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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 Versão Online ISBN 978-85-8015-054-4 Cadernos PDE VOLUME I

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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE

2009

Versão Online ISBN 978-85-8015-054-4Cadernos PDE

VOLU

ME I

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GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO - SEED

PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL – PDE

CARTAS CHILENAS SOB O OLHAR CONTEMPORÂNEO; O MAMELUCO

BASTARDO E O MAZOMBO ILUSTRADO NO ROMANCE OS SINOS DA

AGONIA; SÁTIRA À BUFONARIA CAUDILHESCA NO ROMANCE OS

TAMBORES SILENCIOSOS

CELIMARA CRISTINE LIMA STRELOW

SANTA TEREZINHA DE ITAIPU

2011

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CELIMARA CRISTINE LIMA STRELOW

CARTAS CHILENAS SOB O OLHAR CONTEMPORÂNEO; O MAMELUCO

BASTARDO E O MAZOMBO ILUSTRADO NO ROMANCE OS SINOS DA

AGONIA; SÁTIRA À BUFONARIA CAUDILHESCA NO ROMANCE OS

TAMBORES SILENCIOSOS

Artigo final apresentado ao Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE, da Secretaria de Estado da Educação – SEED do Paraná, como requisito parcial para o cumprimento das atividades propostas pelo Programa de Formação Continuada – PDE sob a orientação da Professora D.ra Rita Felix Fortes da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).

SANTA TEREZINHA DE ITAIPU 2011

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INTRODUÇÃO

O presente estudo é o resultado do desenvolvimento e implementação do

projeto PDE 2009/2010: “Uma Leitura Sociopolítica de Cartas Chilenas, Os Sinos da

Agonia e Os Tambores Silenciosos”, cuja elaboração se justifica em razão da

relevância dessas obras no contexto da literatura brasileira do século XVIII e do

século XX. Dando ênfase a essas obras, enquanto temas de pesquisa, produziram-

se três análises, as quais foram apresentadas durante a intervenção pedagógica e

ainda poderão ser utilizadas como material de apoio junto aos professores do Ensino

Médio na prática em sala de aula. A opção por tais obras deve-se ao fato de elas

estarem correlacionadas a questões sociopolíticas, fator esse que propicia aos

alunos a compreensão das relações históricas, sociais e humanas que permeiam os

romances e as cartas, as quais possuem estreitas ligações com o meio no qual

foram produzidas e ao qual se reportam.

Este estudo é, então, constituído por três análises. A primeira é “Cartas

Chilenas sob o olhar contemporâneo”. Essa análise se volta às satíricas cartas, de

Tomás Antônio Gonzaga, atendo-se à segunda, à terceira, à quinta, à décima

segunda e à décima terceira cartas, pois nelas, dentre as demais, evidenciam-se os

aspectos sociopolíticos do contexto histórico do século XVIII. Privilegiou-se,

portanto, o enfoque proposto inicialmente no projeto, já que, ao se compreender as

circunstâncias político-sociais do último quartel do século XVIII, torna-se possível

identificar na atualidade problemas culturais e políticos que se perpetuaram ao longo

da formação da sociedade brasileira. A segunda análise, intitulada “O mameluco

bastardo e o mazombo ilustrado no romance Os Sinos da Agonia”, atém-se à obra

Os Sinos da Agonia, de Autran Dourado, romance caracterizado como político e

polifônico, escrito no período da ditadura militar. Correlaciona-se, portanto, às Cartas

Chilenas, uma vez que é ambientando em Vila Rica, no último quartel do século

XVIII e as questões políticas daquela época fazem parte da constituição da trama.

No terceiro objeto de estudo, cujo título é “Sátira à bufonaria caudilhesca no

romance Os Tambores Silenciosos”, enfocou-se na obra Os Tambores Silenciosos,

de Josué Guimarães, a sátira política e picaresca aos desmandos da repressão

militar advinda do golpe militar de 1964.

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Destaca-se, portanto, que os aspectos sociopolíticos que subjazem às obras

analisadas suscitam debates que, se bem conduzidos, levarão os alunos a

entenderem tanto a realidade presente quanto a formação da sociedade brasileira

como um todo, seja em seus aspectos positivos seja negativos e essa compreensão

é fundamental ao conhecimento do seu contexto como um todo.

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CARTAS CHILENAS SOB O OLHAR CONTEMPORÂNEO

Celimara Cristine Lima Strelow (PDE- SEED)1

Rita Felix Fortes (UNIOESTE)2

RESUMO

No presente artigo propõe-se analisar as satíricas Cartas Chilenas, cujo autor provável é Tomás Antônio Gonzaga, retomando o contexto histórico de Vila Rica no período da Inconfidência Mineira, momento que contribuiu para a formação do sentimento nativista brasileiro. O presente estudo pauta-se nas seguintes obras teóricas: A Poesia dos Inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da Poética de Dostoiévski e Questões de Literatura e Estética, de Mikhail Bakhtin. Tendo em vista o tom satírico das Cartas Chilenas, tomam-se essas cartas como modelo que auxilia na visão geral do Brasil Colônia e, durante a análise, resgatar-se-ão os versos que explicitam os desmandos do governador Luís da Cunha Meneses / o Fanfarrão Minésio. Ao retomar as missivas gonzaguianas, estabelecer-se-á um diálogo com o poema Quando levares, Marília, / teu ledo rebanho ao prado, dedicado à amada Marília, musa inspiradora da obra Marília de Dirceu. O poema lírico insere-se no estudo por fazer parte da obra composta na masmorra e, apesar do lirismo, os versos reiteram as intenções de denúncias. A partir da releitura da obra Cartas Chilenas trazem-se à tona reflexões pertinentes ao atual cenário político brasileiro. O estilo empregado por Tomás Antônio Gonzaga, no final século XVIII, é recuperado em epístolas atuais. Com isso se encerra o estudo mencionando uma carta contemporânea que, pelo estilo e conteúdo abordado, se vincula às Cartas Chilenas.

Palavras-Chave: Cartas Chilenas, sátira, diálogo, cenário político.

ABSTRACT

1 Professora PDE (turma 2009/2010) de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental e Médio, lotada nos Colégios Estaduais Carlos Zewe Coimbra e Dom Manoel Könner, no município de Santa Terezinha de Itaipu/PR, pertencente ao NRE de Foz do Iguaçu.

2 Professora Associada do Curso de Letras do Campus de Marechal Cândido Rondon e do Programa de Mestrado em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste).

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This article proposes to analyze the Chilean Letters (Cartas Chilenas) satirical , whose author is likely Tomas Antonio Gonzaga. Returning to the historical context of Villa Rica, during Minas Conspiracy that contributed to the formation of nativist sentiment in Brazil. This study is guided in the following theoretical work: Domício Proença Filho‟s Poetry of the conspiracy, Mikhail Bakhtin‟s Dostoiévski‘s Poetics problems and Aesthetics of literature and issues. Satirical aspects of Chilean letters (Cartas Chilenas), becomes the same as a standard that assists in the overview of colonial Brazil. During the analysis, it will redeem the verses which explain the excesses of Luis da Cunha Meneses‟s / government, Braggart Minesio. Gonzaguiana missives to resume, will establish a dialogue with the poem: When you carry Marilia / your merry thy flock to the meadow, is dedicated to beloved Marília, muse Marília and inspirer of Dirceu’s work. The poem is included in the study to be part of a work composed in the dungeon, and despite the lyrism, the verses reiterate the intentions of complaints. Reading of the work Chilean letters (Cartas Chilenas) brings to the surface relevant reflections to the current political scenery. The style used by Tomas Antonio Gonzaga, in the late eighteenth century, is recovered in current epistles, thereby the study ends mentionating a contemporary letter that by its style and content, are linked to Chilean letters (Cartas Chilenas).

Keywords: Chilean Letters (Cartas Chilenas), satire, dialogue, political scenery.

1 Introdução

A obra Cartas Chilenas, atribuída a Tomás Antônio Gonzaga, é composta por

versos construídos em tom mordaz e satírico que denunciavam o despotismo do

governador da província de Minas Gerais, no final do século XVIII: período

imediatamente anterior à Inconfidência Mineira, prenúncio de uma identidade

nacional.

A análise das Cartas Chilenas faz parte de um estudo literário que compara a

obra árcade, de teor predominantemente crítico e que circulou anonimamente em

Vila Rica – atual Ouro Preto, a dois romances escritos na época da ditadura militar:

Os Sinos da Agonia e Os Tambores Silenciosos. Por serem escritos em período de

intensa censura e represálias, os autores Autran Dourado e Josué Guimarães

recorreram a táticas esquivas de composição literária, burlando, assim, o aparelho

estatal de perseguição política a toda forma de expressão que se revelasse contrária

ao governo ditatorial.

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Tomás Antônio Gonzaga, que adotou o pseudônimo Dirceu, em consonância

com as tendências do Arcadismo, ficou assim conhecido devido à sua obra poética,

com poemas na maioria dedicados à sua musa inspiradora, Marília (Maria Dorotéia

Joaquina de Seixas, por quem, de fato, o poeta se apaixonou). Dedicar os versos

líricos à musa inspiradora com vistas a um cenário bucólico era recorrente na poesia

árcade.

Fizeram parte do Arcadismo poetas intelectuais de acurada visão

sociopolítica, pois os homens letrados da época tinham consciência da necessidade

de se estabelecer nova ordem social e a literatura seria uma via favorável para tal

pretensão. Segundo Bosi (2008, p. 56), o “[...] denominador comum das tendências

arcádicas é a procura do verossímil”. Tal constatação remete ao seguinte

questionamento levantado por Proença Filho (1996, p. 565): “Que motivos teriam

impelido os poetas Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga

Peixoto a integrar o grupo dos inconfidentes”? A resposta estaria no engajamento

pelas causas da Inconfidência Mineira, pois a insólita situação da Colônia mobilizou-

os em torno de um levante contra a Metrópole. Os intelectuais, jovens e abonados,

traziam da Europa para Vila Rica a influência do Iluminismo3. Para Alfredo Bosi

(2008), a presença da razão, na obra poética do Arcadismo, vincula-se ao

“enciclopedismo francês”.

Os aspectos da poesia árcade apontados por Proença Filho (1996, p. 558)

fixam que: “[...] as poesias árcades buscam motivos bucólicos cristalizados em

cenários fixos, nos quais o clima ameno e campestre esmaece a transformação que

se realizava no contexto político-social circundante”. Os poetas estavam de tal forma

engajados que embebiam seus versos com as angústias fiscais, mas a visão crítica

e inovadora levou-os a sofrer severos castigos. As atrocidades contra os poetas,

para Candido (2008, p. 108), “[...] representam no Brasil o primeiro e até hoje maior

holocausto da inteligência às ideias do progresso social”.

Vila Rica, a capital da província de Minas Gerais do século XVIII, surgiu em

torno da exploração dos minérios locais (ouro e diamante) e a Metrópole, durante

3 Movimento do século XVIII, conhecido como Século das Luzes (da razão). O Iluminismo foi um movimento de engajamento intelectual que correspondia aos interesses daqueles que desejavam mais liberdade política e econômica. Os pensadores iluministas defendiam, além da não intervenção do Estado na economia, a igualdade jurídica entre os homens, a liberdade religiosa e de expressão e outros direitos. Com isso o Iluminismo abriu caminho para as revoluções que combateram as estruturas do Antigo Regime. (COTRIM, 2005, p. 266).

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aquele século, fartou-se com as riquezas vindas da Colônia. No decorrer desse

século, porém, o tempo de fartura foi se escasseando e a Metrópole tomou severas

medidas fiscais visando manter os ganhos de outrora. Para tanto, os impostos sobre

os produtos de Lisboa passaram a chegar ao Brasil com tarifas exorbitantes. Os

preços dos escravos sofriam os mesmos deliberados abusos de ajustes. A crise

econômica gerou descontentamento entre as pessoas e isso foi o estopim de

grandes revoltas coloniais e a insustentabilidade da situação resultou na derrama4.

Na impossibilidade de calarem-se diante dos ditames do opressor, as

manifestações se expandiram. Conforme constata (NOVAIS, apud PROENÇA

FILHO, 1996, p.29), “é no último quartel do século XVIII que as tendências

emancipacionistas se manifestam de forma recorrente e significativa”.

Tomás Antônio Gonzaga transita na Inconfidência Mineira com tendências ao

conservadorismo estamental e que diverge da tendência anticolonialista de

Tiradentes. Para Laura de Mello (apud PROENÇA, 1996, p. 30), a Inconfidência está

relacionada aos protestos, pois, ”[...] por todo o século XVIII, as Minas se viram às

voltas com os levantes [...], e sua formação social densa mantinha os governantes e

os poderosos em constante sobreaviso. Com o avançar do século, a insatisfação se

enraizou [...]”. Os conflitos instaurados desencadearam a fase das revoltas

historicamente conhecidas como: as guerras emboabas, os motins do sertão do Rio

das Velhas, as revoltas de Pitangui e Vila Rica e as quimeras do sertão de São

Francisco.

Por mais que se mobilizassem, a voz do oprimido não se fazia ouvir. O

anexim “a voz do povo é a voz de Deus”, como no tempo remoto da história, ainda

hoje não se aplica, pois o povo tem sido inaudível.

Nomeado ouvidor de Vila Rica, o advogado Tomás Antônio Gonzaga

conviveu com pensadores ilustres formados em Portugal, como Cláudio Manuel da

Costa e Alvarenga Peixoto, que, juntos, articulavam os ideais do Iluminismo, de que

haviam tomado conhecimento na Europa e que por aquele continente se expandiam.

Quando denunciados por Silvério dos Reis, vem à tona a conjuração mineira e,

antes de esta ter sido posta em prática, os inconfidentes foram punidos

4 Em 1765 foi decretada a derrama, cobrança de todos os impostos atrasados, que correspondiam a 1/5 (um quinto) de todo o outro extraído no Brasil. Na execução da derrama, as autoridades não pouparam nem mesmo os mineradores empobrecidos, que acabaram perdendo os poucos bens que lhes restavam. (COTRIM, 2005, p. 249).

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exemplarmente, pois a coroa portuguesa visava se prevenir contra futuros levantes.

Por exemplo, Tomás Antonio Gonzaga, provável autor das Cartas Chilenas, foi

considerado “caviloso” e “dissimulador”. Como homem das leis, Tomás Antônio

Gonzaga, assumiu, “[...] à primeira vista, uma postura legalista em face ao poder

metropolitano” (PROENÇA FILHO, 1996, p. 772). O fragmento bem diz “primeira

vista”, pois, se Tomás Antônio Gonzaga expõe o governador da capitania ao ridículo,

isso denota sua consciência política efervescente, impulsionada a denunciar sem

temer represálias, prática comum, na época, quando se praticavam crimes de lesa-

majestade. Naturalmente, ele previne-se, publicando a obra anonimamente.

Em Proença Filho (1996) confirma-se que, na obra Cartas Chilenas, a figura

vilipendiada era o governador Luís da Cunha Meneses. Apesar do criptônimo

Fanfarrão Minésio, certamente reconhecia-se como alvo das ofensivas diretas com

termos pejorativos como: “vil canalha”. Tais galhofadas deveriam constranger e

despertar a cólera do administrador corrupto, que, ao invés de receber versos com

lisonjas dignas de um amigo del Rei, vinham-lhe as cartas satíricas, que o

desmoralizavam perante a sociedade mineira. Versos bajuladores não seriam o

estilo do poeta e o conflito entre o ouvidor e o governador déspota e arbitrário

motivou-o a compor as cartas.

A complexidade dos versos das Cartas Chilenas deve-se, segundo Proença

Filho (1996), a questões que transcendem o seu valor artístico. Parodiando o

mesmo teórico, pergunta-se: “Será que a sátira contribuiu para influenciar o ânimo

dos inconfidentes?”. O consenso é que ela refletiu a efervescência política que se

alastrou pela província das Minas Gerais, apesar do número escasso de cópias das

mesmas cartas.

2 Do namoro do poeta ouvidor ao encerramento no cárcere

O estudo sobre Tomás Antônio Gonzaga perpassa por sua experiência

amorosa, visto que esta o inspirou a compor as liras românticas dedicadas à amada

Marília. Tomás Antônio Gonzaga, sob o pseudônimo de Dirceu, já no cárcere, após

o desmantelamento da conjuração mineira, compôs parte de sua memorável obra

lírica Marília de Dirceu. Maria Dorotéia despertou no poeta grande paixão, ele com

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quarenta anos, ela no desabrochar dos dezessete. Apaixonado, o ouvidor poeta não

economizava galanteios. Os versos líricos fluíam para o deleite da amada, que, por

sua vez, passou a demonstrar afeição por ele. Os momentos de intensa felicidade

não demoraram e a prisão afastou-o da noiva, às vésperas do casamento.

No cárcere, na fortaleza da ilha das Cobras, o poeta intensificou o ofício dos

versos, lançou-se à composição dos poemas líricos, inspirados na musa Marília.

Distante da amada, expressa em seus versos um misto de lirismo e de reflexões

legais.

Realista cauteloso, misturam-se num perfil o pastor Dirceu e o poeta Gonzaga. Lira e lei se misturam neste painel gonzaguiano setecentista da lírica arcádica, entramando, num quadro complexo, o poeta, o réu, a lira, a lei, o processo, num conluio em que o lírico e o traçado real da existência se enlaçam, articulando literatura e vida cultural. (PROENÇA FILHO, 1996, p. 570).

Diante do impasse na prisão, ficam imbricadas as palavras do intelectual

Gonzaga e do poeta de pujante lirismo, o qual, vivendo uma forçada separação

amorosa, deixa os sentimentos tanto de dor pela crise afetiva quanto de indignação

política transparecer. Para quem já estava recluso, não havia mais nada a temer:

“Agora já não tinha receio de se comprometer, enjeitando a paternidade da

escandalosa sátira” (PROENÇA FILHO, 1996, p. 549). A publicação dessas cartas

não se deu, pois, após três anos de prisão na ilha das Cobras, Gonzaga fora julgado

e condenado a dez anos de degredo em Moçambique.

3 O legado da obra Cartas Chilenas

De acordo com Proença Filho (1996), em 1995 surgiu a última organização

dos manuscritos de Tomás Antônio Gonzaga, realizada por Joaci Pereira Furtado,

baseada em edições anteriores, de Rodrigues Lapa e de Tarqüínio de Oliveira. De

acordo com esses estudos, as Cartas Chilenas são compostas por 3964 versos

decassílabos brancos, divididos em treze cartas. No século XX, após árdua

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pesquisa, atribuiu-se a autoria das Cartas Chilenas a Tomás Antônio Gonzaga e

estas, satiricamente, traçam um panorama político da época do Brasil Colônia, cujos

desmandos permanecem até hoje, pois os atuais vícios das ilegalidades políticas,

em que se confunde o público com o privado, aproximam-se daqueles da época à

qual as cartas se reportam. Ainda nos dias presentes não se incutiu na consciência

da maioria dos governantes que, quando se rouba o que é público, rouba-se a todos,

não a um indivíduo e, se um indivíduo lesado não deve calar-se, quanto mais ainda

uma população.

Essas cartas, que circulavam anonimamente, para Proença Filho (1996)

correspondiam ao interesse da sociedade mineira do século XVIII e suscitavam

aplausos, pois os versos de ironia pungente arrostavam com a prepotência do

governador de Minas, o qual, certamente, deveria “escabujar” de raiva ante os

versos que o afrontavam: “Peças satíricas, as cartas funcionam como um amplo

documento da época, num texto alegórico contra os desmandos do poder de um

mandatário corrupto, o Fanfarrão Minésio, contra o qual impreca o remetente Critilo”.

(PROENÇA FILHO, 1996, p. 563). Tomás Antônio Gonzaga, como intelectual e leitor

assíduo, seguiu modelos de outras obras da literatura universal, as quais se serviam

de outros contextos para fazer denúncias em tom satírico. Assim, compôs as cartas

nos moldes da diatribe, a qual, conforme aponta Bakhtin (2008, p. 129), orbita em

torno da “sátira menipeia”. Através da reelaboração do discurso, o poeta

esquematizou sua obra da seguinte forma:

A ação das cartas de Critilo, aproveitando-se do modelo de Montesquieu nas Lettres Persanes, transporta a ação para o Chile, que simboliza Minas Gerais. A capital passa a ser Santiago em vez de Vila Rica. A Universidade de Coimbra transforma-se na de Salamanca, e Portugal figura como Espanha, onde pretensamente estaria o destinatário das cartas, denominado Doroteu, nome corrente no Arcadismo. A estrutura dramática do texto abriga duas personagens que centralizam a ação a ser narrada: Doroteu, o autor da “Epístola”, que antecede as treze cartas e delas destinatário, e Critilo, que conta na sua correspondência a Doroteu, os fatos que Fanfarrão Minésio obrou no Chile. A história que emerge dessa narrativa, em versos cortantes, num ritmo dramático, desvela um jogo de autoria: Doroteu, ao redigir sua epístola a Critilo, tem prévio conhecimento das cartas. Já Critilo, que destina todas elas a Doroteu, não referencia a epístola ao expor os fatos. (PROENÇA FILHO, 1996, p. 775).

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No contexto de Vila Rica, o autor recorreu à carnavalização menipeica, cujas

ações caracterizam, segundo Bakhtin (2008, p. 134), como “[...] cenas de

escândalos, de comportamento excêntrico, de discursos e declarações inoportunas,

[...] abrem brecha na ordem inabalável”. Em sintonia com os diferentes recursos

empregados na literatura universal, Tomás Antônio Gonzaga assim o fez. Sobre o

domínio de vasto universo cultural, Bakhtin (1988) aponta que:

Nos ciclos paródicos e satíricos realiza-se uma luta contra o fundo feudal e as más convenções, contra a mentira que impregnou todas as relações humanas. À mentira pesada e sinistra opõe-se a intrujice alegre do bufão, à falsidade e à hipocrisia vorazes opõem-se a simplicidade desinteressada e a galhofada sadia do bobo, e a tudo o que é convencional e falso a forma sintética da denúncia do bufão. (BAKHTIN, 1988, p. 278).

Nas Cartas Chilenas, a denúncia à perniciosidade na administração política

no Chile equipara-se às Cartas Persas de Montesquieu, “[...] que criaram todo um

gênero de cartas exóticas análogas, representando o regime francês visto por um

estrangeiro que não o compreende” (BAKHTIN, 1988, p. 279).

4 Os versos têm algo a dizer

A contextualização feita até aqui se justifica devido à importância da

reconstrução e da compreensão das circunstâncias político-sociais do último quartel

do século XVIII, pois uma análise coerente se concretiza através desses

conhecimentos e ainda suscita reflexões acerca do atual panorama político no

Brasil. Nesse ensejo, propõe-se analisar a temática retratada nas segunda, terceira,

quinta, décima segunda e décima terceira cartas, nas quais, entre as demais,

evidenciam-se a desonestidade do administrador Meneses / Fanfarrão, que deixa

prevalecer o jogo de troca de favores e acordos interesseiros entre os seus mais

chegados. A exemplo do chefe corrupto, seus assessores adotam igual conduta,

formando, assim, uma inescrupulosa equipe de governo.

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Na primeira estrofe da segunda carta, o tom irônico é perceptível pela forma

de Gonzaga / Critilo se referir ao administrador Fanfarrão como “imortal chefe”. Os

versos relatam uma noite de total dedicação aos escritos da carta, a qual o poeta diz

ser volumosa e cuja conclusão se deu ao amanhecer. Os relatos minuciosos, aliados

à arte poética, demandam tempo, pois os versos, além de constituírem uma

denúncia anônima ao chefe, atendem à tendência árcade e seriam lidos por

intelectuais do seu círculo de amizade, razão suficiente para o esmero.

As brilhantes estrelas já caíam e a vez terceira os galos já cantavam, quando, prezado amigo, punha o selo na volumosa carta em que te conto do nosso imortal chefe a grande entrada; (...) (p. 804)

5.

Gonzaga / Critilo dirige-se ao interlocutor, Doroteu, com versos que lhe

chamam a atenção sobre os desmandos e os privilégios usufruídos pelo governador,

em contradição com o estilo de vida de Critilo, que, apesar das necessidades, é

mais digno e não lhe tira o sono, pois, em sua vida singela, não usufrui de

patrimônios alheios. O poeta mostra-se indiferente a bens e riquezas, ainda mais

quando conquistados ilicitamente. Nos verso abaixo fica clara a consciência do eu

lírico em relação à avareza, à corrupção e ao enriquecimento ilícito dos

administradores da Colônia, que se apropriam dos bens públicos para formar fortuna

pessoal, lesando tanto aos ricos quanto aos pobres. Mesclada à questão política, há

também a presença do ideal simples de vida que caracterizou toda a lírica árcade.

Não cuides, Doroteu, que brandas penas me formam o colchão macio e fofo; (...) (...) e colchas matizadas, não se encontram na casa mal provida de um poeta, (...) (...) nem na suja cozinha acende o fogo. Mas nesta mesma cama tosca e dura, descanso mais contente do que dorme aquele que só põe o seu cuidado em deixar a seus filhos o tesouro que ajunta, Doroteu, com mão avara furtando ao rico e não pagando ao pobre. (p. 805)

5 Todas as citações das Cartas Chilenas referem-se a: GONZAGA, Tomás Antônio. In: PROENÇA, Domício Filho (Org.). A poesia dos inconfidentes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996 e os números das páginas serão inseridos após as citações.

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Apesar de confessar que tem a consciência tranquila, que pode descansar

sem culpa, na segunda estrofe, da segunda carta, os versos dizem:

Assustado, desperto, os olhos abro e, conhecendo a causa que me acorda, um tanto impaciente o corpo viro, fecho os olhos de novo, e cruzo os braços, para ver se outra vez me torna o sono.(...) (...) Já soam dos soldados grossos berros, já tinem as cadeiras dos forçados, (...) (p. 805).

Quando mudam as contingências políticas, o sono tranquilo do autor das

cartas passa a ser assombrado pela ronda dos soldados del Rei, que, mandados

pelo governador da província, rondam acintosamente a cidade. O que incomoda

são os ruídos dos soldados e ele bem sabe como agem com brutalidade.

Conhecendo a conduta do chefe, na quinta estrofe, da segunda carta, Critilo

relata ao amigo Doroteu:

Aquele, Doroteu, que não é santo, mas quer fingir-se santo aos outros homens, pratica muito mais do que pratica quem segue os caminhos da verdade. Mal se põe nas igrejas, de joelhos, Abre os braços em cruz, a terra beija, (...) (...) estando em parte onde o mundo as veja (p. 806).

O fingimento do chefe, nesses versos, pode ser comparado ao dos fariseus,

os mesmos fariseus criticados por Cristo, presentes ainda hoje nas igrejas e

transitando nas diversas esferas sociais tranquilamente. Dissimulações semelhantes

a do chefe Meneses / Fanfarrão têm apenas o intuito de causar boa impressão a

todos quantos o observem, afinal é da boa imagem perante o público que se faz um

político. Sabendo dessa estratégia, não só o governador Luís da Cunha Meneses, o

Fanfarrão Minésio, mas muitos políticos ainda recorrem às mesmas táticas,

frequentando os lugares onde possam ser vistos, principalmente simulando gestos

de bondade. No atual cenário político, a cena descrita nos versos acima surge em

número cada vez mais crescente. Sob o foco das lentes das câmeras há sempre a

imagem de políticos abraçando idosos, pegando crianças no colo e beijando-as,

circulando nos becos, ocupando bancos das igrejas, enfim, dando demonstrações

de gestos humanitários que os enobrecem perante a sociedade.

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Os militares de Vila Rica / Santiago, abusavam do poder, mas o chefe fazia

vista grossa às atrocidades cometidas:

Apanha um militar aos camaradas do soldo uma porção. Astuto e destro, para não se sentir o grave furto, mistura nos embrulhos, que lhes deixa, igual quantia de metal diverso. Faz-se queixa ao bom chefe deste insulto, sim, faz-se ao chefe queixa, mas debalde, que este Hércules não cinge a grossa pele nem traz na mão robusta a forte clava, para guerra fazer aos torpes Cacos (p. 807).

Os versos acima remetem à conhecida barganha política ou troca de favores.

Certamente o administrador tinha interesse nos serviços dos torpes soldados, por

isso não tomava nenhuma medida punitiva contra aqueles que se sabiam larápios. O

governador, de reputação duvidosa, não poderia tomar medida alguma, tendo em

vista que a sua própria conduta sofre de igual mácula. Aqueles que detêm o poder

deveriam servir de exemplo, não se envolvendo em escândalos de corrupção. Se

assim fosse, eles poderiam impor ordens que seriam, no mínimo, refletidas, pois não

haveria contra-argumentação diante de um chefe moralmente íntegro.

Na segunda carta seguem-se as denúncias, pois, como bacharel, nomeado

ouvidor de Vila Rica, é inteirado das leis. Por isso Gonzaga / Critilo relata sua

indignação perante os descasos do governo para com as mesmas denúncias:

(...) pede outro que lhe queime o mau processo, (...) (...) decide os casos todos que lhe ocorrem, ou sejam de moral, ou de direito, ou pertençam também à medicina, sem botar (que ainda é mais) abaixo um livro da sua sempre virgem livraria. Lá vai sentença revogada, (...) (p. 811).

Já disse, Doroteu, que o nosso chefe, apenas principia a governar-nos, nos pretende mostrar que tem um peito muito mais terno e brando do que pedem os severos ofícios do seu cargo (p. 813).

Os trechos destacados demonstram que os processos são julgados ao acaso,

pois seu principal representante, o governador, não se preocupa em consultar os

livros legais, visto não ter o hábito da leitura e da interpretação da legislação em

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vigor. Não os consulta, pois o hábito de leitura não coaduna com a prática do

“grande” chefe. Há, ainda, que se destacar que o autor das Cartas Chilenas é um

intelectual de formação iluminista, que tem o hábito da leitura e da reflexão,

enquanto o Fanfarrão Minésio, por ser rude, é descrito como tosco intelectualmente,

e, por ser incapaz de interpretar as leis, julga à revelia com a brutalidade que lhe é

peculiar. Os versos acima apontam também que o governador não tem estofo nem

competência para cumprir as funções demandadas pelo cargo que ocupa e, para

disfarçar sua incompetência, reveste-se de dissimulada ternura. Se o cargo exige

uma postura mais enérgica, o ocupante do cargo deve assim agir para que se faça

ouvido, não por temor, mas por respeito.

A construção da cadeia, atual museu da inconfidência, é o alvo da crítica na

terceira carta. A projeção de tamanho investimento não condiz com a realidade do

humilde povoado, principalmente quando se evidencia que a cadeia se destina aos

desvalidos:

E sabes, Doroteu, quem edifica esta grande cadeia? Não, não sabes. (...) E sabes para quem? Também não sabes. Pois eu também to digo: para uns negros, que vivem, quando muito, em vis cabanas, fugidos dos senhores nos matos. (p. 815).

No fragmento acima há uma série de elementos que merecem destaque, a

começar pela construção de uma grande obra, como a cadeia de Vila Rica, para

encarcerar os miseráveis transgressores em um momento em que a província das

Minas Gerais está endividada, o que implica o aumento da pobreza, da miséria e da

violência. Tal elemento merece destaque, pois, ainda hoje, esse comportamento é

recorrente entre os políticos brasileiros. São feitas grandes obras sem que se

consiga resolver os problemas sociais Em relação à cadeia, vale destacar o

paradoxo de que a construção de tal obra implicaria o aumento da miséria e,

consequentemente, da marginalização.

Há, ainda, a relevante questão dos negros, cuja afirmação, hoje, certamente

causa, no mínimo, constrangimento, mas está em sintonia com a mentalidade em

vigor na época. Embora os inconfidentes tivessem planos muito bem estruturados

em relação à liberdade política e ao crescimento da Colônia, e seus ideais fossem,

realmente, libertários, não fazia parte desses planos a abolição da escravatura. Isso

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se deve ao fato de que a mão de obra escrava era fundamental à mineração, mas

também porque a visão da elite brasileira em relação ao negro, certamente, era de

que este estava aquém da condição humana e os inconfidentes comungam com

essa mentalidade. Tanto é assim que a abolição da escravatura no Brasil só ocorreu

um século após o desbaratamento da conjuração mineira e o Brasil foi o último país

da América a abolir a escravidão. Os ideais de liberdade, portanto, embora justos e

autênticos, não fizeram com que os conjurados fossem sensíveis à condição dos

negros escravos.

Quando o chefe não age com escrúpulos, seu exemplo é seguido pelos

assessores. Isso ocorria em Vila Rica, representada simbolicamente como Chile e,

na realidade, em diferentes esferas políticas atuais. Tal conduta pode ser constatada

nos seguintes versos:

Os mesmos magistrados se revestem do gênio e das paixões de quem governa.

(...) Por isso, Doroteu, um chefe indigno é muito e muito mau, porque ele pode a virtude estragar de um vasto império. (p. 816)

Nas levas, Doroteu, não vem somente os culpados vadios; vem aquele que a dívida pediu ao comandante; vem aquele que pôs os olhos na sua mocetona, e vem o pobre que não quis emprestar-lhe algum negrinho, para lhe ir trabalhar na roça e lavra. ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

Estes tristes, mal chega, são julgados pelo benigno chefe a cem açoutes (...) (p. 818).

Os versos acima apontam que os magistrados, assim como o governador da

província, envolvem-se em corrupção. Nesse sentido, questiona-se: a quem recorrer,

se de onde se espera o direito de igualdade, buscam favorecimentos próprios?

Aqueles que deveriam dar exemplo de lisura envolvem-se em escândalos que

deixam a população desapontada e sem perspectiva de justiça.

Tomás Antônio Gonzaga, com sua formação iluminista, constata que um

chefe indigno corrompe a virtude de um vasto império. Os vícios de governos

corruptos legam para a nação mazelas sociais irreparáveis. Sônia Almeida Pimenta

(2008) expõe que a ineficácia dos serviços públicos tem origem na corrupção

política, a qual abre espaço para o culturalmente conhecido “jeitinho brasileiro”, pois

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cada um, a seu modo, procura levar vantagem para obter atendimento nos serviços

públicos e, então, o que deveria ser constituído por direito reverte-se em favores.

No que se refere à pseudoimparcialidade da justiça, Tomás Antônio Gonzaga

/ Critilo reitera sua desaprovação, pois, aos reveses da lei, a agilidade da justiça só

se aplica aos pobres e aos pretos. A analogia aqui pode ser remetida aos inúmeros

atuais casos de fraudes políticas que resultam em denúncias vazias, em

investigações superficiais e em processos obscuros. A questão da imparcialidade da

justiça sempre deve ser posta em xeque, já que a aplicabilidade da lei deve seguir

uma via de mão única, devendo prevalecer o direito à igualdade.

Em diversos versos, ao longo da carta, fica explícita a indignação do poeta,

que questiona o amigo Doroteu sobre a desmoralização desmedida que se alastrava

em Vila Rica / Santiago. Essa inquietude revela um escritor crítico, polêmico, incapaz

de calar-se diante das irregularidades que presencia. A indagação seguinte é

reiterada em diversas estrofes da carta. “Já viste, Doroteu, um tal desmancho”? (p.

817).

Festividades luxuosas, sustentadas por dinheiro público e frequentadas por

figuras dissimuladas, revestidas de superficialidade de aparências, provocam

grandes rumores e indignação:

Uns ralham, outros ralham, mas que importa? Todos arbítrios dão, nenhum acerta. Então o grande Alberga, que preside, vendo esta confusão, na mesa bate e, levantando a mão pausada e forte, a importante questão assim decide: “Há dinheiro, senhores, há dinheiro; vendam-se os castiçais, tinteiro e bancos, venda-se o próprio pano e mesa velha; quando isto não baste, há bom remédio: as fazendas se tomem, não se paguem (...)

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

Mandam-se apregoar as grandes festas, acompanhada ao pregão luzida tropa de velhos senadores. Estes trajam, ao modo cortesão, chapéus de plumas, capas com bandas de vistosas sedas. (p. 832).

Na quinta carta, Gonzaga / Critilo descreve com ironia sobre esses festejos

pomposos, em que as pessoas se imergem em um jogo de faz de conta. A cena

descrita nos versos acima revela o inverso do ideal de vida simples almejado pelos

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poetas árcades, tendo em vista que, no Arcadismo, os autores elegem o campo

como o cenário ideal de inspiração do eu lírico.

A sua evocação equilibra idealmente a angústia de viver, associada à vida presente, dando acesso aos mitos retrospectivos da idade de ouro. Em pleno prestígio da existência citadina os homens sonham com ele à maneira de uma felicidade passada, forjando a convenção da naturalidade como forma de ideal de relação humana. (CANDIDO apud BOSI, 2008, p. 57).

As festividades mencionadas pelo eu lírico seguem os moldes daquelas que

aconteciam nas cortes europeias e demonstram que o poder emana das pompas,

não da legalidade. As pessoas que frequentam os luxuosos salões de festas visam

interesses próprios. Para tanto, revestem-se de ricos trajes, pois é pela aparência

que são avaliados. Segundo Bosi (2008, p. 58), “[...] o bucolismo foi para todos o

ameno artifício que permitiu ao poeta fechado na corte abrir janelas para um cenário

idílico onde pudesse cantar, liberto das constricções da etiqueta, os seus

sentimentos de amor e de abandono ao fluxo da existência”. Os fatos presenciados

pelo poeta impeliam-no a registrar suas imprecações nas Cartas Chilenas. Nos

versos acima se constata que, a despeito de todos, o presidente da Câmara

Municipal de Vila Rica cede aos caprichos do Fanfarrão e angaria recursos, mesmo

ilegalmente, para apregoar as festas. Os frequentadores de tais festas comungam

de igual conduta, desconsideram as leis e tramam negócios lucrativos para si,

lesando, assim, a população, que vê os seus direitos e seus bens se esvaírem.

Outra ação ilícita imprecada por Gonzaga / Critilo, na décima segunda carta,

diz respeito ao protecionismo dispensado a um certo mulato:

Aquele que jacta de fidalgo não cessa de contar progenitores (...) ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

(...) assim o nosso chefe traz consigo arribação infame de bandalhos, que geram também asas, com a muita, nociva audácia que lhes dá seu amo. Na corja dos marotos aparece um magriço mulato, a quem o chefe, por ocultas razões, estima e preza. (p. 888).

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

Passados alguns tempos, Ludovino encontrou, uma noite, a sua escrava (...)

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Aqui lhe perguntou a longa história da fugida que fez; e a triste serva, com ânimo sincero, assim lhe fala: “Ribério me induziu a que fugisse; meteu-me no quarto, aonde estive fechada muitos dias. Alugou-me, depois uma casinha; aqui me dava dos sobejos da mesa de seu amo, para alimentar a pobre vida. Tive dele dois filhos; o demônio Enganou-me, senhor, cuidei...” E, nisto,(...) (p. 892).

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

Agora dirás tu: “Nasceu fidalgo, e as grandes personagens não se ocupam em baixos exercícios”. Nada dizes. (p. 895).

Através da leitura da décima segunda carta obtém-se a informação de que

Robério, criado do chefe, rouba uma escrava de Ludovino e amasia-se com ela, que

dá a luz a dois filhos. Ficam implícitas, nos versos, as razões pelas quais o

Fanfarrão preza e estima o mulato. Gonzaga / Critilo relata que um fidalgo não se

ocupa de exercícios de pouca monta, o que leva a entender que tamanho

beneplácito deve-se a razões obnubiladas.

O que fica evidente nos versos acima é o preconceito racial de Tomás

Antônio Gonzaga, o que, para a época, não poderia ser diferente, pois, mesmo entre

os ilustres intelectuais engajados no movimento da conjuração mineira, não se

cogitavam os ideais de libertação dos escravos. Ocorria, porém, que, na mesma

medida em que a mentalidade escravocrata era latente, formava-se um novo perfil

de população que constituiria a futura nação brasileira. O período colonial marca a

ascensão do bacharel. Gilberto Freyre (2004) retrata esse tema no capítulo

Ascensão do bacharel e do mulato, na obra Sobrados e Mucambos.

Gonzaga, Cláudio, os dois Alvarenga, Basílio da Gama marcam esse prestígio mais acentuado do bacharel na sociedade colonial; a intervenção mais franca do letrado ou do clérigo na política. Marcam, ao mesmo tempo, o triunfo político de outro elemento na vida brasileira, o homem fino da cidade. E mais: a ascensão do brasileiro nato e até do mulato aos cargos públicos e à aristocracia da toga. (FREYRE, 2004, p. 714).

Entre os séculos XVII e XVIII, muitos mulatos ascenderam como bacharéis

intelectuais formados na Europa por investimento dos pais ou das mães, que não

mediam esforços para contribuírem com a formação universitária dos filhos. Houve

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outra forma de ascensão que também marcou o período. Segundo Freyre (2004, p.

727), “[...] poucos mulatos que chegavam a exercer, nos tempos coloniais, postos de

senhores, quando aristocratizados em capitães-mores, tornavam-se oficialmente

brancos, tendo atingido a posição de mando por alguma qualidade ou circunstância

excepcional”. Cabe aqui a seguinte indagação: O bacharelado ou a

aristocratização em capitães-mores propiciou a integração social a todos os

mulatos? Os fatos históricos demonstram que sequer a Constituição fez com que o

direito à igualdade fosse plenamente exercido.

Assim como Tomás Antônio Gonzaga, Gregório de Matos, primeiro grande

nome da literatura brasileira, em sua poesia satírica, empregando linguagem ferina e

sarcástica, cultiva a visão estamental em relação ao negro ou mulato6.

Mais delicada, se não espinhosa, é a questão do negro e, dentro desta, a questão do mulato. A ojeriza que o último inspira a Gregório faz escrever uma sociedade onde o grau de mestiçagem era já o bastante alto para que se destacasse do conjunto da população um grupo de pardos livres. (BOSI, 1992, p.106).

A leitura das poesias de Gregório traz à tona a seguinte indagação de Bosi

(1992, p. 107): “[...] a fusão que se deu na pele e na carne significou também

emparelhamento social”? A reposta se obtém nos seguintes apontamentos:

Sobre eles, mulatos nascidos e criados em mucambos e cortiços, agiu poderosamente o desfavor das circunstâncias sociais, predispondo-os ao estado de flutuação e inadaptação aos quadros normais de vida e de profissão, ao de inconstância no trabalho, ao de rebeldia a esmo, estados todos esses, socialmente patológicos, que tantos associam ao processo biológico de miscigenação. (FREYRE, 2004, p.749).

6 Muitos mulatos desavergonhados,

Trazidos pelos pés aos homens nobres, Posta nas palmas toda a picardia.

Estupendas usuras nos mercados, Todos os que não furtam, muito pobres: Eis aqui a cidade da Bahia. (MATOS, Gregório de. Soneto VI. Disponível em: <http://www.revista.agulha.nom.br>.

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No que diz respeito à condição social do mulato, Gilberto Freyre (2004)

destaca ainda que “[...] é considerável o número de sararás, cabras, cafuzos,

mulatos de cabelo liso ou cacheado ou encarapinhado, mas ruço e até arruivado e

vermelho, que passam pelos anúncios de jornais, da primeira metade do século

XIX”. O estigma da exclusão social seguiu-se ao longo da história e Gilberto Gil, na

música Sarará Miolo7, retrata essa questão mal resolvida da identidade do crioulo,

que não se adapta entre os brancos nem entre os negros. A análise feita do

fragmento da décima segunda carta traz a reflexão sobre a forma irônica como

Gonzaga / Critilo retrata a questão dos privilégios da fidalguia, pois o alvo das

críticas nos versos dessa carta, além do Fanfarrão, é a figura do mulato, por quem o

autor das cartas revela desprezo.

Gonzaga / Critilo, nos cinco últimos versos, da décima terceira (última) carta,

constata que a conduta do chefe é mascarada por um jogo de interesses para

continuar inserido no sistema. Para se manter no poder, o chefe apela para um

comportamento fingido, mostrando-se religioso, fiel e íntegro, mas esses adjetivos

não condizem com a moral do Fanfarrão Minésio, pois sua ação vela os torpes fins.

Não há, meu Doroteu, não há um chefe, Bem que perverso seja, que não finja Pela religião um justo zelo, E, quando não o faça por virtude, Sempre, ao menos, o mostra por sistema. (p. 896).

Os versos acima trazem à tona a seguinte reflexão: O sistema político

molda o homem aos seus preceitos ou o homem molda o sistema de acordo com os

seus interesses? De qualquer forma, prega-se que jamais os interesses particulares

devem preponderar sobre os direitos coletivos.

O poeta Gonzaga transita entre os versos satíricos e os líricos. Nas Cartas

Chilenas busca-se resgatar o estilo sociopolítico do autor, mas o pastor Dirceu,

mesmo na sua obra lírica, deixou transparecer a pujança crítica de Gonzaga

retratando sobre sua condição de prisioneiro.

7 sara, sara, sara cura

dessa doença de branco (...) cabelo duro é preciso que é para ser você, crioulo. (GIL, Gilberto. Sarará Miolo. Disponível em: <http://letras.terra.com.br>.

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5 Um breve cotejo entre Cartas Chilenas e o poema Quando levares, Marília, /

teu ledo rebanho ao prado.

As anônimas Cartas Chilenas que circulavam em Vila Rica possuem estreitas

ligações com a participação de Tomás Antônio Gonzaga no movimento da

Inconfidência Mineira, fato que levou o ouvidor, noivo de Marília, à prisão. Proença

Filho (1996, p. 548) aponta que o ócio do poeta na prisão levou-o “[...] a duas

grandes tarefas: celebrar o amor, que o martírio tinha embelezado, e fazer a sua

defesa por meio da poesia”. Essa condição sorumbática do poeta na prisão suscita

uma breve análise do poema composto na masmorra: Quando levares, Marília, / teu

ledo rebanho ao prado.

Saudoso, o poeta supõe que a amada por ele suspira de saudade. Os versos

seguem a estética das poesias árcades, em que o cenário bucólico e os temas

pastoris ficam em evidência. Na primeira estrofe do poema, o eu lírico imagina e

idealiza o prado onde estaria sua musa. A idealização, seja da musa, seja da

natureza, é recorrente na poesia árcade como um todo, tanto é assim que ela se

desdobrará, no século XIX, na poesia romântica. Segundo Bosi (2008, p. 59), “[...]

tanto no contexto árcade-ilustrado como no romântico-nostálgico há um apelo à

natureza como valor supremo que em última instância é defesa do homem infeliz”. O

eu lírico, nos versos seguintes, manifesta seu sentimento pela amada, Marília,

projetando-a em um cenário bucólico.

Quando levares, Marília, teu ledo rebanho ao prado, tu dirás: - Aqui trazia Dirceu também seu gado. Verás os sítios ditosos onde, Marília, te dava doces beijos amorosos (...) (p. 180).

8

Na última estrofe do poema, o poeta descreve o frio cárcere e descreve o

lúgubre local de onde não é ouvido, pois suspira em vão, não sendo ouvido sequer

pelos deuses. A evocação aos deuses é retomada no Arcadismo e recebeu

denominação de Neoclassicismo. A queixa do eu lírico na estrofe seguinte é pela

8 As citações referem-se a: GONZAGA, Tomás Antônio. In: EULÁLIO, Alexandre. Os melhores poemas de Tomás Antônio Gonzaga. São Paulo: Global, 1983 e os números das páginas serão inseridos após as citações.

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profunda dor que acomete o seu coração, pois, para Dirceu, os sinais de inchaço e

roxidão dos olhos não são nada em relação aos retratados no coração. No mesmo

poema, conforme os apontamentos de Proença Filho (1996), apresenta-se um misto

de “pastor, Dirceu e poeta Gonzaga”. Com os fragmentos destacados é possível

perceber o lirismo árcade na primeira estrofe contrastando com o tom de denúncia

da seguinte estrofe:

Numa masmorra metido, eu não vejo imagens destas, imagens que são por certo a quem adora funestas. Mas se existem, separadas dos inchados, roxos olhos, estão, que é mais, retratadas no fundo do coração. Também mando aos surdos deuses tristes suspiros em vão (p. 182).

Coteja-se o poema acima às Cartas Chilenas como forma de evidenciar que

Tomás Antônio Gonzaga, mesmo na masmorra, apresentou-se lírico, mas não

deixou esvanecer o seu atributo maior de poeta satírico, crítico incansável. Cabe

aqui retomar um breve comentário da parte que introduz as Cartas Chilenas:

Epístola a Critilo, em que o amigo Doroteu responde as missivas com os seguintes

versos:

Este, ó Critilo, o precioso efeito dos teus versos será: como em espelho que as cores toma e reflete a imagem, os ímpios chefes de igual conduta a ele se verão, sendo arguidos pela face brilhante da virtude, que, nos defeitos de um, castiga a tantos. (p. 794).

As perseguições políticas sofridas por Tomás Antônio Gonzaga e seus

companheiros intelectuais iluministas não se restringiram ao século XVIII. Ao longo

da história episódios semelhantes voltaram a se repetir. Os vícios do Fanfarrão não

se reduziram àquele contexto, pois, no meio político, permanece atual. Cartas como

as de Tomás Antônio Gonzaga parecem não surtir efeito em meio aos governantes,

pois os de conduta virulenta devem sequer conhecer o conteúdo delas, como

também não devem conhecer a atual carta de Rossini Amorim Bastos: Prezado

Barão de Itararé, em que, sob o remetente Pedr‟Álvares, a autora denuncia os

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desmandos da atual política. Uma das indagações feitas na carta é “Até quando

durará o cárcere do monarca que rege o Distrito Federal?” A indagação contida na

carta refere-se à detenção do ex-governador do Distrito Federal ocorrida em

fevereiro de dois mil e dez. A alusão ao fato justifica-se pela polêmica gerada, na

época, diante de mais um entre os inúmeros escândalos que envolvem políticos do

país. Questionamentos como esses e sátiras como as de Tomás Antônio Gonzaga

deveriam ser lidos e refletidos, principalmente no âmbito da política nacional.

Na Dedicatória aos Grandes de Portugal há a seguinte frase: “Feliz reino e

felices grandes que não têm em si um modelo destes!” Entre avanços e retrocessos,

a nação brasileira vem procurando eleger governantes que se distancie do modelo

daquele representado por Fanfarrão. Enquanto na realidade não se tem respostas a

essas expectativas, na literatura encontra-se, para a apreciação do leitor, o modelo

idealizado na figura dos personagens heróis. A releitura das Cartas Chilenas traz

sempre à tona questões sociopolíticas passíveis de reflexão em qualquer época.

Referências Bibliográficas

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____________. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade – estudos de teoria e história literária. 10. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2008.

COTRIM, Gilberto. História global Brasil e geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

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Paulo: Global, 1983.

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PIMENTA, Sônia de Almeida et alii. Identidade nacional em debate. São Paulo: Moderna, 1997.

PROENÇA FILHO, Domício (Org.). A poesia dos inconfidentes. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1996.

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O MAMELUCO BASTARDO E O MAZOMBO ILUSTRADO NO ROMANCE OS SINOS DA AGONIA

Celimara Cristine Lima Strelow (PDE- SEED) 9

Rita Felix Fortes (UNIOESTE) 10

RESUMO

Tomando como base as obras teóricas Uma Poética de Romance: matéria de carpintaria, de Autran Dourado; Problemas da Poética de Dostoiévski e Estética da Criação Verbal, ambas de Mikhail Bakhtin, objetiva-se, no presente artigo, analisar a obra Os Sinos da Agonia (1974), de Autran Dourado, dando ênfase aos aspectos político e polifônico do romance, escrito no período da ditadura militar. Dá-se enfoque à trajetória das personagens: Januário, o mameluco bastardo – cuja morte em efígie é um fulcro temático relevante nesse romance; Malvina – a maquiavélica aristocrata decadente; e Gaspar – o mazombo ilustrado. No contexto de censura e represálias políticas da década de 1970, Autran Dourado, estrategicamente, ambienta as ações do romance em Vila Rica no final do século XVIII, o que propicia que se correlacione o romance Os Sinos da Agonia às Cartas Chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga, que circulavam anonimamente em Vila Rica do século XVIII.

Palavras-Chave: Os Sinos da Agonia, morte em efígie, trama, mazombo ilustrado.

ABSTRACT

Based on the theoretical work A poetic romance: The content of carpentry written by Autran Dourado and Mikhail Bakhtin‟s Dostoevsky's Poetics problems and Aesthetics of verbal creation. The aim in this article is to analyze the novel Bells of agony (Os sinos da agonia) written by Autran Dourado in 1974, emphasizing the political and the polyphonic novel, written during the military dictatorship. It will give focus to the trajectory of the characters: Januário, the mameluke bastard - whose effigy death is a fulcrum theme in this novel, Malvina. Malvina is the machiavellian decadent aristocrat and Gaspar is the mazombo illustrated. In the context of censorship and political

9 Professora PDE (turma 2009/2010) de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental e Médio, lotada nos Colégios Estaduais Carlos Zewe Coimbra e Dom Manoel Könner, no município de Santa Terezinha de Itaipu/PR, pertencente ao NRE de Foz do Iguaçu.

10 Professora Associada do Curso de Letras do Campus de Marechal Cândido Rondon e do Programa de Mestrado em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná Unioeste).

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reprisals in the 1970s, Autran Dourado, adapts actions strategically of the novel in Vila Rica in the late eighteenth century, which provides that correlates the novel Bells of agony (Os sinos da agonia) and Chilean letters (Cartas chilenas) written by Tomas Antonio Gonzaga, which circulated anonymously in Vila Rica in the eighteenth century.

Keywords: Bells of Agony (Os Sinos da Agonia), effigy death, plot, mazombo illustrated.

1 Introdução

Autran Dourado é considerando um arquiteto da palavra, poeta

esquadrinhando o tempo na narrativa, romancista explorador das metáforas, artista

intelectual de minuciosa filigrana literária. Neste estudo objetiva-se analisar a

labiríntica obra Os Sinos da Agonia, observando-se o fio condutor da unidade

dialógica desse romance polifônico.

Autran Dourado ambienta a narrativa do romance Os Sinos da Agonia em Vila

Rica, deslocando-a para o século XVIII, período tenso, marcado historicamente por

muitos desmandos políticos, os quais são representados metaforicamente na figura

do Capitão-General. Naquele ambiente profícuo, o autor criou uma trama literária a

ser desvendada, cuja história de amor e ódio envolve as personagens Januário,

Malvina e Gaspar. Trata-se da carnavalização de vários mitos que, labirinticamente,

se desencadearam na morte em efígie11 de Januário, cujo destino trágico suscita, no

leitor contemporâneo, uma reflexão acerca da condição dos filhos bastardos no

tempo do Brasil Colônia. É desta forma que “[...] o criador amassa e emprega a

realidade para criar uma outra realidade, uma realidade que obedece à complicada

geometria literária, ao seu sistema de forças, que nada tem a ver com as ciências

físicas, naturais ou sociais” (DOURADO, 2000, p. 95).

11

A morte em efígie era um simulacro de execução de um condenado à revelia, dada a ausência do réu. Este era representado em uma pantomima na qual, simbolicamente, o condenado era “executado”. Uma vez cumprida a pantomima/sentença, socialmente o condenado estaria morto e qualquer um poderia, ao encontrá-lo, consumar a morte em efígie.

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Os Sinos da Agonia, de Autran Dourado, foi escrito no período da ditadura

militar, época de represália política e, como forma de burlar a censura, o autor,

embora tenha composto a obra na década de 1970, deslocou as ações para o

século XVIII, ambientando-as na histórica Vila Rica. Trata-se do mesmo ambiente

em que circulavam as anônimas Cartas Chilenas, cuja autoria de Tomás Antônio

Gonzaga só foi confirmada no século XX, as quais traziam versos de ironia

pungente, que se arrostavam com a prepotência do governador de Minas: “Peças

satíricas, as cartas funcionam como um amplo documento da época, num texto

alegórico contra os desmandos do poder de um mandatário corrupto, o Fanfarrão

Minésio, contra o qual impreca o remetente Critilo” (PROENÇA FILHO, 1996, p.

563). A análise das obras supracitadas permite constatar que há problemas

introjetados na política e na cultura brasileira que remontam ao período colonial e

que, sob nova roupagem, se perpetraram ao longo do tempo. Tanto é assim que se

podem correlacionar aspectos históricos, espaciais e temporais entre Os Sinos da

Agonia e as Cartas Chilenas.

Autran Dourado, no romance Os Sinos da Agonia, adota, segundo a

concepção bakhtiniana, a índole cronotópica, isto é, retoma o ambiente de Vila Rica

do século XVIII, trazendo para a década de 1970 aspectos do cenário de grandes

conflitos sociopolíticos da época da Inconfidência Mineira. Diante da necessidade de

denunciar os desmandos políticos do regime militar, instaurado a partir do golpe de

1964, o autor afirma:

Tarquínio, com suas notas, elucidou-me muitos nomes de coisas, deu-me os elementos de que eu necessitava para a visualização plástica dos objetos, da natureza, da ambiência (não da realidade) do século XVIII nas Minas, para transportá-los à atualidade. (DOURADO, 2000, p. 209).

A apropriação do espaço de Vila Rica e a retomada do tempo histórico do

período da Conjuração Mineira no romance têm razões políticas que se explicam,

pois, segundo o próprio autor, quando, nos períodos ditatoriais, não se pode

escrever o que se pensa, há que se recorrer a outras formas de expressão. As

Cartas Chilenas foram escritas dentro da escola árcade, por autor árcade, que

alegoricamente expôs o Fanfarrão Minésio à imprecação. Já o resgate histórico feito

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por Autran Dourado em Os Sinos da Agonia é apenas um simulacro, pois Autran

Dourado é um autor do século XX, cuja produção, estilo e forma de narrar primam

pelas características modernistas do século XX. Sobre essa estratégia literária, a

concepção bakhtiniana postula que:

Não se trata de uma paisagem geológica e geográfica abstrata, nela se revelam as potências da vida histórica; é o palco de um acontecimento histórico, é a fronteira solidamente traçada do curso espacial por onde correrá o fluxo do tempo histórico. (BAKHTIN, 2006, p. 239).

O contexto de Vila Rica do último quartel do século XVIII é propício, pois há

elementos proeminentes que justificam a opção do romancista, uma vez que essa

era a capital da província de Minas Gerais, cujo surgimento se deveu à descoberta

do ouro, propiciando que a Metrópole, durante aquele século, se beneficiasse

largamente do ouro brasileiro, que, no final do século XVII, fora encontrado na

Colônia. A produção aurífera foi, porém, se exaurindo e a Metrópole tomou severas

medidas fiscais visando manter os ganhos de outrora. Para tanto, os impostos sobre

os produtos de Lisboa passaram a chegar ao Brasil com tarifas exorbitantes e os

preços dos escravos sofriam os mesmos ajustes escorchantes. Soma-se a isso o

endividamento dos senhores das minas que, com a redução da produção do ouro,

não conseguiam mais pagar vinte por cento de impostos sobre toda a produção

aurífera. A crise econômica gerou descontentamento entre os mineradores,

tornando-se o estopim de grandes revoltas coloniais e a insustentabilidade da

situação resultou na derrama12. Na impossibilidade de calarem-se diante da

opressão política da coroa, as manifestações populares de descontentamento se

expandiram.

A referência aos levantes populares pode ser constatada na obra Os Sinos da

Agonia, no momento em que o Capitão-General fechou o cerco para capturar o

assassino de João Diogo, prevenindo-se e tomando decisões bem vistas pela coroa,

antes mesmo do advento da derrama: “O Capitão-General certamente pensava na

12

Em 1765 foi decretada a derrama, cobrança de todos os impostos atrasados, que correspondiam a 1/5 (um quinto) de todo o outro extraído no Brasil. Na execução da derrama, as autoridades não pouparam nem mesmo os mineradores empobrecidos, que acabaram perdendo os poucos bens que lhes restavam. (COTRIM, 2005, p. 249)

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derrama, em ficar bem junto à corte” (OSA, p. 214)13. Ser bem visto pela coroa

portuguesa era também o desejo do governador da província de Minas Gerais, Luís

da Cunha Menezes – o Fanfarrão Minésio –, alvo das satíricas Cartas Chilenas, nas

quais eram denunciados os desmandos políticos daquele governante. A esse

modelo de governo seguiram-se outros, que governariam o Brasil posteriormente: “É

no último quartel do século XVIII que as tendências emancipacionistas se

manifestam de forma recorrente e significativa” (NOVAIS apud PROENÇA FILHO,

1996, p. 29).

Tomás Antônio Gonzaga, autor das cartas, trazia consigo esses ideais,

adquiridos durante sua formação iluminista na Europa e, com seus versos satíricos

empregados nas Cartas Chilenas, deixou registrada uma obra literária de grande

valor documental, a qual auxilia na compreensão de muitos aspectos políticos e

sociais do Brasil Colônia. Apesar do desbaratamento e do fracasso da Inconfidência

Mineira, seus ideais medraram e, certamente, contribuíram para a consolidação do

sentimento de nação que levou à proclamação da Independência em 1822. A

idealização da Inconfidência Mineira teve a participação de ilustres intelectuais de

formação iluminista, cujos ideais precipitaram a formação da consciência nativista

nacional da futura nação independente.

[...] o modernismo completa o processo iniciado na segunda metade do século XVIII, quando os seus grupos revolucionários procuraram alargar o campo da criação artística, englobando aspectos recalcados da sociedade e da cultura nacional. (CANDIDO, 2008, p. 147).

Autran Dourado, ao retomar ficcionalmente esse período no século XX,

aproxima-se de um “[...] ponto de vista que abrange tanto o elemento do espaço

quanto o temporal. A isto vincula-se imediatamente o ponto de vista axiológico”

(BAKHTIN, 2006, p. 368).

Tanto no período da Inconfidência Mineira quanto em outros tempos de

repressão política a literatura esteve na mira do poder coercivo. A esse respeito

13

Todas as citações do romance Os Sinos da Agonia serão referenciadas pela sigla OSA, seguidas de número da página e referem-se à seguinte edição: DOURADO, Autran. Os sinos da agonia. 4. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

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Antonio Candido (2008) afirma que os escritores teriam que se precaver, não se

subordinando aos desígnios políticos, morais e propagandísticos. Essa realidade

levou alguns escritores a encontrarem estratégias para burlarem a censura e

abordarem questões políticas em relação à repressão que estavam em curso. Esse

período tornou-se sugestivo e instigador à criação de novas concepções, pois

[...] é a própria literatura – que não deixa de ter sua dimensão institucional – que surge relativizada em sua suposta capacidade de se apoderar da realidade e de funcionar como instrumento privilegiado de intervenção política. (NOVAES, 1979, 1980, p. 67).

Autran Dourado, ao situar temporal e espacialmente sua obra ficcional na Vila

Rica do século XVIII, recorre, em certa medida – dada a distância no tempo e na

forma de escrever – à estratégia empregada por Tomás Antônio Gonzaga nas

Cartas Chilenas. Ou seja, ele recorre à carnavalização menipeia, cujas ações

caracterizam, segundo Bakhtin (2008, p. 134), como “[...] cenas de escândalos, de

comportamento excêntrico, de discursos e declarações inoportunas, (...) abrem

brecha na ordem inabalável”. Essa forma composicional está em sintonia com os

diferentes recursos empregados na literatura universal, pois, segundo Proença Filho,

Tomás Antônio Gonzaga, em suas cartas, que circulavam anonimamente e que

seriam escritas por Critilo, aproveita-se do modelo de Montesquieu nas Lettres

Persanes. Foi através desse estilo de tessitura romanesca que Autran Dourado

compôs o romance Os Sinos da Agonia, criando um distanciamento no tempo e no

espaço, propiciando uma releitura das questões históricas, políticas e sociais do

século XVIII, pois o autor, de forma alegórica, construiu o cenário político que

evidenciava a força coerciva dos mandatários do poder da ficcional Vila Rica, a qual

se desdobrou, mais tarde, no cenário político brasileiro, na época da ditadura militar

de 1964. Há, entretanto, que se fazer uma ressalva para que a obra Os Sinos da

Agonia não seja lida como um romance histórico. Autran Dourado, a propósito dessa

questão, afirma que:

Os sinos da agonia não é um romance histórico (não há nele uma só data, um só personagem histórico, um só acontecimento verdadeiro: são reais

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porque fui eu que os inventei), mas um romance político, mítico e pós-moderno. Ele é político, pelo menos no sentido em que nós, latino-americanos, tão sofridos por bárbaras e sofisticadas ditaduras, assim entendemos o que é romance político. Quando não se pode escrever o que se pensa (nem todos temos a coragem de enfrentar o arbítrio, a censura, a tortura, o exílio e a morte), nos períodos ditatoriais temos de ser barrocos e rebuscados, para que os censores não nos entendam e sejamos sentidos e entendidos por aqueles pelos quais nos sentimos irmãos na angústia e no sofrimento. Cada um sente, sofre e fala à sua maneira; às vezes a fala é apenas um gemido rebuscado. (DOURADO, 1994, 120).

O autor, além de mencionar os aspectos políticos que permeiam a trama do

romance, também esclarece o seu esquema composicional, fornecendo dados que

esclarecem a técnica estrutural empregada: uma espécie de planta baixa da obra.

2 O esquema estrutural do romance polifônico

A obra Os Sinos da Agonia estrutura-se em forma de blocos a que Autran

Dourado (2000) denominou jornadas. A disposição do texto em blocos é uma forma

de divisão que se assemelha ao gênero dramático, no qual as ações são divididas

em atos. De fato, em alguns trechos, as ações podem ser relacionadas a um grande

espetáculo trágico.

O romance está estruturado em quatro jornadas e que seguem a seguinte

estrutura: a primeira Jornada – A Farsa – retrata a voz de Januário, o mestiço

bastardo, mesclada à voz de Isidoro, o escravo que o acompanha; na segunda

Jornada – Filha do Sol, da Luz –, o narrador revela ao leitor a personagem Malvina;

na terceira Jornada – O Destino do Passado, – Gaspar rememora o passado para

entender o presente; na quarta Jornada – A Roda do Tempo –, em três capítulos, o

autor retoma cada uma das três jornadas, entrelaçando o fio condutor da unidade da

obra.

A estrutura narrativa d‟Os Sinos da Agonia permite qualificá-lo como romance

polifônico que, segundo Bakhtin (2008), foi uma estratégia criada por Dostoiévski,

cujo principal aspecto consiste em a narrativa se ater a diferentes consciências,

tanto de interação quanto de interdependência. Autran Dourado também confirma o

aspecto polifônico da obra, cuja alternância de vozes permite ao leitor sondar o

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pensamento das personagens que alternam momentos de devaneios com os de

completa lucidez. As vozes retratadas na obra representam grupos sociais distintos.

Izabel Gimenez, em sua tese Autran Dourado: uma poética da agonia e da

decadência, observa: “É na memória que cada uma das personagens vai buscar o

passado, para tentar entender o presente e a falta de perspectivas futuras”

(GIMENEZ, 2005, p. 26). Tal constatação denota que é preciso estar atento aos

dramas existenciais de cada personagem para acompanhar a unidade dialógica do

romance.

Izabel Gimenez afirma que os aspectos polifônicos do romance ensejam a

possibilidade de uma leitura sociológica, mas nessa comparação não se pode

confundir obra literária e sociedade, haja vista que “[...] os fatos sociais e históricos

se transfiguram em forma estética e, por outro lado, a forma romanesca responde a

essa realidade social” (GIMENEZ, 2005, p. 11). Pode-se estabelecer aqui uma

comparação com o cenário brutal da ditadura militar e trazer também ao atual

cenário político, palco de atitudes que se confundem com a ficção, mas que,

infelizmente, são reais.

Ao analisar a estrutura do tempo no romance Os Sinos da Agonia, observa-se

a relação entre tempo e espaço, categorias em torno das quais se organiza a

história, cujas ações transcorrem no decurso da noite que antecede a morte de

Januário. Por meio de uma narrativa não linear, o leitor sonda a consciência das

personagens e acompanha os dramas vividos por elas.

Em Os sinos da agonia, especificamente, a ação se desenvolve em um único dia, mas os elementos que compõem a história são narrados a partir da revivescência das personagens. Nesse sentido, a focalização do narrador mescla-se ao fluxo da consciência das personagens, deixando entrever diferentes níveis de consciência. Como o fluxo de consciência expressa os estados mentais das personagens, no caso de Os sinos da agonia este é um recurso por meio do qual Autran Dourado desvela os rastros que a memória preserva e que são fundamentais à estruturação da narrativa. É pelos vestígios do passado que cada personagem irá recompor sua história e a si mesma (GIMENEZ, 2005, p.26).

A dimensão do tempo e as vozes confluem em uma complexa tessitura

romanesca em que o autor, nas três primeiras jornadas, projeta as ações, reflexos

do fluxo da consciência das personagens, para o passado e, na última jornada, em

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um tempo cronológico simultâneo, manhã do desfecho da narrativa entrelaça a

narrativa, retomando as jornadas anteriores. O que na memória parecia obscuro

como brumas às personagens, no presente revela-se translúcido, ainda que mais

nada possa ser feito para mudar o destino de cada uma delas. À medida que as

personagens tomam consciência do todo de seus dramas, o leitor consegue atar os

fios da narrativa até então fragmentados.

3 Januário e a consumação da morte em efígie

Uma das vozes no romance é a de Januário, filho bastardo do senhor Tomás

Matias Cardoso – homem branco, de situação econômica estável – com Andresa,

uma cafuza que ensinou seu filho a rejeitar o estigma de bugre. Seu pai tinha, ainda,

quatro filhos com a esposa legítima, mas Januário, apesar de ter ido viver com o pai

após a morte da mãe, nunca foi chamado de filho na frente dos outros. “Bugre e

bastardo, filho das ervas, as duas chagas de sua alma” (OSA, p. 21). O termo bugre

soava como ofensa e sua mãe reiteradamente lhe aconselhara para que nunca se

deixasse confundir com cafuzo, ou mulato, sob o risco de ele vir a ser marcado a

ferro, tornando-se, portanto, escravo. O que faz com que ele, sempre, se rebele ao

ser classificado como negro, mesmo que para isso recorresse à luta corporal, o que

lhe granjeia a fama de: “mameluco brioso, coraçudo, desabusado” (OSA, p. 21).

Dada a sua condição social, nenhuma perspectiva social lhe seria favorável, pois,

além de todos esses fatores, ele também era um foragido da Justiça e trazia na

consciência o peso do crime do qual servira de braço.

Interessa, no presente estudo, debruçar-nos sobre a trama do romance Os

Sinos da Agonia com o objetivo de analisar aspectos políticos e sociais que levaram

à consumação da execução de Januário, uma vez que este já havia sido executado

em efígie, portanto, legalmente, ele era considerado um homem morto. Na noite que

antecede sua morte, ele revela, através do fluxo da memória um tanto conturbada, o

conflito de sua existência e a trama que o levou ao desafortunado destino contra o

qual nada mais poderia ser feito.

O julgamento e a condenação de Januário à morte foram decretados à

revelia, o que implicou sua morte social e a consequente impossibilidade de defesa,

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uma vez que ele já fora condenado. Assim, portanto, apesar de ainda vivo de fato,

legalmente ele era considerado morto e qualquer um poderia, aliás, deveria matá-lo,

para que, dessa forma, se consumasse o julgamento. Essa condição de morto em

efígie apenas consuma sua trágica história, iniciada com seu nascimento.

Na noite que antecede sua morte, Januário, do alto da Serra Ouro Preto,

avista a cidade de Vila Rica, mas, dada a distância, tem a visão obnubilada pelas

brumas e do alto da serra remói suas angústias. Se, antes de ser manipulado por

Malvina para assassinar João Diogo ele desejava fazer a passagem de mestiço

bastardo à de branco, como seu pai e seus irmãos legítimos, depois de sua morte

em efígie ele quer fazer o caminho inverso, isto é, tornar-se autêntico puri. Seu

desejo de clareamento se explica devido à possibilidade de ascensão social em uma

época em que os índios, os mamelucos – como Januário – os negros e mulatos não

tinham como ascender socialmente na Colônia.

Há que se ressaltar que, à medida que foi se consolidando uma população

brasileira mestiça, a despeito dos conflitos, passou a haver – na segunda metade do

século XIX – a ascensão econômica e social de alguns mestiços, principalmente de

alguns mulatos – assim como houvera no século XVIII a ascensão dos bacharéis,

conforme análise Gilberto Freyre, que a isso denominou de a “ascensão do bacharel

e do mulato”, na obra Sobrados e Mucambos. Assim, as famílias visando sua

ascensão na Colônia investiam na formação intelectual dos filhos e mandavam-nos

para Metrópole. Alguns dos notáveis bacharelados na Europa foram os seguintes

poetas árcades:

Gonzaga, Cláudio, os dois Alvarenga, Basílio da Gama marcam esse prestígio mais acentuado do bacharel na sociedade colonial; a intervenção mais franca do letrado ou do clérigo na política. Marcam, ao mesmo tempo, o triunfo político de outro elemento na vida brasileira, o homem fino da cidade. E mais: a ascensão do brasileiro nato e até do mulato aos cargos públicos e à aristocracia da toga. (FREYRE, 2004, p. 714).

No século XVIII, época à qual se reportam as ações do romance Os Sinos da

Agonia, a ascensão do mulato dava indícios de novas perspectivas a uma minoria

de mestiços. Alguns dos poetas inconfidentes, conforme se observa no fragmento

acima, ascenderam por meio dos estudos na Europa, no entanto, as barreiras

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sociais foram, para a maioria, instransponíveis, tanto que a personagem do romance

se atém a esse conflito étnico-cultural ao se lembrar de que nunca fora chamado de

filho na presença dos outros pelo pai, Tomás Matias Cardoso: “O pai quase nunca

dizia meu filho, era só Januário. Ele também não o chamava de pai na presença dos

outros, só quando os dois sozinhos” (OSA, p. 16). Em tom confessional, é possível

constatar o seu desejo de pertencer a outro grupo étnico: “Gostaria mesmo de ser

era branco, da cor alvaiada dos seus irmãos” (OSA, p. 21). Assim como Januário,

muitos mulatos no período colonial almejaram tornar-se branco para que, através de

uma etnia mais pura, mais próxima do dominante, pudessem elevar-se socialmente

e fazer fortuna, saindo da condição de explorado. Assim, “[...] aos brancos da terra,

seguiam-se os mulatos e mestiços. Mestiços às vezes quase brancos ou

„semibrancos‟ como eram às vezes chamados” (FREYRE, 2004, p. 778).

O pai de Januário dera-lhe cobertura na fuga da prisão del-Rei e dera-lhe

também Isidoro, um escravo que trazia a letra F de fujão, mas essa ajuda não

disfarçava o vil sentimento do pai: “O ódio e censura com que ele procurava

disfarçar o sentimento que tinha por aquele seu filho carijó” (OSA, p. 61). Ao ouvir as

circunstâncias do crime cometido pelo filho, o pai disse: “Filho meu carijó só tinha

mesmo que me desonrar” (OSA, p. 68). O aparente apoio de Tomás Matias Cardoso

à fuga de Januário foi uma forma de atender ao pedido que sua mãe fizera nos

últimos instantes de vida, de cumprir superficialmente com seu papel de pai,

desobrigando-se de eventuais cobranças por parte do filho. Mais que isso, ao

contribuir para sua fuga, ele estaria definitivamente distante daquele que seria

motivo de sua desonra.

Januário teve uma infância de rejeição e aquele apoio momentâneo do pai

confirmou a indiferença para com ele e a predileção pelos filhos legítimos. No

decorrer da narrativa, constata-se que a cobertura à fuga dada por seu pai tinha sido

uma forma de se livrar do filho bastardo, que o desonrara perante a sociedade de

Vila Rica:

O Capitão-General disse já saber quem era o assassino. Um certo Januário, mameluco e bastardo. Dessa corja de mestiços arruadores e filhos das ervas que infetam estas Minas! (...) Filho de Tomás Matias Cardoso, filho carijó. Mas o pai é homem cumpridor, de bem, disse o Capitão-General. Tomás Matias Cardoso se mostrava mesmo pejado, coberto de vergonha, não sabia o que fazer. (...) O próprio pai, um homem de bem, disse que o

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filho não dormiu em casa. Esses filhos das ervas é que sujam um nome [...]. (OSA, p. 212; 213).

Sob a égide da sociedade patriarcal, homens e mulheres tinham atribuições

diferentes e a conduta de ambos deveria ser distinta, por exemplo, se um potentado

patriarca cometesse adultério, isso não seria um escândalo para a sociedade, pelo

contrário, isso denotaria virilidade, atitude própria de “macho”. Desse

comportamento decorria que fossem comuns os filhos bastardos, mas estes não

tinham quaisquer direitos e, muitas vezes, eram ignorados pelos pais. Tanto é assim

que, na população pobre, desde o começo da colonização, eram comuns as famílias

que contavam, apenas, com a presença das mães.

Certamente, se um filho carijó – mestiço de branco e índio – ascendesse

economicamente sem os favores da fidalguia, os boatos enaltecendo a competência

deste filho não se expandiriam na mesma proporção. Tomás Antônio Gonzaga, na

obra Cartas Chilenas, demonstra sua visão estamental ao relatar que um certo

mulato ocupava um cargo público, cargo usualmente ocupado por fidalgos e que,

por razões obscuras, fora destinado ao tal mulato. O juízo do autor era compactuado

pelos outros intelectuais da sociedade patriarcal ou da elite, pois aos filhos

bastardos não se presumia nenhuma forma de ascensão, o que, entretanto, foi em

parte, refutado, tendo em vista que, entre os séculos XVII e XVIII, uma parcela

significativa de mulatos ascenderam como bacharéis, através do investimento das

mães, que não mediram esforços para contribuírem na formação universitária dos

filhos, bem como de alguns pais que, mesmo sem reconhecer oficialmente,

procuraram viabilizar que seus filhos ilegítimos estudassem.

A voz de Isidoro, escravo de Januário, se insere no romance entrecruzando à

de Januário. As duas personagens compõem o núcleo dos desvalidos no enredo

autraniano. A vida de Isidoro fora de servidão incansável, o que fazia com que ele

estivesse sempre atento na vigília de Nhonhô. Dialogando com Januário, mesmo

cansado, Isidoro não se entrega e é todo ouvido para Januário: “Preto não carece de

sono, disse. Nenhum branco, ninguém nunca respeitou sono de preto” (OSA, p. 22).

A visão que se tinha no período do Brasil Colonial e Imperial em relação ao

negro era a de que ele estava aquém da plena condição humana. Foi um período

em que os negros eram cruelmente aviltados e, na visão da sociedade da época,

tudo estava dentro dos padrões de normalidade, pois o negro, de um modo geral,

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era tido como peça de trabalho, portanto, indispensável ao desenvolvimento das

atividades produtivas e aos serviços em geral. Ao reportar-se ao período do Brasil

Colônia, Autran Dourado, por poder analisar criticamente a escravidão quase um

século após a abolição, resgata a trágica condição do negro, assim como a do

mameluco bastardo. Para a sociedade escravocrata, as hostilidades contra os

negros e os mestiços estavam de acordo com a mentalidade da época, portanto,

eram consideradas normais, de tal forma que estavam introjetadas na sociedade,

mas, coerentemente com o tempo ficcional no qual se situa o romance, o autor

mantém no enredo visão semelhante àquela que se tinha em relação ao negro ao

longo de todo o período colonial e imperial. Tal referência implica uma reflexão

étnico-cultural acerca do papel do negro na sociedade ao longo da história, pois os

dados históricos atestam a sistemática exclusão social de grande número de negros

ou mestiços. Atualmente, apesar do grande empenho legal para se coibir a

discriminação, esta ainda ocorre de forma velada

Ao ambientar o romance em Vila Rica do século XVIII, Autran Dourado

reporta-se também à linguagem dos sinos e, ao mencioná-los na obra, reflete sobre

a relevância desse instrumento de comunicação nas cidades barrocas, fato que

legou a São João Del Rei o título de “Terra onde os sinos falam”. As batidas dos

sinos configuram dramaticidade à narrativa, dada a recorrência das batidas ao longo

da história em Os Sinos da Agonia, o romance adquire um tom de réquiem e, por

três momentos, intensifica-se: no funeral de João Diogo Galvão; no momento que

antecede o suicídio de Malvina e nos últimos instantes de vida de Januário. Com as

honrarias dignas de um potentado, João Diogo teve seu velório marcado por dobres

de sinos em várias igrejas de Vila Rica. Os últimos instantes de vida de Januário

foram marcados pelos toques dos sinos, os quais, segundo a tradição, diziam

representar a agonia, a marca de sofrimento do moribundo. Sobre a linguagem dos

sinos das igrejas, esta é empregada à narrativa, remetendo aos significados dos

diferentes toques, em especial às sete batidas da agonia: “Você que entende de

sino, que é que estão tocando Isidoro? [...] São as sete pancadas compridas, muito

espaçadas, como de costume. [...] eles estão tocando é mesmo a agonia” (OSA, p.

327). A morte de Januário culmina com o desfecho do romance, momento em que

os toques de agonia se intensificam, mas esta já havia ocorrido simbolicamente e

fora representada em praça pública. A obra Os Sinos da Agonia configura-se como

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um romance carnavalesco à medida que transporta a ação da morte em efígie à

praça, pois

[...] o principal palco das ações carnavalescas eram a praça pública e as ruas contíguas (...) na literatura carnavalizada, a praça pública, como lugar da ação do enredo, torna-se biplanar e ambivalente: é como se através da praça pública real transparecesse a praça pública carnavalesca do livre contato familiar e das cenas de coroações e destronamentos públicos. Outros lugares de ação, se é que podem ser lugares de encontro e contato de pessoas heterogêneas. (BAKHTIN, 2008, p. 147).

A tese da carnavalização do enredo autraniano pode ser constatada com a

pantomima na praça, na qual Januário fora executado em efígie, através da figura de

um calunga. Sua execução se deu em conformidade com a legislação vigente e

atendia às ordens del-Rei: “[...] a tropa se espalhava dividida em pelotões e

esquadras pelos principais pontos da cidade, à espera de que o cortejo conduzindo

o condenado passasse, para após ele se reunirem com o grosso da tropa em

fardamento de gala na praça” (OSA, p. 36). As ações carnavalescas representadas

pela trama do romance remetem, também, às reflexões acerca dos crimes

praticados por alguns militares com o endosso dos governantes no período da

ditadura militar, no final da década de 1960 e ao longo da década de 1970. Estes

visavam à execução daqueles que eram considerados uma ameaça à segurança

nacional e essas execuções estavam respaldadas no Ato Institucional Número Cinco

(AI 5), que caçou os diretos individuais dos cidadãos. Assim, muitas torturas físicas e

morais e assassinatos foram praticados em nome do “bem público” e da segurança

nacional.

A morte em efígie de Januário atraiu pessoas de toda parte e com essa

atitude o Capitão-General visava ser bem visto junto à coroa, bem como mostrar que

crimes de lesa-majestade seriam severamente punidos, colocando a população em

alerta. Ou seja, todos aqueles que estavam a serviço da coroa portuguesa deveriam

ser, sempre, intocáveis, pois ameaçá-los implicaria a automática condenação à

morte. Desta forma, “[...] os homens nunca se julgavam a salvo e escapos do

poderoso e implacável braço real” (OSA, p. 36).

O governo ditatorial, assim como no Brasil Colônia em inúmeros casos,

utilizou-se da obscura força da lei para impor seus interesses políticos e

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favorecimentos econômicos. É certo que a visão da época colonial em relação à

igualdade de direitos era sequer embrionária, mas, em se tratando de questões de

legalidade e moralidade, o decurso da História tem sido marcado por obscuridade no

âmbito da justiça brasileira e ainda há fatos recentes de escândalos envolvendo

políticos que demonstram desmoralização desmedida entre aqueles que deveriam

servir de exemplo de integridade moral. Tal fato leva à reflexão de que, infelizmente,

a execução das leis tem se revelado ambígua e deixando grande parte da população

sem perspectivas de justiça, pois sua aplicabilidade não tem seguido uma via de

mão única e o direito à igualdade, embora justo, ainda não está ao alcance de toda

população, como deveria. A propósito do paradoxo legal constata-se que:

[...] a questão da Autoridade e o modo em que ela age sobre os direitos individuais: mais em particular, o objeto de estudo é a relação entre, de um lado, o princípio (em todos os sentidos) da Lei e do Poder estatal, e, do outro, o puro existir ou o ser mais impuro e degradado – a relação, enfim, entre o mistério aparentemente imperscrutável do “mando” e aquilo que se coloca no limiar extremo e oposto a ele, no degrau mais alto e, ao mesmo tempo, mais baixo. (FINAZZI-AGRO, 2005, p. 18).

Na pantomima na praça, o Capitão-General ostentava o seu melhor uniforme

e contava com a presença dos senadores, dos deputados, do ouvidor, dos juízes e

dos escrivães. Todas as autoridades, ao longo do cortejo, adotavam uma pose altiva

e vaidosa. A população também se mostrava em seus melhores trajes,

caracterizando, assim, a importância de um evento em que a autoridade se fazia

temida e respeitada, impondo a ordem e a justiça del Rei na província de Minas

Gerais, cuja capital era Vila Rica. A morte de Januário, a despeito de ser em efígie,

seria vista como um ato legítimo, pois o mameluco bastardo tivera o despautério de

assassinar um potentado del-Rei.

Nesse ponto do romance é possível estabelecer relações com o regime

ditatorial das décadas 1960 e 1970, quando o poder militar impunha o cumprimento

do Ato Institucional Número Cinco. Trata-se de um período de perseguições

políticas, em que a censura contribuiu para a estagnação do crescimento intelectual

e a liberdade de expressão foi banida dos principais veículos de comunicação. Da

mesma forma que ocorreu no contexto político de Vila Rica do século XVIII, quem

tivesse a pretensão de algum levante contra o poder seria severamente punido.

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Isidoro, por ser escravo, é alvo de repressão e, através dessa personagem,

Autran Dourado resgata a trágica condição dos negros e dos índios no período

colonial, ao referir-se à escravização dos índios e à perseguição dos negros

quilombolas:

Nhonhô não se lembra daquele mundéu de orelhas de preto enfiadas em cordão de embira, pingando sangue e salmoura? Pra exemplar, pra branco caçador, branco batedor dos seus avós como dos meus, receber paga da grande façanha. (OSA, p. 31).

O fragmento acima retrata as atrocidades cometidas pelos administradores

das províncias no século XVIII, atrocidades as quais podem também ser reportadas

às torturas praticadas pelo governo militar. Os instrumentos de tortura, ainda que

não fossem os mesmos empregados na sociedade escravocrata, eram utilizados

não só como ameaça, mas aplicados na realidade, pois as determinações do

governo militar eram que fossem reprimidas quaisquer manifestações que

ameaçassem a segurança nacional.

Autran Dourado, ao ambientar o romance Os Sinos da Agonia em Vila Rica

do século XVIII, traça o panorama político daquela província, reflete sobre a conduta

virulenta dos administradores da Colônia, cuja apropriação indébita dos bens

públicos visava à formação de fortuna pessoal. Os mesmos vícios permanecem

presentes no âmbito político, pois as denúncias de fraudes, apesar de constantes,

muitas vezes caem no esquecimento por falta de investigações mais sólidas e

transparentes, resultando, portanto, em denúncias vazias: “Dizia-se à boca miúda

que o Capitão-General se sentia ameaçado na sua posição, tantos roubos que fazia

para si, não para coroa, e queria com isso fortalecer a sua posição junto a del-Rei

[...]” (OSA, p. 37). O Capitão-General simboliza os administradores corruptos, não só

no período do Brasil Colônia, mas ao longo da História brasileira como um todo.

É indiscutível que as mazelas políticas e a corrupção do período colonial se

amalgamaram à cultura política brasileira, fazendo com que os escândalos políticos

e a apropriação dos bens públicos – como se estes fossem privados – perdurassem

até a atualidade. Tal mentalidade contribui para as grandes desigualdades sociais

que, a despeito do crescimento do país, persistem como uma chaga na sociedade

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brasileira. Os desmandos daquele contexto histórico serviram de parâmetro para a

formação cultural brasileira. É o que se evidencia na tendência de se confundir o

público com o privado: o que, sempre, implica lesar a sociedade.

A farsa montada pelo Capitão-General consolidava a sua apoteose política, a

qual o projetaria ante a coroa e abriria espaço para a perpétua espoliação da rica

Colônia, o que implicou condenar à miséria grande parte da população daquela

época, pois,os apadrinhados del Rei teriam maior liberdade para usufruir dos bens

públicos desde que garantissem a cobrança do quinto, destinado à coroa

portuguesa. Esses vícios foram adquiridos por muitos administradores, que, ao

dilapidarem os bens públicos, contribuíram para a extensão da pobreza na futura

nação. Nesse sentido, Januário, uma vez exposto à situação vexatória pelo

assassinato do potentado João Diogo, teve cada vez mais clareza da sua condição

étnica e social, passando a negar seu desejo de ser branco: “Aceito ser bugre, eu

aceitaria mesmo ser preto [...]” (OSA, p. 24).

Januário, ao refletir sobre seu drama existencial, negou-se enquanto ser

humano. Ao constatar que, no contexto social da Colônia, dada sua condição de

carijó, ele sempre fora “quase nada” e, por isso, ele decidiu consumar sua

condenação em efígie: “Nem isso eu sou. Sou mais um puri esbranquiçado por obra

de meu pai. Nem branco nem índio. Eu sou nada. Eu vou é ao encontro desse nada

que eu sou” (OSA, p. 330).

Essa degradação humana imaginada pela filigrana literária autraniana está

imbricada de elementos que se aproximam do conceito filosófico: “homo sacer”14. O

termo, embora empregado em contextos históricos remotos da legislação romana, é

válido e é retomado na concepção contemporânea do filósofo Giorgio Agamben,

principalmente quando se pretende analisar questões socioculturais no âmbito

literário ou factual.

Januário fora reduzido a nada, ficou destituído de qualquer direito vital, pois

ele, um desvalido da sociedade de Vila Rica, lembrava-se de como Gaspar se

referiu a ele no passado: “Era um mameluco qualquer, ninguém” (OSA, p. 320).

14

O “homo sacer” – à letra, homem sagrado – é uma figura despojada de qualquer poder e

submetido ao poder soberano que se apresenta na lei: ele é a lei, mas ao mesmo tempo está fora dela. Nesse despojamento, o “homo sacer” encontra-se abandonado pela lei, isto é, o poder soberano relaciona-se com ele enquanto bando, enquanto membro de um bando (MACHADO, Benjamim. Homo Sacer, Giorgio Agambem. Disponível em: <http://donnemoimachance.blogspot. com/2009/03/homo-sacer-giorgio-agamben.html>.

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Gilberto Freyre analisa com propriedade o panorama dos aspectos étnicos e sociais

do período colonial no Brasil:

Da negação – que, aliás, nunca foi sistemática no Brasil – desses direitos a pardos ou mulatos livres resultaram, em nosso País, agitações de sentido social, disfarçado às vezes em político. Também aspectos mais ofensivos do que alguns consideram patologia da miscigenação, dando ao diagnóstico caráter nitidamente biológico, quando essa patologia parece ter resultado, principalmente, de circunstâncias sociais desfavoráveis, em numerosos casos, ao desenvolvimento normal dos mulatos ou pardos. (FREYRE, 2004, p. 780).

Malvina, por mais que tivesse tramado o assassinato do potentado João

Diogo, não levantou suspeitas devido às precauções tomadas durante a trama e

ainda por fazer parte do seleto grupo amigo del-Rei. O mameluco bastardo,

seduzido pela fantasia de ter uma mulher totalmente branca, fora transformado em

um mero instrumento para consumar o plano de Malvina de livrar-se do marido velho

e casar-se com seu filho jovem. Ao cair em tal embuste, Januário, dada a sua

condição de mestiço, torna-se totalmente desprotegido de qualquer amparo legal. O

assassinato de João Diogo, maquiavelicamente articulado por Malvina, deixaria

impune a mentora do crime. Ou seja, da perspectiva de Malvina, o mameluco foi um

mero instrumento para concretizar sua trama, destituído de qualquer atributo

humano.

Apesar das evidências de abuso do poder por parte do Capitão-General, não

havia ninguém com coragem para denunciá-lo: “Mesmo interiormente reparando,

ninguém tinha coragem de falar que o Capitão-General levava longe demais a sua

fantasia. Só mais tarde, em cartas rimadas e pasquins” (OSA, p. 42). Há aqui uma

alusão às poesias dos inconfidentes, dentre as quais se podem mencionar as

satíricas Cartas Chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga, que circularam

anonimamente em Vila Rica, no século XVIII, com o intuito de arrostar com o

governador da província Luís da Cunha Meneses. Dois séculos mais tarde, em

1969, durante o período da ditadura militar, propalou-se O Pasquim, cuja publicação

teve início em 1969, e cujo humor irreverente foi forte instrumento de denúncia

contra os desmandos do regime político da época. Finalmente, consumou-se o

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trágico fim de Januário com sua execução em praça pública. Assim se cumpriu a lei,

deixando claro que a autoridade local fez preponderar o seu poder.

4 Malvina: a trama da filha do sol

Malvina era filha de dom João Quebedo e há tempo a família via o antigo

fausto se esvair. Em completa decadência, o pai de Malvina via no potentado João

Diogo Galvão a possibilidade de reaver o fausto de outrora, pois, para a sociedade

da época, os casamentos entre os brancos eram ajustados como negócio visando a

status. Interessavam a dom João Quebedo os cabedais trazidos pelo futuro genro:

“O que o pai mais queria era um daqueles tão decantados magnates do ouro e de

diamante para casar as filhas e assim dourar o seu brasão desgastado e

empalidecido [...]” (OSA, p. 105). João Diogo, por sua vez, estava interessado em

casar-se com uma mulher de família tradicional para operar uma espécie de plástica

em seu passado de aventureiro caçador de índios. Tal casamento seria, portanto,

um negócio lucrativo para ambas as partes.

O casamento com João Diogo, de acordo com o costume da época, deveria

ser com a irmã mais velha de Malvina, mas a filha do sol, assim chamada devido à

sua alvura, sabendo dos cabedais do pretendente, não hesitou em enredar João

Diogo, para que ele se casasse com ela e não com sua irmã mais velha, como

mandavam os costumes. O jogo de sedução de Malvina com vistas à fortuna do

pretendente foi certeiro e o casamento foi consumado, transformando-a na senhora

Galvão. O casamento com a fidalga decadente seria para João Diogo uma forma de

principiar a linhagem da família que tinha ouro, fazenda, era tida como amigo del-

Rei, porém, descendia de uma geração mateira, conforme afirma João Diogo: “Atrás

de nós não há nada, é sertão bruto, areal. A nossa linhagem [...] começa comigo”

(OSA, p. 92). Vale frisar que a fortuna adquirida pelo potentado João Diogo advinha

da exploração do trabalho escravo, prática considerada comum entre os

mineradores do século XVIII. Era, porém, preciso muito mais que fortuna. Era

necessário pertencer à fidalguia e, quando essa não vinha de berço, seria arranjada

por outros meios, dentre os quais o casamento, a fim de garantir status.

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A jovialidade e a beleza de Malvina encantavam João Diogo e, seduzido,

cedia a todos os seus caprichos. Tendo o gosto refinado, ela fez questão de mudar-

se logo do casarão do arraial do Padre Faria – nos arrabaldes de Vila Rica – para o

centro da vila, pois fazia parte de seus planos ostentar uma casa luxuosa, com a

qual sempre sonhara e foi esmerando-se nos carinhos de esposa apaixonada que

conseguiu o “rico sobrado na Rua Direita, perto da praça, do palácio, da Igreja do

Carmo “ (OSA, p. 124). Assim, também o decorou a seu gosto, ganhou finas joias e

um cravo, do qual um mulato forro, mestre de música, lhe ensinara as primeiras

notas.

Ocupando parte do dia em lições de cravo, ela assuntava sobre a vida de

Gaspar, seu enteado, e percebeu que eles tinham muitas afinidades, as quais, com

a convivência, evoluíram para uma intensa paixão. Inicialmente, parecia, apenas, um

jogo de sedução, mas, com o tempo, Malvina passou a sentir o prazer desse jogo

proibido.

Quando ele disse outra vez aqui, ela sentiu o braço de Gaspar roçar-lhe o ombro, bem rente ao pescoço. Gaspar demorava apontando a partitura mais do que carecia, do que ela esperou. Para ele não fugir, Malvina procurou devagarzinho se chegar mais, até sentir o corpo de Gaspar quase colado ao dela. Aqui? Disse ela. Tira a mão pra eu ver. (OSA, p. 160).

A impetuosa paixão por Gaspar levara a ardilosa Malvina a maquinar uma

forma de viver esse amor, livre do grande empecilho, seu esposo João Diogo. Assim

como enganara a irmã, para casar-se com o potentado, ela articula um plano

maquiavélico para livrar-se do esposo e viver seu amor pelo enteado, mas sem pôr

em risco sua vida, o status e os bens recém-conquistados. Seu enlevo em relação a

Gaspar girava em torno de longas tardes fagueiras, com conversas e risos discretos,

num contínuo jogo de sedução, o que fazia aumentar ainda mais o seu desejo pelo

enteado: “Mesmo sofrendo, gostava demais daquelas tardes” (OSA, p. 161).

Como a morte de João Diogo não vinha naturalmente, a despeito de ele ser

velho, ela providenciaria uma maneira de antecipá-la e aí entra Januário, o

mameluco, cujo braço fora usado para sua trama. Para ela, Januário não era

ninguém, apenas uma peça que executaria seu plano maquiavélico e ela via nele um

homem capaz de matar e morrer por amor a uma mulher: “Era de um macho assim

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que ela carecia” (OSA, p. 184). Seguindo seus planos para pôr fim à vida de João

Diogo, a moça branca conquistaria um homem para executar seu plano e o logro

seria o mameluco, que, também logo se encantou pela alvura da pele da jovem

sedutora, da qual ele desconhecia a astúcia: “Tornou a parar. Deixava-se ver

demoradamente” (OSA, p. 184).

Bastou apenas que a bela fidalga branca se insinuasse para Januário ficar

encantado, como se o fato de uma mulher tão alva se interessar por ele pudesse

elevá-lo socialmente, a despeito de sua condição de mameluco. Assim, portanto,

como ele não poderia “clarear” o sangue, poderia fazê-lo através das relações com a

alva Malvina. Ele, porém, desconhecia as maquinações que subjaziam à mente de

Malvina e seu desejo de clareamento social foi tragado pela trama da branca, que

agiu com mais astúcia e era mais forte perante ele na sociedade aristocrata. Muitos

mestiços, sejam mulatos ou mamelucos, da época na qual se ambienta a obra ou

mesmo um século mais tarde, viveram no afã de ascenderem socialmente via

titulação acadêmica, como bacharéis, ou via miscigenação. As trajetórias dos negros

ou dos mulatos no Brasil revelam, entretanto, que não foram muitos os que atingiram

esse objetivo, tanto que, até hoje, se discute sobre a questão do ingresso do negro

nas universidades públicas. Se há esse impasse é porque, portanto, ainda existem

questões mal resolvidas com relação à condição social de grupos étnicos menos

favorecidos, dentre os quais estariam incluídos os mamelucos e, principalmente, os

mulatos. Entretanto, vale ressaltar que, mais que a questão étnica, a principal

questão é de origem econômica e social:

Outra vez, ela na sacada, de cima do cavalo, ele lhe jogou uma flor. Apanhou a flor no ar, guardou-a entre os seios. Mas não bastava a muda linguagem das flores, ele jogou o primeiro bilhete numa pedra [...]. Daí em diante tudo foi uma seqüência lógica e natural de fatos. (OSA, p. 186).

Se João Diogo, por ser um velho, cedeu aos caprichos de Malvina, cobrindo-a

de joias e outros bens, Januário, pelos encantos da jovem senhora tão alva, também

estava disposto a tudo: mesmo a matar, pois desejava Malvina só para si, sentia

ciúmes dela com João Diogo e com o enteado Gaspar. Ela seria para ele a chance

de clarear, apagando de vez o estigma da sua origem étnica: “Januário se perdia e

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era capaz dos maiores desatinos só para vê-la [...]. Por ela tudo tinha feito ou faria”

(OSA, p. 73).

Enquanto Januário pensava que matando João Diogo teria o caminho livre

para viver com Malvina, esta já tinha arquitetado o destino de seu amante oportuno:

“Fazia tudo aquilo somente para perdê-lo, para ele poder matar e morrer, via agora

claramente” (OSA, p. 75). O que outrora para Januário era obscurecido pela paixão,

tornou-se nítido na noite que antecedeu sua morte, pois, na iminência de sua

execução ele conseguia refletir sobre sua vida e como se passaram os fatos.

Acionada a manivela que moveria a primeira roldana, ninguém seria capaz de parar aquela máquina diabólica. Era miúdo demais diante da trama contra ele [...]. Ele próprio se sentia impotente, custava a acreditar não ter sido ele o autor da traça maldita que agora procuravam lhe atribuir. (OSA, p. 63).

Malvina serviu-se cruelmente de Januário e induzindo-o a agir conforme seus

caprichos. Ela soube valer-se de sua alvura, jovialidade e beleza para atingir seus

objetivos, pois pretendia manter o status já alcançado, garantindo, ainda, o amor de

Gaspar. Para tanto, o braço do mameluco foi perfeito, pois ele não hesitaria em

cometer o crime. Muitos aristocratas, no período do Brasil colonial, usaram-se dos

mestiços para executarem crimes, os quais deveriam permanecer velados e, por

isso, ficavam sob a incumbência dos chamados jagunços. Essa mesma classe

enriqueceu através da exploração da mão de obra escrava ou dos mestiços, sendo

que, em caso de julgamento, esses ficariam homiziados, sob a pena de serem

sentenciados à morte por crimes contratados, os quais não eram revelados. Toda

sua trama, porém, foi em vão, pois Gaspar, mesmo amando-a, repudiou-a pela

audaciosa e inescrupulosa atitude e deu outro rumo à sua vida. Tratou de “Pôr nova

máscara, viver outra figuração. Não junto dela” (OSA, p.254).

Malvina sempre quis ser dona do próprio destino, mas perdeu o controle

diante da dor pela impossibilidade de viver o amor que planejara: “Futuro e passado

nela se encontravam e realizavam a dor” (OSA, p. 279). Mantendo seu estilo

maquiavélico, deixou um bilhete no qual se incrimina e, para vingar-se da rejeição do

enteado Gaspar, o incrimina. A confissão, porém, não livraria Januário de sua

sentença, de morte. Com isso, sem o menor escrúpulo, ela tornou-se senhora não

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só do seu destino, mas também dos homens que por ela se apaixonaram, pois os

finais trágicos de João Diogo e de Januário foram por ela articulados. Quanto a

Gaspar, fica a incógnita, mas o suicídio de Malvina foi uma última jogada para que

Gaspar também fosse condenado à morte por parricídio.

5 O funesto mazombo ilustrado15

Uma questão sobre a qual é necessário, ainda, se ater no romance Os Sinos

da Agonia é quanto à dor e ao sofrimento. Cada personagem vive a desventura

imposta por alguma circunstância da vida e o leitor tende a identificar-se com a dor

de uma delas. Nesse caso, ocorre um imbricamento da dor estética com a dor

pessoal. Quando isso ocorre, o olhar sobre a obra deve ser distanciado. É preciso

observar que, no universo literário, “[...] certas manifestações da emoção e da

elaboração estética podem ser melhor compreendidas se forem referidas ao

contexto social” (CANDIDO, 2008, p. 79). Sabendo que o escritor transforma a

realidade sob sua ótica e configura a obra de acordo com sua criatividade e estilo

próprio, constata-se que a narrativa em blocos é uma tendência composicional de

Autran Dourado, pois as obras O Risco do Bordado, Ópera dos Mortos e A Barca

dos Homens também seguem essa estrutura. O autor também aplica a recriação das

personagens míticas em seus romances. Para Bakhtin (2006, p. 18), “[...] a relação

do autor com a personagem complexifica-se e varia em função das definições ético-

cognitivas do todo da personagem, as quais são indissociáveis da sua enformação

puramente artística”. Sobre o fazer artístico, Autran Dourado coloca:

Os sinos da agonia nasceram de uma visão ritualística e mítica de um procedimento comum no Brasil Colônia – a morte em efígie e suas conseqüências. O que me interessa literariamente é a permanência do mito e do rito mágico nas camadas ou substratos mais profundos, no inconsciente arcaico, do espírito humano, a sua continuidade estrutural do tempo. (DOURADO, 2000, p. 172/173).

15

O termo mazombo era uma forma pejorativa de se referir aos filhos de pais estrangeiros, em especial, de portugueses. O sentido figurativo da palavra está relacionado a indivíduos nostálgicos e sorumbáticos.

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Assim, quando o leitor se depara com os conflitos individuais das

personagens criadas por Autran Dourado, ele sente o desejo de que a personagem

que representa o oprimido vença: no caso da obra em estudo, Januário. Há, porém,

que se analisar o que subjaz às ações de Gaspar, o mazombo ilustrado, o qual vive

isolado e mergulhado no passado, envolto em pensamentos necrófilos.

Para Gaspar foi difícil aceitar a ideia do casamento do pai com a fidalga

Malvina, pois ele vivia preso ao passado, fixo em pensamentos fúnebres, trazendo

sempre consigo a memória da irmã, que falecera prematuramente, bem como a da

mãe, de cujo funeral ele não pôde participar. Gaspar, mesmo tendo recebido

educação nas academias do reino, preferia passar grande parte do tempo refugiado

pelo sertão e mantinha pouco contato com o pai e com a sociedade em geral.

Apesar dessa exclusão voluntária, a condição social do filho é favorável, tanto que

Malvina encontrou nele, além da jovialidade e beleza, o atrativo da intelectualidade e

posição social, fatores ponderados pela aristocrata recém-casada com o potentado

João Diogo: “E Gaspar, sempre de humor vário, sotrancão e sorumbático, ia

comendo léguas e mais léguas de chão. Sempre fugindo, fugindo não apenas do pai

e da madrasta, mas de alguma coisa além, ele não sabia precisar o que era” (OSA,

p. 130).

O mazombo europeizado, de volta ao Brasil, não se identificava com as ideias

do pai e não encontra na Colônia nada que o atraia. Os ideais das academias do

reino também já haviam se diluído em seu pensamento, pois, para ele, não

passavam de ideais envernizados, que apenas insinuavam os princípios do

iluminismo.

Quando viu que mazombos e branquinhos eram tudo gente da mesma laia. Quando falavam em ideias luminosas, só pensavam mesmo em si e no seu acrescentamento. No país das minas povoado de pretos e mulatos, caribocas e mamelucos, pensar como eles pensavam, deixando essa gente toda de lado... [...] Depois, não acreditava mais em conversas desocupadas, puro desfastio de espírito, luzimento de padres e letrados donos de escravos. (OSA, p. 101).

Gaspar via nas relações com o meio acadêmico muita superficialidade, uma

grande preocupação com as aparência e falsos discursos. Assim era o perfil de

Gaspar, um mazombo desajustado nos diversos ambientes sociais de sua

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convivência. Para o jovem abastado e recém-formado em Portugal não foi fácil

adaptar-se à tacanha realidade da Colônia. Por isso, embora oriundo de família de

posses, Gaspar também era um jovem desajustado étnico e culturalmente, o que,

em certa medida, aproxima-o de Januário. O desajuste representado ficcionalmente

por Gaspar fora vivido literalmente por intelectuais do período colonial. Isso pode ser

comprovado através das biografias dos poetas árcades, dentre os quais Tomás

Antônio Gonzaga, autor das Cartas Chilenas, que teve sua formação em Direito na

Universidade de Coimbra. O narrador do romance Os Sinos da Agonia retrata

Gaspar como uma personagem socialmente desajustada, cujos traços antecipam as

tendências do Romantismo, pois o sentimento de deslocamento na sociedade foi

fulcro temático marcante no período que sucedeu o Arcadismo.

Um ano após o casamento de seu pai, Gaspar retornou ao Brasil, mas fez

questão de isolar-se pelas brenhas do mato, como há tempo costumava fazer. No

retorno à casa paterna deparou-se com a bela madrasta, cuja aproximação não

tardou a acontecer e com ela deu-se início às longas tardes de animadas conversas.

Dessa convivência surge o amor proibido, que ele fazia questão de não deixar

transparecer. Esse comportamento diante do amor que sentia por Malvina coaduna

com o perfil da personagem ao longo do romance, visto que Gaspar sempre esteve

mergulhado em um mundo distante, deixando o tempo passar por passar. A

memória conduzia o destino de Gaspar ao passado, enquanto Malvina antevia nele

o futuro, o que implica um inevitável desencontro entre eles. É nesse desencontro

que Autran Dourado retoma a recriação do mito de Tirésias:

Dois seres que caminham em direção oposta (...). Tirésias, é o que os homens chamam de vida feliz. Afogados e perdidos – ela na claridade indevassável do futuro, ele no negrume do passado – ambos seguiram seus destinos. Se fosse possível prolongar, dilatar, suspender o engenho do tempo, esse breve encontro, o presente... (OSA, p. 226).

Para Izabel Gimenez, Gaspar só se permitiria a existência de um amor velado

por meio da fantasia, equiparando seus sentimentos aos dos poetas árcades: “[...]

embora não literalmente, as vozes dos poetas árcades fazem-se presentes no

romance, como pano de fundo para o amor de Gaspar e Malvina” (GIMENEZ, 2005,

p. 89). Com a intrepidez de Malvina rompe-se o harmonioso tom árcade do romance,

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que envereda para o tom trágico, o qual já fora também constatado nas jornadas

anteriores. O assassinato do pai devolveu a Gaspar os pensamentos necrófilos e,

atormentado, ele teve medo de suas expressões durante o velório, sentiu medo de

ser traído pelo sentimento e revelar diante das pessoas o que sentia por Malvina:

Gaspar sentiu um baque tão surdo no peito, o coração disparado, as mãos úmidas, e frias, e de repente uma onda de calor lhe subir à cara (podiam reparar, tenência Gaspar, pensou ligeiro, quase astuto; desde o último ataque de angústia aprendia a se dominar), sentiu um tal estremecimento, que teve instintivamente de se apoiar numa cadeira. (OSA, p. 215).

Uma torrente de pensamentos veio-lhe à mente. Ele parecia querer se livrar

de fantasmas do passado que o atormentavam no presente. Entretanto, como

sempre ocultava sua verdadeira face no mais absoluto silêncio, saberia também

como representar naquela ocasião. Tudo para ele parecia brumoso, mas elucidava-

se à medida que refletia: “Estranho como as coisas antes de acontecer nos

assustam [...]” (OSA, p. 218). Esse pensamento por muitas vezes vinha-lhe à mente,

mas procurava desviá-lo e recompunha-se. Afinal, durante a Missa de réquiem, as

cenas eram típicas de uma pantomima: honrarias, cumprimentos, dobres de sinos e

cochichos, tudo muito bem representado.

A presença do Capitão-General endossa a comparação anterior: a ostensiva

chegada, as intrigas, o silêncio, sua fala, principalmente, os préstimos para com o

filho do falecido João Diogo são recebidos com gratidão por Gaspar que, mesmo

constrangido, deixou-se enviscar pela sedução da vassalagem:

A mesma estima espero ter a honra de merecer da parte de vossa Excelência, pode assegurar a el-Rei Nosso Senhor que tem no filho de João Galvão o mesmo leal e devotado vassalo [...]. Nesse papel nenhuma angústia sentia, se achava protegido. (OSA, p. 211).

Rapidamente Gaspar entrou no jogo político e não titubeou em aceitar os

possíveis favores del-Rei e a condição de filho do potentado amigo del-Rei vinha lhe

como um bálsamo. Ou seja, finalmente, no rastro do pai, ele encontrou seu papel

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naquela sociedade em formação. Isso remete, novamente, aos vícios denunciados

nas Cartas Chilenas por Tomás Antônio Gonzaga.

Após a morte do pai, Gaspar, chocado com a revelação da trama e

declaração de amor de Malvina, desdenhou-a e voltou para o antigo casarão no

arraial do Padre Faria e arranjou a singela noiva Ana, como subterfúgio. A busca do

amor puro e pacífico aproxima-se dos aspectos do lirismo árcade, cujo panorama

bucólico servia de pano de fundo para os amantes e dava vazão aos conflitos

existenciais no Arcadismo. Para Antonio Candido, segundo Alfredo Bosi, a evocação

ao cenário bucólico equilibra a angústia de viver. Gaspar buscava esse equilíbrio,

mas numa espécie de labirinto perdia-se em devaneios, sentia-se coautor da trama

contra seu pai e tinha a sensação de estar a um passo da morte, mas também se

acovardava diante dessa possibilidade. Após esses momentos de crise de

consciência procurava se restabelecer. Assim, decidiu visitar a noiva, no ensejo de

desfazer uma provável intriga planejada por Malvina. Nesse deslocamento de sua

casa à casa de Ana, os soldados rondavam acintosamente as ruas de Vila Rica a

fim de executar Januário, pois já se sabia que ele se encontrava pela redondeza.

Gaspar também fora abordado e, uma vez reconhecido, teve passagem livre. Assim,

portanto, a toda ordem pode ser dada uma contra ordem, desde que se tenha o

amparo de quem detém o poder.

Se Gaspar tinha permissão para transitar pelas ruas de Vila Rica, Januário

não poderia sequer ser visto, pois, para todos os fins já estava morto. Era o que no

conceito do direito romano se dizia do “homo sacer”. Januário lembrava-se

nitidamente da primeira vez que viu Malvina. Gaspar o olhara com desdém e

afirmara ser ninguém: “O jeito como Gaspar o olhou. Quem é? [...] Era um mameluco

qualquer, ninguém” (OSA, p. 320). Na voz do narrador observa-se Januário olhar

para o passado e desenrolar a trama armada para ele: “Como ele, Januário, era

pequeno perto do outro. Perto dela. Ele tinha feito um triste papel” (OSA, p. 320).

Por outro lado, Gaspar, mesmo em meio ao fausto e à riqueza, absorto em seus

pensamentos, divagava:

Ele pálido de sangue aguado, cheio de auras e angústias [...]. Marcado desde cedo pela morte, decadente no pino da vida, já morto antes mesmo de começar a viver. [...] ele, mazombo ilustrado, mimado pela vida nas tetas do ouro, nos pingentes dos diamantes, era o fim de uma raça, de uma nação mal parida, de um povo não nato. (OSA, p. 299).

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Autran Dourado afirma que a obra Os Sinos da Agonia deve ser lida “[...]

como uma história de amor pecaminoso, um painel de paixões devoradoras, de

destinos trágicos, passados na Minas de antigamente” (DOURADO, 2000, p. 191).

Assim, em seu fazer artístico, o autor constrói um romance em que três personagens

masculinas foram enviscadas pela beleza e pelo o jogo de sedução maquiavélico de

Malvina, sem se darem conta, pois só se atinaram quando mais nada poderia ser

feito para mudar seus destinos: o assassinato de João Diogo, a condenação e o

fuzilamento de Januário e o incerto futuro de Gaspar. Na trama literária autraniana,

as personagens Malvina, João Diogo, Gaspar e Januário foram fagocitados pelo

enredo em que o escritor buscou na mitologia grega elementos trágicos que

assentaram muito bem ao ambiente de Vila Rica do século XVIII e, por conseguinte,

estabelece uma simbiose com o regime da ditadura militar das décadas de 1960 e

1970.

A leitura do romance Os Sinos da Agonia, publicado em 1974, possibilita

uma sondagem ao passado tanto de Vila Rica, do século XVIII – com seus

desmandos e castigos políticos –, quanto ao da Antiguidade – na recriação

mitológica, permeada por tragédias. Por meio do labiríntico enredo autraniano pode-

se, ainda, compreender a metáfora empregada como forma estratégica para

desvelar o arbítrio e a censura no período da ditadura militar. Algumas situações

podem, ainda que de forma subliminar, ser reportados à atualidade, pois são

inexoráveis as denúncias que envolvem arbitrariedades no âmbito dos poderes,

sejam eles políticos, econômicos ou sociais.

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SÁTIRA À BUFONARIA CAUDILHESCA NO ROMANCE OS TAMBORES SILENCIOSOS

Celimara Cristine Lima Strelow (PDE- SEED) 16

Rita Felix Fortes (UNIOESTE)

17

RESUMO

O objeto deste estudo é a obra Os Tambores Silenciosos, de Josué Guimarães, romance escrito na década de 1970: período marcado por protestos que levaram a ditadura militar a censurar os meios de comunicação, as produções artísticas, bem como todas as manifestações culturais que se opunham ao regime imposto. Assim, o enfoque deste estudo segue a estrutura semelhante às análises das Cartas Chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga, e do romance Os Sinos da Agonia, de Autran Dourado. O romance Os Tambores Silenciosos, assim como Os Sinos da Agonia, foram escritos na década 1970, em período de intensas represálias resultantes da ditadura militar. O presente estudo está voltado para a sátira menipeia, a carnavalização e a adequação espaço-temporal em Os Tambores Silenciosos. Através de um recorte temporal, o autor insere as personagens na Semana da Pátria de 1936, momento de prelúdio ao Estado Novo, mas, de fato, o autor está satirizando os desmandos políticos resultantes do golpe militar de 1964. Este estudo pauta-se nas obras teóricas: Problemas da Poética de Dostoiévski e Questões de

Literatura e de Estética a teoria do romance, de Mikhail Bakhtin, e Protesto e o Novo Romance Brasileiro, de Malcolm Silverman.

Palavras-chave: Os Tambores Silenciosos, sátira menipeia, carnavalização.

ABSTRACT

The aim of this study is the Joshua Guimarães‟s Silent drums work (Os tambores silenciosos), novel written in the 1970s: a period marked by protests that led to military dictatorship to censor the media, the artistic productions, and all cultural

16

Professora PDE (turma 2009/2010) de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental e Médio, lotada nos Colégios Estaduais Carlos Zewe Coimbra e Dom Manoel Könner, no município de Santa Terezinha de Itaipu/PR, pertencente ao NRE de Foz do Iguaçu.

17 Professora associada do Curso de Letras, Campus de Marechal Cândido Rondon e do Programa de Mestrado em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste).

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events that opposed the government system. Thus, the focus of this follows a similar structure to the analysis Tomas Antonio Gonzaga‟s Chilean letters (Cartas Chilenas) and Autran Dourado‟s Bells of agony (Os sinos da agonia) novel. The novel Silent drums (Os tambores silenciosos) and Bells of agony (Os sinos da agonia) were written in 1970s during a period of severe reprisals resulting from military dictatorship. This study focuses Menippus satire, and the adequacy carnivalization timeline on The silent drums (Os tambores silenciosos). Through a meaningful time, the author inserts the characters in the Motherland Week 1936, when a prelude to the New State, but in fact the author is satirizing the excesses resulting from the political military coup in 1964. This study is guided in theoretical works: Mikhail Bakhtin‟s Dostoevsky's Poetics problems, and Issues of literature and Aesthetics – the novel theory – and Malcolm Silverman‟s Protest and the new Brazilian novel.

Keywords: Silent Drums (Os Tambores Silenciosos), menippus satire, Carnivalization.

1 Introdução

Josué Guimarães constrói a narrativa em torno do microcosmo de Lagoa

Branca, cujo comando político está ao encargo do prefeito Coronel João Cândido

Braga Jardim, o qual conta com a adesão dos administradores da prefeitura. Com o

intuito desvairado de preservar a população das notícias de atrocidades que

ocorrem nas esferas nacionais e internacionais, o prefeito determina que os

aparelhos de rádios sejam apreendidos, confisca os jornais que chegam à estação

ferroviária e tenta coibir que cheguem ao município quaisquer notícias do mundo

exterior. Assim como toda a população, as irmãs Pilar estão isoladas do mundo e,

entre o ofício do artesanato e a distração do binóculo, perscrutam a cidade em

busca de flagrantes no âmbito da vida política e privada dos moradores da pequena

cidade. Enquanto as seis irmãs mais velhas se ocupavam do serviço artesanal e das

alcoviteirices, Maria da Glória, a mais nova das sete irmãs, dedicava-se aos afazeres

domésticos e, à noite, sem o conhecimento das outras irmãs – como forma de

demonstrar seu descontentamento com os desmandos políticos de Lagoa Branca –,

confecciona grandes pássaros negros com enchimento de panos, estrutura de

arame e cobertura de penas. Esses pássaros passam a aparecer em diversos

locais: postes, árvores e telhados. O surgimento inexplicável das estranhas criaturas

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assombra os moradores, mas, em contrapartida, contribui para um esboço de

conscientização dos moradores que pode ser notada em alguns gestos isolados de

uns munícipes, ao ignorar a família do prefeito, na sucessão de boicotes, nas

organizações dos estudantes e nas denúncias que resultarão na frustração da

grande festividade programada para o dia Sete de Setembro e, por conseguinte, na

derrocada do poder municipal. Assim, a atitude de Maria da Glória completa-se nas

demais ações, que solapam com as comemorações cívicas e precipitam o suicídio

do Coronel João Cândido, o ditador de Lagoa Branca.

Em 1976, driblando o aparelho estatal de censura, foi publicado o romance

Os Tambores Silenciosos, de Josué Guimarães. Trata-se de um romance com

algumas nuances do picaresco que, com humor, denuncia as arbitrariedades do

governo ditatorial. As ações se passam em Lagoa Branca, uma cidade imaginária

situada no Rio Grande do Sul durante a semana que antecede o dia 7 de setembro

de 1936, ou seja, período iminente à implementação do Estado Novo.

Os Tambores Silenciosos são um romance pretensamente histórico e que se

ateria à aparente letargia dos moradores de uma cidade do interior do Grande do

Sul, na década de 1930. O autor, um artista pós-moderno, engajado com as causas

sociopolíticas do país, desloca, porém, o fulcro da narrativa a um ambiente e época

propícios para a representação autotélica. Ao analisar a função histórica ou social de

uma obra, nota-se que: “[...] esta repousa sobre a organização formal de certas

representações mentais, condicionadas pela sociedade em que foi escrita. Devemos

levar em conta um nível de realidade e um nível de elaboração da realidade”

(CANDIDO, 2008, p.1 77). Ao considerar o contexto social da elaboração estética de

uma obra é possível, portanto, estabelecer relações com fatos históricos, fazendo

uma analogia de modo a compreender questões sociopolíticas implícitas ou

explícitas na trama literária.

Em Os Tambores Silenciosos, o leitor toma conhecimento das ações do

romance sob a ótica do narrador onisciente, em terceira pessoa, o qual compartilha

também com as irmãs Pilar, sete solteironas que se dedicam aos trabalhos

artesanais por profissão e a controlar a vida alheia através de um binóculo por

distração. Através das lentes do binóculo elas expõem parte da vida alheia, seja no

plano público da política, seja no privado das maledicências cotidianas.

As atitudes arbitrárias do prefeito João Cândido e dos administradores da

cidade, bem como das autoridades de Lagoa Branca como um todo, tinham por

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finalidade manter a população alheia às notícias trágicas do país e do mundo, visto

que, delirantemente, tais notícias não coadunariam com a visão ufanista e

nacionalista das autoridades locais. Tal alienação é, principalmente, um elemento

fundamental à manutenção dos governos autoritários, que se arrogam o papel de

lentes do que deve ser revelado e escondido da população.

Entretanto, conforme seria mais do que previsível, essa visão alienada de

pátria, além de perigosa, não se sustenta, pois, conforme apontam os indícios, tais

pretensões levariam ao fracasso. Na análise de Malcolm (1995), aquele ambiente

misterioso envolve-se também em uma espécie de magia e os pássaros feitos por

Maria da Glória passam a ter fins e propósitos próprios e a função deles é malograr

as comemorações cívicas de Sete de Setembro. A revelação final de onde e de

quem partiu a criação dos pássaros artesanais surpreende o leitor, pois foi a mais

nova das irmãs Pilar, Maria da Glória, que, por ser cega, dedicava-se, “apenas”, aos

trabalhos domésticos e, obviamente, era a única que não vigiava a cidade através

do binóculo. Entretanto, paradoxalmente, e em sintonia com o realismo fantástico

que permeia alguns aspectos desse romance, foi ela quem melhor “viu” o que estava

acontecendo e anteviu o que iria acontecer, pois os pássaros confeccionados por ela

ganharam vida, anunciaram, confirmaram e contribuíram para a catástrofe final que

se abateu sobre a cidade no dia sete de setembro.

2 Os aspectos cronotópicos do romance

Assim como Autran Dourado deslocou a ambientação de Os Sinos da Agonia

para o final do século XVIII com o intuito de denunciar os desmandos políticos do

regime militar instaurado com a tomada do poder em 1964, assim Josué Guimarães,

naquele mesmo período, deslocou as ações do romance para 1936, durante a

Semana da Pátria, na imaginária Lagoa Branca.

Nos anos 1970, a literatura, assim como outras formas de expressão

artísticas e culturais, encontrou muitas barreiras devido à censura. Diante dessa

limitação imposta pelo regime ditatorial, a literatura buscou táticas esquivas e, como

é próprio do texto alegórico, recodificou a linguagem, deslocou questões do âmbito

político para lugares inusitados, fazendo alusões específicas aos desmandos

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políticos e dando “[...] margem a um enriquecimento incalculável das teorias e das

práticas de representação do real, e este enriquecimento implica numa composição

cultural multifacetada e pluralista” (NOVAES, 1979, 1980, p. 79). O círculo da real

necessidade faz com que o autor estenda e ligue “o presente, o passado e o futuro”

(BAKHTIN, 2006, p. 242). O contexto de criação das obras Cartas Chilenas, Os

Sinos da Agonia e Os Tambores Silenciosos fez com os autores recorressem a

outros períodos e/ou a outros ambientes mais propícios, no caso dos romances, e

deslocando as críticas das cartas para espaço criado estrategicamente, no caso o

Chile.

Josué Guimarães, no romance Os Tambores Silenciosos, adota uma

concepção que, de acordo com a visão bakhtiniana, se enquadraria na índole

cronotópica, ambientando sua narrativa em Lagoa Branca, em 1936, e traz para a

década de 1970 aspectos históricos que, embora distantes, podem ser

correlacionados aos desmandos do governo militar da década em vigor. Maria

Beatriz Zanchet (2006, p. 73) afirma que o autor “recorre à História para analisar a

História”, tendo em vista que, fazendo um recorte temporal, Josué Guimarães insere

suas personagens no momento de prelúdio ao golpe do Estado Novo, período em

que Getúlio Vargas, sob o pretexto de impedir os levantes do comunismo no país,

decretou o fechamento do Congresso, anunciou a nova Constituição, os partidos

foram dissolvidos, instaurando-se, assim o Estado Novo. Assim, portanto, ao

deslocar a narrativa para tal momento histórico, o autor passa, de fato, a discutir os

desmandos políticos instaurados a partir golpe militar de 1964. A propósito da fusão

temporal na literatura, ressalta-se que

[...] o próprio sentimento de fusão dos tempos permaneceu em pleno e imperecível vigor e frescor até o fim da vida, desabrochando em uma autêntica plenitude do tempo. Nele, o fantasmagórico, o horripilante e o involuntário foram superados pelos elementos estruturais de visão do tempo que descobrimos: o elemento da relação essencial do passado com o presente, o elemento da necessidade do passado e da necessidade do seu lugar na linha do desenvolvimento contínuo, o elemento da eficácia criadora do passado e, por último, o elemento do vínculo do passado e do presente com o futuro necessário. (BAKHTIN, 2006, p. 238).

As articulações políticas dos governos ditatoriais podem ser equiparadas ao

seguinte discurso do Coronel João Cândido: “Cale a boca [...]. Vou telegrafar para o

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Chefe de Polícia do Estado, para o Governador Flores da Cunha, para o Presidente

Getúlio Vargas e pedir que mandem tropas federais [...]” (OTS, p. 204). Com essa

fala se pode constatar a prepotência e o desatino do prefeito ante a confirmação do

fracasso da idealizada festa cívica, pois, como se sabe, é desejo de um governo

autoritário ver suas ordens cumpridas e, quando isso não corresponde às suas

expectativas, é comum que ele esbraveje, intimide, enfim, empenhe-se em dobrar

toda a sociedade à sua vontade e isso só pode ocorrer através da coação, da força

e da violência.

3 Carnavalização menipeia e bufonaria caudilhesca em Lagoa Branca

Josué Guimarães empregou a sátira menipeia, recurso literário que, conforme

postula Bakhtin (2008, p. 129), “[...] tornou-se um dos principais veículos portadores

da cosmovisão carnavalesca na literatura”. Essa forma composicional aproxima-se

também daquela empregada por Tomás Antônio Gonzaga, tendo em vista que as

Cartas Chilenas foram compostas nos moldes da diatribe, gênero que orbita em

torno da sátira menipeia. Também Os Sinos da Agonia têm aspectos da

carnavalização em sua composição.

O carnaval “[...] é uma forma sincrética de espetáculo de caráter ritual, muito

complexa [...], apresenta diversas matizes e variações dependendo da diferença de

épocas, povos e festejos particulares” (BAKHTIN, 2008, p. 139). O enredo do

romance Os Tambores Silenciosos enquadra-se na estrutura da carnavalização, a

qual pode ser constatada na passagem em que o prefeito foi à missa com a família

e, esperando ser alvo de todas as atenções e bajulações, choca-se com a

indiferença do público:

O coronel com a mulher e a filha sentaram-se no primeiro banco; [...]. A cabeça do prefeito fervilhava, estava confuso e nem prestava atenção ao ato religioso; “então o mulato fotógrafo passa por mim como quem passa por um cachorro ou pela mãe dele, pois vou ensinar a este safado a respeitar as autoridades. (OST, p. 158).

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Esse tratamento indiferente desperta ira, haja vista que, em se tratando de um

caudilho, a admiração popular, mesmo que espúria, ajuda a manter as aparências e

o idilismo sustentados por ele mesmo e por seus seguidores e correligionários.

Segundo Malcolm (2008, p. 258), “[...] os aduladores letrados são estereótipos cujas

vidas públicas e privadas completam-se paradoxalmente, no seu contraste”. Um

outro momento em que se evidencia a excentricidade do prefeito e de seus

aduladores pode ser observado na ocasião da chegada do automóvel novo no pátio

da prefeitura:

O prefeito entrou no carro, sentou-se comodamente, agarrou o grande e negro guidom, fingia dirigir, bateu com a mão no estofamento, exclamou para os presentes: macio como teta de mulher nova. Seus olhos brilhavam, disse ao Dr. Lúcio que entrasse pelo outro lado, queria batizar o dinossauro com as bundas do Executivo e do Legislativo, dizia para ele: veja que lindeza, é de um cristão se mudar para dentro dele e dormir aqui; só falta uma latrina para ser um automóvel perfeito. (OTS, p. 48).

Para o Coronel João Cândido, aquele momento de regozijo seria o prenúncio

de uma sequência de outros que trariam glória e reconhecimento público da

grandeza de seus feitos como político. Essa ideia é levada adiante, tanto que ele

jamais se dá por vencido, mesmo ante os indícios de que seus planos em relação à

comemoração da Semana da Pátria se dissipam em uma subsequência de

acontecimentos que fogem de seu ilusório domínio. A figura construída pelo narrador

revela a imagem risível, cujas ações de escândalo e bufonaria servem aos

propósitos autotélicos do autor.

A urdidura do romance possui aspectos da linguagem carnavalesca, na qual,

segundo a concepção bakhtiniana, o riso é ambivalente e funde-se à ridicularização

e ao júbilo momentâneo. O prefeito é uma personagem que tem traços

característicos que remetem ao ridículo bufão. Isso pode ser observado no trecho no

qual ele descreve com orgulho o invento de uma “poltrona asséptica” e, ao invés dos

seus correligionários repugnarem-se com o hábito excêntrico e com a circunstância

constrangedora de presenciarem o prefeito dando vazão às necessidades

fisiológicas, ao mesmo tempo em que faz seu desjejum, mostram-se admirados e

consideram-no criativo. Assim, sem cerimônia, o coronel julga-se no direito de dar

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sequência à reunião, expondo os aduladores à situação grotesca em uma atmosfera

nauseabunda:

O prefeito saiu da cama desenredando as pernas da grande e rodada camisola de morim, notou que o telegrafista olhava meio espantado; [...] só consigo tomar café da manhã sentado aqui nesta poltrona que mandei fazer pelo carpinteiro da funerária, é igual a uma outra que eu vi num casarão de Laguna, não sei se já esteve lá, parece que há outras na antiga casa do príncipe de Joinville, a gente levanta esta tampa assim, veja, aqui dentro tem um urinol dos grandes, senta-se na poltrona assim e para isso já mando fazer as minhas camisolas bem largas para que fique ao redor de toda a cadeira, e enquanto tomo descansado o meu café, às vezes com um ovinho quente, vou aliviando a barriga e assim mato dois coelhos com uma paulada só [...]. (OST, p. 73).

Essa situação insólita, que deveria ser razão de vexame para o prefeito, ao

contrário, faz com que ele se sinta à vontade, demonstrando-se até orgulhoso com a

cena, pois o Coronel João Cândido, de acordo com seu ponto de vista, vivia o ápice

de sua carreira política, o que, para ele, deveria ser permanente e imutável. O fato

de estar rodeado de sabujos em um momento íntimo, em que ele, comportando-se

de forma grosseira, sente-se tão poderoso que seus atos puramente fisiológicos

ganham – em seu delírio sobre de si mesmo – respeitabilidade, por estarem sendo

praticados pela autoridade. Ou seja, o objetivo é expor a personagem ao ridículo.

Entretanto, observa-se, pela ótica do narrador onisciente, que a figura ridícula da

personagem torna-se mais evidente, contrapondo-se à pretensa ideia de chefe

imponente que ele faz de si mesmo e revela-se a figura do grotesco bufão.

A jactância do administrador de Lagoa Branca fica, ao longo do romance,

fragilizada, pois o narrador, paulatinamente, revela o lado bufão do prefeito e de

seus auxiliares: “O prefeito já estava no seu trono invisível [...] − Algo se passa na

casa do prefeito –, chegou lá o telegrafista, depois o Tenente Hipólito, a menina

empregada da casa saiu correndo e foi até a casa do Dr. Lúcio que sai de pijama

também [...]” (OTS, p. 74). A cena descrita expõe ao ridículo não só o prefeito, mas

seus correligionários, que, em caráter de emergência, se reúnem em uma manhã na

casa do administrador, que está em ridículos trajes de dormir, para discutirem a

respeito de uma mensagem vinda de Porto Alegre em que a chefia geral da capital

cobrava esclarecimentos sobre arbitrariedades dos mandatários de Lagoa Branca.

Por se tratar de uma reunião de emergência, mesmo sentindo-se vexados, os

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comparsas do Coronel João Cândido adentram sua casa de pijama e chinelos, mas,

em matéria ridicularização, o coronel, sem cerimônia, supera-se às demais

personagens, pois, mesmo na presença deles, mantém seu estranho hábito de

evacuar ao mesmo tempo que faz sua refeição matinal sem nenhum

constrangimento.

De acordo com a concepção de Bakhtin (1988, p. 278), a figura

caricaturizada do bufão possui estreita ligação com os “microcosmos e cronotopos”

que se servem da praça pública ou dos palcos teatrais para suas representações

alegóricas. Essa controvertida figura é comum no romance picaresco e nas três

obras objeto de análise há a figura representativa do bufão.

Nas Cartas Chilenas, os versos de pujante ironia de Tomás Antônio Gonzaga

arrostavam com a prepotência do governador da província de Minas, denominado

Fanfarrão Minésio. A personagem João Diogo, do romance Os Sinos da Agonia, em

algumas passagens domésticas também tem alguns traços que se aproximariam do

bufão, pois, ao se apaixonar por Malvina, ele, já velho e muito decrépito, passa a

vestir-se com trajes extravagantes e inapropriados para a idade, o que o torna

tolamente ridículo. O mesmo se aplica a João Cândido com boa dose de hipérbole:

“Ouviu-se um flato poderoso e semitonado, o prefeito engoliu o que mastigava e

pediu desculpas, olhando divertido para a cara do tenente que nem sabia onde ele

estava sentado” (OTS, p. 73). Há, nesse trecho, o ápice da galhofada do narrador,

pois ele se vinga das arbitrariedades e descreve uma cena em que o Coronel João

Cândido resolve problemas administrativos na presença de seus auxiliares fazendo

suas necessidades fisiológicas. De acordo com Seckler (2009, p. 35):

[...] na referida cena também se nota o contraste entre o elevado ─ a austeridade e a importância que uma reunião política deveria ter ─ e o escatológico, o sujo, o sórdido. Diluem-se as fronteiras entre o público e o privado: o que deveria ser resguardado da vista de outrem é motivo de orgulho, a “privacidade” é exposta ao público. Ocorre uma situação grotesca para satirizar os privilégios de quem detém autoridade e poder: o prefeito é o único que tem o direito de defecar na presença dos demais políticos. Não bastasse os demais presentes serem obrigados a tolerar a cena, essa atitude ─ em si abjeta ─ passa a ser pretexto para os aduladores exaltarem a inteligência e o senso prático do coronel.

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Nessa cena, o narrador atinge o ápice da ridicularização da figura

representativa do bufão caudilhesco, sinalizando que não tardaria o

desmascaramento daquela ridícula figura. Há, no romance, outros indícios de que a

programação do coronel resultará em expectativas frustradas.

Ao longo da narrativa pode-se observar que a derrocada do governo

municipal é iminente. É o que prenuncia a insólita invasão dos pássaros feitos de

pano, os quais, a princípio, ninguém sabe de onde vêm. Esse recurso mítico do

realismo fantástico causa estranhamento e indica que os planos para a grande festa

cívica estão ameaçados. Assim, mesmo com a evidência de que os planos seriam

malogrados, o prefeito não se dá por vencido, continua firme com as ameaças:

“Enterro, hoje? Estão ficando malucos? − exclamou o prefeito −, ninguém aqui vai

para o cemitério no dia Sete de Setembro [...]. (OTS, p. 189). É impondo-se com

austeridade que um chefe caudilho pretende manter e defender sua honra e sua

posição. Por isso sempre cabe a ele a palavra final e todos devem acatá-la. Ele não

concebe a ideia de perder o domínio da situação.

No último capítulo, as ações subjacentes à programação da Semana da

Pátria vão sendo reveladas. Não há dúvidas de que as festividades cívicas tão

planejadas estão arruinadas, pois as adversidades iniciam-se com a infestação dos

misteriosos pássaros, que se torna cada vez mais intensa, e o boicote às

festividades cívicas pela população. Mesmo, porém, sem a presença do público para

as comemorações, o prefeito mantém sua atitude desvairada: “− Minhas senhoras e

meus senhores, vamos cantar o Hino Nacional Brasileiro. Iniciou ele próprio com a

voz tonitroante desafinada [...]” (OTS, p. 199). A tentativa de se fazer ouvido e

obedecido foi em vão. Seu poder há tempo dava indícios de que se desvaneceria.

Apenas ele mesmo não tinha conjecturado o previsível fracasso. Assim, aquele que

vislumbrava reconhecimento público por suas façanhas administrativas,

ironicamente torna-se ridículo e derrotado.

A sequência de acontecimentos e infortúnios que precipitam a queda do

ditador de Lagoa Branca é ficcional, mas que, em certa medida, pode ser

correlacionada ao que se desejava em relação ao regime militar. Isto é, sua

derrocada restituiria aos cidadãos seus direitos que, naquele período, estavam

sendo reprimidos. Muitas manifestações, principalmente estudantis, ocorreram em

nome do restabelecimento da legalidade moral e da democracia social do país.

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4 A metáfora da opacidade do binóculo

As lentes do binóculo das irmãs Pilar não contribuíam para um olhar nítido em

relação tanto aos desmandos políticos quanto às intrigas e aos adultérios

comezinhos da pequena cidade, pois ele já estava com as lentes embaçadas pela

poeira e precisava de reparos, mas para as bisbilhotices corriqueiras tinha boa

serventia, mesmo porque, se mandassem para o conserto, ficariam desprovidas

desse aparato de distração: “Esse binóculo está precisando de uma limpeza e com

essa névoa sou capaz de confundir um cachorro com uma vaca, o prefeito com o Dr.

Lúcio” (OTS, p. 27). Os olhos das seis irmãs Pilar perscrutavam Lagoa Branca, mas

essas observações eram restritas, dado o âmbito de abrangência da janela, a

capacidade de interpretação dos “fatos” pelas bisbilhoteiras e a opacidade. O fato é

que as seis irmãs videntes não atinavam para as questões dos desmandos políticos

da cidade. Faltava-lhes também o olhar mais próximo para perceberem o que

acontecia com Maria da Glória, a irmã mais nova e cega de nascença. Elas notaram

apenas que, nos últimos tempos, Maria da Glória quase não dormia ocupando-se

com algo e que ela, visivelmente, estava se debilitando, mas não sabiam o que ela

fazia:

[...] levantou-se, levou o saco com ela e foi deitar no seu estrado onde está até agora e não é para menos, mas antes escondeu o saco por algum lugar que eu não sei que buraco é, já tentei descobrir e nunca achei nada; ela não pode continuar assim a trabalhar de noite quando passa o dia sem parar [...]. (OTS, p. 150).

Nota-se, portanto, a limitação do olhar crítico das irmãs Pilar, pois elas

bisbilhotavam a vida alheia por mera distração, mas estavam “cegas” para o que

estava acontecendo com a irmã, bem como para com os propósitos dela em relação

à degeneração política que se abatia sobre de Lagoa Branca. Maria da Glória, a

cega, é quem percebe os desmandos políticos e a decadência ética e moral da

cidade e passa a confeccionar pássaros de penas pretas e estopa, que ganharam

vida e prenunciarão a hecatombe que se abaterá sobre a cidade no dia sete de

setembro de 1936.

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Na obra Os Sinos da Agonia, o cenário da cidade coberta pela neblina não

permite que Januário, na noite de vigília que antecede sua morte, veja Vila Rica.

Essa ausência de visibilidade remete à obscuridade da trama armada contra ele,

mas pode se estender, ainda, à obscuridade no âmbito dos desmandos políticos do

período do regime militar. Quando se trata de transparência nas ações políticas,

contata-se que se trata de um campo que, desde o Brasil Colônia, tem sido

propenso à ilegalidade, pois, ao administrar o patrimônio público, administra-se

como se esse fosse privado.

Januário, somente após ter reavaliado o seu passado, distanciando-se

fisicamente do palco do seu drama existencial, pôde perceber a trama armada por

Malvina e, na noite que antecedeu a sua morte, ele analisou o quanto fora ingênuo

ao servir de braço para a maquinação da fidalga decadente. Para Januário, o tempo

decorrido e as agruras vividas serviram como lentes da distância para que ele

tivesse mais clareza quanto à sua condição humana. Já as seis solteironas não

mudaram suas rotinas de se revezarem no uso do binóculo para perscrutarem os

diversos espaços de Lagoa Branca. Maria da Glória, ao contrário, não precisou do

fator tempo, tampouco das lentes do binóculo para perceber as questões políticas de

Lagoa Branca, pois, paradoxalmente, por ser destituída de visão, foi a única que

atinou com os abusos cometidos pelos administradores de Lagoa Branca e, em

silêncio, à noite, como se fosse a consciência da população, providenciou uma

forma de se vingar, criando os pássaros que ganharam vida e assombraram a

cidade. Seus objetivos foram alcançados, sua ação contribuiu para o fracasso das

comemorações cívicas arduamente planejadas pelo prefeito local. Maria da Glória,

além de ter o olhar mais crítico que toda a comunidade, agiu em favor da queda dos

bufões caudilhos de Lagoa Branca. Tendo findado sua missão, a solteirona cega

deitou-se e foi diminuindo rapidamente de tamanho, até morrer.

5 Os tambores para o poder militar

A alusão aos instrumentos sonoros citados no título das obras – Os Tambores

Silenciosos (tambores) e Os Sinos da Agonia (sinos) – não é por acaso, ainda mais

quando se trata de obras escritas na década de 1970. Assim, os tambores

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simbolizam o poder do militarismo e os dobres dos sinos estabeleciam comunicação

no tempo do Brasil Colônia.

O pesquisador Vinícius Mariano de Carvalho (1971) afirma que o uso dos

tambores vem de tempos remotos e sua finalidade, dentre outras, estava ligada às

ações militares em campos de batalha ou marchas triunfais. As bandas militares

serviram como instrumento disciplinar e suas apresentações com “garbo,” “beleza” e

“zelo” despertavam fascínio na população, que saía às ruas para ver a banda

desfilar com grande ânimo e fabuloso espírito ordeiro.

Os tambores, conforme prenunciado no romance, são uma clara alusão ao

regime militar, cuja ostentação de poder era exibida nos desfiles cívicos de Sete de

Setembro. Todo o enredo d‟Os Tambores Silêncios é organizado em torno do

desfile. Entretanto, o poder só perdura enquanto o povo, por temor, obediência,

alienação ou conveniência, lhe dá respaldo. Ao contrário, quando todos os jovens

que deveriam fazer rufar os tambores não o fazem, não há festa cívica nem regime

ditatorial que perdure: “Que diabos esses tambores não tocam” (OTS, p. 200).

Assim, quando os preparativos para as comemorações cívicas de Sete de

Setembro, na fictícia Lagoa Branca, não correspondem às expectativas do prefeito

João Cândido, confirma-se a falência daquele sistema político, que vinha se

desgastando devido aos desmandos políticos dos governantes desonestos e

despóticos. Com essa estratégia esquiva, Josué Guimarães fez uma crítica ao

regime militar das décadas de 1960 e 1970 e que não tardaria a entrar em

decadência.

A linguagem dos sinos também marcou época nas cidades barrocas e São

João Del Rei ainda hoje é conhecida como “Terra onde os sinos falam”. Os seus

toques, ao longo do dia, têm relevância, pois há o dobre simples, o dobre duplo e os

repiques, cada qual com sua simbologia. No romance Os Sinos da Agonia, o soar

dos sinos configura a dramaticidade da narrativa e se faz presente ao longo da obra.

O potentado João Diogo teve o velório marcado por dobres de sinos por diversas

igrejas locais. O drama da agonia de cada personagem, momentos antes de suas

mortes, era intensificado ao som dos tristes sete toques esparsos − agonia.

Os tambores e os sinos produzem efeitos sonoros, efeitos os quais, em seus

contextos individuais de uso, estabelecem uma forma específica de comunicação.

São instrumentos que remetem à ideia e ao desejo de retumbar ou soar uma

denúncia para que esta não se perca no vazio. Os romances Os Tambores

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Silenciosos e Os Sinos da Agonia, tendo eles sido escritos no período da ditadura

militar, os termos empregados revelam intencionalmente a necessidade de se fazer

ouvido, pois as vozes estavam embotadas pela censura.

As obras literárias em questão, embora representem outros contextos

históricos distintos dos atuais, podem ser trazidas ainda mais para a atualidade,

suscitando uma análise que busque compreender o fazer estético vinculado a uma

práxis. Ao estudá-las, torna-se possível perceber como se executam ou se

executaram certas ações governamentais arbitrárias, cujos ônus incidem sobre a

população. No caso da fictícia Lagoa Branca, houve uma tentativa de

implementação da hegemonia política por meio da coerção, mas a atitude de Maria

da Glória, aliada às pequenas manifestações populares, como o fato de o prefeito

ser ignorado por alguns transeuntes ou a mobilização dos estudantes foram uma

forma significativa de resistência e contribuíram para a decadência daqueles que

tentaram coagir a população. Quando os moradores de Lagoa Branca foram às ruas,

simbolicamente saíram à caça dos pássaros e a fúria dispensada na ação coletiva

atingia metaforicamente os misteriosos bichos feitos de pano, arame e pena,

destruindo-os. Nessa destruição dos pássaros está, porém, implícita a

desarticulação política e a queda do ditador local. Há, nesses romances, certo

delineamento entre a liberdade da criação literária e a realidade. Esse limiar deve

ser compreendido como uma transfiguração estética que se correlaciona aos

aspectos históricos e sociais, os quais abrem espaço para a leitura e a análise

transtextual.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

_______________. Problemas da poética de Dostoiésvski. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

_______________. Questões de literatura e de estética. Trad. Aurora Bernardini ET al. São Paulo: Hucitec, 1988.

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CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade – estudos de teoria e história literária. 10. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2008.

CARVALHO, Vinicius Mariano de. História e tradição da música militar. Disponível em: <http://www.ecsbdefesa.com.br/fts/MUSICAMILITAR.pdf>.

GUIMARÃES, Josué. Os tambores silenciosos. 19. ed. Porto Alegre: L & PM, 2008.

NOVAES ADAUTO et alii. Anos 70 Literatura. Rio de Janeiro: Europa, 1979-1980.

SECKLER, Katia Luisa. Sátira social no romance Os tambores silenciosos, de Josué Guimarães. Tese (Mestrado). UFSM/RS, 2009. Disponível em: <http://cas cavel.cpd.ufsm.br/tede/tde_arquivos/16/TDE-2009-05-05T150753Z-2026/Publico/ SECKLER,KATIA LUISA.pdf>.

SILVERMAN, Malcolm. Protesto e o novo romance. Trad. Carlos Araújo. Porto Alegre, RS: UFRGS; São Carlos, SP: UFSCar, 1995.

ZANCCHET, Maria Beatriz. “Os tambores silenciosos: uma sátira à política brasileira”. In: Jornada de Estudos Linguísticos e Literários. Marechal Cândido Rondon, PR: Edunioeste, 2006.