Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

42
Personagens: Louco Delegado de polícia 1º Comissário 2º Comissário 1º Agente 2º Agente Jornalista PRIMEIRO ATO Sala comum de uma delegacia importante. Uma escrivaninha, um armário, algumas cadei ras, uma máquina de escrever, um telefone, uma janela, duas portas. COMISSÁRIO: (Folheando um a pasta, dirige-se ao indiciado, tranqüilo numa cadeira)  Ah, mas não é a primeira vez que você se disfarça, então? Aqui diz que se fez passar duas vezes por cirurgião, uma ve z por capitão da tro pa de tir o.. . três vezes bi spo. .. uma v ez engenheiro naval... no total v ocê fo i p reso... vejamos... dois mais três, cinco... um, três... dois... onz e ve ze s no tota l.. . e esta é a décima segun da...

Transcript of Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    1/42

    Personagens:LoucoDelegado de polcia1 Comissrio2 Comissrio1 Agente2 AgenteJornalista

    PRIMEIRO ATO

    Sala comum de uma delegacia importante.Uma escrivaninha, um armrio, algumas cadeiras, uma mquina de escrever, um telefone,uma janela, duas portas.

    COMISSRIO: (Folheando uma pasta, dirige-se

    ao indiciado, tranqilo numa cadeira) Ah, mas no a primeira vez que voc se disfara, ento? Aquidiz que se fez passar duas vezes por cirurgio, umavez por capito da tropa de tiro.. . trs vezes bispo. ..uma vez engenheiro naval... no total voc foi preso ...vejamos... dois mais trs, cinco... um, trs... dois...onze vezes no tota l.. . e esta a dcima segunda.. .

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    2/42

    14 DARIO FO

    INDICIADO: , doze prises... mas observe, senhor comissrio, que nunca fui condenado... minhaficha limpa!COMISSRIO: Bom... eu no sei que histrias voccontou pra conseguir escapar. Mas pode ter certeza

    que desta .vez eu sujo a sua ficha. Pode estar certo!INDICIADO: Entendo, comissrio. Uma ficha limpa, ainda sem mancha, d gua na boca de todomundo...COMISSRIO: , vai dando uma de espirituoso...A denncia diz que se fez passar por psiquiatra, professor, livre-docente na Universidade de Pdua...Voc sabia que falsa identidade d cadeia?INDICIADO: Falsa identidade sustentada por al

    gum so. Mas eu sou louco. Louco de carteirinha!Olha aqui na ficha clnica. J fui internado dezesseisvezes... e sempre pela mesma razo: sou manacopor personagens. Chama-se "histrionomania", vemde "histrio", que quer dizer ator. Resumindo, tenho a mania de representar papis sempre diferentes. S que como sou pelo teatro-verdade precisoque a companhia de teatro seja composta de gentede verdade... que no saiba representar. Por outro

    lado, eu no tenho dinheiro, no posso pagar minhatrupe... Pedi uma subveno ao Ministrio da Cultura, mas como no tenho apoio poltico...COMISSRIO: E ento faz seus atores o subvencionarem. .. so eles que do duro...INDICIADO: No, eu nunca sacaneei ningum...COMISSRIO: Tem mais ainda. Chegou a cobrarvinte mil liras por uma consulta...AGENTE:(Que est detrs do indiciado)Deu uma

    de carabiniere...

    1

    INDICIADO: o preo normal de um psiquiatraque se respeite... algum que estudou por dezesseisanos a mesma matria!

    (1) Referncia irnica ao corpo especial da polcia militar quetem como funo a manuteno da ordem urbana.

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 15

    COMISSRIO: essa a questo! Desde quandovoc estudou?INDICIADO: Estudei por vinte anos em dezesseismanicmios diversos... observando milhares de loucos como eu... dia aps dia... e de noite tambm,

    j que eu, diversamente dos outros psiquiatras, dormia com eles... s vezes em p com mais dois. Faltacama sempre! De qualquer modo, informe-se e vercomo o diagnstico que fiz daquele pobre esquizofrnico pelo qual me denunciaram era mais doque perfeito.COMISSRIO: As vinte mil liras tambm foramperfeitas!INDICIADO: Mas, senhor comissrio, fui obri

    gado, para o bem dele!COMISSRIO: Ah, para o bem dele? Faz parte daterapia?INDICIADO: Claro... se no metesse a faca, o senhor acha que aquele coitado e sobretudo os familiares ficariam satisfeitos? Se tivesse pedidocinco mil liras, certamente teriam pensado: "Nodeve ser muito bom. Talvez no seja um professor deverdade. Vai ver que acabou de se formar, um prin

    cipiante". Desse jeito, porm, depois da facada, perderam o flego e pensaram: "Mas quem esse? OPai Todo-Poderoso?" ... Foram embora felizes comoum passarinho... at me beijaram a mo... "obrigado, doutor"... e eu chorei de comoo.COMISSRIO: Pelo amor de Deus, voc um grande contador de caso!INDICIADO: No, comissrio, no estou enrolando! At Freud diz que a conta apimentada o mais

    eficaz dos remdios, tanto para o mdico como parao doente.COMISSRIO: Ah, deve ser mesmo, mas d umaolhadinha no teu carto e no teu receiturio... Seno me engano, est escrito: "Professor AntnioRabbi. Psiquiatra. Mestre junto Universidade dePdua".. . Vamos l, o que que voc vai me contaragora?!

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    3/42

    16 DARIO FO

    INDICIADO: Antes de mais nada, eu sou professorde verdade... professor de desenho... ornamental, mo-livre, no curso noturno do Sagrado Redentor...COMISSRIO: Muito bem, meus cumprimentos!

    Mas aqui est escrito: Psiquiatra.INDICIADO: Muito esperto. Mas depois do ponto!O senhor conhece a sintaxe e a pontuao? Observebem. Professor Antnio Rabbi. Ponto. Depois emmaiscula "Psiquiatra"! Ora, em hiptese algumadizer "eu sou psiquiatra" significa abusar de umttulo. como se dissesse "eu sou psiclogo, botnico, herbvoro, artrtico". O senhor conhece a gramtica e a lngua italiana? Sim? Ento deveria saber

    que se algum escreve arquelogo, como se escrevesse bergamasco... no quer dizer que tenha estudado!COMISSRIO: , e esse "professor livre-docentena universidade"?INDICIADO: Sinto muito, mas dessa vez o senhorque abusa. Me disse que conhece a lngua italiana,a sintaxe, a pontuao, e a se percebe que nem lercorretamente sabe...

    COMISSRIO: O que que eu no sei...?INDICIADO: No viu a exclamao depois do "professor"?COMISSRIO: Ah, ... tem um ponto de exclamao. Tem razo, eu no tinha notado.INDICIADO: Tenho razo !.. . "No tinha notado".E o senhor, pelo simples fato de "no ter notado",

    joga um inocente na cadeia?COMISSRIO: Mas realmente louco! ... (Sem

    perceber comea a trat-lo com mais respeito) O que que a exclamao tem a ver com isso?INDICIADO: Nada, pra quem no conhece a lngua italiana e a sintaxe... O senhor vai ter que medizer qual o seu ttulo de estudo e quem o aprovou...Me deixa acabar!.. . A exclamao a chave de tudo,lembre-se! Se depois de "professor" tem uma exclamao, o sentido da frase muda completamente. De-

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 17

    pois de professor... uma pausa breve intencional...j que "a exclamao impe mudana de intencio-nalidade". Portanto, deve-se ler: "Professor!" (Eaqui vai bem uma careta de sarcasmo... e se quiserdar um resmungo irnico, gozador, melhor ainda!)

    Ento, a leitura correta da frase: Professor(Faz umacareta e um hum! irnico, levantando a cabea delado) livre-docente, outra exclamao, de Pdua...como se dissesse "pera a, no me enrola... vai contar pra out ro. .. quem que acredi ta... s imbecil cainessa!"COMISSRIO: Ah, ? Eu ento seria um imbecil?INDICIADO: No, o senhor meio fraco de gramtica. .. se quiser posso lhe dar umas aulas... Fao um

    bom preo... Podemos comear imediatamente...Temos muito trabalho pela frente... Diga quais soos pronomes de tempo!COMISSRIO: Deixa de gozao! Comeo a acreditar que o senhor tenha realmente a mania de representar e que est representando o papel de louco. .. s que mais so do que eu, aposto!INDICIADO: No saberia dizer. Est certo que asua profisso leva a muitas alteraes psquicas...

    Deixe-me ver um pouco o olho. (Abaixa as plpe-bras com o polegar.)...COMISSRIO: Mas faa-me o favor! Vamos continuar com a ocorrncia.INDICIADO: Se quiser eu mesmo bato mquina.Sou datilgrafo formado. Quarenta e seis toques porsegundo...COMISSRIO: Fique quieto, seno mando algem-lo!

    INDICIADO: No pode! Camisa-de-fora ou nada!Sou louco. Se o senhor me algemar artigo 122 doCdigo Penal: "quem em vestes de oficial pblicoimpe instrumentos de conteno no-clnicos ouno-psiquitricos a um deficiente psquico, causan-do-lhe crise do seu mal, incorre em crime punvelcom pena de cinco a quinze anos e perda de aposentadoria e do cargo".

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    4/42

    18 DARIO FO

    COMISSRIO: Ah, estou vendo que entende tambm de leis!INDICIADO: De leis? Sei tudo sobre lei! H vinteanos estudo Direito!COMISSRIO: Mas voc tem trezentos anos! Onde

    foi que estudou Direito?INDICIADO: No hospcio! Se o senhor soubessecomo se estuda bem l dentro! Um funcionrio pblico paranico me dava aula. Um gnio. Sei tudo.Direito romano, moderno, eclesistico... o cdigo

    justiniano... frederiquiano... longobardo... greco-ortodoxo. Tudo! Pode me perguntar!COMISSRIO: No tenho tempo... V l! Aqui noteu currculo, entretanto, no est escrito que se fez

    passar por juiz... muito menos por advogado...INDICIADO: Ah, no, eu nunca vou ser advogado.No gosto de defender, uma arte passiva. Gosto de

    julgar... condenar... reprimir... perseguir! Sou umdos seus, caro comissrio! Pode me chamar de voc!COMISSRIO: Toma cuidado, louco... devagarcom a gozao...INDICIADO: No est mais aqui quem falou...COMISSRIO: E ento, j se fez passar, alguma

    vez, por juiz ou no?INDICIADO: No, infelizmente ainda no tive aoportunidade. Ah, como eu gostaria! Juiz a melhor de todas as profisses! Antes de mais nada,quase nunca se aposenta... Pelo contrrio, na idadeem que um homem comum, um trabalhador qualquer, com cinqenta e cinco, sessenta anos, j estno ponto de ser jogado fora porque comea aficar mais lento, com os reflexos retardados , comea o melhor da carreira para um juiz. Pra umoperrio da cadeia de montagem, depois dos cinqenta anos, t tudo acabado. Atrasa, provoca acidentes, de se jogar fora! O mineiro com cinqentae cinco anos tem silicose... rua, pro lixo, despedido,rapidinho antes que vena a aposentadoria... para oempregado de banco, a mesma coisa. Com umacerta idade comea a errar as contas, no se lem-

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 19

    bra mais dos nomes das firmas, dos clientes, a taxade desconto, o nmero do RG e o do CIC! Rua, pracasa... transferncia... est velho... caqutico! Os

    juizes no, pelo contrrio. Com os juizes o oposto:quanto mais velhos e caqu... debilitados, com mais

    facilidade so promovidos a cargos superiores. Confiam a eles cargos importantes... de poder total! Agente v uns velhinhos de papelo, embecados cordes, estola de arminho, chapu de cilindro comlistas de ouro que at parecem os padeirinhosde Veneza, bamboleantes, com as caras que lembram as rolhas do Vai Gardena... os culos presospor uma corrente pra no perd-los. Nunca se lembram onde os deixaram. Bom, tais personagens tm

    o poder de destruir ou salvar algum como e quandoquiserem. Condenam priso como se comentassem: ", talvez chova amanh... Cinqenta anospra voc... pra voc trinta... pra voc s vinte porque simptico". Ditam, legislam, sentenciam, decretam... e so sagrados tambm! Porque, no nosesqueamos, ainda existe entre ns o crime de vilipendio... se algum fala mal da magistratura...aqui e na Arbia Saudita! , ... juiz a profisso,o personagem que eu daria qualquer coisa pra representar, pelo menos uma vez na vida. Juiz do Supremo Tribunal: "Excelncia... se acomode, silncio, em p, entra a corte... oh, olhe, perderam umosso... seu?" "No, impossvel, no tenho maisossos!"COMISSRIO: Vamos acabar com essa papagaiada? Me deixou tonto. Sente-se ali e fique quieto!(Empurra-o em direo cadeira.)

    INDICIADO(Reagindo histrico):Ei, tira as mosou eu te mordo!COMISSRIO: Morde quem?INDICIADO: Voc! Te mordo o pescoo e os gl-teos tambm. Nhac... E se reagir pela fora existeo artigo 122 bis: provocao e violncia em prejuzode deficiente irresponsvel e indefeso. De seis a noveanos com perda da aposentadoria!

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    5/42

    20 DARIO FO

    COMISSRIO: Sente-se ou perco a pacincia! (Aoagente) E voc, o que que est fazendo a, petrificado? Faa-o sentar!AGENTE: Mas doutor, ele morde!INDICIADO: , mordo! Grrr... Grrrr... e advirto

    que sofro de raiva. Apanhei de um co... um vira-lato raivoso que me arrancou meia bunda. Ele morreu e eu sarei. Sarei, mas ainda estou envenenado.Grrr! Grrr!COMISSRIO: Mas, ser possvel... S faltavamesmo um louco venenoso! Afinal, voc vai ou novai me deixar registrar a ocorrncia? Vamos, sejabonzinho! Depois te mando embora... Te prometo!...

    INDICIADO: No, no me expulse daqui, senhorcomissrio. Estou to bem junto do senhor... na polcia... me sinto diferente. L fora, na rua, existemtantos perigos... as pessoas so malvadas, andam decarro, buzinam, do brecadas bruscas... Fazem greves! Os nibus e o metr tm portas que se fechamabruptamente frii nhac... Esmagado... Me deixa ficar com o senhor... ajudo a fazer os indiciados falarem... e os subversivos... sei fazer supositrio de

    glicerina com nit ro. ..COMISSRIO: Chega, no agento mais!INDICIADO: Comissrio, deixa eu ficar ou eu meatiro pela janela... Em que andar estamos? No terceiro...? Bom, quase perfeito, me atiro! Me atiroe quando estiver l embaixo, quela altura moribundo, esfacelado no asfalto, comeo a agonizar...Sou duro de morrer... e agonizo muitssimo... Chegam os jornalistas e eu lhes conto sempre agonizando que foram vocs que me atiraram! Olhaque eu me atiro!COMISSRIO: Por favor, pare com isso!(Ao guarda)Tranca a janela.

    O guarda obedece.INDICIADO: Ento eu me atiro do alto da escada.(Se dirige para a porta.)

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 21

    COMISSRIO: Pelo amor de Deus, agora chegamesmo! Sente-se.(Empurra-o para a cadeira)Voc,tranca a por ta. .. tira a chave...INDICIADO: E joga pela janela...

    O guarda atordoado se dirige para a janela.

    COMISSRIO: , joga... NO, pe na gaveta...tranca a gaveta.. . tira a chave.O guarda executa mecanicamente.

    INDICIADO: Enfia na boca e engole!COMISSRIO: Ahh, no! Ningum nunca me tratou assim.(Ao policial)Me d a chave.(Abre a porta) Fora, vai embora... e v se se atira mesmo daescada... faa o que bem entender... fora... eu enlouqueo.

    INDICIADO: No, comissrio... O senhor no podefazer isso! No seja abusado... no empurra... porfavor... por que que quer que eu desa?... No o meu ponto!COMISSRIO: Fora! (Consegue; encosta a porta)Ah, finalmente!AGENTE: Senhor comissrio, no se esquea dareunio com o doutor Bellati... J estamos cinco minutos atrasados.COMISSRIO: Mas que horas so? Meu Deus docu... aquele desgraado me fez perder o controle...Vamos, rpido...

    Saem pela esquerda; direita reaparece o louco, pela mesma porta pela qual tinha sado.

    LOUCO: Posso entrar... comissrio... incomodo?No se irrite, vim apenas pegar meus documentos...No responde? O que isso, vai me dizer que ficoude mal comigo? Vamos fazer as pazes... Ah, masaqui no tem ningum! Tudo bem, pego os documentos... minha ficha clnica... minha receita...Opa, a denncia... Bom, essa rasgamos e... no sefala mais nisso! E esta denncia aqui, contraquem?(L)"Furto agravado." Imagine s, em umafarmcia... no, no... voc est livre. (Rasga essatambm)E voc... o que que fez? (L) "Apropriao indbita.. . de saca to... " Histria... Pode ir, meu

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    6/42

    22 DARIO FO

    rapaz, voc est livre! (Rasga)Todos livres! (Se detm, considerando uma folha em particular) No,voc no... Voc um pusilnime... voc fica... pragalera... (Alisa bem o papel sobre a mesa; abre umarmrio repleto de papelada). No se movam...

    a justia! Nossa, ser que tudo isso denncia? Eeu queimo tudo... uma grande fogueira! (Com umisqueiro faz meno de queimar um pacote de folhas. L na capa)"Instrutoria em andamento." (Emoutro pacote) "... decreto de arquivao da instrutoria..." (Naquele momento, toca o telefone. Tranqilo, o louco atende) Al, sala do comissrio Ber-tozzo. Quem est falando? No, sinto muito, mas seo senhor no me disser quem est falando, no pos

    so chamar...! O qu... o comissrio... o senhor mesmo, em pessoa? No acredito... mesmo? Queprazer! O comissrio da janela! No, nada, nada... e de onde que o senhor est telefonando?...Ah, ? Que idiota que eu sou! Do quarto andar...e de onde mais seria?! Como, quem sou eu? Vocouviu, Bertozzo, o terror dos subversivos me pergunta quem eu sou... Adivinha! No tem tempo?O que isso, para um colega se tem que ter temposempre... Vamos l! Adivinha ou eu no chamoo Bertozzo! Quem eu sou?! Anghiari?(Para si mesmo) Sou o Anghiari? Isso, voc adivinhou... sou eumesmo, comissrio Piero Anghiari. Acertou. Bom,o que eu estou fazendo aqui em Milo... t querendo saber demais! Mas diga l, o que que vocquer com o Bertozzo? No, ele no pode atender aotelefone. Fala comigo. Um juiz superior? Foi mandado especialmente de Washington? No, querodizer, de Roma. (s vezes me esqueo que existe

    uma transposio...)2

    R, r, seria uma espcie de"revisor". Claro, evidentemente o ministrio noconcordou com as motivaes dadas pelo juiz quearquivou o inqurito. Voc tem certeza disso? Ah,

    (2) Ver Nota ao final do texto.

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 23

    " o que dizem"... eu bem que achei... antes esta-tavam todos contentes; em seguida mudaram deidia... Ah, a opinio pblica estaria pressionando... Mas vem contar essa pra mim... a opinio pblica... quem que pressiona... Pois , o Bertozzo

    t aqui, morrendo de rir (Afasta o fone e ri) R,R! E est fazendo gestos obscenos... R! R! (Fingechamar o Bertozzo) Bertozzo, o nosso amigo doquarto andar est dizendo que voc pode se permitir rir do assunto porque no tem nada a ver comisso... mas para ele e para o chefe dele so sarnas...R, r... t dizendo para voc se cocar com cuidado. .. No, agora sou eu que estou rindo! No, queme daria muito prazer ver o chefe da polcia no

    rolo... , essa a verdade, pode dizer pra ele... "ocomissrio Anghiari gostaria"... e o Bertozzo tambm est de acordo. Ouve s como est rindo(Afastao fone)R! R! Ouviu? E o que que eu tenho comisso de mandarem a gente pro fim do mundo?! Sim,pode contar isso tambm pra ele. Anghiari e Bertozzo cagam e andam... (Emite com a boca uma

    pernquia)Prruu... sim, foi ele. Mas no se esquente tanto! OK, eu sei que voc muito amigo do delegado de Ustica e Ventotene... mas no precisa levara coisa to a srio...! Isso, muito bem, a gente falauma outra vez sobre o assunto, cara a cara . E ento ,o que que voc quer com o Bertozzo? Quais documentos? Sim, fala que eu anoto. A cpia do decreto de arquivao da morte do anarquista... Tudobem, ele te manda em seguida... e as cpias dos relatrios tambm... certo, certo, est tudo aqui noarquivo.. . Olha, eu acho que voc e o guarda da ilhatm que se precaver. Se o juiz que est pra chegar

    for um pouquinho calhorda como esto dizendo...Como onde esto dizendo? Em Roma. Eu estou vindo de l, sabe? Essa histria de que esto armandouma pea pra vocs est na roda desde aquele dia. claro que eu conheo o juiz! Se chama Malipiero.Nunca ouviu esse nome? , mas vai ouvir. umdaqueles que esteve, mais ou menos, dez anos na

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    7/42

    24 DARIO FO

    fronteira... Pergunte ao teu chefe se quando ele eracarcereiro... No, pensando bem, talvez seja melhorno lhe perguntar. Poderia ter um troo e a noia se divertir mais.. . R, r, r, r! Nossa, como voc suscetvel, vizinho do quarto andar. .. A gente nem

    pode se divertir um pouco nesta polcia mal-humorada! Tudo bem, vamos te mandar tudo imediatamente. Um abrao. Espera, espera! R, r! o Ber-tozzo que soltou uma muito espirituosa... voc novai se zangar? Ento eu conto. Disse que... r, r...que depois da visita do juiz revisor, vo te mandarpara o sul, talvez pra Vibo-Valentim Calabrese...onde o prdio da polcia tem um andar s e a salado delegado no subsolo... R! R! R! R!... en

    tendeu? No subsolo... r, r, voc gostou? No gostou? Ento fica pra prxima vez.{Finge que est ouvindo) Tudo bem... vou lhe dizer imediatamente.Bertozzo, o no muito calabrs comissrio aqui presente, disse que a primeira vez que nos encontrar a ns dois vai nos dar um murro no focinho!Recebido, prruu! (Pernquia com a boca) da nossaparte, cmbio! (O louco apia o fone e sai imediatamente procura do material) "Ao trabalho, senhor juiz, o tempo urge!" R, r, uma ocasio comoesta pra demonstrar para mim e ao mundo inteiromeus estudos aprofundados, que sou digno de entrar para a categoria dos "superiores" infalveis esacri... onde mais eu poderia encontrar? Meu Deus,como estou emocionado! como se tivesse que fazerum exame, mais do que um exame de grau mximo! Se conseguir convenc-los que sou o verdadeiro juiz revisor... se no desanimar, Deus do cu,chego ctedra. Mas se eu falhar, estou perdido!

    Vejamos um pouco, antes de mais nada, encontrarum tipo de andar... (Tenta um andar claudicante)No, este de chanceler. Andar artrtico, mas comdignidade! Achei! Assim, com o pescoo um poucotorto... como cavalo de circo aposentado... (Experimenta e desiste) No, melhor ainda o "escorrega-dinho" com o pulo final. (Imita) Nada mal! E o

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 25

    "joelho de pudim"? (Imita) Ou ento rgido comoum gafanhoto (Imita. Passos curtos, velozes, equi-librando-se entre a ponta e o calcanhar). Hiii, osculos... No, nada de culos. O olho direito entre-aberto... assim, leitura furtiva, poucas palavras...

    um pouco de tosse cf, cf. No, nada de tosse...Tiques? Bem, v-se na hora, se for o caso. Avelu-dado, voz nasal?! Bonacho com acessos imprevistos: "No, caro delegado, o senhor tem que acabarcom isso. O senhor no mais diretor de uma penitenciria fascista... Tenha isso presente sempre quepuder!" No, no, melhor o tipo contrrio. Frio,distante, tom decidido, voz monocorde, olhar tristecomo de mope... que se serve dos culos, mas usa

    uma lente s, assim (Continua experimentando; folheia alguns papis). Mas olha s! Os documentosque eu estava procurando esto aqui mesmo! Ei, calma... o que foi essa sada de tom? Voltar imediatamente ao personagem! (Com tom decidido) Esttudo aqui? Vamos ver. Decreto de arquivao dotribunal de Milo... Ah, tem tambm o processosobre os anarquistas do grupo romano... com Balle-rini na cabea... Bom! (Joga tudo dentro de uma

    pasta, mas antes se certifica de que esteja vazia. Viraa pasta ao avesso e sacode) Um momento. Vai quepor acaso sobrou ainda algum caquinho... nuncase sabe com as bolsas da justia! Verificar sempreantes de usar!

    Nesse momento, depois que o louco retirou deum cabide uma capa marrom e um chapu preto, entra o delegado que no o reconhece vestidodessa maneira. Por um segundo, fica perplexo.

    COMISSRIO: Bom-dia, o senhor deseja algumacoisa? Procura por algum?LOUCO: Nada, comissrio. Voltei para buscarmeus documentos...COMISSRIO: Ah, ainda o senhor? Fora!!LOUCO: Por favor, se est nervoso por problemasseus no venha se desafogar pra cima de mim.

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    8/42

    26 DARIO FO

    COMISSRIO: Fora! (Acompanha-o, empurran-do-o at a porta.)LOUCO: Pelo amor de Deus! Aqui dentro so todosneurastnicos? Comeando por aquele louco abusado que est por a procurando pelo senhor, pra

    lhe quebrar a cara.COMISSRIO: (Pra por um momento) Quem que est me procurando?LOUCO: Um tal de malha com gola roul, tipo"dolcevi ta". Ainda no lhe deu o murro?COMISSRIO: Um murro em mim?LOUCO: , no senhor e em um outro colega seu...um tal de Angari. .. Angario.COMISSRIO: Anghiari... um comissrio de Ro

    ma... da poltica?LOUCO: Eu no sei de nada! ?COMISSRIO: E por que que esse tipo "dolcevita" nos daria um murro?LOUCO: Por causa daquela pernquia Prruu.COMISSRIO: Pernquia?LOUCO: , ou melhor, duas, pelo telefone... e comum risinho calhorda r, r... No se lembra, r, r!(Imita o fone longe da boca, como fizera antes).

    COMISSRIO: Mas o que que est dizendo? outro personagem seu?LOUCO: , vai perceber logo qual o personagemquando levar um murro no olho... e nem posso discordar do vizinho do quarto andar.. .COMISSRIO: De quem?LOUCO: Do seu colega. Como que vai lhe dizendo que deseja muito que o joguem na Calbria, nosubsolo... ele e o chefe dele, ex-guarda de fronteira

    fascista?COMISSRIO: Quem, onossochefe? Aquele que ...LOUCO: Que vos dirige e vos guia!COMISSRIO: Escuta aqui, agora chega. J me fezperder muito tem po. .. Por favor, vai embora! Some!LOUCO: Para sempre? (Encena beijos de adeus)Smack! Smack! (Ataque de raiva do comissrio)Tudo bem, OK, vou embora. De qualquer modo,

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 27

    se o senhor quer um conselho... e s porquesimpatizo com o senhor quando encontrar o "vizinho dolcevita", abaixe-se. Vai por mim!(Sai.)

    O comissrio d um grande suspiro e em seguida se dirige para o cabide. V que est com

    pletamente vazio.COMISSRIO: (Indo atrs dele) Mas esse desgraado! Com a desculpa de passar por louco, passaa mo nos capotes. Ei, voc! (Bloqueia um agenteque est entrando naquele momento) Vai atrs daquele louco... aquele que estava aqui antes... Estsaindo com a minha capa... o chapu... e vai verque com a bolsa... exatamente, aquela a minha!Rpido, antes que a limpe...

    AGENTE: Imediatamente, comissrio... (Pra naporta, fala se dirigindo ao externo, aos bastidores)Sim, doutor.. . o comissrio est aqui ... se acomode,entre(Se dirigindo ao comissrio que procura, con

    fuso, as folhas rasgadas pelo louco).

    COMISSRIO: Mas onde foram parar as denncias?AGENTE: Doutor Bertozzo, o comissrio da poltica est aqui e quer v-lo.

    O comissrio Bertozzo levanta a cabea, da escrivaninha, fica em p e vai ao seu encontro,em direo ao bastidor da direita.

    COMISSRIO: Oh, meu querido... faz um minutoque falei sobre voc com um louco que me disse. .. r,r... veja s... que quando voc me encontrasse...me daria... (Do bastidor surge um brao muito veloz. Bertozzo est literalmente estatelado no cho;

    tem ainda fora para terminar a frase.)... um murro! (E desaba.)Pela porta aparece o louco que grita:

    LOUCO: Eu tinha lhe dito pra se abaixar!

    Black-out. Intervalo musical no escuro, provavelmente uma marcha grotesca do tipo entrada

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    9/42

    28 DARIO FO

    de "cmicos ", durante o tempo necessrio paraa mudana da cena. ,

    As luzes so reacesas e nos reencontramos emuma sala muito parecida com a anterior. Osmveis so mais ou menos os mesmos, s que

    distribudos de maneira diversa. Da parede dofundo sobressai o retrato do presidente, consideravelmente grande. bem evidente a quadra-tura de uma janela escancarada. Em cena, olouco, em pe, imvel, diante da janela, de costas para a porta por onde alguns minutosdepois entra um comissrio com palet es

    porte e camisa de gola roul.

    COMISSRIO ESPORTIVO: {Em voz baixa parao agente, imvel, do lado da porta) E aquele ali,quem ? O que ele quer?AGENTE: No sei, doutor. Chegou com tamanhaempfia... que parecia o dono do mundo... Disseque quer falar com o senhor e com o delegado.COMISSRIO ESPORTIVO: {Que nem por uminstante parou de massagear a mo) Ah, quer falar?

    {Aproxima-se do louco de maneira muito solcita)Bom-dia, o que o senhor deseja? Me disseram queestava me procurando.LOUCO: {Enquadra-o impassvel, faz apenas ogesto de levantar o chapu) Bom-dia. {Imobiliza o

    prprio olhar sobre a mo que o comissrio continuaa massagear)O que aconteceu com a mo?COMISSRIO ESPORTIVO: Ah, nada... quem o senhor?LOUCO: No foi nada? E ento por que est semassageando? Assim... pra disfarar? Uma espciede tique?

    O comissrio comea a se impacientar.COMISSRIO ESPORTIVO: Pode ser... Perguntei ao senhor com quem tenho o prazer?!. ..LOUCO: Uma vez conheci um bispo que se massa-geava como o senhor. Um jesuta.

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 29

    COMISSRIO ESPORTIVO: Estou enganado ouo senhor...!?LOUCO: claro que est enganado! Est realmenteenganado se est tentando insinuar que eu quis aludir proverbial hipocrisia dos jesutas... Saiba o

    senhor que, pra comeo de conversa, estudei comos jesutas . E agora, alguma objeo?COMISSRIO ESPORTIVO: {Confuso, atordoado) No, pelo amor de Deus... no... mas que...LOUCO: {Mudando abruptamente o tom) Masaquele bispo de quem eu falava, aquele sim era mesmo um hipcrita... um mentiroso... e, de fato, mas-sageava sempre a mo. ..COMISSRIO ESPORTIVO: Oua, o senhor...LOUCO: {Sem sequer consider-lo) O senhor deveria procurar um psicanalista. Massagear-se em continuao , antes de mais nada, sintoma de insegurana. .. sentimento de culpa ... e insatisfao sexual.O senhor tem dificuldades com as mulheres?COMISSRIO ESPORTIVO: {Perdendo as estribeiras) Ah, pera a! {Desfere um murro contra amesa.)

    LOUCO:{Indicando o gesto)Impulsivo! Eis a comprovao! Diga a verdade, no um tique... O senhor deu um murro em algum h menos de quinze minutos, confesse!COMISSRIO ESPORTIVO: Confesso nada! Preferiria que o senhor me dissesse de uma vez por todas com quem tenho a honra de falar... e faa-me o favor de tirar o chapu, antes que eu me esquea.

    LOUCO: Tem razo. {Tira o chapu com lentidoestudada) Acredite-me, no mantive o chapu nacabea por desfeita... mas por causa daquela janelaescancarada. No suporto correntes de ar... principalmente na cabea. O senhor no? Escute, no sepoderia fech-la?COMISSRIO ESPORTIVO: {Seco)No, no pode!

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    10/42

    30 DARIO FO

    LOUCO: No est mais aqui quem falou. Sou o Professor Marco Maria Malipiero, 1? Conselheiro doTribunal de Apelao.COMISSRIO ESPORTIVO: Juiz?(E vacila.)LOUCO: ... ... livre-docente da Universidade de

    Roma. So duas exclamaes e depois da segundatem uma vrgula, como sempre.COMISSRIO ESPORTIVO: (Transtornado) Entendo...LOUCO: (Irnico e agressivo)Entende o qu?COMISSRIO ESPORTIVO: Nada, nada.LOUCO: Justamente. (De novo agressivo) No,quero dizer, nada disso! Quem foi que lhe avisouque eu viria para a reviso do processo e do arquivamento?COMISSRIO ESPORTIVO: (A essas alturas, nolimite)Mas realmente... eu...LOUCO: Preste ateno para no mentir. umacoisa que me deixa tremendamente nervoso... Eutambm tenho um tique... me aperta aqui na garganta... quando algum me conta mentira... olha scomo vibra... olha! E ento, sabia ou no da minha

    vinda?COMISSRIO ESPORTIVO: (Engolindo em seco,embaraado) Sim, eu sabia... Mas no o esperavato cedo... isso...LOUCO: , foi por isso mesmo que o conselho superior decidiu antecipar... Ns tambm temos osnossos informantes. Surpreso? Aborrecido?COMISSRIO ESPORTIVO: (A essa altura j"enrolado") No, imagine s... (O louco indica o

    pescoo que vibra)... quer dizer... sim, muitssimo...(Indica uma cadeira)Acomode-se, me d o seuchapu... (Com o chapu nas mos, pensa melhor)Talvez prefira mant- lo.. . ?LOUCO: No, por favor, pode at ficar com ele...no meu mesmo.COMISSRIO ESPORTIVO: Como? (Vai em direo janela)Quer que feche a janela?

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 31

    LOUCO: Absolutamente no. No se preocupe.Preferiria que mandasse chamar o delegado... gostaria de comear o quanto antes.COMISSRIO ESPORTIVO: Certamente. Mas noseria melhor irmos at a sala dele... mais c

    modo.LOUCO: , mas foi nesta sala que aconteceu a desgraa com o anarquista, no verdade?COMISSRIO ESPORTIVO: Sim, foi aqui .LOUCO: (Abrindo os braos)Conseqentemente...

    Senta-se, tira alguns documentos da pasta.Percebemos que traz consigo outra bolsa, enorme, da qual extrai um monte de bugigangas:uma lente, uma pina, um grampeador, um

    martelo de madeira de juiz... um cdigo penal.Do lado da porta, o comissrio est falando emvoz baixa, no ouvido do agente.

    LOUCO: (Continuando a colocar a papelada emordem) Eu preferiria, comissrio, que em minhapresena se falasse sempre em voz alta.COMISSRIO ESPORTIVO: Sim, me desculpe.(Se dirigindo ao agente) Insista com o senhor delegado que venha o quanto antes para c, se puder...

    LOUCO: Mesmo se no puder!COMISSRIO ESPORTIVO: Claro, mesmo se nopuder!

    AGENTE: (Saindo)s suas ordens...COMISSRIO ESPORTIVO: (Por alguns instantes observa o juiz pondo a papelada em ordem.Usando tachinhas, fixou alguns papis na parede dolado, no parapeito da janela, no armrio. De repente

    se lembra de alguma coisa)Ah, certo... os relatrios!(Pega o telefone e disca um nmero) Al, o comissrio Bertozzo, por favor... onde ele foi? Falar como delegado? (Apia o fone e se prepara para discaroutro nmero)

    O louco o interrompe.LOUCO: Me desculpe se me atrevo, doutor ...COMISSRIO ESPORTIVO: Fale, senhor juiz.

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    11/42

    32 DARIO FO

    LOUCO: O comissrio Bertozzo o senhor parecepreocupado com ele tem talvez alguma coisa a vercom a reviso do processo?COMISSRIO ESPORTIVO: Tem... que, querdizer... como ele mantm o arquivo com toda a do

    cumentao...LOUCO: Mas no preciso... tenho tudo aqui comigo... para que outra cpia? Serviria para qu?COMISSRIO ESPORTIVO: Tem razo, no serve.

    Escuta-sevinda do lado de foraa voz irada do delegado, que entra como um foguete.

    Atrs dele, o agente submisso.DELEGADO: Me explique uma coisa, senhor co

    missrio, que histria essa de eu ter que vir ato senhor, mesmo se no puder?COMISSRIO ESPORTIVO: No, o senhor temrazo, doutor... mas que como...DELEGADO: Como uma porra! Assim, de umahora para outra, acha que virou um meu superior?Advirto-o de que esse seu modo insolente de se comportar no me agrada de modo algum... principalmente em relao aos seus colegas... O que isso,chegar ao ponto de dar murro!COMISSRIO ESPORTIVO: , mas veja, senhordelegado... o Bertozzo no lhe contou da pernquia,do jogo de palavras sobre o "calabrs" no subsolo...

    O louco, fingindo estar colocando a papeladaem ordem, se esconde, de ccoras, atrs da escrivaninha.

    DELEGADO: Que pernquia o qu? Vamos l,ningum mais criana... em vez de ficar quieto...

    j temos todos os olhos sobre ns. .. com os desgra

    ados dos jornalistas que vivem fazendo aluses, soltando por a um monte de notcias falsas... e parecom isso, me deixe falar... eu falo como e... (O comissrio indica o falso juiz que finge no estar participando)Ah, aquele ali? Pelo amor de Deus! Quem? Um jornalista? Mas por que voc no faloulogo?...

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 33

    LOUCO: (Sem tirar os olhos das folhas) No, senhor delegado, no se preocupe, no sou jornal ista ...no vai ter comentrio de nenhum tipo... posso lheassegurar.DELEGADO: Agradeo-lhe muito.

    LOUCO: Entendo e compartilho de sua preocupao. Alis, eu mesmo, antes do senhor, procureichamar a ateno do seu jovem colaborador.DELEGADO: (Se dirigindo ao comissrio) verdade?LOUCO: Este jovem, que notei ser de ndole irasc-vel e intolerante e que agora, pela conversa, descubro que alrgico pernquia calabresa a qual,aqui entre ns, uma das mais brandas, principal

    mente se a confrontarmos com a sorrentina ou ca-puana. O senhor entende de pernquia? (Puxa odelegado para perto de si em confidncia; o delegado acompanha-o atnito.)DELEGADO: No, eu realmente...LOUCO: (Falando-lhe ao ouvido) Siga o meu conselho, doutor.. . eu lhe falo como um pai. .. este rapazprecisa de um bom psiquiatra... Tome, leve-o a estemeu amigo... um gnio.(Coloca um carto em sua

    mo) Professor Antnio Rabbi... livre-docente...Mas preste ateno exclamao.DELEGADO: (Que no consegue se desvencilhar)Obrigado, mas se o senhor me permite, eu. ..LOUCO: (Mudando, repentinamente, o tom) Massem dvida alguma, claro, sem dvida... Acomode-se... e vamos dar incio... A propsito, seu colaborador lhe informou que eu. ..?COMISSRIO ESPORTIVO: No, me desculpe,mas no tive tempo. (Dirigindo-se ao delegado)Professor Marco Maria Malipiero, primeiro conselheirodo Tribunal de Apelao...

    LOUCO: Por favor, esqueamos esse "primeiroconselheiro"... no me importo... diga simplesmente "um dos primeiros", o suficiente.COMISSRIO ESPORTIVO: Como o senhor preferir.

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    12/42

    34 DARIO FO

    DELEGADO: (Que encontra dificuldade em se recuperar do choque) Excelncia... eu estou realmente...COMISSRIO ESPORTIVO: (Tentando ajud-lo)O senhor juiz est aqui para conduzir a reviso do

    processo sobre o caso ...DELEGADO: (Inesperadamente, em um mpeto)Ah, mas claro, claro, ns estvamos esperandopelo senhor!LOUCO: Viu como seu superior mais sincero?Joga com as cartas na mesa! Aprenda! Mas umaoutra gerao, claro, out ra escola!DELEGADO: , outra escola.LOUCO: Sabe, melhor que eu lhe diga imediata

    mente, o senhor ... como direi... quase familiar...como se j o conhecesse... h muitos anos. O senhor,por acaso, no esteve na fronteira?DELEGADO: (Gaguejando) Na fronteira?LOUCO: Mas o que estou dizendo? Um delegado nafronteira? Onde j se viu? Retornemos ao nossocaso!DELEGADO: Ao nosso caso.LOUCO: (Fixando-o com um olhar terrificante) J

    sei! (Aponta-lhe o dedo) Mas no, no possvel!Chega de alucinaes! (Esfrega os olhos enquantoo comissrio diz, rapidamente, alguma coisa ao ouvido do delegado, que se joga, literalmente, sobreuma cadeira. Acende, nervoso, um cigarro.) Bom,vamos aos fatos. Segundo os relatrios... (Desfo-lha alguns papis) nmero... 25, 26, 27 e 28 (O comissrio tem um acesso de tosse pela fumaa quelhe desce atravessada).Na noite de... a data no nosinteressa... um anarquista profisso: manobristada ferrovia se encontrava nesta sala para ser interrogado sobre a sua participao ou no no atentado com bombas que levou para os ares uns bancos, causando a morte de 16 cidados inocentes! Eaqui suas palavras textuais, senhor delegado: "Subsistiam fortes indcios contra sua pessoa"! Foi issoque o senhor disse?

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 35

    DELEGADO: Sim, mas num primeiro momento,senhor juiz ... depois...LOUCO: Estamos exatamente no primeiro momento... vamos por ordem. Por volta da meia-noite,o anarquista, tomado por um raptus sempre

    o senhor que fala, doutor , se atirou pela janela,esfacelando-se no cho. Agora, o que o tal do"raptus"! Diz Bandieu que o "raptus" uma formaexasperada de angstia suicida que atinge at mesmo indivduos sos, se neles for provocada uma ansiedade violenta, uma angstia desesperada. Certo?DELEGADO e COMISSRIO: Certo.LOUCO: Ento vejamos, o que foi que causou an

    siedade, angstia? S nos resta reconstruir a aoe cabe ao senhor entrar em cena, delegado.DELEGADO: Eu?LOUCO: Sim, vamos l. O senhor se incomodariade representar a sua famosa entrada?DELEGADO: Me desculpe, mas famosa o qu?LOUCO: Aquela que determinou oraptus.DELEGADO: Senhor juiz... deve haver um equvoco, aquela entrada no foi minha, mas de um meu

    vice, um colaborador...LOUCO: Ei, no bonito jogar a responsabilidadesobre os dependentes, ou melhor, bem feio... Coragem, coragem, se reabilite e assuma o seu pape l...COMISSRIO ESPORTIVO: Mas, senhor juiz, foiuma daquelas tticas s quais se recorre freqentemente... em qualquer polcia, pra fazer o indiciadoconfessar.LOUCO: Mas quem foi que chamou o senhor? Dei

    xe o seu superior falar, por favor! Sabia que muitomal-educado? De agora em diante, responda s seforinterrogado... entendeu? E o senhor, doutor, porfavor, represente, em primeira pessoa, aquela entrada.DELEGADO: Tudo bem. As coisas acontecerammais ou menos assim. O anarquista indiciado estavaali,justamente no lugar onde o senhor est sentado.

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    13/42

    36 DARIO FO

    O meu auxiliar... isto , eu entrei com uma certaimpetuosidade...LOUCO: Bravo!DELEGADO: Agredi o indiciado!LOUCO: Assim que eu gosto!

    DELEGADO: Caro manobrista e tambm subversivo... acabe de uma vez por todas com o lenga-lenga...LOUCO: No, no, por favor... se atenha ao roteiro. (Mostra os relatrios) Aqui no tem censura...no foi isso o que o senhor disse.DELEGADO: Bom, eu disse: "acha que eu estouaqui pra ser enrabado?".LOUCO: Se limitou palavra rabo?

    DELEGADO: Sim, juro .LOUCO: Acredito, continue. Como terminou?DELEGADO: Temos as provas de que foi vocquem colocou as bombas na estao.LOUCO: Quais bombas?DELEGADO: (Abaixando o tom. Discursivo.) Estou falando do atentado de 25. ..LOUCO: No, responda com as mesmas palavrasdaquela noite. Imagine que eu seja o ferrovirio

    anarquista. Vamos, coragem, quais bombas?DELEGADO: No se faa de desentendido. Vocsabe muito bem de que bomba estou falando. Aquelas que vocs colocaram nos vages da estao central, h oito meses.LOUCO: Mas vocs tm realmente essas provas?DELEGADO: No, mas como o comissrio estavaexplicando antes, se tratava de um daqueles velhostruques aos quais recorremos freqentemente na

    polcia...LOUCO: R, r... que espertos... (E dispara umtapa nas costas do delegado, estonteado.)DELEGADO: Mas ns tnhamos algumas suspeitas... Como o indiciado era o nico ferrovirio anarquista de Milo ... foi fcil inferir que foi ele.. .LOUCO: Certo, certo, evidente, direi bvio. Querdizer que se as bombas na ferrovia foram colocadas

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 37

    sem dvida alguma por um ferrovirio, tambm podemos inferir, conseqentemente, que aquelas do palcio da justia foram colocadas por um

    juiz; no monumento ao soldado desconhecido foramcolocadas pelo comandante do corpo de guarda, e

    as no Banco da Agricultura foram colocadas por umbanqueiro ou por um agricultor, escolha. (Nessemomento se torna furioso) Ora, senhores... eu estou aqui para fazer uma investigao sria e nopara brincar com silogismos idiotas! Continuemos!Aqui diz: (lendo em uma folha) "O anarquista parecia no ter sido atingido pela acusao, sorria incrdulo". Quem fez essa declarao?COMISSRIO: Eu, senhor juiz.

    LOUCO: Bom, ento sorria... Mas aqui tambm secomenta so suas palavras... textuais... retomadas pelo juiz que arquivou a investigao... "indubitavelmente concorreu para a crise suicida o medode perder o emprego, de ser despedido". Mas como,antes sorria incrdulo e depois, de repente, tinhamedo? Quem foi que lhe meteu esse medo? Quem que entrou de sola com essa histria de demisso?COMISSRIO: No, juro, no que me toca... eu...LOUCO: Por favor, no nos subestimemos... vocsno so violonistas... O que isso? Todos os policiaisdo mundo descem a mo pesado, com prazer. Noentendo por qu, justamente vocs, deveriam ser osnicos a pegarem leve! Esto pensando o qu?DELEGADO e COMISSRIO: Obrigado, senhor

    juiz.

    LOUCO: De nada. Por outro lado, sabe-se que svezes perigoso. Algum chega para um anarquista:

    "As coisas no esto boas pra voc... o que vo dizeros dirigentes da ferrovia quando contarmos para elesque voc um anarquista... te pem no olho darua... despedido!" Fica chateado... O anarquista preciso que se diga mais do que ningum sepreocupa com o emprego... No fundo so pequenosburgueses... ligados s pequenas comodidades: sa-lrio fixo todos os meses, abono... dcimo-terceiro,

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    14/42

    38 DARIO FO

    aposentadoria, assistncia, velhice serena... Ningum mais do que um anarquista pensa na prpriavelhice, podem acreditar em mim... Estou falandodos anarquistas de hoje em dia, naturalmente... osps-de-chinelo de agora... Nada a ver com os do pas

    sado... Expulsos de terra em terra... O senhor entende de exilados, delegado? Oh, mas o que foi queeu disse? Ento, recapitulando, os senhores abatemmoralmente o anarquista, amarguram-no e ele se

    joga...COMISSRIO: Se o senhor me permite, senhor

    juiz, para ser honesto, no aconteceu imediatamente... est faltando a minha interveno.LOUCO: Claro, tem razo... o comissrio saiu, de

    pois reentrou e aps uma pausa artstica disse...Fora, comissrio, assuma o seu papel... imaginando sempre que eu seja o anarquista...COMISSRIO: Sim, claro. "Acabaram de me ligarde Roma... Tem uma boa notcia para voc. O teuamigo,pardon,companheiro bailarino confessou...admitiu ter sido ele quem colocou as bombas nobanco de Milo."LOUCO: E ele, o ferrovirio, como recebeu a not

    cia?COMISSRIO: ... mal, ficou plido... pediu umcigarro... acendeu-o...LOUCO: E a se jogou.DELEGADO: No, no imediatamente.LOUCO: Na primeira verso o senhor teria dito"imediatamente", no verdade?DELEGADO: Sim, verdade.LOUCO: Alm disso ainda o senhor falandocom a imprensa e a televiso, declarou que antes dotrgico gesto o anarquista se sentia perdido... encurralado. Disse isso?DELEGADO: Sim, disse exatamente isso: "encurralado".LOUCO: E depois, o que mais declarou?DELEGADO: Que o seu libi segundo o qualteria transcorrido a famosa tarde do atentado jo-0

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 39

    gando baralho em um bar de Milo cara porterra, no se agentava em p.LOUCO: Portanto, o anarquista deveria ser considerado fortemente indiciado pelo atentado ao bancode Milo, alm do atentado aos trens. E acrescen

    tou, para terminar, que o gesto suicida do anarquista era um "evidente ato de acusao".DELEGADO: Sim, disse isso.LOUCO: E o senhor, comissrio, gritou que quandovivo aquele l era um delinqente, um patife! Masaps algumas semanas, o senhor, comissrio, declarou eis aqui o documento que "naturalmente",repito, "naturalmente" no pesavam indcios concretos contra o ferrovirio. Certo? Era, ento, abso

    lutamente inocente e o senhor mesmo, comissrio,at comentou: "Aquele anarquista era uma grandepessoa".DELEGADO: Sim, admito... ns nos enganamos...LOUCO: Por favor!.. Todos podemos errar. Masvocs, me desculpem, foram um pouco longe demais. Deixem que eu explique. Antes de mais nada,prenderam arbitrariamente um cidado livre; em seguida, abusaram da prpria autoridade para segur-

    lo alm do prazo legal, e a traumatizaram o coitado do manobrista, dizendo-lhe que tinham provasde que ele era o dinamitador das ferrovias. Depoiscriaram-lhe, mais ou menos voluntariamente, a psicose de que perderia o emprego, que seu libi do jogode baralho no valia e, para terminar, porrada final:que o seu amigo e companheiro de Roma tinha-seconfessado culpado pela chacina de Milo. Seu amigo, um assassino nojento?! Tanto que ele comentadesolado: " o fim da anarquia!", e se atira! E eus queria saber uma coisa: t todo mundo louco?Por que se espantar se a um fodido desses lhe vem umraptus?!Ah, no, sinto muito, mas na minha opinio vocs so culpados, e como! Vocs so totalmente responsveis pela morte do anarquista! Passveis de incriminao imediata por instigao aosuicdio!

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    15/42

    40 DARIO FO

    DELEGADO: Mas, senhor juiz, como possvel?A nossa obrigao o senhor mesmo admitiu interrogar os indiciados, e para conseguir que elesfalem, algumas vezes, preciso recorrer a estratagemas, armadilhas e a um pouco de violncia ps

    quica....LOUCO: Ah, no! Aqui no se trata de "um pouco", mas sim de violncia contnua. Pra comeo deconversa, vocs tinham ou no tinham provas cabaisde que aquele coitado do ferrovirio tivesse mentidosobre o prprio libi? Respondam!!DELEGADO: No, no tnhamos provas cabais...mas...LOUCO: Os "mas" no me interessam! Ainda exis

    tem ou no dois ou trs aposentados que at hojeconfirmam o tal libi?COMISSRIO: Sim, existem.LOUCO: Portanto, vocs mentiram tambm paraa televiso e a imprensa, dizendo que o libi notinha validade e que subsistiam pesados indcios.Quer dizer que as ciladas, os ardis, as armadilhasso usadas no s para convencer os indiciados, mastambm para enganar, para abusar da boa f do

    povo crdulo e babaca. (O delegado gostaria de intervir)Me deixe terminar, por favor. J ouviram dizer que divulgar notcias falsas ou tendenciosas crime grave?DELEGADO: Mas o meu colaborador me tinha assegurado...LOUCO: Ai, ai, ai, outra vez jogando a culpa emterceiros... e ento me responda o senhor, comissrio, de onde veio a notcia de que o bailarino anar

    quista tinha confessado? Li todas as transcries dosinterrogatrios conduzidos pela polcia e pelo juizinstrutor de Roma...(Mostra aos presentes)e no seencontra que o tal anarquista mencionado tenhaadmitido a prpria responsabilidade na chacina dosbancos, nem uma s vez. E a? Esta confisso foiinventada por vocs? Respondam!COMISSRIO: , fomos ns que a inventamos.

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 41

    LOUCO: Ei, que imaginao! Vocs deveriam serescritores. E talvez lhes seja dada a ocasio, podemestar certos. Em cana se escreve muito bem. Abalados? Deixem-me acrescentar, com toda a franqueza, que em Roma h provas arrasadoras da culpa

    de vocs. Acusaes gravssimas! Esto perdidos. Osministrios da Justia e do Interior decidiram se livrar de vocs. Querem que sirvam de exemplo omais srio possvel para se reestabelecer a credibilidade que a polcia perdeu.DELEGADO: No, no posso acreditar!COMISSRIO: Mas como podem...LOUCO: Duas carreiras arruinadas, isso certo! a poltica, meus queridos. Antes vocs serviam a um

    tipo de jogo. Era preciso frear as lutas sindicais...criar um clima de "caa aos subversivos". Agora, noentanto , mudou um pouco... As pessoas esto indignadssimas com a defenestrao do anarquista...Querem duas cabeas... e o Estado vai lhes dar.DELEGADO: Mas por que as nossas?COMISSRIO: Porqu?LOUCO: Tem um velho ditado ingls que diz: "Opatro atia os ces contra os viles...Se os viles sequeixam ao rei, o patro , para ser perdoado, mata osces."DELEGADO: E o senhor acha que...realmente...Est convencido?LOUCO: Mas se sou eu o justiceiro?!COMISSRIO: Profisso desgraada!DELEGADO: Eu sei quem me preparou a forca...Ah, mas ele me paga.LOUCO: Podem estar certos de que vai ter muitagente se deliciando com as desgraas de vocs... sedivertindo.COMISSRIO: Comeando pelos nossos colegas... isso que me deixa louco!LOUCO: Para no falar dos jornais!COMISSRIO: Quem sabe como que vo nos tratar... Imagine as manchetes!

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    16/42

    42 DARIO FO

    DELEGADO: Onde ser que eles vo cavoucar esses vermes que antes vinham lamber as nossasmos... "Forca prs meganhas!"COMISSRIO: "Era um sdico, um violento!"LOUCO: Pra no falar das humilhaes...das iro

    niasDELEGADO: No dou bola. Todo mundo que te das costas...nem um lugar de guarda-carros a gentevai conseguir.COMISSRIO: Mundo sujo!LOUCO: No, governo sujo!DELEGADO: A essa altura, o senhor me diga, oque nos resta fazer? Nos d um conselho!LOUCO: Eu!? E o que que eu poderia lhes dizer?COMISSRIO: Sim, sim, nos aconselhe!LOUCO: Eu, no lugar de vocs...COMISSRIO: No nosso lugar?LOUCO: Me jogaria pela janela!COMISSRIO e DELEGADO: O qu?LOUCO: Vocs me pediram um conselho...e, a esteponto, ter de suportar uma humilhao como essa...Sigam o meu conselho, pulem! Vamos, coragem...DELEGADO: OK, tudo bem, mas o que isso tem aver...?LOUCO: Certo, no tem nada a ver. Se deixemtomar peloraptuse se joguem (e empurra ambos emdireo janela).COMISSRIO e DELEGADO: Mas no, espere!Espere!LOUCO: "Espere"! Esperar o qu? O que quevocs esto fazendo neste mundo nojento? Isso vida? Mundo sujo, governo sujo...Tudo est sujo!Pulemos todos! (Com grandes empurres, arrasta-os. )DELEGADO: No, senhor juiz. O que o senhor estfazendo? Eu ainda tenho esperana!LOUCO: No existe mais esperana, vocs estoperdidos...vocs querem entender isso? Perdidos!!!Pulem!

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 43

    DELEGADO e COMISSRIO: No empurre ...porfavor!LOUCO: No estou empurrando, o "raptus". Viva o "raptus" liberador! (Pega os dois pela cintura eobriga-os a subir no parapeito da janela).

    DELEGADO e COMISSRIO: No, no, socorro!Socorro!Entra o agente que havia sado no incio do in

    terrogatrio.AGENTE: O que est acontecendo, doutor?LOUCO: (Abandonando a presa) R, r, nada, noaconteceu nada...no , comissrio? No senhordelegado? Vamos, tranqilizem o agente.DELEGADO: (Desce trmulo da balaustrada)

    claro, fique vontade.. .foi s.. .LOUCO: Um "raptus".AGENTE: Um "raptus"?LOUCO: , queriam se jogar pela janela.AGENTE: Eles tambm?

    LOUCO: Tambm, mas pelo amor de Deus, noconte aos jornalis tas!AGENTE: No, no.COMISSRIO: Mas no verdade! Era o senhor

    juiz que queria. ..DELEGADO: Justamente.AGENTE: O senhor queria pular, senhor juiz?DELEGADO: No, ele empurrava.LOUCO: verdade, verdade. Eu estava empurrando. E por pouco no caram mesmo...estavamdesesperados. Quando algum est desesperado,no precisa muito ...AGENTE: sim, no precisa muito!

    LOUCO: E olhe pra eles. Ainda esto desesperados... olhe que caras de enterro!AGENTE: (Excitado pelas confidencias do juiz)Sim, desculpe a expresso... parecem na merda,como se diz...DELEGADO: Ei, mas todo mundo enlouqueceu?AGENTE: Me desculpe, eu queria dizer no WC.

    44 DARIO FO MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 45

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    17/42

    44 DARIO FO

    LOUCO: Vamos, vamos, nimo! guas passadas,como se diz.. .alegria, doutores!DELEGADO: , pro senhor fcil falar...na nossaposio...Asseguro ao senhor que por um momento .. . quase-quase me joguei pra valer!AGENTE: Estava quase pulando? O senhor?COMISSRIO: Eu tambm!LOUCO: Viram, doutores! Quando se fala de"rap-tus"?!E de quem teria sido a culpa?DELEGADO: Daqueles putos do governo... dequem mais?... Primeiro te incentivam... "reprimi r,criar clima de subverso, de desordem ameaadora"...

    COMISSRIO: "De necessidade de um Estado

    forte!'' Voc se arrisca e depois...LOUCO: No, nada disso, a culpa toda minha!DELEGADO: Sua? E por qu?LOUCO: Porque no verdade. Eu inventei tudo!DELEGADO: O qu! No verdade que Roma querdespachar a gente?LOUCO: No, nem pensa nisso.COMISSRIO: E as provas arrasadoras?LOUCO: Nunca existiram.

    COMISSRIO: E a histria do ministro que queriaas nossas cabeas?LOUCO: Mentira, o ministro adora vocs. So asmeninas dos olhos dele. E o diretor da polcia,ento? Quando ouve o nome de vocs se comove...chora.DELEGADO: No est brincando, no ?LOUCO: Claro que no! O governo todo ama vocs!E devo dizer que at mesmo o ditado ingls do pa

    tro que mata os ces falso. Se que aconteceu, foio contrrio. Se o co morre na briga, o rei mandaimediatamente um telegrama de condolncias para opatro . E coroas com faixas!

    O comissrio tenta tomar a palavra; o delegado,j nervoso, est se irritando.

    COMISSRIO: Se eu no entendi mal ...

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 45

    DELEGADO: Claro que entendeu mal... Me deixefalar, comissrio...COMISSRIO: Sim, me desculpe doutor.DELEGADO: No entendo por que o senhor, senhor juiz, montou toda essa farsa?...LOUCO: Farsa? No, so s armadilhas normais outruques aos quais a magistratura, algumas vezes,recorre para demonstrar polcia o quanto essesmtodos so incivilizados, pra no dizer criminosos.DELEGADO: Ento o senhor continua convencidode que, se o anarquista se jogou pela janela, fomosns que o empurramos?LOUCO: Vocs mesmos me confirmaram, um minuto atrs...perdendo a cabea!

    COMISSRIO: Mas ns no estvamos presentesno momento em que ele se jogou. Pergunte ao guarda!GUARDA: Sim, senhor juiz, eles tinham acabadode sair quando aquele l se jogou!LOUCO: Seria afirmar que se algum ativa umabomba em um banco e sai, no culpado porque noestava presente no momento da exploso!! Ah, estamos bem de lgica por aqui! ...

    DELEGADO: Mas no, senhor juiz, foi um equvoco... o agente se referiu primeira verso... nsestamos falando da segunda.LOUCO: Ah ...teve um tipo de retratao, numsegundo momento.DELEGADO: Bom, uma retratao mesmo no...uma simples correo.LOUCO: Certo . Ouamos. O que vocs corrigiram?

    delegado faz um sinal ao comissrio.

    COMISSRIO: Bem,ns...LOUCO: Fiquem advertidos de que tambm tenhoos relatrios dessa nova verso. Por favor, prossi-gam...COMISSRIO: Corrigimos a hora do... como direi... do engano...LOUCO: Como hora do engano?

    48 A O O

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    18/42

    48 DARIO FO

    LOUCO: A primeira coisa que devemos provar, comargumentos irrefutveis, que durante aquelas quatro horas o anarquista superou qualquer desnimo,o famoso "baque psicolgico", como o chama o juizarquivista.

    COMISSRIO: Bom, tem o testemunho do soldadoaqui e o meu tambm, no qual se declara que oanarquista, aps um primeiro momento de desnimo, se refazia...LOUCO: Est no relatrio?COMISSRIO: Acho que sim...LOUCO: Sim, sim, faz parte da segunda versodos fatos... Achei (L): "O ferrovirio se acalma ediz que ele e o ex-bailarino no mantinham boas relaes." timo!COMISSRIO: Como se dissesse que no lhe importava muito saber que ele era o dinamitador-assas-sino.LOUCO: Certo, no o valorizava muito como anarquista, nem como bailarino.COMISSRIO: Talvez nem sequer o considerasseanarquista.LOUCO: Eu acho que o desprezava.COMISSRIO: Duran te uma briga at se atiraramum saleiro...DELEGADO: Iiii, d um azar!LOUCO: E no nos esqueamos que o nosso ferrovirio estava a par do fato que o grupo anarquistaromano era freqentado por um monte de espiese informantes da polcia... Ele teria at dito ao bailarino: "A polcia e os fascistas usam vocs comoestopim de desordem... O grupo de vocs est cheiode provocadores pagos. .. que levam vocs pra ondequiserem... e a toda a esquerda vai de roldo..."COMISSRIO: Pode ser que eles tenham brigado

    justamente por isso!LOUCO: ... e como o bailarino no lhe deu ateno, talvez o nosso ferrovirio tenha comeado a suspeitar que ele tambm fosse um provocador.DELEGADO: Ah, pode ser!

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 49

    LOUCO: Portanto, se no lhe importava provairrefutvel o anarquista estava sereno.COMISSRIO: Mais do que isso, at sorria... selembra, eu mesmo declarei isso desde a primeiraverso.

    LOUCO: , mas infelizmente tem um problema. Naprimeira verso vocs disseram por a que o anarquista "abatido" acendeu um cigarro HumphreyBogart e teria comentado "desolado": " o fim daanarquia". T-t-t-t! Mas o que foi que deu emvocs para usarem esse tom melodramtico! Peloamor de Deus!DELEGADO: Tem razo, senhor juiz. A idia foidele, do garoto aqui. Eu at disse pra ele: "Vamos

    deixar as encenaes para o pessoal do cinema, nssomos da polcia..."LOUCO: Ouam-me, a esta altura, a nica soluopara que se entenda alguma coisa se quisermosencontrar uma soluo orgnica esquecer tudoe recomear do incio.COMISSRIO: Temos que dar uma terceira verso?LOUCO: De jeito nenhum! s tornar plausveisas duas que j temos.DELEGADO: Certo.LOUCO: Ento, primeiro ponto, primeira regra. Oque foi dito, foi dito e no se volta atrs. Portantopermanece imutvel que o senhor, comissrio, e osenhor, ou quem tenha sido em seu lugar, armaramo salto de vara sem vara, que o anarquista fumou oseu ltimo cigarro, declarou a frase dramtica... e aqui que temos a variante: no se jogou pela janelaporque ainda no era meia-noite, mas somente oitohoras.DELEGADO: Como na segunda verso. ..LOUCO: E se sabe que os ferrovirios respeitammuito o horr io.DELEGADO: Assim teramos tido o tempo necessrio para fazer com que ele mudasse de idia...

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    19/42

    50 DARIO FO

    at mesmo conseguindo que adiasse a deciso do suicdio.COMISSRIO: No tem um furo!LOUCO: Sim, mas como se deu essa mudana?...S o tempo no basta para sanar certas feridas...

    Algum deve ter ajudado... sei l, com um gesto...AGENTE: Eu lhe dei um chiclete!LOUCO: Genial! E vocs?DELEGADO: Mas eu no estava...LOUCO: No, este um momento muito delicado.O senhor teria que estar ali.DELEGADO: Tudo bem, eu estava.LOUCO: Bom,.s pra comear, poderamos dizerque o anarquista estava de tal forma consternadoque vocs se comoveram.COMISSRIO: Sim, ele realmente me comoveu.LOUCO: E poderamos acrescentar que vocs sentiram muito o fato de t-lo amargurado... Senhor delegado, o senhor, um homem to sensvel!DELEGADO: No fundo eu sentia pena... No gostava daquilo.LOUCO: Perfeito! Aposto que no conseguiu evitara mo no ombro...DELEGADO: No, acho que no.LOUCO: O que isso, um gesto paternal...DELEGADO: Bem, talvez, mas no me lembro.LOUCO: Eu tenho certeza que sim. Por favor... mediga que sim!...AGENTE: Sim, sim... eu vi!DELEGADO: Bom, se ele me viu...LOUCO: (Dirigindo-se ao comissrio)O senhor,por sua vez, deu-lhe um belisco na bochecha... assim(D-lhe um belisco).

    COMISSRIO: Sinto muito desiludi-lo, mas tenhocerteza que no... no dei belisco.LOUCO: claro que me desilude... e sabe porqu?... Porque aquele homem, alm de anarquista,era ferrovirio! Tinha se esquecido? E sabe o quesignifica ferrovirio? Significa alguma coisa quepara todo mundo ligada infncia... Significa

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 51

    trenzinhos eltricos e de corda. O senhor, quandoera criana, nunca teve trenzinhos?COMISSRIO: Tinha um a vapor... com fumaa...trem blindado, naturalmente.LOUCO: E fazia tu-tu?

    COMISSRIO: ... tu-tu...LOUCO: Esplndido! Disse tu-tu... e os seus olhosse iluminaram. No, doutor, o senhor s pode tersentido afeto por aquele homem... porque no seuinconsciente ele estava ligado ao seu trenzinho... Seo indiciado tivesse sido, sei l, um banqueiro, o senhor no teria nem mesmo olhado para ele. Mas eraum ferrovirio e... o senhor, tenho absoluta certeza,... o senhor deu o belisco...

    AGENTE: verdade, eu vi. Deu dois belisces!LOUCO: Est vendo... tenho testemunhas! E o quefoi que disse enquanto dava os belisces?COMISSRIO: No me lembro...LOUCO: Eu lhe conto o que disse. Lhe disse: "Vamos l, no fique to abatido (E chamou-o pelonome). Voc vai ver, a anarquia no morrer!".COMISSRIO: Mas eu acho que no...LOUCO: Ah, no! Pelo amor de Deus... o senhor

    disse... se no, me zango. Olhe s a veia do pescoo'.Admite ou no ter dito?

    COMISSRIO: OK, OK... se o senhor ficar contente...LOUCO: Ento repita... Tenho que redigir o relatrio (Comea a escrever).COMISSRIO: Bom, eu falei... "Vamos l... rapaz, no fique assim... voc vai ver... a anarquia nomorrer!"

    LOUCO: Bom... e a vocs cantaram!DELEGADO: Cantamos...?LOUCO: claro, a esse ponto... criou-se um climade tanta amizade, camaradagem... que impossvel no cantar. Todos em coro! Vejamos, o que foique vocs cantaram? "Nossa ptria o mundo inteiro", imagino...

    52 DARIO FO MORT E ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 53

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    20/42

    52 DARIO FO

    DELEGADO: No, me desculpe, senhor juiz, masessa histria de canto no d pra agentar .LOUCO: Ah, no d pra agentar?... Querem saber de uma coisa? Eu largo tudo e que se arranjem.. .Problema de vocs. Relato os fatos como foram contados... Sabe o que vai sair disso? Desculpem-me

    a expresso, mas vai ser uma zona! , isso mesmo!Dizem uma coisa, depois se retratam... do umaverso, meia hora depois uma outra completamentediferente... no esto de acordo nem entre vocs.Tem aqui uma anotao que diz que o anarquista

    j teria tentado se jogar uma primeira vez, no mesmodia, no fim da tarde, na presena de vocs... e vocsnem sequer acenaram sobre este pequeno detalhe...Fazem declaraes a toda a imprensa e, se no me

    engano, at aos telejornais, deste tipo: "naturalmente", no existe nenhum registro dos interrogatrios feitos ao anarquista. No tivemos tempo... eum pouco depois, milagre, aparecem nada menos doque dois ou trs relatrios... assinados por ele.. . pelopunho do anarquista, quando estava vivo! Se umindiciado se contradissesse a metade do quanto vocsse enrolaram, seria no mnimo massacrado. Sabeo que as pessoas esto pensando de vocs? Que so

    uns mentirosos... alm de malandros. Quem quevocs querem que acredite na histria, alm do juizarquivista, naturalmente? E sabem qual a principal razo pela qual as pessoas no acreditam emvocs? Porque essa verso dos fatos, alm de no ternem p nem cabea, no tem humanismo... calorhumano. Ningum esquece a resposta indelicada einsolente que o senhor deu, comissrio, coitadada viva do anarquista quando ela lhe perguntou porque no a tinham avisado da morte do marido. Notem nem um pingo de comoo... nenhum de vocsse abandona.. . se entrega... e, porque no, ri, chora,canta! As pessoas perdoariam todas as contradiesem que a cada segundo vocs caram se, em troca,por detrs desses detalhes embaraosos, conseguissem ver um corao... dois "homens humanos" que

    MORT E ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 53

    so tomados pela comoo e, mesmo sendo policiais,cantam com o anarquista a cano dele... s para lhedar uma alegria... "Nossa ptria o mundo inteiro". .. Quem no explodiria em lgrimas?... Quem,ouvindo uma histria parecida, no aplaudiria o ju-biloso nome de vocs?! Por favor! Para o bem devocs... para que o processo corra a favor de vocs...Cantem! (Comea a cantar em voz baixa, piscando

    para os policiais que, timidamente, um depois dooutro, fazem suas tentativas.)

    Vagueia por terras e por marespor uma idia deixamos os familiares

    Fora! Mais alto! (Exalta-os, at mesmo sacudindo-lhes pelos ombros.)

    Nossa ptria o mundo inteiro...Mais alto, por favor!

    Nossa lei a liberdadee um pensamento, um pensamento...Nossa ptria o mundo inteiro. ..

    Lentamente, sobre o coro em alta voz, desce aescurido.

    SEGUNDO ATO

    Ainda com as luzes apagadas, os quatro recomeam a cantar como no final do primeiro ato,terminando com um agudo; o palco se iluminatotalmente.

    LOUCO: (Aplaude, abraa, aperta as mos) Genial, genial! Agora sim, estamos bem. Depois disso,ningum mais vai pr em dvida que o anarquista

    estava mesmo sereno.COMISSRIO: Eu arriscaria que estivesse contente.LOUCO: Claro, se sentia em casa. Como se estivesse em um daqueles grupos romanos onde, como jdissemos, existem cada vez mais policiais disfarados e menos anarquistas de verdade.

    54 DARIO FO MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 55

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    21/42

    54 DARIO FO

    DELEGADO: A seqncia de fogo das nossas acusaes falsas no tinha atacado em nada sua psique.LOUCO: Portanto, nada de raptus; o raptus vemdepois. (Indica o comissrio.) Quando?COMISSRIO: Por volta de meia-noite.LOUCO: Qual a causa?DELEGADO: Bem, eu acho que a razo.. .LOUCO: No, no, pelo amor de Deus! O senhorno acha nada... O senhor no deve saber de nada,delegado!DELEGADO: Por que no devo saber?LOUCO: O, misria, a gente aqui, dando saltosmortais pra tirar o senhor do meio, pra demonstrarque no tem nada a ver com a morte do ferrovirio...

    nem mesmo estava presente.. .DELEGADO: Tem razo, me desculpe... me distra.LOUCO: , mas o senhor se distrai com muita facilidade, doutor... Esteja mais atento... Ento, comodizia Tot em uma velha farsa: "nesse momento odelegado no estava na delegacia!" Mas estava ocomissrio!COMISSRIO: Certo, eu estava, mais sa logo

    depois.LOUCO: Ai, ai, ai, passando a bola outra vez. Sejabonzinho, me conte o que aconteceu meia-noite.COMISSRIO: ramos seis pessoas nesta sala:quatro agentes, eu... um tenente.LOUCO: Ah, sei, aquele que depois promoveram acapito.COMISSRIO: , ele.LOUCO: E o que estavam fazendo?

    COMISSRIO: O interrogatrio.LOUCO: Ainda?! "Onde estava, o que estava fazendo? Fala! No banque o esperto"... Porra, depois de tantas horas, imagino que todos deveriamestar um pouco alterados... com os nervos flor dapele... irritados.COMISSRIO: Nada disso, senhor juiz. Estvamosmuito calmos.

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 55

    LOUCO: Vocs nem deram uma amansadinha nele? Nem um tabefe com as costas da mo?COMISSRIO: No.LOUCO: Com a mo aberta?COMISSRIO: Nem isso.LOUCO: De lado?COMISSRIO: De lado?LOUCO: , como quando se faz massagem em mulheres cheias de celulite... t-t-t. (Imita em altavelocidade, com as mos de perfil) O karat faz umbem!COMISSRIO: No, senhor juiz... nem mesmo amassagem. Ns estvamos interrogando como sefosse uma brincadeira.LOUCO: O qu? Brincadeira?COMISSRIO: Garanto ao senhor... pergunte aosguardas. (E empurra o agente em direo ao juiz.)LOUCO: No necessrio. incrvel. (Mostra uma

    folha) Mas est escrito tambm na deposio feitadiante do juiz-arquivista.COMISSRIO: Certo, e ele no colocou nenhumadvida a esse respeito.LOUCO: Ah! Nem eu vou colocar... "Brincadeira"em que sentido?COMISSRIO: No sentido que se brincava... interrogvamos ele tentando rir de tudo aqui lo.LOUCO: No entendo. Brincavam de bandido emocinho? Com mscaras, pistola de gua. ..COMISSRIO: Bom, no a esse ponto... Quero dizer, ria-se de tudo aquilo, imitvamos os indiciados. .. alguns trocadilhos... umas piadas...AGENTE: , a gente ria muito. No parece, mas ocomissrio um gozador... Precisa ver, quando est

    inspirado, que interrogatrios divertidos que elefaz... r, r , r . de morrer de rir!LOUCO: Agora estou entendendo por que em Roma decidiram mudar oslogande vocs.DELEGADO: Osloganda polcia?LOUCO: , o de vocs. O ministrio decidiu.DELEGADO: Vo mud-lo?

    56 DARIO FO

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    22/42

    56 DARIO FO

    LOUCO: Bem, melhor dizendo, vo complet-lo...Como agora?COMISSRIO: A polcia est a servio do cidado.LOUCO: Isso, de agora em diante ser "a polciaest a servio do cidado para diverti-lo".

    DELEGADO: Ah, mas o senhor est nos gozando.LOUCO: Nada disso, tenho absoluta certeza de quevocs tratam os indiciados na brincadeira, comoafirmam... Eu me lembro, estava em Bergamo deveria dizer So Francisco mas tem a transposio 3

    estava em Bergamo durante os interrogatriosdo chamado "Bando da Segunda-feira" vocs selembram? Estavam envolvidos o padre, o mdico,o farmacutico... quase toda a cidade foi incriminada, depois inocentaram todo mundo. Muito bem,eu morava em um hotelzinho do lado da delegaciaonde se desenrolavam os interrogatrios. Quase todas as noites acordava com gritos e lamentaes.Num primeiro momento, pensei que eram de genteapanhando, levando porrada... mas depois entendique se tratava de risadas. , risadas um pouco semgraa dos interrogados. "R, r, ai minha me! Chega, r, r! Socorro, no agento mais! Comissrio,chega, o senhor est me matando de rir!"

    DELEGADO: Ironias parte, o senhor sabe que,em seguida do delegado ao ltimo imputado condenaram todos? Aqueles l?!LOUCO: Claro, por excesso de comicidade!(Os policiais do sinais de impacincia) No, no estoubrincando. Vocs ainda no se deram conta de quantos inocentes inventam mentiras s para serem levados para a delegacia! Vocs pensam que so anarquistas, comunistas, poder operrio, sindicalistas...

    No, na verdade eles no passam de uns pobresdoentes depressivos, hipocondracos, melanclicos,que se camuflam em revolucionrios s para sereminterrogados por vocs... e finalmente poderem dar

    (3) Ver nota 2.

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 57

    umas boas risadas. Dar uma lavada na alma, resumindo.DELEGADO: Eu diria, senhor juiz, que mais doque nos gozando, o senhor est mesmo nos ridicularizando!

    LOUCO: Pelo amor de Deus, no me permitiria jamais...COMISSRIO: E eu assim mesmo juro que, naquela noite com o anarquista, ns estvamos rindo!AGENTE: , ... estvamos brincando. Eu tambm juro.LOUCO: Cala a boca! S os superiores podem jurar!(O delegado retira o agente da frente, bem rpido)Tudo bem, admitamos. E de quem... do que vocs

    riam?COMISSRIO: Principalmente do anarquista bailarino.LOUCO: Ah, pelo fato de que era tambm manco ...Anarquista, bailarino, manco ... R, r.COMISSRIO: , disso tambm...LOUCO: E vocs fizeram algum comentrio maldoso sobre o detalhe que sendo bailarino e vivendode enfiar missangas para fazer abajur liberty... tal

    vez, quem sabe, ele tambm no fosse um poucoliberty ?!AGENTE: R, r, anarquistaliberty !!DELEGADO: Cala a boca!COMISSRIO: No, no foramos a esse ponto.LOUCO: Mas deixem disso, no se faam de modestos. De qualquer modo, o fato que vocs ironizaram meio pesado sobre o amigo bailarino, e ele,o ferrovirio, se ofendeu! Foi assim?

    COMISSRIO: , eu imagino que tenha sido assimmesmo.LOUCO: Se levantou abruptamente...COMISSRIO: , se levantou abruptamente ...LOUCO: E comeou a gritar: "Chega! No permitocertas insinuaes. Meu amigo bailarino tudobem enfia missanguinhas, manco... mas macho, pelo amor de Deus!" Disse isso e pulou para

    58 DARIO FOMORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 59

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    23/42

    58 DARIO FO

    o parapeito da janela, ameaouum pas-de-deuxe seatirou!COMISSRIO: , deve ter sido mais ou menosassim... mas eu no posso jurar. Eu lhe disse quetinha acabado de sair.

    AGENTE: Mas eu estava aqui. Se vocs quiserem euposso jurar!

    LOUCO: No, voc, boca fechada!DELEGADO: Porm, esse anrquico era suscetvel,hem? Se atirar pela janela s porque deram umagozada no amigo!LOUCO: Ah, mas porque tocaram em um pontodelicado. Os anarquistas prezam muitssimo a viri-

    lidade! Mais do que qualquer um! Nuncaleu "Sexoe Anarquia" de Otto Weininger? No? m clssico.DELEGADO: Mas se ofender por causa de um amigo com o qual, alm de tudo, nem mantinha maisboas relaes... Declaraes textuais dele, no seesquea. At atirou um saleiro nele!LOUCO: mesmo. Ainda bem que voc se lembroudisso! Portanto, no poderia estar irritado, nervoso.

    DELEGADO: No, no.LOUCO: A o maquiavel ismo... Ento fingiu!COMISSRIO: Fingiu?LOUCO: Mas claro! O espertinho encenou a farsa do ofendido at a morte para ter um pretextolgico para o suicdio.. . Lgico para vocs, mas absurdo para os outros!DELEGADO: Em que sentido "para os outros"?LOUCO: Mas vocs no entenderam? Bancou oka-

    mikazepara arruinar vocs! Ele se atira! Vocs, ingnuos, relatam os fatos como aconteceram... e ningum acredita em vocs, salvo o amado conselheiroarquivista, naturalmente... Alis, escutem s o queescreveu no seu decreto: "O raptus foi causado por'orgulho ferido'!" E quem que engole essa? Temtoda cara de mentira!DELEGADO: Pois , at parece piada.

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 59

    LOUCO: E, assim, vocs se encontram perdidos porcausa da prpria sinceridade... e ele, o anarquistasuscetvel, l na sua tumba d risadinhas!AGENTE: Que desgraado! E no que era um tipoque inspirava confiana?... Boa pessoa!DELEGADO: Cala a boca! (O agente fica mudo,escondendo-se em si mesmo, como um caramujo)O senhor no vai se ofender, senhor juiz, se eu lhedisser que a sua verso do ferrovirio kamikaze...no me convence muito.COMISSRIO: Eu tambm tenho algumas reservas...LOUCO: A mim no convence mesmo! Nem mesmo para filme policial de televiso seria aceito! queeu estava tentando salvar a verso de vocs que mais desastrosa ainda.DELEGADO: {Esfregando os braos) Por favor, seincomoda se eu fechar a janela? De repente bateuum frio...LOUCO: Claro, claro, ... est realmente fazendofrio!COMISSRIO: porque o sol acabou de se pr!

    O agente, a um sinal do comissrio, vai fechar

    ajanela.LOUCO: Mas ento, naquela noite o sol no se ps.COMISSRIO: Como assim?LOUCO: Estou dizendo, naquela noite que o anarquista se atirou, o sol permaneceu alto, no tevepr-do-sol?

    Os trs policiais se olham atnitos.DELEGADO: No entendo.

    O louco finge se irritar.LOUCO: Se mesmo sendo dezembro, a janela meia-noite ainda estava escancarada, quer dizerque no fazia frio... e se no fazia frio, era porqueo pr-do-sol ainda no tinha acontecido... Aconteceria mais tarde, uma, como na Noruega em julho.DELEGADO: No, no, ns tnhamos acabado deabri-la... pra renovar um pouco o ar da sala, no foi?COMISSRIO: , tinha muita fumaa.

    60 DARIO FO MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 61

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    24/42

    60 DARIO FO

    AGENTE: O anarquista fumava muito.LOUCO: E vocs abriram os vidros, as venezianastambm?COMISSRIO: , as venezianas tambm.LOUCO: Em dezembro? meia-noite, com o ter

    mmetro que desce pra baixo de zero, uma neblinaque te deixa duro e branco...? "Quem bom, quebom, ar puro! Quem que tem medo da pneumonia! ?" Vocs estavam de capote, pelo menos?COMISSRIO: No, de palet.LOUCO: Que esportistas!COMISSRIO: Mas no fazia tanto frio, eu lhe asseguro!DELEGADO: No, no fazia frio...

    LOUCO: Ah, ? Naquela noite, o servio meteorolgico deu para toda a Itlia uma temperatura defazer urso branco bater os dentes, e no se sentiafrio... "primavera"! ... Onde vocs querem chegar?Um vento africano personalizado passa todas as noites por aqui ou a "corrente do golfo" que vem pela"tumba de So Marcos" e passa, pelos canos, bemdebaixo das casas, junto com o esgoto?!COMISSRIO: Me desculpe, senhor juiz, mas noentendo. Pouco tempo atrs o senhor afirmou estaraqui justamente para nos agradar, e em vez disso, nofaz outra coisa que duvidar de qualquer testemunho,gozar da nossa cara, nos atormentar.LOUCO: Tudo bem, talvez eu exagere. Talvez eucoloque em dvida em excesso...mas parece que seest diante de um daqueles jogos para deficientese retardados que se l nas revistas de passatempo:"encontrar os trinta e sete erros e contradies emque caiu o comissrio Baciocchi Estupido". E como que posso ajud-los? (Os policiais se sentam, mudos e desolados.) Tudo bem, tudo bem... no fiquem com essas caras de morte... nimo! Prometoque a partir deste momento no vou mais fazer gozao. Mxima seriedade! Deixemos pra l os ante-cendentes...DELEGADO: Sim, deixa pra l.. .

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 61

    LOUCO: ... e vamos ao fato real e verdadeiro: opulo.COMISSRIO: Isso.LOUCO: O nosso anarquista, tomado pelo raptus tentaremos depois encontrar, juntos, uma causa

    um pouco mais aceitvel para aquele gesto louco ,se levanta abruptamente, toma impulso... Um momento, quem fez "escadinha" pra ele?COMISSRIO: Como, "escadinha"?LOUCO: Estou perguntando quem de vocs se colocou do lado da janela, com os dedos tranadosna altura da barriga, assim, para que ele apoiasseo p... e zam! Um lance que fez com que ele ultrapassasse o parapeito voando.

    COMISSRIO: Mas o que que o senhor est dizendo, senhor juiz? Est insinuando que ns ...LOUCO: No, pelo amor de Deus, no se exalte...Perguntei assim... achei que como o pulo foi bastante grande, com to pouco impulso, sem ajudade outros... No gostaria que algum duvidasse...COMISSRIO: No tem nada pra se duvidar, senhor juiz, eu lhe asseguro... Fez tudo sozinho!...LOUCO: No tinha nem ao menos um pdium? Um

    daqueles de competio?COMISSRIO: No...

    LOUCO: O homem do pulo talvez calasse sapatocom salto elstico, como os heris das histrias emquadrinhos.COMISSRIO: No, nada de salto...LOUCO: Bom, assim temos, de um lado, um homem com mais ou menos um metro e sessenta dealtura, sozinho, sem ajuda, sem escada... Da outraparte, meia dzia de policiais que, mesmo se encontrando a poucos metros um, alis, est junto da

    janela, no conseguem intervir a tempo.. .COMISSRIO: Mas foi to de improviso...AGENTE: E o senhor no tem idia de como era gilaquele demnio... eu s tive tempo de agarr-lo porum p.

    62 DARIO FO MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 63

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    25/42

    LOUCO: Oh, esto vendo como a minha tcnica deprovocao funciona? O senhor agarrou-o pelo p!AGENTE: Foi, mas fiquei com o sapato na mo e elecaiu do mesmo jeito!COMISSRIO: Correto, irrefutvel!

    DELEGADO: (Ao guarda) Genial!AGENTE: Agradeo-lhe, senhor dele...DELEGADO: Cala a boca!LOUCO: Um momento... tem qualquer coisa aquique no vai. (Mostra uma folha para o policial) Osuicida tinha trs sapatos?COMISSRIO: Trs sapatos?LOUCO: , um teria ficado na mo do policial...Ele mesmo deu esse testemunho alguns dias depois

    da desgraa.(Mostra a folha)Olha aqui.COMISSRIO: , verdade... Falou sobre istocom um jornalis ta doCorriere delia Ser.LOUCO: Mas aqui, neste papel anexo, se asseguraque o anarquista moribundo no cho do ptio estava com os dois sapatos nos ps. Os presentes cena so testemunhas, entre os quais um jornalistado Unit e outros jornalistas que estavam por ali!COMISSRIO: No entendo como possa ter acontecido...LOUCO: Nem eu! A menos que o agente, muito veloz, tenha conseguido precipitando-se escadaabaixo atingir o segundo andar, se debruar pela

    janela antes que o suicida passasse voando, enfiar-lhe o sapato e subir como um foguete at o quartoandar, no mesmo instante em que o apressadinhoalcanava o cho.DELEGADO: Olha a, est vendo, recomea com aironia!LOUCO: Tem razo, mais forte do que eu... medesculpe. Ento , trs sapatos ... Por favor, vocs nose lembram se por acaso ele era trpede?DELEGADO: Quem?LOUCO: O ferrovirio suicida... se por acaso tivessetrs ps, lgico que usasse trs sapatos.DELEGADO: (Irritado)No, no era trpede.

    LOUCO: No se irrite, por favor... Sem contar quese pode esperar isso e muito mais de um anarquista!AGENTE: Isso verdade.DELEGADO: Cala a boca!COMISSRIO: , misria, que problema! pre

    ciso encontrar uma explicao plausvel, se no...LOUCO: Eu j encontrei!DELEGADO: Vamos ver.LOUCO: essa: sem a menor dvida um dos sapatos estava meio largo e, como no tivesse uma palmilha mo, enfiou um outro p de sapato, menor,antes de colocar o grande.COMISSRIO: Dois sapatos no mesmo p?LOUCO: E o que que tem de estranho nisso?

    Como as galochas, vocs se lembram? Aqueles sapatos de borracha que se usavam antes...DELEGADO: Pois , antes ...LOUCO: Mas tem quem use ainda... alis, sabe oque eu acho? Que o que ficou na mo do agente nofoi um sapato, mas uma galocha.COMISSRIO: No, impossvel. Um anarquistade galocha!... Coisa de gente antiga... de conservador.

    LOUCO: Os anarquistas so muito conservadores...DELEGADO: Ah, , por isso matam os reis!LOUCO: Claro, para poder conserv-los embalsa-mados... Se esperarem que os reis morram de velhice, engruvinhados, consumidos pelas doenas, ase desfazem, se decompem, no se pode mais conserv-los... Assim, mortos ainda frescos...COMISSRIO: Por favor, senhor juiz, no insistaem certos argumentos...

    DELEGADO: Eu tambm no os aceito.LOUCO: Mas vejam s, eu juraria que vocs sosaudosistas mas no da monarquia... De qualquer

    jei to, se no engolem a galocha nem a histria dostrs sapatos...

    Toca o telefone. Todos ficam imveis. O comissrio atende.

    64 DARIO FO

    MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 65

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    26/42

    COMISSRIO: Me desculpem... Sim, fala... Ummomento...(Ao delegado) o guarda. Est dizendoque tem uma jornalista l embaixo que est pergu f

    tando pelo senhor, delegado.. .DELEGADO: Claro.. . eu tinha marcado um encontro com ela hoje. aquela do Espresso ou do Eu

    ropeo,no me lembro... Pergunta se se chama Fe-letti.COMISSRIO: (Falando ao telefone)Se chama Fe-letti?(Ao delegado)Sim, Maria Feletti.DELEGADO: Ento ela... queria uma entrevista.Pea a ela, por favor, para passar uma outra horaque hoje no tenho tempo. ..LOUCO: Mas nem por sonho. No admito que vocs tenham aborrecimentos por minha causa.

    DELEGADO: Em que sentido?LOUCO: Essa a eu conheo. Ela tem fora no meio, capaz de pegar mal... de uma suscetibilidade!... capaz, por desforra, de fazer um daqueles artigos. .. Deixa entrar, por favor!DELEGADO: E a investigao?LOUCO: Pode esperar. Mas vocs no entenderamainda que eu estou na mesma barca! Gente como ela,ns precisamos ter como amiga, e no inimiga! Si

    gam os meus conselhos.DELEGADO: Tudo bem.(Dirigindo-se ao comissrio que est ao telefone)Pode passar.COMISSRIO: Acompanhe a moa at a minhasala. (Abaixa o fone)DELEGADO: E o senhor, o que que vai fazer? Vaiembora?LOUCO: Mas nem por sonho... Eu nunca aban

    dono os amigos, principalmente no momento do perigo!COMISSRIO e DELEGADO: Fica?DELEGADO: E qual o seu papel? Quer que aqueleurubu-jornalista descubra quem o senhor, o queveio fazer? Para depois escrever uma pgina inteirade jornal? Confesse, ento, que quer nos arruinar!

    LOUCO: No, no quero arruinar vocs... Fiquemtranqilos. O urubu no vai saber jamais quem eusou realmente.COMISSRIO: Ah, no?LOUCO: No. Vou mudar de personagem... Pramim uma brincadeira de criana, acreditem-me.

    Psiquiatra, da seo criminal, diretor da Interpol,dirigente da tcnica, a sua escolha... Se o urubutentar colocar vocs em situao embaraosa comalguma pergunta calhorda, vocs s precisam piscarum olho e eu intervenho... O importante que vocs no se comprometam.DELEGADO: O senhor muito generoso, senhor

    ju iz .. . (Aperta sua mo, comovido.)LOUCO: No me chame mais de juiz, pelo amor de

    Deus! A partir deste momento sou o capito Mar-cantonio Banzi Piccinni, da tcnica... Tudo bem?COMISSRIO: Mas o capito Banzi Piccinni existerealmente, de Roma...LOUCO: Justo. Assim, se a jornalista escrever alguma coisa que no gostarmos, ser fcil demonstrar que inventou tudo... chamando o verdadeirocapito Piccinni para testemunhar de Roma.COMISSRIO: Mas o senhor um gnio! Est mes

    mo disposto a representar o papel de capito?LOUCO: No se preocupe, durante a ltima guerrafui capito dos bersaglieri.DELEGADO: Silncio, ela chegou. (Entra a jornalista)Ent re, por favor. Fique vontade.JORNALISTA: Bom-dia, o senhor delegado, porfavor?DELEGADO: Sou eu, muito prazer. Ns nos conhecemos s por telefone... Infelizmente.

    JORNALISTA: Muito prazer. O agente l do portocriou caso...DELEGADO: Tem razo, por favor, nos perdoe.A culpa minha que esqueci de avisar da sua visita. Apresento os meus colaboradores: cabo Pisani,o comissrio responsvel por esta seo...JORNALISTA: Muito prazer.

    66 DARIO FOMORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 67

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    27/42

    66 DARIO FO

    COMISSRIO: O prazer todo meu... senhorita(Aperta a mo ao modo militar).JORNALISTA: Ai, que aperto!COMISSRIO: Me desculpe...DELEGADO: (Indica o louco que est maquinando

    alguma coisa de costas) ... e por ltimo o capito...capito?!LOUCO: ... Pronto... (Aparece de bigode falso,uma venda preta sobre um olho e a mo coberta poruma luva marrom. O delegado est atnito e noconsegue continuar. O louco se apresenta por simesmo)Capito Marcantonio Banzi Piccinni da polcia tcnica. Me perdoe a mo rgida, mas de madeira, uma lembrana da luta na Arglia, ex-pra-

    quedista da Legio Estrangeira... Mas se acomode,por favor.DELEGADO: Quer beber alguma coisa?JORNALISTA: No, obrigada. .. Prefiro se vocsno tiverem nada em contrrio comear imediatamente. Infelizmente tenho que entregar o artigoesta noite.. . Segue de carro esta noite.DELEGADO: Tudo bem, como quiser. Podemoscomear j. Estamos prontos.JORNALISTA: Eu tenho muitas perguntas para fazer.(Retira um bloco de notas e l)A primeira parao senhor mesmo, comissrio, e me perdoe se umpouco provocatria... Se me permitem vou usar ogravador... Se vocs no tiverem nada em contrrio... (Extrai um gravador da bolsa.)COMISSRIO: Bem, realmente... ns...LOUCO: Por favor, fique vontade. (Ao comissrio)Primeira regra: no contradizer jamais.

    COMISSRIO: Mas se escapar alguma coisa... sequisermos desmentir, ela vai ter as provas ...JORNALISTA: Me desculpem, senhores, mas algoest errado?LOUCO: (Reagindo imediatamente) No, no, pelocontrrio... O comissrio estava tecendo-lhe elogios.Dizia que uma mulher de grande coragem... de-

    mocrtica convicta, amante da verdade e da justia. .. custe o que custar!JORNALISTA: O doutor muito generoso...COMISSRIO: Pode comear.JORNALISTA: Por que que o chamam de Salta-

    janela?

    COMISSRIO: Salta-janela? Eu?JORNALISTA: , ou tambm Comissrio Salta-janela.COMISSRIO: E quem que me chama dessemodo?JORNALISTA: Eu tenho aqui comigo uma xeroxda carta de um jovem anarquista, enviada do crcerede So Vitrio, no qual o rapaz se encontrava prisioneiro justamente nos dias da morte do nosso anar

    quista e que fala do senhor, comissrio... e destasala.COMISSRIO: Ah, ? E o que que diz?JORNALISTA: (Lendo)O comissrio do quarto andar, a bofetadas, me fez sentar na janela, a cavalocom as pernas dependuradas e da comeou a meprovocar. "Se joga"... e me insultava... "Por que que voc no se joga?... No tem coragem, hem?Acabe com isso! O que que est esperando?" Sai

    bam que precisei trincar os dentes para no sucumbir, para no perder o contro le...LOUCO: timo, parece um roteiro de filme doHitchcock.JORNALISTA: Por favor, capito. Eu fiz a pergunta ao diretor desta seo, no ao senhor ... O queme responde? (E aproxima o microfone da boca docomissrio.)LOUCO: (No ouvido do comissrio) Calma e indi

    ferena!COMISSRIO: No tenho nada para responder...alis, a senhora que me deve responder. Com todasinceridade, acha que eu tenha colocado tambmo ferrovirio a cavalo?LOUCO: Fecha a boca, no caia nessa. (Cantarolando) Urubu fora daqui... fora da minha casa...

    6 8 DARIO FOMORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA 69

  • 5/22/2018 Dario Fo - Morte acidental de um anarquista.pdf

    28/42

    JORNALISTA: Estou enganada ou o senhor, capito, est querendo tumultuar?CAPITO: Nada disso... foi s um comentrio. Seme permite, eu lhe pergunto, senhorita Feletti, senos confundiu com vendedores de sabo em p .. . jque quer-, de qualquer maneira, nos ver fazendo aprova da janela com todo anarquista que cai nas nossas mos!JORNALISTA: No tenho nada a dizer. O senhor muito hbil, capito.COMISSRIO: Obrigado... me tirou da maior enr-rascada... (D-lhe um tapa nas costas.)CAPITO: Devagar com a mo, doutor ... Meu olho de vidro!!{Indica a venda preta.)

    COMISSRIO: Olho de vidro?LOUCO: E devagar tambm quando aperta minhamo. postia.JORNALISTA: Ainda sobre janelas. Entre a papelada do decreto depositado pelo juiz arquivista, faltaa percia da parbola da queda.DELEGADO: Parbola da queda?JORNALISTA: , a parbola da queda do pretensosuicida.

    DELEGADO: E para que serve?JORNALISTA: para estabelecer se no momentodo vo pela janela o anarquis ta ainda estava vivo ouno. Se deu um pequeno impulso ou se caiu inani-mado como de fato resulta escorregando pelaparede; se foram produzidas fraturas ou leses nosbraos e nas mos como de fato no resulta o que quer dizer que o pretenso suicida no ps asmos pra frente, pra se proteger no momento do

    impacto contra o cho, gesto normal e absolutamente intuitivo...COMISSRIO: Mas no se esquea que estamosdiante de um suicida... Algum que se joga porquequer morrer!LOUCO: Ah, no quer dizer nada. Aqui tenho, infelizmente, que dar razo senhorita... Como podever, eu sou objetivo. Foram feitas grandes experin-

    cias sobre o assunto. Foram escolhidos alguns suicidas, foram jogados para baixo e se notou que todos, no momento exato... traque. .. com as mos prafrente!DELEGADO: Ah, que belo apoio que nos d. .. mas louco?

    LOUCO: Sou, quem foi que lhe contou?JORNALISTA: Mas o particular mais desconcer-tante sobre o qual agradeceria uma explicao a ausncia, entre o material arquivado, da fita naqual foi gravada a hora exata do pedido de umaambulncia pelo telefone... Pedido esse efetuadopela telefonista da delegacia e que tambm, segundoo testemun