doença, para uma
concepção de saúde ampliada, potencializadora e produtora de vida” (ARAUJO et al., 2017,
p. 116; BOSCO-FILHO, 2015).
Merece destaque também a “Tapera da falação”, atividade mencionada no discurso de
Areia. A Tapera da falação é uma roda de conversa na qual usuários e profissionais da ESF
contam suas vivências passadas e presentes. As atividades são destinadas as áreas do conjunto
Potengi, Zona Norte de Natal (DS Norte II), bem como as áreas denominadas brancas, que
são locais fora da área de cobertura da unidade de saúde. Acontecem mensalmente, em um
espaço externo à unidade – nas dependências da Associação de Idosos Julieta Barros –, em
parceria com as organizações sociais do bairro e conduzidas por enfermeiros e ACS. Com
esse momento de falação da vida, de contação de histórias reais, almeja-se aliar o acolhimento
do serviço de saúde ao cidadão e partilhar informações importantes sobre cuidados, prevenção
e tratamento de doenças. A Tapera da falação também tem um viés cultural, pois através da
participação de sanfoneiros, emboladores de coco e artistas populares visa resgatar a cultura
nordestina, ao passo que transforma o momento de compartilhamento de cuidado e de vidas
em um espaço de cultura, lazer, entretenimento e informação (OLIVEIRA et al., 2017).
As vivências grupais envolvendo profissionais e usuários são de fundamental
importância, pois fortalecem os vínculos entre a comunidade e o serviço e entre os próprios
usuários que, mais que uma comunidade geográfica, transformam-se em uma comunidade
afetiva, uma verdadeira rede de apoio social. Outro ponto a ser considerado é que ao se
trabalhar situações que afligem os usuários e a comunidade, está se trabalhando a saúde
mental de maneira transversal e na perspectiva da prevenção, inclusive do suicídio. São
atividades como estas que fortalecem a APS, qualificam o cuidado e possibilitam a construção
das redes de saúde.
Durante as reflexões provocadas nos grupos focais emergiram sinais de abertura dos
serviços especializados para os recursos terapêuticos disponíveis no território, com evidência
de circulação de usuários pelos espaços da cidade. É o que se extrai dos fragmentos abaixo:
106
O Centro de Convivência [CC] foi muito positivo. Eles [os usuários] tinham
algumas vocações, alguns interesses que ainda estavam escondidos e por
sentirem que [no CC] não é exclusivo da saúde mental... A gente já viu uma
evolução em alguns desses pacientes e a diminuição no número de dias dele
dentro do serviço (T_Coral).
Conhecer o Onofre Lopes lá do outro lado mundo em Petrópolis, conhecer o
campus [universitário], não só caminhar, mas nadar, dançar, como o CC está
oferecendo zumba agora, por que a gente só dança zumba no CC? Tem
zumba na praça pública, tem lá no Parque das Dunas. Tem que circular, tem
que caminhar... (U_Renascença).
O que tiver pra eu fazer eu faço, vou lá no CC, tem as oficinas de artesanato,
tem a dança do ventre, tem meditação. Aonde tiver um canto pra eu ir, uma
festa de aniversário, um passeio, se quiser passear só ou com um amigo...
(U_Pétala).
Nós toda sexta feira se encontra junto com um bocado de estudante e aí a
gente troca ideias, quando não caminha com as pernas, caminha com a
mente (U_Nó Francês).
Nas falas de Coral, de Renascença, de Pétala e de Nó Francês vemos, além da abertura
do serviço especializado para outros recursos terapêuticos, como sinalizado anteriormente, o
despontar do CC como uma estratégia potente para inclusão social e desenvolvimento de
práticas alternativas de cuidado. Dos recortes, temos três pontos a destacar, os quais serão
explicitamos nos parágrafos que se seguem.
A primeira observação refere-se à participação do CC no cotidiano da RAPS
Natal/RN. Na visão do profissional, aparece como um recurso terapêutico importante para a
redução do tempo de permanência do usuário dentro do serviço. Na vivência do usuário, o CC
exala liberdade e movimento, exercício de corpo, mente e cidadania.
O CC é uma unidade pública que faz parte das RAS, alocada no componente Atenção
Primária. Foi instituído mediante a portaria ministerial no 396 do ano de 2005 e vinculado à
RAPS através da portaria no 3.088/2011. Constitui-se enquanto espaço aberto à população em
geral, oferecendo um ambiente de sociabilidade, produção e intervenção na cultura e na
cidade, convívio e sustentação das diferenças na comunidade e construção de laços sociais.
São equipamentos estratégicos para a inclusão social das pessoas com transtornos mentais e
em situação de abuso de álcool e outras drogas, sendo recomendados para os municípios com
mais de 200.000 habitantes (BRASIL, 2011a; BRASIL, 2005).
Em pesquisa cujo objetivo foi identificar os efeitos da participação nas atividades
promovidas por um CC do Rio de Janeiro, Alvarez, Silva e Oliveira (2016) constataram que o
107
referido serviço desenvolve um trabalho privilegiado para o exercício da autonomia daqueles
que lá frequentam. Identificam como maior potência do CC a capacidade que o serviço tem de
ocupar os espaços públicos da cidade, produzindo uma autonomia construída coletivamente
através da convivência e dos bons encontros que são também produtores de saúde. Não opera
sozinho, mas em inter-relações com parceiros e com usuários, trabalhando o “viver-com” a
comunidade e com o outro na criação de redes de interdependência.
Diante da representatividade e da potencialidade do CC no cotidiano da RAPS
Natal/RN, reconhecida por técnicos, usuários e coordenação municipal de saúde mental,
resolvemos visitar o serviço, mesmo não sendo este cenário da pesquisa.
O CC de Natal iniciou suas atividades em julho de 2017, a partir da extinção do
ambulatório Zeca Passos, que ficava localizado no bairro da Ribeira – Zona Leste da cidade.
Atualmente, atende a demanda espontânea e a encaminhamentos, sendo o acesso a este
serviço não burocratizado. Apesar da maioria dos frequentadores serem usuários
encaminhados pelos CAPS da cidade e outros tantos antigos usuários do extinto ambulatório,
o CC de Natal/RN não é específico para usuários da saúde mental, a ideia é de integração
entre as pessoas da comunidade na ocupação deste espaço, potencializando-o. Lá são
desenvolvidas várias atividades que se propõem a trabalhar o corpo, a mente e a inserção
social dos sujeitos, além de funcionar como ponto de encontro da comunidade. O CC se
coloca como um disparador de fluxos dentro das redes e busca mesclar o institucional e o
comunitário. Mantem contato mais estreito com os CAPS, com os CnaR e com o movimento
da População em Situação de Rua atuante na cidade. Sobre a interlocução com as USF,
informam estar em processo de aproximação. Também promovem encontros e debates
buscando integrar os vários serviços do DS Leste, acadêmicos, usuários e familiares na
discussão (REGISTROS FEITOS EM DIÁRIO DE CAMPO, 2017).
Identificamos durante a realização da pesquisa que a relação com o CC é disparada, na
maioria das vezes, pelo serviço especializado – os CAPS –, mas também é multiplicada pelo
usuário. Inquietou-nos o fato de, mesmo estando alocado no componente APS – conforme
especificações da portaria no
3.088/2011 –, o CC parece estar à margem, sem contato com os
demais serviços da APS, como USF e NASF, e mais próximo do serviço especializado, o que
é um fator limitante para o propósito de integração comunitária do CC. Imaginamos que esta
dificuldade esteja relacionada ao próprio contexto histórico e político em que foi
regulamentado o CC, visto que no momento de sua instituição, no ano de 2005, este foi posto
como “dispositivo público componente da rede de atenção substitutiva em saúde mental, onde
são oferecidos às pessoas com transtornos mentais espaços de sociabilidade, produção e
108
intervenção na cidade” (BRASIL, 2005, tl. 1). Só com a publicação da portaria no
3.088, no
ano de 2011, é que esse discurso é atualizado e o CC passa a compor uma alternativa de
interação cultural e social aberta a toda comunidade (BRASIL, 2011a).
O segundo ponto que destacamos, a partir dos recortes das falas dos sujeitos, se refere
a livre circulação dos usuários pelos espaços da cidade. A leveza com que falam sobre esse
caminhar pela cidade, não necessariamente por serviços – sejam eles especializados ou não –,
exala liberdade e empoderamento dos modos de “andar a vida”. Para nós, um indicativo de
que é possível sair do labirinto que circunscreve os serviços especializados – CAPS e hospital
psiquiátrico –, transpor os muros físicos e mentais que insistem em separar o que é da ordem
da saúde e o que é da ordem da “doença mental”.
Por fim, elencamos como terceiro ponto de observação, mas não necessariamente
nesta ordem de importância, o exercício do pensar implícito nas falas dos usuários
participantes da pesquisa e que se manifesta mais claramente na fala de Nó Francês ao afirmar
que “quando não caminha com as pernas, caminha com a mente”. Isto nos faz pensar sobre a
potência transformadora do encontro entre usuários e grupos de estudantes universitários e
reafirma a relevância social – e porque não dizer acadêmica? – do tripé ensino-pesquisa-
extensão. Por outro lado, relembramos o cogito cartesiano, que rememorado em Foucault
(2009), nos fez refletir sobre a potência aniquiladora desse constructo para a existência do
“louco”. Agora, diante da fala de Nó Francês, nos deparamos com a retomada da autonomia e
do empoderamento que foram, provavelmente, construídos pelo convívio com a sociedade e
com a universidade.
Ao discutir sobre as experiências exitosas evidenciadas na RAPS local, aceitamos que
são as “ilhas de resistência” que dão o mote para a desconstrução das remanescências do
manicômio, rumo às boas práticas em saúde mental, à efetivação da RAPS em território e à
concretização da RPb. Boas práticas no sentido de unir informações sobre direitos humanos e
injustiças sociais, evidências científicas e experiências – principalmente a experiência das
pessoas com transtornos mentais e seus familiares – na consolidação de práticas que vem
dando certo no âmbito da saúde mental e coletiva, como propõem Thornicroft e Tansella
(2010).
Assim como os movimentos em prol de uma reforma psiquiátrica no Brasil
conclamaram “uma sociedade sem manicômios”, finalizamos esta primeira categoria
“gritando” pela integralidade do cuidado em saúde! Integralidade para enfrentar o
reducionismo que fragmenta o indivíduo em corpo/mente, que segmenta o sujeito em órgãos e
sistemas doentes – no caso, em “mente doente” – e reduz o cuidado em saúde mental aos
109
aspectos psiquiátricos dessa condição, ao passo que supervaloriza o especialista e a
especialidade, que prioriza o psicotrópico em detrimento de outras estratégias de suporte
psicossocial. Integralidade para pensar a organização dos serviços, fazendo crescer o
acolhimento enquanto postura ética, estética e política e ampliando a clínica. Integralidade
para negar o recorte que reduz o indivíduo à “doença” e que o retira do contexto social-
econômico-cultural em que vive e realiza suas trocas.
A seguir, veremos os modos de articulação evidenciados na RAPS Natal/RN, tentando
compreender o círculo recursivo que se estabelece entre os referidos modos e as
características do cuidado em saúde mental produzido no cenário estudado.
5.2 SOBRE A ARTICULAÇÃO DA RAPS: O RELIGAR DE FIOS E DE “NÓS”
ALINHAVANDO A REDE
Com as estratégias adotadas para a realização desta pesquisa emergiram os principais
modos de articulação da RAPS Natal/RN. Foi possível evidenciar que os diversos atores,
serviços e setores se utilizam de diferentes estratégias para manterem conexões entre si,
conformando variadas engrenagens que, ocorrendo simultaneamente, fazem seguir o caminhar
do usuário pela rede, com vistas à continuidade do cuidado em território.
Observamos durante a circulação por serviços e estratégias da RAPS Natal/RN a
discrepância entre as duas pontas do sistema, no que se refere ao conhecimento sobre a rede e
seu funcionamento, assim como ao poder de decisão e ação em relação à linha de cuidado em
atenção psicossocial, ao estabelecimento de fluxos assistenciais, como também às iniciativas
para promoção da articulação da rede. De um lado a gestão municipal, mais especificamente a
coordenação municipal de saúde mental, e seus apoiadores, sendo a UAP/HUOL o principal
deles. Em outro extremo, os profissionais que estão desempenhando suas atividades nos
serviços de saúde, especialmente naqueles que compõem a APS. Percebemos que várias
iniciativas são disparadas pelos entes que estão no topo do sistema, porém essa potência vai se
fragmentando e ao entrar em contato com a complexidade dos diversos contextos assistenciais
acaba esmaecendo. Aceitamos que não só o poder hierárquico, mas também as afinidades
temáticas, aqui expressas na organização do trabalho e das redes pela especialidade
psiquiátrica, podem estar implicadas no cenário encontrado.
De modo geral, a imagem que os sujeitos da pesquisa têm em relação à RAPS
Natal/RN é de uma rede fragilizada por limitações relacionadas à sobrecarga dos serviços, à
burocratização das relações e à fragmentação da gestão da rede.
110
Tudo é difícil porque a rede ela está muito sobrecarregada, tá muito furada
[risos discretos], tá muito fragilizada (T_Coral).
Ela [a rede] é frágil, é insipiente demais (D_Anjour).
A RAPS tá invisível? Não tá invisível. Ela está burocratizada, está
fragmentada na esfera Estadual, Ministério da Saúde na esfera federal,
UFRN, NESC11
, Saúde Coletiva, mas as pessoas não veem...
(U_Renascença)
A imagem de uma rede que “não dá certo” ou da incipiência, não apenas da RAPS,
mas do modelo de atenção em rede como um todo, não é exclusividade dos sujeitos da
presenta pesquisa, como é possível visualizar nos estudos que abordam a temática
desenvolvidos por Dimenstein et al. (2012) e por Silva e Mota (2016).
Em Dimenstein et al. (2012), pesquisa que se propôs a conhecer a configuração,
funcionamento e modos de acolhimento na RAPS de Natal-RN entre os anos de 2010-2012
com foco na atenção à crise, os autores comentam sobre a percepção que se tem da
desarticulação da rede, da falta de clareza e de propostas comuns de trabalho. Os autores
reconhecem em discursos como “a rede não existe; a rede é inoperante; não há integração”,
uma “dificuldade de conceber a rede não como algo etéreo e transcende, mas como uma
malha viva de articulação entre atores que se comprometem, trocam conhecimentos e pactuam
responsabilidades, logo, que todos fazem parte do cenário e são coparticipes” (DIMENSTEIN
et al., 2012 p. 108).
Silva e Mota (2016) realizaram investigação sobre o atual estágio das RAS no Brasil,
na qual buscaram avaliar o nível de interesse e participação dos gestores no processo de
regionalização da saúde, além de conhecer como eles avaliavam a qualidade e a oferta dos
serviços de saúde.
Com a pesquisa, constatou-se que, na verdade, os gestores estão mais interessados do
que envolvidos no processo de regionalização. Em relação à oferta e qualidade das ações
foram mais bem avaliadas a APS e a vigilância em saúde, sendo a RAPS e as demais redes
temáticas avaliadas de forma negativa tanto em relação à oferta/disponibilidade de serviços
quanto no que diz respeito à qualidade das ações desenvolvidas. Sobre a organização das
redes, evidenciaram como itens problemáticos a continuidade do cuidado e o fluxo de
informações dentro da região de saúde (o que não ocorre no tempo oportuno), além de
11
NESC: Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva. Entidade vinculada ao Departamento de Saúde Coletiva da
UFRN.
111
dificuldades relacionadas ao estabelecimento de papeis e responsabilidades entre os
profissionais da saúde dentro das RAS, problemas de organização das ações e serviços de
saúde no formato de RAS, no seguimento de protocolos e diretrizes terapêuticas e na
participação em fóruns intersetoriais para enfrentamento dos Determinantes Sociais da Saúde.
Na conclusão, os autores pontuam como desafios para a regionalização da saúde os fluxos de
informação, a continuidade do cuidado, a participação dos gestores estaduais no processo e na
configuração das RAS, a atuação das Comissões Intergestores Regionais e o desconhecimento
de grande parte dos gestores sobre o Contrato Organizativo da Ação Pública da Saúde –
COAP (SILVA; MOTA, 2016).
Ao longo da pesquisa, evidenciamos a coexistência de dois modos de articulação que,
baseados em Almeida-Filho (2006), identificamos da seguinte maneira: o primeiro como
sendo o modo racional de produzir essas interconexões, ou seja, a implementação de sistemas
instituídos/institucionalizados para fins de articulação da rede; o segundo modo de
articulação, mas não necessariamente nesta ordem de importância, é marcado pelo “mundo-
pequenidade” dos atores envolvidos no processo. Esclarecemos que o “mundo-pequenidade”
se refere às engrenagens (in)visíveis utilizadas pelos atores – diretores, trabalhadores e
usuários – como estratégia de escape à burocracia inerente ao compartilhamento do cuidado,
facilitando, assim, a manutenção das interconexões necessárias ao estabelecimento da rede
(ALMEIDA-FILHO, 2006). Reconhecemos no “mundo-pequenidade” dos atores forças
instituintes que atuam nos e para os processos de articulação da RAPS.
Esses modos de articulação são a primeira vista antagônicos – se considerarmos o
nível de formalidade ou institucionalização aos quais estão subjugados –, porém identificamos
traços complementares entre eles, principalmente no que se refere ao componente
intersubjetivo que os permeiam. Esta é uma tendência que revela a dialogicidade desta rede,
que, em sua natureza, é essencialmente complexa.
Chama atenção o fato de esse ter sido um tópico discutido basicamente pelos técnicos
dos serviços participantes da pesquisa – diretores e trabalhadores. Apesar das tentativas de
introduzir a temática nas duas sessões de grupo focal com os usuários, percebemos que esta
ainda é uma discussão que está sob o domínio técnico, o que é compreensível se
considerarmos o histórico da saúde mental brasileira – e por que não dizer da formulação e
discussão de políticas públicas? – que ainda hoje mantem a sociedade em geral à margem do
processo. Questionamo-nos também se este seria um indício de uma prática, ainda
hegemônica, de manipulação dos corpos e das vidas por aqueles (os profissionais) que detêm
112
o saber/poder sobre as situações de saúde-doença e sobre a organização dos sistemas e
serviços de saúde.
Ponderamos, em consonância com Quinderé, Jorge e Franco (2014), que os
movimentos de articulação das RAS são construídos cotidianamente com base no trabalho
vivo em ato. Assim sendo, a articulação das RAS é inerente aos processos de trabalho em
saúde, estando, por conseguinte, mais próxima do discurso dos trabalhadores. Dias, Freitas e
Gama (2013, p. 154) comentam que “rede de atenção em saúde é uma concepção utilizada por
profissionais da saúde, com referenciais não necessariamente compartilhados com os usuários
do sistema”, os quais colocam as demandas com base nas suas próprias concepções acerca do
processo saúde-doença e do papel do sistema como um todo em seu cotidiano.
Identificar o silêncio dos usuários sobre a temática nos diz que não estamos
implicando esses atores no manejo de sua existência-sofrimento, muito menos na construção
das RAS com o protagonismo proclamado em Leis e portarias ministeriais. Julgamos
pertinente pensar a articulação da rede também pela óptica dos usuários que são igualmente
importantes nesses movimentos de tessitura de redes, tanto pelo papel protagonista que, em
tese, assumem na organização dos sistemas de saúde – já que, em tese, é em virtude das
demandas dos usuários que se organizam os serviços – quanto pelas interconexões que
realizam durante o caminhar pelo território, nos encontros com os profissionais de saúde e
com a comunidade.
Iniciaremos a exposição e discussão dos resultados alocados nesta categoria
comentando os modos formais de articulação da RAPS evidenciados no cenário estudado.
Identificamos como estratégias formalizadas e instituídas para fins de interlocução entre os
elementos que compõem a referida rede temática de atenção à saúde o uso do Sistema
Nacional de Regulação (SISREG) e do apoio matricial em saúde mental.
Vejamos os recortes:
A gente tem que marcar pela regulação. Ele [o usuário] chega pra gente,
entrega a fichinha, a gente pega os dados dele e fica lá. Então é uma
dificuldade que a gente tem de marcar para a psiquiatria (D_Caseado).
O apoio matricial é o nosso “carro-chefe” pra fazer essa interação com os
profissionais da rede. A gente tenta fazer por ciclo na APS, cada unidade tem
uma peculiaridade que a gente vai descobrindo e vai fazendo uma análise
diagnóstica pra poder intervir (T_Abelha).
Existe regulação de leitos, paciente entra na UPA é leito de UTI? Você tem
que regular para hospital pelos serviços pré-hospitalares, esse existe desde a
criação da UPA... [Para os casos de urgência psiquiátrica] [Como] no
113
momento eu não tenho um amadurecimento como nós temos dos leitos de
UPA é necessária uma comunicação de diretor para diretor (D_Aresta).
Debruçando-nos sobre estes recortes, destacamos três aspectos para debate.
Primeiramente, percebe-se mediante os relatos, que as formas de religação entre fios e nós
vão variar de acordo com os componentes da RAPS envolvidos nesse processo. Em se
tratando da busca de articulação entre os serviços da APS e os serviços da atenção
psicossocial especializada – CAPS – temos a utilização da marcação de consultas
psiquiátricas via SISREG e realização de matriciamento. Entre os componentes da Urgência e
Emergência e Atenção Hospitalar a articulação parece se estabelecer através de regulação de
leitos – através do SISREG ou via formulário de solicitação de leitos psiquiátricos enviados
para e-mail institucional (REGISTROS FEITOS EM DIÁRIO DE CAMPO, 2017) – e
encaminhamento via serviço pré-hospitalar, usando o protocolo de consultas construído para
este fim.
O fato de existirem diferenças no que se refere às características das conexões
estabelecidas intra/inter componentes da RAPS já era mencionado por Arruda et al. (2015) ao
comentarem que cada conexão estabelecida em uma rede de saúde tem peculiaridades e se
estruturam de acordo com características regionais, culturais e sociais. Acrescentamos que os
corpos de conhecimento e as práxis de cada profissional, de cada serviço e de cada setor, ou
até mesmo a posição que cada elemento assume dentro da rede também exercem influência
nesses modos de articulação – são projetos assistenciais diferentes, como pontua Lettiere
(2014), o que, por vezes, tensiona a dinâmica do trabalho em rede. Imaginamos tais relações
como fios de texturas diferentes tecendo um bordado final.
Um segundo aspecto que pontuamos diz respeito à dificuldade relatada na fala de
Caseado e que foi evidenciada também durante nossas visitas para observação da rotina em
serviços da RAPS Natal/RN. Na ocasião, ouvimos relatos sobre a escassez de vagas
disponibilizadas via SISREG para atendimento especializado em psiquiatria, o que cooperou
para a formação de uma demanda reprimida, com usuários em lista de espera por consulta
psiquiátrica desde o ano de 2016 (REGISTROS FEITOS EM DIÁRIO DE CAMPO, 2017).
O SISREG é um sistema de informações on-line disponibilizado pelo DATASUS para
o gerenciamento e operação das centrais de regulação. É um programa, um software, que
funciona por meio de navegadores instalados em computadores conectados à internet,
composto por três módulos independentes: a Central de Marcação de Consultas, cuja
funcionalidade é basicamente oferta de consultas e exames especializados e controle de fluxos
114
assistenciais; a Central de Internação Hospitalar, que objetiva agendar, autorizar e
acompanhar a alocação e a disponibilidade de leitos, controlar o fluxo hospitalar e os limites
de solicitação de procedimentos; e Autorização de Procedimentos de Alta
Complexidade/Custo (APAC), que visa acompanhar encaminhamentos desse tipo de
procedimentos de saúde (CONASS, 2018; BRASIL, 2011b).
A regulação vem assumindo no cotidiano dos serviços e das RAS um sentido restrito à
regulação do acesso do usuário ao serviço de saúde. Sem a pretensão de penetrar os meandros
da regulação em saúde, interessa-nos comentar que, em tese, o processo regulatório atua sobre
o acesso dos cidadãos e sobre a oferta de serviços, subsidiando o controle sobre os prestadores
de serviços, seja para ampliar ou remanejar a oferta programada. A regulação do acesso deve
exercer também a função de orientar a programação da assistência, assim como o
planejamento e a implementação das ações necessárias para melhorar o acesso dos usuários
aos serviços de saúde especializados, isto porque se estabelece com base em protocolos
clínicos, linhas de cuidado e fluxos assistenciais definidos previamente. De tal modo, a
programação assistencial passa a se basear nas necessidades de saúde da população e não na
disponibilidade de oferta (BRASIL, 2011b).
Entretanto, o que se vê no cenário estudado é o acesso dos usuários aos serviços
especializados sendo regulado pela disponibilidade de oferta, ou pela falta dela. Como não há
oferta suficiente para a demanda, simplesmente os usuários ficam sem atendimento, gerando,
na APS, filas de espera para encaminhamentos. Para equilibrar esta tensão acarretada na rede,
profissionais – diretores e trabalhadores – acabam se utilizando dos vínculos interpessoais,
tendo o médico à frente da negociação, enquanto que os usuários findam por recorrer à porta
aberta do CAPS na perspectiva de terem sua demanda contemplada.
Unindo as discussões dos grupos focais às observações feitas durante a circulação pela
RAPS Natal/RN a impressão que se tem é que a atividade de regulação – exercida via
SISREG – vem atuando como uma espécie de “cancela” do sistema de saúde: abre passagem
quando há disponibilidade de oferta e fecha o acesso ao sistema quando já não há mais vagas
nas agendas dos profissionais especialistas. Com esta observação pretendemos alertar para a
regulação enquanto estratégia de planejamento, programação, avaliação e reorganização dos
sistemas de saúde e para o SISREG enquanto dispositivo de articulação da rede.
Ainda sobre a articulação da RAPS via SISREG, pensamos sobre as limitações dos
sistemas e aparatos computacionais quando estes passam a atuar como pontes entre um
usuário que apresenta uma necessidade de saúde específica e o profissional que irá suprir
aquela demanda – como é o caso da marcação de consultas via SISREG. Nesse processo
115
reflexivo, interessa-nos pensar junto com Manuel Castells que, tendo como base sua
observação sobre a distância entre a globalização e a identidade, pondera que quando a rede
desliga o ser, este constrói seu significado sem a referência instrumental global (CASTELLS,
2005). Nesses termos, imaginamos que quando o software “desliga” o indivíduo, ou seja,
quando o SISREG fecha as possibilidades de continuidade no sistema de saúde mediante a
oferta dos serviços especializados, os sujeitos movimentam-se em busca de outras estratégias
de acesso, seja pelos vínculos interpessoais ou pela recriação de rotas alterando os fluxos
assistências.
O terceiro ponto que colocamos em discussão emerge da fala de Aresta. Neste
fragmento, o sujeito comenta como se dá a articulação entre a UPA e os demais serviços das
redes e explica como acontece quando se trata de casos de urgência psiquiátrica. Sobre essa
passagem, um ponto de estranhamento: se existe em nível municipal uma pactuação e um
fluxo implementado de atenção à urgência psiquiátrica desencadeada pelo uso de SPA que
inclui a UPA como ponto de atendimento, por que persiste a diferenciação explicitada na fala
de Aresta? Seriam, então, os rótulos que determinam os modos de articulação da rede?
Na fala do sujeito da pesquisa está implícito um dos gargalos da RAPS que se refere à
participação do componente Urgência e Emergência na atenção à crise psiquiátrica. Durante a
circulação em território observando e conhecendo rotinas e atores em interconexões, já
despertávamos para a diferença existente entre a UPA, as USF, os CAPS, a enfermaria de
saúde mental alocada no hospital geral no que se refere às lógicas organizacionais, ao perfil
dos trabalhadores, à estrutura física e ambiência. Começamos a pensar como seria possível
fazer fluir uma linha de cuidado através de micro e macro espaços marcados por diferenças
expressivas, numa rede de fios interrompidos. Na subcategoria 5.2.2 Os nós da rede,
aprofundaremos a discussão sobre a problemática da urgência/emergência no contexto da
atenção psicossocial em rede. A priori, admitimos ser fundamental buscar a
complementaridade nas diferenças, reconhecendo a intersetorialidade – dentro e fora do setor
saúde – como imperativo para a articulação das RAS.
Tomando por base os excertos de falas apresentados a seguir, há que se problematizar
o matriciamento enquanto instrumento potente para articulação da rede. Vejamos:
Ano passado [2016] foi meio que uns rumores que o tratamento deles
[usuários da saúde mental] seria feito dentro da unidade [UBS] também.
Como é que vocês chamam quando a unidade [UBS] faz parte desse
tratamento terapêutico? (T_Folha).
116
Eu acredito que o matriciamento tem que começar com a psicoeducação para
eles entenderem como é esse público, como é essa rede de saúde mental pra
depois a gente começar a discutir os casos, mas infelizmente acontece o
contrário (T_Matiz).
Você está legal aí ela [a psiquiatra do CAPS] dá pra você [uma ficha de
encaminhamento] discriminando tudo que você está tomando, aí você vai pra
UBS do bairro e o clínico geral pega, olha sua ficha aí faz a receita pra você
pegar e eu pego no CAPS o medicamento (U_Rococó).
Fragmento do diálogo que aconteceu em uma das sessões de grupo focal:
– Você sabe o que é matriciamento? Eu confesso que é grego. Parece palavra
lá do alto planejamento (U_Renascença)
– Você vai continuar seu tratamento sem precisar de tá com o psiquiatra todo
tempo, aí você vai pra o clínico geral (U_Rococó)
– Mas o clínico geral não é psiquiatra (U_Haste)
–Ele vai fazer só sua receita dos medicamentos pra você ir pegar ou então
comprar porque tá cheio demais o CAPS, tá muito cheio (U_Rococó)
– Aí pega e empurra pra clínico geral tratar (U_Corrente).
Sobre as falas de trabalhadores e usuários apresentadas acima, o primeiro aspecto que
pontuamos refere-se à dificuldade que os profissionais têm de compreender o matriciamento,
o que se expressa na fala de Folha, mas que não é exclusividade deste sujeito. Durante o
período de circulação pelo território ficou evidente a fragilidade, especialmente na APS, em
relação ao saber e ao fazer que envolvem o apoio matricial, apesar de reconhecerem a
necessidade de tal prática para o cuidado em saúde mental no território (REGISTROS
FEITOS EM DIÁRIO DE CAMPO, 2017).
Um segundo tópico que enfatizamos nesta discussão, refere-se à dificuldade que os
usuários têm de entender o que é o matriciamento e de reconhecer a importância dessa prática
e do compartilhamento entre APS-CAPS para a continuidade do cuidado em território,
evitando reinternações e potencializando outros espaços do cuidado para além dos serviços
especializados em saúde mental. No fragmento de diálogo entre diversos usuários durante
uma das sessões de grupo focal é possível perceber, além de equívocos relacionados à lógica
do apoio matricial em saúde mental, o caráter medicalizador e a reprodução de uma lógica
medicalizante nas ações compartilhadas entre a APS e o CAPS, como vimos também na
categoria 5.1. Este fragmento nos reporta à primeira categoria de análise apresentada como
resultado desta pesquisa, quando debatíamos sobre os traços da medicalização e a
supervalorização da especialidade médico-psiquiátrica evidenciados no cuidado produzido em
território no contexto estudado.
117
O terceiro aspecto está relacionado à fragilidade – para não dizer negligência – do
componente educativo do matriciamento, situação que fica evidente na fala de Matiz e que
podemos perceber também nas entrelinhas da transcrição do diálogo entre os usuários
participantes da pesquisa.
A partir dos discursos dos sujeitos, interessa-nos pensar sobre o matriciamento em
saúde mental sob dois ângulos distintos entre si, porém interligáveis e inter-relacionáveis. De
um lado, a relação de apoio/suporte técnico-pedagógico que se estabelece entre as equipes
multiprofissionais. De outro, a forma como essa relação, que é ao mesmo tempo clínico-
assistencial e técnico-pedagógica, se materializa em ações voltadas para os usuários dos
serviços da saúde e se traduzem nos modos como os sujeitos vivenciam tal experiência.
Assim sendo, reconhecemos que o matriciamento, sob a perspectiva de serviços e de técnicos,
implica educação permanente, compartilhamento de saberes e de responsabilidades,
construção coletiva de projetos terapêuticos; para o usuário, resulta em compartilhamento do
cuidado, livre circulação pelos serviços da rede com potencialização de outros espaços de
cuidado, além de educação popular em saúde para subsidiar a compreensão da lógica
organizacional do cuidado em território.
O matriciamento ou apoio matricial constitui-se em um novo modo de produzir saúde
no território, no qual duas ou mais equipes – a equipe de saúde referência (equipe matriciada)
e a equipe especializada (equipe matriciadora) – trabalham na construção coletiva de projetos
terapêuticos junto à população. O apoio matricial em saúde mental deve combinar elementos
de atenção clínica com características pedagógicas, a fim de estimular o raciocínio, o diálogo
e o compartilhamento de saberes, evitando a prescrição de condutas por parte da equipe
especializada e proporcionando um espaço de estímulo ao crescimento das competências da
ESF relacionadas à saúde mental. Quando desenvolvido nesses termos, o apoio matricial se
constitui em ferramenta de transformação, tanto do processo saúde-doença quanto da
realidade das equipes e das comunidades, principalmente pela possibilidade de se realizar uma
clínica ampliada e a integração dialógica entre distintas especialidades e profissões
(CHIAVERINI, 2011).
Neste ponto, julgamos pertinente relatar a experiência vivenciada durante a circulação
em território, na qual tivemos a oportunidade de participar de uma reunião de matriciamento
realizada em um dos DS da cidade, na qual estavam presentes representantes de CAPS,
118
CREAS, NASF e Núcleo de Atenção à Saúde (NAS12
) do respectivo DS. As reuniões de
matriciamento do DS em questão acontecem sempre uma vez ao mês no auditório de um
CAPS. Durante as reuniões, são realizadas atividades como partilha e discussão de casos com
sugestões para possíveis resoluções das problemáticas elencadas, considerando os recursos
disponíveis no território. Percebemos que o matriciamento, apesar de sua importância
incontestável para a articulação da RAPS, é um dispositivo ainda subutilizado em Natal/RN,
tendo, cada DS, uma dinâmica própria para a sua realização. Ao final da reunião ficamos a
nos questionar o porquê desses encontros se realizarem entre as paredes do serviço
especializado. Acreditamos que esse momento que é tão rico deveria estar mais próximo da
rotina e do espaço físico das USF e do contexto territorial dos usuários. Outro aspecto que
pontuamos nesta experiência específica (e que não podemos afirmar se acontece com
frequência no cenário estudado) é a lacuna deixada pelos serviços de atenção básica
(USF/UBS), ou seja, pelos serviços que, em tese, seriam o público-alvo do matriciamento
(REGISTROS FEITOS EM DIÁRIO DE CAMPO).
São várias as barreiras enfrentadas por atores e serviços para a implementação do
apoio matricial em saúde mental, em que pese sua potencialidade enquanto articulador das
RAS. Uma das dificuldades enfrentadas é relatada por Chiaverini (2011) e refere-se à
desconstrução do que os profissionais da ESF entendem por saúde mental, para que assim seja
possível desvincular as práticas de saúde mental das atitudes voltadas para a doença mental –
diagnóstico, consultas especializadas e medicação. É preciso reconhecer também que tanto o
profissional matriciador quanto os matriciados são fontes de educação para a população,
desmistificando a loucura no imaginário social, promovendo a ressocialização da pessoa com
transtornos mentais, potencializando o acesso aos serviços de saúde e a adesão ao tratamento
(CHIAVERINI, 2011). Quando este componente pedagógico é negligenciado, como vimos na
fala de Matiz, o matriciamento deixa de ser realizado em plenitude, o que, certamente, traz
implicações para a articulação da rede.
Em se tratando do cenário municipal, Britto (2014), ao analisar as ações desenvolvidas
pelo NASF referentes ao apoio matricial em saúde mental, atenta para dificuldades
relacionadas à insuficiência de recursos humanos e de serviços substitutivos de saúde mental,
em que pese a relevância do matriciamento como instrumento de trabalho que influi
ativamente sobre crenças, valores e costumes de indivíduos e coletividades. A autora também
12
O Núcleo de Atenção à Saúde é um serviço que na época estava em construção e foi criado na perspectiva de
trabalhar junto com o NASF oferecendo suporte às equipes de saúde da família e às unidades básicas de saúde.
Naquele momento (julho de 2017), contava com psicólogo, assistente social, fisioterapeuta e enfermeiro.
119
comenta sobre a prática incipiente do diálogo interdisciplinar e do compartilhamento de
consultas e de visitas domiciliares por equipes multiprofissionais na atenção básica de
Natal/RN devido ao estigma da loucura no ideário social. A autora pondera que a
insuficiência de ações de educação permanente destinadas à qualificação em saúde mental
contribuem para a insegurança em relação ao acolhimento e acompanhamento de usuários,
enfatizando que as incertezas acerca do saber/fazer apoio matricial em saúde mental
fragilizam a integração dos profissionais e dos serviços. Por fim, reconhece que as ações do
NASF Natal/RN ainda não compõem um elo estruturado junto às RAS, há fragilidade nas
discussões sobre apoio matricial e escassez de profissionais que desempenham a referida
prática (BRITO, 2014).
Em estudo sobre as ações de saúde mental realizadas por equipes de APS em todo
território nacional, Dimenstein et al. (2018) constatam que o matriciamento, apesar de
referido, não é operacionalizado em mais de 50% das equipes, seja nas UBS, NASF ou por
iniciativa dos CAPS. O agendamento e acompanhamento de casos de saúde mental pelos
serviços da APS não acontece, o que sinaliza para a falta de um cuidado regular e continuado
em território. Esse quadro se agrava nas áreas consideradas como vazios assistenciais que,
para os autores, são aquelas áreas sem nenhum serviço substitutivo de saúde mental. De tal
modo,
“o apoio matricial, que se revelou como uma ferramenta pouco utilizada na
qualificação clínica e suporte técnicopedagógico, poderia constituir-se como
um dispositivo potente para que as equipes se desintoxicassem do discurso
sedativo e saíssem da passividade fatalista, do dogmatismo insuportável, do
empobrecimento das intervenções, e dos estereótipos que tornam os
profissionais impermeáveis à alteridade singular tão recorrente nos serviços
de saúde” (DIMENSTEIN et al., 2018, p. 83).
Considerando as falas dos sujeitos da pesquisa e o diálogo com a literatura da área, nos
inquietam os prejuízos que compreensão e prática distorcidas do apoio matricial podem trazer
ao processo de articulação da RAPS. Pelo que foi possível evidenciar ao longo da pesquisa,
esses déficits tem a ver com a (re)criação de rotas assistenciais que se estabelecem mais pela
falta de conhecimento sobre a lógica organizacional da atenção em rede – que menospreza a
prática do cuidado compartilhado e promove fluxos truncados que circulam os serviços
especializados – do que pela atitude empoderada de indivíduos que desenham eles próprios os
caminhos que os conduzem ao cuidado integral. Há que se considerar também nessa trama a
construção de vínculos entre os profissionais e entre estes e os usuários, a integração (ou não)
120
de serviços em rede e as implicações para a qualidade do cuidado em nível de APS, situações
que, em última instância, podem influenciar a articulação da RAPS.
Ao discutirmos sobre as estratégias formais de articulação da RAPS Natal/RN, vimos
que tanto o SISREG quanto o matriciamento em saúde mental apresentam fragilidades, sendo,
por vezes, subutilizados. A incipiência no desenvolvimento e aplicação das referidas
estratégias minimizam suas potencialidades e fragilizam a própria integração e articulação dos
serviços em rede.
O segundo modo de articulação evidenciado no contexto da RAPS Natal/RN diz
respeito às engrenagens (in)visíveis, às estratégias de cunho intersubjetivo que se propõem a
religar fios e nós promovendo a tessitura da rede e a continuidade do cuidado em território – é
o “mundo-pequenidade” dos atores da RAPS. Pelo que foi possível inferir, são essas
estratégias as predominantes no cotidiano da referida rede.
O “mundo-pequenidade” é a propriedade das redes reais, ou seja, aquelas encontradas
na natureza, na sociedade ou construídas como obra humana, de criar atalhos ou formas de
encurtar distâncias entre vértices da sua malha, tornando assim o “mundo pequeno”
(ALMEIDA-FILHO, 2006). Implica a construção de conexões que permitem atalhos sem
critérios fixos de planejamento e constituem formas eficientes e não organizadas de se chegar
à finalidade ou ao destino, se esforçando para manter os pontos conectados contra todas as
chances de queda e de ruptura. Atalhos como o “mundo-pequenidade” apresentam
propriedades e obedecem a regras que os tornam capazes de cumprir certas funções do
sistema que se pensava ser possível apenas de um modo racional e planejado (ALMEIDA-
FILHO, 2006). Nesta pesquisa, compreendemos o “mundo-pequenidade” como um atalho que
se expressa/materializa através do vínculo interpessoal entre os atores da RAPS, o uso de
tecnologias da comunicação e a realização de fóruns, reuniões e capacitações.
Estratégias como contato telefônico, troca de mensagens via aplicativo de internet para
smartphones, fóruns, reuniões e debates emergiram como alternativas desenvolvidas pelos
atores para transpor as barreiras burocráticas impostas pela própria instituição, a indefinição
de fluxos assistenciais e as dificuldades provenientes de uma estrutura operacional
precarizada. “Captamos” nessas estratégias algo em comum: a intencionalidade da
comunicação, seja pela aproximação física entre pessoas ou pelas facilidades proporcionadas
pelo mundo virtual. São recursos informais de comunicação, mas que se tornam
institucionalizados, a exemplo do whatsapp e de outros recursos disponíveis nos smartphones
para promoção da articulação da rede. Sobre este aspecto mencionamos o aplicativo para
celular desenvolvido pelo Laboratório de Inovação Tecnológica em Saúde da UFRN em
121
parceria com o HUOL para Gestão e Matriciamento Aplicado, o GEMA, que até o final do
período de construção de dados desta pesquisa encontrava-se em movimentos iniciais para
implementação.
Vejamos os fragmentos a seguir:
Lá no CAPS nós fazemos através de contato telefônico [ligação e via
whatsapp] e por escrito, faz os dois caminhos. A gente se articula bastante
através dos vínculos pessoais que a gente têm, mas que não deveria ser, a
gente utiliza porque é um instrumento importante (D_Brocatelo).
Reuniões de compartilhamento de cuidado onde a gente discute caso a caso,
a gente chama pra compartilhar com os outros serviços da RAPS – UBS,
CAPS, SAD [Serviço de Atenção Domiciliar] – pra tá discutindo caso,
fazendo o PTS do paciente, programando alta (T_Cordonê).
[Com] o HMN a gente só consegue [articular] quando é de médico para
médico... isso é o que vai truncando o meio do caminho (T_Abelha).
A AB precisa conhecer quem tá no serviço especializado e o serviço
especializado conhecer quem tá na AB, porque [quando] a gente conhece
quem são as pessoas que estão naquele lugar tudo se torna mais „fácil‟ [tom
de voz receoso]. (T_Escada).
Analisando as falas dos sujeitos, vimos em Brocatelo e em Escada os vínculos
interpessoais assumirem papel fundamental nas interconexões entre os serviços. Em Abelha,
mais do que afinidades entre pares, descortina-se a “velha” hierarquia que concentra sob o
domínio do médico o poder que o coloca como articulador da rede. Em Cordonê, um breve
relato de uma experiência que se revela como uma potencialidade no cenário local,
principalmente porque não depende de um vínculo interpessoal pré-estabelecido para
acontecer, ao contrário, revela-se espaço potente para o compartilhamento de saberes e
construção coletiva de projetos terapêuticos que findam por proporcionar a aproximação entre
técnicos de diversos serviços e setores.
Durante a circulação pela RAPS Natal/RN tivemos a chance de presenciar uma sessão
de compartilhamento do cuidado como a que é mencionada por Cordonê. Participaram do
momento a equipe multiprofissional composta por residente de psiquiatria, profissional de
educação física, psicóloga e terapeuta ocupacional, além da assistente social de um CAPS (de
outro município) com o qual o cuidado seria compartilhado. Na ocasião, aconteceu o relato do
caso do usuário e a exposição das necessidades gerais e específicas daquele indivíduo. O
CAPS, por sua vez, expressou as dificuldades em lidar com aquela demanda em particular,
mas comprometeu-se com o cuidado territorial. As equipes fizeram pactuações e assumiram o
122
compromisso de manter contato periodicamente para informar a situação do usuário. As
orientações para a alta hospitalar envolveram, além da medicação, a indicação de busca de
apoio social e de medidas de proteção da vida (o sujeito em questão tinha tentado suicídio) e o
reforço da importância da continuidade do tratamento. Julgamos esta estratégia adotada pela
equipe de Cordonê potente para a articulação do cuidado em rede territorial, mais uma ilha de
resistência que vem sendo bordada entre as remanescências do manicômio (REGISTROS
FEITOS EM DIÁRIO DE CAMPO).
A experiência relatada por Cordonê, juntamente com outras estratégias que vem sendo
desenvolvidas no município – fórum municipal intersetorial e capacitações disparadas pela
SMS em parceria com a UAP/HUOL e pelas sedes de DS – emergem no cenário estudado
como práticas inovadoras que apostam na potência do encontro entre os atores para a
construção de redes regionalizadas de saúde. São experiências como essas que reforçam a
potência do encontro nos fazem relembrar Merhy (2007) ao defender que a mudança no modo
de produzir saúde no Brasil – e, acrescentamos, de organizar serviços e modelos de atenção –
perpassa pela tarefa coletiva de trabalhadores no sentido de mudar o cotidiano do seu modo de
operar o trabalho no interior dos serviços de saúde.
Estudo realizado com trabalhadores da RAPS oriundos das diversas regiões do Brasil e
que objetivou conhecer a articulação entre os pontos da RAPS no cuidado às situações de
crise em saúde mental, verificou diferentes formas de articulação entre os diversos pontos da
referida rede temática. Com a pesquisa, concluiu-se que existe uma preocupação crescente
entre diretores e trabalhadores com o estabelecimento de novas estratégias para qualificação
do cuidado, através da realização de encontros em que os profissionais discutem novas
maneiras de prestar assistência ao indivíduo com sofrimento psíquico, além de criar meios
para que o trabalho se articule em rede (ANDRADE; ZEFERINO; FIALHO, 2016).
Vale ressaltar a dificuldade de acesso a informações para se problematizar e discutir
sobre a RAPS, assim como sobre a (des)articulação da rede. Isto porque grande parte das
pesquisas que se propõem a analisar ou avaliar a rede em questão, o fazem de modo
segmentado, estratificado por linha de cuidado (atenção à crise ou ao transtorno do espectro
autista, por exemplo), por componentes da rede (mais especificamente a inter-relação entre
APS e CAPS), por origem da demanda (drogadição ou transtorno mental), por faixa etária
(infanto-juvenil ou adulto); ou ainda por diagnóstico (destaque para a esquizofrenia e os
transtornos de humor e de ansiedade).
Debruçando-nos sobre as falas de Brocatelo e de Escada reconhecemos também a
representatividade dos vínculos interpessoais para os movimentos de articulação da RAPS
123
Natal/RN, o que nos impulsionou a pensar sobre a importância das (inter)subjetividades para
a concretização das RAS em território. Sobre este aspecto, Dimenstein et al. (2018) comentam
que os problemas vivenciados na efetivação das redes de saúde em todo território nacional,
dentre elas a RAPS, estão além das determinações macroestruturais. Cogitam os autores, que
a formação de vínculos, o acolhimento, a continuidade de cuidados, a competência cultural
dos profissionais – e certamente a articulação entre atores e setores –, requerem operações nos
domínios moleculares da sensibilidade.
Respeitando a subjetividade como um dos fios implicados na e para a tessitura das
RAS por um lado, e reconhecendo que a articulação da RAPS se faz também pelo encontro
entre os seus atores – gestores, trabalhadores e usuários – por outro, dirigimos nosso olhar
para o micro espaço, o espaço “interseçor” que circunscreve esse encontro de e para produção
da RAS, dentre elas a RAPS. Esclarecemos que o espaço “interseçor” ao qual nos referimos é
abordado por Merhy (2007, p. 87) que, sob inspiração deleuziana, usa o termo para “designar
o que se produz nas relações entre “sujeito”, no espaço das suas interseções, que é um produto
que existe para os “dois” em ato e não tem existência sem o momento da relação em processo,
e na qual os inter se colocam como instituintes na busca de novos processos”.
Ali, naquele espaço “interseçor” que se forma no encontro entre profissionais de
diferentes serviços – já que falamos em articulação de redes de saúde – e usuários,
reconhecemos a coexistência de duas dimensões: a que compete aos trabalhadores e suas
intencionalidades e finalidades e aquela que compreende o usuário e suas demandas de saúde
e de cuidado. Nesse momento de encontro e de negociação um jogo de produção de redes e de
compartilhamento do cuidado põe em confronto, nem sempre conflituoso, os sujeitos
enredados nessa trama.
Estaria no espaço “interseçor” da produção das redes a justificativa para a força do
“mundo-pequenidade” dos atores em face da articulação da RAPS Natal/RN? Imaginamos
que por trás dessa tendência de se buscar inter-relações com aquelas pessoas com as quais se
tem mais afinidade, com as quais se compartilham opiniões, experiências e modos de
conceber o cuidado psicossocial, estaria camuflado o desejo de produzir confrontos
“harmoniosos” e minimizar desgastes. Cogitamos ainda que, em prol da tranquilidade de uma
inter-relação que se estabelece entre pares, se permita perpetuar a autoridade e o poder do
discurso médico como regulador/articulador da rede reduzindo conflitos e tensões.
Reforçamos a importância dos recursos comunicacionais, especialmente aqueles
promotores de conexões virtuais, para a redução de distâncias e favorecimento de encontros
124
diante das incompatibilidades de agendas e rotinas. Todavia, ressaltamos que o virtual não
pode prescindir o real, o encontro presencial entre os atores.
Questionamos também a supervalorização dos vínculos e afinidades interpessoais
como estratégia para promover articulação da RAPS, pois aí está implícita a fuga das tensões
e dos embates, por vezes necessários para fazer fluir a rede. É preciso enaltecer a potência do
encontro como espaço para criação de vínculos entre trabalhadores e gestores e não o
caminho inverso, em virtude do qual se coloca as afinidades interpessoais como agenciadoras
dos encontros em saúde.
Surgiu durante as sessões de grupo focal a preocupação com a formação de parcerias
intersetoriais para responder a contento às necessidades suscitadas pelas peculiaridades e
complexidade da demanda, apontando para a necessidade de articulação para além do setor
saúde em prol da continuidade do cuidado em saúde mental no território. Preocupação que já
era cogitada na categoria 1.
A articulação a gente o tempo todo tenta provocar e somos provocados
também pelos outros pontos da RAPS... com a rede intersetorial também, por
que essas crianças e adolescentes também estão circulando em outros
territórios institucionais da assistência, da justiça, e por serem demandas
com a complexidade que vai além da questão da saúde se a gente não fizer
isso às vezes é como se estivesse “enxugando gelo” (D_Treliça).
A gente fala da RAPS voltado pra o lado do SUS, mas acontece que o SUAS
é muito importante também. Tem casos, às vezes, que é muito mais a
vulnerabilidade familiar e social do que o próprio transtorno que você
consegue estabilizar. Então precisa muitas vezes do CRAS pra dar esse
suporte (T_Cordonê).
Entre nós da própria RAPS é mais fácil ter essa articulação já que a gente
fala a mesma língua, mais [do que] as outras assistências. Acho que essa
articulação é um pouco ainda distante talvez pelo desenho da rede, a gente
realmente precisaria ter uma aproximação maior (D_Margarida).
As falas de Treliça, de Cordonê e de Margarida nos chamam a atenção para três níveis
de articulação inerentes ao modelo de atenção à saúde em redes, as quais comentamos
separadamente por questões didáticas, mas que reconhecemos como interligadas e inter-
relacionadas, atuando de maneira conjunta para a construção das RAS em território.
O primeiro ponto refere-se à articulação entre os serviços especializados em saúde
mental (SRT, CAPS, Hospital psiquiátrico de referência) para o cuidado continuado ao
indivíduo com transtorno mental ou abuso de álcool e outras drogas. Essa faceta da
articulação fica evidente quando Margarida comenta que “entre nós da RAPS” se fala “a
125
mesma língua”. Neste nível de articulação parece ser mais fácil manter as interseções e os
vínculos interpessoais se constroem pela própria afinidade/proximidade temática que
transversaliza os processos de trabalho. Neste mesmo recorte, ainda reconhecemos a redução
da RAPS ao componente especializado da rede, seja ele de média ou alta densidade
tecnológica.
A segunda face desse processo articulatório pode ser reconhecida na interconexão que
se estabelece entre os componentes da RAPS, levando-se em consideração todos os serviços
que a compõem. Entram em contato serviços e atores com lógicas e inclinações terapêuticas
diferentes, num movimento que exige um exercício maior de intersetorialidade, aumentando a
complexidade da articulação. Destaque para os serviços de urgência/emergência como nós/elo
de ligação entre a RAPS – em resposta à atenção à crise psiquiátrica desencadeada por surto
psicótico, abstinência ou overdose – e a Rede de Atenção à Urgência (RAU). Um ponto em
comum entre duas redes temáticas de atenção à saúde, um componente que religa duas lógicas
organizacionais, vulnerabilidades e agravos distintos entre si, mas que se entrecruzam para
oferecer atenção integral aos indivíduos.
A terceira vertente refere-se à articulação entre os serviços da saúde e os da assistência
social, que mesmo não estando legalmente incluídos na RAPS, são fundamentais para a
continuidade do cuidado em rede e que têm representatividade considerável na realidade local
– CRAS e CREAS. Aumenta ainda mais a complexidade da articulação da rede e a exigência
intersetorial agora rompe o domínio da saúde.
Apesar da relevância das parcerias intersetoriais para a continuidade do cuidado em
território, como visto na fala de Treliça e de Cordonê, esse tipo de conexão encontra-se
burocratizada, o que impede que as necessidades dos sujeitos sejam supridas em tempo hábil,
fazendo os trabalhadores recorrerem às estratégias informais de articulação. Vejamos os
fragmentos a seguir:
Interessante que quando a instituição entra em contato com um desses
centros – o CREAS e o CRAS – às vezes é mais difícil do que se ele [o
usuário] fosse pessoalmente lá (T_Abelha).
Às vezes a gente liga pra o CAPS, é mais fácil. Mas quando a gente liga pra
assistência eles dizem „Ah não, vocês têm que mandar um ofício pra ir e pra
voltar pra secretaria‟ e aí já passou [o tempo] (T_Cordonê).
As falas de Abelha e Cordonê corroboram relatos que ouvimos durante a circulação
em território a respeito da dificuldade de acesso e de estabelecimento de parcerias com os
126
serviços da assistência social. Fato preocupante, principalmente se considerarmos a
representatividade que os serviços vinculados a este setor vêm conquistando no contexto da
atenção psicossocial, especialmente nas regiões onde não há serviço substitutivo de saúde
mental. Nestes casos, parece ficar mais evidente o uso (e a necessidade?) de iniciativas
informais de articulação mediadas pelos vínculos interpessoais entre os trabalhadores.
Consideramos animador encontrar evidências do reconhecimento da importância de
parcerias intersetoriais no cuidado em saúde mental. Entretanto, diante do cenário analisado
concordamos com Lettiere (2014) ao afirmar que o caminho que conduz à intersetorialidade
esbarra na diversidade interna de conhecimentos estruturados em disciplinas específicas,
assim como dos compromissos e projetos profissionais desarticulados. Reconhecemos nas
disciplinas/no saber disciplinar outra face dos muros mentais que cerceiam a livre circulação
pelas RAS dos usuários “marcados” pelo diagnóstico psiquiátrico e que findam por encurralar
o usuário da saúde mental entre “guetos” especializados. A este respeito, retomamos Paiva,
Ramos e Guimarães (no prelo) e questionamos se ao invés da efervescência de movimentos
intersetoriais estaríamos diante da guetização de serviços e sujeitos, ainda que se tenha
“integração” como diretriz.
No contexto estudado, existe um fluxo de encaminhamento para
documentos/solicitações entre os setores da saúde e da assistência social, mas por ser um
caminho demorado muitas vezes não consegue suprir as necessidades das pessoas e dos
serviços (REGISTROS FEITOS EM DIÁRIO DE CAMPO). Devido a esta dificuldade, os
funcionários burlam, por vezes, o sistema e apelam para as articulações informais, aquelas
parcerias que se dão “mais pela amizade do que pelo fluxo” da rede de atenção, como no
recorte abaixo:
Dependendo da boa vontade dos funcionários, às vezes a gente consegue via
servidor, [se] conhecer alguém. Quando você conhece você liga direto pra o
coordenador do CRAS, é mais fácil. „A gente vai e depois vocês fazem essa
parte [burocrática]‟, adiantam (T_Abelha).
Partindo destes recortes, pretendemos pensar sobre a intersetorialidade tanto dentro
quanto fora do setor saúde e sua importância para a articulação da RAPS e,
consequentemente, para a continuidade do cuidado. Destacamos, ainda, a representatividade
do “mundo-pequenidade” dos atores no processo de articulação intersetorial, ponderando os
riscos de se depender da “boa vontade” dos profissionais para religação de serviços e setores.
127
Para caminhar pelos trilhos da intersetorialidade, julgamos pertinente refletir sobre
este que é um conceito polissêmico. Começamos por admitir que a intersetorialidade não é
antagônica da setorialidade, ao contrário, fortalece as políticas particulares ou setoriais,
universalizando-as pela reciprocidade que se estabelece entre elas. Em linhas gerais, a
compreensão deste conceito perpassa dois pontos principais: 1) intersetorialidade enquanto
dispositivo de gestão para atuar sobre os determinantes sociais da saúde; neste sentido,
representa uma estratégia de articulação entre “setores” sociais diversos e especializados
numa nova lógica de gestão que transcende um único “setor” da política social; 2)
intersetorialidade enquanto um processo revolucionário de ruptura com a tradição
fragmentada da política social divida em setores; neste sentido, representa uma ruptura
epistemológica com os modelos disciplinares que promove a reorientação de “conceitos,
valores, culturas, institucionalidades, ações e formas de prestação de serviços, além de um
novo tipo de relação entre Estado e cidadão” (AKERMAN et al., 2014; PEREIRA, 2014, p.4).
Para Junqueira (2000), a ação intersetorial surge como uma nova possibilidade para
resolver os problemas que incidem sobre uma população em um determinado território, pois
aponta para uma visão integrada dos problemas sociais, assim como para suas possíveis
soluções. A intersetorialidade é uma nova maneira de abordar os problemas sociais que
incorpora a ideia de integração, de território, de equidade e de direitos sociais. Daí porque
Almeida-Filho (2000) reconhece a intersetorialidade como uma estratégia potente de
interferência em problemáticas complexas.
A intersetorialidade constitui uma concepção que deve informar uma nova maneira de
planejar, executar e controlar a prestação de serviços, para garantir um acesso igualitário aos
desiguais. Isso significa alterar toda forma de articulação dos diversos segmentos da
organização governamental e de seus interesses. Assim sendo, a intersetorialidade busca
superar a fragmentação das políticas, ao considerar o cidadão na sua totalidade
(JUNQUEIRA, 2000).
Interessa-nos também pensar a intersetorialidade enquanto uma das dimensões da
integralidade, o que já era comentado por Ayres (2011) ao reconhecer dentre os campos
retóricos da integralidade o eixo das articulações entre saberes e práticas. O referido autor
identifica no eixo das articulações “os graus e modos de composição de saberes
interdisciplinares, equipes multiprofissionais e ações intersetoriais no desenvolvimento das
ações e estratégias de atenção à saúde”. Articulações estas que se desenvolvem com o
propósito de fomentar melhores condições para uma resposta efetiva às necessidades de saúde
em uma perspectiva ampliada, ou seja, que não se restrinjam, e sem negligenciar, aspectos
128
como prevenção, correção e recuperação de distúrbios morfológicos ou funcionais do
organismo (AYRES, 2011, p. 42).
Pensando o contexto do cuidado em saúde mental de base territorial, resgatamos
Viegas e Penna (2015) para relembrar que o cuidado integral em saúde perpassa pela
articulação em forma de rede entre todos os níveis de atenção à saúde e com os demais setores
governamentais e não governamentais, em prol da garantia e proteção da saúde como direito
social instituído.
Com base no exposto e apoiados em Ayres (2011) e em Viegas e Penna (2015),
identificamos a intersetorialidade como um dos pilares da integralidade e condição sine qua
non para a articulação das RAS e para a continuidade do cuidado em saúde mental no
território.
Inspirados na trindade “indivíduo-espécie-sociedade” anunciada por Morin (2012) na
qual as instâncias ligadas em trindade são inseparáveis e cada termo gera e regenera o outro,
ousamos aceitar no “anel reflexivo” entre integralidade-compartilhamento do cuidado-
intersetorialidade, a trindade da RAS, e por extensão da RAPS. Reconhecemos, então, na
“trindade da RAS” o princípio orientador dos artesãos do SUS nos movimentos de tessitura
das redes.
Sendo assim, para fazer avançar a articulação intersetorial como condição fundamental
à concretização da RAPS, é preciso enveredar pelo caminho da intersetorialidade como
ruptura com a tradição das políticas organizadas/divididas por setores e avançar em direção de
uma “interdependência generosa em que a intersetorialidade não é apenas a instalação de
arranjos multisetoriais, mas a decisão ético-política deliberada de que o Estado e sua gestão e
políticas servem ao interesse comum” (AKERMAN et al., 2014, p. 4298). Pensando as
dificuldades de articulação intersetorial evidenciadas no cenário estudado, julgamos ser
preciso transitar pelos micro e macro espaços das políticas de saúde, assistência e seguridade
social e estimular uma cultura da intersetorialidade que transcenda o domínio teórico para
atingir o campo prático de atuação profissional rumo a um “agir intersetorial”.
Interessa-nos também, comentar a participação da (inter)subjetividade nos
movimentos de intersetorialidade reconhecidos no cenário estudado, que resvala nos riscos de
se depender da “boa vontade” ou da “amizade” dos profissionais para fazer fluir a RAPS.
Mais uma vez evocamos Ayres (2011) e suas discussões sobre as dimensões da integralidade,
mais especificamente no tocante à qualidade e natureza das interações intersubjetivas no
cotidiano das práticas de cuidado. Nesta perspectiva, busca-se “a construção de condições
efetivamente dialógicas entre os sujeitos participantes dos encontros relacionados à atenção à
129
saúde, sejam pessoa a pessoa, sejam na perspectiva de equipes/comunidades, sem o que as
aspirações dos eixos anteriores não podem ser realizadas” (AYRES, 2011, p. 42).
Discutiremos a seguir, as principais problemáticas evidenciadas ao longo do nosso
caminhar pela RAPS Natal/RN que se levantam como fatores dificultadores da integração e
articulação dos serviços em rede.
5.2.1 Os nós da rede
Ao aprofundar o olhar sobre a articulação da RAPS Natal/RN, evidenciamos a
presença de nós atravancando os movimentos de tessitura da rede. Salientamos que a palavra
nós está considerada aqui em seu sentido figurado como sendo “aquilo que causa dificuldade,
embaraço, empecilho” (HOUAISS; VILLAR, 2009). São pontos de tensão dignos de destaque
e que envolvem a estrutura operacional da RAPS Natal/RN e os componentes APS, Urgência
e Emergência e o CAPS.
Tendo o Pensamento Complexo como suporte para compreensão dos achados,
percebemos que estes nós afloram como que num tecido de acontecimentos que comporta
ações, interações, retroações, determinações, acasos e que parecem apresentar certa
recursividade entre si e entre eles e a articulação da RAPS. Entretanto, por questões didáticas,
apresentaremos separadamente cada um desses pontos de tensão, buscando contemplar em
cada um deles os elementos constitutivos desse tecido complexo.
5.2.1.1 Estrutura operacional
Iniciamos a apresentação dos resultados alocados nesta subcategoria com as
problemáticas que, em conjunto, conformam o nó equivalente à estrutura operacional da
RAPS.
A gente tem déficit de profissionais, um processo seletivo que está o tempo
todo se renovando ou não. Nisso a gente capacita, coloca a pessoa dentro do
contexto da saúde mental e quando dá um ano o contrato acaba. Quanto o
serviço perde nessa rotatividade de profissionais?! (T_Abelha).
No distrito em que eu trabalho é uma das carências que eu acho
extremamente importante é a falta de um CAPS AD onde o índice de
substância psicoativa só aumenta diariamente e a gente não tem esse
dispositivo (D_Brocatelo).
130
Nós temos um vazio hoje de 34 médicos, [profissionais] já estão pra se
aposentar não só na atenção médica, especialista e generalista, mas também
cirurgiões dentistas, atendentes de saúde bucal, técnicos de enfermagem,
enfermeiros, então a tendência é complicar (D_Areia).
Não tem vaga, não tá atendendo, vai pra um canto, vai pra outro, aí depois
você chega lá aí o médico atende você, mas não tem o remédio e tem que
comprar, é muito caro, você não está em condição, se frita porque pra entrar
no alto custo é difícil... você vai para uma consulta com uma médica, quando
você volta já é outro médico (U_Rococó).
Eu acho que a gente tem que ter esse profissional com perfil de saúde
pública e que ele faça parte da rede. Lá meus médicos são todos de
cooperativa, eles não têm essa sensibilidade de matriciamento, eles não têm
essa sensibilidade de reunião, não criam vínculo entre profissional e usuário
(D_Anjour).
Nos recortes acima, temos expostos problemas que perpassam desde vazios
assistenciais e capacidade instalada até a dificuldade de acesso a serviços e medicação,
englobando toda uma problemática relacionada a recursos materiais e humanos que toca
também os determinantes sociais da saúde. São problemáticas que emergem, não
necessariamente por causa do processo de regionalização – visto que algumas delas já são
temas recorrentes nas discussões da área –, mas que ficam mais evidentes e ganham “novos”
contornos e consequências diante de tal processo. No que tange às problemáticas que
envolvem a estrutura operacional da RAPS, muitas vertentes podem ser exploradas.
Entretanto, para esta discussão optamos por nos ater àquelas levantadas pelos sujeitos durante
as sessões de grupos focais como problemáticas que tangenciam a articulação da RAPS
Natal/RN.
As falas de Abelha e de Areia trazem à tona uma série de dificuldades vivenciadas
pelos serviços da RAPS, seja em nível de atenção primária ou nos componentes
especializados da referida rede. Reconhecemos que muitas dessas problemáticas estão inter-
relacionadas, retroagindo umas sobre as outras. Por exemplo, a nosso ver, o déficit de
profissionais nos serviços influencia e é influenciado pelas inconsistências das equipes,
principalmente de APS. Estas problemáticas, por sua vez, estão relacionadas com a
precarização dos vínculos empregatícios na saúde e consequente rotatividade profissional,
situação que se agrava pela tentativa de retomada neoliberal, com minimização de postos de
trabalho assegurados via concursos públicos para a área da saúde e ampliação de vagas por
apadrinhamento político (que ficam à mercê de campanhas eleitorais e obras/projetos
eleitoreiros).
131
Brocatelo coloca em pauta a dificuldade relacionada à capacidade instalada (ou seria
ausência dela?), referente ao serviço especializado para atendimento à demanda de álcool e
outras drogas. Problemática real, elencada por outros participantes durante as sessões de
grupo focal e evidenciada durante a circulação pela RAPS Natal/RN. No entanto, se
procurarmos referências nacionais de avaliação da cobertura assistencial de serviços de
atenção psicossocial especializada encontraremos em informativo eletrônico produzido pela
Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas uma leitura otimista do cenário
brasileiro. De acordo com o referido material, constata-se na atualidade uma cobertura
assistencial considerada “muito boa” tanto em nível nacional quanto estadual, sendo a
referência potiguar superior a média nacional – 0,92 e 0,86 CAPS/100 mil hab.,
respectivamente (BRASIL, 2015a).
Buscando uma maior aproximação ao cenário estudado fomos pesquisar no rol de
diretrizes, objetivos, metas e indicadores (TABNET/DATASUS) o indicador de cobertura
CAPS para o ano de 2015. Lá constatamos que na sétima região de saúde do RN, a região
metropolitana (na qual está alocado o município de Natal), a cobertura era equivalente a 0,78
CAPS/100 mil hab. – menor do que o parâmetro estadual, mas ainda assim considerada
“muito boa”. Afunilando a busca, encontramos para o município de Natal/RN a média de 0,57
CAPS/100 mil hab., referência bem menor do que o parâmetro regional, mas considerada
“boa” pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2018).
Observamos com essa busca preliminar que quanto mais nos aproximamos do cenário
municipal mais o indicador “Cobertura CAPS” diminuiu. Conversando com técnicos e
usuários dos serviços de saúde participantes desta pesquisa, percebemos que os vazios
assistenciais ficam mais evidentes, principalmente se considerarmos a relação entre as
características populacionais e a capacidade instalada por DS no município em questão
(destaque para os DS Norte I e II e, no caso específico de atenção psicossocial especializada
em álcool e drogas, para o DS Oeste). Questionamo-nos, então, sobre os critérios
considerados para a elaboração destes parâmetros de avaliação a respeito da cobertura de
atenção psicossocial especializada – a falácia da adequação da cobertura CAPS é abordada em
Gonçalves et al. (2010) e comentada por Lejderman (2010).
A expansão/ampliação da cobertura assistencial não é negada, mas colocamos em
questão se aquilo que o Ministério da Saúde considera como “muito bom” é capaz de atender
satisfatoriamente à demanda dos usuários por ações e serviços de saúde. Por outro lado,
cogitamos se a maneira como esses serviços especializados são utilizados pela população e
132
pelos próprios trabalhadores do serviço especializado (o que é mais grave), teria contribuição
para essa sensação de vazio assistencial e de superlotação dos serviços especializados.
A fala de Rococó alerta para a dificuldade de acesso às ações e serviços de saúde seja
em nível primário, especializado ou alta complexidade, sentida pelos usuários da RAPS
Natal/RN. Interessante perceber que, mesmo sem a intenção de fazê-lo, a fala de Rococó vai
ao encontro das situações de vazio assistencial, inconsistências das equipes e rotatividade de
profissionais, fatores sinalizados também pelos técnicos que participaram da pesquisa. Soma-
se à fragilidade no acesso a falta de medicação na rede, agravada pela condição
socioeconômica precária de grande parte dos usuários da saúde mental brasileira. Silva e
Mota (2016) em pesquisa realizada com gestores de diversos municípios brasileiros já
elencavam como um dos desafios para a regionalização da saúde o acesso às ações e serviços.
Ao comentar sobre o perfil profissional para atuar na saúde pública, está implícita na
fala de Anjour a importância da formação em saúde em consonância com os princípios do
SUS e com preceitos da RPb, assim como com o novo modelo de atenção e de trabalho em
rede. Lobosque (2011) traz contribuições para a discussão desta temática ao abordar as
dificuldades de se atingir um nível avançado de formação para atuar no campo da saúde
mental coletiva, o que a autora justifica pela distância ainda existente entre a Reforma
Psiquiátrica e a universidade. Neste cenário, destaca a Lobosque, a educação permanente
desponta como indispensável aos gestores e trabalhadores para que problematizem as
situações inusitadas dentro das práticas que exercem nos serviços de saúde. Acrescentamos a
importância da sensibilização para os princípios doutrinários do SUS – Universalidade,
Integralidade e Equidade – para superar a lógica de mercado que ainda permeia os
procedimentos em saúde/saúde pública.
Ainda sobre a formação/educação para a área da saúde, resgatamos Ceccim e
Feuerwerker (2004) e a emblemática imagem do quadrilátero da formação para a área da
saúde que, apesar de reconhecidamente difícil de ser aceita e implantada como política de
educação, merece ser pensada e discutida como alternativa para uma formação condizente
com o sistema de saúde brasileiro. Ensino/gestão setorial/práticas de atenção/controle social
conformam o quadrilátero da formação em saúde, uma “teoria-caixa de ferramentas” que
almeja construir uma educação responsável pela transformação na realidade, pela negociação
e pactuação de processos, por convocar protagonismos e detectar a paisagem interativa e
móvel de indivíduos, coletivos e instituições, como cenário de conhecimentos e invenções.
“No quadrilátero estão aspectos éticos, estéticos, tecnológicos e organizacionais, operando em
133
correspondência, agenciando atos permanentemente reavaliados e contextualizados”
(CECCIM; FEUERWERKER, 2004, p. 59).
Outro aspecto que destacamos na fala de Anjour tem a ver com a incompatibilidade
entre o perfil profissional do “médico de cooperativa” – figura comum nos serviços de saúde
pública do município e do estado do RN – e aquele necessário ao desenvolvimento da atenção
psicossocial em rede. A associação de médicos em cooperativa vem despontando no Brasil e
no RN como uma “alternativa” – questionável, diga-se de passagem – assumida pelo governo
para continuar arcando com as despesas para manutenção da oferta de serviços e do quadro de
funcionários. Por outro lado, as cooperativas médicas atraem o profissional por oferecer
melhores salários para o desempenho das mesmas atividades desenvolvidas pelo trabalhador
concursado. O resultado é uma prática regida pela lógica de mercado e a negligência de ações
fundamentais ao processo de trabalho e ao cuidado compartilhado em rede. Admitimos que
esta seja uma problemática que merece ser estudada com mais afinco em outros estudos, por
ora, nos interessa comentar que esta é uma dificuldade que vem sendo sinalizada no cenário
local, impactando, inclusive, nos processos de trabalho e nos concursos públicos realizados
para o provimento de vagas em serviços públicos municipais e estaduais.
E o que tais problemáticas reconhecidas como um dos nós da RAPS Natal/RN tem a
ver com os modos de articulação desenvolvidos no cenário em análise? A nosso ver, as
situações anteriormente comentadas – vazios assistenciais (escassez de profissionais, equipes
e/ou serviços), precarização dos vínculos trabalhistas e dificuldades de aceso a ações e
serviços – conformam uma trama complexa que resulta em encaminhamentos desnecessários
e/ou equivocados que priorizam os serviços especializados – CAPS e hospital psiquiátrico ,
com consequente superlotação destes serviços, ausência de vínculos entre profissionais e entre
estes e os usuários, o que pode trazer implicações para a adesão e a continuidade do
tratamento. Admitimos que as situações enunciadas influenciam-se mutuamente e,
retroagindo, potencializam-se contribuindo para a desarticulação da rede e prejudicando a
continuidade do cuidado em território.
5.2.1.2 A APS e o compartilhamento do cuidado em saúde mental
O segundo nó ao qual nos referimos diz respeito à fragmentação encontrada na rede
em contraposição a necessidade de uma ética de compartilhamento do cuidado e do trabalho
em rede que transversaliza a APS, o componente da Urgência e Emergência e o CAPS.
Iniciamos a discussão pela APS, mais especificamente a UBS/ESF, comentando sobre a
134
dificuldade deste componente da rede em acolher a demanda da saúde mental. Tal realidade é
constatada nos relatos abaixo:
A gente sente dificuldade de chegar, parar um pouco com a UBS pra fazer as
reuniões, mas a diferença é nítida quando se tem um diretor que tem essa
abertura pra saúde mental, a conversa flui muito mais (T_Abelha).
Eu não tinha como fazer [grupos terapêuticos], eu não tinha um psicólogo,
eu não tinha um assistente social... (D_Caseado).
A gente vê a necessidade de esclarecimento das pessoas em relação à saúde
mental porque está muito obscuro para muitos, falo isso dentro da minha
própria unidade. E lá na unidade a dificuldade dentro dessa comunicação
ainda existe com o CAPS ou com o CRAS também (T_Folha)
Eu acreditava mais se existisse isso, uma ação que estivesse dentro da
agenda da AB pra saúde mental (T_Escada).
Eles do CAPS estão indo nos postos de saúde, vai em todas as UBS dizer
explicar que a gente tá matriciado, todas essas coisas. Porque a gente é uma
dificuldade, eles não querem aceitar. Aí agora o CAPS foi fazer essa reunião
com a diretora das UBS (U_Rococó).
A problemática da APS no contexto das RAS já é assunto debatido em diversos
materiais encontrados na literatura da área, a exemplo do estudo de Dimenstein et al. (2012).
Os autores comentam sobre dificuldades relacionadas à implantação do matriciamento – como
evidenciamos na pesquisa em tela e discutimos anteriormente – e sobre o desenvolvimento de
ações compartilhadas pelas equipes da ESF, NASF e serviços substitutivos nos territórios de
vinculação dos usuários, além de indícios da precariedade em cobrir as necessidades de
suporte em saúde mental apresentadas pelas equipes da ESF que, diga-se de passagem,
crescem a cada dia.
As falas dos participantes da pesquisa apontam para a hesitação da UBS em acolher os
usuários que apresentam transtorno mental, para a dificuldade sentida pelos profissionais do
serviço especializado – CAPS – em adentrar a rotina e a agenda da UBS para a realização do
apoio matricial (subtende-se) e para o desconhecimento das equipes das UBS em acolher e
realizar atividades voltadas para a prevenção e promoção da saúde mental. Problemáticas que
têm como pano de fundo a contradição entre a fragmentação encontrada em ações e serviços
de saúde e a necessidade do compartilhamento do trabalho e do cuidado impulsionada pelo
estabelecimento das RAS.
Em estudo que buscou investigar, em todo território nacional, as ações de saúde
mental realizadas por equipes de atenção primária em locais sem serviço substitutivo de saúde
135
mental, Dimenstein et al. (2018) constataram a falta de capacitação dos profissionais para
realizar o acolhimento ao usuário que demanda cuidados em saúde mental. Os autores
identificaram, ainda, que menos da metade das equipes incorpora em suas agendas atividades
em saúde mental e que as consultas não são planejadas de acordo com as necessidades dos
usuários, com indícios de pouca penetrabilidade das ações de saúde mental desenvolvidas
pelas equipes da atenção primária. Observando estes achados ficamos a nos questionar se nos
locais onde não há serviço substitutivo – e teoricamente a APS teria uma maior
responsabilização com o acompanhamento territorial do usuário da saúde mental – o cenário é
esse, imaginamos como deve estar naquelas localidades que dispõem de serviços
especializados como o CAPS, os quais são incumbidos, muitas vezes, da responsabilidade
praticamente total com esse público em particular.
Chiavagatti et al. (2012) ao analisarem, via Projetos Terapêuticos Singulares, as
formas de articulação entre os CAPS e os serviços da APS em 23 cidades da Região Sul do
Brasil, identificaram que na organização da rede as relações entre as ações do serviço de
saúde mental e as ações da APS aparecem mais como princípios teóricos do modelo de
atenção psicossocial em rede do que como detalhamento explícito de como estas ações
ocorreriam na prática. Os autores ainda pontuam que as sugestões de movimentações
expressas pelos profissionais nos PTS não são suficientes para gerar articulação entre os
diversos serviços da rede de atenção. Concluem alertando para a articulação de saberes – entre
APS e CAPS, imaginamos nós – como estratégia para atender adequadamente à complexidade
da demanda de quem procura ajuda nesses dois serviços. Articulação esta que poderia se dar
pelo matriciamento em saúde mental, mas que atualmente apresenta-se como uma prática
incipiente como abordado no início da discussão desta segunda categoria.
Para pensarmos sobre a problemática da APS no contexto da atenção à saúde em rede,
que como vimos não é exclusividade do cenário estudado, julgamos pertinente revisitar as
premissas básicas das RAS, especialmente no que se refere ao papel desenvolvido pela APS
para, a partir de então, ensaiarmos possíveis respostas às questões sinalizadas pelos sujeitos da
pesquisa.
A APS é colocada, em Mendes (2011), como o centro de comunicação das RAS, o nó
intercambiador de onde são coordenados os fluxos do sistema de atenção à saúde. Entretanto,
a compreensão e o reconhecimento do protagonismo da atenção primária no contexto da
atenção em rede envolvem questões políticas, culturais e técnicas. Certamente, a hegemonia
(ainda persistente) dos sistemas fragmentados de atenção à saúde, voltados prioritariamente
para a atenção às condições agudas e à agudização das condições crônicas, está na base da
136
desvalorização da APS. O que é fortalecido por um sistema de pagamento por procedimentos
baseado na densidade tecnológica dos diferentes serviços (MENDES, 2011).
No âmbito da saúde mental, a portaria 3.088/2011 reconhece como responsabilidades
das UBS o desenvolvimento de ações de promoção de saúde mental, prevenção e cuidado dos
transtornos mentais, ações de redução de danos e cuidado para pessoas com necessidades
decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, compartilhadas, sempre que necessário,
com os demais pontos da rede (BRASIL, 2011a). A este respeito, Chiaverini (2011)
argumenta que o indivíduo com transtorno mental, ainda que grave, deve ter seu espaço de
cuidado e de atenção na APS, devendo os profissionais de saúde da família compreender que
a contribuição com à adesão ao tratamento, o próprio acolhimento, os cuidados clínicos e a
inserção na comunidade são ações que podem e devem ser realizados pela equipe da ESF.
Apesar da concordância de que a APS é o centro de comunicação das RAS e
ordenadora do cuidado do cidadão, muitas são as evidências de que esse nível de atenção não
vem sendo qualificado para cumprir essa função de forma adequada, em que pese o
crescimento do aporte de recursos despendidos pela União para este fim. O que acontece é
que a implantação de programas para qualificação da APS – a exemplo do Programa de
Requalificação das Unidades Básicas de Saúde, do Programa de Saúde na Escola, das
Academias da Saúde, do Programa de Melhoria do Acesso e Qualidade (PMAQ), do Brasil
Carinhoso, do aumento das equipes do NASF, do Telessaúde/Telemedicina, do Programa de
Valorização da Atenção Básica (PROVAB) e do Mais Médicos – tem sido realizada de forma
desarticulada, o que contribui para a perpetuação de um modelo de saúde fragmentado,
contrariando as premissas de organização das RAS (BRASIL, 2015b). Nesses casos,
pensamos que para potencializar essas iniciativas seria interessante transpor a lógica de
atuação por programas – que pressupõe uma “sequência pré-estabelecida de ações encadeadas
e acionadas por um signo ou sinal” – para serem desenvolvidas enquanto estratégias de
qualificação da APS. Reconhecendo que as estratégias (re)produzem-se “durante a ação,
modificando, conforme o surgimento dos acontecimentos, a conduta desejada”, julgamos que
esta seria uma forma potente de lidar com o cenário da saúde coletiva que envolve incertezas
e mudanças constantes (ALMEIDA, 2012, p. 59).
Além das dificuldades já elencadas, acrescentamos o precedente que se abre com a
própria portaria 3.088/2011, facultando a ordenação do cuidado em saúde mental ao CAPS
como é possível perceber na transcrição do artigo 7o inciso 3
o: “a ordenação do cuidado estará
sob a responsabilidade do Centro de Atenção Psicossocial ou da Atenção Básica, garantindo
permanente processo de cogestão e acompanhamento longitudinal do caso” BRASIL (2011a,
137
tl.1). Acreditamos ser necessária uma releitura da própria PNSM e de sua base jurídica, no
sentido de se atualizar discursos e compreensões tendo como norte o novo modelo de atenção
à saúde em rede.
Em artigo que discute sobre o papel da APS na construção de redes temáticas de
saúde, Cecílio et al. (2012) iniciam reconhecendo-a como centro de comunicação das redes
temáticas, como reguladora do acesso e utilização dos serviços necessários para a
integralidade do cuidado. A discussão gira em torno de três achados principais: a rede básica
como posto avançado do SUS que contempla referências positivas sobre a APS de produção
de valores de uso mesmo para os pacientes utilizadores de serviços de alta complexidade; a
rede básica vista como lugar de coisas simples onde se discute a negligência do caráter
complementar da APS para assumir uma posição subalterna em relação aos serviços de saúde
e profissionais que operam com maior densidade tecnológica; há uma impotência
compartilhada entre usuários e equipes quando se trata da rede básica funcionar como
coordenadora do cuidado, em que se discute a existência de indícios de que ela não reúne
condições materiais (tecnológicas, operacionais, organizacionais) e simbólicas (valores,
significados e representações) de deter a posição central da coordenação das redes temáticas
de saúde.
Concordamos com Cecílio et al. (2012) que o usuário real desloca-se pelas RAS
movido por necessidades de saúde por vezes “distorcidas” pela reprodução ideológica que a
medicina tecnológica, em parceria com o complexo médico-industrial, vai produzindo na
sociedade e é partir de tal julgamento que vai produzindo significados para a rede básica real,
muito além de todos os modelos idealizados do seu funcionamento. E essa construção social e
cultural das necessidades de saúde e dos formatos de atenção tem representatividade
considerável quando está em pauta o cuidado em saúde mental. Assim se vincula o “doido” ao
CAPS ou ao hospital psiquiátrico.
Por fim, revendo as características do cenário estudado nesta pesquisa imaginamos que
a forma como o cuidado em saúde mental vem sendo desenvolvido – fragmentado, com
ênfase na medicação e na consulta médico-psiquiátrica – não provoca a APS, especialmente a
UBS/ESF, para a necessidade de articulação com os demais pontos da RAPS para o
seguimento territorial desses indivíduos. Primeiro porque este componente parece não estar
implicado nesse cuidado. Segundo porque para produzir um cuidado com essas características
basta a consulta com o especialista e a renovação da receita pelo médico da APS.
Para que a APS conquiste de fato a posição de centralidade que lhe é conferida na
constituição de redes de cuidado, o Conselho Nacional dos Secretários de Saúde concorda que
138
é fundamental a incorporação de processos educacionais potentes voltados para trabalhadores
e usuários de forma contínua e simultânea em todo o País que possibilitem a transformação de
realidades. Além disso, reconhecemos a relevância da participação das Secretarias estaduais e
municipais de saúde na implantação das RAS e na inovação das práticas em saúde/saúde
mental coletiva (BRASIL, 2015b).
5.2.1.3 A Urgência e Emergência no contexto da RAPS
Ao analisarmos a RAPS Natal/RN com foco para a articulação da rede em prol da
continuidade do cuidado em território, de antemão já imaginávamos a relevância do
componente da Urgência/Emergência no contexto da atenção em saúde mental em rede e de
base territorial. Isto porque, partimos do entendimento de que os modos de atenção à crise são
fundamentais para evitar/minimizar o “circuito psiquiátrico” que finda por enaltecer o hospital
psiquiátrico como caminho prioritário, quiçá exclusivo, para resolução dos casos.
A atenção à crise psiquiátrica é considerada um desafio para a atenção psicossocial,
seja ela desencadeada por transtorno mental ou por abuso de SPA. Quando compreendemos a
urgência/emergência enquanto componente da RAPS, subentendemos que está implícita nessa
relação de pertencimento a articulação entre uma série de serviços e setores com inclinações
terapêuticas e perfis profissionais distintos, além da necessidade de comunicação e de co-
responsabilização, o que complexifica a questão.
É sabido que a diminuição dos leitos psiquiátricos em nível nacional não é
acompanhada pela ampliação dos serviços substitutivos de suporte à crise. Tal fato, segundo
Dimenstein et al. (2012, p. 102), “vêm produzindo espaços lacunares na atenção ao usuário
em crise, vazios para os quais a principal resposta da RAPS, especialmente em Natal, tem
sido o encaminhamento ao hospital psiquiátrico”. E isso nós vimos esquematizado no desenho
da rede (página 74).
Com a realização da pesquisa em tela evidenciamos as ações de urgência/emergência
resumidas ao pronto socorro do hospital psiquiátrico, com pouca participação do SAMU, e
atuação limitada das UPAs ao atendimento à crise decorrente de SPA. Vejamos o que dizem
os sujeitos do estudo:
Uma paciente provavelmente teve um AVC no CAPS e não tinha nada pra
essa paciente. A gente tentou primeiro regular pra o Hospital Municipal [que
tem leitos de clínica médica para usuários da saúde mental] e não conseguiu,
ligou pra o SAMU e [disseram] que não iam sem regulação, o nosso serviço
não é agente regulador... de colega para colega a médica conseguiu a vaga
139
no Walfredo, escutou muito porque o cara de lá [o médico] questionou a
avaliação dela... Enfim, conseguiu a vaga, ligou pra o SAMU que chegou
duas horas depois. É uma rede muito fragilizada nesse sentido, esse é um
caso muito claro que a gente não conseguiu um serviço de retaguarda que é o
SAMU a gente não conseguiu uma resposta rápida (T_Abelha).
O que mais pode potencializar o paciente a chegar na UPA é o SAMU, mas
o SAMU já amanhece o dia [com] a média de 50% das ambulâncias presas
com cotas, além do paciente de saúde mental não ser a prioridade do
SAMU [que] é trauma. E a própria população acho que não enxergou muito
isso porque vai muito pouco paciente [de saúde mental] pra UPA
(D_Aresta).
Os recortes apresentados nos possibilitam a análise da situação sob dois pontos de
vista. O primeiro advém da fala de Aresta e refere-se ao atendimento à urgência psiquiátrica
nas UPAs e aos aspectos culturais da comunidade em relação ao “lugar” da atenção à crise.
Em Aresta, comenta-se sobre a dificuldade operacional do SAMU – um dos serviços
que conformam o componente Urgência/Emergência – em atender os chamados da população
ou dos serviços, o que em parte tem a ver com a precariedade da assistência hospitalar no
município em questão. Concordamos que o número reduzido de macas e, consequentemente,
de ambulâncias disponíveis, é um fator complicador para o suporte pré-hospitalar. Entretanto,
na sequência da fala, o sujeito acrescenta à problemática o fato da prioridade do SAMU ser
trauma. Assim sendo, podemos inferir que além de lidar com a oferta reduzida de
ambulâncias, os usuários com necessidades relacionadas à saúde mental estariam em
desvantagem na “competição” por atendimento em relação aos casos de trauma.
Jardim e Dimenstein (2008) já alertavam para a resistência, em todo território
nacional, do SAMU em prestar socorro aos casos que envolvem psiquiatria. Segundo as
autoras, as equipes de SAMU se recusam a atender os casos de pessoas em sofrimento mental
agudo, com utilização de imobilização mecânica como punição, procedimento que traz a
marca dos métodos clássicos empregados costumeiramente pelos hospitais psiquiátricos.
Neste aspecto, concordamos com Dimenstein et al. (2012) quando afirmam que o modo de
funcionamento do SAMU e a fragilidade da participação do hospital geral no processo de
reforma psiquiátrica configuram-se como poderosos obstáculos na atenção à crise.
Outro ponto colocado por Aresta é a pouca procura da comunidade por ações de
atenção à crise psiquiátrica na UPA. Em uma das visitas à unidade, as informações repassadas
por profissionais que lá atuam dão conta de que na UPA em questão é raríssimo o
atendimento por condição psiquiátrica. Os casos que aparecem estão ligados à abstinência de
140
drogas, tentativas de suicídio ou condições de clínica médica em usuários com diagnóstico
psiquiátrico (REGISTROS FEITOS EM DIÁRIO DE CAMPO, 2017). Mas não seriam essas,
condições psiquiátricas? Pelo que se pode inferir, a transversalidade das “condições
psiquiátricas” parece ser algo ainda obscuro para os profissionais da UPA.
Certamente, tal cenário tem a ver com o fluxo pactuado e implementado em nível
municipal que inclui a UPA como opção de atendimento à crise apenas em casos de abuso de
substâncias psicoativas. Além disso, imaginamos que este é um indício das remanescências do
manicômio no cenário local que ainda tem no hospital psiquiátrico o lugar do atendimento à
crise.
De maneira geral, constatamos com esta pesquisa que a participação da UPA no
cuidado em saúde mental vem melhorando, ainda que esteja voltada, com maior frequência,
para à atenção à crise desencadeada pelo abuso de álcool e outras drogas. Melhoria que
aconteceu principalmente pela pactuação e implementação do fluxo da urgência e pela força
do trabalho da coordenação de saúde mental do município. Entretanto, reconhecemos que a
situação para atendimento à urgência proveniente do transtorno mental ainda é crítica e
resume-se ao PS/HJM, como foi exposto na figura 3 – desenho da RAPS Natal/RN.
O segundo tópico que pretendemos trazer à luz do debate emerge da fala de Abelha e
nos possibilita ampliar a discussão e pensar não apenas a atenção à crise psiquiátrica, mas
uma outra faceta da urgência/emergência que seria a retaguarda clínica para o usuário que,
tendo transtorno mental, apresenta co-morbidades. Tal situação já foi mencionada na
categoria 1 e agora aparece novamente, só que dessa vez sinalizando para a maneira como os
serviços se articulam (ou seria se desarticulam?) para atender à demanda.
À análise preliminar, percebemos mais uma vez a força do “mundo-pequenidade”, dos
vínculos interpessoais dos atores da rede promovendo/facilitando a articulação entre atores e
setores – como disse Abelha, “de colega para colega, a médica conseguiu a vaga no
Walfredo” –, cenário que também foi evidenciado durante a circulação pela rede. Na ocasião,
nos deparamos com a dificuldade em manter a articulação entre serviços via SISREG e/ou
usando o protocolo de consultas especializadas construído para orientar os encaminhamentos.
Diante dessa dificuldade, a equipe acaba criando caminhos alternativos, a exemplo do
telefone com auxílio do serviço social e da regulação entre médicos (REGISTROS FEITOS
EM DIÁRIO DE CAMPO, 2017). Tais problemáticas constroem barreiras e dificultam, ainda
mais, a articulação entre os componentes da RAPS, alertando para os prejuízos de se depender
de estratégias informações para estabelecimento de interconexões.
141
A discussão sobre a situação colocada por Abelha perpassa por dois pontos
principais, ainda que seja tangenciada por outras tantas questões. O primeiro deles diz respeito
à visão fragmentada dos profissionais da urgência/emergência (postura que não é exclusiva
deste componente, obviamente), como já abordado na categoria 1, especialmente em relação
ao sentimento de pertença à RAPS e de co-responsabilização pelo cuidado continuado em
território, além da participação do referido componente na minimização das internações e
reinternações psiquiátricas.
Outro aspecto que pontuamos está relacionado à posição que o componente da
urgência e emergência – ao qual estão vinculados a UPA, o SAMU, as Unidades de
Acolhimento, as salas de estabilização, os prontos socorros e as UBSs – assume enquanto elo
de ligação entre duas redes temáticas de atenção à saúde – a RAPS e a RAU. A primeira vista,
a impressão que se tem é que o fato de estar na interseção entre essas duas redes ao invés de
religar fios em linhas de cuidado, parece que promove a separação entre eles.
Para uma melhor compreensão do componente de urgência/emergência enquanto
nó/espaço de ligação entre as referidas redes temáticas julgamos pertinente abordar, ainda que
superficialmente, as premissas básicas de cada uma delas.
A RAU foi instituída no ano de 2011 através da portaria no 1.600/2011. Em seu artigo
2o apregoa a garantia da universalidade, equidade e integralidade no atendimento às urgências
clínicas, cirúrgicas, gineco-obstétricas, psiquiátricas, pediátricas e às relacionadas a causas
externas (traumatismos, violências e acidentes). Apesar da garantia de equidade e
integralidade no atendimento, o artigo 3o
inciso 4o apresenta
como linhas de cuidado
prioritárias na RAU a cardiovascular, a cerebrovascular e a traumatológica (BRASIL, 2011c).
Revisitando a portaria 3.088/2011, que instituiu a RAPS, encontramos estabelecido no artigo
8o
inciso 1o
que os pontos de atenção de urgência e emergência são responsáveis, em seu
âmbito de atuação, pelo acolhimento, classificação de risco e cuidado nas situações de
urgência e emergência das pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades
decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas (BRASIL, 2011a).
Entretanto, apesar de reafirmar em seu texto a responsabilidade do SAMU com a
urgência psiquiátrica, o que vemos é a dificuldade de fazer valer na prática dos profissionais e
no cotidiano da RAPS estes preceitos.
Reconhecendo a implicação dos serviços de urgência e emergência com o usuário que
apresenta demanda psiquiátrica por um lado, e o relato feito por Abelha a respeito da situação
de uma usuária do CAPS que, ao que tudo indica, apresentou um AVC – condição que se
encontra dentro das linhas de cuidado prioritárias da RAU– ficamos a nos questionar se o
142
lugar de onde partiu a solicitação – o CAPS – e o diagnóstico psiquiátrico que “acompanha”
aquela usuária atrapalhou a condução do caso? Será que a universalidade, equidade e
integralidade no atendimento às urgências apregoadas pela RAU são de fato exercidas no dia-
a-dia dos serviços?
Ensaiamos uma resposta ao questionamento ora formulado partindo da própria portaria
3.088/2011. A referida portaria anuncia a necessidade de articulação entre os pontos de
atenção de urgência e emergência e os CAPS. Porém ao atribuir a estes a tarefa de
acolhimento e cuidado das pessoas em fase aguda do transtorno mental, finda por minimizar a
responsabilidade daqueles e potencializar (ainda mais) a figura do CAPS como o “lugar” de
atendimento ao portador de transtorno mental. Ponderamos, então, os limites das portarias que
pretendem conferir legitimidade jurídico-política as RAS, mas que, ao contrário, acabam
favorecendo um “esboço” de rede que deixa transparecer nas entrelinhas uma visão limitada
da articulação, que foca no componente especializado e, no caso da atenção psicossocial,
centraliza muitas ações no CAPS. Não negamos a potencialidade das redes temáticas, porém
colocamos em questão se no cerne dessa inovação não permaneceriam resquícios de uma
visão fragmentada de mundo, de corpo, de ciência e de cuidado, correspondendo cada
fragmento a uma linha de cuidado específica que ao invés de convergirem e se entrecruzarem
em virtude da demanda, se esfiapam interrompendo os fluxos.
Diante do exposto, pensamos que para fazer fluir as linhas de cuidado através de micro
e macro espaços marcados por diferenças expressivas, numa rede de fios interrompidos e,
indo além, para fazer fluir as linhas de cuidado sem interromper os fios da rede seja preciso
reformar o pensamento e construir uma “cabeça bem-feita” (a lá Edgar Morin), que nos
permita reconhecer no componente da urgência e emergência outras potencialidades além da
atenção à urgência psiquiátrica – que ainda aí encontra sérias limitações – e fortalecer outros
espaços de acolhimento à crise para além do hospital psiquiátrico.
Concordamos com Dimenstein et al. (2012) que é preciso investir tanto na
desconstrução do paradigma manicomial que sustenta as práticas de atenção nesse campo,
como também investir/apostar na reorganização de uma rede de cuidados que articule as RAS
em um todo – complexo, acrescentamos nós. Para tanto, admitimos como fundamentais a
integração e articulação dos setores
educativo, ocupacional, das redes de cuidado informais, grupos de autoajuda,
envolvendo usuários, suas famílias e as comunidades. Só assim poderemos
diminuir as referências aos especialistas e hospitais psiquiátricos e superar o
modo de atenção asilar, produtor de iatrogenia e exclusão social, na medida
em que se tecem planos de cuidado que abarcam tanto a atenção ao portador
143
de transtornos mentais, quanto ao seu entorno familiar e social
(DIMENSTEIN et al., 2012, p 107).
Nosso intuito ao chamar atenção para esta problemática é fomentar uma cultura de
valorização do componente de urgência e emergência para além do suporte imediato de vida,
apostando no potencial de serviços como a UPA, o próprio CAPS III e as UBS (que também
são considerados pela portaria ministerial como ponto de atenção à urgência psiquiátrica) para
“balançar” a rede, como ouvimos de um dos atores da RAPS durante a construção dos dados.
Para conhecer o território e suas limitações, seja com base em levantamentos epidemiológicos
dos atendimentos realizados, seja pelo encontro com a população adscrita, atuando nos
diversos níveis de prevenção, promovendo saúde, inclusive mental, e potência de vida em
conjunto com a comunidade.
5.2.1.4 A dialógica do CAPS
Neste tópico, trazemos à luz do debate a dialogicidade expressa na relação
liberdade/aprisionamento que permeia a postura assumida pelo CAPS dentro da RAPS.
Obviamente, o aprisionamento ao qual nos referimos se trata de amarras subjetivas que
envolvem técnicos e usuários e influenciam a construção de vínculos e os itinerários
terapêuticos. Para esclarecermos melhor as ideias que pretendemos defender, iniciamos com a
exposição de relatos que apontam para a representatividade que o CAPS tem junto aos
sujeitos da pesquisa como um lugar de descobertas, aprendizado, valorização da vida e de
produção de subjetividades.
Hoje nós temos o terapeuta, tem os CAPS e os serviços pra dar sustentação a
nós, foi uma família que nós adquirimos que não existia. Nos internamentos
de antigamente [o que se via era] remédio demais, choque elétrico, amansa
leão (U_Nó Francês).
É muito humanizado, eles se incomodam com você, com a pessoa, não é
com a doença. Eu aprendi muito sobre minha doença com Dr. X. Ele me
ensinava „faça os outros lhe respeitarem!‟ (U_Rococó).
Eu aprendi isso no CAPS, o que eram minhas vozes, o que elas me diziam,
isso ajuda o paciente... Às vezes não é um bicho de sete cabeças, é algo que
aconteceu e pode melhorar (U_Ponto Cruz).
Eu não tinha vontade de sair da cama mesmo com remédio. Os técnicos do
CAPS começaram a ligar pra mim [perguntando] „como é que você está?‟ Aí
144
eu disse: pera aí, eu tenho valor pra alguém! Me levantei e fui parar lá no
CAPS” (U_Corrente).
É inegável o avanço que a criação dos CAPS, e de todo aparato substitutivo ao
hospital psiquiátrico, promoveu no cuidado em saúde mental e na vida das pessoas com
transtornos mentais e de seus familiares. E essa ampliação de horizontes fica evidente quando
comparamos o cenário atual com o período em que esses indivíduos tinham como única opção
de tratamento a reclusão em hospitais psiquiátricos. A diferença fica clara na fala de Nó
Francês, indivíduo que viveu o internamento entre as décadas de 1970-1980 e que reviveu
durante as sessões de grupo focal algumas de suas memórias do manicômio.
Rococó, Ponto Cruz e Corrente enaltecem, em seus discursos, outra vertente de
avaliação deste tipo de serviço substitutivo: a humanização do cuidado em saúde mental. É o
sentir-se cuidado, reconhecer-se importante para alguém, experimentar o olhar do profissional
para a sua humanidade, que muitas vezes permaneceu escondida por detrás do diagnóstico, da
doença, dos sintomas psiquiátricos e do próprio pré-conceito. É a relação de autonomia e de
respeito que se vai construindo em processos de ensino-aprendizagem que, mais que
normatizações do como viver em sociedade, empoderam.
Os CAPS foram instituídos como dispositivo central e estratégico para a reorientação
do modelo assistencial em saúde mental, mediante a portaria ministerial no 336 no ano de
2002. De acordo com a referida portaria, constitui-se em serviço ambulatorial de atenção
diária que funciona segundo a lógica do território e prevê como atividades o atendimento
individual (medicamentoso, psicoterápico, de orientação, entre outros) e em grupos
(psicoterapia, grupo operativo, atividades de suporte social, entre outras), oficinas terapêuticas
executadas por profissional de nível superior ou nível médio, visitas domiciliares,
atendimento à família e atividades comunitárias enfocando a integração do paciente na
comunidade e sua inserção familiar e social (BRASIL, 2002).
Atualmente, o CAPS é o ponto de atenção psicossocial especializada na RAPS, é
constituído por equipe multiprofissional que atua sob a óptica interdisciplinar e realiza
atendimento às pessoas com transtornos mentais graves e persistentes e às pessoas com
necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, em sua área territorial, em
regime de tratamento intensivo, semi-intensivo, e não intensivo. As atividades no CAPS são
realizadas prioritariamente em espaços coletivos (grupos, assembleias de usuários, reunião
diária de equipe), de forma articulada com os outros pontos de atenção da rede de saúde e das
demais redes. O cuidado, no âmbito do CAPS, é desenvolvido por intermédio de Projeto
145
Terapêutico Individual, envolvendo em sua construção a equipe, o usuário e sua família, e a
ordenação do cuidado estará sob sua responsabilidade ou da Atenção Básica, garantindo
permanente processo de cogestão e acompanhamento longitudinal do caso. De acordo com a
portaria 3.088/2011, o CAPS é responsável pela indicação do acolhimento, pelo
acompanhamento especializado durante este período, pelo planejamento da saída e pelo
seguimento do cuidado, bem como pela participação de forma ativa da articulação
intersetorial para promover a reinserção do usuário na comunidade (BRASIL, 2011a).
Como vimos, através do texto ministerial, o CAPS acumula funções e assume uma
centralidade incompatível com o modelo de atenção em rede.
Do modo como foi pensando e instituído no início dos anos 2000, representou grande
avanço na reorientação do modelo de assistência em saúde mental, transformando
significativamente as vidas e as experiências de cuidado dos usuários com necessidades
decorrentes de transtornos mentais. Entretanto, é preciso lançar um olhar crítico sobre a
postura que os CAPS vêm assumindo no contexto da atenção psicossocial e do cuidado
compartilhado e em rede, sendo a construção de vínculos não saudáveis entre técnicos e
usuários uma das problemáticas evidenciadas. Vejamos o que dizem os sujeitos da pesquisa:
O CAPS é onde o usuário construiu vínculo. Na hora em que existe a
possibilidade da gente partilhar o cuidado com outras instituições o usuário
sente porque já fica aquela ameaça. O paciente boicota pela insegurança de
sair desse serviço, de perder o especialista, de perder os atestados – os
ganhos secundários, terciários que a gente não tem como não considerar
(D_Brocatelo).
Lá no serviço a gente ainda tem pacientes que passam o dia todo e todos os
dias e [isso] não é algo saudável. Mas a gente tem feito nas nossas reuniões
colocações no sentido de propiciar a eles outros momentos, outras situações,
dividir com a rede porque essa é a proposta (T_Coral).
São os nossos grandes nós: esses usuários de muito tempo que não
conseguem se desvincular do serviço (T_Escada).
Pela voz dos técnicos da saúde mental inferimos que o CAPS no cenário estudado vem
se posicionando enquanto “o lugar” da construção de vínculos do usuário da saúde mental, o
que nos faz questionar sobre os outros recursos do território. Por que o usuário se sente
ameaçado em frequentar outros espaços de cuidado, como sugere Brocatelo?
Na tentativa de compreender a relação que os usuários mantem com os serviços
especializados de saúde mental e a dificuldade de compartilhamento do cuidado relatada por
146
alguns sujeitos da pesquisa, consideramos interessante evocar as experiências da loucura
compartilhadas ao longo dos grupos focais.
Eu sou filho de pastor criado numa família evangélica e meu pai sempre
dizia que era demônio. Meu pai chamava uma ruma de gente e botava pra
orar na minha cabeça pra expulsar. Hoje em dia meu pai caiu uma ideia
depois que foi pra o CAPS, nas reuniões que a gente tem com a família
(U_Corrente).
O CAPS trata a gente feito gente, lá [na clínica X] eles tratam a gente feito
uns bichos, Deus me livre. Por isso que eu não quero internação, eu aceito o
tratamento, mas internada eu não quero ficar... (U_Rococó).
[O usuário fala] „Dra. você não sabe como a gente sofre, eles chama a gente
de todo tipo de coisa. Eu prefiro passar mal aqui porque vocês me conhecem
do que num canto que ninguém respeita a gente‟ e é verdade (T_Coral).
Agora, através da voz dos usuários, entramos em contato com experiências
traumáticas vivenciadas pelos sujeitos em diversos ambientes – doméstico/familiar, hospital
psiquiátrico e hospital geral. Por outro lado, é no espaço do CAPS que esses indivíduos
encontraram a oportunidade de desconstruir representações sociais da loucura no seio
familiar, com consequente melhoria das relações entre parentes, além do contato com uma
forma de fazer diferente. Ao nos depararmos com tais relatos, é fácil inferir o que alimenta a
relação de dependência, que por vezes ganha contornos de aprisionamento, entre os
indivíduos em experiência de sofrimento psíquico ou dependência química e o CAPS.
Outro fio a ser considerado nessa trama, diz respeito às dificuldades encontradas pelos
técnicos no território para que se consiga, de fato, compartilhar o cuidado do usuário da saúde
mental com outros pontos de atenção da rede, como fica claro nos relatos a seguir:
70% dos pacientes que eu tenho são pacientes do território que só deveriam
vir fazer uma avaliação de seis em seis meses e olhe lá. E aí o que é que
acontece? O CAPS fica abarrotado. A agenda fica cheia e o paciente que
chega precisando realmente de uma urgência não tem vaga (D_Anjour).
A gente ainda enxerga muitas barreiras pra que nosso usuário seja atendido
na rede. Eles [os usuários] chegam na UBS, às vezes tem o profissional
especializado, mas o profissional se recusa a atender porque diz que não tem
capacidade pra atender criança e adolescente... Então a gente criou isso na
cabeça de que, de fato, só a gente consegue resolver (T_Matiz).
147
As problemáticas apresentadas por Anjour e Matiz, nos provocam certo
estranhamento. Reconhecemos, a princípio, dois tópicos dignos de serem colocados em
discussão.
Inicialmente, na fala de Anjour, nos inquieta que se mantenham entre as paredes do
CAPS usuários que poderiam estar seguindo acompanhamento territorial com suporte da
APS. Neste caso, parece que o serviço incorporou de modo um tanto equivocado seu rótulo de
“substitutivo” ao hospital psiquiátrico. Reconhecemos as dificuldades vivenciadas pela APS
no contexto da atenção psicossocial, muitas das quais já foram discutidas ao longo deste
trabalho. Entretanto, o que colocamos em questão é a postura dos profissionais do CAPS que,
ao invés de lançar mão de recursos como o matriciamento e outras estratégias para estimular o
compartilhamento do cuidado, acabam assumindo a demanda, privando, muitas vezes, outros
usuários mais necessitados de atendimento especializado.
O segundo tópico está posto na fala de Matiz e nos faz voltar ao questionamento que
fizemos no início deste trabalho. Na ocasião, perguntávamos se o serviço especializado em
saúde mental fechou-se em si mesmo ou se foi sitiado por velhas barreiras invisíveis que
isolam a doença mental entre as paredes, agora, do CAPS. O percurso que trilhamos até agora,
nos possibilita argumentar que o componente especializado da RAPS – o CAPS –, fechou-se
em si mesmo ao mesmo tempo em que foi fechado, sitiado, pelas ditas barreiras invisíveis que
circundam atores e instituições. Evocamos, então, Vasconcelos e Mendonça-Filho (2009, p.
188-189) para ponderar que “apesar de parecerem abertos, muros invisíveis, jalecos mentais
insistem em circunscrever os diferentes e as diferenças”, no caso o transtorno mental e o
indivíduo em sua existência sofrimento. Esta recursividade aparece de maneira nítida na fala
de Matiz quando coloca que “a gente criou isso na cabeça de que só a gente consegue
resolver” e é reforçada pela postura conivente de Anjour com o “abarrotamento” do CAPS.
Constatamos até aqui, a existência de uma dialógica entre liberdade e aprisionamento
que se estabelece no cerne do componente especializado da RAPS e envolve sujeitos e
práticas. Liberdade, uma das premissas básicas da atenção psicossocial, aqui comentada em
relação aos muros do manicômio e a possibilidade de convívio na/com a cidade. Sobre essa
questão, problematizamos o lugar e a postura do CAPS no cuidado psicossocial na atualidade,
considerando nesta trama, as tensões evidenciadas no cenário estudado. Para tanto,
assumimos, assim como Mattos (2006), o lugar híbrido de quem defende diante dos críticos e
critica na perspectiva de superar os desafios, de seguir fortalecendo não só o CAPS, como
também a RAPS, a RPb e o SUS.
148
Para alcançarmos a tão sonhada concretização da RAPS e da RPb é preciso rever o
papel – e a sobrecarga – que o CAPS vem assumindo na atualidade, principalmente se
considerarmos o contexto da atenção psicossocial em rede. É mister reconhecer que ao se
restringir o cuidado às paredes do CAPS, este perde sua potência, se cronifica. Por outro lado,
centralizar a RAPS em um único componente/dispositivo a descaracteriza.
Vasconcelos e Mendonça-Filho (2009) argumentam que são quatro as formas de
cronificação que atravessam os CAPS: a cronificação dos usuários que se traduz na
dependência que estes desenvolvem em relação aos serviços, no aprisionamento que acontece
por muros invisíveis que impedem a inclusão do usuário na sociedade; a cronificação dos
profissionais quando não costumam colocar em análise seus modos de atenção e gestão; a
cronificação do cotidiano dos serviços que, através da promoção de uma “grade” de
atividades estereotipadas e com frequência inalterada, se preocupam mais em manter o
usuário “ocupado” do que em produzir sentido junto e com eles; e a cronificação dos
dispositivos em saúde mental produzida pela falta de conexão dentro da rede de saúde mental
e falta de articulação intersetorial. Pelo que se discutiu até aqui, julgamos estar diante de
CAPS cronificados em suas quatro dimensões de cronificação.
Lobosque (2011) e Lancetti (2016) reconhecem a centralização do CAPS em si mesmo
enquanto um dos grandes desafios deste serviço face à RPb. Os autores concordam que as
redes de atenção à saúde não devem ser organizadas em torno de um equipamento
centralizador, estendendo-se na tessitura de um espaço social para superar desafios. Além
disso, não se pode atribuir ao CAPS o papel de organizador do território. Dias, Freitas e Gama
(2013) reforçam que a noção de RAPS implica na diversificação de ofertas de cuidado e na
relativização dessa centralidade do CAPS na organização da saúde mental no território.
Questionamos então como estimular e potencializar o usuário para que ele construa
vínculos saudáveis tanto com o CAPS quanto com outros recursos terapêuticos?
Vasconcelos e Mendonça-Filho (2009) acreditam ser preciso colocar em análise os
modos de funcionamento dos CAPS e os modos de elaboração do PTS para que se criem
projetos de vida que não passem necessariamente pelo CAPS, mas que se refiram a uma rede
intersetorial. Lancetti (2016), por sua vez, enumera como modos de “turbinar o CAPS”
atender à demanda de porta aberta, manter inter-relação com a ESF e desenvolver uma prática
dentro e fora do serviço, reconhecendo nas “bordas” dos serviços um espaço privilegiado de
produção de subjetividade cidadã. Nós, inspirados em Lancetti (2016), apostamos na
construção de uma rede peripatética que, ao se fazer passeando, assume a prerrogativa da
abertura do serviço para fora de seus muros. Uma rede que se faz pelos pés dos usuários que
149
caminham em busca de cuidado e de exercitar sua cidadania e nos encontros dos profissionais
para compartilhamento do cuidado.
Pretendemos ao longo desta subcategoria pôr em questão dificuldades e empecilhos
evidenciados durante a realização desta pesquisa, que mantêm relação direta ou indireta com a
articulação da RAPS e, consequentemente, com o cuidado continuado em território.
Inspirados em documento da Organização Pan-Americana da Saúde que reconhece o SUS
enquanto “uma solução com problemas” e não um “problema sem solução” (OPAS, 2011),
reconhecemos então na RAS/RAPS uma alternativa para a reorientação do modelo de atenção
à saúde/saúde mental, identificando nesses nós a força motriz para o religamento necessário à
própria construção das redes.
Isto porque, ao reconhecermos nos nós ora abordados a expressão da desordem dentro
da rede, assumimos a importância desses tensionamentos para a organização e avanço da
RAPS. Tendo em vista que ordem/desordem, em sua complementaridade antagônica,
contribuem para a auto-organização dos sistemas, neste caso temos nos “nós da rede” o mote
para ensaiarmos os primeiros passos rumo à concretização, em território, da RAPS Natal/RN.
150
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa se esforçou em desemaranhar fios e nós implicados na tessitura da
RAPS municipal e permitiu-nos reconhecer, no cenário local, mais a existência de um
continuum entre serviços do que de uma RAS propriamente dita. De maneira geral, a RAPS
Natal/RN encontra-se em processo de expansão que envolve ampliação da capacidade
instalada, (re)pactuação de fluxos assistenciais e o despertar para a importância das parcerias
intersetoriais no contexto da atenção psicossocial. Entretanto, foi no lidar teórico-prático com
o sujeito que sofre de transtorno mental, assim como nos movimentos de religação entre
atores, serviços e setores em prol da continuidade do cuidado em território que encontramos
limitações preocupantes.
Sobre a capacidade instalada, identificamos a criação de serviços como o Centro de
Convivência e Cultura – que vem revelando grande potencialidade no contexto local, apesar
de seu pouco tempo de funcionamento – e a Unidade de Acolhimento (ainda em fase de
construção até o final do período de circulação pela rede). Porém, ainda são evidenciados
vazios assistenciais que envolvem escassez de serviços e inconsistência de equipes,
principalmente no que se refere à APS e ao componente especializado da rede. São áreas
descobertas por equipes de ESF e de ACS, poucos NASF implantados para atender às
demandas dos DS, escassez de CAPS – ainda que pela avaliação ministerial o índice de
Cobertura CAPS/100 mil habitantes seja considerado “bom” – que se agrava nos DS Norte I e
II para atendimento a indivíduos com transtorno mental e no DS Oeste para atendimento para
vulnerabilidades decorrentes do abuso de álcool e outras drogas.
Reconhecemos nos fluxos assistenciais ou, melhor dizendo, na coexistência destes
uma limitação de importância considerável para a concretização da RAPS em território. Como
vimos, as pactuações entre coordenação municipal de saúde mental e serviços da rede
envolvem apenas o fluxo para urgência psiquiátrica, mais especificamente a crise
desencadeada por uso de SPA. Na ausência de um fluxo assistencial estabelecido, pactuado
entre os atores e implantado no cotidiano da rede, o que prevalece são encaminhamentos, por
vezes desresponsabilizados, orientados por inclinações/vocações terapêuticas e que, na
maioria das vezes, envolvem o componente especializado da rede – CAPS e hospital
psiquiátrico de referência.
Em se tratando de parcerias intersetoriais, aparecem com mais força na realidade
estudada os serviços da assistência social – CRAS e CREAS –, serviços socioeducativos
151
voltados para crianças e adolescentes que cometem atos infracionais e que, na maioria das
vezes, estão em uso de SPA – CEDUC e CIAD –, igrejas e ONG´S. A participação de
instâncias para além do setor saúde é fundamental para o estabelecimento das RAS, tendo em
vista as múltiplas facetas dos processos saúde-doença e a complexa atmosfera que envolve os
usuários da saúde mental em sua existência-sofrimento.
Ao iniciarmos esta caminhada em busca da compreensão dos modos de articulação da
RAPS Natal/RN, partíamos do entendimento de que o lidar teórico-prático, ou seja, o modo
de compreender e de lidar (cuidar/tratar) com o sujeito que sofre de transtorno mental
influencia e é influenciado pelos modos de articulação da RAPS. Dito de outro modo,
reconhecíamos que os componentes da RAPS se articulam embalados pelas características do
cuidado que é produzido em território, mas também os próprios movimentos de
(des)articulação dessa rede podem influenciar o modo como se produz o cuidado em saúde
mental de base territorial. Esse jogo de produção da atenção à saúde mental em rede traz
implicações para a continuidade do cuidado em saúde mental no território e em perspectiva de
rede de atenção.
De tal modo, buscamos junto aos atores dessa rede – diretores, trabalhadores e
usuários – desvendar as características do cuidado produzido em território e evidenciamos em
meio às práticas desenvolvidas características como medicalização, fragmentação do sujeito e
das práticas, especialização não-comunicante e desacolhimento. Por outro lado, reconhecemos
que a articulação da rede em análise é pontual e prioriza os serviços que “falam a mesma
língua”, ou seja, os serviços especializados em psiquiatria/saúde mental, priorizando
estratégias informais para a tessitura da rede, em detrimento de estratégias formais de
articulação como o SISREG e o matriciamento em saúde mental.
Chamamos a atenção para a relação de recursividade que julgamos se estabelecer entre
o cuidado em território e a articulação da RAPS. De modo que, um cuidado pautado na
especialidade, na medicalização e na fragmentação é produto e produtor de uma rede que se
articula pontualmente, num alinhavo disparado por rótulos e intersubjetividades.
No âmbito da atenção à saúde em rede, reconhecemos avanços discretos desenhando o
cenário local que se materializam em iniciativas reconhecidas por nós enquanto “ilhas de
resistência” e que vêm sendo bordadas entre as remanescências do manicômio. Iniciativas de
compartilhamento do cuidado, ainda que disparadas por serviços especializados, e utilização
de estratégias de suporte psicossocial que envolvem técnicos, usuários e a gestão municipal
conferem fôlego ao modelo de atenção em rede que se tenta implantar.
152
No entanto, percebemos que tais iniciativas ainda não são suficientes para dissipar os
“jalecos mentais”, os “muros imaginários” que obnubilam as consciências dos atores das RAS
e fazem persistir fluxos assistenciais labirínticos ao redor dos serviços especializados e
também emergir “rotas recriadas” que se delineiam mais pela dificuldade de acesso aos
serviços do que pelo empoderamento dos usuários.
Outra característica marcante no cenário estudado é a verticalização das iniciativas de
sensibilização dos atores para o cuidado psicossocial em rede e para a necessidade da
intersetorialidade para a resolução das demandas. Destacam-se as ações disparadas pela
coordenação municipal de saúde mental e pela UPA/HUOL, muitas das quais desenvolvidas
através de parceria entre as referidas instituições. A preocupação e a implicação da gestão
municipal na tessitura da raps são fundamentais para a regionalização da saúde e para a
concretização do modelo que se pretende implantar. Entretanto, reconhecemos que é preciso
descentralizar tais iniciativas para que a potência das ações não se dissipe à medida que forem
se aproximando do território. A nosso ver, interessante seria que essas ações se deslocassem
como que em uma via de mão-dupla, transitando livremente pelos diversos níveis de
densidade tecnológica e de poder – da gestão municipal para a comunidade e no sentido
inverso.
Com a pesquisa, identificamos uma série de problemáticas que envolvem a estrutura
operacional da rede, a APS e sua dificuldade de atender à demanda em saúde mental, os
CAPS e a dialógica liberdade/aprisionamento que transversaliza a função que este
componente vem desempenhando na atualidade da atenção em rede e, por fim, a problemática
da urgência e emergência no contexto da RAPS que, seja por inclinação terapêutica ou pela
inexistência de um sentimento de pertença a referida rede temática, dificulta a atenção à crise
e finda por fazer perpetuar o circuito psiquiátrico. São tensões que extrapolam as já
conhecidas e exaustivamente revisitadas ligações entre APS-CAPS ou entre os serviços de
urgência psiquiátrica e atenção à crise. São problemáticas que incidem e retroagem umas
sobre as outras, transversalizando toda malha de interconexões que conforma a RAPS
enquanto uma RAS.
Para avançarmos na concretização da RAPS Natal/RN em território e transpor o
labirinto pelo qual caminham usuários e trabalhadores, propomos algumas estratégias. Sem a
pretensão de lançar qualquer tipo de “protocolo” ou “guia”, nos esforçamos em pensar
algumas alternativas para que, em conjunto com os atores da rede, possam fazer avançar a
rede territorial de atenção ao sofrimento psíquico, álcool e outras drogas. São elas:
153
Ampliar os fóruns municipais intersetoriais para toda a comunidade, encorajando a
participação das representações de bairros para que assim seja possível discutir
RAS/RAPS em comunidade;
Desenvolver estratégias de educação popular em saúde para construir junto com a
população um entendimento do cuidado compartilhado e em rede, desmistificando o
matriciamento em saúde mental e fortalecendo espaços de cuidado para além do
CAPS;
Implicar os serviços de urgência/emergência, especialmente UPA, SAMU, PS/HJM
no debate sobre o compartilhamento do cuidado em rede, estimulando uma cultura de
pertencimento à RAPS e reduzindo o protagonismo do HJM na atenção à crise;
Trabalhar junto com a APS e o CAPS estratégias para a continuidade do cuidado em
território dos usuários da saúde mental, com foco: na potencialização do
matriciamento; na desmistificação do CAPS como o lugar do “louco” e da “loucura”;
e no empoderamento da APS para a promoção da saúde mental e prevenção de
internações psiquiátricas;
Promover junto com os representantes dos CAPS estratégias de descronificação do
serviço, que envolvam: estímulo à independência e inserção social dos usuários; a
revisão dos modos de atenção e de gestão dentro do serviço; o desenvolvimento de
atividades que produzam sentido para e com os sujeitos; e a potencialização das inter-
relações com outros serviços da rede;
Fomentar, junto aos diretores de serviços, a compreensão da potência da regulação (e
não só do SISREG) enquanto estratégia para programação, planejamento, avaliação e
reorganização do sistema de saúde;
Envolver o usuário nos processos de compartilhamento do cuidado e de articulação da
RAPS, partindo do reconhecimento coletivo da existência de outra via de articulação
da rede que se dá pela livre circulação de usuários através das diversas possibilidades
de cuidado desenhadas em território.
154
Para sairmos do “labirinto”, apostamos na trindade “integralidade-compartilhamento
do cuidado-intersetorialidade” como “fio de Ariadne”. Isto porque, acreditamos que quando
se cuida de maneira integral a intersetorialidade e a articulação para a continuidade do
cuidado se tornam condição sine qua non à prática. Quando se reconhece a necessidade de
compartilhamento do cuidado, aí está implícita a visão integral do sujeito e o reconhecimento
da limitação do serviço, e até mesmo do setor saúde, em dar conta do sujeito e sua essência
bio-psico-social-espiritual.
Reconhecemos como limitações da pesquisa em tela a pouca adesão dos
representantes da APS e a não inclusão de serviços que posteriormente tomamos
conhecimento de que desenvolviam atividades voltadas para os usuários da saúde mental no
contexto da ESF. Outro ponto que pode ter limitado o alcance da pesquisa foi o fato de termos
optado por realizar os grupos focais separados pela posição que o sujeito ocupa na RAPS.
Talvez, a junção dos diversos atores em um único grupo tivesse feito aparecer as relações e os
conflitos de poder entre estes. Ademais, a fluidez das “verdades” científicas, o volume de
referências bibliográficas e o hiato entre a formulação de políticas públicas e a concretização
destas no território nos fazem identificar no produto ora apresentado, apenas um retrato da
realidade local.
Faz-se necessário pontuar que assumimos, nesta tese, a política pública, no caso a
PNSM e a portaria 3.088/2011 que instituiu a RAPS, como referência atual para discussão
sobre a reorganização dos serviços de saúde mental pós RPb e não como um ideal a ser
atingido. Temos a clareza de que a “rede viva”, aquela que se constrói no cotidiano dos atores,
transcende a “letra da lei” que institui e normatiza equipes e serviços, ainda que se oriente por
ela. É provavelmente por este motivo que mudar o arranjo organizacional em conformidade
com as especificações ministeriais, por si só, não garante a mudança de paradigmas, de
processos de trabalho ou de relações interpessoais. Ao mesmo tempo, ponderamos que as
transformações no arranjo organizacional dos serviços brasileiros de saúde mental são um
indicativo de que deslizamentos teórico-conceituais estão presentes na atualidade,
tensionando as redes de produção de saúde e fazendo avançar a RPb.
Reforçamos o valor de se reconhecer pujança no inacabado, de se discernir a potência
da plasticidade no alinhavo de uma rede que se encontra em construção. Agora é o momento
de apostar na complementaridade entre as diferenças de atores, serviços e setores, para, a
partir das “ilhas de resistência” reconhecidas no território, religarmos saberes e práticas em
prol da RAPS e da RPb no cenário estudado.
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167
APÊNDICES
APÊNDICE A – Roteiro para realização de grupo focal
Projeto: Entre fios e nós: uma análise dos modos de articulação da rede de atenção
psicossocial de Natal/RN
Público-alvo: ___________________
Grupo Focal no: ___________________
Data: ___/___/___
Local: _______________________________________________________
Moderador: ____________________________
Relator: _________________________________________
Horário de início: ___/___ Horário de término: ___/___
I – FICHA PARA CARACTERIZAÇÃO DOS PARTICIPANTES
No Nome Sexo Profissão* Serviço no qual
trabalha*
Tempo de
serviço
*Preenchimento exclusivo nos grupos focais cuja população-alvo é composta por gestores e trabalhadores.
II – QUESTÕES DISPARADORAS
1. Como se dá o acompanhamento dos usuários que passam pelo serviço?
2. Existem estratégias para promover a interação entre profissionais e serviços?
III – QUESTÕES DISPARADORAS ADAPTADAS PARA O GRUPO FOCAL COM OS
USUÁRIOS
1a Sessão
1. O que fazem quando precisam de cuidados na área de saúde mental?
2a Sessão
1. Como é o tratamento de vocês hoje?
2. Qual a opinião de vocês sobre os serviços de saúde mental?
3. O caminhar pela rede – dificuldades vivenciadas no caminhar pelos serviços
168
APÊNDICE B – Roteiro para observação descritiva
Itens verificados durante as visitas para observação descritiva:
- Acolhimento ao usuário;
- Caminhos percorridos por usuários e profissionais dentro da RAPS/Natal;
- Interlocuções entre esta rede temática e ações intersetoriais de suporte ao cuidado em saúde
mental.
169
APÊNDICE C - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
DEPARTAMENTO DE ENFERMAGEM
PROJETO DE PESQUISA
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO – TCLE
Esclarecimentos
Este é um convite para você participar da pesquisa: Entre fios e nós: uma análise dos modos
de articulação da Rede de Atenção Psicossocial de Natal/RN, que tem como pesquisador
responsável Déborah Karollyne Ribeiro Ramos.
Esta pesquisa tem como objetivo geral analisar os modos de articulação entre os serviços que
compõem a Rede de Atenção Psicossocial do município de Natal/RN; e como objetivos
específicos: traçar um fluxograma da Rede de Atenção Psicossocial de Natal, relacionando
serviços, fluxos assistenciais e instâncias intersetoriais envolvidas; compreender os modos de
articulação entre os serviços que compõem a Rede de Atenção Psicossocial de Natal,
considerando potencialidades e limitações; e propor tecnologias alternativas de articulação,
atentando para as especificidades loco-regionais.
O motivo que nos leva a fazer este estudo é a representatividade da problemática da
desarticulação dos serviços como fator impactante no cotidiano da assistência à saúde mental
coletiva. Além disso, a possibilidade de contribuir com alternativas possíveis e criativas que
proporcionem transformações na realidade da saúde mental em Natal, podendo tais resultados
serem expandidos para outros locais do Brasil.
Caso você decida participar, você deverá responder às perguntas da entrevista em grupo
(grupo focal) nos autorizando a gravação do diálogo. Tal procedimento terá, em média, uma
hora e meia de duração. Os questionamentos postos no grupo se referem ao acompanhamento
dos usuários na Rede de Atenção Psicossocial e às estratégias de interação entre profissionais
e serviços de saúde mental.
Durante a realização da entrevista grupal a previsão de riscos é mínima e refere-se,
basicamente, a possibilidade de constrangimento decorrente de algum dos questionamentos
colocados ao grupo. Os desconfortos que por ventura surjam durante sua participação nesta
pesquisa poderão ser minimizados através do respeito ao seu silêncio, acatando, se for o caso,
seu desejo de retirar-se do ambiente.
Participando desta pesquisa você terá como benefício a possibilidade de debater e
compreender melhor os modos de articulação da Rede de Atenção Psicossocial de Natal, além
de poder contribuir para a melhoria da qualidade da assistência à saúde mental.
Em caso de algum problema que você possa ter, comprovadamente relacionado com a
pesquisa, você terá direito a assistência gratuita que será prestada pela pesquisadora
responsável.
170
Durante todo o período da pesquisa você poderá tirar suas dúvidas ligando para Déborah
Ramos através do telefone (84)999099131 ou pelo e-mail [email protected].
Você tem o direito de se recusar a participar ou retirar seu consentimento, em qualquer fase da
pesquisa, sem nenhum prejuízo para você.
Os dados que você irá nos fornecer serão confidenciais e serão divulgados apenas em
congressos ou publicações científicas, não havendo divulgação de nenhum dado que possa lhe
identificar.
Esses dados serão guardados pelo pesquisador responsável por essa pesquisa em local seguro
e por um período de 5 anos.
Se você tiver algum gasto pela sua participação nessa pesquisa, ele será assumido pelo
pesquisador e reembolsado para você.
Se você sofrer algum dano comprovadamente decorrente desta pesquisa, você será
indenizado.
Qualquer dúvida sobre a ética dessa pesquisa você deverá entrar em contato com o Comitê de
Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Onofre Lopes, telefone: 3342-5003, endereço:
Av. Nilo Peçanha, 620 – Petrópolis – Espaço João Machado – 1° Andar – Prédio
Administrativo - CEP 59.012-300 - Nata/Rn, e-mail: [email protected].
Este documento foi impresso em duas vias. Uma ficará com você e a outra com Déborah
Karollyne Ribeiro Ramos (pesquisadora responsável).
Consentimento Livre e Esclarecido
Após ter sido esclarecido sobre os objetivos, importância e o modo como os dados serão
coletados nessa pesquisa, além de conhecer os riscos, desconfortos e benefícios que ela trará
para mim e ter ficado ciente de todos os meus direitos, concordo em participar da pesquisa
“Entre fios e nós: uma análise dos modos de articulação da Rede de Atenção Psicossocial
de Natal/RN”, e autorizo a divulgação das informações por mim fornecidas em congressos
e/ou publicações científicas desde que nenhum dado possa me identificar.
_______________________________________________
Assinatura do participante da pesquisa ou de seu representante legal
171
Declaração do pesquisador responsável
Como pesquisador responsável pelo estudo “Entre fios e nós: uma análise dos modos de
articulação da Rede de Atenção Psicossocial de Natal/RN”, declaro que assumo a inteira
responsabilidade de cumprir fielmente os procedimentos metodológicos e direitos que foram
esclarecidos e assegurados ao participante desse estudo, assim como manter sigilo e
confidencialidade sobre a identidade do mesmo.
Declaro ainda estar ciente que na inobservância do compromisso ora assumido estarei
infringindo as normas e diretrizes propostas pela Resolução 466/12 do Conselho Nacional de
Saúde – CNS, que regulamenta as pesquisas envolvendo o ser humano.
Natal, (data).
_______________________________________________
Déborah Karollyne Ribeiro Ramos
Enfermeira COREN PB 287.515
172
APÊNDICE D – Rede de Atenção Psicossocial da cidade do Natal/RN considerando capacidade instalada por Distrito Sanitário e parcerias
intersetoriais
Distrito Sanitário Bairro Serviço Endereço
Norte 1 Lagoa Azul USF Cidade Praia Rua São Caetano, 520, Cj. Cidade Praia,
Lagoa Azul.
USF Guamoré Avenida Guaratinguetá, 03, Cj. Gramoré,
Lagoa Azul.
USF Nova Natal Rua do Pastoril, s/n, Cj. Nova Natal,
Lagoa Azul.
USF Nova Natal I Rua dos Aboios s/n, Cj. Nova Natal,
Lagoa Azul.
USF Nova Natal II Rua Tatiara, 3169, Lagoa Azul.
USF Nordelândia Avenida Maria Araújo, 1021, Lot. Boa
Esperança, Lagoa Azul.
USF José Sarney Rua dos Lírios, 231, Lot. José Sarney,
Lagoa Azul.
CRAS Lagoa Azul Av. Guaratinguetá, 682, Cj. Guamoré,
Lagoa Azul.
Pajuçara USF Parque das Dunas Avenida Mar Mediterrâneo, 101, Cj.
Parque das Dunas, Pajuçara.
USF Pajuçara Rua Maracaí, 01, Pajuçara.
USF Vista Verde Rua Linda Batista,
18, Cj. Vista Verde, Pajuçara.
USF Pompeia Avenida Gov. Antônio de Melo Sousa,
2405, Cj. Parque da Floresta, Pajuçara.
UPA – Pajuçara Avenida Moema Tinôco, 3393, Pajuçara.
173
CRAS Pajuçara Rua Flor do Paraíso, 319, Lot. Dom
Pedro I, Pajuçara.
Redinha USF África Avenida João
Medeiros Filho, 02, Redinha.
USF Redinha Rua do Campo,02 – Redinha velha –
Redinha.
USF Alto da Torre Rua Construtor Severino Bezerra, 843 A,
Redinha.
NASF África Avenida João Medeiros Filho, 02,
Redinha.
CRAS África Rua Conselheiro Tristão, 1002,
Comunidade África, Redinha.
Norte 2 Nossa Sra. da Apresentação USF Planície das Mangueiras Rua Nova Granada, s/n, Cj. Planície das
Mangueiras, Nossa Sra. Da
Apresentação.
USF Parque dos Coqueiros Rua das pedrinhas, s/n, Cj. Parque dos
Coqueiros, Nossa Sra. da Apresentação.
USF Vale Dourado
CRAS Na. Sra. Apresentação Rua Rizomar, 391, Nossa Senhora da
Apresentação.
Hospital Maria Alice Fernandes (ainda não
habilitado)
Av. Pedro Álvares Cabral, Cj. Parque dos
Coqueiros, Nossa Sra. da Apresentação.
Potengi USF Potengi Avenida Itapetinga,02, Cj. Santarém,
Potengi.
USF Soledade I Rua Santanó polis, 2852, Potengi.
USF Soledade II Rua Serra Negra, 2000, Cj. Soledade II,
Potengi.
USF Panatis Rua das Pimenteiras, s/n, Cj. Panatis II,
Potengi.
USF Santa Catarina Rua Aracati, 271, Cj. Panatis III, Potengi.
USF Santarém Avenida Rio doce, 12, Cj. Santarém,
174
Potengi.
NASF Santarém Avenida Rio doce, 12, Cj. Santarém,
Potengi.
Central de Gestão em Saúde do Distrito
Sanitário Norte I
Av Dr joão Medeiros, s/n, Potengi.
CAPS AD II Travessa Macaé, 120, Potengi. (Endereço
temporário)
CEI (Policlínica Asa Norte) Avenida Dr Joao Medeiros, s/n, Cj. Santa
Catarina, Potengi.
Unidade Psiquiátrica de Custódia e
Tratamento
Rua Iguatu, s/n, Cj. Santarém, Potengi.
UPA – Potengi Avenida Senhor do Bonfim, s/n, Cj.
Santa
Catarina, Potengi.
CRAS Salinas Av. Dro. João Medeiros Filho, 4570,
Potengi.
CREAS Santarém - Equipe de abordagem
social
Av. Dr. João Medeiros Filho, 4570,
Potengi.
Centro Educacional Pe. João Maria –
CEDUC Pe. João Maria*
Avenida das Fronteiras, 1.626 – Conjunto
Santa Catarina, Potengi – Natal/RN
Igapó USF Bela Vista Rua Bela Vista, 1245, Igapó.
USF Igapó Rua são tiago, 01, Igapó.
Central de Gestão em Saúde Distrito
Sanitário Norte II
Rua Antônio Galdino, s/n, Igapó.
Salinas - -
Leste Santos Reis - -
Rocas USF Rocas Rua Francisco Bicalho, s/n, Rocas.
Centro de Convivência (Centro Integrado
de Serviços de Saúde – unidade pescadores)
Av. Duque de Caxias, 5, Rocas.
Praia do Meio USF Brasília Teimosa Rua Miramar, 32, Praia do Meio.
Areia Preta SMS – Nível Central (Central de Gestão em Rua Fabrício Pedroza, 915, Areia Preta.
175
Saúde)
Petrópolis Unidade Familiar Comunitária Avenida Nilo peçanha, 613, Petrópolis.
CAPS III Rua Mipibu, 404, Petrópolis.
HUOL Av Nilo Peçanha, 620, Petrópolis.
Hospital Municipal de Natal Rua Joaquim Manuel, 655, Petrópolis.
CREAS Petrópolis - Equipe de abordagem
social
Rua Trairi, 526, Petrópolis.
Centro de Referência em Práticas
Integrativas e Complementares - CERPIC
Rua Tuiuti, 173, Petrópolis.
Tirol
UBS São João Avenida Romualdo Galvão, 891, Tirol.
CnaR – Equipe São João Avenida Romualdo Galvão, 891, Tirol.
CAPS AD III Rua Açu, nº 418, no Tirol. (Endereço
temporário)
SRT Rua Almeida Castro, 1119, Tirol.
Centro de Reabilitação Infantil - CRI Av. Alexandrino de Alencar, 1900, Tirol.
Ribeira Centro de Especialidades Integradas – CEI
I (Antiga Policlínica Dr. José Carlos
Passos)
Rua Augusto Severo, S/N - Ribeira
Central de Gestão em Saúde - Leste Praça Augusto Severo, s/s, Ribeira.
Albergue Municipal José Augusto da
Costa*
Rua Câmara Cascudo, 176, Ribeira.
Cidade Alta Central de Regulação de Natal Rua João Pessoa, 324, Cidade Alta.
Centro de Referência de Atenção ao Idoso Rua Apodi, 228, Cidade Alta.
Alecrim UBS Alecrim Avenida Presidente Bandeira, 935,
Alecrim.
USF Guarita Rua Presidente Sarmento, 1955, Alecrim.
USF Passo da Pátria Travessa Gardenia, s/n, Alecrim.
Centro de Especialidades Integradas – CEI
II
Av. Fonseca e Silva, 1129, Alecrim.
176
Barro Vermelho CRAS Passo da Pátria Rua Ernani da Silveira, 1610, Barro
Vermelho.
Centro POP* Rua Ernani da Silveira, 988, Barro
Vermemlho.
Lagoa Seca UBS Lagoa Seca Rua Padre Antônio, s/n, Lagoa Seca.
Mãe Luíza Unidade Mista Mãe Luíza Rua João XXIII, Mãe Luiza.
USF Aparecida Rua Guanabara, 1050, Mãe Luiza.
CnaR – Equipe Mãe Luíza Rua Guanabara, 1050, Mãe Luiza.
CRAS Mãe Luíza Rua Guanabara, 816, Mãe Luíza.
Oeste OBS: Estes serviços, apesar
de estarem situados no Bairro
de Lagoa Nova (Distrito
Sanitário Sul) eles fazem
parte do Distrito Sanitário
Oeste
CAPS II Oeste – Lagoa Nova Rua Murilo Melo, 1924, Lagoa Nova.
SRT – Lagoa Nova Av. Miguel de Castro, 714, Lagoa Nova.
Nordeste USF Bairro Nordeste Rua Alto da Bela Vista, s/n, Bairro
Nordeste.
Quintas USF Monte Líbano Rua Matuzalem, s/n, Quintas.
UBS Quintas Travessa Luiz Sampaio, 712, Quintas.
Bom Pastor USF Bom Pastor Rua Augusto Calheiros, 01, Bom Pastor.
USF Novo Horizonte Rua dos Paiatís, 128, Bom Pastor.
Dix-sept Rosado SAMU – Coordenação Urgência e
Emergência
Rua dos Potiguares, 300, Dix-sept
Rosado.
Nazaré USF Nazaré Rua Rubens Mariz, 447, Nazaré.
NASF Nazaré Rua Rubens Mariz, 447, Nazaré.
Central de Gestão em Saúde Oeste Rua Rubens Mariz, 734, Nazaré.
CREAS Nazaré – Equipe de Abordagem
Social
Rua Abílio Deodato do Nascimento,
2117, Nossa Sra. de Nazaré.
Centro Educacional Nazaré – CEDUC
Nazaré*
Rua Tiradentes, 455 – Nazaré –
Natal/RN.
Felipe Camarão Unidade Mista de Felipe Camarão* Rua da Tamarineira, 25, Felipe Camarão.
177
USF Felipe Camarão II Rua Santa Cristina, s/n Felipe Camarão.
USF Felipe Camarão III Rua Itamar Maciel, 360, Felipe Camarão.
USF KM 06 Avenida Cap. Mor Gouveia, s/n, KM 06,
Felipe Camarão.
Cidade da Esperança CAPSi Avenida Cap Mor Gouveia, s/n, Cidade
da Esperança.
Unidade de Acolhimento (em fase de
construção)
Avenida Cap Mor Gouveia, s/n, Cidade
da Esperança.
Posto de Saúde Terminal Rodoviário Av. Cap Mor Gouveia, 1237, Cidade da
Esperança.
UPA – Cidade da Esperança Avenida Paraíba, s/n, Cidade da
Esperança.
CEI Oeste (Policlínica Cid. Da Esperança) Avenida Capitão Mor Gouveia, S/N – Cidade da Esperança – Natal/RN
Centro Integrado de Atendimento ao
Adolescente acusado de Ato Infracional –
CIAD Natal*
Avenida Capitão Mor Gouveia, S/N – Cidade da Esperança – Natal/RN
Cidade Nova USF Cidade Nova Rua Laranjal, 47, Cidade Nova.
CRAS Felipe Camarão Travessa Getúlio Vargas, s/n, Cidade
Nova.
Guarapes USF Guarapes Rua Lagoa Seca, s/n, Guarapes.
CRAS Guarapes Rua da Ribeira, 09 A, Guarapes.
Sul Nova Descoberta UBS Nova Descoberta Rua Xavier da Silveira, s/n, Nova
Descoberta.
Hospital Colônia Dr. João Machado Av Alexandrino de Alencar, 1378, Cj.
Morro Branco, Nova Descoberta.
Lagoa Nova Casa de Saúde Natal Av. Romualdo Galvão, 1402, Lagoa
Nova.
Central de Gestão em Saúde Distrito
Sanitário Sul
Rua Francisco Borges de Oliveira, 1317,
Lagoa Nova.
Candelária UBS Candelária Rua Nossa Senhora da Candelária, 3402,
178
Candelária.
Capim Macio UBS Mirassol Rua das Orquídeas, 779, Cj. Mirassol,
Capim Macio.
Associação dos Pais e Amigos dos Autistas
do RN – APAARN
Av. Miguel Alcides de Araújo, 1881,
Capim Macio.
Clínica Santa Maria Rua Américo Soares Wanderley, Capim
Macio.
Ponta Negra USF Ponta Negra Rua José Medeiros, 01, Ponta Negra.
CnaR – Equipe Ponta Negra Rua José Medeiros, 01, Ponta Negra.
CRAS Ponta Negra Rua Aparecida Bem vinda, 123, Vila de
Ponta Negra, Ponta Negra.
CREAS Ponta Negra – Equipe de
abordagem social
Rua Aparecida Bem Vindo, 123, Vila de
Ponta Negra, Ponta Negra.
Pitimbu Unidade Mista de Cidade Satélite Rua das Carnaúbas, 02, Pitimbu.
UBS Cidade Satélite (Pitimbu) Rua Serra do Piracambu, 02, Pitimbu.
Ambulatório de Cidade Satélite Rua Pastor Isaías Batista, 1353, Pitimbu.
UPA Cidade Satélite Av. dos Xavantes, 1228-1306, Pitimbu.
SRT Rua Comandante Monteiro Chaves,
2053, Cj. Cidade Satélite, Pitimbu. Centro Educacional Nazaré – CEDUC
Pitimbu*
Neópolis UBS Jiqui Rua União dos Palmares, 11, Cj. Jiqui,
Neópolis.
UBS Pirangi (Cj. Pirangui) Av São Miguel dos Caribes, s/n, Cj.
Pirangui, Neópolis.
CEI Sul (Neópolis) Av. Airton Senna, s/n, Neópolis.
Ambulatório de Prevenção e tratamento de
Tabagismo, Alcoolismo e outras
drogadições
Av. São Miguel dos Caribes, s/n, Cj.
Pirangi, Neópolis.
Parque das Dunas Zona de Proteção Ambiental -
Planalto USF Planalto Rua Comunidade Shalon, 15, Planalto.
179
USF Enfermeira Rosângela Lima Rua Santa Beatriz, s/n, Planalto.
USF Nova Cidade Rua Horácio Dantas, s/n, Cj. Nova
Cidade, Planalto.
CRAS Planalto Rua Monte Rei, 550, Planalto.
*As igrejas e a Universidade constituem parcerias intersetoriais que estão disponíveis (e espalhadas) em todos os bairros de todos os Distritos
Sanitários.
180
ANEXOS
ANEXO A – Carta de Anuência do HUOL
181
ANEXO B – Carta de Anuência da SMS/Natal
182
ANEXO C - Parecer Consubstanciado do Comitê de Ética em Pesquisa do HUOL