Davi e a Cidade de Ziclague

18
DAVI E A CIDADE DE ZICLAGUE (SICLAG) (1 SAMUEL 27) Ao tratarmos da história que temos agora perante nós, a qual, necessàriamente, apresenta muito fracasso e fraqueza, é bom recordarmos o que nós próprios somos, não seja o caso de apontarmos as faltas de outros num espírito de complacência. O escritor divino põe diant e de nós, com fide- lidade resoluta, todas as imperfeições daqueles cuja his- ria relata. O seu objetivo é apresentar Deus à alma em toda a plenitude e diversidade dos Seus r ecursos, e em toda a Sua competência para valer ao pecador desamparado em toda a sua necessidade. Ele não escr eveu a história de anjos, mas de homens «sujeitos às mesmas paixões» que nós pró- prios; e é isto que torna as narrativas do Velho Testamento tão instrutivas para nós: são-nos apresentados fato que falam ao coração; somos conduzidos por cenas e circuns- tâncias que nos descrevem, com simplicidade tocante, as fontes ocultas da nossa natureza, e bem assim as fontes da graça. Aprendemos que o homem é o mesmo em todos os sé- culos; no Éden, em Canaã, na Igreja e na glória do Milênio, ele mostra ser feito dos mesmos materiais humilhant es; mas aprendemos também, para nossa alegria e encorajamento, que Deus «é o Mesmo ont em, hoje e et ernament (Heb. 13:8): Paciente, Gracioso, Poderoso e Santo - Pacient e para suportar as nossas muitas provocações; Gracioso para apagar os nossos repetidos pecados e restaurar as nossas

description

Exemplos da vida de fé na vida de Davi e época de Davi - C. H. Mackintosh

Transcript of Davi e a Cidade de Ziclague

  • DAVI E A CIDADE DE ZICLAGUE (SICLAG)

    (1 SAMUEL 27)

    Ao tratarmos da histria que temos agora perante ns, a qual, necessriamente, apresenta muito fracasso e fraqueza, bom recordarmos o que ns prprios somos, no seja o caso de apontarmos as faltas de outros num esprito de complacncia. O escritor divino pe diante de ns, com fide- lidade resoluta, todas as imperfeies daqueles cuja hist- ria relata. O seu objetivo apresentar Deus alma em toda a plenitude e diversidade dos Seus recursos, e em toda a Sua competncia para valer ao pecador desamparado em toda a sua necessidade. Ele no escreveu a histria de anjos, mas de homens sujeitos s mesmas paixes que ns pr- prios; e isto que torna as narrativas do Velho Testamento to instrutivas para ns: so-nos apresentados fato que falam ao corao; somos conduzidos por cenas e circuns- tncias que nos descrevem, com simplicidade tocante, as fontes ocultas da nossa natureza, e bem assim as fontes da graa.

    Aprendemos que o homem o mesmo em todos os s- culos; no den, em Cana, na Igreja e na glria do Milnio, ele mostra ser feito dos mesmos materiais humilhantes; mas aprendemos tambm, para nossa alegria e encorajamento, que Deus o Mesmo ontem, hoje e eternamente (Heb. 13:8): Paciente, Gracioso, Poderoso e Santo - Paciente para suportar as nossas muitas provocaes; Gracioso para apagar os nossos repetidos pecados e restaurar as nossas

  • almas errantes; Poderoso para nos libertar dos ardis de Satans e da energia da natureza e do mundo; Santo para exercer juzo na Sua casa e castigar os Seus, para que eles possam ser participantes da Sua santidade. assim o Deus com Quem temos que tratar; e vemos as manifestaes ma- ravilhosas do Seu carter nos esboos profundamente inte- ressantes com que a histria do Velho Testamento abunda, e talvez, em nenhum deles, melhor do que naquele que temos agora perante ns. So poucos os carteres que exi- bem mais variedade de experincia do que David. Ele co- nhecia verdadeiramente os altos e baixos que caracterizam a carreira do homem de f. Numa ocasio vmo-lo tirar da sua harpa os acordes mais sublimes; noutra, mostrando a mgoa de uma conscincia contaminada, e um esprito magoado. Esta variedade de experincias tornou David um objecto apropriado para a ilustrao da graa de Deus.

    sempre assim. O filho prdigo nunca teria conhecido uma to elevada comunho com seu pai, se no houvesse co- nhecido as humilhantes profundidades do pas distante. A graa que o vestiu com o melhor vestido no teria sido ma- nifestada to brilhantemente se ele no tivesse sido coberto de trapos imundos. A graa de Deus engrandecida por meio da runa do homem; e quanto mais sinceramente for sentida essa runa, tanto mais a graa ser apreciada. O filho mais velho nunca teve um cabrito para se alegrar com os seus amigos; e porqu? porque julgava que o merecia. Eis que te sirvo h tantos anos - diz ele - sem nunca transgredir o teu mandamento (Luc. 15:29). Presunoso! Como poderia ele esperar o anel, o melhor vestido, ou o bezerro cevado? Se os tivesse obtido teriam sido apenas os ornamentos da prpria justia, e no as vestes com que a graa cobre o pecador contrito.

    Assim aconteceu com David e Saul. Saul nunca reconhe- ceu a sua necessidade como David a sentiu, nem to-pouco ns temos o relato de pecados to flagrantes, no seu caso; pelo menos, aquilo que o homem chamaria flagrante. Saul

  • era o homem exteriormente religioso e moral, porm, inti- mamente, era um homem que se vangloriava em si prprio; por isso encontramos expresses como estas: ... dei ouvidos voz do Senhor, e caminhei no caminho pelo qual o Senhor me enviou (I Sam. 15 :20). Como poderia este homem apreciar a graa? Impossvel. Um corao inquebrantado e uma conscincia inconvencida nunca podero entrar na compreenso do termo GRAA.

    Como tudo era diferente com David! Ele sentiu os pe cados, gemeu sob eles, confessou- os, julgou-os, na presena do Deus cuja graa os havia apagado todos para sempre. Existe uma grande diferena entre um homem que desco- nhece os seus pecados, e anda satisfeito consigo prprio e aquele que est profundamente cnscio doe seus pecados, e todavia conhece o seu pleno perdo.

    Este pensamento conduz- nos s circunstncias ligadas com David em Siclag dos Filisteus - circunstncias que nos mostram completamente a fraqueza humana, c a graa e misericrdia divinas.

    Disse porm David no seu corao: Ora ainda algum dia perecerei pela mo de Saul; no h coisa melhor para mim do que escapar apressadamente para a terra dos filis- teus (I Sumo 27:1). Esta era a segunda vez que David ia para a terra dos Filisteus. No captulo 21 lemos, E David levantou-se e fugiu aquele dia de diante de Saul, e veio a Aquis, rei de Gath. Aqui vemos como David se desprende realmente das mos de Deus, e se coloca nas mos de Aquis. Deixa o lugar de dependncia, e vai para o meio dos ini- migos de Deus e de Israel. E note- se, ele leva em sua mo a prpria espada do campeo filisteu. Nem isto actuar no seu verdadeiro carter de servo de Deus; isto teria sido feliz, na verdade: mas no; ele vai desempenhar o papel de louco, na presena daqueles perante quem tinha recen- temente atuado como o campeo de Israel: ... os criados de Aquis lhe disseram: No este David, o rei da terra? No se cantava deste nas danas, dizendo: Saul feriu os

  • seus milhares, porm David os seus dez milhares? (I Sam- 21 : 11). Os filisteus reconheceram o verdadeiro carter de David como rei da terra - o matador de dez milhares-, supuseram que ele no podia possivelmente agir de outra forma seno como seu inimigo. Quo longe estavam de entrar na condio moral da sua alma nesta extraordinria etapa da sua histria - estavam longe de supor que o ma- tador de Golias havia fugido para a sua terra a fim de es- capar s mos de Saul.

    O mundo no pode compreender as vicissitudes da vida de f. Quem, havendo visto David no Vale do Carvalho, poderia jamais supor que ele em breve teria medo de con- fessar, com ousadia, os resultados daquela f com que Deus o havia dotado? Quem poderia imaginar que, com a espada de Golias na mo, ele havia de ter receio de confessar ser o seu vencedor? E contudo foi assim. David considerou estas palavras no seu nimo, e temeu muito diante de Aquis, rei de Gath. Pelo que se contrafez diante dos olhos deles, e fez-se como doido entre suas mos, e esgravatava nas por- tas do portal, e deixava correr a saliva pela barba (I Sam. 21:12,13).

    Assim ter de ser sempre que o crente deixa de compor- tar-se em simples dependncia de Deus e como peregrino na terra. O comportamento ento alterado, o verda- deiro carter abandonado, e em vez disso adotada uma carreira que caracterizada por impostura positiva diante de Deus e loucura perante o mundo, Isto muito triste. Um cristo deveria sempre manter a sua dignidade - a dignidade que emana do sentimento da presena de Deus. Porm logo que a f cede, o poder do testemunho desaparece, e o homem de f desprezado como um louco. Quando David disse no seu corao: Ora ainda algum dia perecerei pela mo de Saul, ele abandonou o nico meio de verdadeiro poder. Se ele tivesse continuado como fugitivo nas montanhas, nunca teria dado uma demons- trao to melanclica vista dos servos de Aquis - nunca

  • teria sido tido na conta de louco. Aquis nunca teria ousado chamar David por um tal nome no Vale do Carvalho! No, nem to-pouco na Caverna de Adulam. Mas, ah! David havia-se posto a si prprio debaixo do poder deste estran- geiro, e portanto teria que sofrer por causa da sua infideli- dade, ou deixar tudo e fingir-se doido aos seus olhos. Eles muito justamente julgaram-no o rei da terra, mas ele, te- mendo as conseqncias de manter uma to alta dignidade, negou o seu reinado, e tornou-se um louco.

    Quantas vezes podemos ns seguir o rasto da operao deste mesmo mal no procedimento de Cristos! Como fre- quente ver-se um homem que, por meio da sua atuao na energia do Esprito de Deus, chega a alcanar uma elevada posio nos pensamentos, no s dos seus irmos, mas at mesmo dos filhos deste mundo, e contudo quando se des- liga da comunho com Deus tem realmente medo de manter a sua posio, e, no prprio momento em que os de fora procuram ver smente um testemunho firme contra os seus caminhos, ele altera o seu comportamento, e em vez de ser estimado e reverenciado, desprezado.

    Devemo-nos guardar cuidadosamente deste mal, que s pode ser evitado eficazmente se andarmos no conhecimento pleno e bendito da suficincia de Deus. Logo que compreen- demos que Deus suficiente para todas as nossas necessi- dades, somos inteiramente independentes do mundo; e se assim no for, comprometemos a verdade de Deus, e nega- mos o nosso verdadeiro carter de homens celestiais.

    Como David deve ter perdido completamente o sentido da suficincia de Deus quando disse, no h coisa melhor para mim do que escapar apressadamente para a terra dos filisteus. Nada melhor para um homem de f do que vol- tar a buscar refgio no mundo! Que estranha confisso! a confisso de algum que tinha permitido que as circuns- tncias se interpusessem entre a sua alma e Deus. Quando escorregamos do caminho estreito da f, estamos sujeitos a cair nos mais estouvados extremos; e nada pode mostrar

  • melhor o contraste entre algum que espera em Deus e outro que confia nas circunstncias do que David no Vale do Caro valho, e David rabiscando na porta do rei dos filisteus.

    O contraste est cheio de instruo, e um aviso solene. Est bem calculado para nos ensinar o que ns somos, e como podemos confiar to pouco em ns. Ah! prezado leitor, que somos ns? Criaturas pobres, trpegas, falveis, inclinados, a cada curva da nossa vida, a afastarmo-nos em erro e mal - inclinados a desprezar a Rocha dos Sculos, e a ampararmo-nos nas canas rachadas do mundo - incli- nados a deixar a fonte das guas vivas, e a cavarmos para ns prprios cisternas que no podem reter gua. Na verdade precisamos - necessidade profunda - de andar humilde- mente, vigiando e orando, perante Deus - necessitamos de fazer a orao de David, continuamente, Sustenta-me e serei salvo, e de contnuo me recriarei nos teus estatutos (Salmo 119: 117). Precisamos de ter ps como a cora, para poder. mos andar nos lugares altos e escorregadios atravs dos quais est o nosso caminho. Nada seno a graa divina nos pode habilitar a seguir uma carreira de devoo: pois se formos deixados entregues a ns prprios no h mal a que no sejamos capazes de chegar. Smente aqueles que Deus guarda no cncavo da Sua mo esto salvos. Na verdade bom para ns termos de tratar com Aquele que pode su- portar-nos em toda a nossa maldade, e tambm restaurar e revivificar as nossas almas quando fraquejam e definham sob a influncia da atmosfera que nos cerca.

    Longe esteja de ns usarmos de qualquer outro modo aquilo que podemos chamar a parte histrica de David em Siclag a no ser para a aplicar aos nossos prprios coraes diante de Deus, e us-la como um caso de aviso da alma; pois que embora possa dizer-se que existe uma grande dife- rena entre a posio e os privilgios de David e aqueles que pertencem Igreja de Deus, presentemente, todavia em todos os sculos e em todas as dispensaes a natureza a mesma; e ns prejudicamos seriamente as nossas almas se

  • falharmos em tirar uma lio salutar com as quedas de algum to elevado na escola de Cristo como foi David, As dispensaes diferem, sem dvida, nos seus caractersticos principais; porm, h uma analogia maravilhosa nos prin- cpios de Deus de disciplina, em todos os tempos, seja qual for a posio do Seu povo.

    Seguindo David, na sua residncia temporria, na terra dos filisteus, apenas achamos novos motivos de humilhao. Ele obtm a concesso de Siclag, onde fixa residncia por dezasseis meses, durante cujo perodo, embora livre de todo o receio com respeito a Saul, se acha longe de Deus e de Israel,

    , em certo sentido, uma coisa muito fcil sair-se de um lugar de provao; mas em tais casos samos tambm do lugar de bno.

    Teria sido muito melhor para David ter continuado numa posio que o deixava exposto perseguio de Saul, en- quanto que, ao mesmo tempo, gozava da proteo do Deus de Israel, do que procurar segurana debaixo do poder do rei de Gath. Contudo, quando a provao est sobre ns, a ideia de alvio agradvel, e ns corremos o risco de pro- curar remdio por nossos prprios meios. O inimigo tem sempre uma estrada secundria aberta para o homem de f. Deparou o Egito para Abrao, e Siclag para David; e agora tem o mundo, em todas as suas vrias formas, para ns. E se, na verdade, se lembrassem daquela de onde haviam sado, teriam oportunidade de tornar (Heb, 11 :15). a oportunidade de tornar que prova a firmeza genuna de propsito de avanar. O Senhor deixa o Seu povo livre, para que possam mostrar claramente que buscam uma ptria (Heb. 11 :14). Isto o que glorifica Deus. De nada valeria se fssemos compelidos, como se fosse com freio e rdeas, a ir da terra ao cu; mas quando, pela graa, aban- donamos voluntriamente as coisas da terra, para buscarmos as coisas que so de cima, isto contribui para glria de Deus,

  • porque demonstra que o que Ele tem para nos dar muito mais atrativo que este presente sculo (1).

    Contudo, David foi aceito por Siclag, e, em vez de con- tinuar como um estranho sem casa na Caverna de Adulam, tornou-se um cidado da terra dos filisteus. Nem to-pouco agora desempenha o papel de um enganador declarado. Faz guerra aos gesuritas e gersitas, e mente a este respeito, no seja o caso de perder outra vez o seu lugar de proteo. De fato, ele vai to longe nesta carreira infeliz que quando Aquis lhe prope agir como aliado dos filisteus, a sua res- posta , ... assim sabers tu o que far o teu servo ... E disse Aquis a David: Por isso te terei por guarda da minha cabea para sempre ... E ajuntaram os filisteus todos os seus exrcitos em Afek: e acamparam-se os israelitas junto fonte que est em Jezreel. E os prncipes dos filisteus se foram para l com centenas e com milhares: porm David e os seus homens iam com Aquis na retaguarda.

    Aqui, pois, temos a estranha anomalia - um rei de Israel prestes a ser o guardado r da cabea de um filisteu, e prestes a brandir a espada contra os exrcitos do Deus vivo! J se viu uma coisa assim? O matador de Golias servo dum filisteu!

    Quem poderia esperar tal coisa? Na verdade difcil vislumbrarmos onde tudo isto teria acabado, se tivesse sido permitido a David prosseguir com os seus planos; mas isto no podia ser. Deus vigiava graciosamente o Seu pobre fugi- tivo e tinha muitas e ricas misericrdias para ele, bem como algumas lies humilhantes e exerccios penosos para a alma. Os prncipes dos filisteus foram os instrumentos usados pelo Senhor para libertar David da sua estranha posio. Aqueles, julgando o seu passado, no podiam ser

    (') E os levou por caminho direito, para irem cidade que deviam habitar (Salmo 107:7). A graa de Deus no s os levou do Egipto, como lhes deu a capacidade e o desejo de irem para Cana.

  • induzidos a aceit-lo como aliado. No este David, como podemos confiar nele? Um filisteu nunca poderia contar com um hebreu para cooperar contra os hebreus.

    Numa palavra, o homem do mundo nunca pode con- fiar inteiramente naquele que uma vez fez profisso de seguir a verdade de Deus e a deixou. Um crente que deixa a comunho e volta para o mundo, ainda mesmo que v muito longe, nunca ter a considerao do mundo. Ser um suspeito, precisamente como David o foi pelos filisteus. Faze voltar a este homem, e torne ao seu lugar em que tu o puseste, e no desa conosco batalha, para que no se nos torne na batalha em adversrio. Os filisteus podiam dar-lhe um certo lugar entre eles, mas quando se tornou uma questo de guerra entre eles e Israel, no podiam reconhe- c-lo ; e andaram sbiamente, porque qualquer que fosse o carcter assumido por David ele no podia ser realmente nada mais seno um inimigo dos filisteus. Podia fingir ser doido; podia aparentar fazer. guerra no sul de Jud; mas quando as coisas chegaram a um resultado positivo David s podia atuar consistentemente com o seu verdadeiro ca- rcter de matador de dez mil filisteus. O fato que, desde o princpio ao fim, David foi mal compreendido; os filis- teus no sabiam o que era que o havia mandado para o meio deles. Havia muito mais naquele aparente louco do que eles podiam penetrar. Eles pensaram que ele desejava reconciliar-se com o seu senhor, Saul, sem pensarem que tinham na sua presena aquele que em breve havia de lanar mo do cetro de Israel e faz-los sentir o peso do seu poder.

    Contudo, o Senhor no permitiu que David aparecesse no campo de batalha contra Israel. Mandou-o retroceder, ou, antes, p-lo de lado, de modo a poder tratar com ele em segredo a respeito da sua conduta. Ento David de madru- gada se levantou, ele e os seus homens, para partirem pela manh, e voltarem terra dos filisteus ... Sucedeu pois que, chegando David e os seus homens, ao terceiro dia, a Siclag,

  • j os amalequitas com mpeto tinham ferido a Siclag e a tinham posto a fogo. E levaram cativas as mulheres que estavam nela, porm a ningum mataram, nem pequenos nem grandes; to somente os levaram consigo, e foram pelo seu caminho.

    David obrigado a sentir os resultados amargos de ter buscado auxlio em Aquis no dia da sua necessidade. Tinha- -se recolhido aos incircuncisos e devia, portanto, ser feito participante da sua desgraa. Se ele tivesse continuado nas montanhas de Jud, teria escapado a toda esta dor; o seu Deus teria sido para ele uma muralha de fogo sua volta. Mas ele havia fugido para Siclag, para escapar a Saul, e ento, com efeito, no prprio momento em que Saul caa no Monte Gilboa, David chorava sobre as runas de Siclag. Certamente no era assim que ns espervamos encontrar David. Ento David e o povo que se achava com ele ala- ram a sua voz, e choraram, at que neles no houve mais fora para chorar, E David muito se angustiou, porque o povo falava de apedrej-lo. Em tudo isto Deus estava tra- tando com o seu querido servo, no para o esmagar, mas para o trazer ao prprio sentido da carreira que ele havia seguido entre os filisteus. Incontestavelmente, quando David viu as cinzas fumegantes de Siclag, e se achou privado das suas mulheres, teve uma lio prtica do mal e tristeza de receber alguma coisa do mundo. Possivelmente no podemos imaginar uma condio que mais dilacere o corao do que aquela em que David se achou no seu regresso a Siclag. Tinha, durante um ano e quatro meses, seguido um curso que o deve ter deixado com uma conscincia preocupada para com Deus; foi lanado fora por aqueles a eu j a pro- teco se havia entregado; o seu lugar de refgio fora quei- mado; as suas mulheres e a sua propriedade haviam sido levadas; e por fim, os seus companheiros, aqueles que o haviam seguido em todas as suas corridas, ameaavam ape- drej-lo.

  • Assim David caiu nas maiores dificuldades, sob todos os pontos de vista; todos os cursos naturais se haviam esgo- tado; e no somente isso, mas o inimigo podia manejar eficazmente os seus dardos inflamados nesse prprio mo- mento - a conscincia pde operar e a memria recordar as cenas do passado: o abandono do lugar de dependncia; a sua fugida para Aquis; a mudana de conduta; a sua oferta para combater contra Israel, como servo dos filis- teus; todas estas coisas devem ter aumentado, em grande escala, a aflio da sua alma. Mas David era um homem de f, afinal de contas, e, no obstante tudo, ele conhecia o Senhor.

    Esta era a sua alegria e o seu conforto neste momento difcil da sua vida, Se ele no tivesse podido deitar o seu fardo pesado sobre a graa infinita teria acabado em com- pleto desespero. Nunca antes havia sido to experimentado. Havia enfrentado o leo e o urso nas montanhas; tinha enfrentando o gigante Golias, no vale do carvalho; mas nunca se havia visto a braos com uma ordem esmagadora de circunstncias. Contudo, Deus era suficiente para ele, e David sabia-o. Por isso lemos: todavia, David se esforou no Senhor seu Deus.

    Feliz e bem fundado encorajamento! Feliz da alma que o conhece! Feliz daquele que pode, num abrir e fechar de olhos, elevar-se das prprias profundezas da misria humana at Deus, e os Seus infindveis recursos! A f sabe que Deus completamente capaz para suprir toda a necessidade humana - a 'fraqueza humana, a falha humana, o pecado humano. Deus est acima de tudo, para alm de tudo, abaixo de tudo; e o corao que O conhece eleva-se acima de todas as provaes e dificuldades do caminho.

    No existe condio alguma em que o cristo possa en- contrar-se na qual no possa contar com Deus. Acha-se esmagado com a presso da provao das circunstncias exteriores? Deixe que a onipotncia de Deus, e o Seu poder irresistvel tratem destas coisas. O corao acha-se

  • oprimido com o fardo da fraqueza pessoal - um fardo ver- dadeiramente pesado? Chegue-se s sadas inexaurveis da compaixo e misericrdia divinas. A alma est cheia de horror com o sentido do pecado e sua culpa? Aproveite-se da graa ilimitada de Deus, e o sangue infinitamente pre- cioso de Cristo. Numa palavra, seja qual for o fardo, a provao, a dor, ou a necessidade, Deus mais do que com- petente para tudo, e dever da f recorrer a Ele. David se esforou no Senhor seu Deus quando tudo era desani- mador e escuro.

    Possamos ns, prezado leitor, conhecer a bem-aventu- rana de tudo isto. Termos de tratar com Deus felicidade verdadeira e poder. Desligar os nossos coraes de ns prprios, e das coisas que nos rodeiam, e elevarmo-nos tranquilidade santa da presena divina, d mais conforto e consolao que se pode descrever. O objetivo de Satans sempre impedir isto. Ele procura compelir-nos a fazermos sempre das coisas presentes os limites do horizonte das nossas almas; procura cercar-nos de uma nuvem espessa, carregada, impenetrvel, de modo que no pudssemos re- conhecer o semblante do nosso Pai, e a Sua mo, para alm dela.

    A f porm traspassa a nuvem e eleva-se at Deus; no olha para as coisas que se vem, mas para as que so invi- sveis; fica firme, como que vendo Aquele que invisvel.

    O regresso de David a Siclag foi na verdade uma hora sombria - uma das mais sombrias; todavia, Deus apareceu e a sua esperana voltou. Deus apareceu para seu alvio e restaurao; graciosamente removeu o peso do seu esprito, quebrou os grilhes e deixou ir em paz o prisioneiro. Tal o mtodo de Deus: permite que os Seus filhos provem o fruto amargo dos seus prprios caminhos, a fim de que possam voltar para Si, com a segurana plena que podem ser verdadeiramente felizes na Sua presena santa e gra- ciosa. Siclag pode dar abrigo por um momento, contudo tem de perecer rpidamente; e at mesmo enquanto dura,

  • deve ser paga com o sacrifcio de uma boa conscincia para com Deus, e o Seu povo. Um preo pesado, de certo, a pagar por um alvio temporrio da presso! Quanto melhor suportar-se a opresso!

    Porm, bendito seja Deus, todas as coisas contribuem para o bem. A morte do campeo filisteu e os dezesseis meses de estadia em Siclag; a Caverna de Adulam, e a casa de Aquis contriburam para bem de David. O Senhor faz com que as prprias falhas dos Seus filhos produzam para eles ricas bnos, tanto mais que so levados desse modo a buscar uma melhor vigilncia de esprito na orao e um mais ntimo contacto com Ele.

    Se os nossos erros nos ensinam a descansarmos mais implicitamente em Deus, devemos ser agradecidos por eles, por muito que nos sintamos humilhados com a sua recor- dao.

    Por muito humilhante que tivesse sido a experincia de David em Siclag, podemos estar certos de que ele no a daria por nada. Ensinou-lhe mais da realidade da graa e fidelidade de Deus; e habilitou-o a ver que quando tinha de descer s profundezas das coisas humanas, podia encontrar Deus ali na plenitude da Sua graa. Era uma lio preciosa, e compete-nos a ns aprendermos com ela tambm.

    Estamos prontos a depender de Deus no meio da runa nossa volta? Ele para as nossas almas mais do que ente algum ou coisa alguma? Podemos achar conforto n'Ele quando parece ser diretamente contra ns? O Seu nome precioso para ns, nestes dias de infidelidade, decadncia, mundanismo e formalidade? Estamos prontos a prosseguir na nossa carreira atravs do deserto em solido e abandono, se assim tiver de ser? Pode dar-se o caso de termos deixado de esperar, de algum modo, no nosso semelhante; todavia, estamos preparados para perder o amor e a confiana dos nossos irmos? Os companheiros de David falavam em ape- drej-lo; porm o Senhor era mais precioso do que todos

  • eles; o Senhor era o seu Deus; conhecemos o poder e a consolao destas palavras?

    Quero agora chamar a ateno do leitor para o caso instrutivo passado entre David e o servo de um homem amalecita. No pretendo dizer, de modo nenhum, que deve- mos consider-lo como um smbolo positivo; mas podemos seguramente encar-lo como uma ilustrao notvel ilus- trao de qu?

    Para podermos apreciar o ensino do Esprito nesta Es- critura (captulo 30:11-16) torna-se necessrio no esquecer a diferena entre um Egpcio e um Amalequita; aquele est ligado com Israel nas bno dos ltimos dias: Naquele dia Israel ser o terceiro com os egpcios e os assrios, uma bno no meio da terra. Porque o Senhor dos exrcitos os abenoar, dizendo: Bendito seja o Egito, meu povo, e a Assria, obra das minhas mos, e Israel, minha herana (Isa. 19:24, 25). Pelo contrrio, de Amaleque fala-se do se- guinte modo: Porquanto jurou o Senhor, haver guerra do Senhor contra Amalek, de gerao em gerao (x, 17: 16). Portanto, um egpcio como um amalequita estavam em relaes diferente com Israel.

    Ora, este homem era egpcio, servo de um amalequita, e o seu senhor tinha-o abandonado porque ele adoecera. Tal fora o tratamento que recebeu do seu senhor amalequita; havia-o abandonado na hora da sua necessidade, porque j no podia prestar-lhe servio. Porm a sua prpria runa e misria despertaram a simpatia de David, que o tratou e fez reviver o seu esprito. Encontrou-o fraco e desmaiado em resultado do seu antigo servio, e, havendo reanimado o seu esprito, perguntou-lhe: poderias, descendo, guiar-me a essa tropa? (I Sam. 30:15). David faz este pedido com base no servio que lhe havia prestado, no afecto por ele demonstrado, e a quem, abaixo de Deus, ele devia tudo; porm, o homem, embora completamente restaurado, no estava disposto a cooperar com David antes de ter a inteira certeza da sua vida e liberdade. Por Deus me jura, disse

  • ele, que no me matars, nem me entregars na mo de meu Senhor, e, descendo, te guiarei a essa tropa. No podia servir David antes de ter a certeza da sua libertao do poder do seu antigo senhor.

    Tudo isto representa uma ilustrao notvel do ensino do apstolo em Romanos 6. O crente precisa de conhecer a sua inteira emancipao do domnio do seu antigo senhor, a carne, antes de poder, com confiana, entregar-se ao ser- vio de Cristo. Conhecemos a amargura de servir a carne, como diz o apstolo: E que fruto tnheis ento das coisas de que agora vos envergonhais? porque o fim delas a morte (Rom. 6:21). absolutamente impossvel andar em liberdade e paz de corao antes de sabermos onde a morte e ressurreio nos tem colocado. Enquanto no sou- bermos que o pecado no tem mais domnio sobre ns estaremos forosamente ocupados conosco, porque tere- mos sempre de descobrir a operao da corrupo e deste modo sentiremos a apreenso de sermos entregues s mos do antigo opressor.

    Poderemos conhecer muito bem a teoria da justificao pela f; poderemos saber o que descansar na obra de Cristo com respeito aos pecados passados, e contudo sentirmo-nos to preocupados quanto ao pecado no ntimo que sejamos impedidos no nosso servio para Cristo e a Sua Igreja.

    O evangelho da graa de Deus, quando compreendido na sua plenitude divina, pe a alma em descanso, no apenas quanto ao passado, mas tambm acerca do presente e o fu- turo. Deus perdoa TODOS os nossos pecados, e no apenas alguns; e no somente os perdoa, mas livra-nos do poder do pecado, como lemos em Romanos 6: Porque o pecado no ter domnio sobre vs, pois no estais debaixo da lei, mas debaixo da graa (versculo 14). uma verdade pre- ciosa para todo aquele que se sente diriamente incomodado com a semente do mal no ntimo. Embora o pecado habite no ntimo, no reinar. E como conseguida esta liberta- o? Por meio da morte e ressurreio. Porque aquele que

  • est morto, est justificado do pecado (versculo 7). Que direitos tem o pecado sobre um morto? Nenhum absoluta- mente. Pois bem; Deus v o crente como morto - morto com Cristo, e ressuscitado; e o seu poder para negar a ope- rao do pecado consiste em se reconhecer como aquilo que Deus diz que ele .

    Da mesma maneira que o juramento de David deu paz ao homem egpcio e o habilitou a cooperar consigo contra os amalequitas, a Palavra de Cristo afasta o temor e a hesi- tao do corao do crente, e habilita-o, por meio do Esp- rito, a agir contra o seu antigo senhor - a carne. A graa assegura-nos que todos os nossos interesses no tempo pre- sente e na eternidade, foram plenamente assegurados com a morte e ressurreio de Cristo, e mostra-nos que a nossa nica preocupao deve ser viver para louvor d' Aquele que morreu por ns e ressuscitou.

    Pois qu? Pecaremos ... O homem de quem fala esta Escritura podia voltar para o seu senhor amalequita? Im- possvel. Qual havia sido o pago dos seus servios pres- tados? Runa e abandono. E que fruto tivemos ns? A morte. O salrio do pecado a morte. O mundo, a carne, e o diabo s nos podem fazer descer ao inferno. Sirvamo-los de que modo for, morte e destruio ter de ser o fim. O homem pode no ver isto; pode no querer v-lo ; contudo isso no diminui a verdade. Aos homens est ordenado morrerem uma vez, vindo depois disso o juzo (Heb. 9 :27). Esta a ordenao; mas Cristo fez tudo em vez do crente; a morte e o julgamento so passados, e para o crente nada resta seno acompanhar em liberdade e alegria de corao o seu Senhor contra os Seus inimigos. Cristo fez tudo por ns, para que ns pudssemos agir por Ele nesta poca da Sua rejeio. Ele sofreu por ns fora do arraial, e agora chama-nos para o seguirmos, levando o seu vituprio. O crente no age com o fim de obter vida, mas porque a tem. Enceta a sua carreira crist com a plena certeza do perdo e aceitao no Amado. Justificao perfeita, o seu ponto

  • de partida, e a glria o alvo. Aos que justificou, tambm glorificou (Rom. 8:30). bom sermos excessivamente sim- ples na nossa compreenso desta grande verdade. Alguns julgam que nunca poderemos saber nesta vida que os nossos pecados so perdoados. Ora, se ns no podemos saber que os nossos pecados so perdoados, no podemos saber que a Palavra de Deus verdadeira e que a obra de Cristo perfeita. Atrever-se- algum a afirmar isto? Se no pode, ambas as coisas assentam sobre a mesma base. O perdo dos pecados e a verdade da Palavra de Deus esto ligados no precioso evangelho de Cristo. Duvide-se do perdo dos pecados e a verdade das palavras de Cristo, EST CON- SUMADO, ser posta em causa - palavras proferidas em circunstncias extremamente solenes.

    E contudo sabemos bem como difcil para o corao descansar com simplicidade inquestionvel na verdade de Deus a respeito da remisso dos pecados, pelo sangue de Cristo. Os nossos pensamentos so muito baixos e convencio- nais para podermos compreender a efulgncia da graa di- vina. Estamos cheios de legalismo e de personalidade. Loucamente pensamos que podemos ajuntar alguma coisa quilo que Cristo fez, quer isto tome a forma de obras, sentimentos ou experincias. Tudo isto deve ser posto de lado. Somente Cristo a grande base, a rocha eterna, a torre da salvao. At mesmo ajuntar a circunciso seria tornar Cristo de nenhum efeito, cair da graa e obrigar-nos a guardar toda a lei, e assim expor-nos maldio e ira de Deus. Todos quantos esto debaixo da lei ...

    Possamos ns apegar-mo-nos a Cristo com um sentido profundo da nossa vileza e da Sua perfeio. Que possamos cobrirmo-nos, com efeito, n'Ele, enquanto estamos de pas- sagem por este mundo indiferente e infiel.