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AdaptaçãodeELIZABETHRUDNICKRoteiroparacinemadeEVANSPILIOTOPOULOS,

STEPHENCHBOSKYeBILLCONDON

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Como todos os contos de fadas, este começa com amais simples das frases:“Erauma vez…”.Mas é aí que nossa história, um tipo diferente de conto defadas,mudadedireção.Nãosetrataapenasdalendadeumalindadonzelaedeumbelopríncipe—embora,defato,amoçasejaadoráveleopríncipetambémtenhaseucharme.Esteéumcontosobreumabelezamuitomaisprofunda.Éahistóriadedoisseresunidossobascircunstânciasmaisfascinantes,doisseresquesóaprendemaenxergaroquerealmenteimportadepoisdeseconheceremmelhor. Só então que sua história— tão antiga quanto o tempo e tão vívidaquantoumarosa—começa.Nossahistóriateminício:eraumavez,nocoraçãoocultodaFrança…

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PRÓLOGO

O príncipe franziu a testa. Encarou um par de grandes portas douradas queestavamfechadas.Dooutrolado,elepodiaescutarmúsicaerisadas.Afesta,suafesta,jáhaviacomeçado.Ocristaltilintavaconformeosconvidadosbrindavamanoiteevagueavampelosalãodecorado,decertoimpressionadoscadavezqueseus olhares se detinham sobre as centenas de objetos de valor inestimávelalinhadospelasparedes.Belosvasos,quadrosdetalhadosdelugareslongínquos,ricastapeçariasepratosdeouromaciçoeramapenasalgunsdosmuitositens.Etudoissoseofuscavaemcomparaçãoàbelezadosprópriosconvidados.Afinal,o príncipe não convidava qualquer um para suas festas. Ele recebia apenasaqueles que julgava belos o suficiente para estarem em sua presença. Assim,vinhampessoasdetodasaspartesdomundo,cadaumatãodignadeexposiçãoquantoosobjetosdecorativosdosalão.Parado diante das portas, o príncipe mal notou a aproximação dos servos

apressados,que,nervosos,davamostoquesfinaisemsuafantasia.Omordomotambémestavaporperto,comorelógiodebolsonasmãos.Eraumhomemmaisvelhoeconservador,quedetestavaacompleta faltade respeitodo rapazpeloshorários.Opríncipe,porsuavez,tinhagrandeprazeremdesperdiçarotempodomordomo.Umacriadaparouao ladodopríncipe,comumpinceldepenasnasmãos. Com cuidado, ela pintou uma linha branca no rosto do jovem. A tintadeslizou facilmentesobreapelemaciae impecável.Acriadaentão recolheuamãoeinclinouacabeçaparaoladoenquantoanalisavaseutrabalho.Apinturadamáscarahaviaexigidohoras, e aparentava issomesmo.Estava

extraordinária.Orostodopríncipefoi transformadopelovéusuavedapintura.Nenhum detalhe foi deixado de lado, graças aos traçados sutis da plumagemdourada, aos destaques azuis ao redor dos olhos e ao toque ruge que realçavasuas já marcantes maçãs do rosto. Alinhando-se às últimas tendências, duas

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pintas foramperfeitamenteposicionadas: umaabaixodoolhodireito e aoutraacimadeseus lábioscarmesim.Porbaixodamáscarademaquiagem,osolhosazuisdopríncipebrilhavamcomfrieza.Acriadadeuumpassoparatráseesperouenquantoopajemprincipalajeitava

nosombrosdopríncipeum longomantocravadode joias, inspecionando tudoparagarantirquenenhumacoisaestivesseforadolugar.Satisfeito,eleassentiuparaacriada,queentãocobriuaperucadopríncipecompó.Entãoosdois seinclinaram em reverência e seguraram a respiração, aguardando a ação dopríncipe.Erguendo a mão enluvada, ele fez um breve aceno com desdém.

Imediatamente,umlacaioapareceu.—Maisluz—ordenouopríncipe.—Sim,vossaalteza—disseolacaio,virando-separaalcançarumcandelabro

próximo.Eleergueuoobjetoparailuminarorostodonobre.O príncipe segurava um pequeno espelho. Era prateado, com uma haste

delicada e floreios ornamentais na parte de trás. Em suas grandes mãos, oespelhopareciaminúsculoeincrivelmentefrágil.Segurando-onoaltoparaquepudesse sever,opríncipeadmirouopróprio rosto.Elevirouparaa esquerda,depoisparaadireita,entãoparaaesquerdadenovoevoltouaolhardiretamentepara seu reflexo.Ele assentiu coma cabeçaumavez, depois largouo espelhocomosefosseumtrapoqualquer.A criada, que quase desmaiara de alívio diante da aprovação do príncipe,

engasgouaoveroespelhoemqueda.Ignorandototalmenteoruído,opríncipeordenouqueomordomoabrisseasportasparaosalão.Enquantoeleentrava,olacaioselançouparaafrenteeconseguiuapanharoespelhoumsegundoantesqueatingisseochão.Osservosdeixaramescaparumsuspirocoletivoquandoasportas se fecharam atrás do príncipe. Pelas horas seguintes, eles poderiamrelaxarforadoalcancedeseuamocruel,mimadoegrosseiro.Alheio à opinião de seus criados, ou talvez ciente, mas nem um pouco

preocupado,opríncipeabriucaminhopelosalão.Eraummardetrajesbrancos—umaexigênciaespecificadanoconvite.Muitosdosconvidadoseramdifíceisde se distinguir, exceto por suas máscaras. O resultado era encantador. Noentanto, a expressão do príncipe permanecia sisuda, e sua solenidade nãoindicava nenhum prazer em ver tamanha beleza em seu castelo. Ele nuncapermitia que os outros percebessem se estava contente ou aborrecido. Isso lheconferiaumsensodemistérioqueeleapreciavabastante.Conformecaminhava,ele ouvia os cochichos das jovensmulheres, perguntando-se animadas se essa

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seria anoite emque ele tirariaumadelasparadançar.Umsorrisopresunçosocomeçouaseformaremseuslábios,maseleoreprimiueseguiuemfrente.Abrindo caminho através de um círculo de donzelas elegíveis e seus

acompanhantes, o príncipe chegou ao seu trono. O assento se erguia numpatamaracimadosalão,concedendo-lheumavisãoprivilegiadadetodaafesta.Como tudo ali, o trono tinha um estilo requintado. Um majestoso brasãodominavaoassento,deixandobemclaroaquempertencia,casoaindarestassemdúvidas.Paradoaoladodeseuposto,opríncipeseviroueolhouparaosalão,observando um homem pequeno e animado sentado diante de um cravoimponente,dooutroladodasala.Elefixouoolharnoconvidado,quelhesorriugentilmente, exibindo dentes que não estavam nos seus melhores dias. Opríncipe fez uma careta, mas acenou de volta. Aquele era, afinal, o principalmaestrodaItália.Eleesuaesposa,aelegantedivalíricaqueestavaaoladodomúsico, eram conhecidos nomundo todo. Eram simplesmente osmelhores e,portanto,opríncipeprecisavatê-losemseubaile.Com o aceno do príncipe, omaestro tocou as primeiras notas e sua esposa

começoua cantar, ecoandoavozpor todoo salão.Opríncipeavançoupara apista e começou a dançar. Seus movimentos eram suaves e ensaiados,aprimorados por anos de treino. À sua volta, moças se moviam no sentidocontrário,dançandodeformaigualmentetreinadaegraciosa.Dealgumaforma,porém, elas ficavam ofuscadas diante dele. A presença do príncipe era maisgrandiosaqueoprópriosalão,suaaparênciaeraamaisbelaesuafriezaeramaiscongelantequeoventoeachuvaqueuivavamláfora.Avozdadivahaviaacabadodesubirparaumanotaquaseestridentequandoo

príncipe reconheceu o inconfundível ruído de batidas na porta que levava aosjardins,umbarulhoquesesobrepôsàmúsicaeaovento.Eleergueuamãoeoespetáculoparouderepente.Asbatidassoarammaisumavez.Poruminstante,ninguémsemoveu.Então

todasasjanelasseabriramemumsoproviolento,seguidaspelaporta.Achuvainvadiu o salão e um vento poderoso fez as velas das arandelas ao longo dasparedespiscaremeseapagarem.Osalãomergulhounaescuridão,eopríncipeouviu seus convidadosmurmurarem apreensivos. Sob a luz remanescente doscandelabrosdasmesas,opríncipesentiuummistoderaivaecuriosidadeaoverumafiguradecapuzentrarpelaportaescancarada.Oestranhoandavacurvado,apoiando-secomamãotrêmulaemumabengalanodosa.Ovisitanteseafastoudofrioparaserefugiarnacalidezdosalão.Quandoaportasefechou,afiguramisteriosasuspiroualto,claramentesatisfeitaporestaremumlugarondeele—

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ouela—pareciaimaginarqueseriaacolhidoeestariaasalvo.Opensamentonãopoderiasermaisequivocado.Apósselivrardochoqueinicial,opríncipesentiuaraivasubir-lheosangue.

Agarrando um candelabro de umamesa próxima, ele disparou pela multidão,empurrandopessoaspara forade seucaminho.Nomomentoemquechegouàporta,seurostoestavavermelho,apesardascamadasdetintafacial.Eleviuqueovisitante indesejadoeraumavelhasenhorapedinte.Opríncipeseerguiaporsobreaquelafiguracurvada.—Oquesignificaisso?—reclamoueleemumrosnado.A velhamulher ergueu o rosto com um olhar esperançoso. Segurando uma

únicarosa-vermelha,elasussurroucomesforço:—Estouprocurandoabrigodatempestade.—Comoseporumsinal,ovento

seintensificouaumnívelextremo,uivandocomoumabestaraivosa.Opríncipenãosemoveu.Elenãose importavaseamulherestavamolhadaecomfrio,afinal,elanão

passava de uma mendiga velha e abatida. E, o que era ainda pior, estavaarruinando seu baile. Outra onda de raiva fulminante o atingiu quando eleconstatou a feiura emmeio a toda aquela beleza que havia criado com tantocuidadoeesmero.—Saiadaqui!—Elegesticulou,ordenandoqueelaseretirasse.—Saiadaqui

agora.Você não pertence a este lugar—disse ele enquanto apontava para osconvidadoselegantementevestidos.—Por favor—implorouavelha.—Estoupedindoabrigoapenasporuma

noite.Sequerficareinosalão.Acaretadopríncipepiorou.—Vocênãoentende,suavelha?Esteéumlugarparaabeleza.—Avozdele

era fria.—Você é feia demais para omeu castelo. Para omeumundo. Paramim.Amulherpareceuseencolherconformeaspalavrasdopríncipeagolpearam,

mas ele não demonstrou nenhum remorso. Sinalizando para o mordomo e olacaioprincipal,eleordenouqueamulherfosseescoltadaparafora.—Vocênãodeveriaseenganarpelasaparências—alertouamulherenquanto

osservosseaproximavam.—Abelezaseencontradentrode…Opríncipejogouacabeçaparatrásedeuumarisadacruel.—Digaoquequiser,bruxa,mastodosnóssabemosoqueébelo.Evocênão

é.Agoravá!Dando-lheascostas,opríncipecomeçouaseretirar.Masumengasgodeseus

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convidados o fez parar. Quando ele se virou novamente, seus olhos searregalaram.Algo estava acontecendo com a velha.A capa surrada e o capuzpareceramenvolvê-laemumaespéciedecasuloatéelaquasedesaparecer.Entãoumraiodeluzirrompeudela,cegando-o.Quandoele recuperouavisão, avelhapedintehavia sumido.Emseu lugar,

estavaamaisbelamulherqueopríncipejátinhavisto.Elaflutuava,irradiandouma luz dourada deslumbrante, similar à do próprio sol. Imediatamente, opríncipe soube o que ela era, pois já havia lido sobre o assunto. Ela era umafeiticeira:umamagaqueosubmeteraaumteste.Eelehaviafalhado.Opríncipecaiudejoelhoseergueuasmãosunidaspelaspalmas.—Porfavor—disseele.Erasuavezdeimplorar.—Sintomuito,feiticeira.

Vocêébem-vindaemmeucastelopelotempoquedesejar.Afeiticeirabalançouacabeça.Elahaviavistoosuficienteparasaberquese

tratavadeumarrependimentofalso.Opríncipenãotinhabondadeouamoremseu coração. Sem titubear, a maldição passou dela para se arrastar sobre opríncipe.A transformação começou naquele instante. O corpo do príncipe era

devastado pela dor. Suas costas se arquearam, e ele gemeu quando o corpocomeçou a crescer. Suas joias arrebentaram. Suas roupas rasgaram. Osconvidadosdobailegritaramdiantedavisãodeseuanfitriãoesaíramcorrendo.Opríncipeseergueu,tentandoagarraramãodeumhomemqueestavapróximo,mas,paraseuhorror,descobriuquesuaprópriamãopareciaadeummonstro.Ohomemsaltouparalongeeescapou,juntando-seaosoutros.Emmeioaocaos,afeiticeiraassistiatranquilaàsuapuniçãofazendoefeito.O

salão logo ficou vazio, exceto pela criadagem, pelos artistas e por um cãosolitário que pertencia à diva. Eles observavam chocados a transformação dopríncipe se completar. Onde antes se erguia um belo homem, agora seacovardava uma fera horrível. Mas ele não foi o único a se transformar. Orestantedocasteloeseushabitantestambémnãopareciammaisosmesmos.Elestambémhaviammudado…

Osdiasviraramanos,eopríncipeeseusservosforamesquecidospelomundoaté que, enfim, o castelo encantado foi isolado e trancafiado em um invernoperpétuo.Afeiticeiraapagouamemóriadaexistênciadaquele lugaredosqueviviamnele,atémesmodasmentesdaspessoasqueosamavam.Mas restava umaúltima esperança: a rosa que ela oferecera ao príncipe era

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encantada.Seopríncipeaprendesseaamaralguémeconquistasseoamordessapessoa,quandoaúltimapétalacaísse,amaldiçãoseriaquebrada.Casocontrário,eleestariacondenadoapermanecernocorpodeumaferaparasempre.

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CAPÍTULOI

Belaabriuaportadafrentedeseuchalé.Assimilandoaimagemperfeitadacenabucólica diante de si, ela suspirou. Todas as manhãs na pequena aldeia deVilleneuvecomeçavamdamesmaforma.PelomenosdurantetodootempoemqueBelaviveraporlá.Osolseerguiadevagaralémdohorizonte,comraiosquefaziamoscampos

quecercavamaaldeiaficaremmaisverdes,douradosoubrancos,dependendodaestação do ano. Os feixes avançavam até tocarem as laterais impecavelmentebrancasdochalédeBela,queficavanas imediaçõesdopovoado,antesdeporfimiluminaremostelhadosdepalhadoslareselojasqueconstituíamorestanteda aldeia. Quando isso acontecia, os aldeões já estavam se mexendo,preparando-separaodia.Dentrodesuascasas,oshomenssesentavamàmesapara as refeições matinais enquanto as mulheres cuidavam das crianças outerminavam de preparar o mingau. A aldeia permanecia silenciosa, como seaindaestivessedespertando.Então,orelógiodaigrejabatiaoitohoras.E,comonumpassedemágica,aaldeiaganhavavida.Bela havia presenciado a cena centenas de vezes. Mesmo assim, naquela

manhã, como em todas as outras, ela mais uma vez se deslumbrava aocontemplar a pequena aldeia e as mesmas pessoas cuidando de suas rotinas.Estreitandoseusolhoscastanhoscordiais,elasuspiroudiantedequãomundanoera tudo aquilo. Com frequência, ela imaginava como seria acordar de formadiferente.Belabalançouacabeça.Nãolhefaziabemdeixar-seimaginarousonhartanto

assim.Essaeraavidacomoelasempreconhecera,avidaqueelacompartilhavacomopaidesdequeeleshaviamsemudadodeParis,muitosanosatrás.Eraumaperdadetempohabitaropassadoouseperguntaroquepoderiateracontecido.

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Elatinhacoisasparafazer,incumbênciasacumprire—elaolhouparabaixo,nadireção do livro que segurava — uma nova aventura para desvendar. Belaendireitouosombros,fechouaportaatrásdesiepartiuparaacidade.Em questão de minutos, ela abria caminho pela rua principal de

paralelepípedoseacenavaconformepassavaporoutrosaldeões.Emborativessemoradona aldeia durante amaioria dos seus anos de vida, ela ainda se sentiacomoumaestranha aosolhosdosoutros.Lá, comonamaiorparte do interiorrural da França, era isolado e insular. A maioria das pessoas por quem Belapassou em seu caminho havia nascido ali e a passaria toda a vida nomesmolugar. Para eles, a aldeia era o mundo, e os forasteiros eram vistos comdesconfiança.Belanão tinhacertezaseaindanãoseria tratadacomoumaestrangeiracaso

tivesse nascido na aldeia. Ela realmente não tinha muito em comum com amaioriadosmoradores.Averdadeéqueelatinhamaisprazeremlerdoqueemterconversasbanaisetediosas—queriaeraviajarparaterrasdistanteseviveraventurasmagníficas,aindaqueapenasnaspáginasdeseuslivrosfavoritos.Tecendo seu caminho pelas ruas, ela ouvia o restante dos aldeões

cumprimentando-se.Sentiuumapontadade solidãoaovê-los.Todospareciamestar perfeitamente contentes com a monotonia de suas rotinas matinais.Ninguémparecia compartilhar de seu desejo por algo novo e empolgante, poralgomais.Bela chegou à tenda do padeiro, onde o cheiro delicioso dos pães recém-

assados se espalhava pelo ar. Como sempre, o ansioso padeiro segurava umatravessadebaguetesfrescaseresmungavaconsigomesmo.—Bonjour—disseBela.Ohomemassentiudistraído.—Umabaguete…—

Bela investigou a fila de potes cheios de geleias vermelhas. — E um destetambém, s’il vous plaît, por favor — emendou ela, escolhendo um pote edeslizando-oparadentrodobolsodeseuavental.Apóspagarpelacompra,elaseguiucaminhoparacompletarsuapróximamissão.Estava prestes a dobrar a esquina quando se deteve. Jean, o velho oleiro,

estava parado ao lado de suamula, parecendo confuso.A carroça atrelada aoanimalestavacheiadecerâmicasrecém-feitas.JeanlevantouoolharesorriuaoflagrarBelaobservando-o.—Bomdia,Bela—cumprimentouele.Suavozeraarranhadapelaidade.Ele

estavaanalisandoacarroça,comumaexpressãointrigada.—Bom dia,monsieur Jean— respondeuBela.—Você perdeu algo outra

vez?

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Ovelhohomemassentiu.—Achoquesim.Oproblemaéquenãoconsigolembraroqueera—disse

elecomtristeza.Entãodeudeombros.—Bem,tenhocertezadequeemalgummomentovoulembrar.—Elesevirouepuxouasrédeasdamula,tentandoguiaroanimalteimoso.Nãohouveacordo.AmulatentouenfiaronariznobolsodeBela,procurandopelamaçãqueelahaviaescondidojustamenteparaocasodeencontrarJean.Dandoumpuxãofortenacriatura,ooleiroconseguiudesviaraatençãodamulaparalongedeBela.Mas,comisso,eletambémdesequilibrouacarroça.Alarmada,Belasaltoueagarrouumdosbelosvasosdecerâmicabematempo

deevitarsuaqueda.Então,certadequenadamaiscairia,eladeuamaçãàmulaesevirouparadeixá-los.—Aondevocêestáindo?—perguntouJean.Elaolhouparatrás,semsevirar.—DevolverestelivroapèreRobert—respondeuela,sorrindoemostrandoo

volumeusado.—ÉsobredoisamantesnacharmosaVerona…—Algumdeleséoleiro?—interrompeuJean.Belabalançouacabeça.—Não.—Parecechato—disseele.Belasuspirou.ElanãoestavasurpresapelareaçãodeJean.Eraamesmatoda

vezqueelamencionava livros.Ouarte.Ouviagens.OuParis.Qualquer coisadiferente de conversar sobre a aldeia ou seus moradores era recebida comindiferença—ou,pior,comdesdém.Apenasumavez,BelapensouenquantoacariciavaonarizdamuladeJeane

acenavaparasedespedirdooleiro,eugostariadeconheceralguémquequisesseouvir a história de Romeu e Julieta. Ou qualquer história, na verdade. Elacomeçouaandarmaisdepressa,maisansiosadoquenuncaparaencontrarpèreRobert,pegarumnovolivroevoltarparacasa.Pelomenosnoseuprópriochaléninguém a incomodaria ou julgaria. Ela poderia se perder nas histórias eimaginaromundoalémdaquelaaldeiaprovinciana.Absorta em pensamentos sobre os deleites literários que a esperavam, Bela

sequer notava a atenção que estava atraindo. Nem se importava com oscomentários que sua presença provocava, que mal eram disfarçados. Ela jáouviratudoissoantes.Nãoeraaprimeiravezquepassavaemfrenteàescolaeouvia os meninos a chamarem de estranha. As lavadeiras, com suas mãosenrugadasecobertasdeespuma,tambémadoravamcochicharentresitodavez

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queviamBela.“Garotaengraçada”,diziamelas.“Elanãoseencaixa”eraoutrafrasefavorita.

Paraasfofoqueiras,essaeraapiorofensadetodas.NuncalhesocorreuqueBelahaviaescolhidonãofazerpartedamultidão.Finalmente, Bela chegou ao seu destino: a sacristia da igreja. Ela abriu as

portasesoltouumsuspirodealívioquandoosilêncioeaserenidadedolocalaenvolveram. O burburinho e os ruídos do lado de fora desapareceram, e pelaprimeira vez naquelamanhã, a jovem se sentiu empaz.Ouvindo-a entrar, umhomem gentil em ummanto preto longo olhou por cima do livro que estavalendo. Ele era alto e esguio, com olhos acolhedores que enrugaram a pele aoredorquandosorriuparaBela.—Bomdia,Bela—pèreRobertacumprimentou.—Então,paraondevocê

fugiuestasemana?Belasorriu.Opadreeraumhomemlidoeumadasduaspessoasem todaa

aldeiacomquemBelasentiaquepodiaconversar.Aoutrapessoaeraseupai.— Duas cidades ao norte da Itália — respondeu ela, com o tom de voz

animado. Ela estendeu o livro, como se mostrá-lo a père Robert ajudasse ahistória a ganharvidade alguma forma.—Vocêdeveria estar lá também.Oscastelos.Aarte.Teveinclusiveumbailedemáscaras.Alcançando-a,pèreRobertpegouolivrocomcuidadodasmãosdeBela.Ele

assentiuquandoelacontinuoualhecontarahistóriadeRomeueJulietacomoseele nunca a tivesse ouvido antes,mesmo que ambos soubessemque ele havialido a narrativa mais de dez vezes. Era apenas parte do ritual deles. Quandoterminou,Belarespiroufundo,satisfeita.—Vocêtemoutroslugaresparaeuvisitar?—perguntouela,esperançosa.Ela

seviroueseusolhossedemoraramnabibliotecadacidade.Chamardebibliotecaeraumexagero,paradizeromínimo.Algumaspoucas

dezenas de livros se alinhavam em duas pequenas estantes empoeiradas.Analisando as prateleiras, Bela viu asmesmas lombadas desgastadas e títulosapagados.Erararoquequalquercoisafosseacrescentadaaoinventário.—Receio que não— respondeu ele. Apesar de ter previsto a situação, os

olhos de Bela revelaram a decepção que ela sentiu. —Mas você pode releralgumdosantigosdequegosta—completouelegentilmente.Bela concordou com a cabeça e foi até a estante. Seus dedos varreram os

livrosfamiliares,cujamaiorparteelajáhavialidopelomenosduasvezes.Aindaassim, jamais reclamaria. Escolhendo um, ela sorriu de volta para o velhohomem.

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— Obrigada — disse suavemente. — Sua biblioteca faz este cantinho domundoparecermaior.Com o livro em mãos, Bela deixou a sacristia e voltou à rua principal da

aldeia.Abrindonaprimeirapágina,elaenfiouonariznolivroebloqueoutudoao seu redor.Ela desviou do vendedor de queijos que carregava uma travessacheia deles e se precipitou para fora do caminho de duas floristas, com seusbraçoscarregadosdebuquêsgigantescos.Tudosemperderopontodeleituranapágina.Embora estivesse desapontada por não ter encontrado nada novo, esse livro

eramesmoumdeseusfavoritos.Tinhatudooqueumaboahistóriadeveriater:lugares distantes, um príncipe charmoso, uma heroína forte que descobria oamor…masnãodeimediato,éclaro.CLANG!CLANG!Alarmadapelobarulhoalto,Belaenfimsedesprendeudolivro.Olhandopara

afrente,viuqueoruídovinhadeÁgata.SeBelaeraestranhaparaopovoado,amulher idosaeraumamarginal.Elanão tinhacasanemfamíliaepassavaseusdias pedindo trocados e comida. Vendo além da sujeira que cobria suasbochechaseostraposquevestia,BelasempreteveapreçoporÁgata.Elasentiaqueasenhoramereciatantaatençãoerespeitoquantoqualquerumeodiavaveroutros aldeões ignorando-a ou, pior, zombando dela. Sempre que a via, Belatentavaajudarcomalgumacoisinha.— Bom dia, Ágata — disse Bela, sorrindo gentilmente. — Eu não tenho

dinheiro.Mas aqui está…— Ela pegou sua bolsa, tirou a baguete que haviaescolhidoespecialmenteparaamulhereaentregou.Ágatasorriuemgratidão.Entãoseusorrisosetornoubrincalhão.—Nãotemgeleia?Antecipandoopedido,Belajáestavacomamãonobolsoemostrouopotede

geleia.— Abençoada seja — disse Ágata. Abaixando a cabeça, ela arrancou um

pedaçodabaguete,esquecendo-seinstantaneamentedapresençadajovem.Belasorriu.Dealgumaformaesquisita,elasentiaumvínculocomamulher.

Ágataqueriasimplesmentecomersuacomidaeserdeixadaempaz.Belaagiadamesmaformacomseuslivros.Pormaissolitáriaqueelapudessesesentirdevezemquando,nãosuportavaatençãoindesejada—detestava,naverdade.

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CAPÍTULOII

Gaston adorava receber atenção. Ele vivia para isso, na verdade. Desdegarotinho,buscavamaneirasdeserocentrodetudo.Eleandouantesquetodosdasua idade.Ele falouprimeiroe,conformefoi ficandomaisvelho, tornou-semais alto e mais belo que qualquer um. Com seus cabelos escuros, olhospenetrantes e ombros largos, era realmente bonito. As garotas o amavam; osgarotosoveneravam.EGaston?Eleabsorviatodaaatençãoeregozijava-secomela..Havia um limite de atenção queGaston poderia receber crescendo em uma

pequena aldeia. Isso o aborrecia. Então, para sua satisfação, a França seenvolveu na guerra. Gaston não via a guerra como uma oportunidade dedefender seu país, mas como uma chance de usar um uniforme elegante eimpressionarasmulheres—oqueelefezcomgostoquandosetornouumheróideguerracondecoradodozeanosantes.Gastonaindausavasuafarda.Eaindaacreditavaserohomemmaisbeloemásculodetodaaaldeia.Agora ele montava seu grande garanhão preto, fitando a aldeia do

promontório que lhe permitia vê-la do alto. Seu tórax se avolumava sob umpeitoraldouradodeslumbrante.Osmúsculosemseusbraçossaltavamconformeele puxava as rédeas do cavalo, fazendo o animal dançar nervosamente.Amarradosà sela, estavamseu fielmosqueteeas recompensasde suacaçada.Comosempre,eletiveraumatardedesucessonafloresta.—Vocênãoerrouumtiro,Gaston—disseohomemaoladodele.Se Gaston era um leão, como já haviam dito ao longo dos anos, o outro

homemeraumgatodoméstico.LeFouera tudoqueGastonnãoera.EnquantoGastoneraaltoemusculoso,LeFouerabaixoefraco.EnquantoGastoneratodoelegância,movimentostreinadosefalasbemensaiadas,LeFouerasótropeçose

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balbucios incompreensíveis. Enquanto Gaston era conhecido e venerado portodos,LeFoueraumameranotaderodapéaosolhosdosaldeões.Aindaassim,Gastonestimavaopequenorapaz:maispelofatodeeleserseumaiorfã.—Vocêéomaiorcaçadordaaldeia—LeFoucontinuou.Gastonlançou-lhe

umolharfulminanteeelerapidamentecorrigiu:—Querdizer…domundo.Gastonestufouaindamaisseupeitojáinfladoeergueuoqueixonoarcomo

seposasseparaumartistainvisível.—Obrigado, LeFou— disse. Ele olhou para baixo para ver o que LeFou

havia“capturado”(umpunhadodevegetais)eergueuumasobrancelha.Então,acrescentoucomironia:—Vocêtambémnãofoitãomal.—Umdiadessesvouaprenderaatirarcomovocê—comentouLeFou,alheio

àzombariadeGaston.—Efalarcomovocê.Eseraltoebelocomovocê.—Deixedisso,velhoamigo—disseGaston,fingindonãoteradoradocada

elogio.—Aglóriarefletidaétãoboaquantoaoriginal.LeFou inclinou a cabeça, confuso. Ele abriu a boca para falar, mas parou

quandoviuGastonseendireitarnasela.Osolhosdohomemdecabelosescurosse estreitaram, como se fossem de um lobo avistando uma presa. Seguindo oolhardeGaston,LeFouviuoquehaviachamadoaatençãodeseuamigo.Logoadiante,Belaabriacaminhopelapraçadaaldeia.Seuvestidoazulvivoreluziaem contraste com seus fartos cabelos castanho-avermelhados. Mesmo àqueladistância,LeFouconseguiaverqueasbochechasdelaestavamcoradas.—Olheparaela,LeFou—prosseguiuGaston.—Minhafuturaesposa.Bela

éagarotamaisbonitadaaldeia.Issofazdelaamelhor.—Maselaéumamulhertãoculta,evocêétão…—LeFouseconteve.Ele

quaseincorreunoerroqueseorgulhavadenuncatercometido:ofenderGaston.Rapidamente, antes que o amigo pudesse se perguntar sobre a hesitação, eleterminouafrase.—Inclinadoaosesportes.Gastonassentiu.—Eusei—concordouele.—Belapodesertãoquestionadoraquantobonita.— Exatamente!— disse LeFou, feliz em ver seu amigo falando de forma

sensata.—Quemprecisadela?Vocêtemanós!LeDuo!Ele disparou o apelido quase esperançoso. Logo que voltaram para casa

depois da guerra — porque é claro que LeFou havia acompanhado de seuparceironabatalha—,ohomenzinhovinha tentandoemvão fazer comqueaaldeiachamasseadupladeLeDuo.Masoapelidonuncapegou.NormalmenteerasomenteGastone“ooutro”.Ou,quasesempre,apenasGaston.Absortoemsimesmo,Gastonmalnotouacarêncianavozdoamigo.

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—Desdeostemposdeguerra,tenhosentidofaltadealgo—disseele,aindaolhando para Bela. — E ela é a única garota que conheci que me dá essasensaçãode…—Gastonhesitou,tentandoencontraraspalavrascertas.—Jenesaisquoi?Algomais?—propôsLeFou.Gastonseviroueolhouparaelecomumaexpressãoconfusa.—Nãoseioqueissosignifica—eledisse.—Sóseiquedesdeomomento

emqueavi,soubequemecasariacomela.Enãoqueromaisficaraquiparado,perdendotempo.—Guiandoseucavaloagalope,eleseguiuparaaaldeiacomoumheróiretornandodocampodebatalha.Atrásdele,LeFouincitouseupônei.O animal peludo abaixou as orelhas e disparou imediatamente em um… trotelento.

Bela ouviu o ruído dos cascosmomentos antes de os cavalos atravessaremosportõesdaaldeia.Naverdade,apenasumdeles irrompeupelaentrada,ooutromeioqueserpenteou.Imediatamente,Belareconheceuoenormegaranhãopretoeohomemmontadonele.EraGaston.Atrásdele, seualiado semprepresente,LeFou, estava lutando para controlar o pônei desgrenhado. Ela abafou umgemidoeseesgueiroudepressaparatrásdovendedordequeijos,naesperançadequeGastonnãoanotasse.Elajátiveradiscussõesdemaiscomoheróideguerra.Todavezeraamesma

coisa.Gastonseexibiacomoumpavãoenquantosevangloriavadesuaúltimacaçada ou lhe contava uma história sobre seus dias de glória na guerra. Belatentava não revirar os olhos. Os aldeões — especialmente as mulheres —perdiam o fôlego e cochichavam sobre quão sortuda era Bela, e, por fim, ajovemiaemborasentindoqueprecisavadeumbanho.ElasabiaqueGastoneraconsiderado o melhor partido por muitas — bem, por todas, para dizer averdade.Maselanãosuportavaaquelehomem.Haviaalgobestialnele.Como agora, ela pensou enquanto espiava de trás da fromagerie. Gaston

seguravafloresemumadasmãosevasculhavaamultidãocomosolhoscomoum animal selvagem.Bela soltou umgemido quando ele fixou o olhar nela ecomeçou a abrir caminho entre os aldeões para encontrá-la. Ela se virou e seapressou na direção oposta, torcendo para que os outros moradores odistraíssem.Sem queBela notasse, assim queGaston estava prestes a alcançá-la,Ágata

surgiunomeiodocaminhocomsuacanecaerguida.Gastonolhouparabaixonadireçãodamulhersem-tetoecontraiuoslábios.Entãoeleviuacanecademetalbrilhante.

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—Obrigado,bruxa—disseele,arrancandooobjetodesuasmãosevirando-o de cabeça para baixo. Moedas se espalharam pelo chão enquanto Gastonconferiaseureflexonabasedacaneca.Satisfeitocomoqueviu,eleajogoudevoltaparaÁgataepassouretoporela.—Bomdia,Bela—disseele,correndoparapararàfrentedela.Eladeuum

passoparatrás.—Esselivroéfantástico.Belaergueuumasobrancelha.—Vocêoleu?—Eufizmuitascoisasnoexército—respondeuelevagamente.Bela engoliuuma risada.Levoumenosdeumminutopara elemencionar o

exército.Deveserumrecorde,elapensou.Comumgracejo,Gastonofereceu-lheasflores.—Parasuamesade jantar—explicouele.—Poderia lhe fazercompanhia

estanoite?— Desculpe — disse Bela apressadamente, balançando a cabeça. Ela se

moveu devagar ao redor dele, em busca da rota de fugamais rápida.—Estanoite,não.—Estáocupada?—perguntouGaston.—Não—respondeuBela.AntesqueGastonpudesseretrucarouassimilara

rejeição, ela já estava se desviando para voltar à rua. Pôde ouvir Gastondistorcendo suas palavras para a plateia de aldeões que haviam parado paraassistir aos dois. Estava claro que o caçador havia interpretado seu não comoumajogadaparasefazerdedifícil.Elanãoseimportoucomoqueeledisseoucomotentousesentirmelhor.Ela

sabiaaverdade:Gaston,apesardeseufísicoimponente,nãoeramaiordoqueaminúscula aldeiaprovinciana.Eela jamaisdividiria amesade jantar comele.Nemagora,nemnunca.Acelerando o passo, Bela seguiu seu caminho e saiu do centro da aldeia.

Momentos depois, ela estava de volta ao seu chalé. Era uma casinhaaconchegante, com uma pequena escada que levava até a porta de entrada egrandes janelas panorâmicas. Havia também um belo jardim na frente e umespaçosubterrâneoseparado,ondefuncionavaaoficinadeseupai.Adocemelodia tilintante de uma caixinhademúsica escapavapor entre as

portinholas.Seupaijáestavatrabalhandoaessahoradamanhã.Tomandocuidadoparanãoincomodá-lo,Belaabriuasportinholasedesceuas

escadas na ponta dos pés. A luz do sol penetrava por uma pequena janela,iluminando Maurice, que estava sentado e curvado sobre sua bancada de

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trabalho.Peçasepedaçosdeseusprojetosespalhavam-sepelo local.Pequenosbotões,parafusosminúsculos,caixaspintadaspelametadeeestatuetasdelicadasrepousavam em várias mesas e prateleiras. Algumas coisas erammais novas,comsuassuperfícies lustrosasebrilhantes,outrashaviamacumuladoumafinacamadadepó,esperandoqueMauricelhesdesseatençãodenovo.Mas,porora,eleestavafocadonacaixinhademúsicaàsuafrente.EnquantoBelaobservava,ele mexia em uma das engrenagens. O interior era lindamente pintado,retratando um artista em um pequeno apartamento parisiense.O artista estavapintando o retrato de sua esposa. Ela embalava um bebezinho e segurava umchocalhosemelhanteaumarosa-vermelhanaoutramão.Beladeuumpassoadiantenocômodo.Mauriceolhoudistraídonadireçãodo

som.Sorriu aover a filha.Seusolhos, damesmacor acolhedoradosdeBela,eram brilhantes e focados. Quando ele endireitou os ombros, revelou-se maisaltoeenxuto,aindabeloparasuaidadeavançada.—Oh, que bom,Bela!Você está de volta— disse ele, voltando-se para a

caixademúsica.—Aondefoi?—Bem,primeirofuiatéSãoPetersburgoparavisitaroczar,entãofuipescar

no fundodopoço—começouela, sorrindoconformeopai assentiadistraído.Quandoeleestavatrabalhando,nãovianemouvianada.Belacompreendia.Elaagiadamesmaformaquandoeraseduzidaporumlivro.—Hum,sim—disseMaurice.—Vocêpodemepassara…Antes que ele pudesse terminar, a filha estava lhe entregando a chave de

fenda.—Etambémo…Dessavez,elalheentregouumpequenomartelo.—Não,eunãopreciso…—Avozdelebaixouassimqueumamolasaltouda

caixinha.—Bem,achoquepreciso,sim.Quandoelevoltouaotrabalho,Belafoiatéumaestanterepletadecaixasde

músicafinalizadas.Seuslongosdedosfinospassaramportodasconformeelasemovia ao longo da fileira. Cada uma era uma obra de arte, retratandomonumentosfamososaoredordomundo.Elasabiaqueseupaiasfaziaparaela,como uma forma de lhe dar um vislumbre domundo lá fora.Maurice nuncadissecomtodasaspalavras,masBelasabiaqueeleestavacientedeseuanseiopor explorar, por escapar dopequenouniversonoqual ele amantinha segura.Ela pensou na pequena aldeia e nas pessoas fofoqueiras que viviam ali.Delicadamente,paranãoassustá-lo,Belaperguntou:—Papai,vocêachaquesouestranha?

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Notandootomdevozdafilha,Mauricedesviouoolhardeseutrabalho.Elefranziuatesta.—Seeuachoquevocêéestranha?—repetiuele.—Deondetirouumaideia

dessas?Beladeudeombros.—Oh,eunãosei…Aspessoascomentam.—Hácoisaspioresdoqueseralvodecomentários—disseMaurice,coma

vozentristecendo.—Estaaldeiapodeserlimitada,Bela,mastambémésegura.Ajovemabriuabocaparaprotestar.Aquelaeraumafrasequeseupaiusavao

tempo todo. Ela sabia que as intenções dele eram boas, mas não conseguiaentenderporqueelequeriacontinuarnaquelapequenaaldeia.Vendo que sua explicação típica não funcionaria com Bela hoje, Maurice

mudouadireçãodaconversa:—LáemParis,conheciumagarotaqueeratãodiferente,poiseraousadaeà

frente de seu tempo, que as pessoas zombavam dela. Até o dia em quecomeçaramaimitá-la.Sabeoqueelacostumavadizer?Belabalançouacabeça.— As pessoas que falam pelas costas dos outros estão destinadas a

permanecer ali. — Maurice fez uma pausa, para que suas palavras fossemabsorvidas.Entãoacrescentou:—Atrásdapessoadequemfalammal.Ejamaisvãoalcançá-la.Bela assentiu devagar. Ela gostava das pequenas histórias deMaurice, que

serviamcomoliçõesdevida.Achava,naverdade,quejáhaviaescutadotodas.Masessaeranova.Seupaiestavatentandolhedizerquenãohaviaproblemaemsedestacar,estaràpartedamultidão.Elaassentiudenovo.—Compreendo—disseelasuavemente.—Essamulhererasuamãe—acrescentouMaurice,sorrindoealcançandoa

mãodafilha.Eleaapertou.Belasorriudevolta,comocoraçãoseenchendodetristezaeafeto.Elanãose

lembravadamãe.Tudooquetinhaeramashistóriasqueseupaicontava.Masas memórias eram duras para Maurice, então ele lhe dava apenas algunsfragmentos,comoesse,detemposemtempos.— Fale-me mais sobre ela — pediu Bela quando o pai tentou voltar ao

trabalho.—Porfavor.Maisalgumdetalhe.Amãodovelhohomempairousobreacaixinhademúsica.Lentamente,seus

dedossefecharamevoltouaencararafilha.—Suamãeera…destemida—disseele.—Parasabermais,vocêsótemque

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se olhar no espelho. — Ele pegou um par de pinças e posicionou a últimaengrenagemnacaixademúsica.Comumclique,elaseencaixounolugar.—É linda—comentouBelaaoouviramúsica.Elaergueuoolhar,que se

deteveno retratopenduradono topodaoficinade seupai.Mostravaamesmaimagemretratadadentrodanovacaixademúsica:amulhersegurandoacriançaeochocalhoderosaerasuamãe,eobebêeraBela.Eraaúnicaimagemdamãequeajovemconhecia.—Achoqueelateriaamado—acrescentoucomdoçura.Masseupainãoaouviu.Eleestavamaisumavezperdidonomundodesuas

caixas de música. Bela sabia que falar mais sobre sua mãe o deixaria triste.Entãoelasevirouevoltouàsescadas.Elaamavatantoopaiquenãoquerialhecausarmaisdorousofrimentodoqueelejáhaviasentidonavida.Masàsvezesse perguntava se havia chances de algomudar o destinoque eles seguiam tãofirmementejuntos.

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CAPÍTULOIII

Bela acenou para o pai enquanto ele dirigia sua carroça para fora do chalé.Philippe,ogigantegentilemformadecavalo,jogouacabeçanoarerelinchoualegre,prontoparaaaventura.Como fazia todos os anos, Maurice estava indo para o grande mercado, a

algumasaldeiasdedistância,paravender suascaixinhasdemúsica.Acarroçaestavacarregadacomcadaumadaspeçasemqueeletrabalharanoúltimoano,embaladaseempilhadascuidadosamenteparaqueficassemprotegidasdurantealongajornada.E,comoemtodososanos,eleestavadeixandoBelaparatrás.Erapelasuaprópriasegurança,elesemprelhedizia.Ouporqueelenãopodiadeixarochalédesocupado,comoacrescentavaàsvezes.De todomodo, sempreeraamesmacoisa:elepreparavaacarroça,BelasecertificavadequePhilippeestavapronto para a viagem, então eles passavam pelo ritual de despedida. BelaajeitavaolençodeMauriceemsuacamisaeelelheperguntava:—Oquevocêquerqueeulhetragadomercado?—Umarosacomoaqueladapintura—erasemprearespostadeBela.Então,apósumrápidoabraçoeumagradoemPhilippe,Mauriceseguiuseu

caminho.Naquele ano não foi diferente. Quando seu pai e Philippe sumiram no

horizonte,Belasuspirou.Bem,elapensouenquantocaminhavadevoltaparaochalé, e agora? Ela sabia que poderia ler, ou limpar, ou trabalhar no jardim.Mas,poralgumarazão,nenhumadessascoisasaapetecianaquelemomento.Elaprecisava fazer algomais. Algo que a afastasse de sua própriamente— queestava começando a se encher de preocupações sobre a viagem do pai, comotodo ano. Reparando na grande pilha de roupas sujas, ela ergueu umasobrancelha. Normalmente, ela detestava lavar roupas. As lavadeiras estavamsemprepróximoà fonte, fofocandoe tagarelando.QuandoBela chegasse, elas

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ficariammais barulhentas e suas risadas,mais cruéis— fazendo o tempo quelevavaparadeixarasroupaslimpassearrastar,algoexcruciante.Seaquilonãodemorassetanto…Elaolhoupelasala,notandoumdosarreiosdecourodePhilippeeacestade

maçãs.De repente, ocorreu-lheuma ideia.Sorrindo, ela correu até odepósito,pegou o que precisava e seguiu para a aldeia. Para sua satisfação, quandochegou,aúnicapessoanafonteeraumajovemgarotadeolhos tristes.Bela jáhaviavistoameninapelaaldeiaantes.Elaestavasempresozinhae,ajulgarpelaformacomoencolhiaosombroseevitavaocontatovisual,Belatinhacertezadeque ela não tinha muitos amigos. Enquanto Bela a observava, a garotamergulhouumacamisanafonte,puxou-adevoltaecomeçouaesfregá-la.Levando sua pilha para a beirada da fonte, Bela começou a tirar seus

apetrechosdosbolsosdoavental.ElafoiatéamuladeJean,ooleiro,queestavaparada próximo à porta da taverna, com sua cabeça abaixada e umadas patastraseiraserguida.ApósamarrarumapontadoarreiodePhilippenocabrestodoanimal, Bela prendeu a outra ponta em um pequeno barril demadeira. Entãocolocoutodasasroupasealgunspedaçosdesabãonobarrilantesdeerguê-loejogá-lo direto na fonte. O barril tombou para o lado, enchendo-se devagar deágua.Belafoiatéafrentedamula.Balançouumadasmaçãstentadoramenteecomeçoua andarpara trás.Amula a seguiu eBela aguiouporum trajeto aoredordafonte.—Oquevocêestáfazendo?Belaviuqueagarotaaestavaobservandocomumaexpressãoperplexa.—Lavando roupas—respondeuBelademodoprático.Elaapontouparao

barril. Amula o arrastava pela água, agitando o líquido e cobrindo as roupascom uma boa camada de espuma. Satisfeita com seu trabalho, Bela tirou seulivro de um dos bolsos e se sentou para ler. Relanceando para a garota, queencaravaolivrocomumaexpressãoquasefaminta,Belasorriu.—Bem,oquevocêestáesperando?

Belanãosabiaaocertoháquantotempoestavasentadanafonte.AmuladeJeanainda dava voltas, a água estava menos ensaboada e as roupas, muito maislimpas.MasBelamalnotavaoqueaconteciaaoseuredor,jáqueestavafocadademaisnagarotasentadaaoseulado.Elahaviapassadoamanhãeumapartedatardetentandoensiná-laaler.Elasabiaqueosanciõesdaaldeiadesaprovavamgarotasqueliam—aescolalocaleraabertaapenasparameninos—,masBelanuncaconcordoucomessemodotacanhodepensar.Então,quandoameninase

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sentounamuretadafonteepediuquasesussurrandoqueBelalhecontasseumahistória,elaficouanimadaempodercompartilharasemoçõesdaleituracomajovem.Aideiadevivernaquelaaldeiaenãopoderescaparpormeiodoslivrosera aterradora. E a garota vivia aquela realidade todos os dias. Bela estavadeterminadaamudarisso.Elas avançaram bastante. A garota chegou muito mais longe do que Bela

imaginouqueseriapossível.Elaapenasprecisavapraticar.—O…p…pás-sa-roazulvoa…—gaguejouagarota.— Pela floresta sombria — incentivou Bela. Ela abriu a boca para ler a

próximalinha,masfoiinterrompidaporumgritorepentino.Levantandooolhar,Belaviuorostomagroecrueldodiretornaportadaescola.Elasuspirou.Seumomentodepazesilênciopareciateracabado.— O que raios você está fazendo?— gritou ele, atacando-a. Uma fila de

garotos o seguia, com seus uniformes combinados que os faziamparecer umapequenatropa.—Meninasnãoleem.Seusgritoslogoatraíramaatençãodemaisaldeões.Jean,ooleiro,apareceu,

seguidopelopeixeiroeatémesmoporpèreRoberteÁgata.ElesesperaramparaveroqueBeladiriaoufaria.Erguendoumasobrancelhanumarcoperfeito,Belaencarouoolharraivosodo

diretor.Porummomento,elespermaneceramdaquelaforma,comolharesfixos.EntãoBelasevoltouparaagarotaesorriu.—Tentedenovo—disseela.Como se ela tivesse ateado fogo a um barril de pólvora, os aldeões que

haviam se agrupado se dispersaram. Alguns, como o peixeiro e o diretor,expressaramindignaçãocomocomportamentoaudaciosodeBela.Outros,comopère Robert, a aplaudiram. Em meio a tudo isso, Bela continuava sentada einabalável.Queodiretorgrite,esbravejeepercaasestribeiras,elapensou.Eledeveriaestarpreocupadocomaeducaçãodeseusalunos.De repente, acima dos protestos cada vez mais altos dos aldeões que não

aprovaramaatitudedagarota,soouumdisparo.Assustada,Belaolhouparacima.Entãorevirouosolhos.Gastonestavaparado,oumelhor,posando,comumadasmãosnoquadrilea

outrasegurandoumrifledecaçaapontadoparaocéu.Afumaçaaindaescapavadapontadaarma recém-disparada.LeFou, semprenopapeldoajudante, abriacaminhoentreosaldeões.—Abram espaço, pessoal— gritou ele.—Vamos lá, nãome façam falar

duasvezes.

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Seguindoatrás,Gastonabaixouo rifleeoentregouaLeFou.Depois,olhouparaamultidão.—Não é assimque boas pessoas se comportam—disse ele, balançando a

cabeça.—Todos…paracasa.Agora!—Seaarmanãotivessesidosuficienteparachamaraatençãodeles,oberro intensodeucontado recado.Osaldeões,murmurandounscomosoutros,começaramasedispersardevez.Eminstantes,aáreaemtornoda fonteestavaquasevazia.Osúnicosquerestaramali foramBela,GastoneLeFou.Atéagarotinhasefoi,aterrorizadapelogritodoheróideguerra.Belanãosabiaseriaousechorava.Gastoncertamenteachouqueveioemseu

resgate,mastudooqueelefezfoidaraosdemaisaldeõesoqueelesqueriam,acabandocomaauladeleitura.IssosemfalarnafrustraçãoquecausouaBela.Ela se levantou e caminhou para longe da fonte. Gaston se apressou para

acompanhá-la.Poralgunsinstantesgloriosos,ograndehomemficouemsilêncioenquantoelescaminhavamatéochalédajovem,eelaseperguntousepodiatertirado conclusões precipitadas. Talvez Gaston não fosse se vangloriar de seufeito.Atéqueelecomeçouafalar.—Eufuimuitobemnaquelahora,nãofui?—disseele.—Foicomoestarde

voltaaocomandoduranteaguerra…—Issofoihádozeanos,Gaston—ressaltouBela.—Triste, eu sei…—disseGaston, claramente alheio ao tom deBela. Ele

diminuiuopasso,esuaexpressãoficouséria.—Bela,estoucertodequevocêachaqueeutenhotudo.Masexistealgoquemefalta.Ansiosaparaseafastar,Belaapressouopasso.—Nãoconsigoimaginaroqueseria…—Uma esposa— continuouGaston. Seu tom era sincero,mas a frase era

ensaiadademaisparasoarverdadeira.—Vocênãovivedeverdadeatéquevejaasimesmorefletidonosolhosdealguém.Ah,não,pensouBela.Eraexatamenteoqueelatemiaqueacontecesse.Eela

precisavacortarpelaraizqualquerconversasobreesposas.—Evocêconseguesevernosmeus?—perguntouela,tentandofalaremum

tomomaisdesinteressadoedistantepossível.Gastonassentiu.— Nós dois somos guerreiros — disse ele, sem dúvida se referindo ao

incidentenafonte.—Tudooqueeuqueriaeraensinarumacriançaaler—protestouBela.Não

queriaserumaguerreira,elaacrescentoumentalmente.

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—As únicas crianças com quem você deveria se preocupar são… as suaspróprias.AspalavrasdeGastonatingiramBelacomoumacarroçadesgovernada.Como

seelemeconhecesseousoubesseoqueeuquero,afinal,elapensou.Comoeleousafazertaissuposições?Elacerrouospunhosetentoumanteravozomaisfirmepossívelquandodisse:—Eunãoestouprontaparaterfilhos.—Talvezvocênãotenhaencontradoohomemcerto—retrucouGaston.—Éumaaldeiapequena—Beladisparoudevolta.—Eujáconheci todos

eles.—Talvezvocêdevessedarumasegundaolhada…Belabalançouacabeça.—Jáfizisso.—Talvezvocêdevessedarumaterceiraolhada—continuouGaston,alheioà

indireta.—Algunsdenósestãomudados.Chega! Bela queria gritar. Mesmo se Gaston se transformasse em Marco

AntônioeelaemCleópatra,aindaassimelanãodesejariaestarcomele.Jamais.Nunca,jamais,dejeitonenhum.—Olhesó—disseela,enfim.—Nósnuncapoderíamosfazerumaooutro

feliz.Ninguémpodemudartantoassim.Apertandoaindamaisopasso,ela tentousedesvencilhardeGaston.Aquela

conversajátinhaidolongedemais.Logoadiante,elapodiaveraportadafrentedeseuchalé,comoumaluznofimdotúnel.Contudo, Gaston não estava disposto a desistir. Suas longas pernas logo

cobriram a distância entre eles, com suas botas esmagando as plantas nopequenojardim.—Bela,vocêsabeoqueacontececomsolteironasemnossaaldeiadepoisque

seus paismorrem?— perguntou ele, deixando de lado a delicadeza de antes.QuandoBelanão respondeu,elecontinuou:—Elas implorampormoedasnasruas.—Ele acenouparaÁgata, queestavaperambulandopor ali.—Este éonossomundo, Bela. Para pessoas comuns como nós, as coisas só ficammaisdifíceis.—Eupossoserumagarotadointerior—disseBela,subindoosdegrauscom

Gastonemsuacola.Elaparouderepenteesevirouparaencará-lo.—Masnãosouumagarotacomum.Sintomuito,masnuncamecasareicomvocê,Gaston.Semdizermais nenhumapalavra, ela entrou e fechou a porta com firmeza,

impedindoqueocaçadoraseguisse.Elasabiaqueelenãodeviatergostadode

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receberumaportanacara,masnãohaviaopção.Comsorte,esseseriaofimdasabordagensindesejáveisdeGaston.Umdia,elapensouenquantoseescoravanaporta,vouencontraralguémque

me entenderá, alguém que me deixará ser eu mesma. Um dia, vou provar atodoseles.Queromuitomaisdoqueaspessoasdestaaldeiaseriamcapazesdecompreender.

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CAPÍTULOIV

Um relâmpago reluziu, lançando sobre a floresta uma luz branca ameaçadora.Uminstantedepois,oventoseintensificou.Folhasvoavampelochão,açoitandooscascosdePhilippeconformeeletrotavanervosamente.Osolhosdocavalosearregalaramquandomomentosdepoisoestouroviolentodeumtrovãoressooupelocéu.Sacudindoacabeça,eleseagitou.De seu lugar no assento à frente da carroça,Maurice sabia o que o grande

animalestavatentandodizer:Vamosdarmeia-voltaagora,antesquesejatardedemais.Maseletambémsabiaquejáeratardedemais.Elesacabarampresosnomeio do lugar que os habitantes locais chamavam de floresta negra. Rumoresrondavamaquelecaminhodensonamata.Algunsdiziamquebruxasmoravamali. Outros afirmavam que na floresta havia várias alcateias de lobos maisespertosqueamaioriadoshomens.Haviaaindaaquelesquecontavamqueasárvorespodiamfalar.Eraotipodelugarondeseviaescuridãoeolhoshostisportodaaparte.Sem dúvida, não era o tipo de local para se perder à noite, especialmente

duranteumatempestade.— Talvez nós devêssemos ter virado à direita naquele cruzamento, velho

amigo— disseMaurice, com suasmãos tremendo nas rédeas conformemaisraios riscavam o céu. — Ou talvez eu deva parar de fingir que meu cavaloentendeoquefalo.Outradescargaderaioscaiu.Sóque,dessavez,elesquaseatingiramMaurice

e Philippe.Os dois escaparam por pouco,mas uma árvore nodosa e seca nãoteve a mesma sorte: o raio a partiu em duas. Conforme ela se separou, umametadecaiusobreaestradalogoàfrentedePhilippe.Aoutrametadecaiuparaolado.QuandoMauriceolhoudeperto,notouqueasegundametadehaviacaídobempróximoaumcaminhoestreito,antesoculto.

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Olhandoparaafrenteepara trás,Mauriceponderouoquefazer.Umaparteracional e razoável dele sabia que precisava encontrar um jeito de continuarseguindo pela estrada.Mas uma partemenor se deu conta de que isso jamaisaconteceria. Pelo menos, não naquela noite. Ele não era capaz de, sozinho,carregar a carroça e Philippe por cima da árvore caída. Com um suspiro, eleagarrouasrédeas,guiandoseucavalonadireçãodonovocaminho.— Vai ficar tudo bem, Philippe — disse ele quando o cavalo relinchou

apreensivo.Espero,acrescentoumentalmente.Conforme eles avançavam pelo caminho, Maurice ficou cada vez menos

confiantedequeascoisasacabariambem.Otempo,quejáestavatempestuoso,ficoupior…emaisestranho.Emborafosseverão,umanevefracaerodopiantecomeçou a cair, espalhando-se pelo seu casaco e embranquecendo a pelagemcinzasarapintadadePhilippe.Tudocaiuemumsilênciomisterioro.Oruídodostrovões desapareceu, e logo o único som ecoando pela mata aparentementedesertaeraoploc-plocdoscascosdePhilippe.Então,ouviu-seumuivopenetrante.Um instante depois, um enorme lobo branco surgiu do meio dos arbustos,

quaseatingindoacarroça.Mauricedeuumaolhada rápidaao redoreviuumaalcateiainteiradasbestascorrendoaoladodeles.—Vamos, Philippe!—gritou ele, estalando as rédeas contra o pescoço do

cavalo,comoseacriaturaprecisassedealgumencorajamento.—Depressa!O cavalo não perdeu tempo e disparou a pleno galope. Mas o movimento

brusco não combinava com a idade da carroça e sua degradação geral.Assimqueo cavalo começou a se afastar dos lobos, a carroça começou a ceder e osarreios,asesoltarem.Emquestãodesegundos,elasucumbiu.Mauricegritouquandoacarroçacaiunochãoeelefoiarremessadopeloar.

Eleouviuoruídodesuasqueridascaixinhasdemúsicaseespatifandonaquedaeosuivossufocantesdoslobos,esoubequeeraumaquestãodetempoatéqueeletambémcaísseefossedestruído.Maseisqueseucorpodespencandoparoude repente. Erguendo o olhar, viu que sua queda havia sido impedida por umgalhobaixo.Eleficoupenduradopelaroupa,sempoderfazernada.Livrando-se dos últimos pedaços de seus arreios de couro,Philippe deuum

coiceemumdosloboscomapatatraseira.Eleviuseudonopenduradoemumaárvoreecorreuparabaixodela.Mauricenãoperdeutempo.Esticouobraçoesesoltou do galho. Quando caiu sobre o dorso do cavalo, deu um grito de eia!,ordenandoqueoanimalavançasse.Conformeelescorriampelafloresta,MauriceseagarrouàcrinadePhilippe.

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Os lobos os seguiram, com os olhos furiosos e famintos e bocas abertas querevelavamosdentesafiados.Mauricepensoutervistoalgoderelancecomocantodoolho.Poderiahaver

algumtipodeestrutura…umrefúgioseguronestelugardesolado?Uminstantedepois, ele soube que não estava imaginando coisas: um gigantesco portãoornamentado, coberto de gelo, apareceu de repente adiante. Eles dispararamnaqueladireção,eoportãoseabriuligeiramente.Philippeoatravessou.Apontadeseurabomalhaviaacabadodepassarquandoosportõessefecharam.Atrásdeles, os uivos dos lobos se transformaram em ganidos medrosos, até quedesapareceramtotalmentequandoascriaturasseforam.SeMaurice não tivesse acabado de escapar com vida e por pouco de uma

alcateiadelobos,eleprovavelmenteparariaparaanalisarosumiçorepentinodosbichos,oumesmooestranhoportão,queseabriuefechousozinho.Eletambémse perguntaria como um castelo tão grande e adornado como aquele que seerguia à sua frente poderia surgir no meio do nada. Naquelas condições,entretanto, ele não parou para pensar no assunto. Emvez disso, avançou comPhilippenadireçãodoenormecasteloequemquerquemorasseali.

Mauricejátinhavistoconstruçõesgrandiosasantes.Afinal,elehaviapassadoamaior parte de sua vida em Paris, onde belas edificações dominavam ohorizonte. Ele testemunhara o talento artístico necessário para criar taismaravilhas arquitetônicas e, sendo também um artista, admirava aqueles quetransformavamsuasvisõesemrealidade.MasnadadoqueviraemParispoderiaprepará-loparaocasteloqueestavadiantedeleagora.Aestruturapareciadesafiaragravidade,comgrandes torresqueseerguiam

noaltodocéutempestuoso.Suaslateraiseramfeitasdepedrascinzaesculpidasde tal formaqueocastelopareciabrotardochão.OcaminhoemquePhilippetrotava era na verdade uma longa ponte que se estendia sobre um fossocongelado e terminava na frente da entrada colossal do castelo. À direita dasportasgigantes, haviaumagrande colunata.Para a surpresadeMaurice, belasroseiras cresciam atrás das colunas, apesar do estranho clima. Rosas-brancasbrotavamemtodaselas,tãoclarasquesedestacavamnaneve.Um breve arrepio demedo atingiuMaurice. Rosas crescendo na neve? Era

algosobrenatural.Tãorápidoquantoveio,asensaçãosefoiquandoelenotouograndeestábulodocastelo.Aportadaconstruçãoestavaabertaeumalumináriaestavaacesadoladodedentro.MauriceguiouPhilippe até lá, entãodesmontoudepressa eo conduziupara

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dentro do estábulo. Parou sobre a soleira e observou ao redor. Parecia umestábulonormalosuficiente.—Água,fenofresco—constatou,acariciandooanimal.—Parecequevocê

está acomodado, velho amigo. Descanse aqui. — Ele olhou de volta para ocastelo logo além e comentou: — Enquanto isso, vou cumprimentar nossoanfitrião.Eleseguiupelopátioesubiucomcuidadoosdegrausparaoquesupôstratar-

sedaportadeentradadocastelo.Oformigamentodemedovoltouconformeelemiravaumafileiradetochassuspensaspormãosesculpidasemferro.Asmãospareciam tão reais que Maurice não resistiu a alcançar uma delas e tocá-la,apenas para ter certeza. Amão continuou imóvel, mas as portas não. Elas seabriramderepentediantedele.—Olá?—chamouMaurice,estudandoointeriordocastelo.—Temalguém

emcasa?Suavozecooupelosaguãoenormeevazio.Mauricesópôdedistinguirosom

fraco de um cravo, vindo de algum lugar no fundo do castelo. Parecia quealguémestavaemcasa.Deixandoescaparumsuspironervoso,Mauriceentrou.— Perdão— disse ele enquanto entrava.—Não pretendo ser um intruso.

Precisomeabrigardatempestade.Olá?Aluzfracaatravessavaasjanelasaltasemaliluminavaointeriordocastelo.

Notando ummancebo,Maurice tirou seu chapéu e casaco e os pendurou parasecar.Semascamadasderoupagelada,Mauricesesentiuumpoucomelhor.Elecontinuou adentrando. Focado no que estava à sua frente, não reparou que omanceboganhouvidaassimqueelevirouascostas, sacudindoanevedesuasroupascomoumcãomolhadopelachuva.Maurice também acabou não reparando em um grande candelabro e um

relógiodemesaornamentadosentadosemumamesapróxima.Quandopassouporeles,ocandelabroseviroudevagar,observandoohomem.— O que você está fazendo?— sussurrou o relógio quando o candelabro

esticouopescoço.—Parecomisso!Imediatamente, o candelabro parou. Mas não foi por causa da ordem do

relógio. Ele parou porque Maurice escutou o sussurro baixo e se virou paraolhar.Por ummomento tenso,Maurice encarou o candelabro e o relógio. Ele se

aproximoudamesaemqueelesestavamepegouocandelabro.Eleo segurousob a luz fraca e o inspecionou. Virou-o de ponta-cabeça e então de volta à

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posição normal. Mexeu para a direita e para a esquerda. Então, deu-lhe unspetelecos. Pim, pim, pim. Parecendo satisfeito com a “candelabrosidade” doobjeto,eleobotoudevoltasobreamesaeprosseguiu.Portrásdele,ocandelabropassavaamãonacabeça,ignorandooolharde“eu

avisei”queorelógiolhelançava.Mauricecontinuouexplorandoocastelo.Umagrandeescadariaseerguiano

meiodoenormesaguão.Quasenapontadospés—oespaçovazioimensofaziaMaurice se sentir ainda mais intruso —, seguiu em frente contornando asescadas.O coração dele acelerou quando notou uma parede inteira coberta dearmas de todos os tipos, formatos e tamanhos. Quem quer que morasse outivessemoradoaligostavabastantedearmas.De repente,Maurice ouviu de novoo somdistante demúsica.Ele seguiu a

melodia lentaesuave,passandoporváriasportas fechadasantesdechegaratéuma porta dupla grande e dourada, que estava aberta. Através das imensassombras,Mauriceviuumsalãodeproporçõescolossais.Amúsicapareciavirdeumcravoempoeiradonocanto.Contudo,assimqueMauricedeuumpassoparadentro,osomparou.—Olá?—chamouMaurice,observandoocômodoagorasilencioso.Restos

dadecoraçãohaviamuitodeterioradaseespalhavampelolocal;aoapertarbemos olhos, ele conseguiu identificar uma janela restaurada às pressas.Mas nãohaviasinaldeninguémenenhummúsicosentadonobancodocravo.Mauricebalançouacabeça,perguntando-sesehaviaimaginadoamúsica.Tremendo,Maurice deu as costas para o salão. Além da música fantasma,

havia algo infinitamente triste sobre o lugar. Era um cômodo feito para adiversão, e agora não passava de um espaço de degradação e tristeza. Aocaminhar de volta ao saguão, ele não pôde evitar perguntar-se o que haviaacontecido ali para o salão ter aqueles ares. Talvez ele estivesse ouvindovestígiosdopassado.Mauriceacabavadeselivrardamelancoliaqueseabaterasobreelequando,pelocantodoolho,viualgoselançandoemsuadireção.Maurice recuou assustado, com a respiração presa na garganta. Expirou

quandopercebeuqueoquehaviavistoeraapenasopróprioreflexo.Umespelhoquebradoestavapenduradonaparede.Nocentro,haviaumgrandeburacocomlongaslascasdevidroaoredor,comosetivessesidogolpeadocomummurro.OburacodistorceuoreflexodeMaurice.Eleencarouseurosto,comaslinhasaoredordosolhosaprofundadaseonarizmovidodomeioparaaesquerda.Ergueuumamãoparatocarabochecha,comoseconferisseseerarealmenteapenasumreflexo,enãoumamudançarealemsuaaparência.

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Emmeio ao gesto, Maurice notou o som de chamas crepitando em algumlugar próximo.Viu uma porta aberta, por onde identificou uma luz receptiva.Olhouparaassuasmãos.Elasestavamtremendocomoscalafriosquevoltaramdiante da visão do espelho sinistro. Sem pensar duas vezes, ele seguiu para ocômodo.Paraoseudeleite,ofogoqueeleouviraestavaaltoerugiadentrodeumagrandelareiraornamentada.—Aaah,assimestámelhor—disseMaurice,dirigindo-separaa frentedas

chamasejuntandoasmãos.—Muitomelhor…Quandoafrentedeseucorpoestavaaquecidaosuficiente,eleseviroupara

esquentarascostas.Seusolhossearregalaram.Asalaemqueestavadavaparaoutrocômodo.Enessecômodohaviaumalongamesadejantarcobertaporumfartobanquete,deumaromadelicioso.OestômagodeMauriceroncou.Ele verificou se havia outros convidados. Não tendo encontrado ninguém,

deixou o calor do fogo para se aproximar da mesa. Seu estômago roncou denovo.Mauricesabiaqueprovavelmentenãodeveriafazerisso,masnãopôdeseconter.Elearrancouumnacodeumpãoecortouumpedaçoapetitosodequeijo.— Você se importa… Que eu apenas me sirva…? — lançou ele para o

anfitrião oculto do jantar. Sua boca estava cheia, por isso as palavras saíramtruncadas. Ele olhou para a mesa, esperando encontrar algo refrescante. Seusolhos pousaram sobre uma delicada xícara de chá de porcelana cheia de umlíquidoâmbar.Eleaestavalevandoatéabocaquando…—Mamãedissequeeunãodeveriamemexerporquepoderiaserassustador.Mauricequasederrubouaxícara.Elahaviaacabadodefalarcomele?—Desculpe.Maurice ganiu. Aparentemente, a xícara— a xícara feita de porcelana… a

xícaracheiadechá…axícaraquedeveriaserapenasumaxícara—haviafaladocomele.Duasvezes.Noinstanteseguinte,Mauricefezoquequalquerpessoafariaemseulugarao

deparar com uma xícara falante: ele se virou e correu para a porta principal.Pegando seu chapéu e seu casaco do mancebo, fez uma reverência, vencidopelosseusbonsmodosapesardomedoquepercorriaseucorpo.—Obrigado—gritouparaassombras.—Deverdade,malpossoagradecer

sua hospitalidade… e generosidade. — Então, cumpridos seus deveres decavalheiro, ele escapuliu pela porta e correu pela escuridão na direção doestábulo.Dentrodeumadasbaias,Philippemastigavaumbocadodefeno.Vendoseu

dono entrar, ele se ergueu nervoso em suas grandes patas. Maurice jogou as

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rédeasporcimadacabeçadePhilippeeoguiouparaforadoestábulo,ansiosoparasairdaquelecasteloesquisitodeumavezpor todas.Assimqueelevoltouaoportão, sua atenção sedetevenovamentenas colunas repletasde rosas.Elehavia prometido uma rosa para Bela. Por alguma razão, sentia que eraespecialmenteimportanteretornarcomopresentedessavez.Maurice fez um carinho tranquilizador no pescoço de Philippe e foi até o

jardim.Nemohomem,nemocavalonotaramaformaobscuraqueosmiravadecima da colunata quandoMaurice entrou. E nenhum deles tampouco notou adistintacaudaouasgarraspontiagudasdafigura.—Vocênãoévermelha—disseMaurice,avistandoumarosa-brancaperfeita

entreascentenasdeflores.—Masserve.—Eletirouumpequenocanivetedobolsoeposicionoualâminacontraocauledarosa.Naquele exato momento, Philippe relinchou e empinou. Maurice olhou ao

redor.Nãovendonada,disparouumolhardeindagaçãoparaocavaloevoltousua atenção à rosa.A lâmina atingiuo caule frágil.Comumpequeno corte, arosacaiunasmãosansiosasdeMaurice.—ElassãoMINHAS!Orugidoencobriuqualqueroutrosom,inclusiveodasbatidasaceleradasdo

coraçãodeMauriceedosrelinchosfrenéticosdePhilippe.Tremendo,Mauriceolhouparacimabemnahoraemqueafiguraobscurasaltoudotopodacolunata.Maurice tropeçoupara trásea rosacaiudesuamão.Seuspés lutaramparasefirmarnochãoescorregadio.Diantedele,asombra tomouforma.Eravagamentehumana,mas,conforme

se arrastou para mais perto, Maurice viu que se tratava de uma gigantescacriaturapeluda.Elaandavasobreaspatastraseirasevestiaummantoesvoaçanteecalçasazuis,masassemelhançashumanasterminavamaí.—Você entrou naminha casa, comeuminha comida— acusou a criatura,

caindosobreasquatropataserodeandoMaurice.Erguendoumapatacheiadegarras,elaapontouparaarosacaída.—Eéassimquemeagradece?Mauricetentouescaparmaisumavez,masnãoconseguiafirmarospés.Antes

mesmoquepudessegritar,acriaturaoagarroucomseusbraçosforteseoergueunoalto.—Seicomolidarcomladrões—rosnouela.Então,comumrugido,virou-se

eseguiunadireçãodocastelo,levandoMauricejunto.Atrásdele,Philipperelinchouaterrorizadoedisparou,lançando-seatravésdos

portõesdocasteloeparaalémdafloresta.

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CAPÍTULOV

OsolhaviaacabadodenascernohorizontequandoBelasaiuparadararefeiçãomatinalàsgalinhas.Ospássarospiavameumabrisagentilsopravaaolongodascolinas. Junto ao belo céu azul sem nuvens, era a imagem perfeita de umamanhã.EntãoBelaescutouumabufadafamiliar.Ela ficou surpresa ao se virar e ver Philippe parado ao lado do portão do

cercado.Ocorpodoanimalestava trêmuloeencharcadodesuor.Obrancodeseusolhosapareceuquando,nervoso,elecomeçouabateraspatasnochão.— Philippe — disse Bela, apressando-se para abrir o cercado para que o

cavalopudessebeberágua.Elaoacariciougentilmente.—Oqueestáfazendoaqui?Ondeestá…?—Amãodelaparounomeiodogesto.Entãocomeçouatremerquandoelaviuastirasrasgadasondeoarreiodeveriaestaramarrado.Osolhos de Bela se arregalaram ainda mais quando ela notou as rédeasestraçalhadas.Algohaviaacontecidocomseupai…algoruim.Semparar para pensar no que estava fazendo,Bela jogouuma sela sobre o

dorsodePhilippe,apertouaoredordoanimalecolocounovasrédeassobresuacabeça.Elasabiaqueerapedirdemaisaocavalo,maseleeraoúnicoquesabiaondeestavaMaurice.Elamontouoanimaleoguiouadiante.Belasabiaqueseupaiforaparaafloresta.Dissoelatinhacerteza;eraarota

que ele sempre pegava.Mas, assim quePhilippe deixou o interior familiar daaldeiaegalopouflorestaadentro,suasesperançasenfraqueceram.Aquelapartedaflorestaeraenorme.Encontrarumhomemnaquela imensidãopareciaquaseimpossível.—Rápido,Philippe—disseelaenquantoocavalorodeavaumaárvoreque

haviasidopartidaaomeio.—Leve-meatémeupai.A mata ficou ainda mais fechada e o céu, mais escuro, mas Philippe

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mergulhou destemido nas sombras. Bela examinou o chão e as laterais dopequeno caminho. De repente, avistou a carroça do pai. Estava no chão,tombada. As belas caixinhas de música estavam espalhadas, algumas tãoquebradas que não tinham conserto, outras umpoucomenos danificadas.Masnãohaviasinaldeseupai.Cutucando Philippe com os calcanhares, ela o apressou. O cavalo galopou

adiante,parecendoreconhecerocaminhoestreitoesinuoso.Belaquisacreditarqueaqueleeraotrajetoqueseupaihaviapercorrido.Para seu alívio, umportão surgiu alguns instantesdepois.Alémdasgrossas

barrasdeferro,elaavistouumgigantescocastelodepedra.Philipperelinchou.Seu pai tinha que estar ali, em algum lugar.Bela podia sentir.Ela desmontouapressadaeacariciouPhilippe.Sussurroupalavrasdeencorajamento,levando-oparadentrodosportões,entãopediuqueeleaguardasse.Elasemoveuparasubiros degraus de pedra,mas parou de repente. Bela não estava disposta a correrpara dentro do estranho castelo sem levar nada com que se defender.Vasculhandoaoredor,elaavistouumgalhogrossocaídonochão.Elaopegoueosegurouacimadacabeça,empunhando-ocomoumporrete.Sóentãoelasubiuatéasportasdafrente.Belanemsedeuaotrabalhodebaternaporta.Seoseupaiestivessemesmo

em algum lugar ali dentro, ela não queria perder tempo para achá-lo. Elaempurrou as portas e se viu em um saguão gigantesco. Algumas velaspenduradas nas paredes mal proviam luz suficiente para iluminar o espaço.Endireitandoosombros,Belarespiroufundoeadentrouocastelo.Enquanto caminhava até a grande escadaria, seus olhos se acostumaram à

escuridão. Ela ouviu sussurros abafados, mas não distinguiu ninguém. Duasvozes se erguerame se abaixaram, então ela ouviuuma frasepronunciada tãoclaramentecomoodia:—Maseseforela?Aquelaquevaiquebrarofeitiço?—Quem disse isso?—perguntouBela, observando na direção de onde as

vozespareciamvir.Nada.—Quemestáaí?Aindanada.Então,dealgumlugarnofundodocastelo,Belaouviuosominconfundívelde

alguém tossindo. Papai. Não importava quem estava sussurrando. Ela sóprecisavaencontraropai.Belaagarrouumcandelabrodeumamesapróximaesubiua longaescadaria.Quandochegouao fimdasescadas labirínticas,elase

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viuemumatorreque,paraoseupavor,erausadacomoprisão.Haviaumaportadegradesdeferrodooutroladodaescadaria.Asbarraseramtãogrossasqueeraimpossívelvercomclarezaatravésdelas,maselapôdeidentificaroformatodealguémsentadodoladodedentro.—Papai?—chamouBela.—Évocê?—Bela?— respondeuMaurice com uma voz abafada.—Como vocême

encontrou?Belaatravessoucorrendoatorresombriaecaiudejoelhosnafrentedaporta.

Uma pequena abertura deu-lhe espaço suficiente para enxergar seu pai. Eleestavacurvado,eseusombrostremiam.Quandoseusolhosseencontraram,elasoube imediatamentequeelenãoestavabem.Pousandoocandelabronochão,elacolocouamãoatravésdoburaco.Seusdedos se fecharamsobreamãodopai.—Oh,papai—disseela,abatidapela tristeza.—Suasmãosestãogeladas.

Precisamoslevá-loparacasa.Parasuasurpresa,Mauricediscordou:—Bela,vocêprecisairemboradaqui!—Quandoelaoignorouecomeçoua

usarogalhoparagolpearocadeadodeferro,eleficouaindamaisnervoso.—Pare!Elesvãoouvi-la!Belaparou.—Quemsãoeles?—perguntouela,inclinandoacabeça.Belaselembroudas

vozesfantasmagóricasqueouviraantes.—Quemfezissocomvocê?—Nãohátempoparaexplicar!—disseseupai.—Vocêtemqueir!Belabalançouacabeça,teimosa.—Eunãovoudeixá-lo!Mauricesufocouumgemido.Elesempreamaraatenacidadeeacoragemda

filha, mas naquele momento só queria que ela lhe obedecesse. Ele nãoconseguiria lidarcoma ideiadever suadocegarotinhaencontrandoacriaturaqueoprenderanaquelacela.—Bela, este castelo estávivo!—contouele, tentando fazê-la entender.—

Vocêprecisasairdaquiantesqueeleaencontre!—Ele?—repetiuBela.AntesqueMauricepudesseabrirabocapararesponder,umrugidoecooupela

torre.Belasevirourapidamente,erguendoogalhonoar.Maserainútil.Elanãopôde ver nada entre as sombras. Podia, no entanto, ouvir uma voz: uma vozprofunda e retumbante que parecia cercá-la e fazia seu coração bater maisrápido.

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—Quemévocê?—disseavoz.—Comoentrouaqui?—Vimbuscarmeupai—disseBela,tentandosoarmaiscorajosadoquese

sentia.—Liberte-o.Avozsooumaispertoquandosussurrouaspalavrasseguintes:—Seupaiéumladrão.Bela recuou como se tivesse sido atingida, e seu medo se transformou em

indignação.Comoavozousavaacusarseupaidaquelaforma?—Mentiroso!—gritouela.Seupaieraumhomemamávelebondoso.Eleera

umhomemgentilejamaisfarianadacomo…—Eleroubouumarosa!—urrouavoz.Conforme Bela virou a cabeça na direção do pai, seus olhos castanhos

cruzaramcomosdele.Aculpaainundouquandoelasedeucontadoquedeviateracontecido.—Eupediarosa—disseelaemumsuspiro.—Bela…—falouMauricecomtristeza,confirmandooqueelajásabia.Seu

paipegouarosaapenasporquefoiaúnicacoisaqueela lhehaviapedido.Eraporculpadela,esomentedela,queeleestavanaquelacela.—Soueuquemdeveserpunida,nãoele—afirmouBela,desviandoosolhos

deseupaiefalandocomafonteinvisíveldavoz.—Não!—gritouMauriceangustiado.—Elepretendememanterpresopara

sempre.Aparentemente,éissoqueaconteceporaquicomquempegaumaflor.Belafranziuatesta.—Prisãoperpétuaporcausadeumarosa?—questionouelaparaassombras,

esperandoqueseupaiestivesseenganado.—Eurecebiacondenaçãoeternaporcausadeumarosa.—Avozemergiuda

escuridão.—Estouapenasaprisionando-o.Houve uma pausa, como se o dono misterioso da voz estivesse distraído,

pensandoemalgumamemóriadistante.Entãoavozsooudenovo,maiscrueldoquenunca.—Agora…vocêaindaquerficarnolugardeseupai?Belaestavafartadeconversarcomovazio.Elaqueriavercomquemestava

negociandosuavida.—Mostre-se—exigiuela.Atrásdela,seupaimurmurou:—Não…—Ecambaleoudevoltaparasuacela.Avoznãorespondeu.Belapegouocandelabroqueestavaaoladodaprisãoe

oergueu.Porumbrevemomento,aluzacegou.Quando,porém,seusolhosse

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ajustaram,Belaengasgou.Paradadiantedelaestavaumacriaturaenorme,diferentedetodasqueBelajá

tinhavisto.Grandeschifresbrotavamdesuacabeça,eseumaxilarseprojetavaparaafrente.Ocorpotodoeracobertodepeloscastanho-douradosemúsculosrígidos. Foi díficil para Bela dizer o quão grandes eram as patas dianteirasdaquele ser, uma vez que estavam cerradas empunhos,mas as patas traseiraseram largas e compridas, com garras afiadas que brilhavam quando a luz asatingia. A palavra fera veio à sua mente enquanto ela a encarava. A criaturapareciatersaídodeumpesadelo:omonstroàespreitadoscontosdefadasqueelaleranainfância.QuandoBela ergueuosolhospara encontrar os daFera, ela se surpreendeu

com quão humanos eles eram… quão cheios de dor. Azuis como o céu aoamanhecer, eles a encararam de volta, atormentados. Ela sentiu uma estranhapontadadecompaixãopelagigantescacriatura.Então…— Escolha! — Os lábios da Fera se retraíram sobre suas presas afiadas

conformeelerosnouaordem.Todos os sentimentos além de medo e aversão desapareceram. Bela olhou

para trás, na direção do pai, que implorava para ela não fazer algoinconsequente.—Masvocêvaimorreraqui—disseela,comacertezaabsolutadequeeraa

verdade.—EUMANDEIESCOLHER!—rugiuaFeradenovo.—Não,Bela—disseMaurice,tentandoargumentarcomsuafilhaobstinada.

—Eunãopude salvar suamãe,masposso salvar você.Vá embora agora!—Mas suas palavras perderam força quando um acesso de tosse lhe atingiu. AtossecastigouseucorpojáenfraquecidoedeixouBeladecoraçãopartido.— Tudo bem, papai. Eu vou embora — disse Bela, tentando tranquilizar

Maurice para que a tosse parasse. Então ela se virou para a Fera.—Abra aporta. Eu preciso de umminuto a sós com ele.—Ela esperou que a enormecriatura fizesse algo. Não fez.— Por favor?— Ele continuou ignorando seupedido.Araivaqueimouseupeitomaisumavez,quenteeferoz.—Vocêétãodesumano que não deixará uma filha dar um beijo de despedida no pai? Aeternidadepodeesperarumminuto!OpeitodeBelaseergueuenquantoelaesperavaarespostadaFera.Porum

longoetensomomento,eleapenasaencaroucomolhosfriosecruéis,eelaseperguntou se havia ido longe demais. Ele deu um passo na direção dela,estendendosuapatagigante.Elafechouosolhosesepreparouparaaretaliação.

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Belaouviuumruídometálico.Aoabrirosolhos,viuqueaFerahaviaabertoaportadacela.Elegesticulouparaqueelaentrasse.—Quandoestaportasefechar—alertoueleassimqueelapassou—,nãose

abrirámais.Belanãohesitou.Correuparadentroeabraçouopai.—Sintomuito,papai—soluçouela.—Eudeveriateridocomvocê!Mauricecolocouasmãosnosombrosdafilhaegentilmenteaempurroupara

olhá-lanosolhos.—Não,aculpafoiminha—disseele,balançandoacabeça.Alcançouorosto

dela e apertou a bochechadeBela, como fazia quando ela era umagarotinha.Esse toque sempre a tranquilizara, mas agora apenas a deixou triste. Elecontinuou,comavozembargadadeemoção:—Escute,Bela.Esqueça-me.Eutiveminhavida…—Esquecervocê?—repetiuBela,desacreditada.—Comoeupoderia?Devo

avocêtudooquesou.AspalavrasdeBelapareceramatingirMauricecomoumsoconoestômago.

Eleolhouparaafilhacomoseavissepelaprimeiravez:nãoagarotinhadoceeespertaquecriousozinho,masamulhercorajosaefortequeelasetornara.Tudoissoerademaisparaovelhohomem.Aslágrimasinundaramseusolhos.— Já chega.—A voz ríspida da Fera golpeou pai e filha.— Ela deve ir

embora.BelaeMauriceseagarraramemumabraço.—Agora!—AvozdaFeraosseparou.—Euteamo,Bela—disseMaurice.—Nãotenhamedo.—Euteamo,papai.Nãoestoucommedo—disseBela,inclinando-separaa

frenteebeijando-ogentilmentenabochecha.Após fazer isso, elamovimentouseucorpodemodoqueficassedecostasparaaportadacelaecolocouasmãossobreosombrosdopai.Então,comumsussurrobaixo,elaacrescentou:—Eeuvouescapar.Prometo…AntesqueMauricepudessedetê-la,Belagirouocorpodepressa.Aforçado

movimentoempurrouseupaiatravésdaportaumsegundoantesdeaFerafechá-lacomviolência.Caindonochão,Mauricegritouaosedarcontadosacrifícioquesuafilhahaviaacabadodefazer.A realidade dos fatos pareceu atingir a Fera no mesmo instante. Enquanto

Mauriceficouobviamentedevastado,aFerapareciaconfusa.—Vocêtomouolugardele?—aFeraperguntouaBela.—Porquê?—Eleémeupai—respondeuelasemhesitar.

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—Eleéumtolo—retrucouaFera.—Evocêtambémé.—Semdizermaisnenhumapalavra,eleagarrouMauricepelacamisaecomeçouaarrastá-loparafora.Belasegurouosoluçoqueameaçouescapardesuagarganta.Elaobservouem

silêncioenquantoseupaieaFeradesapareciamescadaabaixo.Esperouatétercertezadequeestavasozinhae,apenasquandoaquietudeseapossoutotalmentedatorre,desabounochão.Conformeaslágrimascaíam,maisfriasepesadasqueaneveláfora,umpensamentoecoouemsuamente:oqueseriadelaagora?

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CAPÍTULOVI

A Fera estava cansada — cansada e perplexa. Não entendia como acaboumantendoumabela jovemcomoprisioneira enquantoopai dela, o verdadeiroladrão,estavaagoraacaminhodoconfortodeseular.Balançouacabeça.Não,nãofaziasentidonenhum.Na verdade, ele pensou ao abrir a porta da frente do castelo, havia muito,

muitotempoquenadafaziasentidoemsuavida.Disparando pelo saguão, a Fera quase trombou em Lumière e Horloge. O

candelabroeorelógioaguardavamansiosospeloseuretorno.—Mestre—começouLumière—,jáqueagarotavaificarconoscoporum

bomtempo…— E espero que “para sempre” tenha sido um exagero — intrometeu-se

Horloge,comseutomperfeitamenteeducadoesóbrio,comoeradeseesperardeummordomo.—Nósnãotemosequipesuficienteparaumaestadatãolonga…—AvozdelesumiuquandoaFeraseviroueoencarou.Semintimidar-se,Lumièreprosseguiu:—Sejaporumdiaoupelavidainteira—disseelesuavemente—,imagino

queváquererofereceraelaumquartomaisconfortável.—Estecastelointeiroéumaprisão—disseaFeradeformarude.Enquanto

falava,Chapeau,omancebo, tentoupegar seumanto.AFeraoempurrouparalongeecontinuouandandoemdireçãoàgrandeescadaria.Porcimadoombro,acrescentou:—Quediferençafazumacama?—Semesperarporumaresposta,eledesapareceunassombras.Horlogeesperouatétercertezadequeseumestrenãopoderiaouvi-loeainda

assimfaloubembaixinho:—Sim.Éumaprisãograçasavocê,vossaalteza.Eusimplesmenteadoroser

umrelógio.—Elesuspirouamargamente.Comoencarregadodacasa,Horloge

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sabia quedeveria ter uma imagem respeitável em todososmomentos.Mas àsvezes era difícil. Era duro lembrar que ele e todos os outros integrantes daequipeestavamnaqueleestadoporculpadomestre,queaindatinhamqueservir.—Eusabiaqueelenãoiriaconcordar.—Mas tecnicamente… ele não disse não— disse Lumière. Lançando um

sorriso dissimulado paraHorloge, o candelabro seguiu na direção das escadasquelevavamàprisãonatorre.Atrás dele, Horloge permanecia imóvel. Ele sabia o que Lumière tinha em

mente.Olacaioromânticoeratãofácildelerquantoumlivro.Elequerialibertara garota e colocá-la em algum lugarmais notório; tinha esperança de que elapudesseserajovemquequebrariaamaldiçãolançadasobreeles,amaldiçãoqueperduraradurante todosessesanosporumarazãoóbvia:aFeraeraumabesta,literalefigurativamente.Eamagiaqueafeiticeiraconjurouexigiaquealguémoamassemesmoassim.Horloge suspirou. Sabia que seu amigo tinha boas intenções. Já ele era

realista.Nãoimportavaondeagarotadescansariaacabeça,elajamaisamariaaFera. E, se Lumière fizesse o que pretendia e a tirasse da prisão, isso apenasenfureceria o mestre. Horloge se apressou até as escadas. Ele precisava deterLumièreantesqueocandelabrofizessealgodequetodossearrependeriam.Porém,Lumièrejáhaviaabertoaportadacela.—Perdoeminhaintrusão,mademoiselle—disseelenaescuridão—,maso

mestremeenviouparaacompanhá-laatéseuquarto.Bela estava sentada no chão com as bochechas molhadas de lágrimas.

OuvindoavozdeLumière,elaselevantou.—Meuquarto?—Elapareciaconfusa.—Maspenseique…— Pensou errado — interrompeu Lumière. — Ele é uma fera, não um

monstro.Um instante depois,Bela surgiu na porta da cela, segurando um banquinho

acimadesuacabeça.Elaolhouaoredorprocurandoaorigemdavoz.—Olá—disseLumière.Olhando para baixo, Bela viu Lumière acenando para ela com um de seus

braços.Elagritou.Então,comoseelefosseumratoqueaassustaranadespensa,BelaarremessouobanquinhocontraLumière,atirando-onochão.Asvelasdocandelabroseapagaram,mergulhandoatorrenaescuridão.Uma a uma, as três velas reacenderam. Enquanto Bela observava, as luzes

revelaramdoisolhoseumabocanometalestilizado.—Oquevocêé?—perguntouelafinalmente.

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—EumechamoLumière—respondeuocandelabro,lançandoparaBelaumsorrisoquesópoderiaserdescritocomomalicioso.—Evocêfala—observouBela.De repente, Horloge entrou gingando na torre. Ele estava sem fôlego por

causadalongasubidaeporummomentoapenasficouparado,comseupequenopeitoderelógioarfando.—Éclaroqueelefala—comentouele.—Dequeoutramaneiraelepoderia

secomunicar?—ElecolocouasmãosnosquadriseencarouLumière.—Comoencarregadodacasa,exijosaberoquevocêestáfazendo.—Émelhorpedirperdãodoquepermissão—respondeuLumièredemodo

enigmático.Enquanto a dupla discutia, Bela voltou devagar para a cela. Ela reapareceu

momentos depois com uma jarra de água nas mãos. Vendo a armapotencialmenteperigosa,Lumièreergueuumbraçodourado.—Ummomento,mademoiselle…—disseele.EntãopuxouHorlogeparaseu

lado.Eleabaixouotomdevozparaumsussurro.—Senósnãoquebrarmosamaldição antes que a últimapétala caia, nuncamais seremoshumanos.Oquevocê quer ser pelo resto da sua vida, Horloge: um homem ou um relógio demesa?Horlogefranziuatesta.Lumièretinharazão.Aindaassim…—Seelenospegar…—Nósseremosdiscretos—prometeuLumière.EleolhouparaHorlogecom

umaexpressãoquebeiravaodesespero.Enfim,orelógioassentiuminimamente.Lumièrenãoperdeutempo.Virando-se,eleolhoudevoltaparaBela.—Pronta,senhorita?—perguntou,fazendoumareverênciaeapontandoumadesuasvelasnadireçãodasaída.Bela olhou para a frente e para trás do candelabro e do relógio. Então ela

olhouparaacela.Emboranenhumadasopçõesfosseexatamentereconfortante,seguir os objetos domésticos falantes pelo menos significava sair da prisão.Respirandofundo,elase inclinouparabaixo,pegouLumièreeseguiuHorlogeparaforadatorre.

Enquanto o trio passava por um longo caminho de pedra, os olhos de Belamiravamtudoaoseu redor.Maselanãoconseguiaencontrarnenhumarotadefuga, não importava para onde olhasse. A mata que se estendia por trás docasteloeravastaeumpoucointimidadora.Muito embora, ela pensou enquanto olhava para seus acompanhantes, o

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castelo não a fizesse se sentir exatamente acolhida. Ela observou Lumière eHorlogee,pelaenésimavez,resistiuaoimpulsodevirarocandelabrodecabeçaparabaixoeprocurarpelascordasquedeveriamoestarmovendo.Emaisumavezelacontevesuavontadedeespiarporcimadoombroparatentarencontraroventríloquoquedeveria estar espreitandoemalgum lugarpróximo,projetandosuavoznosdoisobjetosqueelatinhacertezadesereminanimados.Emambososcasos,elasecontrolouporquesabiaquenãodariacerto.Dealgumaforma,ocandelabroeorelógioestavamvivos.—Não se deixe levar pela primeira impressão— disse Lumière, como se

adivinhasseseuspensamentos.—Esperoquevocênãoestejamuitoassustada.— Assustada? — repetiu Bela, com um sorriso sarcástico. — Por que eu

estariaassustada?Estoufalandocomumavela.Lumièrepareceuhorrorizado.—Can-de-la-bro—corrigiuele,pronunciandocadasílaba.—Adiferençaé

enorme.Masesperamosqueaproveitesuaestadaaqui.Ocasteloéseularagora,entãofiqueàvontadeparairaondequiser…—Excetoàalaoeste.BelaeLumièreseviraramaomesmotempoparaencararorelógio.Enquanto

Lumièredisparouumolhardotipo“vocêpoderiaficarcalado,porfavor?”,Belao fitou com curiosidade. Ela abriu a boca para perguntar onde ficava a alaproibida,masfoiinterrompidaporHorloge,quetentoudisfarçar,acrescentando:—Quenósnãotemos.Eratarde.Belaqueriasabermais.—Porquê?Oquehánaalaoeste?— Hum… — gaguejou Lumière, com as chamas de suas velas piscando

nervosamente.—Nada.Apenasumdepósito.Bela ergueu uma sobrancelha, claramente duvidando da explicação do

candelabro.ElaergueuseubraçoparaqueLumièreiluminasseumajanelacurvade pedra, revelando uma torre que se erguia na parte oeste do castelo. A luaapareceu no horizonte, lançando uma luz sinistra na construção. Bela poderiajurar que tinha visto a sombra da Fera na luz branca e ouvido um gritoangustiado.Estremecendo,abaixouocandelabro.—Poraqui,porfavor—disseLumière,ansiosoparaseguiremfrente.Com uma última olhada para trás, Bela suspirou e voltou a seguirHorloge

enquanto ele andava se balançando por um corredor e depois outro, até parardiantedeumagrandeporta.— Seja bem-vinda ao seu novo lar — apresentou Lumière em um tom

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grandioso.AmãodeBelapairousobreamaçanetadaporta.Umapartedelaqueriagirá-

la.Aoutraestavaaterrorizada.Elanãofazia ideiadoqueesperar.Seoquartofosse como todo o resto no castelo, com camadas de poeira, retratos tristes eopressores e mobília decadente, ela teria que insistir para que a levassem devoltaàtorre.Elarespiroufundo,girouamaçanetaeabriuaporta.Aluzdastrêsvelasde

Lumière encheu o espaço. Bela engasgou. Ela estava olhando para um quartoverdadeiramente deslumbrante, muito mais elegante que qualquer um que elativessevistonavidarealouimaginadoemsuashistórias.Comoemumsonho,elaentrouapassoslentos.Seusolhossedeleitavamcom

cada detalhe esplêndido do cômodo. Havia um armário branco e douradoencostadoemumadasparedes,emoutraestavaumalindaescrivaninha.Juntoaela, havia uma cadeira revestida de um rico veludo, e em um canto da mesaempilhavam-se papéis perfeitamente brancos. Oposta a uma série de grandesjanelas panorâmicas cobertas por grossas cortinas de cetim, estava uma camacomdosselqueocupavaquaseumterçodoquarto.E,encostadaemumcanto,havia uma penteadeira graciosa e delicada, com um espelho emoldurado emouro. Até o teto do quarto era de tirar o fôlego: nuvens brancas haviam sidopintadasemumcéuazulperfeito,comdetalhestãoreaisqueBelapôdejurarquetinhavistoasnuvenssemoverem.—É… lindo— disse ela por fim, quando se deu conta de que Lumière e

Horlogeaestavamolhando,ansiososporumaresposta.Lumière abriu um largo sorriso enquanto Horloge assentiu com uma

apreciaçãomaiscontida.—Éclaro.Omestrequeriaquevocê tivesseomelhorquartodocastelo—

comentou Lumière, dirigindo-se à cama e saltando sobre ela. Uma nuvem depoeiraemergiunoar.—Oh,céus!Nãoestávamosesperandovisitas.Comosetivesserecebidoumsinal,umespanadordepóinvadiuocômodo.Os

olhos de Bela se arregalaram quando o objeto se moveu rapidamente desuperfícieemsuperfície,limpandotudoatéqueestivessebrilhante.Aoterminar,oespanadorsecurvounadireçãodeBela.— Encantada, mademoiselle! Não se preocupe, vou deixar este quarto

impecável em um piscar de olhos.— Então se virou e pulou nos braços deLumièreedisse,comumarisadinha:—Esteseuplanoé…perigoso.Foi a vez de Bela abafar uma risadinha quando Lumière remexeu as

sobrancelhaserespondeu:

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—Eucorreriaqualquerriscoparabeijarvocêdenovo,Plumette…—Eleseinclinouparapertodelaefranziuoslábios.Plumetteoimpediu.—Não,meu amor— disse ela, com a voz séria.—Você jáme queimou

antes.Precisamosserfortes.—Comopossoserfortesevocêmedeixatãofraco?—replicouLumière.Beladesviouosolhosdopar românticoevoltousuaatençãoparaosoutros

itensnoquarto.—Tudoaquiestávivo?—perguntouela,pegandoumaescova.—Olá,qual

oseunome?HorlogeolhouparaBelaesacudiuacabeça.— Ahn… isso é uma escova de cabelo — disse ele, como se estivesse

assinalandooóbvio.Belaabriuabocaparaperguntarquaiseramexatamenteasregrasparaobjetos

encantadosquando, de repente, um ronco alto soou atrás dela.Virando-se, elasoltouumgemidoquandoasgavetasdoarmárioseabriramefecharamsozinhasnoritmodoronco.—Não se assuste,mademoiselle— tranquilizouLumière.—Este é apenas

seuguarda-roupa.ConheçaMadamedeGarderobe,umagrandecantora.Oguarda-roupasoltouumlongoealtobocejo.— Ela é ainda melhor na arte de dormir — acrescentou Horloge ao se

aproximarecutucaroguarda-roupa.Comumgrunhido,MadamedeGarderobeacordou.Elapiscouparadespertar

edeuumgritinhodesurpresaquandonotousuaplateia.— Horloge!— exclamou ela de forma exageradamente dramática.— Seu

despertadorimportuno.Umadivaprecisadeseusonodebeleza!As molas de Horloge se apertaram diante do insulto e sua boca se abriu,

pronta para repreender Madame de Garderobe, mas Lumière não lhe deu achance.Eleseintrometeuantesqueorelógiopudessedizerumapalavra.—Claroqueprecisa,madame—dissecomsuavozmaisbranda.—Perdoe-

nos,mastemosalguémparavocêvestir.Avistando Bela pela primeira vez, Madame de Garderobe soltou um grito

animado.— Finalmente!— disse ela.—Umamulher!— Então, como se estivesse

fazendoum inventário,MadamedeGarderobe tomounotadeBela.—Lindosolhos.Rostoaltivo.Umamanequimperfeita.Sim!Vouencontraralgodignodeumaprincesa.—Asgavetasdafrentedoguarda-roupaseabriramefecharamno

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queBelaimaginouserumaformadebaterpalmas.—Maseunãosouumaprincesa—disseBela.— Bobagem! — Madame de Garderobe descartou o protesto de Bela. —

Agoravamosver oque eu tenhonasminhasgavetas.—Abrindo agavetadecima, ela gritou quando algumas traças voaram para fora e falou: — Queconstrangedor!ParaasurpresadeBela,ambososladosdoguarda-roupapassaramdebranco

paraumtomrosasuave.Omóvelestavacorando!Antes que Bela pudesse perguntar como algo assim era possível — como

qualquercoisadaquelaserapossível,aliás—,MadamedeGarderobecomeçouapuxar coisas desorganizadas de suas gavetas e cabides. Uma grande crinolinapassoupelacabeçadeBela,seguidaporpelomenosquatrovestidosdiferentes,cortadosaquiealipeloguarda-roupaparaseremusadoscomotecidos.Bela iasendoviradaerodopiadaenquantooguarda-roupamontavaumtraje.QuandoMadamedeGarderobeparoupararespirar,Belaespiouseureflexono

espelho do outro lado do quarto. Para seu pavor, ela viu que o guarda-roupahaviamesmocriadoalgocomoquetinhaemsuasgavetas.MasoresultadoeraacombinaçãomaisespalhafatosaqueBela jávira.A roupapareciaengoli-laemtons de azul, rosa e amarelo. Flagrando a reação de Lumière, Bela viu que ocandelabro estava igualmente assombrado. Mas tanto ele quanto Horlogerecuaram na direção da porta. Eles sabiam que não deveriam importunarMadamedeGarderobeduranteumadesuascriações.— De qualquer forma — disse Lumière —, se você precisar de algo, os

empregadosaatenderão.Estamosaoseudispor.Aurevoir!—Apósumalongareverência, ele agarrou Horloge e deslizou para fora do cômodo. Plumette osseguiu logo depois. Então, a porta se fechou, deixando Bela sozinha comMadamedeGarderobe.Bela não hesitou.Ela sentia que, se quisesse respostas, a diva em formade

guarda-roupaseriaoobjetoindicadoparaoferecê-las.Virando-separaMadamedeGarderobe, ela fez a pergunta que a intrigava desde que Lumière havia serevelado.—Comovocêsvierampararaqui?Comoelasuspeitava,osolhosdeMadamedeGarderobeseacenderamdiante

da oportunidade de fofocar. Apoiando seu grande corpo na cama, ela foiabaixandoavozatévirarumsussurroconspiratório.— Tudo começou com uma noite tempestuosa e um pequeno príncipe

mimado…—Mas a voz deMadame deGarderobe desapareceu entre roncos

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suavesquandoosonoavenceu.Bela suspirou.Pareciaqueelanãoconseguiria respostas, afinal.Pelomenos

nãotãocedo.Belaselivroudepressadovestidodesastrosoeolhouaoredordoquarto.Estavasozinha,comsuaúnicaguardiãdormindoprofundamente.Agoraerahoradetentarumafuga.Aúnicadúvidaera:como?

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CAPÍTULOVII

Gaston ainda não podia acreditar. Ele havia sido rejeitado. Friamente,categoricamente,completamente rejeitado.Sentadoemsuacadeira favoritaemseucantopreferidona tavernadaaldeia—bemembaixodaparedequeexibiatodasasgalhadasetroféusqueelehaviaganhado—,Gastonnãoconseguiaselivrarda sensação ruimnabocadoestômago.NemmesmoLeFou, sentadoaoseu lado e lhe dizendo o quanto ele era fantástico, dissolvia a tristeza que elesentia.—Imagine,LeFou—disseGaston,dandoumgrandegoleemsuabebida.Ele

gesticuloucomasmãos.—Umacabanarústica.Minhaúltimacaçadaassandoao fogo. Crianças adoráveis correndo à nossa volta enquanto minha amadamassageiameuspéscansados.— Ooh! O que está assando ao fogo? — perguntou LeFou, sempre um

espectador cativo e interessado. — São os pequenos detalhes que realmentecompõemaimagem.Gaston disparou um olhar para o pequeno homem por ter interrompido seu

monólogo.—Eaí,oqueBeladiz?—perguntouobelohomem,comaimagemjáclarao

bastanteemsuamente.—“Nuncamecasareicomvocê,Gaston.”—Elebateuocoponamesaemumacessoderaiva.—Existemoutrasgarotas—ressaltouLeFou.Eleacenouparatrás,paraum

grupodemulheres.Gastonmalolhouparaelas,masfoiosuficienteparacausarrisadinhas.LeFou estava certo. Gaston poderia escolher qualquer uma das garotas da

aldeia…oudapróximaaldeia.Oudequalqueraldeia,apropósito.Masnãoeraesseoponto.Elenãoquerianenhumadaquelasmulheres.—Umgrandecaçadornãodesperdiça seu tempocomcoelhos—disse ele.

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Suaspalavras ecoarampela taverna, arrancando sorrisosde flerte do rostodasgarotas.Afundadoemsuacadeira,Gastonbrincavadistraídocomumpedaçodelinha

solta da almofada surrada. LeFou tentava animá-lo, mas ele mal prestavaatenção.Osargumentosdoparceiro—dequeeleeraomaiscorajoso,maisforteemais admiradohomemdaaldeia—estavambatidos.Gaston jáouvira todosantes.E, claro, ele sabia que era tudo verdade.Ele era excepcional. Ele era oheróidaaldeia,omelhorcaçadorquehavia;erabomatémesmocomdecoração— galhadas davam um toque especial aos cômodos, em sua opinião —, eninguémduvidavaqueeleeraomaioremaisbonitodoshomens.Mas de que adianta tudo isso ser verdade, pensou Gaston, se Bela não

reconhece?Naquele instante, a porta da taverna se abriu.Maurice apareceu na entrada.

Seusolhosestavamferozese suas roupas, rasgadas.Ele se segurounobatentequandoumacessodetosseabalouseucorpo.—Socorro!—disse ele assim que a tosse acalmou.—Alguémme ajude!

Temosqueir…Nãohátempoaperder…Enquantofalava,Mauricesemoveuparadentrodataverna,buscandoocalor

do fogo que rugia na lareira. Vendo como o homem estava desequilibrado, odonodatavernatentouacalmá-lo:—Ei,ei,ei.Devagaraí,Maurice.Mauricebalançouacabeça.—ElepegouBela…Trancou-aemumamasmorra!Gastonseendireitounacadeira,interessado.—Quemapegou?—perguntouodonodataverna.—Umafera!—respondeuMaurice.—Umaferamonstruosaehorrível!Chocadoscomaspalavrasdohomem,todosnolocalficaramemsilêncio—

porummomento.EntãoJean,ooleiro,ergueusuacaneca.— O que você colocou nesse negócio?— perguntou ele com um sorriso,

rompendoosilêncio.Odonodatavernabalançouacabeça.—Nãoolheparamim—retrucouele.—Eleacaboudechegaraqui.Na outra ponta do balcão, um mendigo que não havia acabado de chegar

levantouoolhar.OhomemestavaaindamaisesfarrapadodoqueMaurice,comavistaembaçadaeorostoabatido.ElerelanceouparaMauriceeacenou,comoseestivessemjuntosnessa.—Oqueninguémfalaéquehaviaumcasteloeninguémconsegueselembrar

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dele!—disseomendigo.Risadasencheramataverna.—Não!—disseMaurice.—Eleestácerto!Avidadaminhafilhaestáem

perigo,porquevocêsestãorindo?Nãoéumapiada!Ocasteloestáescondidonafloresta.Ejáéinvernoporlá!— Inverno em junho?— perguntou Jean, rindo.— O velhoMaurice está

louco.—Porfavor,escutem!—implorouMaurice,observandoosrostosapáticosao

redor.—AFeraéreal.Ninguémvaimeajudar?Encostando-seemsuacadeira,Gastonpermaneceuemsilêncio.OpaideBela

era um homem estranho. Sempre fora. Mas, enquanto o homem continuavaimplorando por ajuda, uma ideia começou a brotar namente deGaston.Umaideiaquepoderialhedarexatamenteoquequeriaefazerdele(novamente)umherói.Rapidamente,Gastonselevantou.—Euvouajudá-lo,Maurice—eledisse,solene.—Vai?—perguntouLeFou,perplexocomagenerosidaderepentinadeseu

amigo.Gaston se virou, piscou para LeFou e moveu os lábios em um “apenas

observe”silencioso.Entãosepronunciou:— Todos vocês! Parem imediatamente de zombar deste homem! — No

mesmoinstante,asrisadasseforam.Gastonassentiu.Eleeramesmoohomemmaisrespeitadodaaldeia.Mauricecorreuatéeleecaiudejoelhos.—Obrigado,capitão—disseele,grato.—Obrigado.—Nãomeagradeça,Maurice—retrucouGaston,puxandooidosoparaficar

depé.—Leve-nosatéaFera.Aindamurmurando seusagradecimentos,Maurice saiuda taverna.Gastone

LeFou trocaram olhares enquanto o seguiam. Os outros clientes, vendo oadmirávelGastonemumamissão,tambémosacompanharam.Logohaviaumaparada marchando pela aldeia. A comoção convocou mais aldeões, que sejuntaramávidosaogrupomesmosemnemsaberoqueestavaacontecendo.— Entendi o que você está fazendo — sussurrou LeFou enquanto

caminhavam.Gaston assentiu.Ele sabia queLeFou desvendaria seu plano, como sempre.

Agora Gaston só tinha que assegurar que Maurice não descobrisse suasintençõesantesquetudosedesdobrasse.Seeleestivessecerto—enormalmente

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estava—,haviaacabadodeencontrarumamaneiradefazercomqueBelaenfimsecasassecomele…

DentrodocastelodaFera,ascoisasestavamumpoucomaiscalmasdoquenaaldeia…masnem tanto.DesdeachegadadeBela, acriadagemestavaemumcompleto rebuliço. Não era comum para eles ter uma visita no castelo. Naverdade, ninguémvisitava o local desde aquela noite fatídica.Determinados afazercomqueBelasesentisseemcasa—naesperançadequetalvezumdiaocastelopudessedefatoseroseular—,cadamembrodaequipeestavafazendosuaparteparaquetudosaísseperfeito,acomeçarpelojantar.A equipe da cozinha se apressou com entusiasmo. Liderados por madame

Samovar — um bule sensato com um coração de ouro —, uma refeiçãorequintadaestavasendopreparadaparaomestreeBela.Sentada sobre seu carrinho de servir chá, madame Samovar assistiu com

prazeràcenadelouçasepratosquenãoeramusadoshaviamuitotemposaindodesuasgavetasearmários.Atrásdela,seufilhoZipsaltitavaempolgado.—Mamãe—disseapequenaxícara.—Háumagarotanocastelo!—Sim,Zip—dissemadameSamovargentilmente.—Nóssabemos.— Ela é bonita? Ela é legal? — perguntou Zip, pulando em seu pires e

usando-oparadarvoltasnamãe.—Quetipodecháelagosta?Deervas?Chá-preto?Decamomila?—Vamosdescobrirembreve—respondeumadameSamovar.—Agorase

acalmeantesquevocêquebresuahaste!Naquelemomento,LumièreeHorlogeentraram.OcandelabrofoiatéChef,o

grandefogão—comdireitoabocaselétricaseagás,coifaefornos—nomeiodacozinha.—Estaé suagrandenoite—disseeleseriamente.—Contamoscomvocê,

monsieurChef.Ofogãoestufouopeitoorgulhoso.—Finalmente!—exclamouele.Suavoz soavaenferrujada, comosenãoa

usassehaviaumbomtempo.—Umachancedecozinhardenovo.Vocêsabeoquetenhoquefazerparaagradaropaladardeumabesta?Veadoaotártarocomchifres todo santo dia! Quem come frango de sobremesa, eu lhe pergunto?Quem?—Quandoparoupararecuperarofôlego,aslateraisdeCheftremiamdeindignação.Cientedequeeramelhorapaziguarofogãodetemperamentoforte,Lumière

assentiudeformasimpática.

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—Estanoite,vocêfaráumsuflê!—LUMIÈRE!OrugidodaFeraecooupelacozinha:sinaldequeomestreestavaacaminho.

Imediatamente, as chamas de Lumière diminuíram. Horloge tremeu. AmbossabiamqueaFeranãoestavacontente.—Só…deixequeeufalocomele—Lumièrepediuaomordomo.Horloge

eramuitobomemcoordenaroserviçodoméstico(einformarashoras),maseraterrívelemescolheracoisacertaparadizer.Eleeraconhecidoporsempretentarselivrardaculpaaqualquercusto.SeriamelhorparatodosseLumièretratassecomaFera.Pelomenos,eleesperavaquesim.Logo depois, as portas da cozinha se escancararam e a Fera apareceu. Seu

peito estremecia e seus olhos azuis pareceram furiosos ao observar a equipereunida.Elefarejouoartomadopelocheirodeliciosodacomidaeseuolharsetornouaindamaisraivoso.—Vocêsestãofazendoojantarparaela?—rosnouele.—Achamos que você poderia apreciar a companhia— respondeuLumière

comsuavozmaisdiplomática.Eleabriuabocaparaexplicarasvantagensdejantar acompanhado quando Horloge se intrometeu. Lumière disparou-lhe umolhar,implorandoqueficassequieto,maseraimpossívelimpedirorelógio.—Mestre—disseHorloge, tentandosalvar suaspróprias rodasepinos.—

Posso garantir que não participei deste plano fracassado. Preparar um jantar,criarumvestidoparaela,dar-lheumasuítenaalaleste…— Vocês deram um quarto para ela? — O berro da Fera foi poderoso o

suficienteparaapagarasvelasdeLumière.Horlogevoltouatrás.—Eu…eu…bem—gaguejou ele.—Você disse…hum…que o castelo

inteiroeraumaprisão,entãoquediferençafariaumacama…Vendoseuamigoemapuros,Lumièreseenvolveu.—É verdade,mestre— apontou ele.— E, se a garota é a escolhida para

quebrarofeitiço,talvezvocêpossacomeçaroferecendoumjantarparaencantá-la.—Eleseviroueconcedeuoméritoaoseuamigo.—Ótimoplano,Horloge.AFeraestreitouosolhos.Entãocomeçouaandarparaláeparacá.Porfim,

olhouparaLumièreeHorloge.—Éumaideiaridícula—disse.—Encantaraprisioneira?—Você precisa tentar,mestre—disseLumière.Ele respirou fundo. Sabia

queoqueestavaprestesadizernãoseriabemrecebidopeloamo.Aindaassim,porém, precisava ser dito.—A cada dia que passa, nós nos tornamosmenos

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humanos.Atrás dele, a equipe se agitou, colaborando commais incentivos.Ele ouviu

alguém dizer “Você consegue” enquanto outro acrescentava um “Por favor”.Nessasvozes,Lumièreouviuomesmodesesperoquesentia.Odestinodeseumestreeraodestinodetodos,emboraapenasaFerapudessemudá-lo.—Elaéfilhadeumladrãoqualquer—ressaltouaFera,ignorandooapelode

seusservos.—Quetipodepessoaachaqueelaé?MadameSamovar,queatéentãoficaraemsilêncio,sepronunciou:—Oh,vocênãopodejulgaraspessoaspelospaisquetêm,nãoémesmo?Elanãoprecisavadizermaisnada; suadeclaraçãoeraclaraosuficiente.Ao

redor, todos se encolheram, esperando pela retaliação do mestre. Mas, parasurpresageral,elenãodissenada.AFeraparouporummomentocomosolhosfixos emmadameSamovar.Ela sabiamelhorquequalquer umquãoprofundaeraaferidaqueopaidomestrehaviacausadoaofilho.Com um grunhido resignado, a Fera se virou e deixou a cozinha. Lumière,

Horloge e madame Samovar trocaram olhares. Então correram atrás de seumestre,poisnãopodiamdeixá-loconvidaragarotaparajantardojeitodele.

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CAPÍTULOVIII

A Fera parou diante da porta do quarto que agora, contra a sua vontade,pertencia aBela.Ao lado dele, sua equipe aguardava, pronta para ajudar casofosse necessário. Ele olhou para todos e então, levantando uma grande pata,bateuàporta.Duasvezes.—Vocêvaijantarcomigo!—disseele,semesperarumarespostadeBela.—

Issonãoéumpedido!Emseucarrinhodeservir,madameSamovardeuumatossida.—Maisgentileza,mestre—aconselhouela.—Lembre-se,agarotaperdeuo

paiealiberdadenomesmodia.—Sim—concordouLumière.—Apobrezinhadeveestarmorrendodemedo

ládentro.A Fera suspirou. Ele estava ficando farto da repentina maré de conselhos.

Mesmoassim,bateunovamente.Dessavez,veioumaresposta.—Sóumminuto.—AvozdeBelasaíaabafadaatravésdaportapesada.— Está vendo— disse Lumière, alegre.— Aí está ela! Agora lembre-se,

mestre:sejagentil…—Cortês…—acrescentoumadameSamovar.—Charmoso!—gorjeouPlumette.— E, quando ela abrir a porta — finalizou Lumière —, sorria de forma

educadaecativante.Vamoslá,mostreessesorriso.Mostrar o sorriso a ele?, a Fera repetiu para si. Lumière havia perdido a

cabeça?Elenãosorriahaviaanos.Nuncativerarazãoparatal.EleiacomeçaradiscutirquandoumolhardemadameSamovaro impediu.Comrelutância, eletensionouosmúsculosdorosto,puxandooslábiosacimadosdentes.Emuníssono,aequipedeuumpassoparatrás,horrorizada.

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—Ahnnn…menosdentes—sugeriuLumière.AFeranãoprecisavadeumespelhoparasaberquesuaprimeiratentativade

sorrirresultounacaretamaismedonhaquealguémjávira.Tentoudenovo.—Maisdentes?—propôsPlumette.AFerasuspirou.Aindaestavahorrendo,supôs.Umavezmais,eleajustouo

sorriso.—Dentesdiferentes?—acrescentouHorloge.—Quetalsemdentes?—aconselhoumadameSamovar.AFera lançouumolhardeaviso.Elechegaraao limite.Todosqueriamque

eleconvidasseBelaparajantar.Tudobem,assimofaria.Maselenãoiriaperdermaisumminutotentandosorrir.Bateunaportadenovo,emumanovatentativa.—Vocêquerjantarcomigo?Destavez,arespostadeBelafoirápida.—Vocêmefezprisioneiraeagoraestámeconvidandopara jantar?—Sua

voz soavamais perto agora, como se ela estivesse encostadadooutro ladodaporta.—Ficoulouco?ConformeaspalavrasdeBela eramassimiladaspelaFera, sua expressão se

tornousombria.Suaspatascerrarameseuslábiosserepuxaramemumrosnado.— Acalme-se, mestre — disse madame Samovar em seu tom mais

tranquilizador.ElasabiaqueaFeraestavaprestesaperderocontrole.—Maselameenfurece—respondeuaFeraentreosdentes.—Elaédifícil.MadameSamovartentounãorirdaironiaqueeraseumestrechamandoBela

dedifícil.Elaprocurouargumentarcomele:—Entãofacilitevocê.Respirando fundo, a Fera se preparou para tentarmais uma vez. Seu corpo

tremeucomoesforçoeseumaxilartravouagressivamente,maselesecontrolouparafalarnotommaisgentilpossível.—Seriaumgrandeprazertersuacompanhianojantar.ArespostadeBelafoiimediata.—Seriaumgrandeprazerparamim—disseelaatravésdaporta—sevocê

medeixasseempaz.Foiagota-d’água.AssobrancelhasdaFerasecontorceram.Suacaudaaçoitou

oar.Asgarrasficaramexpostase,quandoaequiperecuou,eleergueuapataeesmurrouaportacomtodaaforça.Ocorredorestremeceu.—Mandeivocêvirjantar!—rugiuele,pondofimatodaagentileza.Belanãoseintimidouegolpeouooutroladodaporta.—Eeudissenão!Prefiropassarfomeaterdejantarcomvocêumdia!

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—Comoquiser.Váemfrenteemorradefome!—gritouaFeradevolta.Eleencarou seus servos.Erameles os responsáveis pormetê-lonaquela confusão.—Seelanãocomercomigo,entãonãovaicomernada!—Mestre,não!—protestouLumière.—Mostreaelaoseuverdadeiroeu.— Este é o meu eu verdadeiro — disse a Fera. Sem mais palavras, ele

ricocheteou a cauda e seguiu para seus aposentos. Podia ouvir a equipemurmurandoentre si, comdecepçãonavoz.Maselenão se importava.Oqueelesesperavam?QueBelaseemocionassecomaideiadejantarcomele?Umafera?Eleseramumbandodetolosseesperavamqueissoacontecesse.Eelefoiumtoloportentar.Abrindo a porta para a ala oeste, ele foi até uma pequenamesa próximo à

janela.Sobre ela, haviaumespelhodemãoeuma redomadevidro, contendoumaúnicarosaqueflutuavamagicamente.AFerapegouoespelhoedeuumaordem:—Mostre-meagarota!Uma espiral mágica rodopiou na superfície do espelho e gradualmente

transformou seu reflexo até revelar a imagem de Bela. Ela estava sentada nochão,comascostasapoiadascontraaportadoquartoeumaexpressãodeterrornorosto.Lentamente,eleabaixouoespelho.Belaestavacommedodaferadiantedela

— a fera que ele poderia ser para sempre. Seus olhos se fixaram na rosaencantadae ele suspirou,observandoenquantooutrapétala caía sobreamesa.Eraapenasumaquestãodetempoatéqueaúltimapétalacaíssee,quandoissoacontecesse…AFeraestremeceueabaixouacabeça.Quandoissoacontecesse,qualqueresperançaestariaperdida.EseareaçãodeBelaindicavaalgo,elehaviaacabadodedestruirumadesuaspoucaschancesdepôrumfimàmaldição.

Tenhoquesairdaqui,pensouBelaenquantosecolocavadepé.AFeraeraummonstro. Seu comportamento até então já havia provado o suficiente. Se nãoescapasse agora, ela correria o risco de ser prisioneira dele para sempre. Seucorpoestremeceudiantedaideiaaterrorizante.Andandoatéajanela,elaolhouparafora.Depoisdeserdeixadasozinhacom

umguarda-roupanarcolépticocomoseuúnicoguardião,elanãoperdeu tempoem colocar um plano de fuga em ação. Rasgando o vestido medonho queMadamedeGarderobefizera,Belausouotecidoparaimprovisarumacordaeapendurounajanela.Apontadacordaestavasuspensaacercadeseismetrosdochão.Nãoeraperfeito,masserviria.

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Ela havia acabado de respirar fundo e agarrar a corda quando…Toc! Toc!Toc!—Eudisseparamedeixarempaz!—gritouela.Parasuasurpresa,nãofoiavozprofundaelamuriantedaFeraquerespondeu,

masumavozgentil,suaveepolida.—Nãosepreocupe,querida—disseela.—Nãoéomestre.Soueu,madame

Samovar.—Noinstanteseguinte,aportaseabriueocarrinhodeservirroloupara dentro. Sobre ele havia um bule belamente pintado e uma xícara com omesmodesenho.Obule,Belasupôs,eramadameSamovar.Bela tentou rapidamente esconder a cordaque sependuravaatrásdela.Mas

madameSamovartinhaavistadoarotadefuganomomentoemqueentraranoquarto.Nãoasurpreendeu.Belapareciaumagarotaesperta,eomestrenãolhedera motivos para se sentir bem-vinda. Ainda assim, madame Samovar nãodeixaria que ela simplesmente partisse: não se ela pudesse impedir. Tendoconvivido comum indivíduo teimosopor tanto tempo, ela sabia que amelhorformadecoagiralguémafazeralgoquenãoquerédando-lheachancedefazertudodoseujeito.—Éumalongajornada,minhaflor—dissedocementemadameSamovar.—

Deixe-me prepará-la antes. A experiência me mostrou que a maioria dosproblemasparecemmenosespinhososdepoisdeumarevigorantexícaradechá.Não é mesmo, madame de Garderobe? — Madame Samovar se digiriu aoguarda-roupa,queaindadormiaprofundamente.—Madame!Acorde!Comumsolavanco,MadamedeGarderobeacordou.—O quê?— perguntou ela, parecendo sonolenta e confusa.— Dormi de

novo?— Madame costumava dormir oito horas por dia — disse de repente a

pequenaxícara.—Agoraeladorme23.—Jáchega,Zip—alertoumadameSamovar.—Nãoéeducadodiscutiros

hábitosdeumadama.Mas Zip, como Bela agora o conhecia, a fizera parar para refletir por um

momento.EjáqueelanãohaviaconseguidonenhumarespostadeMadamedeGarderobe,decidiutentardenovo:—Oqueaconteceuaqui?Istoéumfeitiço?Umamaldição?—Aquelaeraa

única explicação lógica possível para as esquisitices do castelo, na opinião deBela. Ela já havia lido várias histórias sobre coisas desse tipo, mas nuncaimaginouquepudessemserreais.— Ela adivinhou, mamãe — comentou Zip, com a vozinha sibilante

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atravessandoapartelascadadoseucorpodexícara.—Elaéesperta.Enquanto falava, sua mãe saltou até ele e o encheu de chá. Então ela o

empurrounadireçãodeBela.—Maisdevagar,Zip—disseela.—Nãoderramechá.Nemsegredos.Bela deixou escapar um sorriso quando pegou Zip. Era tão óbvio que se

tratava de um garotinho, ainda que estivesse preso na forma de uma xícara.Como deve ser triste, pensouBela,não ser capaz de fazer coisas normais demeninos.Comosesentisseoqueelaestavapensando,Zipperguntou:—Querverumtruque?Bela assentiu e ele respirou fundo. Então começou a assoprar. O chá

borbulhou dentro da xícara, o que causou risadas em Bela. O som ecoouagradavelmentepelocômodo,fazendomadameSamovarsorrirtambém.—Foimuito corajoso o que você fez pelo seu pai, querida— comentou o

bule.—Todosnósconcordamos—disseMadamedeGarderobe,assentindo.OsorrisodeBelasedesfezdiantedamençãoaopai.—Estoutãopreocupada—disseelasuavemente.—Elenuncaficousozinho.—Anime-se, querida—dissemadameSamovar, tentando trazerdevolta a

levezaanterior.—Tudovaiacabarbem.Vocêvaiver.Sesentirámuitomelhordepoisdojantar.Belaolhouparaobuleeinclinouacabeçaparaolado.—Maseledisse“seelanãocomercomigo,entãonãovai comernada”.—

Ela baixou a voz e tentou fazê-la soar o mais assustadora e cruel possível.MadameSamovarsegurouumsuspiro.Omestrerealmentecausaraumapéssimaimpressãonapobregarota.—Pessoasdizemmuitascoisasquandoestãocomraiva—observouela.—É

nossaescolhadarouvidosounão.—Enquantofalava,elavirouocarrinhodeservir na direção da porta e começou a sair.Virando-se para olhar paraBela,madameSamovarsorriu.—Vocêvem,bonequinha?Belaassistiuaobuledesaparecerpelaporta.Seuestômagoroncou.Estábem,

ela pensou, eu vou jantar.Mas apenas esta refeição. Então vou embora… deumavezportodas.

Aequipe da cozinha estava pronta.Lumière havia cuidado de tudo assimquemadame Samovar lhe dissera que falaria com Bela. Ele sabia que era umaquestãodetempoatéqueobuleconvencesseagarotaadescerparacomer.

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MasLumièrenãotinhaintençãodeoferecerapenasalgorápidoparabeliscar.Aquela refeição ficaria na memória de Bela para sempre. Incluiria os maissaborososaperitivos,asmaisdeliciosasentradas,asmaisprazerosasbebidase,éclaro,amais requintadadas sobremesas.NomomentoemqueBela largasseogarfo, ela nunca mais iria querer ir embora. Pelo menos, era o que Lumièreesperava.Invadindoacozinha,elejuntouduasdesuasvelas.—Elasestãovindo!—exclamouentusiasmado.—Últimosdetalhes, todos,

tout de suite, imediatamente!—Com prazer, ele observou cada integrante daequipeentraremação.Todossabiamtantoquantoeleoquãoimportanteeraessejantar.TodosexcetoHorloge,aoqueparecia.—Não,vocêsnãopodemfazer isso!—disseo relógio, atrapalhando-seno

meiodosaguão.Elecruzouospequenosbraços juntoàsengrenagens.—Seomestre descobrir que vocês desobedeceram às suas ordens e alimentaram agarota,elevaimeculpar.Lumièreencarouoamigoesuspirou.ComoHorlogepodiapensarapenasem

siemummomentocomoesse?Continuandoseusafazeres,eleassentiu.—Sim—disseo candelabro, em tomdeprovocação,maspretendendo ser

sério.—Euvoumecertificardisso.Masvocêviucomoelaoconfrontou?Estoulhedizendo,estaéagarota!Elesprecisamseapaixonarparaquevoltemosaserhumanos,eissonãovaiacontecerseelaficarnaquelequarto.—Vocêsabequeelanuncavaiamá-lo—retrucouHorlogecalmamente.— Até um relógio quebrado está certo duas vezes ao dia, meu amigo —

respondeu Lumière, recusando-se a deixar que o mordomo indigesto odesanimasse.—Enãoestamosmaisnaquelestempos.Precisamostentar.Dando as costas para Horloge, Lumière foi até Chef. Panelas e frigideiras

borbulhavamesoltavamvapornofogão,espalhandoumaromairresistívelpeloar. Lumière podia sentir os olhos de Horloge em suas costas; sabia que omordomodiscordava.Ocandelabronãooculpava,afinal,Horlogetinharazão:omestredefatopensariaqueeratudoresponsabilidadedorelógiosedescobrisse.Mas eles não tinham escolha. Não era todo dia que uma garota aparecia nocasteloenfeitiçado—eumagarotacomforçasuficienteparaenfrentaromestre,ainda por cima.Não, pensou Lumière, balançando a cabeça e endireitando asvelas, resoluto. Esse jantar iria acontecer de qualquer jeito, com ou sem aaprovaçãodeHorloge.Finalmente,orelógiosuspirou.Lumièreesperou.

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—Pelomenosfaçamsilêncio—disseHorloge,comavozbranda.UmsorrisoseespalhoupelorostodeLumière.Maseleodisfarçouantesdese

virarparaoamigo.— Claro, claro — disse. — Mas o que é um jantar sem um pouco de…

musique?—Música?—gritouHorloge, perdendo o controle da voz. Ele começou a

sacudiracabeça.Eratardedemais.Lumièrejáhaviaguiadoocravoatéasaladejantar.—MaestroCadenza—disseeleenquantooacomodavanocantodasala—,

suaesposa está lá emcimadormindocadadiamais.Ela conta comvocêparaajudarafazercomqueomestreeessagarotaseapaixonem.Comumfloreio,ocravotocouumaescala,fazendoumacaretaquandouma

dasnotasdesafinou.—Entãodevotocar,apesardador—disseelebravamente.Naquele momento, madame Samovar trazia Bela para a sala de jantar. A

garota olhou ao redor, impressionada pela elegância damesa posta, mas comevidentehesitaçãoemestarali.Lumièreviuodesconfortonosolhosdela,esuadeterminaçãoemdeixá-la àvontade se fortaleceu.Ele lançouumúltimoolhardecididoàequipe,entãosaltoucomgraçasobreamesa.— Ma chère, mademoiselle — começou ele enquanto um feixe de luar

atravessavaajanela,fazendoparecerqueocandelabroestavanofocodaluz.Elesecurvou.—Écomomaiororgulhoecomgrandeprazerquearecebemosaquihoje.Nósaconvidamosarelaxar…—EleacenoueumacadeirasemoveuparafazerBelasesentar,comumpequenoguinchodesurpresa,eentãoaacomodoupróximoàmesa.—Enquantoorgulhosamenteapresentamos…seujantar.Deinício,Belasentou-secomasmãosnocolo,enquantoLumièreaguiava,

pratoaprato,atravésdarefeição.Mas,conformeouviaadescriçãodacomidaeassistiaaoespetáculodedançadaslouçasedostalheres,elafoificandomenostensa. Suas mãos se soltaram do guardanapo que segurava e seus pésbalançavam no ritmo do cravo. Na hora em que Lumière se referiu à “coisacinza” como deliciosa, Bela já estava sorrindo. Ela olhou para todos aquelespratos de comida, que pareciam se multiplicar diante de seus olhos com oestômagoroncandoquasetãoaltoquantoamúsicaeraexecutada.EnquantoLumièreeorestantedaequipecontinuavamaentretê-la,Belatratou

de comer tudooquedesejasse.Saboreouo ragude carne e o suflê de queijo.Mergulhouumabagueterecém-saídadofornonofoiegrasesuspiroudeprazeràmedidaqueosentiaderreternaboca.Eraumpratomelhorqueooutroe,toda

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vezqueBelaachavaquenãoaguentariamaisumamordida,umanovabandejasurgia,eelaencontravaespaço.Amúsicatocoudurantetodoojantar,tãoagradávelquantoaprópriacomida.

Quandoarefeiçãoterminou,Belaestavaencantada.Eradifícilnãoficarquandotodos os servos pareciam tão felizes em estar ali, tão contentes em trabalhar.Ocorreu-lheque,comummestrecomoaFera,elesdeveriamviversolitáriosetalvez até um pouco entediados. Ela duvidou que ele requeresse jantareselaboradosoumuitaassistência.No iníciodanoite,elaaindaachavabobagemsentir-semalporumcandelabrofalante,umrelógioouumbule,masaofinaldojantarelahaviadeixadodevê-loscomomerosobjetos.Retirando-sedamesa,Belaagradeceuatodoselhesdesejouboa-noite.Então

elaseguiumadameSamovarparaforadasala.Apósexperimentaroaconchegoea leveza do jantar, as outras áreas do castelo agora pareciam mais frias eobscuras.—Eunãoentendoporquevocêsestãosendotãogentiscomigo—disseBela,

dandovozaumpensamentoqueestavaemsuamentedesdequeelaconheceraLumière,HorlogeemadameSamovar.Guiandoseucarrinhodeservir,madameSamovarsorriugentilmente.—Éomínimoquevocêmerece,minhaquerida—disseelaemumtomdoce

ematernal.—Masvocêsestãopresosaqui, assimcomoeu—apontouBela.—Vocês

nuncaquiseramfugir?MadameSamovarnãorespondeudeimediato.—Omestre não é tão terrível quanto parece— disse ela por fim.— Em

algum lugar no fundo de sua alma, há um verdadeiro príncipe, esperando serliberto.Bela inclinou a cabeça para o lado; as palavras príncipe e liberto soavam

comopeçasdeumquebra-cabeçaqueelaestavatentandomontar.—Lumièremencionoualgosobreaalaoeste…—continuouela,esperando

conseguiralgumainformaçãoamaisdosimpáticobule.MasmadameSamovarnãocaiunotruque.— Oh, você nunca deve se preocupar com isso — comentou ela quando

alcançaramas escadas que levavamaoquarto deBela.—Agora vá se deitar,antes que o sol comece a espreitar entre as árvores. Precisa de mais algumacoisa,amada?—Não,você já fezmuitopormim—respondeuBela comsinceridade.—

Obrigada.Boanoite.

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—Boanoite!—exclamoumadameSamovaraovirarseucarrinhoparavoltaràcozinha.Bela ficouobservando,comamãonocorrimão,atéqueocarrinhoeobule

desapareceramdevista.Entãorelanceouparaaescadariaàfrente.Elacomeçoua subir, com a mente rodopiando. Sabia que era sua chance de voltar para oquartoeescapar,masalgoa impedia.Elaparouno topodasescadas.Se fossepara a esquerda, ela voltaria para o quarto e, talvez, para a liberdade.Mas, sefosseparaadireita…Elaavistouolancedeescadasquepoderialevá-laatéaalaoeste.Decidida, Bela respirou fundo. Então virou para a direita. Ela ainda tinha

algumtempoatéonascerdosol.Apenasdariaumaespiadarápidanaalaoeste.Afinal,quemalfariadarumaolhadinha?

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CAPÍTULOIX

Belaestavacomeçandoaacharquehaviacometidoumgrandeerro.Apesardesua ala do castelo não ser exatamente alegre e colorida, era uma brisa de arfrescopertodaalaoeste.Conformeandavapelo longocorredor, seusolhos searregalaram.Olugaremanavasolidão.Epareciacompletamentedepressivo.Asparedes estavam arranhadas e vazias, o que se tornavamais evidente com osganchos solitários onde antes se penduravam quadros. O tapete sob seus pésestavadesbotadoedesgastado,compartesrasgadaspelaslongasgarrasdaFera.Atémesmooareradealgummodomaispesado.Belaestavaquasedandomeia-voltaquandoviuumaluznofimdocorredor.

Umaportahaviasidodeixadaentreabertae,atravésdela,Belapodiaidentificaroque parecia ser uma grande suíte. Com omedo vencido pela curiosidade, elaavançoueabriuaportadevagar.Imediatamente desejou não ter entrado. Se o corredor já era aflitivo, esse

cômodo era dez vezes pior. Para onde olhava, ela via evidências dotemperamento agressivo da Fera. Cortinas em farrapos se penduravam nosvarões. Vasos que deviam ter sido belos estavam largados e destruídos pelochão.Agigantescacamadequatrocolunasestavacobertaporumacolchacinzadesbotada tomada pelo pó, que claramente não era usada haviamuito tempo.Conforme seus olhos passearam pelo quarto, ela entendeu por quê. Em umcanto,haviaumaespéciedeninhogigante feitodepedaçosde tecido,penasegalhadasamontoados.Belateveummaupresságioaoverumaáreatãoselvagemeanimalescadocastelo.Elasevirouedeuumgritoaodepararcomumpardeolhosazuisbrilhantes.

Porumlongoetensomomento,elaachouquealguémaestavaobservando,atéquesedeucontadequeosolhospertenciamaumgarotoclaramentepresoemumretratodarealeza.Comocoraçãodisparado,Belaseinclinouparaafrente.

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O rosto domenino havia sido retalhado até se tornar irreconhecível, deixandoaquela parte da tela em pedaços. Mas os olhos foram poupados. Bela seaproximoumais.Elespareciamtãofamiliares…Ela engoliu em seco quandopercebeuque lembravamos olhos daFera.As

palavrasdemadameSamovarretornaramàsuamente.Umverdadeiropríncipe,eladissera.Deveriaseropríncipeaoqualelasereferira.Belarelanceouparaoretrato,procurandoporpistasdopassado.Haviaoutrasduaspessoasnoquadro:um belo rei e uma formosa rainha. A imagem damulher— que trazia olhosgentisrepletosderisoeamor—aindaestavaintacta;jáoolharfrioedistantedoreitambémhaviasidoestraçalhado.Belaimaginoucomoteriasidoogarotodoretrato,comoqualquerumteriasidosetivessecrescidocompaiscomoaquelesdentrodasmuralhasdocastelo.Belaarrastouseusolhosparalongedoretratoeengoliuoestranhosentimento

demelancoliaqueseformavanovamentenabocadeseuestômago.Suaatençãofoientãodesviadaparaofinaldocômodo.Portasenormestinhamsidodeixadasabertas, revelandoumagrandevarandadepedradooutro lado.Masoque lhechamouaatençãoestavanafrentedasportas.Emmeioàdestruiçãoeaocaosdorecinto,amesateriasaltadoaosolhosapenaspelofatodeaindaestardepé.MasoqueatraiuespecialmenteoolhardeBelafoiaredomadevidroapoiadaali.Aredomaerafeitadeumvidrodelicado,sopradotãofinoquepareciapoder

se quebrar sob omenor toque.Detalhes ramificados haviam sido gravados nalateral do objeto, lembrando marcas de geada na vidraça. Dentro, flutuandocomosepormágica,estavaumabelarosavermelha.Elareluzia,eabelezadesuacordisputavacomotomdomaisbelopôrdosolqueBelajávira.Como se estivessehipnotizada, ela sedirigiu àmesa.Lentamente, esticou a

mãonadireçãodaredoma.Seusdedosformigaramconformeelaosaproximoudovidrodelicado,incapazderesistiraodesejorepentinodeergueraredomaetocar as pétalas sedosas da rosa. Seus dedos chegaram perto… mais perto…maisperto…— O que você está fazendo aqui? — rugiu a voz da Fera contra Bela,

despertando-a de seu transe. Ele surgiu das sombras com seus olhos azuisqueimandoeaspatascerradasemumacessode raivaquase incontrolável.Eleolhou para a rosa brilhante, e o fogo em seus olhos se tornou ainda maisviolento.—Oquevocêfez?Elarapidamenteseafastoudamesa.—N-não…n-nada—gaguejouBela,comocoraçãoacelerado.AFeracontinuouindoparacimadela.

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—Vocêtemideiadoquepoderiatercausado?—rosnouele.—Vocêpoderiatercondenadoa todosnós!—AsgarrasdaFeraserevelaramerasgaramumadasfinascolunasqueadornavamasportasdavaranda.Houveumterrívelruídolacerante e a colunacomeçouadesabar, compedaçosdesmoronandoe caindopróximoàredomaquecobriaarosa.Opânico inundouos olhos daFera. Semvoltar a encararBela, ele jogouo

corpoemcimadarosa,desesperadoparaprotegê-la.—Saiadaqui!—elerugiu.Belanãoprecisououvirduasvezes.Elaseapressoudevoltaparaocaminho

pelo qual havia entrado. Disparou pelo quarto e para fora da porta principal.Percorreu o longo corredor e as escadarias aindamais extensas.Mal notou osolhareschocadosdeLumièreeHorlogeaopassarporelesnotopodaescadae,quandolheperguntaramaondeestavaindo,nãoparou.—Vouemboradaqui!—gritouelaenquantocontinuavacorrendo.Porqueeraexatamenteissoqueelafaria:iriaembora.Eraoqueelajádeveria

terfeito.MasacaboudistraídaporLumièreeseujantardivertido,eomistériodocasteloaseduzirapormaistempo.Belajáestavafartadetudoaquilo.Elatinhaque sair daquele lugar, para longe daquelas louças falantes, velas e relógiosencantados,evoltarparaopai.Custasseoquecustasse.Infelizmente,ocastelonãoqueriaqueBelafosseembora.Aochegaràbaseda

grandeescadaria,elacorreudiretoparaaportadafrente,mas,antesquepudessealcançá-la,o trincosefechou.Chapeau,omanceboalto,deslizouparaafrentedaportanoinstanteseguinte,bloqueandoasaídadeBela.Ajovemdiminuiuopasso.Oquefariaagora?Elanãoconheciaocastelobem

osuficienteparacorrerporaí àscegasprocurandooutra saída.Quandoestavaprestes a perder as esperanças, ouviu latidos. Ao se virar, deu de cara comFroufrou,umcãotransformadoemumbanquinhodepiano,quehaviafugidodocastelo. Ele latia ferozmente enquanto corria em sua direção, e por um brevemomentoelaficoucommedodeseratacada.Contudo, para sua surpresa, ele passou direto por ela e saiu por uma

portinhola anexa à grande porta principal. Bela quase soltou um grito. Seucaminhonãoestavabloqueado.Apertandoopasso,eladeslizoupelaportinhola,mas não antes de pegar seu manto com o atônito Chapeau. Atrás dela, Belaouviu o carrinho demadame Samovar rolando pelo chão e Lumière gritando,masnãodiminuiuopasso.

NãolevoumuitotempoparaqueBelaachassePhilippe.Ograndeanimalhavia

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se acomodadoconfortavelmente emumadasbaias aconchegantesdoestábulo.Ouvindo os passos deBela no chão de pedra, ele ergueu o olhar com a bocacheiadefenoeinclinouacabeçacomoquempergunta“Oquevocêestáfazendoaqui?”.Jogandoaselanele,Belanãorespondeuaoolharinterrogativodocavalo.Ela

oempurrouparaforadoestábuloeomontou,chutandolevementeabarrigadoanimal. Philippe não hesitou e disparou a galope na direção dos portões docastelo.Momentosdepois,eleshaviamatravessadoosportõeseestavamnamataque

cercavaocastelo.MaslogoBelasedeucontadequehavia trocadoumasituaçãoaterrorizante

por outra do mesmo tipo. Conforme Philippe galopava, ela via sombras derelance pelo canto dos olhos. Elas foram ficando maiores e mais nítidas e,quandoBelaouviuoprimeirouivo,confirmouqueestavasendoperseguidaporumaalcateia.Apressando Philippe, ela tentou não entrar em pânico. Ele era um cavalo

grande com cascos pesados e que sabia ser rápido quando necessário. Se elesconseguissem chegar perto o suficiente da aldeia, ela tinha certeza de que oslobosseassustariamcomossinaisdacivilização.Contantoquenãotrombassememnenhumobstáculonocaminho,ficariambem.EntãoPhilippecorreudiretoparadentrodeumlagocongelado.Sobseuscascos,umruídoescapoudogelo.Belaseinclinoueviurachaduras

surgindo.Pequenasnoinício,elasaumentaramconformeocavaloescorregavaedeslizava pela superfície gelada. Gritando palavras de encorajamento, BelatentouacalmarPhilippe,queestavacadavezmaisdesesperadoconformeogelocedia sob suas patas e os lobos se aproximavam. Bela sentiu os poderososquadrisdocavalosecontraíremeagarrouacrinadele.Então…elesaltou.Bela prendeu a respiração quando eles ficaram suspensos no ar por um

momentoantesdeoscascosdianteirosdePhilippepousaremnabeirado lago.No instanteseguinte, foiavezdaspatas traseiras.MasosuspirodealívioqueBelaqueriasoltar ficoupresonagargantaquandooprimeirodos lobos,vendoumaoportunidade,atacou.AsgrandesmandíbulasdoloboagarraramapernatraseiradePhilippe.Logo

depois, outro lobo se juntou a ele. O cavalo deu coices e se debateuselvagemente na tentativa de se defender. Em seu dorso, Bela seguravadesesperada sua crina. Mas Philippe era muito forte e robusto. Quando suaspatasposterioresselançaramnoardenovo,elafoiarremessadadaselaevoou

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atéummontedenevepróximo.Belaselevantoueolhourápidoaoredor,àprocuradealgoquepudesseusar

para se defender.Avistandoumgalhogrosso, ela o pegou e o balançou à suafrente.Oslobos,aoverumalvonovoepotencialmentemaisfácil,seaproximaram.

O braço de Bela se esticou e ela conseguiu atingir um deles no nariz. Outrochegoupertoeelagirouogalho,golpeandoalateraldocorpodoanimal.Apesarde seus esforços, os lobos continuavam vindo. Bela recuou com seu coraçãobatendo forte, inundada pelomedo.Ouviu um uivo do alto e avistou omaiorloboquejáviranavidaparadonotopodeummorro,prontoparaatacar.Eleaencaroucomolhosfamintosecruéis.Belasepreparou,dispostaalutarporsuavidaatéofim.Então escutou um ganido e uma batida, e houve uma grande agitação atrás

dela.Ao se virar, ela ficou perplexa ao ver aFera.Ele havia saltado nomeio da

alcateia. Muitos dos lobos tinham recuado e pareciam estar lambendo suasferidas.Omaiordoslobos—oalfa—aindaestavadepécomospeloseriçadose dentes àmostra.A Fera estava de costas paraBela, e ela pôde ver onde oslobosohaviammordido.Umapósooutro,oslobosmenoresatacaram.AFeraoslevantavaeosarremessavaparalonge.MasBelaviuqueeleestavaficandocansado.Asferidasemsuascostassangravamesuacabeçaestavacadavezmaisbaixa.Elanãotinhacertezadoquantomaiselesuportarialutar.Entãooalfaatacou.O grande lobo cinza saltou sobre suas costas em ummovimento natural.A

boca do animal se abriu quando ele se lançou na direção do pescoço daFera.Rugindo,aFerasoltoudoislobosmenoresqueestavasegurandoealcançouseuombrocomaspatas.Nomomentoexatoemqueasmandíbulasdoalfaestavamprestesasefechar,elearrancouacriaturadesuascostas.Aspatastraseirasdolobobalançaramnoarquando,porumlongomomento,aFeraapenasoseguroudiantedeseurostocomoolharfixo.EntãoaFerareuniuoquerestaradesuasenergiasearremessouoalfaparalonge.Olobovooupeloare,comumestalo,sechocoucontraumagrandepedra.Vendo seu líder nocauteado e inconsciente, os outros lobos fugiram em

pânico.AFeraesperouatéqueosganidosdosanimaisdesaparecessemantesdesoltar

um gemido de dor. Seus ombros, que se mantiveram elevados e tensionadosdurante toda a luta, desabaram. Então ele desmoronou na neve. Onde suas

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feridastocaramochão,osflocosbrancosficaramvermelhos.Bela ficou ali, incapaz de se mover. Estava tão fincada ao chão quanto as

raízesdasárvoresaoseu redor.OlhandoparaaFeracaída, soubequeestaerasua chance de correr. Não havia como ele a seguir ou tentar impedi-la. Nãonaquelascondições.Enquantoelaobservava,elegemeudenovoetentoulimparumadasferidasemseubraço.Seusolhosazuisencontraramosdelapelomaisbreve dos instantes. Mas foi tempo suficiente para que Bela visse sua dor evulnerabilidade e tomasse umadecisão: ela nãoo abandonaria ferido na neve.Elanãoeracapazdisso.Nãodepoisdoqueeleacabaradefazerporela.ElacorreueseajoelhouaoladodaFeraeocobriucomseumanto.—Vocêprecisameajudar—sussurrouelagentilmente.—Vocêprecisase

levantar…—Posicionandoocorpoembaixodosombrosdele,elaoempurrouparacima,deixandoqueseapoiassenelacomosefosseumamuleta.Elerugiudedoreficoumaispesadoconformeosofrimentoodominava.Belaestremeceu.ElaprecisavalevaraFeradevoltaparaocastelo,antesquefossetardedemais.

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CAPÍTULOX

—Ouçam!Lobos!Devemosestarpertodocasteloassombrado!Sentadosatrásda carruagem,LeFoueGaston se assustaramcomogritodeMaurice.Os trêshomensestavamdesbravandoaflorestaporumtempoconsiderável.Orestantedamultidãohaviadesistido,felizemretornaraoaconchegodatavernaassimqueGastondeixouclaroqueestava indopara amata.Emboraa florestanão fosseexatamente pitoresca, não chegava nem perto de ser tão assustadora quantoMauricefezpareceremseurelatofrenético.— Maurice, já chega — disse Gaston, virando-se para encarar o velho

homem. O trajeto de carruagem havia deixado seus cabelos brancos,naturalmente rebeldes, ainda mais desgrenhados, e seus olhos se moviamincessantesconformeeleolhavaaoredoremdesespero.—Temosquevoltar—acrescentouGaston,semsaberseMauricetinhaouvidoalgumapalavradoquedissera.Aoqueparecia,eletinhaouvido,porquesacudiuacabeçacomvigor.—Não!Olhe!—Mauriceapontouparacima.Seguindoadireçãoqueapontavaovelhohomem,Gastonviuumaárvorena

lateraldaestrada.Estavaseca,comseusgalhosretorcidosemângulosestranhose seu tronco liso pela ação do tempo. Durante a jornada,Maurice lhes haviacontadosobrecomoencontraraocasteloencantado.Elemencionoualgosobreuma árvore que parecia um cajado e um caminho escondido… Inclinando acabeçaparaolado,Gastonestreitouosolhos.Eramaisoumenosparecidacomumcajado,masdefinitivamentenãohaviaumcaminhoatrásdela.—Estaéaárvore!—exclamouMaurice, comoseadivinhasseadúvidade

Gaston.—Tenho certeza. Claro, foi derrubada por um raio naquele dia,masagoraparecetersidocolocadadevoltaempé.Magicamente,suponho…LeFoudeuumtapinhanoombrodeGaston.

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—Vocêquermesmoentrarparaessafamília?—sussurrouele,revirandoosolhos.Gaston sabia que o homenzinho estava provocando,mas LeFou tinha certa

razão.Havia limitepara tudo.ElehaviadeixadoqueMauriceosguiasseaté lácomaúnicaintençãodechantageá-loaconcederamãodeBelaemcasamento.Mas,senãoconseguissemencontrarBela,qualeraoobjetivo?—Estoufartodesteseu jogo—disparouGaston,parandoacarruagem.Ele

desceuemumsaltoecolocouasmãosnosquadris.—OndeestáBela?—AFeraapegou!—repetiuMaurice.OsolhosdeGaston seestreitaram.Eleestava seesforçandomuitoparanão

perderacabeça,masovelhohomemtornavaissoumdesafio.—Não existem coisas como feras, ou xícaras falantes, ou…oque seja.—

Conformeelefalava,suavozficavamaisaltaesuasmãoscomeçaramaabrirefecharjuntoaocorpo.—Masexistemlobos,queimadurasdefrioefome.Saltandodacarruagem,LeFoucorreuatéoamigo.—Respirefundo,Gaston—eledisse.—Respirefundo.OspunhosdeGaston secerrarame,porummomento, elepareciaprestes a

bateremalguém.Masentãorespirouprofundamente,comoLeFousugerira.Edenovo.Emaisumavez,paragarantir.—Então—recomeçoueleaoseacalmar—,porquenóssimplesmentenão

damosmeia-voltaevoltamosàVilleneuve?Beladeveestaremcasa,cozinhandoumbelojantar…—Vocêachaqueinventeitudoisso?—perguntouMaurice,parecendoalheio

aoquãopróximoGastonestavadeperderacabeça.Eleergueuosolhosparaogrande homem, confuso. — Se não acredita em mim, por que me ofereceuajuda?—Porquequeromecasarcomasuafilha—disseGaston,semintençãode

continuarescondendoseuplano.—Agoravamosparacasa.—Eujádisse!Elanãoestáemcasa,elaestácoma…AraivainundouGastoneeleexplodiu.—Sevocêdisser“fera”maisumavez,voujogarvocêparasercomidopelos

lobos! — gritou ele, perdendo toda a compostura. Gaston foi para cima deMauricecomospunhoserguidos.LeFouviuqueoamigotinhaperdidoocontroleesoubequeprecisavafazer

algumacoisa.—Pare!—gritou,pensandodesesperadonoquedizeremseguida.Quando

Gaston ficava com raiva, era difícil trazê-lo de volta. LeFou o vira naquele

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estado poucas vezes,mas em todas foi preciso um tempo para acalmá-lo. Derepente, soube exatamente o que fazer. Em um tom reconfortante, disse: —Pense em coisas felizes. Volte para os tempos de guerra. Sangue, explosões,maissangue.—ConformeLeFoufalava,avermelhidãosumiudasbochechasdeGastonesuasmãoscomeçaramarelaxar.Seuolharficoudistanteenquantoeleseperdianasmemóriasdeseusdiasdeglória.QuandoLeFouterminoudefalar,Gastonestavacomacabeçafriadenovo.—Por favor,meperdoe—eledisse.— Issonãoé jeitode falar commeu

futurosogro,nãoémesmo?—Elesorriuparaovelhohomem,masaexpressãonãoserefletiaemseusolhos.Mauricenãodeixoupassarocinismo.NemofatodequeGastonclaramente

tinhaumladoobscuro.— Capitão — disse ele, dando um passo para trás —, agora que vi sua

verdadeiraface,vocênuncavaisecasarcomaminhafilha.LeFouengoliuemseco.Eunãoteriaditoissosefossevocê,pensou.Gaston

podelevaramale,seissoacontecer…GastonpuxouMauriceelhedeuumsocoforte.Ohomemdesabounochão,

inconsciente.Vocêpodeacabarapanhando,LeFou finalizou seupensamento.Eleabriua

bocaparatentaracalmarseuamigomaisumavez,masjáeratarde.Gastonhaviasucumbido à raiva e não havia meio de fazê-lo voltar a si. Não agora, pelomenos.— Se Maurice não me dará sua bênção… — começou Gaston enquanto

pegavaohomemdesacordadoeo carregavaatéumaárvore.—Entãoestánomeu caminho.— Ele pegou uma corda da carruagem e amarrou as mãos dovelhohomem.Deuumpuxãononó,conferindoseestavamesmobempreso.—Assimqueoslobosacabaremcomele,Belanãoteráninguémparacuidardelaalémdemim.—Comumarisadamaligna,Gastonsubiunacarruagem.LeFou balançou nervoso o corpo enquanto olhava de um lado para outro,

entre Gaston e Maurice. Ele entendia que seu amigo estava irritado. Gastonodiavaquandoascoisasnãosaíamdoseujeito.Masdeixarovelhohomemparasercomidopeloslobospareciaserumapuniçãoumpoucoseverademais.— Para de fato esgotarmos nossas opções — ele disse, tenso —, talvez

possamosconsiderarumplanoB?Gaston disparou-lhe um olhar. LeFou engoliu em seco e subiu depressa na

carruagem,tentandoignoraroburaconoestômago.Pelojeito,prosseguiriamcomoplanoA.

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Belanuncativeraumpacientetãoferozquanto,bem,aFera.Comoexperiência,elasóhaviatratadodasferidasoucortespeculiaresdeseupai,maselesempreteveagentilezadesereducado.DesdeomomentoemquetrouxeaFeradevoltaparaocastelo,elevinhasendoumperfeitoingrato.EBelaestavaficandobemcansadadaquilo.Nãofoielequetevedecaminharpelanevedensacomsapatosfinos.Enãofoielequempassouajornadatodatemendopelaprópriavida.Não.AFeratinhaficadoinconscientedurante todootrajeto.FoiBelaquemtevedeolhar ao redor apreensivamente a cada mínimo ruído. Foi Bela quem sepreocupou com a Fera ficando a cada minuto mais fraca e mais próxima damorte.ElanãohaviasedadocontadoquãotensaestiveraatéelaePhilippechegarem

aoportão do castelo emadameSamovar aparecer na porta da frente, junto detoda a equipe, para ajudar. Então, e somente então, Bela deixou escapar umlongo suspiro e se permitiu começar a tremer. E, uma vez que ela começou,demorouumlongotempo—eumbanhobemquente—paraparar.Masaquilojáhaviapassadoeasituaçãoeraoutra.Agora,elaestavaocupada

tentandocuidardaFera,queseprovouumbebezãoquandooassuntoerador.Enquanto Bela se recuperava, madame Samovar ordenou que levassem o

mestreparaseuquartonaalaoeste.Agoraeleestavadeitadoemsuavelhacama,com membros da criadagem reunidos ao redor, esperando para servi-lo. Umjarrodeáguaquenteeumatigelaforamcolocadosaoladodacama.Despejandoum pouco da água na vasilha, Bela acrescentou uma pitada de sal antes demergulharumpanolimponamistura.Elapuxouopanoeentão,comamesmagentileza,esfregou-oemumcortenobraçodaFera.Elerugiucomoseelativessefeitooutrocorte.—Issodói!—rosnouele,mostrandosuaspresasetentandopuxarobraço.— Se você ficasse parado, não doeria tanto— retrucouBela, agarrando o

braçodeledevolta.—Sevocênão tivesse fugido—disseaFera,comamandíbulacerrada—,

issonãoteriaacontecido.—Bom,sevocênãotivessemeassustado,eunãoteriafugido.Assistindoàbrigadadupla,madameSamovarergueuumasobrancelha.Então

olhouparaLumière,queestava rodeandoaportanervosamente.Eles trocaramolharesconclusivos,maspermaneceramemsilêncio,amboscuriososparasaberatéondeiriaessanovafamiliaridade.—Bem…—continuouaFera,determinadoa teraúltimapalavra.—Você

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nãodeveriateridoàalaoeste.Belanãorecuou.—Bem…Vocêdeveriaaprenderacontrolarseusnervos.AFeraabriuaboca,masafechou.Entãoabriudenovo.Efechoumaisuma

vez.Enfim,soltouumpequenosuspiro.Elatinharazão.Sorrindo,Belaolhoudevoltaparaaferidaqueestavalimpando.Osorrisose

foi. Apesar do conflito, ela estava honestamente preocupada com a Fera. Oferimentoestavapiordoqueelahaviapensadoaprincípio.— Tente descansar um pouco— aconselhou ela, esfregando gentilmente a

feridaumaúltimavez coma toalha.Levantando-se, ela observou enquantoosolhosdaFerasefechavamlentamenteesuarespiraçãoacalmava.Quandotevecertezadequeeleestavadormindoemomentaneamentesemdor,virou-separadeixaroquarto.Parasuasurpresa,madameSamovareLumièreaaguardavam,próximo à porta. Ela havia esquecido por completo de que eles estavam alidentro.—Obrigada,senhorita—dissemadameSamovar,sorrindocomgratidãopara

Beladeseucarrinhodeservir.Lumièrefezumareverênciaeacrescentou:—Somoseternamentegratos.Bela assentiu, surpresa com o profundo interesse e preocupação naqueles

olhares. Ela não conhecia tão bem a Fera,mas ele não parecia ser ummestreparticularmente bondoso. Ainda assim, aqueles dois pareciam tão esgotadosquantoopróprioamo.—Porquevocêsseimportamtantocomele?—Aperguntasaiudesuaboca

antesqueelapudessepensaremcontê-la.—Nóscuidamosdeleportodaasuavida—respondeumadameSamovar.—Maseleamaldiçoouvocês,decerta forma—comentouBela.Elaqueria

entenderoporquêdetamanhalealdade.Pareciatão…estranho.Quandonemobule, nem o candelabro responderam, ela pressionou:— Por quê? Vocês nãofizeramnadaparamerecerisso.OgritoqueaFeradeuquandoelaquasetocouarosaecoouemseusouvidos:

Vocêpoderiatercondenadoatodosnós!Ocasteloestavaclaramentesobefeitodealgumfeitiço.Eelanãopodiaimaginarnenhummembrodaequipedocastelosendoresponsávelporaquilotudo.— Você tem toda a razão, querida — disse madame Samovar. — Sabe,

quando o mestre perdeu a mãe, seu pai cruel pegou aquele menino doce einocenteeoobrigouasercomoele…Enósnãofizemosnadaarespeito.

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Comoseestivesseesperandoparacontar suahistóriahaviamuito tempo,aspalavras verteram de madame Samovar. Ela retratou a imagem triste de umgarotinho que amava a mãe do fundo do coração. Naquela época, contoumadameSamovar,ocasteloeraumlugardiferente.Eracheioderisoeamor,luzdosoleinocência.Entãoamãedomenino,amãedaFera,Belaconcluiu,ficoudoente.Osolhos

de Bela se arregalaram quando madame Samovar explicou que o garotopermaneceu dia e noite ao lado do leito da mãe, assistindo enquanto eladefinhava. Ele implorou para que os médicos a ajudassem, mas eles apenasbalançaramacabeçaeofereceramfalsaspromessas.Pobregaroto,pensouBela.Nãoconheciminhamãeeaindasintoumvaziono

coração.ElanãopodiaimaginarcomodeviatersidoparaaFera.Conhecerumamortãograndeeperdê-lo.Comoseadivinhasseaquelespensamentos,madameSamovarcontinuoucom

suahistóriatriste.Depoisqueamãedogarotofaleceu,ascoisasnuncavoltaramasercomoantes.Opaieraumhomemfrioeinsensível,quearrancoualuzdeseuprópriofilhoeaapagouporcompleto.Otempopassou,etodososvestígiosde felicidade foram varridos do castelo e substituídos pela escuridão e frieza,antesmesmodamaldição.AvozdemadameSamovarfoisumindoaoouviraFeragemerdedoremsua

cama.Ostrêsobservaram,segurandoofôlego,atéqueeleseajeitoudenovo.AosevoltarparamadameSamovareLumière,osolhosdeBelapousaramsobrearedoma de vidro e a rosa quemurchava lentamente, com as pétalas carmesimamontoadasabaixodela.—Oquevai acontecerquandoaúltimapétala cair?—perguntou ela, com

medodejásaberaresposta.—Omestrepermanecerácomoumaferaparasempre—respondeuLumière.

—Eorestantedenóssetransformaráem…—Antiguidades—finalizoumadameSamovar.—Quinquilharias—corrigiuLumière.Horloge, que viera dar uma olhada no paciente bem no meio da conversa,

limpouagarganta.—Lixo—disseelecomrispidez.—Nósnos transformaremosemlixo.—

Belaergueuumasobrancelha.Avozdo relógioestavamais severadoqueelajamaisouvira.Ao redor, os outrosmembros da equipe que estavam ajudando a cuidar da

Ferasejuntaramaeles,acrescentandoàlistaoquesetornariam.Belaouviucom

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tristeza no coração. Ela sabia como era se sentir aprisionada. Ela se sentiadaquelaformavivendoemVilleneuve,ondetodososdiaseramiguaisetodasaspessoastambém.Adiferençaeraqueelapodiairemboraserealmentequisesseescapar. Madame Samovar? Lumière? Horloge? Eles não podiam. Eles eramprisioneiros das muralhas do castelo, e agora ela sabia que também estavampresos dentro dos objetos que haviam se tornado.Ela se virou e olhou para abesta adormecida. Como sua criadagem, ele também estava preso. Ele foraaprisionadohaviamuito,muitotempo:primeiroporumpaicrueledepoispelamaldição.—Queroajudarvocês—disseBela,surpreendendoasimesmaeaosoutros.

—Deveexistiralgumamaneiradequebraramaldição.Houveumalongapausaenquantoaequipetrocavaolhares.EntãoHorlogese

pronunciou:—Bem,háumamaneira…—Nãoévocêquemdevesepreocuparcomisso,docinho—dissemadame

Samovar,interrompendoHorloge.—Quemsemeiaventocolhetempestade.—Deixando clara sua posição, madame Samovar conduziu o restante da equipeparaforadoquarto.Belaosobservousair.QuandoficousozinhacomaFera,andouatéseuleito.

Elaficousurpresaaoverqueseusolhosestavamabertos.Eleouvira tudo.Eador e a vergonha que Bela viu quando os olhares se encontraram partiu seucoração.Antesqueelapudessedizerqualquercoisa,elefechouosolhosevirouascostasparaela.Comumsuspiro,Belaretirou-seedeixouqueeledormisse.Aofecharaporta,

porém,deuumaúltimaolhadana rosa.Enquantoobservava,outrapétalacaiu.Ela desejou que houvesse algo que pudesse fazer pelas pobres almas aliaprisionadas.Mas parecia uma causa perdida, tão impossível quanto voltar notempo.

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CAPÍTULOXI

Bela decidiu que, enquanto estivesse no castelo, usaria seu tempo de formaprodutiva,ajudandonarecuperaçãodaFera,paracomeçar.Ajustandoseuvestidoao redordaspernas,Bela seacomodounacadeiraao

ladodacamadaFera.Osolhosdeleestavamfechados,oquelhedeuachancedeexaminarsuasferidas.Algunsdiashaviamsepassadodesdeoepisódiocomoslobose,comtratamentoconstante,amaioriadoscortesestavacomeçandoasarar.Aindaassim,osmaioresemaisprofundospermaneciamenfaixados.Eleslevariam mais tempo para fechar e provavelmente deixariam cicatrizes.Olhando-o fixamente, Bela sentiu um ímpeto de tristeza pela criatura. Ele játinha acumulado tantas cicatrizes invisíveis após crescer sem uma mãe paraprotegê-lodeumpaicruelquepareciainjustoquetambémastivessenapele.Bela suspirou. Não ajudaria em nada a Fera se ela ficasse ali sentada se

lamentando. Procurando ao redor por algo que a entretivesse enquanto eledormia,Belanãoficousurpresaaoconstatarquenãoexistiaquasenadadotipo.Nãohavialivrosnamesadecabeceira.Aarteestavatodadestruídaeatémesmoamobíliatinhasinaisdedesgaste.Parecequevouterquemeentretersozinha,pensouBela.Suavemente,elarecitoualgunstrechosdeumadesuasobrasfavoritas,Sonho

deumanoitedeverão.—Oamorpodetransporaformaeahonra.Oamornãovêcomosolhos,vê

comamente.Parasuasurpresa,avozprofundadaFerasejuntouàdelaeelesterminaramo

versoemuníssono:—Porissoéalado,écegoetãopotente.Bela desviou o olhar, estarrecida. A Fera não estava dormindo. Ele estava

olhandoparaelacomumaexpressãodivertidaemseurostopeludo.

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— Você conhece Shakespeare? — perguntou Bela. Percebeu que sua vozestavacheiadedescrençaecoroudevergonha.DepoisdoquemadameSamovarlhedissera,elasabiaqueaFerajáforaummeninohumanoumdia.Umpríncipehumano.Aindaassim,nãoconseguiaconceberofatodequeacriaturadeitadanacamaàsuafrentepareciatermaisclassequeamaioriadosmoradoresdesuaaldeia.AFeradeudeombros.—Eutiveumaboaeducação—respondeuele.Houveumsilêncioconstrangedor.—Naverdade,minhapeçapreferidaéRomeueJulieta—comentouBela.—Porque issonãomesurpreende?—respondeuaFera,comumtoquede

risonosolhos.—Oquequerdizercomisso?—disseBela,fingindo-sedeofendida.— Todo aquele sofrimento e angústia e… — A Fera estremeceu

dramaticamente.—Hátantascoisasmelhoresparaler.—Comooquê?—replicouBela,comumasobrancelhaerguida.Elacruzou

osbraços,lançandoodesafio.AFerasorriu.Entãocomeçouaselevantardacama.—Oh,não,nãofaçaisso!—disseBela,alcançando-oparadetê-lo.Mesmoferido,aFeraeramuitomaisfortequeBela.Eleaafastouesaiuda

cama.Então, semdizerumapalavra, saiu lentamentedoquarto.Belanão teveescolhasenãoiratrás.Seguiram pelo corredor da ala oeste, viraram várias vezes e subiram uma

pequena escadaria. Bela estava empolgada de curiosidade.A Fera não disseranadanemderaqualquerpistasobreaondeestavamindo.Eleapenascaminhouapassoslentos,parandodevezemquandopararecuperarofôlego.Finalmente, pararam em frente a duas grandes portas, com nomínimo dois

andaresdealturae relevosesculpidosqueretratavamváriascenas.Ao ladodaFera, Bela tentou decifrar alguns dos desenhos maiores, mas, antes que elaconseguisse,aFeraabriuasportas.—Háalgumascoisasaquiquepodemlheinteressar—disseele.Belaengasgou.Diantedelaestavaacoisamaislindaquejávira.Eraumabiblioteca.Masnão

umaqualquer.DeviaseramaioremaisgrandiosabibliotecadetodaaFrança.Oteto se elevava acima dela, com estantes repletas de livros até o topo. Umalareiracolossaldominavaumadasparedeseaténacornijahavialivrosexpostos.Emoutra parede, uma grande janela deixava entrar luz suficiente para leitura,

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masaindaassimvelasestavamacesasportodoocômodo.Apesardaimensidão,o local era confortável e aconchegante. Bela olhou ao redor para as variadascadeiras bem almofadadas e imaginou como seria relaxante se acomodar emumadelascomumlivronasmãos.— Você está bem? — perguntou a Fera, tomado por uma preocupação

genuína.Bela imaginouqueestavaparecendoumpeixeforad’águade tãochocadae

boquiaberta.Elasevirouesorriuparaele.—Émaravilhoso—disseela,cientedequenãoeraumarespostaàalturada

grandiosidadedasala.— Sim, suponho que seja mesmo — replicou a Fera, pensativa, como se

notassepelaprimeiravez.—Bem,entãoé toda sua.Vocêpodedominar essasala.—Elesecurvouesevirouparasair.AvozdeBelaointerrompeu.Seupescoçoestavaesticadoparatrásenquanto

elaobservavaasestantesnotopodasala.—Vocêrealmenteleutodosesteslivros?—Nãotodos—respondeuaFera.—Algunsestãoemgrego.OqueixodeBelacaiu.— Foi uma piada?— inquiriu ela, começando a rir.—Você está fazendo

piadasagora?AFeratentounãorirenquantorespondia.—Talvez…Semmaispalavras, aFera sevirouedeixoua sala.Bela ficouondeestava,

balançandoacabeça.Oquetinhaacabadodeacontecer?

Conformeosdiassepassaram,Belaencontroumaisemaisrazõesparasefazeramesmapergunta.Emvezdeoquehaviaacontecido,aperguntanaverdadeeraoque estava acontecendo? Porque não havia como negar: algo havia mudadoentreBelaeaFera.Elanãotinhacertezasecomeçaraquandoelearesgatounafloresta ou quando ela deu meia-volta e o resgatou. Ou talvez tenha sido namanhãemqueele lhemostrouabibliotecaeelaviuseu ladomaisgentilpelaprimeiravez.Podiaatémesmotercomeçadoemumpontonomeiodetudoisso:quandomadameSamovarcontouaelaahistóriadajuventudedaFera.Quandoaconteceranãofaziadiferença.Oqueimportava,eBelanãopodianegar,eraosimplesfatodequehaviaumafaíscainéditaentreeles.Algoquefaziaosdiasnocastelosepareceremmenoscomumasentençapenalemais…bem,maiscomumadiversão.

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EaFerahaviasetornadomaisumamigodoqueumcaptor.Belanão seesgueiravamaispela cozinhapara fazer suas refeições.Emvez

disso,elaeaFeracompartilhavamamesadejantar:eleemumapontaeelanaoutra.Às vezes, cada umdeles trazia um livro e liam àmesa emum silênciocúmplice. Em outras refeições, falavam sobre as obras, citando suas partesfavoritas ou o que teriammudado.Bela estava tão deslumbrada coma paixãomútuapeloslivrosqueparoudenotarquandoaFeratomavaasopadiretamentedatigela,ignorandototalmenteostalheres.Emalgunsmomentos,elaiaatémaislongeetomavaasopadomesmojeito,apenasparaqueaFerasesentissemaisconfortável.Refeiçõeselivrosnãoeramasúnicascoisasqueelescompartilhavamagora.

Quando o clima permitia, Bela se juntava à Fera do lado de fora e ele lhemostravaasterrasaoredor,oueleslevavamPhilippeparapassear.Atémesmoquandootemponãoestavaperfeito,elesencontravamformasdesedivertiralémdasmuralhasdocastelo.Diasnevadoslevavamaguerrasdebolasdeneve;diasensolaradosacabavamempiqueniques.Bela inclusive encorajou a Fera a se juntar a ela e à equipe para limpar o

castelo: os dois esfregaramo chão até queo velhomármore polidovoltasse abrilharelimparamosanosdesujeiradasjanelasatéqueenxergassemaradianteluz do sol. Eles transformaram a ala oeste, removendo colunas quebradas edestroços, e substituindo os pedaços rasgados de tecido por cobertoresaconchegantes,dandoumacamaapropriadaàFera.A cada momento e aventura que eles viviam juntos, Bela ficava mais

confortávelnapresençadaFera.Elanãoestremeciamaisquandoele a tocavaacidentalmentecomapata.Nemseusorrisosedesfaziadiantedaspresasafiadasdele.Naverdade,duranteumalmoçoemcertatarde,Belateveumestaloesedeu

contadequenemenxergavamaisaquelaspartesdaFera.Elaviaabondadeemseusolhosquandoeleaobservava.Elaouviaainteligênciaemsuavozquandoelesconversavamsobreliteratura.Eelaviuoorgulhoqueelesentiudoseularquandoolhouaoredor.EstouvendoohomemdentrodaFera,elaescreveuumatardeemumdiário

quemantinha.Seaquelassuasexperiênciasnãovalessemumapublicação,entãoela não sabia o que valia. Estou vendo o que madame Samovar, Lumière,Horloge e todos os outros sempre viram. Apenas precisei de um tempo…Fechandoodiário,Belaselevantouefoiatéajaneladeseuelegantequarto.Dolado de fora, a última luz do dia estava desaparecendo. Uma lua quase cheia

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começavaaapontaralémdohorizonte,iluminandoosjardinsnevadoscomumaluz pálida e etérea. Olhando para a paisagem, Bela estava mais uma vezimpressionada pela beleza do castelo. Desde que sua amizade com a Fera sefortaleceueelesseesforçarampararecuperaraantigaglóriadaconstrução,todoocastelotinhasetornadomaisvivoebrilhantediantedeseusolhos.Elaviuabeleza nas linhas das pedras que formavam as muralhas e apreciou os altostorreões.NãoeraaarquiteturapitorescaeimpactantedeVilleneuve,masaindaassimeraencantador.AoavistaraFeracaminhandoatéacolunatacomumlivroemmãos,Belase

virouepegouseulivronamesinhadecabeceira.Eladesceuasescadasesaiudocastelo,juntando-seaele.—Oquevocêestálendo?—perguntouelaaoentrarnacolunata.AFeraergueuoolhar,surpresoemvê-la,ecolocouolivrodelado.—Nada—disseele,tentandoesconderovolume.Eratardedemais.Belajáhavialidootítulo.—GuinevereeLancelot—observouela.AFeradeudeombros.—ReiArtureatávolaredonda—esclareceuele—,espadas,lutas…—Sua

tentativadefocaraspartesdeaçãonãoescapouàBela.—Aindaassim…éum romance—apontouela, tentandonão rirquandoa

Feradeudeombrosepareceuencabulado.—Parecequefoiumamudança—disseeleenfim.Por um momento, eles apenas compartilharam um silêncio constrangedor.

Apesardetodootempoquepassavamjuntos,aquilopareciadiferenteparaBela.Talvez fosse o luar. Talvez fosse amudança admitida pela Fera. Talvez fosseapenasalgonovonoar.Qualquerquefossearazão,Belasentiuaânsiarepentinadefalaralgoquenuncahaviaditoantes.—Nuncalheagradeciportersalvadominhavida—falouelacomdoçura.— Nunca lhe agradeci por não me deixar morrer — respondeu ele sem

hesitação, como se também estivesse esperando haviamuito tempo para dizeraquelaspalavras.O ar crepitou entre eles enquanto se observavam, com os olhos fixos, as

palavrassearrastando.QuandoBelaachouqueasituaçãonãopoderiaficarmaistensa,ouviramgritosseguidosderisadasvindodedentrodocastelo.Osservos,ao que parecia, estavam dando uma festinha. O barulho quebrou a tensão eambosrespiraramaliviados.—Bem…elessabemcomosedivertir—comentouBela.

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AFeraassentiu.— Às vezes, quando estou jantando, ouço as risadas e finjo que estou

comendocomeles.— Você deveria fazer isso! — exclamou Bela, impressionada que ele

admitissetalcoisa.—Elesiriamadorar.—Não,eujátentei—respondeuele,comalevezadomomentoindoembora

tãorápidoquantoviera.—Quandoentroemumcômodo,asrisadasacabam.AbocadeBelaseabriuefechou.Eraexatamentecomoelasesentiatodavez

queentravanaaldeia.ElacontouissoàFera.Entãoacrescentou:—Osaldeõesdizemquesouumagarotaengraçada,maseunãoachoqueé

comosefosseumelogio.—Parasuasurpresa,elasentiulágrimasseformandoemseusolhos.Elanuncahaviaadmitidoparaninguém,nemmesmoparaopai,queissoferiaseussentimentos.—Sintomuito—disseaFera,genuinamente.—Suaaldeiapareceterrível.—Quasetãosolitáriaquantoseucastelo—disseBela.MaisumavezaFeraassentiu,semseofendercomadeclaração.Nosúltimos

dias,apresençadeBelaeavidaqueelasopravanocastelohaviammostradoaeleoquãosolitárioolocalestivera.—Não foi sempreassim—disseele.Eleparoucomoseuma ideia tivesse

surgidoemsuamente,entãosorriu.—Oqueachadeescaparmosdaqui?Bela inclinouacabeça, surpresacoma sugestão.Eraaúltima coisaqueela

esperavaouvirdabocadaFera. Intrigada,elaassentiueo seguiupara foradacolunataedevoltaaocastelo.Apesardetodasasperguntasqueseformavamemsuamente,elapermaneceuemsilêncioenquantoeleaguiavapelosjáfamiliarescorredoreseporumlancedeescadasatéabiblioteca.Decidido,aFeraandouatéumamesasimplesqueestavaencostadaemuma

das paredes da biblioteca. Tirou uma chave do bolso e destrancou um dosgabinetes.Bela espiou por cima do ombro dele. Repousando em uma almofada de

veludoestavaomaisbelolivroqueBelajávira.Acapadecouroerarevestidacomuma folhadeouroebrilhavaapesardagrossa camadadepoeira.PareciamágicoparaBela,eelaseesticouparaalcançá-loetocá-lo.—Afeiticeiraquemedeu—contouaFera,vendoosolhosarregaladosde

Bela.—Mais uma de suas muitas maldições.— Ele o abriu lentamente e alombada estalou pela falta de uso. Não havia texto nem página de título oudedicatória.Emvezdisso,aprimeirapáginarevelavaumantigoatlasmundial.Diferente da maioria dos atlas, este não mostrava países ou capitais, mas

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somente a terra e o mar. Bela olhou para a Fera com uma expressãointerrogativa.Eleexplicou:—Esteéumlivroquepermitequevocêescapedeverdade.Dandoumpassoàfrente,osolhosdeBelasearregalaramaindamaisquando

ela viu o desenho criar vida. Ondas se chocavam contra as praias. Árvoresverdesbalançavamaosventos invisíveis.Umpódourado leveparecia sairdaspáginaserodopiarlentamentepeloscontinentesdomapa.—Queincrível—soltouela,sentindoseucoraçãoacelerardentrodopeito.AFeranãopareciaimpressionada.—Foiomaiscrueldostruquesdafeiticeira—eledisse.—Omundoláfora

nãotemlugarparaummonstrocomoeu.Masparavocê,sim.—EleseinclinoudevagarepegouamãodeBela.Entãogentilmenteamoveuatéolivro.—Pensenolugarquemaisqueiraconhecer.Primeirovejacomosolhosdamente.Agorasintaemseucoração.Belafechouosolhos.Elanãoprecisavapensarnolugarquequeriaconhecer.

Ela sabia instintivamente. Esticou os dedos e os posicionou na página.A salaentãocomeçouagirareasparedesdabibliotecacomeçaramadesaparecer.QuandoBelaabriuosolhos,elanãoestavamaisolhandoparaasestantesde

livrosdochãoaoteto.Osjardinstranquiloscobertosdenevehaviamsumidoeasestrelasseforam.Elesestavamemumpequenoapartamentoempoeiradocomvistaparaluzesbrilhandonohorizontedeumacidade.AFeraolhoupelajanelaeviuahélicedemadeiradeummoinhodeventose

movendo.—Ondeestamos?—Paris—revelouBela,emumsussurroquaseinaudívelaosomdashélices

domoinhodeMontmartregirandopróximo.— Oh, eu amo Paris— exclamou a Fera.— O que você gostaria de ver

primeiro?ACatedraldeNotre-Dame?AChamps-Élysées?Turísticodemais?MasBelaestavaabsorvidaemseusprópriospensamentos,olhandoao redor

dopequenoquartoescuro.Elapensaranaqueleapartamentoportantosanoseoimaginara com os olhos da mente, mas nunca ousou sonhar que o veria deverdade.Seusolhosseencheramdelágrimas.—Étãomenordoqueeuimaginava—disseelaapósummomento,piscando

paraconteraslágrimas.Eles foram transportadosparaosótãoempoeiradoondeBelaviveucomseu

pai e sua mãe tantos anos antes. Parecia abandonado, restando apenas umpequenoberçoeumcavaletequebradocomolembrançasdequeolocaljáfora

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um lar. Conforme Bela andou pelo espaço, a tristeza que sentiu no inícioretornou com uma vingança. Por alguma razão, ela imaginara que o livroencantado revelaria seu lar de infância como havia sido, não no estado atual.Mas ela claramente estava olhando para um local vazio. Ninguémmorava alihaviaanos,desdequeMauricetinhasemudadocomBelaparaointerior.Atrás dela, a Fera permanecia em silêncio, deixando que ela tivesse seu

momento de nostalgia. Quando, porém, ela pegou um chocalho que estavapenduradonocantodoberço,elefinalmentefalou.—Oqueaconteceucomasuamãe?—perguntouelecomsuavidade.—Essa é a única história que papai nunca se dispõe ame contar— disse

Bela,apertandoochocalho.Amadeiraestavavelha,masosdetalhesaindaeramextraordinários.Eraumarosaperfeitamenteesculpida.—Eeuseiquenãodevoperguntar.Enquantoelafalava,osolhosdaFerapassearamatéocantodocômodo.Ele

semoveucomumaexpressãoaflitaparapegarumamáscarapretaquelembravaobicodeumpássaro.Aquelamáscarasignificavaapenasumacoisa:eraoqueosmédicosusavamparaseprotegerdadoençanefastadeseuspacientes.Belaseguiu o olhar dele e, ao ver a máscara, lágrimas encheram seus olhosnovamente.Apeste.Era issoquehavia levadosuamãe.Foioque fezseupaifugirparaasegurançadointerior.Todosessesanos,elaseressentiuporsermantidapresaemVilleneuve.Mas

agora ela sabia o que ele tinha enfrentado. Podia imaginar suamãe insistindopara que ele levasse a filha embora, implorando que a deixassem antes quetambém fossem infectados. Ela não conseguia imaginar como o pai se sentiravendo sua amadamorrer lentamente sempoder salvá-la.Os nós dos dedos deBelaperderamacorquandoelaapertouochocalhoderosacommaisforça.—Sintomuitoporterchamadoseupaideladrão—disseaFera.Perdida em seus pensamentos, Bela se surpreendeu com a voz profunda da

Fera.Ela sevirouparaolhá-lo.Preocupaçãomarcava seus traços comnitidez.Belasecouaslágrimasedeuumaúltimaolhadapelosótão.Elaviraosuficiente.Emseguida,pôsochocalhonobolsodoaventalparanãoseseparardele.Inclinando-se,elapegouamãodaFera.—Vamosparacasa—disseela.—Paraocastelo.AFera assentiu e, juntos, eles colocaramasmãos sobre aspáginasdo livro

encantado,fecharamosolhos…eimaginaramseular.

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CAPÍTULOXII

Gaston estava ficando impaciente. Ele havia passado as últimas semanasfazendo o de sempre: caçando, disputando concursos de quem comia mais,levando uma das garotas da aldeia para jantar.Mas ele se perguntava quandoBelaenfimretornaria.Mauriceseforahaviamuitotempo.ElenãovoltariaparaincomodarGastone,

quandoBelaretornassedeondequerqueestivesse,ocaminhoparasecasarcomelaestarialivre.Sim,tudodariacerto,pensouenquantoiaatéatavernaparasuadosediáriadebebidaeadoração.Elesóprecisavaquesuafuturaesposavoltasselogoparacasa.EqueLeFouparassedefalar.Ocompanheiro assíduodeGaston estava,mais umavez, balbuciando sobre

Maurice,oquedificultavaparaGastondeixaromomentonopassado.—Uau,issoéumproblema—diziaohomenzinho.—Maspelomenosnão

estamos amarrados a uma árvore no meio do nada, certo? Sabe, não é tardedemais.Nóspodemossimplesmentebuscá-lo…Gastonnãorespondeu.LeFoupressionou:—É que toda vez que eu fechomeus olhos imaginoMaurice abandonado.

Então,quandoosabro,eleestá…SuavozsumiuquandoGastonabriuasportasda tavernaeelesencontraram

Mauriceládentro.— Oh, engraçado, eu ia dizer “morto” — finalizou LeFou com a voz

falhando.Maurice estava cercado pelos frequentadores tradicionais da taverna,

incluindoooleiroJeanepèreRobert.Alémdeumnarizvermelho,eleparecianão ter sequelas, e era claro pelos punhais que os aldeões apontavam para

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Gastonque,passadaasuaprovação,eleestiverabemosuficienteparacontaratodosoquetinhaacontecido.—Gaston—disseJean,comavozséria.—VocêtentoumatarMaurice?Gastonsabiaquetinhapoucasopções.Elepodialutar,oqueerasuaresposta

comum. Ele podia correr, mas aquela opção era covarde e lhe dava arrepios.Então, após uma rápida olhada ao redor, decidiu escolher uma terceira opção:negar,negarenegar.Engessandoumsorrisoacolhedornorosto,avançourápidonadireçãodeMaurice,queestavacomosbraçoscruzados.—Oh,Maurice—começouGaston.—Graças aos céus.Passei os últimos

cinco dias tentando encontrá-lo. Por que você fugiu para a floresta nessascondições?Enquanto suas palavras ressoavam pelo salão, os aldeões reunidos ficaram

confusos,semsaberemquemacreditar.—Oquê?—disseMaurice,incrédulo.Elebalançouacabeça.—Não!Você

tentoumematar!Vocêmedeixouparaoslobos!Gaston colocou amãonopeito como se as palavrasdeMauriceo tivessem

ferido.—Lobos?Doquevocêestáfalando?—perguntouele.Gastonolhouparaos

aldeõeserevirouosolhoscomoquemdiz,Vamosmesmovoltaraessepontodenovo? Vocês vão mesmo acreditar neste homem? Ele tentou não sorrir compresunçãoquandoamaioriadelesretribuiuorevirardeolhos.—OslobosqueestavampertodocastelodaFera—respondeuMaurice,com

suavozaumentandoecontribuindocomaaparêncialunática.—Estácerto—disseGastoncomcondescendência.—Háumabestaemum

casteloquedealgumaformaninguémnuncaviu?Mauricehesitou.Olhandoaoredordosalão,eleviuquetodosesperavampor

suaresposta.—Bem…sim—respondeuele,porfim.GastontinhaMaurice—etodososoutros—exatamenteondequeria.Como

quando encurralava sua presa nas caçadas, ele colocouMaurice na defensiva,comosesoubessequeseutempoestavaacabando.Devagar,Gastonbalançouacabeça.—Umacoisaédelirarnassuasilusões—comentouele.—Outracoisaéme

acusardeassassinato.Para sua surpresa, foi père Robert, e nãoMaurice, quem se posicionou. O

padre deu um passo à frente de Maurice na defensiva. Então olhou para amultidãoreunida.

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—Ouçam o que tenho a dizer, todos vocês— clamou o padre.— Este éMaurice,nossovizinho.Nossoamigo.Eleéumbomhomem.Gastontentounãorir.Elemesmonãoteriamontadoumcenáriomelhorparao

golpefinal.—Estásugerindoqueeunãosou?—questionou,soandoofendido.—Eunão

salveiessaaldeiadaselvageriadossaqueadoresportugueses?Eunãosouaúnicarazão pela qual vocês estão reunidos nesta tarde, em vez de enterrados nascolinas?Suaspalavras,comoumaflechadisparadadeseuarco,atingiramoalvo.Os

aldeõesmurmuraramunscomosoutros,duvidandoclaramentedeMaurice.—Maurice—disseooleiroJean,virando-separaovelhohomem.—Você

temalgumaprovadoqueestádizendo?— Pergunte a Ágata!— respondeu ele, tentando desesperadamente manter

Jeandoseulado.—Elameresgatou!—Virando-se,eleapontouparaooutrocantodataverna,ondeavelhapedinteobservavatudoemsilêncio.Sentindoosolhares de todos sobre si, Ágata se cobriu e apertou o capuz esfarrapado emvoltadorosto.Gastonergueuumasobrancelha.—Vocêsustentasuaacusaçãonotestemunhodeumavelhamendigaimunda?

—disseele.Percebendoqueaquelanãodeviatersidoamelhordasapostas,Mauriceolhou

ao redor. Ele precisava mudar de tática. Ao avistar o companheiro semprepresentedeGaston,Mauricesoltouumgrito:—MonsieurLeFou!Eleestavalá.Viutudo!— Eu? — disse LeFou, engolindo em seco quando todas as atenções se

voltaramparaele.—Você tem razão.Não tomemminha palavra neste caso—disseGaston,

mais uma vez empolgado com toda a cena se desenrolando a seu favor. Eleandou até o amigo e o envolveu com o braço. — LeFou, meu queridocompanheiro, você e eu,LeDuo— suavoz transbordou falsidadequando eleusouoapelido—,encontramosalgumabestaoucasteloassombradoemnossabusca?A cabeça de LeFou balançou para a frente e para trás. Gaston apertou seu

ombrocommaisforça.Eraóbviaarespostaqueelequeriaouvir.Mas,olhandoparaMaurice,LeFouselembroudoquãomalsesentiraquandoelesodeixaramparatrás,sozinhonofrioenaescuridão.Gastonapertou-oaindamais.— É uma pergunta complicada por várias razões, mas… não? — ele

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finalmenterespondeu.—Eeu,seumaisvelhoamigoemaislealcompatriota—continuouGaston,

exagerandonotom—,tenteimataropaidaúnicamulherquejáamei?—Bem…—LeFouseesquivou.—“Matar”éumapalavramuitoforte.Não.

Não,vocênãofezisso.Eratudooqueamultidãoprecisavaouvir.Imediatamente,asortemudoude

MauriceparaGaston.Enquantoorostodovelhohomemmurchava,umsorrisoarroganteserepuxounocantodabocadeGaston.Elevencera.—Maurice,memachucadizerisso—eledissecomfalsidade—,masvocêse

tornouumperigoparasieparaosoutros.Vocêprecisadeajuda,senhor.Deumlugarparacurarsuamenteperturbada.—EleseaproximouecolocouumadesuasmãozonasnoombrodeMaurice.Entãooapertoucomforça.—Tudovaificar bem.—Mas, enquanto suas palavras eramgentis, seu tomeramais frioqueogelo.Maurice engoliu em seco. Ele não tinha dúvida nada iria ficar bem. Nada

mesmo.

Dentro do castelo, a Fera estava tendo pensamentos semelhantes. O tempocorria,eelenãotinhaamaisremotaideiaseascoisasficariambem.Claramentenãoeraoúnico.Emboraelequisesseseprepararsozinhoparaaquelanoite,umaplateiahaviaseformado:umaplateiacommuitopalpiteparadar.—Éhoje,mestre—dissemadameSamovar aoentrarnaalaoeste.AFera

estavanograndebanheiro,imersoemumaenormebanheiracomáguaquenteesabão.—Éagoraoununca.—Orelógioestágirando—acrescentouHorloge.—Arosasótemmaisquatropétalas—falouLumière.—Oquesignificaque

estanoite…vocêtemquedizeraelaoquesente.AFerasuspirou.Elesabiaquesuaequipesóestavatentandoajudar.Nadaque

diziameraumanovidade.Elesabiaqueotempoestavaacabando.Elesabiaqueaquelanoiteeraimportante.ElesabiaqueBelaerasuaúnicachance—aúnicachance do castelo. Ouvir tudo aquilo em voz alta não ajudou a conter suaansiedadecrescente.Eelenãoseimportavaemadmitironervosismoquesentiaemrelaçãoaoanoitecerqueseaproximava.AFerahavia feitoumcomentáriocasual comBela sobreoquãobonitoestavao salãodepoisde todoo trabalhoduroecomoelesdeveriamcelebrarcomumadança.Elenunca imaginaraqueeladiria“sim”.Elesinalizouparaquelhedessemummomentodeprivacidadeeterminouseu

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banho.Umacortinahaviasidocolocadanafrentedabanheira.Eleselevantouesesacudiuparasecarocorpo.Finalmente,elefalou:—Elanuncavaimeamar.—Nãodesanime—disseLumièreparaasombradaFeranacortina.—Elaé

aescolhida.—Nãoháumaescolhida—retrucouaFera.Elepuxouacortinaedeuum

passoatéaluzprovidapelasvelasdeLumière.—Olheparamim.Elamerecemuitomaisdoqueumabesta.Emsuaprópriadefesa,LumièrenãoseencolheuaoveraFera,quenaquele

momentopareciaparticularmenteengraçado.Seupeloestavaarrepiadoemtodasasdireçõesporcausadeseusmovimentosdesecagem,eatoalhaqueeletinhaprendidoao redorda cintura fazia seusombrospareceremaindamais largos epeludos.Lumièrelimpouagargantaeinsistiu:—Vocêseimportacomela,não?AFeraassentiu.EleseimportavacomBela,maisdoquejamaisimaginouque

seriapossível.OsúltimosdiaseaviagemdelesparaParishaviamfortalecidoossentimentos.Maselenãoeratolo.Emborapudessetercomeçadoagostardela,eelativesseaprendidoaestarpertodelesemsentirmedo,aquilonãosignificavaque ela o amava. Ele era uma besta, afinal. Não importava quantos banhostomasse, as roupas que vestisse ou se conseguisse tomar sua sopa de colher,aquilonãomudaria—anãoserqueeladefatooamassecomoeleera.Masissoeraimprovável.Lumière viu a dúvida e o medo nos olhos de seu mestre, mas seguiu em

frente,encorajadopeloaceno.— Bem, então vou impressioná-la com uma bela música e luz de velas

romântica…—Sim—acrescentouPlumette.—E,quandoforomomentocerto…AFerainclinouacabeça.—Comovousaber?Horloge, que até aquele ponto estava se mantendo fora da conversa de

propósito,limpouagarganta.— Em minha experiência — disse ele —, você vai se sentir um pouco

nauseado.Lumièrelançouumolharaorelógio,silenciando-o.—Nãosepreocupe,mestre—disseocandelabro,voltando-separaaFera.—

Vocêvaisesairbem.Oproblemaatéentãoeraqueagarotanãoenxergavaseuverdadeiroeu.

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— Não — discordou madame Samovar. — O problema era que… elaenxergava.Imediatamente,ocômodoficouemsilêncio.Atensãopesounoarconformea

equipe se virou para encarar o bule. Alguns, como Lumière, esperavam veralgum sinal de humor nos olhos dela. Outros, como Horloge, não ficaramsurpresoscomsuadeclaraçãorepentina.Dequalquermodo,asatençõesdetodosfinalmente se voltaram para a Fera, que virou o foco de olhos arregaladosenquantomadameSamovarprosseguia:— Por anos, nós insistimos em acreditar que essa maldição o tornaria um

homemmelhor.Masvocêcontinuousendoirado,egoístaecruel,eotempodetodosnósestáacabando.Etemmaisumacoisaquetodososservostinhammedodemaisparalhedizer.—Oquê?—perguntouaFera.Ele estava surpresoemdescobrirque tinha

medodaresposta.Elairialhecontaroquantoeleeraodiado?Oquãomiseráveiseles se sentiram e por quanto tempo? Era possível que ela encontrasse umaformadefazê-losesentiraindapior?—Nósamamosvocê—dissemadameSamovar.AFeraquasecaiuparatráscomopesodaquelaspalavras.Detodasascoisas

queeleimaginavaqueelapudessedizer…—Atéentão—continuouMadameSamovar—,nósoamávamosadespeito

dequemvocêera.Mas,desdequeessagarotachegou,nósoamamosporvocêserquemé.—Aoredordela,osservosassentiramemconcordância.—Então,pare de ser um covarde e diga a Bela como se sente. Se você não fizer isso,prometoquebeberácháfriopelorestodesuavida.—Noescuro—acrescentouLumière.—Cobertodepó—emendouPlumette.Emsilêncio,aequipeolhouparaaFeraeesperouporsuaresposta.EntãoaFerasorriu.Discretono início,osorrisoseespalhoupor todooseu

rostoatédominá-lo.EnãofoiaexpressãosinistraqueelefezparaBelanaqueleprimeiro dia. Era um sorriso caloroso.Um sorriso genuíno.O sorriso de umafera que não se sentia mais só. O sorriso de um homem que enfim tinhaesperança.

Enquanto Bela estava em seu quarto, deixando queMadame de Garderobe aembelezasseemimasse,foidenovoatingidaporumacrisedenervos.Desdequeaceitaracelebrararestauraçãodosalãocomumadança,borboletasseinstalaramfirmementeemseuestômago.Agora,comaaproximaçãodomomentodedescer

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asescadas,aansiedadeestavaaumentando.Depoisque retornaramdeParis,Bela sentiuoutramudançasignificativaem

sua relação com aFera.Ele a vira em seu estadomais vulnerável e fora umafonte de força para ela. A conversa deles agora ia muito além de livros. Ascaminhadas nos jardins eram mais longas, e nenhum dos dois queria queterminassem.Belasepegouansiosaparaojantar,nãomaissomentepelacomidadeliciosa, mas pela companhia. Se ela tivesse um amigo para conversar,provavelmente teria admitido que seus sentimentos pela Fera, por maisimprováveis que parecessem, haviam se tornado mais profundos do que elajamaisimaginaraserpossível.Eagoraelaestavaprestesapassarumanoitecomeledançandonosalão.Ela

suspirou.Comochegaraatéali?MadamedeGarderobefezumúltimoajustenovestidodeBelaeavirou,para

queficassedefrenteparaoespelhodecorpointeiro.Bela engasgou.Depois de seu primeiro dia no castelo, ela havia ficado um

pouco hesitante em deixar que o guarda-roupa a vestisse. Elas haviamconversado sobre a preferência de Bela por roupas sem babados e comelementospráticos,comobainhasquenãoarrastavamnochãoebolsos—paraadecepçãodeMadamedeGarderobe.Devagar, porém, Madame de Garderobe começou a criar conjuntos que

combinavam perfeitamente com Bela. E naquela noite ela havia se superado.Bela sequer reconheciaagarotaquea encaravadevolta comolhoscastanhos.Seu cabelo estava metade preso para trás, acentuando suas bochechas, quehaviamsidolevementecobertasdeblush.Eovestido…Ovestidoeraalgoalémdasmais ousadas fantasias de Bela. Ele flutuava ao seu redor como um halodourado.Acadamovimentodela,otrajebrilhava,capturandoaluzelançando-adevoltaaocômodo.MadamedeGarderobeesticouumadesuasgavetase,derepente, uma camada de pó de ouro caiu magicamente do teto, cobrindo ovestidoeodeixando,seéqueerapossível,aindamaisradiante.Alémdetudo,aroupapermitiaqueelasemovimentasselivremente,levecomoumapluma.Satisfeitacomseu trabalho,MadamedeGarderobeempurrouBelapara fora

doquarto.Ajovemficouparadaporumlongomomento,comseucoraçãobatendoforte.

Éapenasumanoitecomooutraqualquer,elapensou.Paredeperder tempoedesçaaquelasescadas.Respirando fundo, Bela começou a grande caminhada pelo saguão até as

escadas.Chegandoaocimo,elaolhouparaotopodaescadariadaalaoeste,do

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outro lado. Para sua surpresa, a Fera estava lá, vestido em seu melhor trajeformal e parecendo tão nervoso quanto ela. Seus olhos se encontraram. Elesandaram na direção um do outro e se encontraram na área central. Então elecurvou a cabeça e estendeu o braço, convidando-a sem dizer nada. Ela nãohesitouemaceitar.Juntos,desceramasescadas.Acadapasso,aansiedadedeBeladesaparecia.

AsensaçãodecaminharaoladodaFeraerafamiliar.E,quandoelecomeçouaguiá-laatéasaladejantar,foidecisãodeladesviarparaosalão.Elasentiuahesitaçãodeleconformeoguiavaatéomeiodapistadedança.

Tão rápido quanto veio, o receio se foi assim que a música magicamentecomeçouatocar.Osalãohaviasidolimpoeiluminadocomcentenasdevelas,para que tudo brilhasse tal qual o vestido dourado de Bela. O palco estavamontado.Entãoosdoiscomeçaramadançar.Elesvalsaramnoritmoperfeito,comos

pésdeBelaseguindoosdaFeraautomaticamente.Elessemoveramemsériesdepassosegirosdelicados,emsintoniaumcomooutro.Eracomosejádançassemjuntos por anos, e nãominutos, emais uma vezBela se impressionou com oquanto se sentia confortável na companhia da Fera.QuandomaestroCadenzaatingiuoclímaxdamúsica,aFeraergueuBelaparaquepairasseaoseuladoeaarrastou para ummergulho emocionante no ar. Quando a música acabou e osalão caiu em silêncio, Bela sentiu um estranho ímpeto de tristeza por terchegadoaofim.Como se tivesse percebido, a Fera não soltou sua mão. Ele a levou até o

grande terraço que cercava o salão. Um silêncio cúmplice caiu sobre ambosquandoolharamjuntosparaocéuestrelado.Oarestavafrescocomosempreaoredor do castelo encantado, mas não desconfortável. Bela sentiu como se osbraçosdaFeraaindaaenvolvessem,enquantoocalordosalãodealgumaformasedissipava.— Eu não dançava há anos— comentou a Fera, quebrando o silêncio.—

Quasemeesquecidasensação.—EledesviouosolhosdasestrelasefitouBela.Seuolhareracheiodeafeto…edealgomais.Ele trocouospésde lugarcomnervosismo, como se não tivesse certeza se deveria continuar. Bela aguardou,tentandoencorajá-loemsilêncio.Entãoelecontinuou:—Éinsensato,suponho,queumacriaturacomoeutenhaesperançadeumdiaconquistarsuaafeição.Bela hesitou. Não era insensato. Pelo menos, alguns momentos antes não

parecia.—Nãosei…—disseelacomdoçura.

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AesperançainflamouosolhosdaFera.—Mesmo?—perguntouele.—Vocêachaquepoderiaserfelizaqui?—Alguémpodeserfelizsenãoforlivre?—Belareplicousuavemente.AFerapiscoucomopesodaculpa,sabendoqueelatinharazão.UmaimagemdeMauricepassoupelamentedeBela.—Meupaimeensinouadançar.Nossacasasemprefoirepletademúsica.—Vocêdevesentirfaltadele—disseaFera,sentindootomdevozdela.Belaassentiu:—Muito.Vendo as lágrimas brotarem dos olhos de Bela, a Fera sentiu o coração

apertar. Ele detestava vê-la sofrendo, especialmente quando sabia que poderiaaliviarador.—Venhacomigo—disseele,pegandoamãodela.Semfalarmaisnada,eleaguiouparaforadoterraçoedevoltaaosalão.Não

respondeuquandoelaperguntouaonde estavam indoenão explicouquandoaconduziuatéseuquartoeergueuumpequenoespelhodemãoemsuadireção.Tudooqueeledissefoi“Mostre-meMaurice”.EntãoentregouoobjetoaBelaeesperou.Asuperfíciedoespelho rodopioumagicamentee,em instantes,o reflexode

Bela foi substituído por uma imagem de Maurice. Em crescente horror, elaassistiuaseupaiserarrastadopelocentrodaaldeia.Comterrorestampadonorosto,elegritavaporsocorro.—Papai!—exclamouela.—Oqueestãofazendocomele?AFeraesperavaqueBelaficassefelizaolhemostrarMaurice.Suareaçãonão

foi como ele previra. Ele espiou por cima do ombro dela e seus olhos searregalaramquandoviuoquesepassavacomovelhohomem.AdorporBelaepeloqueestavaacontecendocomseupaiseapossoudele.Então,enquantoBelacontinuavaaobservaroespelho,oolhardaFeradesviouparaaredomadarosa.Outrapétalacaiu.AspalavrasdemadameSamovarecoaramemsuacabeça.Asensaçãodamão

de Bela sobre a dele o incendiou. Ele imaginou sua equipe, seus rostosesperançososquandoelefinalmentesevestiraparaanoite.Entãoolhoudevoltapara Bela e viu amágoa em seus olhos. Ele sabia que este era ummomentodecisivo.Mas também sabia que não havia escolha. Ele tinha que começar acorrigiroserrosquepodiacorrigir.—Vocêprecisairatéele—disseaFera,tentandomascararsuaprópriador.Belaergueuoolhar.

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—Oquevocêdisse?—elaperguntou,chocada.—Vocênãoémaisumaprisioneiraaqui—continuouele.—Nãohátempoa

perder.Lágrimas de gratidão e apreço substituíram as lágrimas de tristeza quando

BelaolhouparaaFera.Havia tantascoisasqueelaqueriadizer.Tantascoisasqueprecisava dizer.Mas ela não sabia por onde começar. Tentou devolver oespelho,maselebalançouacabeça.—Fiquecomele—disseaFera—,paraquevocêpossaselembrardemim.—Obrigada—sussurrouela.Obrigadaportudo,acrescentoumentalmente.Então,antesquemudassedeideia,Belasevirouesaiucorrendo.

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CAPÍTULOXIII

AFeranãovoltouadescerasescadas.Elenãopodiasuportaraideiadeverosrostosansiososeesperançososdesuaequipe.Emvezdisso,andouatéavarandadaalaoeste,semousarrelancearparaaredomaeverquantaspétalasrestavamnarosaencantada.Deondeestava,eleobservouBeladisparandocomPhilippe,ouviuoruídodoportãodocastelosefechandoatrásdelaecontinuouescutandoatéosomdoscascosdocavalodesaparecernosilêncio,enquantoelagalopavapela mata. Ainda assim não se moveu. Nem mesmo quando o céu limpo seenublou eo ar se tornoudesconfortavelmente frio.Elepermaneceu ali, comoventoaumentandoeaçoitandoseumantoeseusolhosazuisperturbados.Sua última chance se fora… para sempre. Embora eles tivessem

compartilhado uma noite mágica, de alguma forma ele sabia que Bela nuncamaisretornaria.Depois de um tempo, ele voltou ao quarto, desabotoando seu belomanto e

deixandoquecaíssenochão.Portrás,ouviuosominconfundíveldobamboleiodeHorloge.—Bem,mestre—disseomordomo,comavozanimada—,possoterminhas

dúvidas,mastudoestáfuncionandocomoumrelógio.—Eleriudeseuprópriojogodepalavras.—Overdadeiroamorsempreganhanofimdascontas.—Euadeixeiir—disseaFera,comotomsóbrio.Dequeadiantavaadiaro

inevitável?Eraumcastelogrande,defato,masasnotíciasseespalhavamrápido.Eramelhortornarpúblicologoelidarcomasconsequências.AbocadeHorlogeseescancarou.—Você…oquê?Como se fosse um sinal, Lumière e Plumette entraram na sala. Madame

Samovar os seguiu em seu carrinho. Pelas expressões em seus rostos, a Ferapodiadizerqueelestinhamouvidotudo.

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—Mestre…—disseLumière,comaschamasdesuasvelasenfraquecendo.—Comopôdefazerisso?—Eunãotiveescolha—aFerasimplesmenterespondeu.—Masporquê?—LumièreeHorlogeperguntaramemuníssono.AmbosestavamolhandoconfusosparaaFera.Aquelecomportamentoeratão

estranho.EracomosederepenteaFerativessesetransformadoemumapessoadiferente.—Porqueeleaama—madameSamovarrespondeupelaFera.Todosseviraramparaobule.Suavozerasuaveesuaexpressãoeratristeao

olharparaaFera.Osombrosdeledesabaram,maselenãonegouoquemadameSamovarafirmara.Elaestavacerta.EleamavaBela.—Entãoporquenãonos tornamoshumanos?—perguntouLumière,ainda

confuso.Horloge,infelizmente,nãoestavamaisconfuso.Agoraestavafurioso.—Porqueelanãooama!—disparouele.—Eagoraétardedemais.—Maselaaindapodevoltar…—Plumettesugeriuesperançosa.AFerabalançouacabeça.—Não.Eualibertei.—Elevirouascostasparaacriadagem.—Sintomuito

nãopoderfazeromesmoportodosvocês—disseele,comtodaasinceridadedecadafibradoseuser.Então, saindo para sua varanda, ele olhou para o estábulo vazio. Ver Bela

guiandoPhilippeparaforafoiacoisamaisdifícilqueaFerajáhaviafeito.AdorqueelesentiranosprimeirosanosdepoisqueafeiticeiraoamaldiçoarapareceupoucopertodosofrimentodeverBelamontandoocavaloparapartir.Eletinhaaberto seu coração havia tanto tempo fechado, e qual tinha sido o resultado?Umaferidamaisprofundadoqueeleeracapazdesuportar.PorqueelesabiaqueamemóriadeBela,assimcomoamaldição,ficariacomeleparasempre.Eledeixouasacadaecomeçouasubirpelatorremaisaltadocastelo.Ovento

sopravacontraele,ameaçandoaçoitá-lodiretoparaaspedras,masaindaassimele continuou escalando. As rajadas ameaçadoras eram uma distração bem-vinda.MasnemissoerasuficienteparaimpedirqueimagensdeBelapairassememsuamente.Alcançandootopodatorre,eleobservouatravésdafloresta,naesperançadeterumúltimovislumbredela.Mastudooqueviuforamárvores.Comumgemido,eledesabounochão.Nãohaviamaiscomonegar:elahaviapartidoparasempre.Tudooquerestavadela,tudooqueelesempreteria,erammemóriasquedesapareceriamcomotempo,deixando-oparasempresozinho…enocorpodeumabesta.

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Bela apressou Philippe, cutucando suas laterais com os calcanhares. Ela sabiaqueo cavalo estava enfraquecendo,masprecisavavoltar paraVilleneuve.Seupaiestavaemperigo.Noinício,amataeraestranhaparaela,e tudooquepodiafazereraesperar

quePhilippelembrasseaondeestavaindo.Maslogoelacomeçouareconhecermarcas familiares.Um trechodeamorasaqui,umpequeno lagoali.Quandoaluaseergueunocéu,elafinalmenteemergiudamataparaaclareiranapontadaaldeia.Elasecertificoudequesuaspossesmaisvaliosas—oespelhomágicoeumapequenabolsadecetimqueelapegaranocastelo—aindaestavamsegurasemseubolso.Ao ouvir uma comoção próximo ao centro da aldeia, Bela guiou Philippe

naqueladireção.Parasuasurpresa,umamultidãoestavareunidaaoredordeumacarruagemquepareciaumapequenaprisãodemetal,comsuaestruturadeaçoeumajanelabemvedada.ElaavistouGastoneLeFoupróximos.Gastonpareciaorgulhoso como sempre; já LeFou parecia desconfortável. Ela continuou aavaliaracena,entãoquaseperdeuofôlego.Mauriceestavacaídodentrodaceladacarruagem.Enquanto Bela observava, père Robert correu na direção do homem que

estavatrancandoMaurice:monsieurD’Arque,odiretordoasilodacidade.—Estehomemestáferido!—dissepèreRobert.—Porfavor!Eleprecisade

umhospital,nãodeumasilo!Ignorando-o, D’Arque terminou sua tarefa e seguiu para o assento do

condutor.Gastonseaproximoueseapoiounacarruagem,parecendosussurraralgoparaMaurice.Bela já vira o suficiente. Aquela carruagem não iria a lugar nenhum.

OrdenandoquePhilippeavançasse,elaabriucaminhonomeiodosmoradores.—Parem!—gritouela.Sua voz rasgou a multidão, silenciando todos. As pessoas viraram em sua

direçãodeolhosarregalados.Seuvestidodegalaflutuavaaoredor,comobrilhodouradorefletindooluarefazendootrajereluzirmagicamente.Elapodiaouvirossussurrosdosaldeõescomeçandocomoumaonda.Algunsseperguntavamdeondeelaviera.OutrosqueriamsaberseerarealmenteBela.Outrosmurmuravamsobre“aquelevestido”cominvejaeespanto.Ignorando-os, Bela desmontou do cavalo. Ela manteve a cabeça erguida,

procurando apoio nos olhares dos aldeões.Não encontroumuito.Amaioria aobservava com nítida desconfiança agora que o choque inicial havia passado.

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Aindaassim,haviaalgunsrostosamigáveis.PèreRobertestavaperto,comsuaexpressãoperplexa e umpoucoderrotada.E Jean, o oleiro, estava lá também,emboraparecesseconfusoeimpotente,comosempre.Contendo omonte de palavras rudes que queria disparar contra os aldeões,

Belaandouatéafrentedacarruagem.—Paremcomissoagoramesmo!—ordenouela,assustandooscavalos.Ela

correuatéapartetraseiraeespiouatravésdaportatrancada.Seupaiestavanochão,abraçandoocorpodedor.—Abramestaporta!Eleestáferido!Monsieur D’Arque desceu de seu assento. Quando ele caminhou em sua

direção,Belanãopôdeevitar seencolher.Haviaalgoobscuroecruelemseusolhos,esuapelepálidaalembravadosmonstrosdashistórias.—Temoquenãopossamosfazerisso,senhorita—disseele.—Masvamos

cuidar bem dele.—Embora suas palavras devessem soar reconfortantes, elasvieramcomoumaameaça.— Meu pai não é louco! — protestou Bela. Ela se virou e olhou para a

multidão, esperandopor ajuda.Ninguémdeuumpasso à frente.Enfim, ela sedirigiuaoúnicohomemquepoderiadefendê-laepediu:—Gaston…digaaele!Gastonsaiudassombrasondeaguardavaemsilêncio.Eleestavapreocupado

se Bela havia testemunhado sua participação no encarceramento de Maurice.Sabiaque, seela tivessevisto,qualquerchancedesecasaremacabaria.Masasorte, para variar, estava com ele. Ela parecia totalmente alheia ao fato.Estufandoopeito,eleassumiusuaexpressãomaissolidáriaeandouatéela.—Bela,vocêsabeoquãolealeusouàsuafamília—disseele,apostandona

sinceridade.—Masseupaitemfeitoalgumasalegaçõesincompreensíveis.— É verdade — disse Jean. — Ele tem delirado sobre uma fera em um

castelo.Bela olhou para os dois homens. Era por isso que Maurice estava sendo

levadoàforçaparaumsanatório?Elaquaseriualtodealívio.—Maseuacabeide retornardocastelo—eladisse rapidamente.—Existe

umafera!Alcançando-a, Gaston colocou umamão em seu ombro. Então lhe deu um

sorrisocondescendente.Sempreagindocomoumapresentador,elefalouparaamultidãoeparaela:—Todos nós admiramos sua devoção ao seu pai.Mas você diria qualquer

coisaparalibertá-lo.Suapalavraédifícildeprovar.OpânicodominouocoraçãodeBela.Elaprecisavadealgoparamostrar-lhes

quenãoestavainventando.Masoquê?Nobolsodovestido,suamãosefechou

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nocabodoespelho.—Vocêsqueremprovas?—perguntouela.Elapuxouoespelhoeosegurou

diantedorostodosaldeões.—Mostre-meaFera!Mais uma vez, o espelho rodopiou magicamente. O reflexo dos aldeões

desapareceu e, em seu lugar, surgiu uma imagem da Fera. Ele estava caídocontraaparededatorre,oretratododesamparo.—Aíestáaprovadevocês!—gritouBela.OrostodeGastonempalideceu

comochoque.—Bem,édifícilargumentarcontraisso—disseLeFouparaoamigo.—Issoéfeitiçaria!—berrouGaston,arrancandooespelhodasmãosdeBela.

Eleo segurouno altoparaque todosvissem.—Olhempara esta fera.Vejamsuaspresas!Suasgarras!Os aldeões esticaram o pescoço, tentando ver melhor, então recuaram à

primeira vista da Fera. Observando suas reações, Belamordeu os lábios comnervosismo.Ela não tinhapensadode forma sensata quandopuxouo espelho.EstavatãodesesperadaparasalvaropaiquenãolheocorreraoqueavisãodaFerapoderiacausarnosaldeões.Elanãotinhapensadoqueelesveriamapenasaaparência da Fera, em vez do homem aprisionado de quem ela aprendera agostar.—Não! — gritou ela, tentando consertar a situação. — Não fiquem com

medo.Eleégentilebondoso.—Ela está claramente enfeitiçada— clamouGaston, disparando um olhar

para Bela. — Se eu não soubesse o que está acontecendo, diria que até seimportacomessemonstro.Bela sentiu as palavras dele como um tapa no rosto.Depois de tudo o que

Gastontinhafeito,eleousavachamaraFerademonstro?—AFeranuncamachucarianinguém—disseela,virando-seeapelandopara

osaldeões.Elesaolharamdevoltacomexpressõesreceosas,eoincômodonabocadoestômagodeBelaaumentou.Eladeveriaterprevistoaquilo.OsaldeõesadoravamGaston.Eleera seuheróideguerra, seu lídernãooficial.Aúnicaepequenachancedenotoriedadedaaldeia. JáBelaeraumagarotaestranhaquegostavadeler.EnquantoGastoncontinuouainstigarafúriadosaldeõescontraaFera,Bela

recuou. Ela havia perdido toda a esperança de virar a situação a seu favor.Gastongritouparatrêsdeseuscapangas:—NãopodemospermitirqueelacorraparaavisaraFera.Prendam-na.Antesqueelapudessesevirarecorrer,umdoshomensagarroucomrudezao

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seubraço.Elachutouegritou,masnãoadiantou.EnquantoGastonexigiaquetrouxessemseucavalo,elafoiarrastadaejogadanaceladacarruagemondeseupaiestavapreso.MonsieurD’Arquesemoveuparaficardeguarda.Lançandoapernaporcimadeseugaranhãopreto,Gastonseviroumaisuma

vezparaosaldeões.Gritosdeaprovaçãoecoaramquandoeleergueuopunhoemdireçãoaocéunoturno.—Essacriaturavaiamaldiçoaratodosnóssenãoodetivermos!—vociferou

ele, incitando aindamais os aldeões.—Bem, eu digo que devemosmatar aFera!AaldeiairrompeuemgritossedentosporsangueenquantoBelaassistiaàcena

comhorroratrásdasgradesdeferro.Gastonestavaemseuhabitat.Eraparaissoqueelevivia:caosedestruição,violênciairracional.AFeranãoeraapenasummonstroassustadorparaele,erauminimigo,eistoeraumabatalha.Eleguiavaamultidão da aldeia, alimentando omedo daqueles homens emulheres até quebrilhassem e queimassem tanto quanto as tochas que alguns carregavam. Elecriouaimagemdeumacriaturaselvagemquevivianaescuridãoenassombras.Uma besta com presas afiadas como uma navalha e patas gigantescas. Ummonstroque rugiaeespumava.Umpesadelovivoqueprecisavaserdestruído.Nomomentoemqueamultidãodesapareceunamata,elesestavamcarregandoarmas de todos os formatos e tamanhos. Alguns seguravam pás; outros,forquilhas.Algunspoucos encontrarammachados eos erguerampor cimadosombros.Etodos—armadosounão—pareciamprontosparaseguirGastonemseuplanobárbarodemataraFera.Incapazdefazeralgo,Belaficouparada,agarrandoasbarrasdeferrocomas

mãos.AFera,madameSamovar,Lumière…todosqueelaaprendeuaamar…estavamemsérioperigo.Eeratudoporculpasua.

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CAPÍTULOXIV

DentrodocastelodaFera,osmembrosdaequipesentiamcomosejáestivessemmortos.Suaúnicaesperançadesalvação—Bela—haviaescapado,eagoraaFera estava de novo transtornada, a rosa continuava murchando e eles nãotinhamchancedereverteramaldiçãoantesquefossetardedemais.Conformeanoiteescureciaaindamais,elessereuniramnosaguão,buscando

consolo em tudo que lhes restava: uns aos outros.MadameSamovar eZip seaninharamjuntosnocarrinhodeservirenquantoPlumettedescansavasuacabeçanoombrodeLumière.Suaschamasestavamenfraquecendo,esuaexpressãoeratãosériaeexaustaquantoadeHorloge,quetinhaseisoladonumcanto.— Ele afinal aprendeu a amar— disse com tristeza Lumière, relanceando

paraajanelaquedavaparaatorreondeaFeraestavasentada.—Nãoservedemuitacoisaseelanãooamadevolta—apontouHorloge.

Elecruzouosbraçoseseemburrou.Balançando a cabeça, madame Samovar rolou seu carrinho para perto do

relógioresmungão.—Nãomesmo—disseela.—Esta foiaprimeiravezemqueeu tiveuma

esperançarealdequeelapudesseamá-lo.Horloge abriu a boca para retrucar,mas foi interrompido porZip.A jovem

xícaratinhaseviradoparaaportaeescutavaalgoatentamente.—Vocêouviuisso,mamãe?Éela?—perguntouele,saltitandodocarrinhoe

selançandoatéajanela.OrestantedaequipeseapressouparajuntodeZip.Elesseesticaramcontraa

vidraça,tentandoidentificaroquequerqueaxícarativesseouvido.Adistância,enxergaramluzesdetochasbrilhandoporentreasárvores.AschamasdeLumièreseacenderamdeempolgação.— Será? — perguntou ele, abrindo caminho entre os outros. Era difícil

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enxergar lá fora através do gelo que cobria a janela. Ele ergueu uma chama,aquecendo a vidraça até que o gelo derretesse. Então gritou: — Sacré bleu!Céus!Invasores!Os outros espiaram pela janela limpa. Lumière estava certo. Não era Bela

quem vinha pela floresta e retornava para a Fera. Era umamultidão! E, pelasexpressões,umamultidãofuriosa.Osaldeõesabriramcaminhoatéoportãodocasteloeatravessaramaponteatéacolunata.Umhomemaltoefortemontadoem um grande cavalo preto liderava o grupo. Ele se dirigiu à turba, sob osolharesdaequipedocastelo,queespiavapelajanela.—Peguem todosos tesouros quequiserem!—gritou ele.—Mas aFeraé

minha!Aequipeengoliuemsecodepavor.Oqueiriamfazer?Horloge sabia exatamente o que ele tinha que fazer. Ele precisava alertar a

Fera.Deixandoosoutrosparaformaremumapequenaetristebarricadanaportada frente,Horloge seguiuparaa torre.Ele saltitouebalançouocaminho todopordozelancesdeescadaselongoscorredoresatéfinalmentechegaràvaranda.Olhando ao redor, ele tentou encontrar a Fera entre as gárgulas de pedra dabalaustrada. Finalmente, avistou-o empoleirado próximo à outra ponta. Suacabeçaestavaabaixadaeseusombros,curvados.Horlogelimpouagarganta.—Oh,meperdoe,mestre—disseelecomnervosismo.—Deixe-meempaz—retrucouaFera,semsedaraotrabalhodeergueros

olhos.—Masocasteloestásendoatacado—disseHorlogecomurgência.A Fera ainda assim não levantou a cabeça, mantendo seu rosto oculto na

escuridão.Quandofalou,suavozestavaserasgandodedor.—Nãoimportamais—disseeletristemente,enfimerguendoacabeça.Seus

olhos azuis penetrantes estavam perturbados e cheios de lágrimas presas. —Apenasdeixequevenham.Horloge estava farto. Omordomo calmo, paciente e leal se fora. Ele havia

passado anos demais preso naquele corpo de relógio para ver seu mestredesistindo agora.Ele tinha assistido àFera jogar fora sua única chance de serfelizepermitirasemdizerumapalavra.Masnãomais.Agoraeleiriadizeroquepensava.— Por que lutar? — disparou ele. — Por que será?! Para que fazer algo

sanguinárioafinal?—HorlogesegurouofôlegoeesperouqueaFeradissessealgo,qualquercoisa,emresposta.Mastudooqueelefezfoiabaixaracabeçade

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novo.Comumsuspiro,Horlogesevirouecomeçoualongacaminhadadevoltaao

saguão.Pareciaqueosmembrosdacriadagemestavamporcontaprópria.

—TenhoqueavisaraFera…Belaolhavaaoredorfreneticamente.Suasmãosestavamcerradaseseusolhos

transmitiamturbulênciaenquantoelaprocuravadesesperadaumjeitodeescapardaqueleespaçorestrito.Nãohaviacomo.Ajanelaerapequenademaisecobertadebarras,eacarruagemestavatrancadaporfora.—Avisá-lo?—perguntouMaurice,confuso.Eleestavalargadoemumcanto.

O velho homem parecia pior do que quando era um prisioneiro da Fera nocastelo.Suasroupasestavamesfarrapadaseseucabelosearrepiavaemtodasasdireções.Apalmadesuasmãosestavaraladapelasquedaseaexaustãopesavasobreosombrosdohomem.—Comovocêescapoudele?—AtéondeMauricesabia,Belaestavasendomantidaprisioneirapelamesmaferaqueagoraqueriaproteger.Belaparoudeandaremcírculos.Elasevirouparaopaiesegurousuasmãos.—Elemedeixouir,papai—disseela.—Elemeenvioudevoltaparavocê.—Nãoentendo.Alcançando a pequena bolsa que tinha trazido do castelo, Bela puxou o

chocalhocomoformatoderosa.Mauriceoreconheceudeimediato.Suasmãoscomeçaram a tremer quando Bela lhe contou como a Fera a levara paraMontmartreemostraraseuantigolar.Mauricepegouochocalhoeopassavadeumamãoàoutraquandofoiatingidopelosignificadodaquilo:queBelasabia.— Bela— começou ele —, eu tive que deixar sua mãe lá. Eu não tinha

escolha,tinhaquesalvarvocê…—Eusei,papai.Euentendo.—OsolhosgentisdeBelaencontraramosde

Maurice.—Vocêvaimeajudaragora?Maurice lutou para segurar as lágrimas que ameaçavam escorrer de seus

olhos. Sua filha sempre fora tão cuidadosa e misericordiosa. Ele apenas nãosabiaatéentãooquantoeleprecisavadeseuperdão.—Mas…éperigoso—disseMaurice.—Seiqueé—respondeuBelacomcoragem.Elaesperouqueelediscutisse,

masseupaisimplesmentesorriueassentiu.Eleuniuaspalmas.— Bem, então— disse ele enquanto olhava ao redor da pequena cela da

carruagem—, parece que temos de encontrar um jeito de sair daqui para quevocêpossasalvarsuafera.

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Belasorriu.—Obrigada,papai.—Entãoseusorrisosedesfez.—Maseu jáverifiquei.

Nãohásaída.Mauricebalançouacabeça.Seeletinhaaprendidoalgumacoisacomopassar

dosanos,eraquesemprehaviaumasaída.Ele fitouatravésdapequena janelaparaocadeadonaportadacarruagem.Seumecanismonãopareciatãodiferentedodealgumasdesuascaixinhasdemúsica.—Achoqueeuseriacapazdeabrirocadeadoseaomenostivesse…Maurice deparou com o grampo queBela estava segurando diante dele. Lá

estavaela,antecipandocadaumadesuasnecessidades.Elestrocaramsorrisos.Ohomemcomeçouatrabalharparaabrirocadeado.Quandofinalmentesoou

ocliquedaliberdade,elesempurraramlentamenteaporta.—Oqueestáesperando?—sussurrouMauriceparaafilha.—Vá!Lançando-lheumsorrisodegratidão,Beladisparoupelocentrodaaldeia,sem

pararparaversemonsieurD’Arqueaavistara.ElachegouatéPhilippeepulounascostasdocavalo.Comumchuteforteno

grandeanimal,elapuxouasrédeaseoguiouparaforadaaldeia.Pelascostas,podiaouvirogrito raivosodeD’Arqueeacomemoraçãoanimadade seupai.Inclinando-separaafrente,BelaapressouPhilippe.Elesnãotinhamtempoparacelebraraquelapequenavitória.Precisavamvoltarparaocastelo.Enquanto galopavam através das árvores densas, Bela torcia para que

chegassema tempo.Elanãoqueria imaginaroqueGastonesua turbasedentaporsanguepoderiamfazeraoficarcaraacaracomumaferamaiorquetudoqueeles já viram. Então seus pensamentos se desviaram para madame Samovar,Lumière,HorlogeeopequenoZip,queestariamindefesoscontraamultidão.

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CAPÍTULOXV

—ATACAR!A voz de madame Samovar ecoou pelo saguão. Ao seu comando, toda a

mobíliaaoredorcriouvida.ApesardotemordeBela,osmembrosdaequipedocasteloestavamlongede

ser indefesos. Ou ao menos estavam tentando. Tão logo viram a multidão seaproximando, partiram para a ação. Enquanto Horloge tentava, sem sucesso,fazer o mestre parar de se lamentar para lutar, madame Samovar, Lumière ePlumettecriaramumplano.Erasimples—fazerumabarricadanaporta—,maseraumplanomesmoassim.Eleshaviamtentadobloquearaporta.Quando,porém,osaldeõescomeçaram

agolpeá-lacomumaríete,souberamqueerainútil.Então decidiram abandonar seus postos à porta e jogar com as suas forças,

aguardandosilenciosamentecomoseaindafossemapenasmobílias,enquantoosaldeões desavisados entravam. Ao sinal de madame Samovar, os objetossaltaramemataque-surpresa.Ascadeirasdistribuíramchutes.Plumetteeosoutrosespanadoresbalançaram

suas penas na cara dos aldeões até que eles começaram a espirrar. Velaslançaramsuaschamasparaoalto,cegandoalgunsedandoumabelaqueimadano traseiro de vários homens distraídos. Conforme a mobília avançava, amultidãogritavademedoeoshomens tentavamsedefender.Masaequipedocastelotinhaoelemento-surpresa.Emmeioaocaos,Gastontentouentenderoqueestavaacontecendo.Elesabia

como lutar contra outros homens, pois havia feito issomuitas vezes.Tambémsabiacomocaçaranimais, jáque tambémerahabitual.Masumasalacheiademóveiscapazesdeandarefalareraalgoqueelenuncahaviaenfrentandoantes.—Gaston!

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O grito alarmante de LeFou fezGaston se virar para ver ummancebo altoesticandoumde seus “braços”, preparando-se para golpeá-lo.Ele nãopensou,apenasagiu.PegandoLeFoupelagola,Gastonergueuopequenohomemàsuafrente.OsocodomanceboatingiudiretamenteabarrigadeLeFou.LeFou grunhiu. Um instante depois, as coisas pioraram quando um grande

cravoseergueusobresuaspernastraseirasesejogoucontraGaston.Maisumavez o homem robusto usou o parceiro como escudo humano.Houve umgritoabafadoquandooinstrumentocaiuemcimadohomenzinho.— Perdão, velho amigo— disseGaston, sem se dar ao trabalho de ajudar

LeFouaselevantar.—Maschegouahoradoherói.—Mas…nós somosLeDuo…—Avoz deLeFou enfraqueceu quando o

pesodeumaestantecaiusobreele.Nomomentoseguinte,eledesmaiou.Gaston deu uma última olhada em LeFou. Então olhou para o espelho que

aindaseguravanasmãos.ElepodiaveraFerasentadaemumatorreemalgumlugaracimadosaguão.—Horadoherói—sussurrou.Entãosevirouecorreuporentreamobília.

Gastonsaiudocaminhoquandoumapequenaxícaradisparoucontraeleatrásdeumcarrinhodeservir.Entãosejogouparaoladoquandoumarmáriodecozinhatentoudetê-loeevitoucairsobreumbanquinhoquelatiaparaele.Momentosdepois, eleestavasubindoagrandeescadariaenquantoos ruídos

dabatalhadesapareciamláatrás.Econtinuouescalando.Seucombateestavaemalgumlugaràfrente.Como se para provar seu ponto, Horloge apareceu no topo das escadas. O

pequenorelógioestavadescendodeumadastorres,comaexpressãosombria.—Ora,ora,oquevocêestáfazendoaíemcima,relógio?—disseGaston.—

Háumaferaporaí?Horloge engoliu em seco. Inadvertidamente, ele havia acabado de revelar a

localização da Fera. Antes que omordomo pudesse fazer qualquer coisa paraimpedirohomemàsuafrente,Gastongirouapernaechutouorelógioescadaabaixo. Enquanto Horloge se esborrachava, Gaston voltou sua atenção para otopodasescadasdatorre.AgoraqueelesabiaqueaFeraestavaemalgumlugarlá em cima, era apenas uma questão de tempo até que conseguisse mais umtroféuparafixaremsuaparede.

Bem abaixo da torre, a mobília da casa continuava a expulsar os aldeões.MadameSamovardespejavacháferventeenquantoZip,montadoemFroufrou,encurralava uma dúzia de aldeões perturbados na cozinha, onde Chef estava

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esperandocompanelascheiasdegraxa,prontasparaseremderramadas.AssimqueZippassouporeleemsegurança,o fogãoespalhouagraxapelochão.Noinstante seguinte,os aldeões entraramnocômodoe começarama escorregar ecair.Elesseamontoaramemumapilhanochão.Passando despercebida, uma nova figura abria caminho em meio ao caos:

Ágata, a pedinte. Embora estivesse usando seus trapos de sempre, ela estavadiferentedoque costumavaaparentarna aldeia.Seu rosto estava limpoe seuscabelos embaixo do capuz estavammodelados em cachos suaves. Ela passoutranquilapelamultidãodealdeõeseobjetoslutandoesedirigiuàsescadasquelevavamàtocadaFera.Enquantoisso,Zipvoltouparaosaguão.Eletinhachegadobematempode

ver a turba de aldeões batendo em retirada pela porta da frente comgritos deterror.Eleestavaprestesasoltarumaexclamaçãotriunfantequando,pelocantodoolho,viusuamãebalançandonolustre.Águaquentecontinuavaacairdeseubico,borrifandoosaldeõesemfuga.Derepente,elaescorregouecaiupeloar.MadameSamovargritou.Zipengasgou.Então, segundos antes de madame Samovar se despedaçar contra o chão

rígido,umamãoaalcançoueaapanhounoar.Era LeFou! O homenzinho a salvara! Eles se encararam, surpresos com a

viradarepentinadosacontecimentos.—EucostumavaestardoladodoGaston—disseele,dandodeombroscomo

quempededesculpas.—Masestoufartodesertratadocomoumobjeto,sabe?— Sei exatamente como é— dissemadame Samovar, sorrindo.—Agora,

podemosvoltaràação?Enquanto madame Samovar tentava se recompor para ajudar os outros,

LeFou,sentindo-semais leveporenfim terse livradodeseuparceiroabusivo,olhou ao redor do saguão. Apenas alguns aldeões permaneciam lá dentro. Amaioriahavia fugido, eaquelesque ficaramestavamsendoempurradosparaasaídaporumgrandecandelabrofalanteeseuexércitodevelas.LeFouobservouenquantoaportadafrentebatiaatrásdeles.Noinstanteseguinte,aequipesoltouumgritotriunfante.Ocasteloestavasalvo!FoientãoqueBelasurgiupelaporta.Agarotaarfava.Seuscabeloscastanhoscaíamemondaspeloseurostoesuas

bochechas estavam vermelhas. Mas seus olhos pareciam frios e duros. Deimediato,LeFousoubequemelaprocurava.

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—Eleestá láemcima—avisouohomenzinho.Bela lhedeuomaisbrevedos acenos e correu para a grande escadaria. LeFou gritou:—Oh, e, quandovocêoencontrar,avisequeLeDuojáera.AgoraeusouLeSozinho!

QuandoBela passou pelo portão do castelo, ela teve certeza de que era tardedemais.Elaouviupessoasgritandoeviuosaldeõescorrendo.Masentãosedeuconta de que eles estavam correndo para fora do castelo. A esperança seinflamouemseupeitoe,quandochegouàportadafrente,ficouemocionadaaover que a equipe do castelo, seus amigos, tinha vencido. Eles estavam pelosaguão, comemorando e parabenizando uns aos outros enquanto os aldeõesfugiamtalqualnaexpressão:comoraboentreaspernas.Entãoelapercebeuquefaltavaalgo:aFeranãoestavaemlugarnenhum.Easensaçãoruimemseuestômagovoltou.Agora,enquantosubiaasescadascorrendo,seucoraçãodisparou.Tudooque

conseguiapensareraemalcançarGastonedetê-loantesquefizessealgoterrívelcontra a Fera. Sua mente foi inundada por questionamentos aflitos: E se eununca tivesse partido? E se eu apenas tivesse escondido o espelho? E se fortardedemais?EseeununcamaispuderveraFera?Seusolhosseencheramdelágrimasaosaltaroúltimodegrau.Elasabiaque,sealgoacontecesseàFera,elaseriaaúnicaculpada.BelaviuondeaFeraestavaquandoconsultouoespelhonafrentedeGaston,

reconhecendoasgrandesestátuasdepedraquecontornavamatorremaisaltadocastelo. Como ele não estava lá embaixo e LeFou parecia confiante de queGastonestavaemalgumlugarnoandardecima,BelatinhaaforteimpressãodequeencontrariaGastoneaFeranaquelatorre.Apertandoopasso,elapercorreuolongocorredoreseguiupelapassagemquelevavaàtorre.Derepente,parou.Elaestavacerta.AFeraeGastonestavamnavaranda.Elesestavamdecostas

paraela,deformaquenãoaviramchegando.—Olá,Fera.EusouGaston—dissecomarrogânciaocaçador.—FoiBela

quem me enviou. — Ele estava segurando uma grande arma com o canoapontado para a Fera. Seu dedo se estreitou no gatilho. — Você estavaapaixonado por ela? — perguntou Gaston, erguendo o lábio em um risinhosarcástico.AFeranãodissenada.Emvezdisso,virouascostasparaohomem.—Vocêachoumesmoqueelairiaquerervocê?—provocouocaçador.AFerapermaneceuemsilêncio.EntãoGastonatirou.BelagritouquandoaFeracaiudabeiradatorre.

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—Oque você fez?—Ela correu e tentou tirarGaston do seu caminho.Ohomemenormeaalcançoueagarrouseubraço.Ela lutouparase libertar,maseleerafortedemais.Encarando-a,eleperguntoucomavozcheiadedescrença:—Vocêprefereessacoisadeformadaamim…quandolheoferecitudo?—

OsdedosdeleseincrustaramnapeledeBela,deixandomarcasvermelhas.Elaseencolheu.Oheróideguerrapatriotasefora.Ohomemàsuafrentefinalmentehavia se revelado como o verdadeiro monstro que era.— Quando voltarmosparaaaldeia,você secasarácomigo.EacabeçadaFera ficarápenduradaemnossaparede!—Nunca!—gritouBela.TalvezamãodeGastontenhaseafrouxadoporum

momento.Outalvezochoqueotenhadeixadotemporariamentemaisfraco.Oualgoaindamaismágicopodiateracontecido.Qualquerquetivessesidoarazão,Belaconseguiusedesvencilhar.Virando-serápido,elaagarrouocanodaarmadeGaston.Entãodeu-lheumchutenacanelaepuxouaarmacomforça.Gastonnãoestavadispostoasoltaraarma,aindaqueapessoanaoutraponta

fosse sua futuraesposa.Elea seguroucom firmezaenquantoBelagiravaparamaispertodabeiradadatorre.Ospésdeleescorregaramenquantolutavaparasemanterdepénasuperfíciegelada.Aspedrasestavamescorregadiasporcausadaneve que normalmente cobria o castelo, e algumas ainda estavam faltando.Voandopeloar,suasmãossoltaramoriflequandoeletropeçouecaiuparatráscontra a beira da torre.Bela engasgou, certa de quehavia acabadodemandarGastonparaaquedadesuamorte.Maselenãosobreviveraàguerraporpurasorte.Ohomemtinhareflexosde

um raio. No último segundo, ele projetou o corpo para se balançar comsegurançaatéuma janela logoabaixo.Comumgrunhido,aterrissounaescadaespiral que levava à torre. Sua arma, enquanto isso, continuava a despencar efinalmentepousouemumapassareladepedraalgunsandaresabaixo.Gastonficoudepé.EledeuumaolhadapelajanelaeviuBelacorrendoatéa

escadaespiral.Pelomaisbrevedosmomentos,eleachouqueapreocupaçãoeomedonosolhosdelaeramporele.Mas,seguindoadireçãodoolhardeBela,eledescobriu a verdadeira razão de seu temor: a Fera. A enorme criatura tinhasobrevividoàquedaeestavaescalandodevagarumatorreumpoucomenorqueaquelaemqueGastonestivera.Umanovaondaderaivaatingiuocaçador,eeledesceuasescadascorrendo.

EleouviuBelagritaraopersegui-lo,masaignorouepuxouoarcoeumaflechada aljava presa às suas costas. Parando à frente de outra janela, ele mirou e

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atirou.AflechaatingiuacoxadaFera,enterrando-sefundo.A Fera rugiu de dor. Gaston sorriu, satisfeito em acertar o alvo. Mas seu

prazerduroupouco,poislogoaFeraseinclinouearrancouaflecha.Entãoeledesapareceupelatorreeparalongedesuavista.Derepente,Gastonsentiualgo—oualguém—cutucando-opelascostas.Sua

atençãosedesvioumomentaneamentedaFera,eeledeparoucomBelamexendonaaljava.Seusdelicadosdedospuxavamofechodecouroenquantoelatentavadesesperadamente soltá-lo.Quandonão funcionou, resolveupegar as flechas equebrá-lasaomeio,umaporuma.GastonergueuamãoparagolpearBelaparalonge,massedeteve.Pelocanto

dosolhos,eleviuqueaFerahaviareaparecidoeestavasaltandodeumparapeitoaooutro.Seu ritmoestava lentoporcontadas feridasqueGaston lhecausara.Cadavezqueeleaterrissavaemumadasmuretasdepedra,urravadedor.Aindaassim,continuouseucaminho.AfastandoBela,Gastonvoltouàperseguição.Suaspassadasressoavampelas

paredesdepedraenquantoeledesciacorrendoo restantedasescadas.Quandochegouàbase, ele atravessouumaponte.NomeiodocaminhoavistouaFeraparada, prontapara se lançar atéoutroparapeito.Se aquelabesta conseguisse,estaria tão longe de Gaston quanto os telhados emaranhados do castelopermitiam.AFerapegouimpulsonaspatastraseiras…esaltou.Nomesmo instante, Bela chegou à toca da Fera. Correndo para a varanda,

procuroudesesperadaporelenotelhado.Elaoencontrounoexatomomentoemquepulou.Ele voou pelo ar, comos braços esticados à frente para agarrar a lateral da

parededepedra.Conseguiuporpouco,massuamãocomeçouaescorregar.—Não!—gritouBela.—Bela?—disseaFera,virando-seaoouvirseugritoecoandopelotelhado

docastelo.Seusolhosseencontrarame,naqueleinstante,aFerafoitomadaporuma força que não sabia que ainda possuía. Ele impulsionou o corpo para asegurançaefoiemdireçãoaBela,saltandodeparapeitoemparapeito.Infelizmente,eletambémestavavoltandoparapertodeGaston,queesperava

pacientemente. O caçador espreitava entre as gárgulas que contornavam umaáreanãomuitodistantedosaposentosdaFera.EleassistiucomdesgostoquandoBelachamoupelaFeraedesdenhouquandoacriaturapareceureviveraovê-la.Agarrando um pináculo de pedra fino com asmãos, ele puxou até quebrá-lo.

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Armadonovamente,GastonesperouqueaFeraviesseatéele.Nãotevequeesperarmuito.FocadoemencontrarBela,aFeranemsedeuao

trabalhodeolharaoredorquandopousounapassarelacercadadegárgulas.Suaslongas pernas o arrastaram pelas pedras e seus olhos permaneceram fixos noterraçoondeBelaestava.Gaston esperou até que a Fera acabasse de passar por ele, então um rugido

cortouoar.Saltandodomeiodassombras,ocaçadorgolpeouascostasdaFeracomopináculo.Elerugiudedor,mascontinuouandando.VendoadeterminaçãodaFera,Gastonsentiuoutraondaderaiva.—Lutecomigo,Fera!—gritouele,seguindoabesta.GastonatingiuaFera

denovoemaisumavez.Acadagolpe,ohomemconseguiaatrasá-lo,contudo,nãoimportavaoquefizesse,nãoeracapazdedeteraFera.Issoodeixoufurioso,e ele girou a arma com mais força. Finalmente, conseguiu desestabilizar seuoponente. A criatura cambaleou por um pequeno lance de escadas e caiu emoutrapassareladepedra.Gastondesceuatrásdeleecontinuousuaagressão.ComopesodeGastonedaFeracombinados,apassarela,quenãoerausada

haviaanoseestavadegradada,começouatremereruir.Nemohomem,nemabestaprestaramatençãoaisso.Gastonviualgocaídodooutroladodapassarela:seu rifle. E a Fera viu o quanto estava próximo de Bela. Se ele conseguissechegaratéofinaldapassarela,estarianacúpulaparalelaaoseuquarto.HaveriaentãoapenasumsaltodedistânciaentreeleeBela.—Gaston!Não!O grito de Bela alertou a Fera. Ele se virou e viuGaston, com o pináculo

empunhado no alto, preparando-se para desferir o golpe fatal. A Fera jásuportaraosuficiente.ElenãodeixariaGastonimpedi-lodechegaratéBela,nãoquandoestavatãopróximo.Emummovimentorápido,eleseergueu,arrancouopináculo das mãos do homem e o arremessou contra uma parede distante. Ahaste de pedra se estilhaçou em mil pedaços. Rosnando, a Fera agarrou agarganta de Gaston com a pata e o ergueu até a beirada da passarela quedesmoronava.—Não—implorouGastonenquantosuaspernasbalançavamnoar.—Por

favor.Nãomemachuque,Fera.Fareiqualquercoisa.Porumlongoetensomomento,aFeraapenasencarouGaston.Ostraçosda

criaturaestavamdistorcidosporraivaeódio:portodososanosemqueestiverapreso naquele corpo; pelo homem à sua frente, que o via apenas como uma

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besta;pelotempoqueperderacomBelaepelomedodeperderaindamais.Então sua ira começou a ceder. Virando-se, ele viu Bela os fitando com

esperançanosolhos.Elapareciaacreditarqueelepoderiafazeracoisacerta,queele poderia ser a melhor versão de si mesmo. E, de repente, o ódio se foi.Lentamente,elepuxouGastondevoltaeocolocounaplataforma.—Váembora—ordenouaFera.—Sumadaqui.EnquantoGastonescapava,aFerasevirouefixouoolharemBela.Naquele

momento,nãoprecisavaouvi-laparasaberqueelaestavaorgulhosadele.Tudooqueelesemprequisera,maisquequalquercoisanomundo,eraficaraoladodeBela.Apoiando-senasquatropatas,elerespiroufundo.Tinhaapenasadistânciasuficienteparapegaralgumavelocidadeesaltardaponteparaavaranda—eaoencontrodeBela.Vendooqueeleestavaprestesafazer,Belagritou:—Não!Émuitolonge!Masera tardedemais.AsgarrasposterioresdaFera secravaramnapedrae

ele tomou impulso. Ganhando velocidade, suas quatro patas batiam contra arocha.Então…elepulou.Por ummomento, ele pareceu flutuar no ar, suspenso sobre o abismovazio

entre os telhados do castelo. O tempo se acelerou e com um impacto eleaterrissou em segurança na sacada. Sorriu ao olhar para Bela. Ele tinhaconseguido!Nadapoderiaafastá-lodeBelaagora…Bum!AFeraurrouemagoniaquandoosomdodisparoecooupelocastelo.Napassarelaruindo,Gastonrecarregavaorifle.Elehaviaencontradoaarma

escondidanoentulho.EnquantoBelaassistiaa tudoimpotente,elemiroumaisumavezcomumsorrisocruelseespalhandopelorosto.Bum!Eleatiroudenovo.AbalavooupeloareatingiuaFera,quecaiuno

chão.MasentãoasortedeGastonmudou.Seupeso,adegradaçãodapassarelaeo

coiceviolentodo rifle foramdemais.Antesmesmoqueelepudesse soltar seugritodevitória,aspedrassobseuspéscederamporcompleto.Emumsegundo,haviaapenasoarlivre—eumalongaquedanovazio—embaixodele.Erguendoacabeça,BelaviuGastoneseurifleatrozdesaparecendosobuma

cascatadepedras.

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CAPÍTULOXVI

Belaqueria acreditarque tudo ficariabem,queaFera ficariabem.Masassimqueelasesentoueacabeçadeletombouemseucolo,elasoubequeotempodaFeraestavaacabando. JáhaviaacabadoparaGaston, emboraaquilo só tivesselhecausadoumimpulsomomentâneodelamento.Eleforaumpéssimohomem.Embora ela jamais desejasse tal destino a ninguém, tampouco desperdiçarialágrimasoutempoporsuamemória.AFera,noentanto,eraoutrahistória.Elanãoqueriaqueelesetornasseuma

memória. Ela queria que ele ficasse ao lado dela, são e salvo.Queria dizer oquanto ele significava para ela.Queria dizer o quão arrependida estava de terenviadoGastonsemquererparaocastelo.AoolharparaaFera,elasabiaquesua chance de dizer tudo aquilo estava escapando rapidamente. Ele respiravacom dificuldade e seus olhos estavam apertados pela dor que devastava seucorpo.Suavemente,Beladesceuamãoeacariciouorostodelecomosdedos.QuandoaFerasentiuotoque,abriuosolhos.—Vocêvoltou—disseelecomumolhardepuroamor.Eleergueuapatae

ajeitouumamechadecabelosdela.—Claro que voltei— respondeu ela, tentando lutar contra as lágrimas que

ameaçavamescorrerporsuasbochechas.—Nuncamaisvoudeixá-lo.AFeraergueuomaislevementepossívelosombros.Entãosuspirouedisse,

comavozfraca:—Temoquesejaminhavezdepartir.Belabalançouacabeça.Não!,elaqueriagritar.Lute!Nãodesistaagora!Nãodepoisdetudoquenós

passamos.Levei tanto tempoparaencontrarvocê.Apesardeseusesforços,aslágrimascomeçaramacair.AcabeçadaFeraestavaficandomaispesadaemseucolo.Enquantoolhavaparaele,elasentiuseucoraçãosepartir.Contratodasas

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probabilidades,aFerahavialhemostradoabelezaverdadeira.Elelhemostraraque tudo bem ser diferente. Mostrara que não havia problema em se sentirperdidaeafizeraperceberoquãodesesperadamenteelaqueriaserencontrada.Ela tinha aprendidoque as coisasnão são sempre comoparecem,quepessoaspodemsurpreender.Elehavia lhedadoaúnica coisaque ela sempredesejara:algoamais.Eagora?Agoraeleestavamorrendoemseusbraços.Esforçando-separaencontraraspalavras,Belaconteveumsoluço.—Nósestamos juntosagora—disseela.—Tudovai ficarbem.Vocêvai

ver.— Pelo menos posso vê-la uma última vez. — Enquanto ele dizia essas

palavras, sua pata desabou do cabelo de Bela. Seus olhos se fecharam. Suarespiraçãoficoumaislenta,entãocessou.Com outro soluço, Bela se jogou sobre o corpo da Fera. Ele se fora. E ela

nuncalhedisseraqueoamava.

EnquantoaFeradavaseuúltimosuspironoterraçoacima,seuscriados,alheiosao que havia acontecido entre o mestre e Gaston, estavam no meio de umacelebração. Eles se reuniram em um dos terraços de baixo para assistir aosaldeões fugindopela floresta.AschamasdeLumièrebrilhavam impulsionadaspelavitória.PlumetteamaciousuaspenaseHorlogetiquetaqueavamaisrápidoqueocomum.Atéaspeçasmaioresdamobília,comoMadamedeGarderobeeseuamorhaviatantotempoperdido,Cadenza,estavamparticipandodafesta.Lumière sevirouparaPlumette e a segurounosbraços.Oespanador soltou

risadinhasdeflerte.—Nósconseguimos,Plumette!—disseele,baixando-a.—Avitóriaénossa!

— Ele se inclinou para beijá-la, então engasgou. Ela tinha ficado imóvel esilenciosa em seus braços. Não estava mais viva. Com a morte da Fera, amaldiçãohaviacompletadoseuefeito.Um por um, os objetos outrora vivos se tornaram inanimados. Enquanto

Lumièreobservavahorrorizado,MadamedeGarderobecongelounomeiodeumfloreio teatral. Soltando um grito, Cadenza começou a tocar suas teclas,desesperadoparamantê-lasemmovimento.Masnãohavianadaqueelepudessefazer. Elas também ficaram mais lentas até finalmente pararem de vez e omaestro paralisar. Amaldição varreu o castelo como o vento. Não importavacomotentassefugir,aequipenãopoderiaescapar.Froufrou latiu uma última vez antes de se tornar um banquinho de piano.

Madame Samovar se aproximou freneticamente de Lumière e Horloge,

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procurando pelo filho. Antes, porém, que ela pudesse encontrá-lo, seu rostodesapareceu na pintura decorativa do bule.Zip ficou imóvel logo em seguida,comseustraçossumindoatéquenãolembrassemaisumgarotinho,esimumasimplesxícaralascada.—Lumière…Ouvindo a voz de Horloge, Lumière se virou, temendo o inevitável. O

pequeno relógio estava lutando contra a maldição e tentando ao máximocontinuarfuncionando.—Não!—gritouLumière.—Aguentefirme,Horloge.—Eu…nãoconsigo…—disseHorloge,comavozenfraquecendo.Elefez

um longo e lento tique e um taque aindamais fraco.—Meu amigo, foi umahonraserviraoseulado.Lumière diminuiu suas chamas enquanto a voz de Horloge desaparecia

totalmente. O único som que ele fazia agora era o tique-taque de um relógiocomum.Elenãoeramaisomordomo:eraumobjeto.QuandoLumièreolhouaoredor,viuquetodoseramobjetosagora.Nãohaviasobradoninguémalémdele.Lumièresabiaqueláemcima,natocadomestre,aúltimapétaladarosahaviacaído.Uminstantedepois,eletambémenrijeceuealuzdesuasvelasseapagouquandoatransformaçãotomouconta.Logooterraçoestavaemsilêncio,excetopelosomdorelógioqueumdiafora

Horloge. Uma neve suave tinha começado a cair, cobrindo os objetos e osfazendolembrarfantasmas.Navaranda,Belamalnotavaanevecaindoemsuacabeçaeemseusombros.

Elanãosabiaqueamaldiçãohaviaseconsumado.SóconseguiapensarnaFera,desfalecido em seus braços. O corpo dele ainda estava quente, e por ummomentodesesperadorelaquisacreditarqueeleaindaestavaali.Belaaninhouacabeçadeleemsuasmãos.Sentiuopelomacionaspalmasequisabriraquelesolhosparaqueo azulmais bonitoque ela já vira pudesse encará-lamais umavez.—Porfavor,nãomedeixe.Volte—implorouela.Dominadapelaemoção,

elaseinclinoulentamenteedeuumbeijodelicadonatestadaFera.Então,pornunca ter dito a ele quando estava vivo, ela sussurrou as palavras que vinhacarregandoemseucoração:—Euteamo.EmboraBelanãosoubesse,Ágatahaviaentradonoquartoeestavaparadana

varandaaoladodoquerestaradarosaencantada.Amulherabaixouocapuzdeseumantoeestendeuamãoatéaredoma.Emumsegundo,ovidrodesapareceu,deixandoparatrásaspétalascarmesimeumtraçodepódourado.Ágatagirouas

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mãos,easpétalasseergueram.Opódouradopareceusemultiplicar,movendo-sevelozatéaFeraeenvolvendo-ototalmenteantesdefazê-lolevitar.SentindoopesodocorpodaFeraseerguendodeseucolo,Belaolhoupara

cima e engasgou aover a névoadourada rodopiando ao redor da criatura.Elanotouqueoarsetornaramaisquenteedenso.Derepente,houveumclarãodeluz,eumadaspatasdaFerasetransformouemsuamão.Belacolocou-sedepé,observandoatenta.Mais lampejos de luz se seguiram conforme as outras partes da Fera se

tornavamhumanas.Finalmente,eleestavadeitadonochão,comatransformaçãocompleta.Osilênciodesabousobreavaranda.Porumlongomomento,Belaficouondeestava,comacabeçagirandocomo

que acabarade testemunhar.Ela encarou fascinadaohomemà sua frente.Eleainda estava usando as mesmas roupas que vestia enquanto Fera. Tinha osmesmos olhos azuis penetrantes, que agora estavam bem abertos e cheios depreocupaçãoenquantoaslágrimasescorriamemseurosto.OcoraçãodeBelapareciaprestesaexplodirdeemoção.Elasabia,dofundo

de sua alma, que aquela era a forma humana da Fera por quem havia seapaixonado.E ela soube, semhesitação, quenãoqueriadesperdiçar nemmaisum momento longe daquele que amava. Os olhos azuis encontraram oscastanhos. Então, enquanto o amanhecer resplandecia no horizonte, eles sebeijaram.FoiumbeijoqueBelajamaispoderiaesquecer—melhorquetodosdescritos

nos livros que lera. Um beijo cheio de retratação, gratidão e um amormuito,muito profundo. Um beijo repleto de encantamento. Conforme seus lábios seencontraram,amágicairrompeuparaorestantedocastelo.Enquanto o sol se elevava no céu, o castelo começou a se transformar. As

pedrasfriaseacinzentadasforambanhadasemouro.Anevesedissipounosolo,dandolugaràgramaverdefresca.Florescoloridasseabrirameasrosas-brancasdacolunatasetornaramvermelhas.Nosparapeitosdocastelo,asgárgulas,comsuasfaceshaviatantotempopresasemcaretashorripilantes,retornaramàssuasformasoriginaisdeanimaisnobresehomens.Atémesmoocéupareceutocadopela transformação mágica: as nuvens desapareceram, revelando um céu azulquasetãobrilhantequantoosolhosdopríncipe.Dentro do castelo, a transformação continuou. Quando a luz do amanhecer

penetroupelasgrandesjanelas,iluminouosobjetosquepoucosmomentosanteshaviamsido imobilizados.Froufroudeixoudeserumbanquinhodepianoese

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transformou em um cãozinho da raçabichon frisé. Imediatamente ele deu umsaltoeperseguiusuacaudaantesdesealiviarnomanceboimóvel,que,paraseuazar,voltouaserumhomembemnahoraemqueFroufrouterminouoserviço.Espantandooanimal,ohomemsevirouequasetropeçounocarrinhodeservirdemadameSamovareZip.ElegritouquandoocarrinhodisparouequaseatingiuMadamedeGarderobe,

queestavabamboleandoparadentroeparaforadaluzdosol.Nessevaivém,elase transformava de guarda-roupa a humana, então voltava a ser um guarda-roupa, até que finalmente se firmou com uma batida próxima a Cadenza.Momentosdepois,ambossetransformaramdeumavezpor todasnadivaenomaestro.E assim foi. Ao longo do castelo, gritos animados de todos podiam ser

ouvidosàmedidaqueamaldiçãoeraquebrada.Camareirasriamenquantosuaspenas voltavam a ser pernas e velas gritavam com alegria ao ver seus paviosvoltandoaserdedos.Nacozinha,ofogãosetransformoudevoltanocozinheiroenomesmoinstantecomeçouadarordensparaprepararafesta.Os tiques de Horloge se tornaram um acesso de tosse quando ele também

voltou à sua formahumana.Limpando seu casaco comasmãos, ele procurouporLumière e sorriu quando viu que o candelabro eramais uma vez o lacaioprincipal—aindacomseusvelhostruques.EleestavaperseguindoPlumetteaoredordamesadejantar.Capturando-a,eleainclinouemseusbraçoseabeijouapaixonadamente.Horlogefoisalvodetestemunharaduraçãodobeijoaoouvirosomtilintante

da porcelana. Ele ergueu o olhar e viu o carrinho demadame Samovar e Ziprolandoatéotopodaescada.Porummomentotenso,pareciaqueelesiamrolarescada abaixo para uma tragédia. Mas o carrinho parou abruptamente earremessou madame Samovar e Zip para a frente. Em pleno ar, seus corposfrágeispassarampelosolesetransformaram,entãoelesdesceramcalmamenteorestantedosdegrauscomsuaspernashumanas.—Oh,Zip!—MadameSamovarchoravadefelicidade.—Olheparavocê,é

umgarotinhodenovo!—Aproximando-se,elatentouapertarasbochechasdofilho.Eledesvioucomoqualquermenininhohumanofariaecorreuparaaportada frente. Quando ela se abriu, o sol adentrou o saguão… junto com algunsaldeõestambém.Paradizeraverdade,elestambémestavamenfeitiçados.Agora,depoisdoque

acontecera,elesestavamcomeçandoaselembrardetudoquehaviamesquecido:oreicrueleopríncipearrogante,asfestasluxuosasqueeramdadasnopassadoe

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seusentesqueridosquetrabalhavamnocastelo.Aproximando-se da porta da frente, Jean, o oleiro, entrou no castelo, que

agorabrilhavadefelicidadeeacolhimento.EntãoseusolhospousaramemZipnaentradae,paraalém,emmadameSamovar.Elegritoudealegria:—Querida?MadameSamovarsorriudevolta.—Olá,senhorSamovar—disseela,correndoatéomarido.—Beatrice,Zip—chamouelequandosuaesposaefilhosejogaramemseus

braços.—Euosencontrei.Osreencontroscontinuaram.E,paradanafrentedocastelo,sorrindoconsigo

mesma, estava Ágata. Tudo o que ela sempre quisera era ver o príncipe setornandoumhomemmaisbondoso.E,enquantoobservavaseuscriadosfelizescorrerempelocastelo,chamandounsaosoutroseseabraçando,elasoubequeelehaviaencontradoummododeserumbomhomem.Elehaviaencontradoseucoração. Tinha levado um tempo e precisou de uma jovem particularmenteteimosaparaajudá-lo,massemdúvidaelehaviaencontradoseucaminho.Vendo que seu trabalho estava concluído, Ágata sorriu e se virou, indo

emboratãosilenciosaemisteriosamentecomochegara.Nessemeio-tempo, Plumette gritou. Todos se viraram para a escadaria. No

topo, como por um sinal, estava o príncipe. Bela estava ao lado dele, e seusolhares se cruzavam cheios do mais puro amor. A equipe correu paracumprimentá-los.—Olá,velhoamigo—opríncipesedirigiualegrementeaLumière.Bela observou o príncipe abraçando cadamembro da sua equipe— da sua

família, na verdade—, permitindo que ele vivesse omomento que aguardavahaviatantotempo.Elasuspiroudesatisfação.Tudoestavacomodeveria.

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EPÍLOGO

Bela nunca imaginara que tamanha felicidade fosse possível. Mas ela estavafelicíssima.Surreal,maravilhosa,radiantementefeliz.Deslizandopelosalãonosbraçosdeseupríncipe,elasorriaaoverosrostosagoratãofamiliares.Viuseupai,livreesaudável.AvistouLumièreePlumettedançandopróximos.ViuZip,espremidoentreopaieamãe,fingindoestarirritado,masclaramenteadorandoaatenção.Horlogeestavalá,bemcomoadiva,oantigoguarda-roupadeBela.Elavalsoualegrementecomseumaestro.Esta,Belapensouenquantorelanceavapelasala,éaminhafamília.Elaergueuacabeçaeencontrouosolhosazuispenetrantesdopríncipe.Ele

sorriueelasentiuocalordoamor,agorafamiliar,irradiarportodooseucorpo,começandopelosdedosdospéseviajandoatéapontadasorelhas.Nasúltimassemanas,elasepegouamandoopríncipecadadiamais,vendo-oabraçaravidaquelheforanegadaportantotempo.Estouvivendominhaprópriaaventura,elapensouenquantoelea rodopiava

pelosalão.Belaencontravaumavidaforadaaldeia,eaindahaviatantoslugarespara visitar e experiências para viver. Além de tudo, ela tinha achado umparceiro que queria viajar e com quem poderia compartilhar todas essashistórias.Enãohámaisnadaqueeupoderiadesejar.Exceto…SentindoBelatensaemseusbraços,opríncipeolhouparaela,estreitandoos

olhosdepreocupação.—Bela…—disseele.—Emqueestápensando?Elaparouporummomentoparaponderarsuarespostaetentounãorirquando

aexpressãodopríncipese tornoumaisaflita.Alcançando-o,elapassouamãoemsuabochechasuave.—Oquevocêachadedeixarcrescerabarba?Comumagargalhada,opríncipepuxouBelaparamaisperto.Seusolhosse

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fixaramnosdelaeeleassentiu,emumapromessasilenciosadesempretentarsera melhor versão de si, a versão que ela acreditou ser possível antes que elemesmo achasse isso. Então, ele a beijou. Quando ela fechou os olhos e seentregou à magia do beijo, o mundo ao redor desapareceu até que restaramapenas os dois, envolvidos em uma história tão antiga quanto o tempo. Belapensounofuturo—nasaulasdeleituraqueelapoderiaministrarnabibliotecadocastelopara todososestudantesdaaldeia,nasviagensqueelaeopríncipefariam,nasamizadescomoshabitantesdocasteloquesemdúvidaseriamparaavida toda. Um conto que começou com “era uma vez” terminaria, Bela tinhacertezadisso,com“felizesparasempre”.

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LEIATAMBÉM:

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DESERENAVALENTINO

Umpríncipeamaldiçoadoseisolaemseucastelo.Poucosoviram,masaquelesqueconseguiramtalproezaafirmamqueseuspelossãoexageradosesuasgarrassãoafiadas–comoasdeumafera.Noentanto,oquelevouessepríncipe,quejáfoi encantador e amado por seu povo, a se tornar ummonstro tão retraído eamargo?Seráque ele conseguirá encontrar o amorverdadeiro e pôr um fimàmaldiçãoquelhefoilançada?

EmA fera em mim, conheça a história por trás de um dos mais cativantes epopularescontosDisneydetodosostempos:ABelaeaFera!