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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS - CCJ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL DA DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA: ANÁLISE DA LEGALIDADE DA EXIGÊNCIA DE PRECATÓRIO PARA O PAGAMENTO DAS PARCELAS INDENIZATÓRIAS Marcos Antônio Cardoso de Souza Fortaleza - CE Março, 2010

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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS - CCJ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

DA DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA: ANÁLISE DA LEGALIDADE DA EXIGÊNCIA DE PRECATÓRIO PARA O

PAGAMENTO DAS PARCELAS INDENIZATÓRIAS

Marcos Antônio Cardoso de Souza

Fortaleza - CE Março, 2010

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MARCOS ANTONIO CARDOSO DE SOUZA

DA DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA: ANÁLISE DA LEGALIDADE DA EXIGÊNCIA DE PRECATÓRIO PARA O PAGAMENTO DAS

PARCELAS INDENIZATÓRIAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito Constitucional, sob a orientação do Prof. Dr. Francisco Luciano Lima.

Fortaleza - Ceará 2010

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___________________________________________________________________________

S729d Souza, Marcos Antônio Cardoso de.

Da desapropriação indireta: análise da legalidade da exigência de precatório para o pagamento das parcelas indenizatórias / Marcos Antônio Cardoso de Souza. - 2010.

f. 101

Dissertação (mestrado) – Universidade de Fortaleza, 2010. “Orientação: Prof. Dr. Francisco Luciano Lima.”

1. Desapropriação. 2. Precatório. 3. Propriedade. 4 Confisco. I. Título.

CDU 347.234 __________________________________________________________________________

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MARCOS ANTONIO CARDOSO DE SOUZA

DA DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA: ANÁLISE DA LEGALIDADE DA EXIGÊNCIA DE PRECATÓRIO PARA O PAGAMENTO DAS

PARCELAS INDENIZATÓRIAS

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________________

Prof. Dr. Francisco Luciano Lima Rodrigues UNIFOR

__________________________________________________________________

Profa. Dra. Maria Lírida Calou de Araujo e Mendonça UNIFOR

__________________________________________________________________

Prof. Dr. João Luis Nogueira Matias UFC – Universidade Federal do Ceará

Dissertação aprovada em 26/04/2010

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Aos meus pais, por terem priorizado minha educação, até mesmo em detrimento da realização de seus próprios desejos materiais, aos meus irmãos e à minha esposa.

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AGRADECIMENTOS

Ao SER SUPREMO, pela oferta da vida e da saúde, por propiciar o encontro com

minha família, grandes amigos e todas as pessoas que me ajudam na realização de seus

objetivos pessoais e profissionais.

Ao MEU PAI, Ary Silvério Reis de Souza, pela forma como me introduziu no mundo

dos livros.

A MINHA MÃE, Maria do Socorro Evaristo Cardoso de Souza, por representar

constante exemplo de superação e garra.

AOS MEUS IRMÃOS, Paulo André Cardoso e Tatiana Evaristo, pelas sinceras

demonstrações de carinho e respeito.

A MINHA ESPOSA, Iracilda Rufino Melo, pela compreensão de minhas ausências em

nosso lar e pela importância de tê-la ao meu lado.

AOS AMIGOS, Alessandro Gonçalves, Hermes Coelho, José Bezerra Júnior, Rodolfo

Lopes e Stefano Lopes, pela amizade que já perdura há tantos anos.

AO MEU ORIENTADOR, Francisco Luciano, por ter dedicado tempo e paciência na

colaboração ao meu esforço de pesquisa.

AO PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL DA

UNIFOR, representado pela Profa. Dra. Lilia Maia de Morais Sales, por ter alterado minha

forma de pensar e debater os problemas jurídicos.

AOS PROFESSORES Martonio Mont'Alverne Barreto Lima, por compartilhar

conhecimentos marcantes, e Arnaldo Vasconcelos, por induzir à reflexão e ao pensamento próprio.

Enfim, a todos aqueles que de uma maneira ou de outra contribuíram para que eu

pudesse expressar um esforço no sentido de colaborar com a reflexão sobre o Direito.

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RESUMO

Os objetivos deste estudo consistiram na crítica da hodierna solução jurisprudencial para os casos de “desapropriação indireta” e no estabelecimento de nova abordagem processual para seu enfrentamento. A abordagem inicial deu-se através da pesquisa de bases bibliográficas, legislativas e jurisprudenciais relativas ao assunto eleito. Após a obtenção dos dados basilares, foi possível perceber o equívoco terminológico em que a perda da propriedade, através da ação irregular dos agentes públicos, encontra-se imersa na doutrina e nas cortes pátrias. Com isso, tratou-se de enquadrar os casos concretos, usualmente identificados como hipóteses de “desapropriação indireta”, nos conceitos de “esbulho administrativo” e “confisco ilegal. Evidenciou-se, ainda, que a prestação judicial ofertada aos prejudicados pelas “desapropriações indiretas”, em vez de coibir esta prática irregular, funciona como incentivo a sua adoção. Em permanecendo a atual resolução em perdas e danos, entre pagar a indenização, de forma prévia através do processo regular de desapropriação, ou pagar, por meio de precatório em “desapropriação indireta”, a autoridade administrativa competente seria induzida à conclusão de que lhe é mais favorável a transgressão às regras constitucionais. Não se revela, entretanto, suficiente a denúncia do equívoco no tratamento jurisprudencial brasileiro para os casos de “desapropriação indireta”. Lançou-se, então, no desafio de propor novel solução processual, que se respeitassem tanto as garantias individuais de tutela da propriedade, quanto as prerrogativas estatais, sem que o cumprimento das ordens judiciais adentrasse no campo de incidência das regras constitucionais para os precatórios. Sugere-se, neste sentido, que o titular de direito de propriedade afetado por “esbulho administrativo” utilize-se das ações possessórias. Já para os casos de “confisco ilegal”, indica-se o manejo da ação de obrigação de fazer, que tenha como objeto a conversão do confisco ilegal em desapropriação. Palavras-chave: Propriedade. Desapropriação Indireta. Precatório. Esbulho Administrativo. Confisco Ilegal.

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ABSTRACT

The objectives of this study consisted of criticism of today's legal respond for cases of "indirect expropriation" and the establishment of new procedural approach to this matter. The initial approach was made through the research of bibliographic databases, legislative and judicial decisions relating to the subject chosen. After obtaining the basic data, it was revealed the mistake in terminology that the loss of property through unlawful action of state officials, is steeped in doctrine and in the courts homelands. Thus, it was to place the cases, usually identified as cases of "indirect expropriation", the concepts of "robbery" and " illegal confiscation”. It was found also that the legal services offered to those affected by "indirect expropriation", rather than curb this practice illegal, stimulate it. In staying the current legal resolution, between advance through the regular process of expropriation, or to pay through mandamus from "indirect expropriation", the competent administrative authority would be induced to the conclusion that is more favorable to act the constitutional violation. Does not appear enough, however, the criticism of the the Brazilian case-treatment for "indirect expropriation". Then, this study focuses the challenge of proposing novel solution procedure, which complied with both the individual guarantees of property protection and state prerogatives, without compliance with court orders, enters the field of impact of constitutional rules for the public payment of judicial orders. It is suggested in this sense that the holder of property rights affected by "robbery" administrative use is the possessory actions. As for the cases of "illegal confiscation" indicates that the management action, which has as its object the conversion of illegal confiscation in a regular expropriation.

KEYWORDS: Property. Indirect Expropriation. Mandamus. Robbery Administrative. Illegal Confiscation.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 10

1 DA DESAPROPRIAÇÃO............................................................................................. 13

1.1 Da propriedade..................................................................................................... 13

1.2 Dos elementos essenciais da desapropriação no direito brasileiro ......................... 18

2 DA DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA ......................................................................... 28

2.1 Do emprego do termo expropriação indireta nas limitações estatais ao direito de propriedade.......................................................................................................... 32

2.1.1 Abordagem judicial para expropriação indireta ......................................... 37

2.2 Do atual tratamento jurisprudencial pátrio para a “desapropriação indireta” ......... 38

3 DOS PRECATÓRIOS................................................................................................... 44

3.1 Sistemática própria, antes da edição da Emenda n. 62/2009.................................. 46

3.2 Retrato prático e as alterações da Emenda Constitucional n. 62/2009 ................... 50

4 DAS LIÇÕES EXTRAÍDAS DO LAW AND ECONOMICS .......................................... 55

4.1 A relação entre direito e economia ....................................................................... 56

4.2 Da crítica ao Law and Economics ........................................................................ 58

4.3 Da colaboração do Law and Economics para o estudo da sanção legal ................. 64

4.4 Da colaboração do Law and Economics para o estudo da desapropriação indireta 65

5 DA APLICABILIDADE DA REGRA DOS PRECATÓRIOS PARA INDENIZAÇÕES ESTATAIS EM DESAPROPRIAÇÕES INDIRETAS .................................................. 68

6 SOLUÇÃO PROCESSUAL PROPOSTA PARA A “DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA”, DE ACORDO COM O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E O DECRETO-LEI 3365/41.. 72

6.1 Obrigação de fazer contra a Fazenda Pública nos mesmos moldes aceitos pela atual jurisprudência....................................................................................................... 73

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6.2 Dos direitos do expropriado passíveis de tutela específica .................................... 79

6.2.1 Da defesa da solução processual ............................................................... 80

6.2.2 Da especificidade processual da solução proposta ..................................... 81

6.2.2.1 Do pedido da ação de conversão de confisco ilegal em desapropriação .. 82

6.2.2.2 Sujeitos processuais .................................................................... 82

6.2.2.3 Citação da Fazenda Pública e das providências preliminares ....... 83

6.2.2.4 Da possibilidade de tutela antecipada .......................................... 83

6.2.2.4 Julgamento conforme o estado do processo ................................. 84

6.2.2.5 Do saneamento do processo ........................................................ 86

6.2.2.6 Da audiência de instrução e julgamento....................................... 87

6.2.2.7 Da sentença................................................................................. 88

6.2.2.8 Da viabilidade e utilidade prática da concessão de tutela antecipada em sentença ................................................................................. 88

6.2.2.9 Dos requisitos para a concessão de tutela antecipada em sentença ... 90

6.2.2.10 Dos meios para a obtenção da tutela específica da obrigação de fazer ........................................................................................... 91

6.2.2.11 Da Propositura de Ação de Desapropriação em Obediência à Ordem de Ação de Conversão de Confisco Ilega l em Desapropr iação ...................................................................... 93

CONCLUSÃO..................................................................................................................... 95

REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 100

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INTRODUÇÃO

O estudo em tela foi desencadeado pela constatação de que a jurisprudência brasileira

consagra, como resolução imperativa para as “desapropriações indiretas”, a inserção na ordem

cronológica de precatórios de pagamento a título de indenização por perdas e danos. Esta

forma de prestação jurisdicional ostentava, desde análises preliminares acerca da temática,

uma aparência de injusta restrição aos direitos dos expropriados.

De qualquer forma, não se optou pelo enfrentamento da questão da aceitabilidade

jurídica deste posicionamento jurisprudencial, com base em impressões acerca do fluido

conceito de injustiça. Não que se patrocine a idéia que este debate, apesar de sua inegável

complexidade, seja inviável. Propõe-se, todavia, a reflexão acerca da atual abordagem

pretoriana para as desapropriações indiretas, de acordo com o estudo e a interpretação de

normas expressas do ordenamento jurídico brasileiro.

Antes de se adentrar na temática central, entende-se como indispensável a compilação

de bases jurídicas relativas à propriedade e à desapropriação. Especificamente, no que se trata

da expropriação, adianta-se o relevo necessário ao estabelecimento de uma proposta de

definição doutrinária do instituto que representará suporte elementar para as conclusões

específicas dos tópicos subsequentes.

Após o estabelecimento de marco conceitual para a desapropriação, concentrar-se-á a

abordagem na suposta hipótese de desapropriação, classificada como “indireta”. Se é certo

que toda espécie deve se enquadrar no conceito do gênero a que pertence, a chamada

“desapropriação indireta” será submetida a este juízo racional, para que se possa concluir se

realmente esta expressão pode ser, validamente, empregada para identificação dos casos de

intervenção ilegal do Poder Público na propriedade.

Tratar-se-á de estabelecer o significado de expressões chaves, como também de se

definir e justificar a terminologia adotada no presente estudo, como forma de permitir o

estabelecimento de base para o debate racional da matéria.

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Por consistir a temática da “desapropriação indireta” em construção jurisprudencial,

será inevitável a reprodução de registros das decisões dos tribunais brasileiros, fonte

imprescindível para a captação da essência deste objeto de estudo. Com relação à

“expropriação indireta”, serão coletadas bases internacionais para que se possa, como recurso

ao direito comparado, verificar a viabilidade do uso desta expressão.

A exposição acerca do sistema de pagamento de débitos judiciais da Fazenda Pública

por meio de precatórios, por sua vez, será promovida através de enfoque teórico e prático.

Ressalta-se a importância de fornecer retrato da forma com que os precatórios são

correntemente tratados pelos poderes estruturais do Estado, como recurso auxiliar para as

conclusões acerca de sua compatibilidade com a oferta de solução jurisdicional eficaz aos

proprietários lesados pela expropriação ilegal.

Tratar-se-ão, também em tópico próprio, das lições da corrente teórica identificada

como “Direito e Economia”. Desde já, manifestam-se restrições ao caráter ideológico de

vários dos pensamentos defendidos por seus idealizadores. A abordagem desta doutrina,

entretanto, revela-se importante para a presente análise, em face dos estudos pertinentes aos

incentivos jurídicos para indução de comportamentos racionais. Com base nestes postulados,

projeta-se o alerta de como o atual tratamento judicial da “desapropriação indireta” pode

conduzir à dedução, por parte de autoridades administrativas, de que a opção pela tomada da

propriedade, sem a observância do devido processo legal, pode ser mais vantajosa do que a

reverência às regras normativas de desapropriação.

Após esta necessária abordagem conceitual e teórica, estabelecer-se-á posição crítica

acerca da aceitabilidade jurídica da hodierna forma de resolução judicial para as

“desapropriações indiretas”.

O objetivo do presente texto não se resume, contudo, ao julgamento da prestação

jurisdicional para a temática, na forma consagrada nas cortes nacionais.

Propõe-se, adicionalmente, a formulação de solução processual alternativa, para os

casos usualmente identificados como sendo “desapropriações indiretas”. Lança-se ao desafio

de encontrar proposta de pacificação dos conflitos desta natureza, em que se respeitem tanto

as garantias constitucionais do expropriado, como as prerrogativas conferidas à Fazenda

Pública pelo ordenamento jurídico.

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Restará evidente, ao se avaliar o resultado do esforço por uma solução nos moldes

propostos, o cuidado no respeito aos ditames procedimentais da lei brasileira. Neste estudo,

não se tratará de propor a alteração das normas dispostas, mas, sim, de indicar a aplicação das

regras procedimentais que permitam a efetivação de garantias constitucionais dos

proprietários contra investidas abusivas do Poder Público. Também se deve registrar que não

se enfocou qualquer crítica à opção política pelo sistema capitalista.

Na atual estrutura social-econômica, baseada na concentração patrimonial, não se pode

admitir que a sumária usurpação de bens não possua tratamento jurisprudencial capaz de

representar incentivo negativo a esta prática estatal.

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1 DA DESAPROPRIAÇÃO

Como os efeitos da desapropriação incidem sobre a definição da titularidade sobre bens,

no capítulo inaugural deste estudo, torna-se imprescindível formulações basilares acerca da

propriedade e seu regime jurídico. Após, tratar-se-á especificamente da desapropriação, ao se

debruçar na tarefa do estabelecimento de uma definição doutrinária, em que se respeitem as

características gerais encontradas em todas as espécies desapropriatórias.

1.1 Da propriedade

Apresenta-se a seguinte noção doutrinária para o objeto do estudo que ora se inicia:

[...] a propriedade é um instituto que compreende uma série de direitos e deveres, relações e situações jurídicas com conteúdo econômico, que importam num direito de exclusão erga omnes através da apropriação, física ou intelectual, de um bem material ou imaterial exclusivamente por um titular, que detém um poder de disposição sobre o mesmo. (MESQUITA, 2007, p. 104).

Destarte, a definição dos direitos sobre determinado bem permite o estabelecimento de

regras para a exploração dos objetos de interesse de exploração econômica. A história da

propriedade privada, marcada na origem e tradição das idéias liberais, impregnou o instituto com

o individualismo. A propriedade representava direito subjetivo, através do qual se atribuía ao

titular a prerrogativa de, conforme sua vontade, reivindicar, usar, fruir, dispor da coisa.

O surgimento da concepção do Estado Social, todavia, passou a impor mudanças ao

pensamento liberal em que se baseava o direito civil. Com a crescente inserção de normas de

ordem pública no Direito Privado, passou-se, inclusive, a se discorrer acerca da crise

dicotômica do Direito, como assevera Perlingieri (2007, p. 53), no extrato a seguir transcrito:

A própria distinção entre direito público e privado está em crise. [...] Se, porém, em uma sociedade onde é precisa a distinção entre liberdade do particular e autoridade do Estado, é possível distinguir a esfera do interesses dos particulares daquela do interesse público, em uma sociedade como a atual, torna-se difícil individuar um interesse particular que seja completamente autônomo, independente, isolado do interesse dito público. As dificuldades de traçar linhas de fronteira entre direito público e privado aumentam, também, por causa da cada vez mais incisiva presença que assume a elaboração dos interesses coletivos como categoria intermediária.

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Em conclusão, Perlingieri (2007) afirma que o atual intercâmbio de técnicas e institutos

entre o Direito Público e Privado impede a percepção desta dicotomia em termo qualitativo

(interesses públicos e privados), mas que ainda permite uma averiguação quantitativa. No

Direito privado, prevaleceria o interesse privado; no Público, o interesse de maior repercussão

social.

Ao se aplicar tais considerações ao regime jurídico da propriedade, pode-se afirmar que

o seu exercício não mais pode ser atrelado, isoladamente, ao conceito de direito subjetivo.

Inegável a crescente inclusão de imposições e restrições inafastáveis pela vontade das partes

sobre o titular correspondente, em benefício do interesse coletivo.

De um direito absoluto, natural e imprescritível, a propriedade, atualmente, encontra-se

envolta em regime jurídico que “não se restringe às normas do direito civil, compreendendo,

sim, todo o complexo de normas administrativas, ambientais, urbanísticas, empresariais e,

evidentemente, civis, fundamentando nas normas constitucionais.” (FRANÇA, 2001, p.125).

As alterações relativas ao regime jurídico da propriedade possuem vinculação, portanto,

com a teoria do Estado Social de Direito e o surgimento de conceitos em defesa de categorias

de direitos, diversos dos individuais por ostentarem maior repercussão social: interesses

difusos e coletivos. Neste sentido:

A propriedade é o direito que a pessoa física ou jurídica tem de usar, gozar, dispor de um bem ou reavê-lo de quem injustamente o possua ou detenha (art. 1.228, caput, Código Civil). Trata-se do mais complexo dos direitos subjetivos e centro do direito das coisas, devendo ser analisado á luz da função social consubstanciada na codificação privada e da Constituição Federal de 1988 [...] o direito de propriedade não é um direito absoluto, encontrando limites nos direitos alheios, que devem ser respeitados. No Direito Civil moderno, concebido à luz do Texto Maior, cada vez mais vão surgindo medidas restritivas ao direito de propriedade, impostas pelo Estado em prol da supremacia dos interesses difusos e coletivos. Assim, o direito de propriedade esbarra na sua função social e socioambiental, no interesse público, no princípio da justiça social (art. 3°, III, da CF/88) e na proteção do bem comum. (Grifou-se) (TARTUCE, 2007, p. 409- 410).

Pela análise das considerações acima, revela-se a inegável relação entre o conceito de

função social e os interesses difusos e coletivos. A percepção da necessidade de tutela jurídica

destes interesses conduziu à sujeição normativa da propriedade à imperativa observância de

sua função social.

Para que se possa examinar o regime jurídico nacional da propriedade, torna-se

necessário o estudo da classificação dos bens no direito brasileiro. O Código Civil considera

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como bens públicos aqueles pertencentes às pessoas jurídicas de direito público, rol em que se

incluem as entidades políticas estatais, as autarquias e fundações públicas de direito público.

Os bens particulares seriam compostos de forma residual, à medida que todos os bens que não

se enquadrassem no conceito de bens públicos seriam classificados como particulares.

A divisão acima adquire pertinência no presente estudo, em face da diferença de

enfoque com que a função social impõe limitações ao exercício de cada uma das espécies.

Quanto aos bens públicos, deve-se considerar que a atividade estatal volta-se, com

exclusividade, para a tutela do interesse público, vinculado de forma inegável à promoção do

bem-estar social. Em reverência ao princípio constitucional da impessoalidade, é vedado aos

entes públicos a destinação ou emprego efetivo dos recursos materiais como forma de

favorecer ou prejudicar particulares. A finalidade pública, portanto, vincula qualquer ato

administrativo relacionado ao emprego do patrimônio público.

Cumpre registrar que, para parcela dos doutrinadores, mesmo quando pertencer à

titularidade de pessoa jurídica de Direito Privado, integrante da Administração Pública, o bem

estaria sujeito a regime especial, se a entidade em questão tratar-se de prestadora de serviços

públicos.1 A extensão de regras do Direito Público a entidades de Direito Privado seria

justificada pela tutela do princípio da continuidade dos serviços públicos.

Os bens públicos merecem tutela especial do ordenamento jurídico, justamente, em face

da concepção dos mesmos como instrumentos materiais - ao menos de forma potencial - para

a consecução das finalidades institucionais do Estado. No regime de direito público, próprio

da Administração Pública, atribuem-se competências aos gestores, que não se configuram

como direitos subjetivos, mas como deveres-poderes dos agentes estatais. Assim, uma vez

presentes os requisitos legais em um caso concreto, ao titular do dever-poder impõe-se a

conduta prevista, não lhe restando a escolha entre exercer ou não a atribuição pública. Tal

regime justifica-se, nas lições de Celso Antônio Bandeira de Melo (2008, p.72), em face da

indisponibilidade do interesse público.

Enquanto o Direito Público confere ao titular da propriedade um dever-poder; no âmbito

privado, pode-se afirmar que o ordenamento brasileiro lhe atribui um poder-dever na medida em

que atrelada ao exercício de suas prerrogativas de forma indissociável ao respeito à função social.

1As empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos, embora sejam, também, pessoas jurídicas de direito privado, estão sujeitas a diversas regras e princípios de direito público, especialmente como decorrência do postulado da continuidade dos serviços públicos. (ALEXANDRINO; PAULO, 2009, p. 79).

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Neste regime, o bem serve à satisfação de objetivos particulares, mas com as restrições impostas à

salvaguarda do interesses de maior repercussão social.

No que se refere ao objeto, de acordo com o sistema capitalista, qualquer coisa (no

sentido mais amplo do termo) pode ser afeta pela propriedade, desde que possua apreciação

econômica, geralmente identificada pelos elementos de utilidade e raridade. Mesquita (2007,

p. 103) ressalta com adequação que a Carta Magna não se presta a esgotar os possíveis

objetos da propriedade, na forma do extrato seguinte:

Sob a designação propriedade, instituição sobre a qual erige-se o sistema econômico predominante no mundo, existem diversos regimes distintos. [...] A Constituição Federal de 1988 traz disposições sobre a propriedade industrial, direitos de autor, propriedade de bens imóveis urbanos e rurais, contudo, não distingue todos os regimes de propriedade (e provavelmente nem seria possível).

Logicamente, não apenas a essência dos objetos sobre os quais incidem são indicativos

do regime jurídico, que também depende da destinação atribuída aos mesmos, como já se

observou acerca da observância de regras públicas na tutela de patrimônio afetado ao serviço

público, mesmo quando pertencente a entidades de Direito Privado. A especificação das

regras jurídicas para a propriedade depende da sua vinculação a um dos vários regimes legais,

estabelecidos por critérios diversos, na forma apontada pela doutrina abaixo:

Se os estatutos proprietários são diversos em relação aos objetos, aos sujeitos, às destinações e mesmo aos patrimônios e circunstâncias concretas, não existe um conteúdo mínimo da propriedade; existem, sim, os conteúdos mínimos de cada estatuto proprietário que é necessário individualizar através de uma análise atenta. (PERLINGIERI, 2007, p. 230- 231).

A constatação de uma pluralidade de regimes jurídicos poderia induzir o estudioso do

direito a esforço no sentido de identificar elemento comum entre todos os estatutos para a

propriedade consagrados no direito. Perlingieri (2007, p. 231) patrocina, todavia, a tese de que

a essência da propriedade não deve ser buscada como uma forma de identificar conteúdos de

identidade entre os diversos regimes jurídicos. Através de análise da legislação que compõe

cada regime jurídico, pode-se, contudo, delimitar o conteúdo mínimo de um estatuto

específico. Arremata o citado doutrinador: “A função social não pode, em caso algum,

contrastar o conteúdo mínimo: função social e conteúdo mínimo são aspectos

complementares e justificativos da propriedade”.

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No caput do art. 5° da Constituição2, trata-se de assegurar caráter inviolável à

propriedade, mas o submete aos termos previstos nos incisos subsequentes, nos quais se

destacam os de número XXII a XXVI. França (2001, p.129) critica a redação dos dispositivos

constitucionais retromencionados, com base nas seguintes considerações:

A inclusão do direito individual de propriedade entre os direitos fundamentais, no texto constitucional, foi um grave equívoco do constituinte. [...] O disposto no art. 5°, XXII, deve ser interpretado como especificação complementar acessória de um dos aspectos da garantia institucional da propriedade, estabelecida no caput do dispositivo constitucional supra citado.

A crítica não parece consistente. Primeiramente, nada mais coerente, em um sistema

capitalista, do que no rol de garantias dos direitos individuais contra o abuso do poder estatal,

do que incluir a garantia da propriedade. Em segundo lugar, o caráter acessório da previsão do

inciso XXII decorre da simples leitura do texto constitucional, que não merece crítica neste

sentido. A remissão da propriedade às especificações previstas nos incisos do art. 5° da CF

fora consagrada expressamente no texto constitucional, que assegura a inviolabilidade do

direito de propriedade nos termos dos incisos que completam o caput. Logicamente, que a

inviolabilidade do direito proprietário não fora estabelecido em caráter absoluto no direito

pátrio. A propriedade, como direito subjetivo, deve ceder diante de interesses de maior

repercussão social, como já frisado.

Importante conceder relevo às lições de Gondinho (2000) que, utilizando-se de bases

doutrinárias de Gustavo Tepedido, entende que o estudo da propriedade foca-se, ora no

aspecto estrutural, ora no funcional. O estudo da matéria estrutural, por sua vez, divide-se em

elemento interno ou econômico (faculdades de gozar, usar e dispor) e elemento externo

(exclusão de ingerências alheias). Para o estudo da função social - defende Gondinho (2000) –

deve-se adotar a abordagem funcional.3 Ao se eleger o critério funcional como parâmetro de

2“Art. 5°. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos

estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição; XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano; XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento;” (Grifou-se)

3“[...] não é difícil reconhecer que a propriedade sempre exerceu uma função na sociedade, seja como expansão de inteligência burguesa, seja como objeto de supremacia do capitalismo sobre o trabalho, seja instrumento para construção de uma sociedade mais justa e solidária. A função da propriedade torna-se social apenas a partir do momento em que o ordenamento reconheceu que o exercício da propriedade deveria ser protegido não no

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abordagem da propriedade, como decorrência lógica, induzir-se-ia à conclusão de que a

função social lhe seria indispensável para sua formação.4

A consciência da função social da propriedade e a sua institucionalização têm reflexos

diretos no estudo da desapropriação. Na atual ordem jurídica, a desapropriação exerce tanto a

função de penalidade, como representa instrumento de afetação pública do patrimônio

particular para atendimento ao interesse público. De qualquer forma, a imperativa tutela dos

interesses de maior repercussão social não legitima toda e qualquer atuação administrativa no

sentido de afetar bens ao serviço público. Ainda persiste a necessidade de atendimento das

garantias basilares do indivíduo.

No presente estudo, ao mesmo tempo em que se louva a evolução do regime jurídico da

propriedade, como forma de limitá-la a um exercício socialmente responsável, rechaça-se a

prática administrativa, usualmente identificada como “desapropriação indireta”. Não se pode

admitir que sob as bases da supremacia do interesse público sobre o privado e da função

social da propriedade, promova-se a supressão sumária da propriedade. Certo que o Direito

Público avançou sobre as prerrogativas pessoais, mas não se podem suprimir garantias

constitucionais do cidadão, sob os auspícios de pretensa defesa do interesse social. Há de se

encontrar posição jurídica de reação à prática da “desapropriação indireta” que represente

incentivo negativo à tal prática e , ao mesmo tempo, respeitem-se as regras processuais

pertinentes à promoção de demandas contra a Fazenda Pública.

1.2 Dos elementos essenciais da desapropriação no direito brasileiro

Torna-se indispensável traçar um conceito do instituto da desapropriação, em

consonância com a atual disposição do ordenamento jurídico para esta temática. Neste

sentido, há de se formular noção que permita adequabilidade a todas as espécies

desapropriatórias, tendo em vista que a definição do gênero deve se coadunar com todas as

modalidades previstas no Direito pátrio. Ao se proceder desta forma, observar-se-ão as

características essenciais do instituto, as quais imperativamente estão presentes em todas as

interesse do particular, mas no interesse do coletivo da sociedade. Desde então, a titularidade de situação proprietária passa a implicar para o seu titular o respeito às situações não proprietárias. A grande modificação operada no direito de propriedade reside no fato de que a propriedade, a cada momento passado, é caracterizada menos pelo seu conteúdo estrutural e mais pela finalidade econômica e social do bem sobre o qual incide.” (GONDINHO, 2000, p. 141-142).

4A função social atinge a própria essência do direito de propriedade, modificando o seu conteúdo e criando condições propícias para a legitimidade das restrições impostas ao domínio. (GONDINHO, 2000, p. 146).

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suas manifestações, variações ou modalidades. Na ausência de quaisquer dos elementos

conceituais, um determinado fato jurídico não pode ser considerado desapropriação, nem,

consequentemente, ser regido pelas regras pertinentes.

Assim, antes de se promover a conceituação do instituto, serão abordadas as

modalidades desapropriatórias, para que se possam encontrar os pontos de intercessão,

elementos estes que representarão os componentes da proposta de definição.

Sendo um instrumento excepcional, a desapropriação somente pode ser aplicada se

estiverem presentes os pressupostos legais que a autorizam. Ausente qualquer deles,

defrontar-se-á com ilegitimidade.5 Os atos desapropriatórios devem ser justificados pela tutela

de interesse de maior repercussão social.6 Em face disto, as espécies desapropriatórias são

classificadas de acordo com a justificativa que legitima sua execução em: ordinária (ou

comum), sancionatória e judicial.7

O traço distintivo essencial da primeira com relação à sancionatória consiste no fato de

que não possui caráter de penalidade. Assim, a justificativa para a desapropriação não se

assenta em conduta ilegal do expropriado, mas na supremacia do interesse público sobre o

privado. Na desapropriação ordinária, a Administração Pública apodera-se de bem de terceiro,

considerado indispensável para a consecução das finalidades estatais, por necessidade ou

utilidade pública ou interesse social. Como não se atribui qualquer irregularidade ao

proprietário, a Constituição assegura-lhe o pagamento de indenização prévia, justa e em

dinheiro (art. 5º, XXIV).

As espécies sancionatórias, que se subdividem em urbanística e rural, contudo, somente

são adotadas legitimamente quando o titular do direito de propriedade atua em transgressão às

normas legais. Quanto não cumpre as determinações do plano diretor dos Municípios, o

5“Há um dado que não pode ser relegado no estudo da desapropriação: sua legitimação se condiciona a fim

público. Tal fim integra a própria essência do instituto [...] Não se trata, portanto, de ação sem causa e sem fim, mas, ao contrário, de um tipo de conduta que há de se amparar em determinada causa e de preordenar-se a determinado fim.” (CARVALHO FILHO, 2009, p. 71-72).

6“A desapropriação não pode ser implementada sem que o expropriante indique claramente as razões por que pretende fazê-lo (motivo). Atingindo diretamente o direito de propriedade, somente pode legitimar-se ante justificativas em função das quais se revele presente o interesse público. De outro lado, cabe ao expropriante deixar registrado o objeto da desapropriação, ou seja, o que intenta fazer em decorrência da providência adotada (objeto).” (CARVALHO FILHO, 2009, p. 76).

7Anota-se a proposta de Harada (2009, p. 15) acerca das modalidades de desapropriação: “O exame crítico dos textos constitucionais permite vislumbrar de maneira cristalina três diferentes hipóteses de desapropriações permitidas: a de propriedade que cumpre a função social, a propriedade que não cumpre a função social, distinguindo urbana e rural, e a de propriedade nociva à coletividade.”

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proprietário encontra-se passível de desapropriação urbanística (art. 182, CF). Quando não são

observadas as obrigações inerentes à função social da propriedade rural, o titular sujeita-se à

possibilidade desapropriação rural (art. 184, CF). Tanto na modalidade rural, quanto na urbana,

a indenização prévia e justa dar-se-á por intermédio de títulos da dívida pública ou agrária.

No que cerne à distinção entre as derivações desapropriatórias relativa à indenização ao

expropriado, revela-se elucidativa a análise do art. 182 da Constituição8, em que se versa acerca

das desapropriações em áreas urbanas e se consagram tanto a desapropriação ordinária, quanto a

sancionatória, fato este que permite uma comparação quanto aos seus efeitos. Enquanto a

expropriação justificada nas necessidades administrativas (art. 182, § 3º) impõe ao gestor

público o pagamento de indenização prévia, justa e em dinheiro, nos mesmos moldes do art. 5º,

XXIV (CF), na desapropriação por descumprimento do plano diretor pelo proprietário (art. 182

§ 4º, III), o ressarcimento ao expropriado transgressor será procedido por títulos da dívida

pública, como já asseverado. Absolutamente plausível tal diferenciação legislativa, posto que

seria injustificável tratar de forma idêntica situações tão diversas, como as desapropriações

ordinária e sancionatória. Nesta última, a irregularidade da conduta do titular implica, como

sanção a este comportamento, na legítima e razoável restrição ao direito de indenização.

Ainda se deve menção a outra espécie de intervenção estatal, também classificada pela

doutrina pátria como espécies de desapropriação sancionatória.9 O permissivo expropriatório

resta consagrado no seguinte texto constitucional:

Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e

8“Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes

gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. § 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. § 3º - As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro. § 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I - parcelamento ou edificação compulsórios; II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.”

9“A desapropriação confiscatória tem por fim a expropriação, sem qualquer indenização ao proprietário, de glebas que sejam localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas [...]. Esta modalidade de desapropriação está regulada pela Lei 8.257/1991, que estabelece as regras processuais aplicáveis na transferência do bem imóvel ao Poder Público.” (MARCELO; PAULO, 2009, p. 913).

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medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins será confiscado e reverterá em benefício de instituições e pessoal especializados no tratamento e recuperação de viciados e no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão do crime de tráfico dessas substâncias.

Manifesta-se o entendimento de que a indenização plena trata-se de condição essencial

para a identidade da desapropriação, sendo esta característica o traço basilar que a difere,

justamente, do confisco. Desapropriação e confisco são institutos diversos, com tratamento

jurídico e efeitos distintos. Toda a teoria e normas pertinentes à desapropriação representam

tentativa de conciliar os interesses públicos com a pretensão privada de indenização. No

momento em que se nega a indenização ao particular, o interesse estatal sufoca integralmente

a relevância privada e o tratamento do caso concreto se desloca para o confisco de

propriedade. Não há como, com recurso a ferramentas lógicas, conjugar uma provável

conjunção entre desapropriação e confisco, tendo em vista que o ponto de diferenciação

consiste justamente na observância ou não de indenização para o proprietário originário.

A expropriação pode operar-se de duas formas distintas e inconciliáveis entre si: (a)

desapropriação; e (b) confisco legal.10 Harada (2009, p.53-54) patrocina tese diametralmente

oposta, ao afirmar que:

Na verdade ocorre confisco como sanção à grave infração praticada pelo dono das glebas, que extrapola do âmbito do simples ato ilícito. Aliás, o parágrafo único deste art. 243 faz expressa menção ao confisco de todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas a fins. [...] Verificada a hipótese, não cabe ao proprietário das glebas pleitear a indenização como a invocação de preceitos constitucionais concernentes ao prévio pagamento da justa indenização em dinheiro ou em títulos da dívida pública, pois é o caso de desapropriação sem pagamento de qualquer indenização, instituída pela Constituição de 1988. [...] Advirta-se, desde logo, que negar o caráter de desapropriação por falta de pagamento da justa e prévia indenização poderia ensejar a defesa de tese contrária, isto é, a de que só configura desapropriação quando não houver qualquer espécie de indenização, pois uma ou outra hipótese estão igualmente contempladas na Carta Política de 1998, que rompeu a tradição de nosso direito neste particular.

Na verdade, ao contrário do que é defendido pelo doutrinador acima referenciado, não

coube à Constituição a referência ao teor do art. 243 da Lei Máxima, como sendo hipótese de

desapropriação. Di Pietro (2003, p.156), inclusive, demonstra desconforto ao tratar tal

10A expressão “confisco legal” é empregada por Júlio Fabbrini Mirabete (1998). Deve ser reservadas para os

escassos casos em que a legislação nacional tolera o confisco, como sanção por transgressões normativas cometidas pelos titulares de direito de propriedade.

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dispositivo do texto constitucional como desapropriação, na forma consagrada no seguinte

extrato de sua obra:

Quanto à desapropriação de glebas de terra em que sejam cultivadas plantas psicotrópicas, prevista no art. 243 da Constituição e disciplinada pela Lei n. 8.257, de 26-11-91, pode-se dizer que se equipara ao confisco, por não se assegurar ao expropriado o direito à indenização. Pela mesma razão, teria sido empregado o vocábulo expropriação, em vez que desapropriação.

Perceba-se que a doutrinadora acima atentou-se para o fato de que o texto

constitucional, em vez de fazer referência à desapropriação, empregou o termo expropriação.

Deve-se registrar ainda que o mesmo cuidado terminológico adotado pelo Constituinte fora

observado pelo legislador ordinário que, ao regular tal confisco, através da Lei 8.257/91 (26

de novembro de 1991), também não fez uso da palavra “desapropriação”, mas somente do

gênero “expropriação”.

A hipótese ventilada no art. 243 da Constituição Federal normatiza verdadeiro confisco,

espécie expropriatória esta diversa e inconfundível com a desapropriação.

Revela-se incoerente a tentativa doutrinária de enquadramento de desapropriação

confiscatória. Como já se asseverou, o conceito de desapropriação nega o de confisco e vice-

versa. Não se deve, ressalta-se, tratar a previsão constitucional em comento como modalidade

desapropriatória. A pertinência prática deste debate acerca da denominada “desapropriação

confiscatória” consiste no fato de que se fosse aceita tal modalidade desapropriatória não se

poderia cogitar a inclusão do ressarcimento do titular originário como elemento essencial ou

conceitual da desapropriação.

Ainda acerca das espécies de desapropriação, o atual Código Civil consagra previsão

normativa que também vem sendo recepcionada como nova espécie desapropriatória, que não

depende da atuação do Poder Público. O art. 1228 do Código Civil trata-se do dispositivo que

inaugura o capítulo pertinente à propriedade e, em seus parágrafos 4º e 5º, prevê forma de

perda da propriedade.11

11“Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de

quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. § 2º São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem. § 3º O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou

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A princípio, denuncia-se uma preocupação do legislador brasileiro em distinguir da

desapropriação a hipótese regida nos §§ 4º e 5º do Código Civil, percepção esta que colidiria

com o esforço doutrinário acima ventilado acerca de uma teoria para a desapropriação judicial.

Não se pode elidir a fragilidade da interpretação gramatical ou literal. Mesmo ciente

desta limitação, recorre-se à mesma, para se verificar que, no § 3º do texto legal, utiliza-se a

expressão “o proprietário pode ser privado da coisa”, para abordar a desapropriação. Eis que,

no § 4º, empregam-se os termos “o proprietário também pode ser privado da coisa”.

Acontece que, no § 3º, não se faz referência genérica à desapropriação, mas tão-somente

à espécie ordinária e às suas bases de justificação: necessidade ou utilidade pública ou

interesse social. Assim, mesmo com o emprego de locuções linguísticas que evoquem

diversidade entre os parágrafos do texto legal, o legislador poderia estar se referindo, não a

instituto diverso da desapropriação, mas a outra modalidade desapropriatória, diversa da

ordinária – referida no dispositivo legal anterior. Este raciocínio abriria a possibilidade da

classificação da hipótese do § 4º como desapropriação.

Tal lógica permite apenas não excluir a possibilidade de classificação como

desapropriação. Como a legislação nacional não taxou expressamente a previsão do § 4º como

hipótese de desapropriação e diante da pré-falada limitação do recuso gramatical à

hermenêutica, cabe buscar outros mecanismos indutivos ou dedutivos para a classificação da

novidade legislativa em questão.

Cabe verificar se as especificidades do art. 1.228 (CC) implicariam em nova espécie de

desapropriação ou se este diferencial extrapolaria tal conceito. Propõe-se análise comparativa,

com o objetivo de refletir acerca das diferenças entre a “desapropriação judicial” e as demais

espécies desapropriatórias. Podem-se dividir os elementos comparativos em 2 (dois) grupos:

diferenças objetivas e subjetivas.

No que se refere às diferenças subjetivas, na judicial, o interesse é patrocinado pelo

possuidor, sendo que nas outras modalidades, compete aos agentes estatais a promoção do

feito expropriatório. interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente. § 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante. § 5º No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.”

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Quanto ao critério objetivo, não se pode olvidar que a perda da propriedade é sempre

justificada pela supremacia de interesse de maior repercussão social, como tutela deste

perante o direito individual do proprietário. Na desapropriação clássica, a necessidade ou

utilidade pública e, ainda, o interesse social justificariam a subtração indenizada do direito

individual de propriedade. De outro lado, representam parâmetros fixados em lei (art. 1.228,

CC), com condições para que o juiz decrete a denominada desapropriação judicial: (a) a posse

do imóvel, (b) realização de obras e serviços e (c) a identificação de interesse social ou

econômico na medida excepcional.

Eis que a verificação dos elementos identificadores da intitulada “desapropriação

judicial” conduzem os doutrinadores à identificação de elementos semelhantes ao conceito de

usucapião, na forma da seguinte exposição doutrinária:

A verdadeira diferenciação entre este histórico instituto e a nova figura do Código Civil reside no fato de que, naquela primeira espécie de expropriação – fulcrada na necessidade ou utilidade pública ou interesse social – é o Poder Público quem demonstra interesse no bem, e o faz por meio de decreto ou lei (fase declaratória), assim como paga a indenização [...], diferentemente da segunda hipótese, quando o mencionado interesse social é suscitado pelos próprios possuidores, responsáveis, também, pelo pagamento de indenização. Trata-se, [...], de espécie sui generis de desapropriação, tendo como base não somente o prévio interesse social, mas, também, a existência de uma posse anterior, não muito prolongada – na verdade, de lapso qüinqüenal – que deverá ser alegada como matéria de defesa. É possível se identificar, talvez, uma espécie híbrida, com elementos típicos de usucapião, em razão do prévio exercício da posse como elemento intrínseco. (GUIMARÃES, 2005, p.99-100).

Diante do exposto, há de se estudar a semelhança entre a modalidade judicial e as

demais espécies de desapropriação. Primeiramente, registre-se a necessidade de indenização,

de pagamento do valor do imóvel, ao expropriado.

Em segundo lugar, todas as variações em questão representam instrumento em prol da

equação entre os interesses individuais do titular e os interesses de maior repercussão. Neste

sentido, deve-se enfrentar, contudo, a hipótese de desapropriação judicial com base em

interesse econômico. Nesta circunstância, o magistrado responsável pela análise de um caso

concreto deve ponderar os efeitos econômicos das obras e serviços dos posseiros para decidir

acerca da possibilidade de expropriação. A princípio, o conflito estaria restrito às

prerrogativas do titular da propriedade e dos posseiros. Tal caso poderia desnaturar a essência

da desapropriação como instrumento de sociabilização da propriedade, para confiná-la em

conflito meramente plúrimo, como interesses econômicos particularizados.

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De qualquer forma, o interesse social também é previsto expressamente no texto do

Código Civil como justificativa para desapropriação judicial, fato este que o difere claramente

da usucapião, instituto em que são relevados interesses marcadamente privados. Assim, para o

permissivo do art. 1.228, § 4º, do Código Civil, quando justificado com base no interesse

social, vislumbra-se a possibilidade de classificá-lo como desapropriação judicial. Manifesta-

se entendimento de que o permissivo do § 4º, art. 1.228, do vigente Código Civil, representa

nova modalidade de licitação, mormente, quando praticado sob a tese do interesse social.

As diferenças procedimentais entre as modalidades de desapropriação ordinária e

judicial justificam a terminologia adotada pela doutrina, como se observa através dos

seguintes ensinamentos:

(Na desapropriação ordinária ou comum) São observados, assim, dois momentos distintos: o declaratório (por decreto ou lei) e o expropriatório (administrativo ou judicial, este com base no Dec. Lei 3.365/41). [...]. Fato é que esta desapropriação com base no exercício social da posse é, necessariamente, objeto de apreciação judicial – tutela específica, circunstância esta que também difere da desapropriação clássica [...] 12 (DI PIETRO, 2003, p.153)

Diante desta disparidade de procedimentos, a doutrina brasileira conceitua as espécies

de desapropriação como clássica e judicial, em face da imprescindibilidade da esfera

jurisdicional nesta última.

Em se aceitando a regra do Código Civil como nova forma de desapropriação, seria

imperativo, em benefício da lógica conceitual, excluir a atuação administrativa estatal dos

elementos essenciais do instituto ora em estudo. Eis o desafio: encontrar definição doutrinária

que permita o enquadramento de todas as modalidades desapropriatórias.

A desapropriação ostenta uma multiplicidade de definições na doutrina brasileira. Para

Di Pietro (2003, p.153):

A desapropriação é o procedimento administrativo pelo qual o Poder Público ou seus delegados, mediante prévia declaração de necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, impõe ao proprietário a perda de um bem, substituindo-o em seu patrimônio por justa indenização.

Não se acolhe tal proposta doutrinária pelo fato de que a mesma representa certas

modalidades de desapropriação. A falha de amplitude para todas as variações

desapropriatórias revela-se evidente ao se considerar o instituto em estudo como

12No mesmo sentido: Guimarães (2005, p.99-100).

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procedimento administrativo. Ora, a desapropriação, como visto, pode ser judicial. O conceito

também não se adequa às desapropriações sancionatórias, posto que resume as justificativas à

prévia declaração de necessidade ou utilidade pública ou interesse social.

Para não incorrer no mesmo equívoco, Harada (2009, p.16) faz uso da enumeração das

justificativas legitimadoras da desapropriação. Seus termos conceituais são transcritos em seguida:

[...] podemos conceituar a desapropriação como um instituto de direito público consistente na retirada da propriedade privada pelo Poder Público ou seu delegado, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, mediante o pagamento prévio da justa indenização em dinheiro (art. 5º, XXIV, da CF), por interesse social para fins de reforma agrária (art. 184 da CF), por contrariedade ao Plano Diretor da cidade (art. 182, § 4º, III, da CF), mediante prévio pagamento do justo preço em títulos da dívida pública [...]

Ao final do conceito acima transcrito parcialmente, menciona-se a chamada

desapropriação confiscatória, cuja classificação como espécie desapropriatória já fora

devidamente combatida. Ressalta-se ainda que a desapropriação não recai somente sobre os

bens privados, podem também sujeitar os bens públicos13. Além de extensa reprodução dos

termos normativos pertinentes à matéria, a noção exclui a modalidade judicial.

Registra-se ainda o esforço conceitual de Tácito (2001, p.45): “É a noção de um domínio

eminente do Estado, irradiação do interesse geral, que se pode sobrepor ao domínio privado,

permitindo a transferência da propriedade particular ao patrimônio público, mediante plena

compensação.” A única hipótese não abrangida pelo conceito trata-se da desapropriação judicial.

Mas se deve fazer justiça ao autor: o conceito fora elaborado e publicado antes da edição do novo

Código Civil brasileiro. A noção de Tácito (2001), portanto, fornece importantes elementos na

busca por atribuição de conceito próprio de desapropriação neste estudo.

Cumpre registrar, ainda em face de seus efeitos sob o presente esforço conceitual, a

avaliação deste instituto, sob o ângulo público e privado, na forma da seguinte lição de

Medauar (2009, p.359):

Sob o ângulo do direito privado, a desapropriação representa um modo de perda da propriedade. Sob o enfoque do direito público, configura um meio de aquisição de um bem público ou instrumento de realização de atividades de interesse público, inclusive no tocante à mais justa distribuição da propriedade.

13Os bens públicos podem ser objeto de desapropriação pelas entidades estatais superiores, desde que haja

autorização legislativa para o ato expropriatório e seja observada a hierarquia política entre estas entidades. (MARCELO; PAULO, 2009, p. 897).

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Assim, as noções acima transcritas colaboram no relevo à duplicidade de enfoque de

seus efeitos da desapropriação, tendo em vista que tanto a órbita patrimonial do expropriante

quanto a do expropriado são afetadas.

Diante da necessidade de se enquadrar todas as atuais hipóteses de desapropriação,

formula-se a seguinte proposta: a desapropriação consiste na aquisição de bem por aquele

beneficiado pela ponderação jurídica de predominância de interesses, de acordo com critérios

eleitos no ordenamento jurídico, através de perda indenizada da propriedade do titular originário.

Deve-se atentar, ainda, que não se pode confundir a desapropriação com o

procedimento (sequência de atos administrativos e/ou judiciais), através do qual se opera a

desapropriação. A desapropriação ocorre com a perda indenizada da propriedade e o

procedimento de desapropriação representa a tramitação que deve conduzir a este efeito

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2 DA DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA

Inicia-se a exposição com referência ao entendimento consagrado hodiernamente na

doutrina nacional acerca do termo “desapropriação indireta”. Carvalho (2005-2006, p.120-

121), no extrato doutrinário abaixo, traça comparativo entre desapropriação direta e indireta:

Por desapropriação direta se entende aquela realizada pela Administração Pública quando esta cumpre as normas jurídicas que legitimam a consumação do ato expropriatório, ou seja, é respeitado todo o prévio processo exigido. [...] Quando a Administração cumpre as normas atinentes, diz-se que exerceu uma desapropriação direta, mas devemos ter algumas reservas, pois alguns dispositivos do Dec-Lei nº 3.365/41 não foram recepcionados pela Carta vigente, sendo notoriamente inconstitucionais. [...] Já a desapropriação indireta é conceituada como uma construção pretoriana (fomentada pelos juízes e tribunais), criada para dirimir conflitos concretos entre o direito de propriedade e o princípio da função social, nas hipóteses em que a administração pública ocupa propriedade privada sem observância de prévio processo de desapropriação (quando observa o prévio processo diz-se desapropriação direta), para implantar obra ou serviço público. Estas palavras são excessivamente simpáticas para definir desapropriação indireta; preferimos chamá-la de ato abusivo consubstanciado em esbulho praticado pela Administração Pública contra o cidadão em total desrespeito à Constituição Federal. Em suma, a Administração Pública toma para si bem alheio, sem qualquer atenção às regras que autorizam a desapropriação, agindo em odiosa ilegalidade.

Estas palavras severas com relação à prática da “desapropriação indireta” servem como

indicativo à necessidade de mudança de tratamento destes casos pela jurisprudência nacional.

Caso contrário, será institucionalizado o incentivo positivo à prática desta irregularidade, cuja

adoção é mais benéfica ao gestor do que à prática regular da desapropriação.

A denominada “desapropriação indireta” sequer chega a ser desapropriação. Ora, com

base no conceito elegido em item próprio deste estudo, tal instituto fora definido como perda

indenizada da propriedade, com base em ponderação de predominância de interesses, em

conformidade com critérios elegidos no ordenamento jurídico. Como na “desapropriação

indireta” não há regular indenização, não se pode afirmar que ocorreu desapropriação. Se não

há desapropriação, não pode existir, para o caso correlato, modalidade de desapropriação.

No texto doutrinário referenciado no início deste tópico, trata-se a “desapropriação

indireta” como “esbulho administrativo”. Concorda-se com esta classificação, deste que ainda

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não tenha ocorrido a perda da propriedade respectiva. Assim, se a atuação administrativa

ainda estiver baseada na posse irregular de determinado bem, estar-se-ia diante de um esbulho

atribuído à Administração Pública. Harada (2009, p.223-224) aplica os efeitos do esbulho

para as hipóteses de “desapropriação indireta”, mesmo que se considerando que as investidas

contrárias seriam desferidas, em regra, contra o Poder Público:

Na verdade, o particular pode opor-se a essa forma de ocupação administrativa, inclusive com emprego de desforço físico ou através do concurso de força policial. É que a ação do Poder Público é de uma ilegalidade manifesta, caracterizando-se o esbulho possessório. Pode, também, o proprietário prejudicado intentar ação possessória lançando mão, principalmente, do interdito proibitório e da manutenção de posse. Se a obra pública vier a ser executada antes do cumprimento da medida liminar eventualmente concedida, esta ficará prejudicada, como de resto a própria ação em face do princípio da intangibilidade da obra pública. Nesta hipótese, pela aplicação do princípio da economia processual, nada impede de a ação possessória ser convertida em ação de desapropriação indireta.

O princípio da supremacia do interesse público legitima as ações do Poder Público,

quando os atos administrativos revestem-se de legalidade e estão destinados à salvaguarda dos

interesses de maior repercussão social. As prerrogativas de Direito Público não podem ser

aduzidas para impor, justificar ou legitimar práticas antijurídicas, nem para sobrepujar o

particular ou qualquer destinatário dos efeitos de qualquer ato administrativo arbitrário1. Com

base neste posicionamento, defende-se, em consonância com a lição antecedente, que os

prejudicados pela “desapropriação indireta” recorram aos instrumentos de direito processual

privado para a defesa de sua propriedade.

No sentido da possibilidade jurídica da decretação judicial da invalidade do esbulho

administrativo, registre-se o seguinte posicionamento:

Não podemos olvidar que é garantia constitucional de todos nós que o Estado não pode nos privar de nossa propriedade sem um devido processo legal onde se possa exercer o contraditório e a ampla defesa. Ademais, o Administrador Público é aquele que de ofício cumpre a lei, o que é corolário lógico do princípio da legalidade administrativa previsto no caput do art. 37 da Carta Magna, de sorte que ele só poderá agir do modo ou nos limites permitidos em lei. Dessa sorte, como a Constituição Federal não prevê uma modalidade de desapropriação caracterizada pelo esbulho, tal ato de forma alguma pode ser aceito. O dispositivo (art. 35, Dec-Lei nº 3.365/41) declara que a desapropriação indireta resolver-se-á por perdas e

1 No mesmo sentido, registre: “A jurisprudência brasileira, não obstante a flagrante inconstitucionalidade, tolera o

intolerável, pois admite a perda da propriedade particular em favor do Poder Público através de um ato esbulhatório. O fundamento deste entendimento é a razão das desapropriações, ou seja, o confronto entre o interesse público e o interesse particular, devendo aquele prevalecer. Com a devida permissão dos doutos, não é só o fato de que o interesse público deve ser priorizado que fundamenta as expropriações. Também os requisitos de tal medida, em igual importância, devem estar presentes, sob pena de se considerar que a Constituição trata de um direito de pouca importância quando resguarda a propriedade. Seria admitir a subversão de tudo em nome do interesse público.” (CARVALHO, 2005/2006, p.123-124).

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danos quando o bem estiver incorporado ao patrimônio público, como se tal ato nunca pudesse ser invalidado. Ora, se até leis podem ser declaradas inválidas por vício de constitucionalidade com efeitos retroativos, por qual razão este esbulho seria intocável? (CARVALHO, 2005/2006, p.123-124).

Acontece que a recepção de normas privadas para o regramento da Administração

Pública nunca pode ser operada de forma absoluta. As regras de Direito Privado devem ser

imersas no conjunto principiológico próprio do Direito Público. Entre as diretrizes que regem

o campo publicista, confere-se destaque ao princípio da continuidade do serviço público.

Aplicando-se tal parâmetro para os casos dos esbulhos administrativos, deve-se conter o

ímpeto de defesa possessória do proprietário particularizado, a partir do momento em que os

agentes esbulhadores afetem o bem ao serviço público, ou seja, do instante em que a

coletividade ou o próprio Poder Público, para atender ao interesse público, já tenha

empregado uma utilidade característica da Administração.

O limite da ação repressiva contra a investida do poder esbulhante refere-se à afetação

ao serviço ou ao interesse públicos. Nesta hipótese, deve-se respeito ao princípio da

supremacia do interesse público. Cabe ao magistrado, na análise dos casos concretos, definir o

exato momento em que a tutela da propriedade particularizada deve ceder em prol da defesa

dos interesses de maior repercussão social. De qualquer forma, este limite à proteção da

posse, diante da ação esbulhadora do Poder Público, induz à seguinte circunstância: o

proprietário não pode fazer recurso a qualquer ação possessória ou medida judicial para reaver

o bem. Pode-se afirmar então que ainda existe propriedade?

Particularmente, com relação ao patrimônio imóvel, somente com transferência ou

registro originário do cartório competente materializa-se o direito de propriedade. Acontece

que, no caso do esbulho administrativo, encontra-se diante de situação excepcional. No

ordenamento jurídico brasileiro, assegura-se ao proprietário esbulhado o direito de recorrer ao

Judiciário para afastar tal restrição ao seu direito. Em contrapartida, quando o esbulho é

administrativo, ou seja, decorrente de atos da Administração Pública, este direito de

reivindicação somente pode ser exercido até a afetação pública do bem. Como já se asseverou

no tópico deste estudo relativo à propriedade, o aspecto estrutural da mesma divide-se em

elemento interno ou econômico (faculdades de gozar, usar e dispor) e elemento externo

(exclusão de ingerências alheias). Assim, os aspectos estruturais da propriedade são negados

ao proprietário, na chamada “desapropriação indireta”; posto que não é permitido excluir a

ingerência de terceiro sobre seu patrimônio, nem gozar, usar ou dispor a coisa. Eis que se

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deve atentar, ainda, para o dispositivo legal pátrio do Código Civil que traça a essência da

propriedade: o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de

reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha (art. 1.228). No

momento em que se negam tais prerrogativas a proprietário, vítima de esbulho administrativo

(posse injusta pela Administração) afetado pelo fim público, atinge-se a essência do direito de

propriedade. Não mais se pode considerar a gama de prerrogativas que, ao esbulhado, ainda

restam sobre o bem, como sendo propriedade2. Uma vez negada a propriedade, não se pode

mais falar em esbulho, mas, sim, em confisco ilegal.

Destarte, quando o esbulho administrativo culmina com a afetação do bem, materializa-

se o confisco ilegal por parte da Administração Pública. Com isso, nem todas as hipóteses,

atualmente, tratadas como “desapropriação indireta”, podem ser classificadas como esbulho

administrativo. Quando se opera a perda da propriedade, sem observância do procedimento

desapropriatório, defronta-se com um confisco ilegal. Cita-se, como exemplo diverso daquele

retromencionado, o caso em que o expropriante não cumpre com o parcelamento do preço

acordado e o imóvel já esteja inscrito no seu nome.

Uma vez expostas as questões conceituais terminológicas, cumpre tratar acerca da

forma como a “desapropriação indireta” é tratada pelos estudiosos e operadores do Direito.

Delimita-se como ponto de partida a seguinte lição:

A chamada desapropriação indireta não chega a ser um instituto de direito por ser um mero instrumento processual para forçar o Poder Público a indenizar o ato ilícito, representado pelo desapossamento da propriedade particular, sem o devido processo legal que é a desapropriação. (HARADA, 2003, p.223)

A “desapropriação indireta” não pode existir. Não que inexista a situação fática

identificada por esta expressão. A impropriedade lógica de se denominar como

desapropriação o esbulho administrativo ou confisco ilegal cometidos pela Administração

Pública torna impossível sua classificação como espécie desapropriatória, seja como instituto

de direito ou mero instrumento processual. Quanto ao atual posicionamento pretoriano no

sentido de “forçar” o gestor público a indenizar o ato ilícito, deve-se registrar que o

pagamento das verbas rescisórias dá-se através de precatórios.

2 Não se venha argumentar que com essa afirmação a restrição aos direitos sobre o bem, através, por exemplo, da

hipoteca, arrendamento ou locação, também negaria o direito de propriedade. Nestes casos, as restrições se operam através de manifestação volitiva do proprietário. Resta inegável o direito de disposição do proprietário sobre a vasta gama de prerrogativas a ele inerentes.

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Será que tal determinação judicial, realmente, representaria ato de força do Poder

Judiciário? Ou, na verdade, estar-se-ia consagrando um incentivo à prática daquilo que se

convencionou chamar de “desapropriação indireta”? Pretende-se obter tais respostas nos

tópicos subsequentes às necessárias considerações acerca da sistemática de pagamento dos

débitos judiciais públicos através de precatórios.

2.1 Do emprego do termo expropriação indireta nas limitações estatais ao direito de propriedade

Como já patrocinado, não se recepciona no presente estudo a concepção de

“desapropriação indireta” para os casos de esbulho administrativo e de confisco ilegal.

A expressão “expropriação indireta”, entretanto, tem clara aplicabilidade no estudo da

intervenção estatal na propriedade. Muito se debate acerca dos limites da atuação

administrativa estatal no sentido de impor restrições ao direito de propriedade com base na

tutela dos interesses públicos. Reproduz-se, a seguir, conceito de restrição administrativa,

proposto por Medauar (2009, p.353): “Restrições administrativas consistem em limitações

incidentes sobre as faculdades de uso, ocupação e modificação da propriedade, para

atendimento do interesse público. Podem implicar uma imposição de fazer, de se abster de

algo ou de deixar de fazer.”

É certo que se tais limitações atingirem a propriedade, ao ponto de negá-la, configura-se

a expropriação estatal, embora não se verifique ação estatal diretamente no sentido de

expropriar o bem respectivo. Assim, a expropriação indireta resulta de uma medida ou série

de medidas estatais que têm um efeito equivalente à expropriação direta, sem que se verifique

a formal transferência de título ou apreensão ou posse do bem. Em circunstâncias como estas,

materializa-se a expropriação indireta.

Mesmo nestes casos, não seria adequado o emprego do termo “desapropriação indireta”.

Ora, se não ocorre a indenização do proprietário, a perda da propriedade, seja ela direta ou

indireta, não pode ser caracterizada como desapropriação, como não pode haver espécie que

negue o conceito do gênero. Daí porque que se recorre ao gênero “expropriação”, para se

compor a espécie “expropriação indireta”, que representa a tradução literal para o português

da expressão inglesa.3 A adoção da terminologia expropriação indireta, além de não redundar

3 O uso da expressão “indirect expropriation” será evidenciada através da colação de diversos textos em língua

inglesa, neste tópico da exposição.

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em qualquer incoerência lógico-conceitual, ostenta vantagem de que esta expressão é

amplamente empregada em estudos internacionais, fato este que favorece o estudo

comparado. De qualquer forma, mesmo se reiterando o acolhimento desta terminologia,

sugere-se um possível refinamento da expressão, para que o fenômeno estudado neste tópico

seja identificado pela expressão ‘confisco ilegal indireto’.

Isto posto, estabelecidos os pressupostos terminológicos, poder-se-ia indagar acerca da

viabilidade do emprego da expressão “expropriação indireta” para se referenciar aos casos

retromencionados de esbulho administrativo e confisco ilegal. Acontece que, ao contrário do

que ocorre na expropriação indireta, em que a percepção da perda da propriedade ocorre como

efeito colateral de medidas estatais, tanto o esbulho administrativo quanto o confisco ilegal

são decorrentes do apossamento direto dos bens. Não há como classificar estas últimas

condutas administrativas como ações indiretas. O esbulho administrativo trata-se de atentado

direto contra a posse; enquanto o confisco ilegal, contra a propriedade.

Ainda em análise comparativa, volta-se para a diferenciação entre expropriação direta e

indireta:

Expropriation or ‘wealth deprivation’ could take different forms: it could be direct where an investment is nationalised or otherwise directly expropriated through formal transfer of title or outright physical seizure. In addition to the term expropriation, terms such as ‘dispossession’, ‘taking’, ‘deprivation’ or ‘privation’ are also used. International law is clear that a seizure of legal title of property constitutes a compensable expropriation. Expropriation or deprivation of property could also occur through interference by a state in the use of that property or with the enjoyment of the benefits even where the property is not seized and the legal title to the property is not affected. The measures taken by the State have a similar effect to expropriation or nationalisation and are generally termed ‘indirect’, ‘creeping’, or ‘de facto’ expropriation, or measures ‘tantamount’ to expropriation. (OECD, 2004).

Assim, enquanto na expropriação direta a perda da propriedade ocorre através da legal

transferência do título de propriedade, na indireta, sob a escusa de recorrer às medidas de

interferência do Estado na propriedade ou no uso dos benefícios da mesma, promove-se perda

da essência dos direitos do titular, mesmo que o título legal de propriedade não seja afetado.

Nesta última hipótese, o Estado impõe limites, seja através de atos normativos de

regulamentação ou mediante atos administrativos, mas estas restrições atingem de tal forma a

propriedade, que resultam em sua negativa ao seu legítimo titular.

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O estudioso, cujas considerações são reproduzidas abaixo, trata de creditar a origem e a

razão do conceito de expropriação indireta, na tentativa de analisar a expropriação não com

base em seus critérios formais, mas nos seus efeitos:

International tribunals, jurists, and scholars have consistently appreciated this notion of indirect expropriation and have at times stated that states may accomplish expropriation in ways other than by formal decree; indeed, often in ways that may seek to cloak expropriatory conduct with a veneer of legitimacy. For this reason, tribunals have increasingly accepted that expropriation must be analyzed in consequential rather than formal terms, for ‘state regulation’ may be used to cloth the expropriatory action. And these sorts of expropriation are meant by the indirect expropriation. Jurists and scholars refer to indirect expropriations variously, and often interchangeably, as regulatory, constructive, consequential, disguised, de facto or creeping, 18 measures tantamount to expropriation and so forth. (KHATIWADA).

Com isso, sempre que, em uma circunstância factual e diante de ação governamental,

observarem-se os efeitos de uma expropriação, mesmo sem os atos formais que a

caracterizam, o caso deve ser tratado como expropriação. A expressão “expropriação

indireta”, portanto, pode ser empregada na matéria relativa à intervenção governamental na

propriedade. Enquanto que a identificação de uma expropriação direta revela-se evidente, em

face da observância de um determinado procedimento legal, a classificação das expropriações

indiretas exige do órgão julgador um exame caso a caso.4 Registra-se esforço jurisprudencial e

doutrinário no sentido de elaborar os limites entre a regulação estatal ou medidas de restrição

à propriedade e à expropriação, como se observa no seguinte extrato:

International law instruments including scores of Bilateral Investment Treaties that deal with expropriation even indirect, and provide detail framework of compensation are actually incomplete when it comes to defining what action of the government results into indirect expropriation. Indeed due to this definition crisis, it makes nearly impossible to understand ‘indirect expropriation’ in its naked form and invites possibility of multifarious interpretation of the phrase. Thus the answer to the question what constitutes indirect expropriation is contextual and sometimes may seem arbitrary with no precedent but evolving with newly found standards. Probably the Harvard Draft Convention on the International Responsibility of States for Injuries to Aliens 1961, was the first international law text that tried to define ‘indirect expropriation’ and stated “A ‘taking of property’ includes not only an outright taking of property but also any such unreasonable interference, use, enjoyment, or disposal of property as to justify an inference that the owner thereof will not be able to use, enjoy, or dispose of the property within a reasonable period of time after the inception of such interference. (KHATIWADA.)

4 “Expropriation (direct and indirect) requires compensation, based on clearly set rules of customary

international law. However, while determination of a direct expropriation is relatively straightforward to make, determining whether a measure falls into the category of indirect expropriation has required tribunals to undertake a thorough case-by-case examination and a careful consideration of the specific wording of the treaty.” (OECD, 2004)

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Com base na Havard Draft Convention, citada na referência doutrinária acima compilada,

a expropriação indireta consiste em perda da propriedade, através de interferência estatal

irrazoável no uso, aproveitamento ou disposição do bem, imposta ao proprietário por relevante

período de tempo. As limitações, como típicos atos administrativos, estão vinculadas à lei. Se

extrapolarem os contornos legais, podem ser consideradas expropriações indiretas. Mas, mesmo

no exercício da máxima discricionariedade estatal, ao se imprimir normas legais acerca das

restrições da propriedade, não se pode atingir o cerne da prerrogativa ao ponto de negá-la.

Mesmo diante dos esforços de se buscar condensar os elementos essenciais

caracterizadores da expropriação indireta, a tendência é, principalmente no direito

internacional e norte-americano, a análise dos casos concretos, como mecanismo de

identificação das desapropriações indiretas:

Despite a number of decisions of international tribunals, the line between the concept of indirect expropriation and governmental regulatory measures not requiring compensation has not been clearly articulated and depends on the specific facts and circumstances of the case. However, while case-bycase consideration remains necessary, there are some criteria emerging from the examination of some international agreements and arbitral decisions for determining whether an indirect expropriation requiring compensation has occurred. (OECD, 2004)

A título ilustrativo, aborda-se o tratamento da expropriação indireta na questão relativa

aos limites da intervenção estatal sobre os investimentos estrangeiros. A expropriação indireta,

imersa nesta temática, reveste-se de funcionalidade por representar um conceito em favor da

necessidade de se impor limites ao poder de regulação do Estado sobre a propriedade. A

questão prática essencial relativa à expropriação indireta consiste na busca por critérios que

permitam diferenciá-la da regulação não-passível de ressarcimento. Eis que, quando o Poder

Público trata um como mero caso de limitação administrativa, uma hipótese em que a

propriedade é negada, encontra-se diante de uma expropriação indireta. Apesar de não existir

uma diferenciação sistemática entre a regulação ordinária e a expropriação indireta, no seguinte

trecho doutrinário são indicadas bases induzidas da análise de casos concretos:

[…] they have identified the following criteria which look very similar to the ones laid out by the recent agreements: i) the degree of interference with the property right, ii) the character of governmental measures, i.e. the purpose and the context of the governmental measure, and iii) the interference of the measure with reasonable and investment-backed expectations. (OECD, 2004)

Assim, os critérios, usualmente, referenciados pelos tribunais arbitrais internacionais

não prescindem da análise do caso concreto, mas permite focar a análise em aspectos

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determinados que são eleitos como essênciais na classificação entre restrições estatais e

expropriação indireta. Isto posto, cumpre analisar cada um dos critérios em questão.

Primeiramente, deve-se atentar para o grau de interferência da medida sobre o direito de

propriedade. Somente as medidas estatais com severo impacto econômico podem ser

classificadas como expropriação indireta: seja quando removem parte relevante do valor

econômico da propriedade ou quando prolongam-se de forma a inviabilizar o exercício de

prerrogativas essenciais.5

Outro critério de auxílio da classificação de desapropriações indiretas consiste na

verificação do propósito e do contexto da medida interventiva. A ação estatal, para não ser

identificada como expropriadora, deve estar relacionada à tutela do interesse público. Se a

ação estatal encontra-se plenamente vinculada às finalidades estatais, normalmente, se conduz

à conclusão de que não se trata de expropriação que extrapola os limites da atuação pública6.

Na avaliação deste critério, revela-se essencial a checagem da proporcionalidade da medida.

Deve haver um equilíbrio de razoabilidade entre as demandas do interesse público e as

restrições do direito do titular afetado.7

Por fim, outro fator de identificação das desapropriações indiretas consiste na

interferência da medida sobre a razoável expectativa de retorno de investimentos dos

investidores. Nestas circunstâncias, o investidor deve provar que a expectativa de lucros não

se resume à mera expectativa subjetiva, mas sim se baseia em critérios objetivos.8

5“1. Severe economic impact - International tribunals have often refused to require compensation when the

governmental action did not remove essentially all or most of the property’s economic value.2. Duration of the regulation - The duration of the regulation could be another criterion of whether the regulation has had severe enough impact on property to constitute a taking.” (OECD, 2004)

6 “A very significant factor in characterising a government measure as falling within the expropriation sphere or not, is whether the measure refers to the State’s right to promote a recognized ‘social purpose’60 or the ‘general welfare’61 by regulation. ‘The existence of generally recognized considerations of the public health, safety, morals or welfare will normally lead to a conclusion that there has been no ‘taking’.62 ‘Non-discriminatory measures related to anti-trust, consumer protection securities, environmental protection, land planning are non-compensable takings since they are regarded as essential to the functioning of the state”. (OECD, 2004)

7“In addition, the Court has adopted a common approach to “deprivations” and “controls” of use of property. In either case, there has to be a reasonable and foreseeable national legal basis for the taking, because of the underlying principle in stability and transparency and the rule of law. In relation to either deprivation or control of use, the measures adopted must be proportionate. The Court examines whether the interference at issue strikes a reasonable balance between the demands of the general interest of the community and the private interests of the alleged victims of the deprivation and whether an unjust burden has been placed on the claimant.” (OECD, 2004)

8 “In these cases the investor has to prove that his/her investment was based on a state of affairs that did not include the challenged regulatory regime. The claim must be objectively reasonable and not based entirely upon the investor’s subjective expectations.” (OECD, 2004)

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Com exceção do último critério (razoável expectativa dos investidores9), as citadas

diretrizes para identificação da expropriação indireta, apesar de terem surgido do debate

acerca da regulação dos investimentos internacionais em países em desenvolvimento, podem

ser aplicadas de forma geral como critérios de identificação da perda indireta da propriedade.

Apesar da relevância dos critérios acima indicados, os mesmo não podem ser recepcionados

como elementos exaustivos. A constante avaliação dos casos concretos concede margem para

que novos critérios surjam como forma de limitar a regulação estatal da propriedade, ao se

classificar determinada ação estatal como expropriação indireta.10

Assim, as conclusões acerca da classificação de determinada medida administrativa

estatal como mera restrição de propriedade ou expropriação dependem das circunstâncias de

cada caso concreto. A relevância desta análise reside no fato de que a expropriação pressupõe

a devida reparação do proprietário, enquanto que a simples restrição, em regra, não implica

neste dever estatal.

2.1.1 Abordagem judicial para expropriação indireta

Urge, preliminarmente, traçar clara distinção entre a expropriação indireta, o esbulho

administrativo e o confisco ilegal, para se evitar confusões terminológicas. Para a

diferenciação destas ocorrências, deve-se atentar para o exercício da posse, como se extrai do

seguinte extrato doutrinário:

The Convention Establishing the Multilateral Investment Guarantee Agency (1985) has defined ‘expropriation’ ‘as any legislative or administrative action or omission attributable to the host government which has the effect of depriving the holder of a guarantee of his ownership or control of, or a substantial benefit from, hisinvestment, with the exception of non-discriminatory measures of general application which governments normally take for the purpose of regulating economic activity in their territories.’13(emphasis added) Thus, prevailing notion of expropriation of property also covers interference by a state in the use of that property or with the enjoyment of the benefits even where the property is not seized and the legal title to the property is not affected14, thereby imagines the somewhat anomalous notion of ‘expropriation’ in the form of indirect expropriation.Unlike direct expropriation, which consists in the physical takeover of private assets by the State ‘Indirect expropriation cases are those where, by means of administrative or legislative procedures, the State provokes a unilateral change in contract conditions such that the investor is unable to recover the expected quasi rents15 of the business under the original contractual framework.’ (KHATIWADA) (Grifou-se)

9 Há de se alertar inclusive para o potencial ideológico deste critério, como instrumento de valorização excessiva

dos interesses do empresário em detrimento dos direitos de maior repercussão social. 10“At the same time, prudence requires to recognise that the list of criteria which can be identified today from state

practice and existing jurisprudence is not necessarily exhaustive and may evolve. Indeed, new investment agreements are being concluded at a very fast pace and the number of cases going to arbitration is growing rapidly. Case-by-case consideration which may shed additional light will continue to be called for.” (OECD, 2004)

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Em circunstâncias nas quais o Estado, mesmo sem se apossar do bem, impõe restrições

ao exercício da propriedade que negam o seu conceito legal, encontra-se diante de uma

expropriação indireta. Se o Poder Público se apossa do bem, sem o devido processo legal, não

mais se pode falar em expropriação indireta, mas em esbulho administrativo, situação esta que

pode ser remediada através das ações possessórias. No momento em que a posse for

conjugada à afetação do bem ao serviço público, não mais será viável o recurso aos meios

privados de defesa da posse. Uma vez configurado o confisco ilegal, o caso, atualmente, é

resolvido em perdas e danos – solução esta cuja equidade se contesta no presente estudo.

Não se pode olvidar que, sempre que uma restrição administrativa extrapolar dos limites

legais e evoluir para o apossamento, o tratamento judicial deverá o proposto para o esbulho

administrativo ou confisco ilegal.

Como na expropriação indireta não ocorre o apossamento do bem, tanto o título, quanto

o domínio, ainda se encontram com seu legítimo titular. Está-se, portanto, diante de uma

expropriação precária, posto que passível de reversibilidade. Isto porque as medidas

administrativas ou regulatórias, adotadas pelo Poder Público, podem ser revistas pelo

Judiciário. Assim, constatado que as medidas questionadas judicialmente afetam o direito de

propriedade, ao ponto de negá-lo, o Poder Judiciário possui a competência de anular os atos e

medidas ilegais. Restabelecida a regularidade dos direitos deste titular, afastam-se os efeitos

que anulavam a propriedade.

Diante do exposto, sugere-se que o titular prejudicado por expropriação indireta

ingresse com ação anulatória da medida que afeta sua propriedade. Esta ação ordinária seria

cumulada com indenização por perdas e danos, sujeito ao regime de precatório, para que o

sujeito afetado pela inconstitucional transgressão à garantia da propriedade seja ressarcido

pelos prejuízos ocorridos no período em que as medidas estatais estavam vigentes.

2.2 Do atual tratamento jurisprudencial pátrio para a “desapropriação indireta”

Como se defende, para o esbulho administrativo, sua resolutividade através das ações

possessórias e esta abordagem já ostenta alguma ressonância na doutrina brasileira,

concentrar-se-á no presente tópico em nova proposta de abordagem processual para o

confisco ilegal. Inicia-se com o exame do seguinte registro jurisprudencial:

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DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. IMÓVEL RURAL. REFORMA AGRARIA. INTERESSE SOCIAL. EMPRESA RURAL. AÇÃO DIRETA. NULIDADE DA DESAPROPRIAÇÃO. PERDAS E DANOS. DECRETO-LEI 554/69, ART. 14. DECRETO-LEI 3.365, ART. 35. -A NULIDADE DA DESAPROPRIAÇÃO POR INTERESSE SOCIAL, PARA FINS DE REFORMA AGRARIA, POR CONSTITUIR O IMÓVEL NUMA EMPRESA RURAL, NÃO IMPLICA NA RESTITUIÇÃO DO IMÓVEL, JÁ TRANSCRITO EM NOME DO EXPROPRIANTE, SE NELE SE DESENVOLVE, HÁ LONGO TEMPO, UM PROJETO SOCIAL COM O ASSENTAMENTO DE COLONOS. INCORPORADO O BEM AO PATRIMÔNIO DO EXPROPRIANTE E ATRIBUIDO AO IMÓVEL A DESTINAÇÃO SOCIAL, TEM APLICAÇÃO A HIPÓTESE A CONSTRUÇÃO JURISPRUDENCIAL SOBRE A DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA, RESOLVENDO-SE EM INDENIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS, EM DINHEIRO. RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS NÃO CONHECIDOS. (BRASIL. STF - Supremo Tribunal Federal. RE - Recurso extraordinário. Processo: 100375 UF: RS - RIO GRANDE DO SUL. Relator: Rafael Mayer. Publicação: DJ 16-12-1983 PP-10127 Ement. vol-01321-06 PP-00008 RTJ VOL-00108-02, p.00855)

Percebe-se que se trata de hipótese em que o imóvel já se encontra no nome do

expropriante, no mesmo se desenvolve um projeto social e se promoveu processo de

desapropriação. A princípio, não se trata de esbulho administrativo ou confisco ilegal, cujos

conceitos pressupõem, em regra, a omissão do Poder Público na realização do procedimento da

desapropriação. A confusão terminológica para a matéria em debate é tamanha que se tratou, no

acórdão acima, o caso sub judice como “desapropriação indireta”, diante de sua associação com a

prestação jurisdicional em perdas e danos. Na verdade, o caso consiste em nulidade do processo

de desapropriação, hipótese esta tratada expressamente no art. 35, do Decreto-lei 3365/41.

Registre-se, porém, a possibilidade de se formular hipóteses em que, mesmo quando

deflagrado o regular processo de desapropriação, o caso pode assumir os contornos de

esbulho administrativo ou confisco ilegal. Tratam-se dos casos em que a administração,

apesar de tratar dos tramites procedimentais, realiza a emissão na posse do imóvel sem

atender às regras de depósito prévio (art. 15, do Decreto-lei 3365/41) ou descumpre acordo

firmado com o particular ao não pagar as parcelas pactuadas. Justificam-se o tratamento

destas hipóteses, não como casos de nulidade de procedimento, mas como esbulho

administrativo ou confisco ilegal, porque estes vícios não afetam somente o processo

licitatório, mas também a essência da desapropriação. Reitera-se que não se pode falar em

desapropriação, sem observâncias das garantias legais mínimas para a reparação do titular

originário da propriedade. Sem o depósito prévio para emissão da Administração Pública na

posse ou a recusa no cumprimento pecuniário do acordo indenizatório não há de se falar em

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nulidade de procedimento, mas em ausência de desapropriação. Para que algo seja nulo,

primeiro é preciso se materializar os requisitos de existência.

De qualquer forma, diante da já relatada e indiscutível impossibilidade de reversão quando

o bem já estiver afetado ao serviço público, o Poder Judiciário nacional proclama a ação

indenizatória como único instrumento judicial de defesa do proprietário afetado pela

“desapropriação indireta”. Colaciona-se outro posicionamento judicial neste sentido:

AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. FORO COMPETENTE. A CHAMADA AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA E, NA SUA SUBSTANCIA, AÇÃO REIVINDICATÓRIA QUE SE RESOLVE EM PERDAS E DANOS, DIANTE DA IMPOSSIBILIDADE DE O IMÓVEL VOLTAR A POSSE DO AUTOR, EM FACE DO CARÁTER IRREVERSIVEL DA AFETAÇÃO PÚBLICA QUE LHE DEU A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. APLICAÇÃO DO ART-95 DO CPC. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONHECIDO E PROVIDO. (BRASIL. STF - Supremo Tribunal Federal. Classe: RE - Recurso extraordinário. Processo: 102574 UF: PE. Relator: SOARES MUNOZ. Publicação: DJ 08-11-1984 PP-18772 Ement vol-01357-03 PP-00673 RTJ VOL-00112-01 P-00433)

A incongruência do posicionamento judicial pátrio revela a relevância da exposição

conceitual realizada nos tópicos anteriores deste estudo. Não percebem os membros das cortes

nacionais que, no instante em que não se permite a reivindicação da posse do bem, nega-se o

direito de propriedade. Este equívoco é evidente no acórdão abaixo:

Recurso extraordinário. Desapropriação indireta. Prescrição. Enquanto o expropriado não perde o direito de propriedade por efeito do usucapião do expropriante, vale o princípio constitucional sobre o direito de propriedade e o direito a indenização, cabendo a ação de desapropriação indireta. O prazo, para esta ação, é o da ação reivindicatória. Confere-se a ação de desapropriação indireta o caráter de ação reivindicatória, que se resolve em perdas e danos, diante da impossibilidade de o imóvel voltar a posse do autor, em face do caráter irreversível da afetação pública que lhe deu a Administração Pública. Subsistindo o título de propriedade do autor, dai resulta sua pretensão a indenização, pela ocupação indevida do imóvel, por parte do Poder Público, com vistas realização de obra pública. Hipótese em que não ocorreu prescrição, Recurso extraordinário não conhecido. (BRASIL. STF - Supremo Tribunal Federal. Classe: RE – Recurso extraordinário. Processo: 109853 UF: SP - SÃO PAULO. Relator: Néri Da Silveira. Publicação: DJ 19-12-1991 PP-18711 Ement vol-01647-01 P-00120).

Insiste-se em se defender que, na “desapropriação indireta”, o proprietário ainda tem a

propriedade do bem. Tanto assim que no acórdão acima se assevera que o expropriado

perderia o direito de propriedade, em “desapropriação indireta”, quando se verificasse o

usucapião. Inclusive, no registro jurisprudencial acima, criaram-se as inusitadas expressões

“enquanto o expropriado não perde o direito de propriedade” e “usucapião do expropriante”.

Ora, como imaginar a hipótese de um expropriado que não perdeu o direito de propriedade? E

qual seria a necessidade de um expropriante usucapir um bem?

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A princípio a assertiva de que, na “desapropriação indireta”, o expropriado não perderia

a propriedade poderia ser revestida como argumento de defesa dos interesses dos

proprietários. Mas, ao contrário desta primeira impressão, este pensamento nutre a ilusão de

que a propriedade persiste com sua titularidade original incólume, fato este que traz

implicações até mesmo no cômputo da indenização, posto que, nos cálculos respectivos, a

mora somente começa a contar a partir da citação.

Ora, há de se tratar a chamada “desapropriação indireta” como confisco ilegal, para que

a reprimenda a esta irregularidade ocorra de forma proporcional à lesão que tal prática implica

para o ordenamento jurídico.

A confusão terminológica em que a matéria resta inserida induz o jurisprudente

nacional a erro. O acórdão abaixo representa, de forma ilustrativa, este equívoco

jurisprudencial:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. PREQUESTIONAMENTO. MATÉRIA CONSTITUCIONAL. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. NÃO-CONFIGURAÇÃO. [...] 4. A hipótese de desapropriação indireta pressupõe (i) que o Estado tome posse do imóvel declarado de utilidade pública, independentemente do processo de desapropriação, (ii) que seja dada ao respectivo bem a utilidade pública indicada pelo poder público, (iii) que seja irreversível a situação fática resultante do apossamento do bem e sua afetação. [...] 6. A limitação administrativa, por ser uma restrição geral e de interesse coletivo, não constituindo despojamento da propriedade, não obriga o Poder Público a qualquer indenização. 7. Recurso especial conhecido, mas improvido. (BRASIL. STJ - Superior Tribunal de Justiça. Classe: RESP - Recurso especial – 191656. Processo: 199800756744 UF: SP Órgão Julgador: Segunda turma. Relator: João Otávio De Noronha. Publicação: DJE data: 27/02/2009)

De acordo com este registro jurisprudencial, as condições para a caracterização da

chamada “desapropriação indireta” seriam: (a) incorporação do bem ao patrimônio do Poder

Público; e (b) situação fática seja irreversível. Como classificar este caso de “desapropriação

indireta” como mero apossamento administrativo, se um de seus requisitos de caracterização

consiste na incorporação do bem ao patrimônio público? Ora, não há como se negar, para tais

circunstâncias, a materialização de um confisco ilegal.

Para a negativa da propriedade, seria necessário que as restrições estatais implicassem no

esvaziamento do conteúdo econômico da propriedade do titular. No caso do confisco ilegal, o

proprietário resta impossibilitado de dispor de qualquer forma de sua propriedade, haja vista que

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ela se encontra disponível para atender a uma demanda de interesse público. Se a propriedade

de um bem é negada, sem a observância completa de qualquer procedimento legal, não se

encontra diante de um caso de desapropriação, mas de um caso de confisco ilegal.

O tratamento jurisdicional brasileiro consagra inaceitável negativa de eficácia ao art. 5°,

XXIV, da Constituição Federal, que exige a prévia indenização em dinheiro. Como se pode

aceitar que, em circunstância em que os agentes estatais subtraem o direito de propriedade,

com irregularidade na devida indenização ao titular desta prerrogativa, restrinja-se à

indenização como única medida judicial possível para sanear a afronta ao texto constitucional.

De qualquer forma, ainda resta a missão de contabilizar este posicionamento com o art.

100 da Constituição, que determina que os créditos judiciais contra a Fazenda Pública sejam

pagos, através do sistema de precatório. De forma desprovida desta preocupação, o Poder

Judiciário nacional vem promovendo a aplicação direita do dispositivo da Lei Máxima

pertinente aos precatórios para os casos enquadrados na expressão “desapropriação indireta”.

É o que se observa do acórdão abaixo compilado:

INTERVENÇÃO FEDERAL. ARTS. 34, VI, 100, PAR-2, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E ART. 33 DO A.D.C.T.. 1. NÃO SE CARACTERIZA HIPÓTESE DE INTERVENÇÃO FEDERAL, POR DESCUMPRIMENTO DE DECISÃO JUDICIAL (ART. 34, VI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL), SE, COM BASE NO ART. 33 DO ATO DAS DISPOSIÇÕES TRANSITORIAS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E EM DECRETO BAIXADO PELO PODER EXECUTIVO ESTADUAL, O PRECATORIO JUDICIAL, EM AÇÃO DE INDENIZAÇÃO, POR DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA, VEM SENDO PAGO EM MOEDA CORRENTE, COM ATUALIZAÇÃO LEGAL, EM PRESTAÇÕES ANUAIS, IGUAIS E SUCESSIVAS, NO PRAZO DE OITO ANOS A PARTIR DE 1 DE JULHO DE 1989. 2. SENDO O CREDOR EVENTUALMENTE PRETERIDO, EM SEU DIREITO DE PRECEDENCIA, O QUE PODE PLEITEAR E O SEQUESTRO DA QUANTIA NECESSARIA A SATISFAÇÃO DO DÉBITO (PARAGRAFO 2 DO ART. 100 DA CONSTITUIÇÃO). E NÃO, DESDE LOGO, A INTERVENÇÃO FEDERAL, POR DESCUMPRIMENTO DE DECISÃO JUDICIAL, A QUE SE REFERE O ART. 34, VI, DA CONSTITUIÇÃO. PEDIDO DE INTERVENÇÃO FEDERAL INDEFERIDO. (BRASIL. STF - Supremo Tribunal Federal. Intervenção federal. Relator: Sydney Sanches. Fonte: DJ 05-03-1993 PP-02895 EMEN VOL-01694-01 P-00001)

No entendimento acima, a única justificativa para a dispensa de precatório para o

pagamento de “desapropriação indireta” seria o caso em que ocorresse a preterição da ordem

cronológica, hipótese esta que consiste na exceção genérica para a justificativa de bloqueio nas

contas públicas para quitação de débitos judiciais. Revela-se evidente, portanto, que se insere o

tratamento jurisdicional das “desapropriações indiretas” no quadro geral do regime de precatórios.

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Merecem revisão tanto a análise das situações identificadas como “desapropriação

indireta”, quanto a forma da prestação jurisdicional em defesa do titular da propriedade

afetado pela ilegal interferência estatal.

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3 DOS PRECATÓRIOS

Inicia-se com a noção ofertada por Harada (2007, p.809-810):

Precatório Judicial significa requisição de pagamento (solicitação com sentido de ordem) do montante da condenação judicial feita pelo Presidente do Tribunal que proferiu a decisão objeto de execução contra a Fazenda (União, Estados-membros, DF e Municípios), por conta de verba consignada na Lei Orçamentária Anual diretamente ao Poder Judiciário. Assim como há verba específica na LOA para pagamento de vencimento dos magistrados e servidores do Judiciário e demais despesas, há verbas, em separado, pertencente ao Poder Judiciário, para pagamento de precatórios. Esse pagamento ocorre por determinação do Presidente do Tribunal, dentro da rigorosa ordem cronológica de apresentação desses precatórios.

O precatório foi criado, portanto, como forma de adequar a execução judicial à

sistemática peculiar de quitação das despesas da Fazenda Pública1. Como as despesas

administrativas somente podem ser efetivadas com base em prévio registro orçamentário,

impõe-se a inserção normativa para o gasto correspondente na lei anual, que vincula os

projetos, atividades e ações do Poder Público a uma disponibilidade financeira. Com isso, ao

administrador público atribui-se o dever de planejamento de ações, limitadas aos créditos

estimados para determinado exercício financeiro.2

Ora, se o gestor público não pode realizar despesas sem prévia cotação orçamentária e

os bens públicos são impenhoráveis, para que as condenações judiciais pecuniárias sejam

impostas aos entes estatais, torna-se imperativa a criação de mecanismo que permita a

conciliação entre o interesse particular, na solvência do débito judicial, e o interesse público,

na previsão anual de despesas. O precatório surge, portanto, no ordenamento jurídico, para

1 Em realidade, a expressão Fazenda Pública abrange apenas os entes estatais de direito público, quais sejam: a

União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios (sendo que estes compõem a Administração Pública Direta), as autarquias e as fundações (estas, desde que criadas com personalidade jurídica de direito público, podendo as duas últimas serem federais, estaduais e municipais, integrando a Administração Pública indireta). (GARCIA, 2002, p.163-164)

2 Neste sentido, Machado Júnior (2006, p.37), para quem: “[...] verificar-se-á que quando a execução tiver por conteúdo a obrigação de dar quantia certa (em dinheiro), será iniciada a execução contra a Fazenda Pública, processo especial de execução através do qual o ente público, sem sofrer constrição patrimonial, prestará o valor devido em favor do credor. Tal processo especial visa a garantir a regular manutenção do programa orçamentário do ente público, o qual seria prejudicado com a necessidade de imediata retirada de recursos públicos já destinados à satisfação de determinadas necessidades coletivas.”

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equacionar as necessidades de previsão administrativa da despesa e a quitação de líquida

dívida contra a Fazenda Pública.

Expostas as noções elementares, colacionam-se, em sequência, outras definições de

precatório, retiradas da doutrina nacional:

O precatório é o ato pelo qual o juiz requisita, ao Presidente do Tribunal competente, a ordem de pagamento à Fazenda Pública, para efetuá-lo no processo executivo em que lhe seja movido. (TARDIN, 2007, p.382) [...] o precatório seria o processo administrativo formalizado junto ao Tribunal Judiciário respectivo, resultante da execução contra a Fazenda Pública, cujo objetivo seria requisitar à Fazenda Pública devedora a inclusão do montante devido ao credor na lei orçamentária para ser pago no exercício financeiro seguinte, sem traumas na continuidade da prestação dos serviços públicos à coletividade. (MACHADO JÚNIOR, 2006, p.37)

Percebe-se que os conceitos destoam ao, ora considerar o precatório como sendo ordem

de pagamento, ora sendo processo administrativo. Uma vez expostas as citadas bases

doutrinárias, cumpre a realização de análise comparativa entre as mesmas.

Existem dificuldades lógicas na classificação do precatório como processo

administrativo. A essência do precatório não é esta. O processo administrativo trata-se de um

instrumento e não do seu caráter definidor, de sua essência.

A caracterização do precatório como ordem judicial induz ao entendimento de que a

solicitação do juiz ao Tribunal deve ser identificada como precatório. Não que o juiz singular

expeça ordem ao Tribunal. O precatório trata-se de ordem judicial e o Presidente do Tribunal

não pratica ato jurisdicional, mas somente exerce uma função administrativa. Neste sentido,

registre-se o seguinte registro jurisprudencial:

1. A atividade desenvolvida pelo Presidente do Tribunal no processamento dos precatórios decorre do exercício de função tipicamente administrativa. Cabe-lhe apenas determinar o pagamento dos precatórios expedidos pelo órgão julgador. O ato de expedição do precatório é ato jurisdicional, mas o de determinar à Fazenda Pública devedora seu pagamento é ato administrativo. 2. Contra atos da Presidência praticado nos precatórios caberia em tese recurso administrativo para o Plenário. Porém, por força de dispositivo regimental, nesta Corte o recurso é o de agravo regimental. 3. Todavia, ainda que mantido o ato administrativo do Presidente do Tribunal, em decisão plenária, dessa decisão cabe mandado de segurança, e não recurso especial, ou extraordinário, conforme pacífica jurisprudência do STF [...]. (BRASIL. STJ – Superior Tribunal de Justiça. MS 95.01.24093-2-DF, Relator: Nelson Gonçalves a Silva. Boletim de Direito Municipal, n. 2, São Paulo, NDJ, fev. 2002, p.151).

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Assim, o precatório é oriundo do juízo singular e, no Tribunal, é realizado o controle

administrativo desta ordem. Observe-se que quando o precatório chega ao Tribunal, ele é

autuado e recebe número. Assim, ratifica-se, o precatório é feito na instância originária e

processado, administrado, no Tribunal respectivo.3

3.1 Sistemática própria, antes da edição da Emenda n. 62/2009

Eis a base constitucional para a matéria, antes da edição da Emenda Constitucional n.

62/2009:

Art. 100. À exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.

Continua-se com a reprodução do texto constitucional, anterior à recente Emenda

Constitucional:

Art. 100. (omissis) § 1º. É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos constante de precatórios judiciários, apresentados até 1º de julho, data em que terão atualizados seus valores, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte.

No que se refere à inteligência relativa ao prazo fixado no artigo constitucional em tela,

registra-se a seguinte base jurisprudencial:

[...] 4. Pela CF/88, art. 100 e parágrafos, o controle da ordem cronológica de apresentação dos precatórios, bem assim o pagamento dos débitos neles contidos passou ao Poder Judiciário, a quem são consignadas as dotações orçamentárias e os respectivos créditos abertos. 5. A data de 1º de julho a que se alude o § 1º do art. 100 da CF/88 traduz a data final de apresentação dos precatórios aos Tribunais para que seus Presidentes requisitem äs entidades públicas devedoras sua inclusão no orçamento do exercício seguinte. (Grifou-se) (BRASIL. STJ – Superior Tribunal de

3 “Destarte, a partir do momento em que o juiz da execução solicita, a pedido do credor, por meio de ofício, ao

Presidente do Tribunal o encaminhamento da requisição da inclusão do montante devido na lei orçamentária do ente público devedor, apesar da decisão ser jurisdicional (mandamental), inicia, mesmo no âmbito do Poder Judiciário (Tribunal respectivo), um verdadeiro procedimento administrativo consistente basicamente em: a) autuação, com número de protocolo ao precatório, momento em que ocorre a conferência das peças necessárias para a formalização do mesmo e em que são refeitos os cálculos do montante devido; b) encaminhamento da requisição do montante devido à Fazenda Pública; c) gestão da dotação orçamentária específica para despesa com os precatórios judiciais, procedendo-se o pagamento dos credores, à conta dos créditos públicos, com as devidas atualizações legais, respeitada a ordem preferencial dos precatórios. A atividade do Presidente do Tribunal em relação aos precatórios judiciais é eminentemente administrativa, de tal forma que qualquer problema processual deve ser solucionado pelo juiz da execução [...]. O trâmite do processo administrativo do precatório junto ao Tribunal respectivo deve ser regulado por seu próprio regimento interno, ou por outro ato normativo que não destoe da CF’88 e dos art. 730 e 731 do CPC [...].” (MACHADO JÚNIOR, 2006, p. 52).

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Justiça. MS 95.01.24093-2-DF, Relator: Nelson Gonçalves a Silva Publicação: Boletim de Direito Municipal. N. 2. São Paulo. NDJ. Fevereiro de 2002, p.151).

Somente após o trânsito em julgado de decisão condenatória em desfavor da Fazenda

Pública4, podia-se iniciar o procedimento próprio para inclusão de dívida na ordem cronológica de

precatórios de determinado ente estatal. Pode-se seccionar, antes do efetivo pagamento, a tramitação

em três fases, realizadas em diferentes órbitas estatais: juízo originário, tribunal e Poder Executivo

do ente devedor. Na primeira delas, os autos do processo correspondente, em que se observou a

coisa julgada, devem ser remetidos ao juízo originário. Nesta etapa inicial, serão procedidos os

cálculos de liquidação. Com a consequente indicação do montante da dívida, o magistrado da

instância originária expede o precatório e formula ofício ao Presidente do Tribunal.

Resume-se a questão em se saber se esta apresentação tem de ser ao Tribunal ou às entidades de direito público devedoras. A meu ver, a apresentação até 1º de julho, dos precatórios judiciais é no Tribunal que deverá atualizar os seus e requisitar às entidades de direito público devedoras o pagamento. Esta requisição tem de ser feita de maneira a conceder prazo a elas, de incluir no orçamento a verba necessária ao pagamento. Como o projeto de lei orçamentária da União deverá ser encaminhado até quatro messes antes do encerramento do exercício financeiro (art. 35, § 2º, III, do ADCT), desta comunicação tem de levar em conta esta fato e ser feito antes disso, mas, também, não precisa ser até 1º de julho. Pode ser em data posterior, mas antes de agosto . No caso concreto, o impetrante recebeu o ofício requisitório no dia 03 de julho, com prazo mais do que razoável para inclusão da importância a ser paga no orçamento. (Grifou-se) Importante aqui se alertar para a alteração do § 1º referido no que se refere à atualização monetária dos valores devidos a título de precatório. Antes da EC n. 30/00, a atualização monetária era efetivada quando da apresentação da requisição (precatório) à Fazenda Pública, e não por ocasião do efetivo pagamento. Verdadeira incoerência procedimental, pois para que não houvesse enriquecimento ilícito da Fazenda Pública em face da inflação que corroía o valor real do débito da data da apresentação até o efetivo pagamento, criou-se a canhestra figura do precatório complementar para que tal valor (resíduo resultante da correção monetária) fosse pago ao exeqüente. Valor este que estaria também sujeito à regra do art. 100, formando-se assim um ciclo vicioso e interminável, pois sempre haveria um novo resíduo a ser apurado. Durante certo tempo, diante da sistemática ruim de atualização do valor devido a título de precatório judicial, dúvidas foram surgindo, por exemplo, se seriam devidos juros moratórios entre a data de expedição do precatório e o efetivo pagamento? Recentemente, o STF entendeu que não seriam devidos juros moratórios se o efetivo pagamento seguinte ao da requisição por precatório judicial, pois que este período havia sido o prazo constitucional ofertado para o ente público organizar suas finanças, não se podendo falar aqui em mora.

4 “Para parte da doutrina e da jurisprudência, em razão da inexistência de efeito suspensivo para eventual recurso

especial ou extraordinário (art. 497 c/c art. 542, §2º do CPC), a execução poderia ser imediata através da requisição da quantia devida (expedição do precatório judicial), antes mesmo do trânsito em julgado semelhante ao que ocorre em execução provisória (art. 587 do CPC). Data maxima venia, não parece ser esta a melhor solução conforme resulta do próprio texto constitucional em seu art. 100, §1º, que reclama para expedição do precatório a sentença judicial transitada em julgado. [...] quando o precatório é expedido e a quantia requisitada a Fazenda Pública, tal situação é irreversível, pois já será aprovada em lei a dotação orçamentária necessária ao pagamento do débito [...] a quantia já vem no orçamento do Poder Judiciário (art. 168, da CF/88), motivo pelo qual a verba ficaria à disposição do Poder Judiciário, não podendo ser estornada ao Tesouro Público em caso de eventual sucesso dos recursos especial e/ou extraordinário interposto pela Fazenda Pública.” (MACHADO JÚNIOR, 2006, p. 42-43).

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Com a EC n. 30/00 que alterou o referido §1º do art. 100, hoje a atualização monetária se dá por ocasião do efetivo pagamento, findando com a problemática anterior. (MACHADO JÚNIOR, 2006, p. 50)

Em sentido contrário quanto à interpretação do prazo do art. 100, o seguinte extrato

doutrinário:

Note-se, portanto, que o juiz da execução, por provocação do credor, uma vez que o ato não é de ofício [...] Na prática tem sido atribuída ao juízo da execução a demora em enviar ao Tribunal respectivo a ordem de precatório com as peças necessárias à sua formalização, situação esta que impede a observância da data de 1º de julho para conhecimento da Fazenda Pública devedora, em pleno prejuízo ao credor, que agora deverá esperar dois exercícios financeiros para receber seu valor. (MACHADO JÚNIOR, 2006, p. 44).

O que também deve ser observado, para se obter conclusão, é que este prazo, até o primeiro

dia de julho, parece ser concedido para que tenha tempo hábil para a inclusão nas previsões

orçamentárias do ano seguinte. Se assim for, este prazo não deve ter sua contagem interrompida

com a apresentação da liquidação do Presidente do Tribunal, mas sim com a apresentação para a

autoridade administrativa. Na manifestação do Tribunal acima compilada, o órgão não leva em

consideração um prazo mínimo de 30 (trinta) dias necessários para a formulação ou a adequação

do projeto de lei a uma novel demanda. O julgador não pode atenuar prazos fixados na

Constituição. Não se pode deixar que a comunicação do Tribunal para a entidade pública não

tenha prazo. É o expediente de comunicação entre o Tribunal e a entidade de direito público que

merece será aprazada pela lei. Tanto que se observa a proximidade do prazo constitucional com o

período máximo de encaminhamento da lei orçamentária. Com a interpretação conferida pelos

tribunais, o ato mais importante para fins orçamentários – a comunicação à entidade para

providências de inclusão na lei - ficaria sem prazo.

Com o fim da etapa jurisdicional, iniciam-se os atos de natureza administrativa. A

segunda parte do processamento dá-se, assim, no Tribunal de segunda instância, na pessoa do

Presidente deste órgão colegiado. A formalização do precatório não tem nenhuma eficácia

para o credor, até que o Presidente do Tribunal envie esta requisição de pagamento

(precatório) ao representante do ente político devedor. Com esta providência por parte da

corte competente, em nova etapa administrativa, com ênfase financeira, os agentes executivos

do ente devedor devem incluí-lo na LOA (Lei Orçamentária Anual). Em respeito às diretrizes

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da moralidade e da impessoalidade, nenhum crédito, salvo exceções normativas expressas,

podem ser privilegiados ou preteridos.5

Antes da EC n. 30/00, o texto constitucional estabelecia que a despesa afeta ao precatório judicial iria integrar o orçamento como sendo dotação (quantidade específica de recursos públicos) dirigida à própria entidade pública devedora ou a órgão da própria Administração Direta, sendo que, apesar disso, tal montante não poderia ser para os fins de pagamento em favor da ordem dos precatórios, ou seja, tal montante estava em verdade, consignado ao Poder Judiciário. Assim, na medida em que os recursos públicos fossem sendo recebidos pela entidade pública devedora, caberia a esta ir liberando-os em favor do Poder Judiciário, e de posse de tais verbas, o Presidente do Tribunal respectivo iria encaminhando o numerário aos juízes para efeito de pagamento aos credores, sempre observando a ordem constitucional dos precatórios. A sistemática, portanto, seria que as dotações orçamentárias e os créditos abertos seriam consignados ao Poder Judiciário, entretanto a quantias devias seriam recolhidas às repartições competentes, ou seja, os valores apesar de consignados ao Pode Judiciário (afetados ao pagamento dos precatórios), seriam disponibilizados como dotação orçamentária para o referido órgão competente da Fazenda Pública devedora, a dotação sairia do Tesouro Único para o órgão da entidade devedora, para que esta depositasse em juízo o montante devido em favor do exequente. Era um caminho tortuoso e burocrático para se implementar um pagamento ao jurisdicionado que já havia esperando um longo período para receber seu crédito, pois apesar de haver dotação orçamentária, muitas vezes a Fazenda Pública, de posse dos valores, aproveita para protelar o pagamento valendo-se de medidas judiciais ou administrativas para tanto. Agora, mediante alteração da EC n. 30/00, entende-se que a dotação orçamentária ou crédito aberto sairão do Tesouro Único diretamente para o Poder Judiciário, com dotação voltada a este Poder (art. 168 da CF/88), mas afeta ao pagamento de precatório. Torna-se desnecessária, portanto, qualquer expedição de ordem (sanção) pelo Presidente do Tribunal em face da Fazenda Pública renitente para que esta deposite o valor destinado ao precatório, pois que o valor já se encontra junto ao Poder Judiciário, bastando mera determinação ao Presidente do Tribunal para que seja levantada a importância nos limites dos valores consignados em juízo. Foi um avanço procedimental e favoreceu o maior acesso à justiça, pois a implementação executiva se tornou mais célere. Por outro lado, a responsabilidade na gestão dos recursos públicos afetos aos precatórios foi repassada das mãos do administrador público do Poder Executivo para o Presidente do Tribunal, que assume de vez a condição de gestor dos valores. (MACHADO JÚNIOR, 2006, p. 52).

Evidentemente, a efetividade do precatório ocorre com o pagamento, que é realizado de

acordo com as previsões orçamentárias da Lei Orçamentária Anual (LOA). Dentre as

previsões orçamentárias desta lei, devem-se consignar, anualmente, valores atribuídos ao

Poder Judiciário para pagamento dos precatórios. Os precatórios formalizados até o primeiro

5 O texto acima foi produzido com base nos seguintes ensinamentos: “Transitada em julgado a decisão judicial

condenatória contra a Fazenda, os autos do processo retornam à Vara de Origem (Juízo de primeira instância). Procedida a liquidação do julgado por cálculo aritmético, para determinar o exato montante do débito a ser satisfeito pelo Poder Público vencido na demanda, o Juiz oficia ao Presidente do Tribunal solicitando a requisição de pagamento. O Presidente do Tribunal requisita o pagamento, expedindo o competente precatório judicial. Entregue este precatório ao ente político devedor, este deverá incluí-lo na ordem cronológica, para pagamento oportuno. Essa inclusão na ordem cronológica decorre do princípio da moralidade administrativa, que proíbe a designação de casos ou pessoas nas dotações orçamentárias (art. 100, caput, da CF).” (HARADA, 2007, p.810).

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dia de julho de cada ano - data esta que delimita o período requisitorial - devem ter os valores

consignados na Lei Orçamentária (LOA) do ano subsequente. 6

3.2 Retrato prático e as alterações da Emenda Constitucional n. 62/2009

O Executivo vinha consignando no orçamento das entidades políticas apenas uma

fração do que é requisitado pelo Poder Judiciário. Com base em dados obtidos a partir de

análise do município de São Paulo, Harada (2007, p. 816-817) acentua que:

Como resultado da cultura do descumprimento de decisões judiciais que vigora de alguns anos para cá, há dupla infração: a sonegação de verbas a serem incluídas no orçamento seguida do desvio da maior parte daquelas que foram inseridas no orçamento do exercício. [...] O volume de pagamento anual depende da vontade unilateral do governo. A força coativa, que deriva da decisão judicial, é substituída pelo ato potestativo do governante, o que implica rompimento da ordem jurídica estabelecida pela Carta Política.

Assim, apesar de os precatórios comporem o orçamento do Poder Judiciário7, o Poder

Executivo persistia em uma cultura de desrespeito à previsão constitucional, ao se recusar a

consagrar as previsões orçamentárias suficientes para atender à demanda dos precatórios,

como também as parcas previsões estabelecidas em lei não eram efetivamente honradas. Este

cenário, que implica em transgressão aos princípios basilares do Estado Democrático de

Direito, é acentuado no texto abaixo:

A obrigatoriedade de cumprimento das decisões oriundas do Poder Judiciário, notadamente nas hipóteses em que a condenação judicial tem por destinatário o Poder Público, muito mais do que simples incumbência de ordem processual, representa uma incontestável obrigação institucional [...] sob pena de graves comprometimentos dos princípios consagrados no texto da Constituição da República. [...] Na categoria de princípios de obrigatória observância, situa-se o princípio do respeito às ordens judiciais e, como conseqüência lógica da harmonia entre os poderes, o Executivo não pode se furtar de cumprir as determinações oriundas dos órgãos jurisdicionais. (TARDIN, 2007, p.383-384).

6 “Em decisão do Superior Tribunal de Justiça ficou consagrado o seguinte entendimento: Constitucional.

Administrativo. Mandado de Segurança. Precatório. CF, art. 100, §1º. 1. Compete ao Poder Judiciário o controle da ordem cronológica de apresentação do precatório até o 1º de julho de cada ano, requisitando o pagamento, endereçado à entidade de direito público, com a finalidade de ser consignada a necessária dotação orçamentária. O juiz de primeiro grau não requisita diretamente o pagamento, dirigindo-se ao Presidente do Tribunal, competente para formular a requisição à Fazenda Pública. Constituição Federal, art. 100, § 1º. 2. Precedentes jurisprudenciais do STF e STJ. 3. Recurso sem provimento.” (BRASIL. STJ – Superior Tribunal de Justiça. ROMS 10.216-MG. Órgão Julgador: Primeira Turma. Relator: Milton Luiz Pereira. Data do Julgamento: 31 de agosto de 1999. Publicação: Boletim de Direito Municipal. N. 2. São Paulo. NDJ. Fevereiro de 2002, p. 147).

7 “As verbas consignadas ao Judiciário para pagamento de precatórios pertencem juridicamente ao Judiciário, e não ao Executivo, por expressa determinação constitucional. Nem a lei poderia fazer transposição total ou parcial dessas verbas para outras dotações.” (HARADA, 2007, p.812).

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Já seria desarrazoado exigir que proprietário de imóvel que sofreu com a prática de

confisco ilegal aguardasse o próximo exercício financeiro para receber sua indenização,

quando a Constituição exige indenização prévia; muito mais absurdo é persistir nesta

exigência na atual circunstância política, na qual se encontram imersos os precatórios.

Harada (2007, p.813-814) sintetizou a situação de impotência diante do

descumprimento das regras constitucionais para emissão de precatórios:

A leniência dos órgãos e das autoridades responsáveis, por razões que extrapolam o âmbito jurídico, tem encorajado os governantes a desviar, sistematicamente, as verbas destinadas ao pagamento de precatórios, quer para elevar as despesas de custeio, quer para aumentar despesas de investimentos na execução de obras suntuosas ou de discutível urgência. Governantes já não fazem mais segredo. Declaram publicamente que existem outras prioridades a serem atendidas, como se o cumprimento de ordem judicial não fosse a prioridade n. 1 em um Estado Democrático de Direito, em que todos, governantes e governados, devem submissão à lei. [...] O problema nunca foi de ordem financeira para um País que arrecada 37% do PIB, mas exclusivamente de ordem pública. O problema é resultado exclusivo da decisão política dos governantes de não cumprirem as sentenças judiciais condenatórias, contando com a costumeira leniência dos Poderes Legislativos e Judiciário, e sempre à espera de providências legislativas da espécie, para aliviar ou fazer desaparecer suas responsabilidades. [...] É preciso colocar um fim nesse regime de impunidade dos agentes políticos. É preciso fazer cumprir a Constituição e as leis em vigor para assegurar o regular funcionamento das instituições públicas. [...] Por isso, repito: o problema é político. Não há vontade de cumprir as decisões judiciais, como manda a constituição. Há consenso político de empurrar com a barriga os precatórios acumulados, frutos exclusivos de descumprimento de normas constitucionais e legais, que caracterizam o crime de responsabilidade e o ato de improbidade administrativa (art. 85, V, VI e VII, da CF, Lei n. 1.079/50 e Lei 8.429/92) e, no caso de não-inclusão orçamentária da verba requisitada pelo Judiciário, crime de prevaricação (art. 319 do CP).

A inércia dos Poderes Legislativo e Judiciário, diante dos desmandos e afrontas do

Poder Executivo aos comandos constitucionais, gerou a inviabilidade do sistema de

pagamentos das dívidas judiciais da Fazenda Pública, através dos precatórios. Fato que, diante

da ausência de sanções legais claras para os agentes políticos responsáveis pela omissão no

pagamento dos precatórios, gerou um ambiente que incentivava o gestor público a descumprir

a Constituição, em conduta que afeta somente o credor dos entes públicos, na forma

denunciada por Tardin (2007, p.383-385):

Emerge, assim, na sociedade a valoração pelo não cumprimento da obrigação. Quem busca justiça tem suportado a injustiça, no tocante ao lapso temporal existente entre o direito e o seu exercício, entre o fato jurídico e o gozo de suas vantagens pelo titular, beneficia tão somente o sonegador da obrigação que, escudado em razões políticas, não cumpre a obrigação jurídica.O descumprimento da ordem judicial acarreta múltipla lesão, porque além de violar o direito fundamental à dignidade, afeta o próprio conceito de ordem jurídica eficaz. A sua não incidência nas relações cidadão-Estado atinge o alicerce do Estado Democrático de Direito. Como o Estado vai impor a ordem jurídica exigida pelo interesse público se, quando figura no pólo

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passivo da relação processual, a decisão dos Tribunais o privilegia e retarda, ainda mais, a prestação jurisdicional? O não cumprimento das obrigações propaga-se como regra imperativa na sociedade. A ineficácia da prestação jurisdicional institui a mentalidade de que comportamento contrário ao ordenamento jurídico é mais vantajoso. Daí, a imoralidade e a má-fé passam a ser a tônica da sociedade, exacerbando-se o subdesenvolvimento.

Ora, se desde os contatos iniciais com a questão da “desapropriação indireta”, já se

manifestavam indícios da inconstitucionalidade do pagamento do expropriado pelo regime dos

precatórios que impõe a quitação no exercício financeiro seguinte, quando se descortina a

realidade prática, percebe-se que a injustiça praticada contra os expropriados é ainda mais

severa, posto que os mesmos, apesar de ostentarem crédito consignado na forma constitucional

contra a Fazenda Pública, ainda se sujeitam às tiranias dos chefes do Poder Executivo.

Eis que, diante da constatação de os precatórios se tornaram impagáveis em decorrência

da reiterada prática administrativa irresponsável e inconstitucional, o legislador brasileiro

tratou de editar uma solução na forma da Emenda Constitucional n. 62/2009 (EC 62/2009),

que além de manter o silêncio quanto à responsabilização dos agentes públicos tratou de criar

um regime de legitimação da injustificada impontualidade estatal. Ou seja, tratou-se de

institucionalizar o descumprimento da Constituição.

Outra não pode ser a conclusão ao se avaliar os dispositivos que compõem a referida

Emenda. Inicia-se com a reprodução do §° 15 do art. 100 da CF, cujo teor fora introduzido na

Lei Máxima, por força da edição da EC n. 62/09:

Art. 100. (omissis) § 15. Sem prejuízo do disposto neste artigo, lei complementar a esta Constituição Federal poderá estabelecer regime especial para pagamento de crédito de precatórios de Estados, Distrito Federal e Municípios, dispondo sobre vinculações à receita corrente líquida e forma e prazo de liquidação. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 62, de 2009).

Pode parecer que o dispositivo acima não se trate de norma de eficácia limitada, posto

que se atribuiu apenas a possibilidade de edição de lei complementar que regulasse o

pagamento de créditos de precatórios com base na receita corrente líquida. Entretanto, ao se

analisar outro dispositivo inserido no ADCT (Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias), também proveniente da EC n. 62/2009:

Art. 97. Até que seja editada a lei complementar de que trata o § 15 do art. 100 da Constituição Federal, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que, na data de publicação desta Emenda Constitucional, estejam em mora na quitação de precatórios vencidos, relativos às suas administrações direta e indireta, inclusive os emitidos durante o período de vigência do regime especial instituído por este artigo,

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farão esses pagamentos de acordo com as normas a seguir estabelecidas, sendo inaplicável o disposto no art. 100 desta Constituição Federal, exceto em seus §§ 2º, 3º, 9º, 10, 11, 12, 13 e 14, e sem prejuízo dos acordos de juízos conciliatórios já formalizados na data de promulgação desta Emenda Constitucional.

Assim, simplesmente, sob a escusa de se aguardar mais uma edição de lei complementar

– como tantas outras normas constitucionais de máxima importância – legislou-se no sentido

de decretar a inaplicabilidade do art. 100 da CF, com exceção dos seus §§ 2º, 3º, 9º, 10, 11,

12, 13 e 14. Eis que outra informação revela-se importante para o descortinamento do escopo

da promulgação da EC n. 64/09, dentre os parágrafos protegidos com a exceção da

aplicabilidade, não se consagrou o § 5º, que dispõe o seguinte:

Art. 100. (omissis) [...] § 5º É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos, oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente.

Assim, enquanto não for editada a lei complementar que disponha sobre a vinculação do

pagamento de precatórios à recente corrente líquida das entidades que compõem a Fazenda

Pública, sequer pode ser exigida a regra relativa ao pagamento no exercício financeiro

seguinte à apresentação dos precatórios. Acrescenta-se ainda o estatuído nos dois primeiros

parágrafos do art. 97 do ADCT:

Art. 97. [...] § 1º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios sujeitos ao regime especial de que trata este artigo optarão, por meio de ato do Poder Executivo: I - pelo depósito em conta especial do valor referido pelo § 2º deste artigo; ou II - pela adoção do regime especial pelo prazo de até 15 (quinze) anos, caso em que o percentual a ser depositado na conta especial a que se refere o § 2º deste artigo corresponderá, anualmente, ao saldo total dos precatórios devidos, acrescido do índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança e de juros simples no mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança para fins de compensação da mora, excluída a incidência de juros compensatórios, diminuído das amortizações e dividido pelo número de anos restantes no regime especial de pagamento. § 2º Para saldar os precatórios, vencidos e a vencer, pelo regime especial, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devedores depositarão mensalmente, em conta especial criada para tal fim, 1/12 (um doze avos) do valor calculado percentualmente sobre as respectivas receitas correntes líquidas, apuradas no segundo mês anterior ao mês de pagamento, [...]

Assim, através deste regime especial de pagamento de precatórios, o ente da Fazenda

Pública obriga-se a um valor percentual (1/12) de suas despesas correntes líquidas, sem que o

dever de pagamento tenha qualquer relação com o volume de condenações judiciais.

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Tamanha é a certeza, pelo próprio legislador constituinte derivado, de que a lei

complementar que restabeleceria a aplicabilidade do art. 100 da CF não será editada, que tratou de

estabelecer condições e prazos para o término do regime especial, estabelecido no art. 97 do

ADCT, acima referenciado. É o que se constata da simples leitura do art. 4° da EC n. 62/09:

Art. 4º A entidade federativa voltará a observar somente o disposto no art. 100 da Constituição Federal: I - no caso de opção pelo sistema previsto no inciso I do § 1º do art. 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, quando o valor dos precatórios devidos for inferior ao dos recursos destinados ao seu pagamento; II - no caso de opção pelo sistema previsto no inciso II do § 1º do art. 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, ao final do prazo.

Diante do exposto, as recentes inovações constitucionais colaboraram, seja por princípio

de equidade, seja pela necessidade de observância da indenização prévia, para a tese da

inaceitabilidade da resolução judicial dos confiscos ilegais com base em condenação em

perdas e danos, sujeitos ao sistema de precatório. O sistema judiciário brasileiro não pode

entregar ao titular prejudicado por esta prática inaceitável e injustificável da Administração

Pública uma resolução tão apática e ineficaz.

A legislação e a orientação jurisprudenciais pátrias encontram-se premiando os

transgressores e impingindo penúria e impotência aos prejudicados. Como se observará no tópico

seguinte, urge a modificação deste cenário, a fim de que a organização jurídico-legal estabeleça

prêmios e punições de forma a induzir comportamentos racionais acerca da mais-valia da adoção

de medidas legais. Há de se estabelecer mecanismos legais que funcionem como incentivos

negativos à prática do calote no pagamento das condenações judiciais da Fazenda Pública.

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4 DAS LIÇÕES EXTRAÍDAS DO LAW AND ECONOMICS

O Direito, por ter a função de regular a conduta humana, tem a característica de

interferir em diversos aspectos da vida social. Assim, as normas jurídicas adentram em

matérias das mais diversas das ciências humanas, dentre elas a economia. De outro lado, sob a

justificativa de assegurar a imprescindível eficácia às normas, florescem construções teóricas

que se propõem a conciliar os interesses econômicos com os valores tutelados pelo Direito.

Dentre as diversas correntes neste sentido, foca-se, no presente estudo, a Escola do Direito e

Economia de Chicago, que propõe, dentre outros objetivos, a utilização de parâmetros

econômicos para a avaliação dos preceitos jurídicos.

A publicação do texto The Problem of Social Cost, de autoria de Ronald H. Coase,

representa marco propulsor de um amplo debate acerca da repercussão das proposituras da Escola

do Direito e Economia. Em seu livro The Firm, the Law and the Market, Ronald Coase (1988),

através de uma exposição conjunta de uma multiplicidade de artigos1, compila sua dispersa

criação teórica, com o escopo de demonstrar a sistematicidade e coerência de suas ponderações e

conclusões. O referido estudioso, portanto, primeiramente, publicou artigos de forma isolada, os

quais, em face do caráter inovador e polêmico, incitaram críticas diversas e ferinas. Tais ataques

foram ordenados e rebatidos pontualmente, no capítulo inicial do livro acima citado.

Desde as palavras iniciais, Coase (1988) defende um conceito de economia que a

vincula ao estudo da escolha humana, que permitiria o emprego do enfoque econômico de

forma generalizada pelas diversas modalidades de ciências sociais. Ronald Coase (1988)

optou expressamente pela análise microeconômica, para, a partir da mesma, formular sua

teoria. Importante, assim, a transcrição da delimitação do objeto da economia, sob a ótica

microeconômica:

Economists study how the choice of consumers, in deciding which good or services to purchase, is determined by their income and the prices at which goods and services can be bought. They also study how producers decide what factors of production to use and what products and services to sell and in what quantities […].

1 The Nature of The Firm (1937), The Marginal Cost Controversy (1946) e The Problem of Social Cost (1960).

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The analysis is held together by the assumption that consumers maximize utility […] and the assumption that producers have as theirs aim to maximize profit or net income. (COASE, 1988, p. 2)

Destarte, o estudo econômico concentrar-se-ia no comportamento do consumidor e dos

produtores. De um lado, aqueles pretenderiam maximizar a utilidade obtida pela escolha

racional entre produtos e serviços, de acordo com os preços do mercado e os limites de sua

renda. De outro lado, os fornecedores que objetivariam o aumento seus ganhos financeiros,

por meio de escolha dos fatores de produção, especificação do objeto e definição da

quantidade a ser comercializada.

Para Coase (1988, p.3), como a economia concentra-se no estudo dos fatores

determinantes do ato de escolha nas relações de troca, seus enfoques deveriam ser

considerados também por outras áreas das ciências humanas, principalmente naquelas

envolvidas com a opção entre alternativas viáveis, tais como o Direito.2

4.1 A relação entre direito e economia

Para estudo do Law and Economics, torna-se necessário lançar um paralelo entre a área

jurídica e econômica. O Direito trata-se de um conhecimento aplicado3, enquanto a economia

trata-se de ciência humana. A diferença de enfoque entre as áreas citadas são relevantes. A

economia como ciência humana propõe um esforço na construção de teoria racional acerca

dos comportamentos econômicos. Pode-se identificar, ainda, o objeto real da economia como

sendo as trocas relacionais voltadas para a circulação dos recursos escassos na sociedade. A

partir da especificação deste objeto real, os economistas formulam seus conteúdos próprios

que representam o objeto de conhecimento da Economia, baseado no tratamento lógico das

relações econômicas.

O Direito, diferencialmente, consiste em conhecimento aplicado que não possui um

objeto real característico. Em engenhosa analogia, Miguel Reale (2007, p.22) refere-se ao

direito como dotado dos poderes mitológicos do rei Midas:

Diríamos que o Direito é como o rei Midas. Se na lenda grega esse monarca convertia em ouro tudo aquilo em que tocava, aniquilando-se na sua própria riqueza, o Direito, não por castigo, mas por vocação ética, converte em jurídico tudo aquilo

2 “The preoccupation of economics with the logical of choice […] may ultimately rejuvenate the study of law.”

(COASE, 1988, p. 3). 3 Utiliza-se a expressão “conhecimento aplicado” como alternativa para o termo “ciência aplicada”, para não

fomentar o debate, sem ressonância no presente estudo, acerca da cientificidade do Direito.

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em que toca, para dar-lhe mais condições de realizabilidade garantida, em harmonia com os demais valores sociais.

Como o objeto do conhecimento resulta de uma relação entre o sujeito e o objeto real,

não se pode especificar previamente o objeto do Direito. Para que determinada matéria torne-

se jurídica basta que, da mesma, surjam problemáticas desafiadoras da atividade jurídica. Ao

abordar a matéria, o Direito o fará com enfoque próprio.4 Assim, como todo fenômeno social

pode tornar-se jurídico e, como as relações econômicas são essencialmente sociais, torna-se

inevitável que o Direito aborde, sob seu enfoque, as questões de natureza econômica.

Exemplo marcante: o regime jurídico da propriedade privada.

A essência do estudo jurídico concentra-se, portanto, no seu objetivo e não no seu

amplo e variável objeto. Nas palavras de Marques Neto (2001, p.204-206):

A mais importante idéia de valor com que lidam tanto a ciência quanto sobretudo a Filosofia do Direito é a idéia de justiça. Sem dúvida, a justiça é a finalidade fundamental do Direito. [...] Para efetivar-se realmente, a justiça precisa ser conquistada passo a passo, mediante todo um processo de luta e reivindicação, que assegure a manutenção de valores já adquiridos e estejam sempre aberto à aquisição de valores novos, que possibilitem ao homem atingir a plenitude de suas potencialidades. Mas, para isso, é imprescindível que a organização da vida material da sociedade se faça de modo a reduzir ao mínimo as desigualdades, que não são nem naturais, nem necessárias e, na prática, relegam o ideal de justiça ao plano da utopia.

O Direito trata-se de ramo do conhecimento, que, ao contrário da economia, não se volta à

compreensão de determinado aspecto da natureza humana, mas sim à intervenção nas relações

humanas, a fim de favorecer a eficácia de valores éticos e do sentimento de justiça.5

Dessa forma, se a ciência econômica descreve, com base em racionalidade, as relações

econômicas, sempre que, materialmente, a economia exercer influência sobre o Direito,

encontrar-se-ia efetivamente diante da retração do campo de atuação jurídica, cujo grau será

4 “O fenômeno jurídico é a matéria-prima com que trabalha o cientista do Direito. Mas o objeto de estudo deste,

como o de qualquer outro cientista, nunca é o fato bruto, a ser simplesmente apreendido, e sim o objeto de conhecimento, construído em função do sistema teórico da ciência do Direito. Em face disso, podemos afirmar que qualquer fenômeno social é, em princípio, passível de constituir objeto de estudo da ciência do Direito: para tanto basta que ela o torne seu, isto é, que o aborde dentro dos enfoques teóricos, problemáticos e metodológicos que lhe são próprios.” (MARQUES NETO, 2001, p. 187).

5 “O princípio fundamental da justiça distributiva não aponta quem deve ou não deve ser tratado como igual ou desigual [...] a igualdade sempre é apenas uma abstração [...]. A justiça não é o princípio completo, mas o princípio específico do direito, que nos dá pauta para sua determinação conceitual: o direito é a realidade cujo sentido é servir à justiça. [...] Justiça e equidade não são valores distintos, mas caminhos diferentes para alcançar o valor uno do direito. A justiça vê o caso singular do ponto de vista da norma geral; a equidade busca no caso singular a sua própria lei que, por fim, mas também, precisa se deixar converter em uma lei geral.” (RADBRUCH, 2004, p. 50-51).

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determinado, de forma diretamente proporcional, pela intensidade da repercussão econômica

sobre o ordenamento jurídico. Nesta hipótese, o Direito concederia espaço para a observância das

regras econômicas. Em sentido contrário, se a norma jurídica representa a intervenção do Direito

em determinada matéria, tornando-a sua, quando o direito cria normas para o setor econômico, ele

interfere na lógica mercadológica, modificando a sistemática propagada pela economia.

O conceito-valor de justiça é o que permite conferir sentido e essência para o direito,

que, conforme já frisado, por ser uma matéria aplicada, necessita estar voltada para um

objetivo. Aplicando-se tal afirmação à realidade jurídica, para que o Direito possua sentido,

coerência e contornos conceituais, ele não pode se afastar do ideal da Justiça.

4.2 Da crítica ao Law and Economics

A solução para o impasse entre a eficiência econômica e a consecução de justiça não

será obtida através da predominância total de um enfoque, seja jurídico, seja econômico, mas,

sim, por intermédio de uma abordagem interdisciplinar, que favoreça a tutela tanto dos

interesses financeiros – também necessários para o desenvolvimento humano -, quanto dos

valores éticos necessários para a justiça prática e distributiva.

A Escola do Direito e Economia alega a aproximação interdisciplinar entre tais ciências,

ao defender a relevância da prévia realização de estudos econômicos acerca de matérias

jurídicas, com o objetivo de maximizar a eficácia econômica das normas legais. Cumpre

reproduzir a interpretação fornecida por Pinheiro e Saddi (2005, p.12) acerca da proposta de

Ronald Coase (1988) para a concepção de política econômica:

Ronald Coase chama atenção para o fato de que a política econômica nada mais é do que a escolha de regras e procedimentos legais e estruturas administrativas com o objetivo de maximizar o bem-estar social. Para ele, a política econômica consiste na escolha entre instituições sociais alternativas, e estas são criadas por lei ou dela dependem.

A princípio, parece extremamente louvável o objetivo da Escola de Chicago, no sentido

de, com base nas teorias econômicas, fornecer substrato para que sejam formuladas normas

que incentivem as pessoas a se comportarem de maneira que melhor atenda ao bem-estar

social. O problema que se deve apontar, desde o início da presente exposição, repousa na

definição da expressão “bem-estar social”. Para Coase (1988), principal teórico da Escola de

Chicago, as ações humanas favoreceriam o sistema como um todo, quando maximizassem o

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valor total da produção. O objetivo da política econômica6 seria, para o citado doutrinador,

oferecer incentivos aos particulares, para que estes, quando fossem decidir qual conduta

adotar, escolhessem aquilo que maiores benefícios promovesse para a economia.

Exposta a essência da teoria de Coase (1988), propõe-se a análise das considerações de

Fonseca (2007, p.23) que, ao transcrever as ideias de Adam Smith, discorre acerca do

liberalismo do século XIX:

O pensamento clássico do século XIX era voltado para a concepção do fenômeno econômico como um sistema fechado de relações que se realizavam espontaneamente no mercado. Não se admitia que o Estado emanasse leis para direcionar a atividade econômica. [...] O indivíduo, fundamentalmente livre, ao exercer a atividade econômica em seu interesse exclusivo, causaria, como conseqüência inarredável, como relação de causa e efeito, o bem da sociedade. Eis como o diz Adam Smith: ‘Cada indivíduo esforça-se continuamente por encontrar o emprego mais vantajoso para qualquer que seja o capital que detém. Na verdade, aquilo que tem em vista é o seu próprio benefício e não da sociedade. Mas o juízo da sua própria vontade leva-o, naturalmente, ou melhor, necessariamente, a preferir o emprego mais vantajoso para a sociedade.’ [...]

Quando comparadas as concepções de Coase e Smith, obtém-se importante ponto de

interseção entre suas teorias: a consideração de que a operação racional de busca da

maximização do emprego dos recursos, apesar de motivações egoístas, implicaria em

benefício social. Ora, Coase (1988) associa o bem-estar social à maximização da produção e

da circulação dos recursos, que representa objetivo egoístico do produtor ou fornecedor.

Acontece que, atualmente, revela-se inegável o fracasso do liberalismo econômico, que

conduz à concentração econômica e a monopólios. As crises econômicas do século XX e XXI,

que afetaram inclusive a maior potência mundial - os Estados Unidos da América -, incutiram

nos teóricos da ciência política a necessidade de regulação da economia pelo Estado, com

objetivos que não se limitam ao incondicional incremento dos resultados econômicos.

Isto posto, salvo para consagrar princípios econômicos, não faz sentido, em regra, o

argumento da existência de normas jurídicas com conteúdo integralmente determinado pelos

preceitos econômicos, posto que a racionalidade da ocorrência dos fenômenos econômicos

independe do Direito. Se a regra jurídica é interventiva, a existência da norma condiciona-se

ao ato de consagrar convenção acerca da conduta legal ou ilegal, de acordo com a axiologia

6“The aim of economic policy is to ensure that people, when deciding which course of action to take, choose that which brings about the best outcome to the system as a whole. As a first step, I have assumed that this is equivalent to maximizing the value of total production […].” (COASE, 1988, p. 27). E ainda: “Economic policy consists of choosing those legal rules, procedures and administrative structures which will maximize the value of production.” (COASE, 1988, p. 28)

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dos valores sociais. O Direito tem a característica de forjar seu conteúdo, de acordo com a

dinâmica de suas fontes (doutrina, jurisprudência, legislação). Bastaria, repisa-se, a omissão

nas normas jurídicas, para que determinada matéria econômica fosse conduzida pelos

preceitos da Economia, haja vista que esta ciência autônoma já estuda a dinâmica própria das

relações que constituem seu objeto de estudo.

Ao mesmo tempo em que se rechaçam o puro e simples acolhimento de teorias

econômicas no ordenamento jurídico, não se pode olvidar a abordagem interdisciplinar como

fundamental para que os construtores do Direito possam enfrentar o desafio de regulamentar tão

vasto campo das matérias sociais. Deve-se, contudo, diferenciar interdisciplinariedade da

multidisciplinariedade. Se a Escola do Direito e Economia se limitar a imposições de conteúdo

do Direito, não haverá criação, mas apenas “uma colcha de retalhos”, composta a partir de

simples e incoerente colagem entre teorias, que, provavelmente, colidirão com outras previsões

legais7. Não haveria, assim, qualquer processo criativo, mas apenas a junção, por vezes ilógica,

de enfoques diversos sobre a mesma temática.

Após tais considerações iniciais acerca da interdisciplinariedade e sua importância,

relevante a reprodução doutrinária de seus pressupostos caracterizadores:

[...] A verdadeira interdisciplinariedade exige um engajamento e uma coparticipação em um grau maior e profundidade. Ela se situa naquelas regiões do conhecimento científico que são comuns a duas ou mais disciplinas diferentes, variando apenas os enfoques teóricos específicos [...] A abordagem interdisciplinar do Direito, para ser eficaz, pressupõe um trabalho necessariamente harmonioso dos vários enfoques teóricos peculiares a cada disciplina, desde a identificação dos pontos comuns existentes no conhecimento acumulado, passando pela formulação de teorias, problemas, hipóteses, métodos e técnicas de observação e prova das hipóteses, até a elaboração da nova teoria. (MARQUES NETO, 2001, p. 188-189)

Logicamente que, em um primeiro momento - e nele apenas -, utiliza-se dos

conhecimentos acumulados de forma isolada em cada disciplina, na identificação dos pontos

comuns. Como afirma Reale (2007, p.22), no extrato doutrinário a seguir compilado, o

conteúdo jurídico extrapola a órbita econômica:

Nada justifica o entendimento do Direito como forma abstrata e vazia casada a um conceito econômico, inclusive porque o Direito está cheio de regras que disciplinam atos totalmente indiferentes e alheios a quaisquer finalidades econômicas. Como

7 “[...] as investigações científicas no domínio jurídico hão de fazer-se em harmonia com as proposições teóricas

das disciplinas afins. Note-se que não estamos propondo uma mera troca de informações, ou a consulta mais ou menos assistemática a manuais e especialistas de outras áreas. Isso resulta numa simples multidisciplinariedade, numa autêntica ‘colcha de retalhos’ de proposições de ciências diferentes, sem um referencial teórico mais amplo do qual elas se integrassem e pudessem fazer sentido.” (MARQUES NETO, 2001, p. 188).

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bem observa Acarelli, a questão é bem outra, por ser próprio do Direito receber os valores econômicos, artísticos, religiosos, etc, sujeitando-os às suas próprias estruturas e fins, tornando-se assim, jurídicos na medida e enquanto os integra em um ordenamento.

Assim, como o Direito regula questões econômicas, é principalmente nestas hipóteses

que se observa a necessidade de uma abordagem interdisciplinar. Em momento subsequente,

imperativa a confrontação conjunta de problemas e hipóteses, atividade esta voltada para a

formulação de nova teoria. Assim, na hipótese da relação entre Economia e Direito,

necessária a colaboração coordenada de enfoques econômicos e jurídicos, para conclusões

conjuntas. Se o Direito se propõe a regular a economia, necessário, em consequência, o

conhecimento da sistemática econômica pelos juristas, posto que somente com a compreensão

pode-se formular entre as diversas questões juízos de valor, preferencialmente, consensuais

entre disciplinas que interagem entre si. A viabilização de um conhecimento interdisciplinar

que resulte no enriquecimento das bases teóricas e compreensão da matéria a ser normatizada

representa pressuposto para uma produção jurídica, a qual, como produção cultural, deve estar

adequada às circunstâncias socioeconômicas de dado momento histórico. O Direito tem a

missão de compatibilizar os interesses econômicos com os outros valores sociais.

Uma prática verdadeiramente interdisciplinar volta-se para o esforço de enfoque

harmônico de áreas científicas diversas, idéia esta incompatível com submissão teórica de uma

disciplina sobre a outra. Cumpre registrar mais uma elucidativa abordagem analógica, indicada

pela doutrina especializada, entre a abordagem econômica do Direito e a técnica musical:

Desde logo, ficou evidente para nós a necessidade de fazer o duetto entre economista e jurista soar como um solo. Pode parecer simples, mas qualquer estudante de música sabe que não é somente com a técnica instrumental que se consegue tal proeza; é preciso estilo e ensaio, assim, como compreensão mútua de espíritos a inspirar qualquer compasso de um determinado tempo [...] o que se espera como ouvinte é que a melodia seja uníssona e envolvente. (PINHEIRO; SADDI, 2005, p. 26)

A justiça distributiva rechaça os ideais liberais, que propagam a não-intervenção estatal,

à medida que defende o tratamento desigual dos desiguais, justamente com o objetivo de

diminuir as desigualdades sociais.

Assim, apesar de a Escola do Direito e Economia propor que as diretrizes estatais,

consagradas no Direito, sejam voltadas para a eficiência econômica, parcela de seus teóricos

ressalta uma contraditória importância do estudioso do Direito, que “refinaria” sua atuação ao

proceder à avaliação econômica dos efeitos das normas jurídicas, na forma que se segue:

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Para Ronald Coase, Law and Economics demonstra a importância da Economia no Estudo do Direito, notadamente considerando as formulações da Nova Economia Institucional, centrada nas instituições sociais entre as quais, empresas, mercados e normas, que facilitam compreender o sistema econômico. Para Coase, quando os operadores do Direito dominarem conceitos econômicos, suplantarão os economistas na avaliação econômica dos efeitos das normas jurídicas, refinando o método de estudo do Direito. (ZYLBERSZTAJN; SZTAJN, 2005, p. 82)

Antes de supostamente refinar o método de estudo do Direito, tal postura, quando não

conjugada com outras técnicas jurídicas, favorece a tendência de que o Direito seja um

repositório de ideologia da classe economicamente dominante.

Não se pode importar teorias estrangeiras sem uma abordagem crítica, a qual implica

em reflexos elementares. Primeiramente, urge confrontação das idéias propostas e seus

objetivos com a realidade social e anseios nacionais coletivos.

O Brasil consiste em país de flagrantes contrastes sociais, cujo Estado, como se extrai da

Carta Constitucional, volta-se para a consecução da dignidade da pessoa humana, tarefa esta que

se encontra plenamente associada à oferta de condições para que a parcela societária excluída

possa gradativamente obter oportunidades de desenvolver suas potencialidades humanas.8

Há inegável relação entre a organização da vida material, decorrente de aspectos

econômicos, e a realização, efetivação, do ideal de justiça, fim primordial de todo e qualquer

ordenamento jurídico. Ora, sem crescimento econômico não há como se tutelar a dignidade da

pessoa humana. Tal constatação aumenta a relevância de um efetivo estudo, essencialmente,

interdisciplinar entre direito e economia, visto que a finalidade do ordenamento jurídico

somente será obtida através da abordagem jurídico-econômica dos problemas sociais.

Em um segundo momento, ainda na proposta de verificação das teorias estrangeiras, há

de se submeter a tese correspondente à crítica específica dirigida à identificação de

ideologias9. A objetividade da ciência, que não se opera de forma individual, mas sim como

uma experiência coletiva. Como o objeto do conhecimento decorre de uma relação entre

sujeito e objeto, no momento da elaboração ela se encontra impregnada de aspectos

8 “É imprescindível que a organização da vida material da sociedade se faça de modo a reduzir ao mínimo as

desigualdades, que não são nem naturais nem necessárias e, na prática, relegam o ideal de justiça ao plano da utopia. [...] A concretização de justiça só é possível dentro de uma estrutura social que garanta a todos os indivíduos condições para uma existência digna e livre, em que a igualdade de oportunidades não constitua mera ficção legal, mas uma realidade efetiva.” (MARQUES NETO, 2001, p. 206)

9 Emprega-se o termo “ideologia” como instrumento ou base de conhecimento, através da qual “o ponto de vista, as opiniões e as idéias de uma das classes sociais – a dominante e dirigente – torna-se o ponto de vista e a opinião de todas as classes e de toda a sociedade.” (CHAUÍ, 2006, p. 175)

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subjetivos. Assim, compete aos estudiosos da área do conhecimento pertinente à teoria a

análise crítica das proposituras científicas, esforço dialético necessário que impõe a

identificação de ideologias impregnadas na teoria, com vistas à constante melhoria ou ruptura

com os conhecimentos viciados e tendenciosos.

A ideologia favorece a disparidade entre a previsão legal e a realidade social, o que,

como já frisado, beneficia a propagação do entendimento de que a justiça não pode ser o

objetivo maior do Direito, em face do seu caráter inalcançável10. Um dos resultados da

recepção da ideologia, sob as vestes de doutrina científica, consiste na tendência de uma

conduta passiva, de conformismo, diante das diferenças sociais, uma vez que patrocina que os

seres humanos são naturalmente desiguais.

Pertinente a reprodução das considerações de Reale (2007, p.21) acerca do potencial

ideológico do Direito, ao fazer menção às teorias marxistas, na forma que se segue:

Segundo o chamado ‘materialismo histórico’, o Direito não seria senão uma superestrutura, de caráter ideológico, condicionado pela infra-estrutura econômica. É esta que, no dizer de Marx, modela a sociedade, determinado as formas de Arte, de Moral ou de Direito, em função da vontade da classe detentora dos meios de produção. Em outras palavras pobres, quem comanda as forças econômicas, através delas plasma o Estado e o Direito, apresentado suas volições em roupagens ideológicas destinadas a disfarçar a realidade dos fatos.

Não se pode admitir que, sob as escusas de formular teoria interdisciplinar entre Direito

e Economia, privilegie-se a adoção de teses que venham a favorecer a consagração de

ideologias, através do sistema jurídico. Tais palavras, em que pese as difundidas críticas à

teoria marxista, devem funcionar como alerta ao cientista do Direito, que deve estar atento às

tentativas de subverter a função do ordenamento jurídico, para que este abandone a busca da

justiça e passe a ser instrumento de perpetuação e mascaramento da dominação econômica.

Logicamente, não há como viabilizar a execução das políticas voltadas para a inclusão

social sem desenvolvimento econômico. Daí a importância do tratamento interdisciplinar

entre a ciência jurídica e a econômica.

10 “A função primordial da ideologia é ocultar e dissimular as divisões sociais e políticas, dando-lhes a aparência

de indivisão social [...] somos levados a crer que as desigualdades sociais, econômicas e políticas não são produzidas pela divisão social das classes, mas por diferenças individuais dos talentos e das capacidades, da inteligência, da força de vontade maior ou menor, etc. [...] a ideologia afirma que somos todos cidadãos e, portanto, temos os mesmos direitos sociais, econômicos, políticos e culturais. No entanto, sabemos que isso não ocorre de fato [...].” (CHAUÍ, 2006, p. 175)

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Não se deseja, neste estudo, taxar de forma crítica toda a produção da Escola do Direito

e Economia, cujos postulados são elaborados por uma vasta gama de doutrinadores. Pretende-

se, apenas, identificar parâmetros que possam identificar as teorias que falham na tentativa de

promover empreitada interdisciplinar entre Direito e Economia, principalmente, pelo fato de

sua focarem, em excesso, na eficiência dos sistemas mercadológicos. Não se pode deixar de

considerar que não é qualquer desenvolvimento econômico que se coaduna com os objetivos

do Estado Social.

O objetivo primordial de um estudo interdisciplinar de Direito e Economia deve centrar-

se na compatibilização entre o incentivo a investimentos, através do estabelecimento de um

ambiente institucional favorável, e o respeito a valores sociais, vigentes em uma coletividade

em dado momento histórico.

4.3 Da colaboração do Law and Economics para o estudo da sanção legal

Pode-se especular colaboração da racionalidade econômica, principalmente para a

fixação do elemento punitivo da norma.

A economia trata-se de ciência cujos teóricos são movidos pelo esforço de conferir

racionalidade às escolhas e à sistemática do sistema de trocas. Sendo a norma jurídica

composta de preceito e sanção, os estudos acerca da racionalidade das escolhas, em um

sistema capitalista de economia de mercado, realmente, pode conduzir a importantes

parâmetros para o legislador, a fim de que seja estabelecida penalidade que suplante qualquer

vantagem na prática do ilícito. Com este cuidado, pode-se, de forma eficaz, conduzir os

indivíduos à obediência da regra de conduta, prescrita pelo Direito. Neste sentido, registre-se

o seguinte posicionamento doutrinário:

Reagir contra o diálogo entre Direito e Economia, para condená-lo, é posição que carece de racionalidade. Isso porque, ainda que os fatos sejam considerados sob a ótica quantitativa e empírica, própria do método econômico, em nada destrói a argumentação jurídica, qualitativa. [...] trata-se de aplicação da teoria da escolha racional ao Direito (quer se trata de Direito Positivo, de usos e costumes, decisões dos Tribunais ou de normas sociais), uma forma de pensar as normas jurídicas levando em conta os prêmios e punições estão associados tanto às instituições quanto à racionalidade econômica e, por isso, devem ser considerados elementos formadores do substrato normativo. (ZYLBERSZTAJN; SZTAJN, 2005, p. 82)

Mesmo considerando-se ser inviável a classificação da conduta humana como

absolutamente racional, também se revela inegável que a racionalidade adquire relevância em

um ambiente social, cujos membros tendem a agir de acordo com os incentivos para a

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conduta.11 A possibilidade de identificação racional na análise da conduta releva a importância

da apreciação das regras da racionalidade econômica para a estipulação de prêmios e punições

nas normas jurídicas. Neste sentido, a doutrina de Fonseca (2007, p.30-31):

Um dos aspectos mais importantes do estudo do Direito é o relativo à sanção. Pode esta ser vista como a garantia de cumprimento conteúdo da norma jurídica. Esta garantia pode revestir de uma penalidade, mas pode também, e em mais numerosos casos, manifestar-se como premiação [...] As metas econômicas são mais eficazmente alcançadas através da imposição de sanções premiais. Aquelas empresas que aderem aos objetivos estabelecidos pelo Governo são premiadas com a concessão de subsídios fiscais, de empréstimos favorecidos, etc.

Revela-se, assim, a possibilidade de estabelecimento de sanções premiais, com o

objetivo de conferir maior efetividade às normas de conduta, tarefa esta, na qual o legislador,

para a correta dosimetria dos incentivos, pode ser auxiliado através da lógica econômica.

A distinção mais conhecida entre a visão positivista da Escola de Chicago, descritiva dos fenômenos em relação à escola de Yale, conhecida como normativista ou prescritiva, está em seu escopo, consistente em propor mudanças visando ao aperfeiçoamento das normas, vale dizer, formular normas que produzam os incentivos para que as pessoas se comportem da maneira que melhor atenda aos interesses sociais. (ZYLBERSZTAJN; SZTAJN, 2005, p. 77)

Cumpre afirmar, uma vez mais, que, em face da subjetividade e da complexidade da

natureza humana, não se pode afirmar categoricamente que as preferências comportamentais

humanas são sempre definidas apenas por critérios lógicos ou racionais. Certo que, apesar da

economia tratar de forma racional as relações de troca, na prática, as opções humanas no mercado

são amplamente influenciadas pela emoção. Também é certo que a racionalidade é mais

preponderante quando o agente de escolha tem acesso às informações necessárias para a decisão.

4.4 Da colaboração do Law and Economics para o estudo da desapropriação indireta

No que cerne ao tratamento jurídico nacional para a “desapropriação indireta”, percebe-

se a total ausência de bases normativas. Como o Poder Judiciário não pode ser omitir da

avaliação de celeumas, sob a justificativa de lacunas na lei, coube aos jurisconsultos a

formulação da solução legal para estes casos de confisco ilegal.

Para a desapropriação, contudo, o ordenamento jurídico brasileiro possui regramento

próprio e expresso através do vigente Decreto-lei 3365/41. Neste ponto da exposição, revela-

11“Whether men are rational or not deciding to walk across a dangerous thoroughfare to reach a certain

restaurant, we can be sure that fewer will do so the more dangerous it becomes.” (COASE, 1988, p. 4)

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se suficiente adiantar que, caso a autoridade pública competente decida realizar o

procedimento regular de desapropriação, ela estará sujeita à regra da prévia indenização, em

respeito ao ditame constitucional do art. 5°, XXIV, da Lei Máxima. Em contrapartida, se a

mesma autoridade administrativa optar pelo esbulho administrativo, seguido de confisco

ilegal, a celeuma será levada ao Poder Judiciário, que, de acordo com a construção

jurisprudencial já avaliada, condenará a entidade estatal em perdas e danos. Relevante apontar

que esta dívida somente será paga quando a ação transitar em julgado e forem quitados todos

os débitos anteriores na lista cronológica de precatórios.

Já se dedicaram tópicos deste estudo à crítica da teoria do Direito e Economia. De

qualquer forma, também já se reconheceu a relevância dos esforços teóricos relativos à

aplicação de noções econômicas para a avaliação dos prêmios e sanções legais como

mecanismos de indução de condutas racionais. Eis a maior colaboração que as teorias do

Direito e Economia podem ofertar para o estudo do confisco ilegal: a análise do tratamento

jurídico da desapropriação e do confisco ilegal, para que se conclua se as sanções ou

imposições legais fornecem o desincentivo à prática da transgressão ao ordenamento jurídico.

Aplicando-se a teoria do Direito e Economia no estudo das sanções para os casos de

desapropriação e confisco ilegal, pode-se induzir à conclusão de que o sistema jurídico pátrio

incentiva a transgressão legal. Ora, se o agente de decisão na estrutura estatal agir com

racionalidade econômica, na escolha dos efeitos jurídicos de suas decisões, ele, fatalmente,

inclinar-se-á pela tomada efetiva do bem, sem observância ao devido processo legal de

desapropriação. Em análise comparativa com os rigores formais do procedimento

desapropriatório, no confisco ilegal, a Administração Pública pode desfrutar: a) imediatismo do

apossamento; b) dispensa de procedimentos administrativos formais; c) dispensa da obrigação

do pagamento prévio; d) submissão do crédito decorrente do confisco ilegal ao sistema de

precatórios. Deve-se considerar ainda que, principalmente em nível estadual, os débitos de

precatório de uma determinada gestão política, geralmente, não são pagos no mesmo mandato.

Assim, pode-se atribuir a conta desta postura administrativa ao sucessor político.

Já se asseverou que a análise econômica do incentivo às condutas administrativas deriva

do pressuposto de que o agente de decisão age com racionalidade, e que nem sempre a ação

humana é racional. De qualquer forma, quando se reporta aos agentes da Administração

Pública, não se pode negar que a probabilidade de decisões racionais aumenta, em comparação

com a generalidade dos indivíduos da sociedade. Os agentes estatais possuem condições

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favoráveis, em razão do aparato de recursos humanos e materiais, à adoção de medidas

racionais. Tal fato aumenta, ainda mais, a repercussão do Direito e Economia para o estudo das

sanções como instrumentos de indução a condutas administrativas, principalmente em matéria

tão claros reflexos e pertinências econômicas quanto a propriedade e sua expropriação.

Tais conclusões denunciam a necessidade de revisão do entendimento jurisprudencial

acerca da abordagem do confisco ilegal. Deve-se pautar o esforço revisional no sentido de

conduzir os agentes administrativos à conclusão racional de que o cumprimento das regras

desapropriatórias é mais vantajoso do que a irregular prática, seja do esbulho administrativo,

seja do confisco ilegal. Eis mais um dos desafios deste estudo, que além de demonstrar a

incoerência do tratamento jurídico das “desapropriações indiretas”, dispõe-se a ofertar solução

que represente incentivo negativo à prática desta irregularidade administrativa.

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5 DA APLICABILIDADE DA REGRA DOS PRECATÓRIOS PARA INDENIZAÇÕES ESTATAIS EM DESAPROPRIAÇÕES INDIRETAS

Caso base na atual política de precatórios, não se pode tolerar a exigência dos mesmos

para o pagamento de “desapropriação indireta”. Mesmo que se regulasse a expedição e

pagamento dos precatórios no Brasil, não se pode admitir na “desapropriação indireta” a

espera do pagamento, sob pena de se macular a Constituição (art. 5º, XXIV).

A atual situação do pagamento dos precatórios somente ressalta o absurdo jurídico de se

impor o pagamento de indenização por “desapropriação indireta”, através da espera na ordem

cronológica. Não se venha discutir a inteligência da expressão indenização prévia. Qualquer

que seja a interpretação, não se pode negar que antes de se assenhorear do bem, o Poder

Público deve promover a indenização do titular. Neste sentido:

Quando a Constituição fala em prévia indenização, quer seja em dinheiro ou em títulos, não está fazendo nenhuma recomendação ao Poder Expropriante e sim determinando que este prévio pagamento é elemento indispensável para configurar a desapropriação, sem o qual torna o ato nulo de pleno direito. Trata-se de uma condição suspensiva para que o direito de propriedade do particular ceda ao interesse público. A desapropriação indireta não respeita o princípio da prévia indenização e do prévio procedimento administrativo, e se o expropriado não for diligente, ainda perderá o direito à indenização ulterior em razão da prescrição qüinqüenal. (CARVALHO, 2005/2006, p. 122)

O cenário agravou-se ainda mais com a recente promulgação da emenda constitucional

que alterou o regime constitucional para os precatórios, conforme abordado em tópico próprio.

As verbas, a título de danos, lucros cessantes ou juros, calculadas com base em

circunstância ou no decurso de tempo (prazo) posteriores à efetivação da perda da propriedade,

são decorrentes de prática irregular e não de implicações diretas do instituto da desapropriação e

devem ser incluídas na ordem de precatório, pois fogem da previsão constitucional de defesa da

propriedade contra desapropriação sem justa e prévia indenização do valor do imóvel (art. 5º,

XXIV, CF). Acontece que se deve atentar para a coerência de que a defesa acerca da exclusão

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da “desapropriação indireta” da sistemática de precatório justifica-se na defesa da propriedade.

Assevera-se que apenas o valor venal do imóvel deve merecer tal tratamento excepcional.

Com a ocupação irregular do imóvel, diversos danos ou prejuízos podem ser suportados

pelo titular, mas a apuração da responsabilidade e dos montantes indenizatórios por esta

ilegalidade deve ser adimplida da mesma forma que qualquer ação indenizatória contra a

Fazenda Pública, através do sistema de precatórios. O pagamento fora dos precatórios

somente se legitima naquilo que seus credores da “desapropriação indireta” forem diferentes

dos demais que aguardam a respectiva ordem cronológica de pagamentos públicos. As verbas

apuradas em juízo e que sejam decorrentes das irregularidades da “desapropriação indireta”

devem ser pagas de forma a respeitar a isonomia dos credores.

Não se pode tolerar é que o valor do imóvel que já se insere na órbita pública também

tenha que esperar tal formalidade. O que se admite de acréscimo nominal são as quantias

relativas à atualização monetária, para que o valor do imóvel não seja consumido pelas

variações da moeda nacional. Tratar diferencialmente os desiguais também se trata de medida

de isonomia.

O raciocínio acima pode ser aplicado como regra. No caso da “desapropriação indireta”,

a aplicação da isonomia, ao contrário de justificar o precatório, afasta-o. No geral, justifica-se

a não penhora dos bens públicos por estarem eles à disposição de serviços públicos. Na

desapropriação indireta, o bem do particular é afetado pelo interesse público, sem se observar

o devido processo legal. A regra constitucional relativa aos precatórios deve ser analisada em

conjunto com aquela que protege os titulares das propriedades e lhes atribui o direito à prévia

e justa indenização, na forma da seguinte base doutrinária:

O art. 100, da CRFB/88, deve ser inserido dentro de um sistema jurídico, sendo impossível admitir uma interpretação isolada do mesmo. O mencionado dispositivo deve ser interpretado levando-se em consideração o preâmbulo da Constituição de 1988, onde menciona como dever do Estado resolver as controvérsias pacificamente. Possibilitando, assim, que a prestação jurisdicional tenha como objetivo fundamental proporcionar a paz ao cidadão [...] Nesse contexto, não é absurdo o pensamento de que o julgado o conceba somente como uma regra constitucional desprovida de amparo principiológico e ideológico. Assim, pode ele determinar o arresto das verbas públicas, excluídas àquelas destinadas ao pagamento dos servidores e à saúde pública, até que sejam pagos os créditos oriundos de decisões judiciais. (TARDIN, 2007, p.389-390)

A autora do texto acima se utiliza das considerações compiladas como forma de lançar

questionamento acerca da sustentabilidade do próprio precatório. No presente estudo,

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pretende-se apenas questionar a aplicação desta regra para os casos denominados de

“desapropriação indireta”, justamente, com base na interpretação sistemática da Constituição.

Defende-se que, diante da previsão constitucional, o precatório ainda deve ser a regra para o

pagamento de condenações pecuniárias em desfavor da Fazenda Pública.

Deve-se interpretar o art. 100 em conjunto com o art. 5, XXIV, ambos da CF/88. Neste

ponto, concorda-se com o extrato a seguir compilado: “Destarte, somente o próprio poder

constituinte poderia excepcionar o próprio regime especial de pagamento que criou, sendo

certo que ainda assim, tal oportunidade somente seria válida para efeito de proteção a outros

relevantes valores constitucionais.” (MACHADO JÚNIOR, 2006, p.45)

Certo que a desapropriação é, por essência, uma exceção ao princípio constitucional de

defesa da propriedade, um instrumento de manifestação da supremacia do interesse público

sobre o particular. Dúvida pode existir acerca da forma de harmonização entre a exigência de

indenização prévia e em dinheiro e o sistema de pagamento por precatório. Registre-se o

seguinte esforço doutrinário:

Como compatibiliza a prévia e justa indenização em dinheiro com a regra do precatório. Quando a indenização objeto da desapropriação se constitui em dinheiro, e não em títulos da dívida pública, esta se compõe de duas parcelas: uma parte que se insere no depósito judicial (valor estimado ou ofertado pelo ente público expropriante), quando o ente público for imitido provisoriamente na posse do bem, outra, a parcela complementar entre àquela, consistente na diferença fixada na sentença e o valor ofertado em depósito, somado os acréscimos legais. A primeira parcela (depósito judicial) poderá ser levantado pelo interessado por simples alvará judicial, agora a segunda parcela, objeto da sentença judicial deverá ser implementada via precatório judicial (art. 100, da CF/88). Acrescente-se que, ainda que não haja imissão na posse, com a sentença judicial, o interessado poderá levantar até 80% do valor depositado pelo ente público (art. 34 e p.u. do DL 3.365/41). A obrigatoriedade do precatório neste caso (indenização em dinheiro) foi reconhecida pelo STJ e pelo próprio STF quando declarou inconstitucional o art. 14 da LC n. 76/93 (desapropriação para fins de reforma agrária) que obrigava o expropriante depositar em juízo já o valor da indenização, vez que feria o art. 100 da CF/88. Portanto, conclui-se que apesar da CF/88 dizer que a indenização, em algumas hipóteses, será prévia e em dinheiro, tal circunstância não dispensa a regra do precatório previsto no art. 100 do mesmo texto normativo. (MACHADO JÚNIOR, 2006, p.46)

Na desapropriação regular, em que existe debate acerca do valor indenizatório, o valor

estimado pela Administração Pública deve ser depositado em juízo e seu levantamento não se

encontra sujeito a precatório. Assim, como condicionar o recebimento de todo o montante

através de precatório em procedimento em que os agentes públicos agiram de forma ilegal?

Trata-se de um incentivo à prática irregular. Através de juízo de facilitações, pode o gestor

público optar por não realizar o procedimento legal para desapropriação, a fim de remeter o

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pagamento da dívida em sua integralidade, através do sistema de precatório. A atual

abordagem pretoriana nacional para as desapropriações indiretas representa perigoso

incentivo a esta prática ilegal que desafia o Estado Democrático de Direito.

Mas como em qualquer excepcionalidade, quem a exercer cumpre seguir as

formalidades que justificam sua prática. Na “desapropriação indireta”, não se atenta para tal

fato. Trata-se de praticar uma exceção à inviolabilidade da propriedade privada, sem que

sejam observados os procedimentos legais imperativos. Nesta hipótese, não se pode impor a

regra constitucional dos precatórios.

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6 SOLUÇÃO PROCESSUAL PROPOSTA PARA A “DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA”, DE ACORDO COM O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E O DECRETO-LEI 3365/41

As expropriações indiretas são resolvidas através da anulação dos atos estatais ilegais

ou inconstitucionais, de forma conjugada com a indenização por perdas e danos. Os casos de

esbulho administrativo são solucionados judicialmente através do recurso às ações

possessórias. Nenhum destes casos impõe desafios procedimentais para o enfrentamento

judicial das celeumas decorrentes. O mesmo não se pode aduzir acerca do confisco ilegal.

Diante de casos concretos, a parte prejudicada não deve ingressar com perdas e danos

(indenização) contra o agente promotor da irregularidade. A solução processual que se propõe

trata-se de ação de obrigação de fazer com tutela específica (arts. 271 e 461, ambos do CPC),

em razão de atos do Poder Público, no sentido de impelir judicialmente os agentes

responsáveis a realizarem o regular procedimento desapropriatório.

Assim, utilizar-se-ia de ação ordinária para provar a irregular supressão da propriedade

e requerer ao Poder Judiciário que determine ao agente público competente que seja obrigado

a converter o confisco ilegal em desapropriação regular. Logicamente, que, ainda que se

procedesse desta forma, não se estaria satisfazendo na íntegra o art. 5°, XXIV, da

Constituição, à medida que a indenização não seria prévia. Para remediar tal fato, a

indenização por perdas e danos consiste em única forma de compensar o irregular lapso

temporal entre a efetiva perda da propriedade e a indenização. É evidente que tal demora

acarreta prejuízos ao titular do direito expropriado e este dano deve ser ressarcido pelo agente

causador da ilegalidade.

Destarte, o titular de direito de propriedade afetado por confisco ilegal deve manejar

Ação Ordinária de Conversão de Confisco Ilegal em Desapropriação (Obrigação de Fazer),

cumulada com Indenização por Perdas e Danos.

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6.1 Obrigação de fazer contra a Fazenda Pública nos mesmos moldes aceitos pela atual jurisprudência

O confisco ilegal ocorre, dentre outras hipóteses, em decorrência de conduta omissiva

do agente responsável em promover o regular processo de desapropriação.

Já se relatou, no presente estudo, que a jurisprudência brasileira posiciona-se, de forma

uníssona, pela resolução dos casos de confisco ilegal através de perdas e danos. Também já se

adiantou que tal entendimento jurisprudencial conduz ao pagamento através de precatório,

que, por sua vez, implica em descumprimento à regra constitucional da prévia indenização

para as desapropriações.

De qualquer forma, a crítica isolada acerca do tratamento jurisprudencial não colabora

para a resolução de um problema prático de como abordar judicialmente os casos de confisco

ilegal de bens.

Poder-se-ia elaborar interpretação dos dispositivos constitucionais (arts. 5°, XXIV, e

100, ambos da Constituição), de forma a demonstrar que a desapropriação consistiria em

exceção para a regra dos precatórios. Mas, na verdade, defende-se no presente caso que os

apossamentos administrativos de bens afetados pelo serviço público caracterizam-se, na

verdade, como confisco ilegal, e não como desapropriação. Destarte, a princípio poderia

parecer contraditória a recusa do enquadramento do caso sub examine como desapropriação,

para, em ato contínuo, aduzir o regime jurídico da desapropriação, para defesa dos titulares

afetados. Não se pode olvidar, contudo, que a apontada solução para a resolução dos casos de

confisco ilegal consiste justamente em sua conversão judicial em desapropriação. Certo que o

Poder Judiciário não pode interferir na discricionariedade acerca da utilização pública de um

bem, mas, no caso do confisco ilegal, a Administração Pública já o está empregando para o

serviço público.

Desta forma, reitera-se, propõe-se, em reverência à coerência da classificação do

confisco ilegal, a busca de solução processual, através da qual se converta tal situação ilegal

em regular desapropriação, através de ação que garanta resultado prático equivalente aos

efeitos desapropriatórios.

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A matéria relativa à tutela específica de obrigação de fazer encontra expressa previsão

normativa no Código de Processo Civil (CPC) brasileiro, em seu art. 4611.

O fato de tais regras estarem inseridas em diploma, marcadamente, de Direito Privado

poderia incitar questionamentos acerca da aplicabilidade das mesmas em celeumas em face da

Fazenda Pública. Não se deve deixar de registrar, inclusive, que o próprio CPC prevê

procedimento especial para execução contra os entes de direito público (arts. 730 e seguintes).

Todavia, a jurisprudência nacional consagra, pacificamente, a possibilidade de arguição

dos comandos legais pertinentes à tutela específica da obrigação de fazer, em demandas em

face da Fazenda Pública. Inicia-se a análise da consagração jurisprudencial deste

entendimento, com a exposição do seguinte registro jurisprudencial:

PROCESSO CIVIL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. OBRIGAÇÕES DE FAZER E ENTREGAR COISA. COMINAÇÃO DE MULTA DIÁRIA. CABIMENTO, INCLUSIVE CONTRA A FAZENDA PÚBLICA, SUJEITO A JUÍZO DE ADEQUAÇÃO, COMPATIBILIDADE E NECESSIDADE. 1. É cabível, mesmo contra a Fazenda Pública, a cominação de multa diária (astreintes) como meio executivo para cumprimento de obrigação de fazer ou entregar coisa (arts. 461 e 461A do CPC). Todavia, sua aplicação está sujeita a juízo de adequação, compatibilidade e necessidade, podendo ser dispensada ante a existência de outros meios considerados mais eficazes (§ 4º do art. 461 do CPC). Precedentes: Resp 494.886/RS, 5ª Turma, Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ de 28.06.2004 e Resp 556.825/RS, 5ª Turma, Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ de 06.12.2004). 2. Incabível, em sede de recurso especial, o reexame das circunstâncias fáticas da demanda (Súmula 7/STJ). 3. Embargos de declaração acolhidos para, atribuindo-lhes efeitos infringentes, negar provimento ao recurso especial. (BRASIL. STJ – Superior Tribunal de Justiça. EDRESP 200601335074. EDRESP - Embargos de declaração no recurso especial – 853738. Órgão Julgador: Primeira Turma. Relator: Teori Albino Zavascki. Publicação: DJ data: 15/03/2007 PG: 00283) 2

1 “Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a

tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.” (Redação dada pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)

2 No mesmo sentido: RECURSO ESPECIAL – ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – ENTE PÚBLICO – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS – OBRIGAÇÃO DE DAR – FIXAÇÃO DE MULTA DIÁRIA – CABIMENTO – PRECEDENTES – ANTECIPAÇÃO DE TUTELA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA – POSSIBILIDADE. 1 - A hipótese dos autos cuida da imposição de multa diária ao Estado do Rio Grande do Sul pelo não-cumprimento de obrigação de fornecer medicamentos à autora. Não se trata, portanto, de obrigação de fazer, mas de obrigação de dar. 2 - O artigo 461-A, § 3º, do CPC, estendeu a previsão de possibilidade de imposição de multa diária ao réu por atraso na obrigação de fazer (art. 461, § 4º) à obrigação de entrega de coisa. 3 - Na espécie, deve ser aplicado idêntico raciocínio adotado por esta Corte no que se refere às obrigações de fazer pela Fazenda Pública, ou seja, de que "o juiz, de ofício ou a requerimento da parte, pode fixar as denominadas astreintes contra a Fazenda Pública, com o objetivo de forçá-la ao adimplemento da obrigação de fazer no prazo estipulado" (AgRg no REsp 554.776/SP, Rel. Min. Paulo Medina, DJ 6.10.2003). 4 - Correto o Juízo de primeira instância ao condenar o Estado do Rio Grande do Sul a fornecer os medicamentos imprescindíveis à autora, portadora de problemas crônicos de visão, sob pena de imposição de multa diária no valor de R$ 300,00. Recurso especial provido, para condenar o Estado do Rio Grande do Sul a fornecer os medicamentos imprescindíveis à autora, sob pena de imposição da multa diária já fixada em primeira instância.

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Se a viabilidade jurídica de ações de obrigação de fazer contra a Fazenda Pública não

suscita maiores dúvidas na prática forense, não se pode aduzir o mesmo com relação aos

instrumentos ou mecanismos de imposição do dever respectivo. A legislação processual prevê

expressamente recursos, à disposição do magistrado, que podem garantir a eficácia de decisão

que consista em ordem de fazer ou não fazer. A questão consiste em refletir acerca dos limites

da aplicação destas medidas contra agentes públicos. Na jurisprudência acima referenciada, os

membros do Superior Tribunal de Justiça se manifestam pela possibilidade de imposição de

multa diária como forma de conduzir o Estado-devedor à prática obrigacional. Com isso,

demonstra-se que as cortes nacionais também vêm consagrando a aplicabilidade do § 4º do

art. 461 do CPC, em feitos movidos contra a Fazenda Pública,.3

Além da imposição de multa diária, o Código de Ritos Civil consagra outros meios de

indução ao cumprimento de obrigação de fazer, na forma do § 5º do art. 4614

Percebe-se que o legislador nacional formulou rol exemplificativo (busca e apreensão,

remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras, impedimento de atividade nociva e

requisição de força policial), conferindo ao magistrado competente a adoção das medidas

judiciais necessárias para a efetividade da ordem jurisdicional. De qualquer forma, os

princípios que norteiam o Direito Público impõem limites à adoção de medidas contra a

Fazenda Pública. A tensão entre a garantia de eficácia da decisão judicial e a tutela do

interesse público é resolvida nos casos concretos pelo próprio Poder Judiciário. Neste sentido,

registre-se o seguinte julgamento:

(BRASIL. STJ – Superior Tribunal de Justiça. RESP 200601336387. RESP - Recurso especial – 852084. Órgão Julgador: Segunda Turma. Relator: Humberto Martins. Publicação: DJ data: 31/08/2006 PG: 00312)

PROCESSUAL CIVIL - POSSIBILIDADE DE SE AFIRMAR A FALTA DE PREQUESTIONAMENTO E AFASTAR INDICAÇÃO DE AFRONTA AO ART. 535 DO CPC - ANTECIPAÇÃO DE TUTELA – ART. 273 DO CPC – SÚMULA 7/STJ - ASTREINTES – CABIMENTO – ART. 461, § 5º, DO CPC. 1. [...] 4. Ainda que assim não fosse, oportuno ressaltar o entendimento deste relator, no tocante ao cabimento de astreintes contra a Fazenda Pública, com o objetivo de forçá-la ao adimplemento da obrigação de fazer no prazo estipulado. Agravo regimental improvido. (BRASIL. STJ – Superior Tribunal de Justiça. AGRESP 200301418260. AGRESP - Agravo regimental no recurso especial – 572601. Órgão Julgador: Segunda Turma. Relator: Humberto Martins. Publicação: DJ data: 14/08/2007 PG: 00281)

3 “Art. 461. [...] § 4o O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito.” (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)

4 “Art. 461. [...]§ 4o O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito.” (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)

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RECURSO ESPECIAL. MEDICAMENTO ESPECÍFICO. RISCO DE MORTE. NÃO FORNECIMENTO PELO ESTADO. BLOQUEIO DE VALORES NECESSÁRIOS À AQUISIÇÃO. POSSIBILIDADE. ART. 461, § 5º, DO CPC. PROVIMENTO DO RECURSO. 1. Recurso especial interposto por Karem Patrícia Maia Gomes, pelas letras "a" e "c" da permissão constitucional contra acórdão proferido em sede de agravo de instrumento e assim ementado (fl. 107): AGRAVO DE INSTRUMENTO CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. SAÚDE PÚBLICA. MEDICAMENTO EXCEPCIONAIS. DIABETES TIPO 1. PEDIDO DE BLOQUEIO DE VALORES INDEFERIMENTO NA ORIGEM. INTERLOCUTÓRIA CORRETA. POSICIONAMENTO RESSALVADO. IMPOSSIBILIDADE. DO BLOQUEIO DE VALORES. EFEITO SUSPENSIVO ATIVO NÃO-CONCEDIDO. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO.Os fundamentos recursais indicam, em síntese, que: a) o acórdão infringiu o artigo 461, §§ 4º e 5º ao entender inaplicável à Fazenda Pública o depósito ou o seqüestro das verbas para cobrir os valores necessários ao fornecimento dos medicamentos necessários à saúde da recorrente; b) a impenhorabilidade dos bens públicos deve ser mitigada devendo ser imposta a medida coercitiva pleiteada pela recorrente ao recorrido para que este cumpra obrigação de fazer determinada pelo Juízo; c) o Superior Tribunal Justiça tem posicionamento formado no sentido da possibilidade de se proceder ao bloqueio de contas públicas para o cumprimento de determinação judicial de fornecimento de medicamento necessário no tratamento de moléstias graves. Contra-razões pelo desprovimento do recurso. 2. Em situações reconhecidamente excepcionais, tais como a que se refere ao urgente fornecimento de medicação, sob risco de perecimento da própria vida, a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça é reiterada no sentido do cabimento do bloqueio de valores diretamente na conta corrente do Ente Público. No caso particular, os autos noticiam que, não obstante a determinação judicial, o Estado do Rio Grande do Sul não forneceu os medicamentos, encontrando-se a recorrente, desde agosto de 2005, sem receber o tratamento e em sério risco de morte, sem obter do Estado sequer a insulina comum, motivo pelo qual postulou o bloqueio dos valores necessários à sua aquisição por seis meses, o que lhe foi indeferido, propiciando a interposição de agravo de instrumento com pedido de efeito suspensivo, o qual, também, foi denegado, sendo, no mérito, desprovido o recurso. 3. Com efeito, o art. 461, § 5º, do CPC, ao referir que o juiz poderá, de ofício ou a requerimento da parte, para a efetivação da tutela específica ou para obtenção do resultado prático equivalente, ‘determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas ou cousas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial’, apenas previu algumas medidas cabíveis na espécie, não sendo, contudo, taxativa a sua enumeração. De tal maneira, é permitido ao julgador, à vista das circunstâncias do caso apreciado, buscar o modo mais adequado para tornar efetiva a tutela almejada, tendo em vista o fim da norma e a impossibilidade de previsão legal de todas as hipóteses fáticas. É possível, pois, em casos como o presente, o bloqueio de contas públicas. 4. Recurso provido para determinar o bloqueio dos valores, na conta do recorrido, e sua imediata liberação para que a recorrente possa adquirir a medicação de que necessita. (BRASIL. STJ – Superior Tribunal de Justiça. RESP 200602115124. RESP -Recurso especial – 890441. Órgão Julgador: Primeira Turma. Relator: José Delgado. Publicação: DJ data: 02/04/2007 PG: 00257 LEXSTJ vol.: 00213 PG: 00242)5

5 No mesmo sentido: PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. TUTELA ANTECIPADA. MEIOS DE

COERÇÃO AO DEVEDOR (CPC, ARTS. 273, §3º E 461, §5º). FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PELO ESTADO. BLOQUEIO DE VERBAS PÚBLICAS. OFENSA AO ART. 535. INOCORRÊNCIA. CONFLITO ENTRE A URGÊNCIA NA AQUISIÇÃO DO MEDICAMENTO E O SISTEMA DE PAGAMENTO DAS CONDENAÇÕES JUDICIAIS PELA FAZENDA. PREVALÊNCIA DA ESSENCIALIDADE DO DIREITO À SAÚDE SOBRE OS INTERESSES FINANCEIROS DO ESTADO. 1. Não podem ser conhecidas as contra-razões do recorrido, pois não contêm a assinatura do procurador. 2. Não viola o artigo 535 do CPC, nem importa em negativa de prestação jurisdicional o acórdão que adota fundamentação suficiente para decidir de modo integral a controvérsia posta. 3. ‘Em se tratando da Fazenda

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A excepcionalidade a que se faz referência na decisão acima se refere ao bloqueio de

contas diretamente dos cofres públicos, fato este que representa mitigação da regra do

pagamento por precatórios - art. 100, da Carta Magna. Assim, diante da recusa do órgão ou

entidade estatal no sentido de cumprir determinação judicial relativa à obrigação de fazer,

poder-se-ia adotar como medida excepcional o sequestro de valores em contas públicas.

Diante da ilustrativa mostra de jurisprudência, que reflete a tendência do Poder

Judiciário nacional, a possibilidade de sujeição da Fazenda Pública a feitos judiciais no

sentido de impor o cumprimento de obrigação de fazer é tratada como regra no Direito pátrio.

Cumpre aplicar tal conclusão ao objeto do presente estudo: no confisco ilegal, os gestores

públicos, apesar de possuírem o dever de atender ao trâmite previsto para a desapropriação

descrito no ordenamento jurídico, operam na subtração da propriedade, sem respeito aos

direitos do titular. Diante de caso concreto, deve-se manejar ação de obrigação de fazer, no

sentido de compelir o responsável à observância do devido processo de desapropriação.

Acontece que, como já frisado, os princípios que protegem a atuação estatal conduzem a

amplo debate acerca dos limites das medidas adotadas pelo Poder Judiciário para impor a

prática obrigacional. Nos casos, usualmente identificados como “desapropriação indireta”, o

desafio consiste em, através de feito judicial, oferecer ao titular de direito de propriedade

resultado prático equivalente ao cumprimento voluntário da obrigação estatal, sem que as

medidas aplicadas impliquem em transgressão aos princípios de Direito Público.

Na jurisprudência nacional, registra-se esforço de solução semelhante ao que ora se

propõe, para casos de omissão no fornecimento de medicamentos ou tratamento de saúde por

órgãos e entidades públicas. Neste sentido:

Pública, qualquer obrigação de pagar quantia, ainda que decorrente da conversão de obrigação de fazer ou de entregar coisa, está sujeita a rito próprio (CPC, art. 730 do CPC e CF, art. 100 da CF), que não prevê, salvo excepcionalmente (v.g., desrespeito à ordem de pagamento dos precatórios judiciários), a possibilidade de execução direta por expropriação mediante seqüestro de dinheiro ou de qualquer outro bem público, que são impenhoráveis. 4. Todavia, em situações de inconciliável conflito entre o direito fundamental à saúde e o regime de impenhorabilidade dos bens públicos, prevalece o primeiro sobre o segundo. Sendo urgente e impostergável a aquisição do medicamento, sob pena de grave comprometimento da saúde do demandante, não se pode ter por ilegítima, ante a omissão do agente estatal responsável, a determinação judicial do bloqueio de verbas públicas como meio de efetivação do direito prevalente.’ (Precedente: Resp n.º 840.912, 1ª T. Rel. Min. Teori Albino Zavascki, publicado em 23/04/2007). 5. Recurso especial improvido. (BRASIL. STJ – Superior Tribunal de Justiça. RESP 200602459934. RESP - Recurso especial – 900458. Órgão Julgador: Primeira Turma. Relator: Teori Albino Zavascki. DJ data: 13/08/2007 PG: 00338)

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[...] RECURSO ESPECIAL. TRATAMENTO DE SAÚDE E FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS A NECESSITADO. OBRIGAÇÃO DE FAZER. FAZENDA PÚBLICA. INADIMPLEMENTO. COMINAÇÃO DE MULTA DIÁRIA. ASTREINTES. [...]. 1. Ação Ordinária c/c pedido de tutela antecipada ajuizada em face do Estado do Rio Grande Sul, objetivando o fornecimento de medicamento de uso contínuo e urgente a paciente sem condição de adquirí-lo. [...] 6. Depreende-se do art. 461, §5.º do CPC, que o legislador, ao possibilitar ao juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas assecuratórias como a ‘imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial’, não o fez de forma taxativa, mas sim exemplificativa, pelo que, in casu, o seqüestro ou bloqueio da verba necessária à aquisição de medicamento objeto da tutela indeferida, providência excepcional adotada em face da urgência e imprescindibilidade da prestação dos mesmos, revela-se medida legítima, válida e razoável. 7. Deveras, é lícito ao julgador, à vista das circunstâncias do caso concreto, aferir o modo mais adequado para tornar efetiva a tutela, tendo em vista o fim da norma e a impossibilidade de previsão legal de todas as hipóteses fáticas. Máxime diante de situação fática, na qual a desídia do ente estatal, frente ao comando judicial emitido, pode resultar em grave lesão à saúde ou mesmo por em risco a vida do demandante. [...] 9. A Constituição não é ornamental, não se resume a um museu de princípios, não é meramente um ideário; reclama efetividade real de suas normas. Destarte, na aplicação das normas constitucionais, a exegese deve partir dos princípios fundamentais, para os princípios setoriais. E, sob esse ângulo, merece destaque o princípio fundante da República que destina especial proteção a dignidade da pessoa humana. 10. Outrossim, a tutela jurisdicional para ser efetiva deve dar ao lesado resultado prático equivalente ao que obteria se a prestação fosse cumprida voluntariamente. O meio de coerção tem validade quando capaz de subjugar a recalcitrância do devedor. O Poder Judiciário não deve compactuar com o proceder do Estado, que condenado pela urgência da situação a entregar medicamentos imprescindíveis proteção da saúde e da vida de cidadão necessitado, revela-se indiferente à tutela judicial deferida e aos valores fundamentais por ele eclipsados. [...] (BRASIL. STJ – Superior Tribunal de Justiça. RESP 200600674080. RESP - Recurso especial – 836913. Órgão Julgador: Primeira Turma. Relator: Luiz Fux. Publicação: DJ data: 31/05/2007 PG: 00371)

Especificamente, para os casos de confisco ilegal, deve-se questionar: a) qual o dever

descumprido pelo agente expropriante? Qual o resultado que o titular do direito de

propriedade deveria ter se a obrigação estatal fosse cumprida?

Não se pode negar que agentes públicos possuem a competência de subtrair a

propriedade de terceiros. A antijuridicidade, assim, não reside na perda da propriedade, mas

no fato de não se observar, para os casos de confisco ilegal, os trâmites próprios da

desapropriação. Com isso, pode-se aduzir a resposta à primeira pergunta: o expropriante

descumpriu o dever de realizar procedimento desapropriatório. No que se que refere à

segunda pergunta, pode-se esclarecer que, caso este procedimento fosse observado, o titular

da propriedade perceberia, ao menos, parcela do valor do bem, antes da imissão na posse pelo

agente público.

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Destarte, podem-se obter conclusões preliminares de que a ação de obrigação de fazer

em face de confisco ilegal teria como objeto compelir o agente expropriante a efetivar o

processo desapropriatório, dever este que se omitiu de forma ilegal6. Na efetivação desta

medida judicial, devem-se pautar as medidas judiciais no sentido de ofertar ao autor da ação

um resultado equivalente ao cumprimento voluntário do dever pelo Estado, no sentido de que

aquele perceba, no curso do processo de conhecimento, valor ao qual seria devido para fins de

emissão estatal na posse do bem.

6.2 Dos direitos do expropriado passíveis de tutela específica

Torna-se necessário adentrar na análise do procedimento desapropriatório, para que se

possa ofertar conclusão definitiva, tanto acerca do que se pode coagir a prática específica do

agente expropriante, quanto daquilo que será convertido em perdas e danos, em respeito ao

escopo do § 1º do art. 461 do Código de Processo Civil7. Destarte, tratar-se-á de verificar,

diante de caso de confisco ilegal, quais obrigações de fazer podem ser cobradas do agente

expropriante e quais serão convertidas em perdas e danos, caso resultado prático equivalente

seja impossível.

6 Registre-se jurisprudência no sentido de compelir o Poder Público à prática de obrigação de fazer:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OBRAS DE ADEQUAÇÃO DO PRÉDIO DO FÓRUM DE SANTA FÉ DO SUL. ELIMINAÇÃO DE BARREIRAS DE ARQUITETÔNICAS. ACESSIBILIDADE DE DEFICIENTES FÍSICOS. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA COMINAÇÃO DE MULTA DIÁRIA. ASTREINTES. OBRIGAÇÃO DE FAZER. INCIDÊNCIA DO MEIO DE COERÇÃO. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 461, § 4, DO CPC. PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS 282 E 356/STF. 1. É cabível a cominação de multa diária (astreintes) em face da Fazenda Pública, como meio de vencer a obstinação quanto ao cumprimento da obrigação de fazer (fungível ou infungível) ou entregar coisa, incidindo a partir da ciência do obrigado e da sua recalcitrância. Precedentes do STJ: AgRg no Ag 1025234/SP, DJ de 11/09/2008; AgRg no Ag 1040411/RS, DJ de 19/12/2008; REsp 1067211/RS, DJ de 23/10/2008; REsp 973.647/RS, DJ de 29.10.2007; REsp 689.038/RJ, DJ de 03.08.2007: REsp 719.344/PE, DJ de 05.12.2006; e REsp 869.106/RS, DJ de 30.11.2006. 2. Ação Civil Pública promovida pelo Ministério Público Estadual, objetivando a adequação do Prédio do Fórum de Santa Fé do Sul, para garantir acessibilidade aos portadores de deficiência física, no qual foi deferida a antecipação dos efeitos da tutela, para determinar que o demandado iniciasse as obras de adequação do prédio, no prazo de três meses, sob pena de pagamento de multa diária no valor de R$ 400, 00, na hipótese de descumprimento. 3. A simples indicação dos dispositivos legais tidos por violados (art. 12, § 2º, da Lei 7.347/84; art. 84, § 3º, da Lei nº 8.078/90; arts. 461, § 4º; 273, § 3º e 644, do CPC), sem referência com o disposto no acórdão confrontado, obsta o conhecimento do recurso especial. Incidência dos verbetes das Súmulas 282 e 356 do STF. 4. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, provido. (BRASIL. STJ – Superior Tribunal de Justiça. RESP 200701198048. RESP - Recurso especial – 987280. Órgão Julgador: Primeira Turma. Relator: Luiz fux. Fonte: DJE Data: 20/05/2009)

7 “Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. (Redação dada pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994) § 1o A obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.” (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)

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6.2.1 Da defesa da solução processual

Adianta-se que esta proposta pode ser combatida com base na arguição do teor do art.

35 do Decreto-lei 3365/41, que assim dispõe:

Art. 35. Os bens expropriados, uma vez incorporados à Fazenda Pública, não podem ser objeto de reivindicação, ainda que fundada em nulidade do processo de desapropriação. Qualquer ação, julgada procedente, resolver-se-á em perdas e danos.

Apesar de a solução processual ora proposta não implicar na reivindicação do bem

expropriado, em reverência ao princípio da supremacia do interesse público, opositores da

presente proposta processual poderiam se referenciar à parte do texto legal que veda resolução

diversa das perdas e danos para os casos que envolvem desapropriação.

Desde já se recusa tal argumento. O dispositivo legal acima transcrito refere-se a

expropriações em que se observou procedimento de desapropriação. Tanto assim que a

hipótese mais severa prevista no artigo se refere à nulidade do processo de desapropriação.

Ora, através de procedimento regular, quando o bem já estivesse incorporado ao patrimônio

público, já teria sido observada uma série de garantias ao proprietário, mesmo que o processo

possa ser, posteriormente, classificado como nulo.

Os casos de confisco ilegal não foram contemplados no Decreto-lei 3365/41. A ação de

obrigação de fazer representa, justamente, esforço para que a autoridade administrativa se

vincule aos termos deste decreto que desrespeitou na prática. Diante da omissão legislativa no

tratamento do confisco ilegal, faz-se recurso às disposições do Código de Processo Civil

relativas à obrigação de fazer.

Diante deste raciocínio, possíveis opositores da idéia ora proposta poderiam ainda

argumentar: se a ilegalidade na expropriação é tratada judicialmente com o manejo de ação de

obrigação de fazer, todas as ilegalidades administrativas devem ser tratadas através da busca

pela tutela específica e não através de perdas e danos. Para rebater esta generalização, urge

apontar o aspecto que diferencia a expropriação de todas as ilegalidades administrativa: a

Constituição Federal elege como cláusula pétrea a regra, cujas exceções se restringem ao

texto constitucional, de que a perda da propriedade em benefício de necessidade e utilidade

pública ou interesse social somente se opera através de procedimento que assegure a justa e

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prévia indenização em dinheiro (art. 5°, XXIV)8. Some-se a isso o fato de que a própria

legislação impõe o pagamento de valor, independentemente de precatório, para imissão do

Poder Público na posse de bens em processo de expropriação– art. 15,do Decreto-lei 3365/41.

Assim, não se encontra diante de mera ilegalidade, ao se deparar com a prática de

confisco ilegal. Esta conduta administrativa representa afronta à basilar garantia individual

contra abusos do Poder Público. A solução, atualmente, eleita pela jurisprudencial nacional que

conduz os casos de confisco ilegal à condenação em perdas e danos, cujo valor será pago

através de precatórios, representa uma mácula às garantias individuais e um perigoso incentivo

aos gestores públicos. Ora, a análise racional acerca do cenário mais vantajoso entre a

desapropriação regular e o confisco ilegal conduz, invariavelmente, à conclusão acerca das

vantagens desta última hipótese. Enquanto que na desapropriação o pagamento deve ser prévio,

no confisco ilegal, a quitação será relegada à ordem cronológica de precatórios, que somente

será formulada com o trânsito em julgado de ação a ser proposta pela parte prejudicada.

A ação de obrigação de fazer, que conforme demonstrado possui ampla aplicabilidade

em face de atos da Fazenda Pública, mitiga os efeitos nocivos do confisco ilegal, à medida

que busca entregar ao titular afetado prestação jurisdicional que se aproxima ao máximo dos

efeitos que seriam desfrutados, na hipótese de observância do regular procedimento

expropriatório. Com isso, pode-se afirmar que, além de reduzir os atuais estímulos à prática

confiscatória, a solução ora patrocinada se coaduna com a defesa das garantias individuais,

cláusulas pétreas, inafastáveis em um Estado de Direito.

6.2.2 Da especificidade processual da solução proposta

Em respeito ao compromisso de se propor solução processual para os casos usualmente

identificados como “desapropriação indireta”, com estrito respeito aos vigentes ditames

legais, tratar-se-á de, nos tópicos subsequentes, conciliar as regras pertinentes ao

procedimento ordinário e à tutela específica da obrigação de fazer, previstas no Código de

Processo Civil brasileiro, com as normas relativas à desapropriação.

8 “Art. 5. (omissis). XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade

pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;”

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6.2.2.1 Do pedido da ação de conversão de confisco ilegal em desapropriação

Deve-se, a princípio, verificar qual o limite da ação de obrigação de fazer. Ao se

proceder desta forma, pode-se concluir quais os direitos do expropriado que são passíveis de

tutela específica, através da obrigação de converter confisco ilegal em desapropriação.

A restrição mais relevante à abrangência da obrigação de fazer refere-se à postulação de

obrigação de pagar. Com exceção de perdas e danos decorrente da impossibilidade de tutela

específica e que estará sujeita à quitação por meio de precatórios, não se pode exigir

pagamento em ação de obrigação de fazer, como se verifica do julgado abaixo transcrito:

PROCESSUAL CIVIL. DEVOLUÇÃO DE VALORES DESCONTADOS. EXECUÇÃO DE QUANTIA CERTA. SENTENÇA CONDENATÓRIA. OBRIGAÇÃO DE PAGAR. PRECATÓRIO. 1. A execução lastreada em comando condenatório, por ter imposto à Fazenda Pública obrigação de pagar quantia certa – e não obrigação de fazer –, deverá ser levada a termo pela via de precatório. 2. Agravo regimental desprovido. (BRASIL. STJ – Superior Tribunal de Justiça. AGRESP 200601696127. AGRESP - Agravo regimental no Recurso especial – 873444. Órgão Julgador: Quinta Turma. Relator: Laurita Vaz. Fonte: DJE Data: 03/11/2008).

Isto posto, não se insere no campo de abrangência da ação de obrigação de fazer

qualquer postulação relativa ao cumprimento direto de obrigação de pagar ou solver dívida

em dinheiro. O pedido principal em ação de conversão de confisco ilegal em desapropriação

deve ter como pedido principal a determinação judicial, direcionada à autoridade pública

competente, de que seja deflagrado o processo regular de desapropriação.

6.2.2.2 Sujeitos processuais

Entre a ação judicial de desapropriação regular e a ação de obrigação de fazer relativa

ao confisco ilegal, há a inversão de sujeitos processuais; posto que enquanto aquela é proposta

pelos agentes estatais, esta é pelos titulares da propriedade afetada. Como o art. 16 do

Decreto-lei 3365/41 indica a quem deve ser endereçada a citação em caso de desapropriação

judicial (sujeitos passivos na ação de desapropriação), ao mesmo tempo, identifica a

legitimidade ativa para a propositura da ação de obrigação de fazer, nos casos de confisco

ilegal. Eis os legitimados: a pessoa do proprietário dos bens; a do marido dispensa a da

mulher; a de um sócio, ou administrador, a dos demais, quando o bem pertencer à sociedade;

a do administrador da coisa no caso de condomínio, exceto o de edifício de apartamento em

que cada um constitua propriedade autônoma, a dos demais condôminos e a do inventariante,

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e, se não houver, a do cônjuge, herdeiro, ou legatário, detentor da herança, a dos demais

interessados, quando o bem pertencer a espólio.

6.2.2.3 Citação da Fazenda Pública e das providências preliminares

Em ação de obrigação de fazer, movida em razão de confisco ilegal, compete ao

magistrado, ao despachar a inicial, realizar a citação da Fazenda Pública no sentido de que

esta se defenda da alegação de afetação do bem ao serviço público (art. 300, CPC).

De acordo com a resposta do pólo passivo, o juiz determinará, se necessário, as

seguintes providências preliminares:

a) Se o réu contestando o direito que constitui fundamento do pedido, o autor poderá requerer, no prazo de 10 (dez) dias, que sobre ele o juiz profira sentença incidente (art. 325, CPC); b) Se o réu, reconhecendo o fato do apossamento administrativo e que o bem já se encontra afetado pelo serviço público, mas opuser outro fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, este será ouvido no prazo de 10 (dez) dias, facultando-lhe o juiz a produção de prova documental (art. 326, CPC); c) Se o réu alegar qualquer preliminar de mérito, o juiz mandará ouvir o autor no prazo de 10 (dez) dias, permitindo-lhe a produção de prova documental. Em se tratando de irregularidades ou de nulidades sanáveis, o juiz mandará supri-las, fixando à parte prazo nunca superior a 30 (trinta) dias (art. 327, CPC).

6.2.2.4 Da possibilidade de tutela antecipada

O § 3º do art. 461 do CPC admite que sendo relevante o fundamento da demanda e

havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela

liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A questão que se aborda, neste

tópico, é a possibilidade de concessão de tutela antecipada em ação de conversão de confisco

ilegal em desapropriação.

A tutela antecipada trata da medida de urgência que impõe requisitos severos para sua

concessão. Ademais, o ordenamento jurídico pátrio impõe, além dos requisitos legais, limites

para a concessão de tutela antecipada. É o que se extrai do parágrafo segundo do art. 273, do

CPC, que assim postula: “Art. 273. (omissis) [...] § 2o Não se concederá a antecipação da

tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado.”

Ora, a concessão de tutela antecipada, na ação de obrigação de fazer ora proposta,

consistiria na emissão de ordem ao Poder Público, para que os agentes estatais, na forma do

art. 10 do Decreto-lei 3365/41, ou façam acordo ou a proponham ação de desapropriação na

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esfera judicial. Por mais que se possa alegar a reversibilidade desta medida, trata-se de

questão indiscutível que a determinação de medidas desta natureza em cognição sumária é, no

mínimo, temerária. Assim, defende-se no presente estudo que a tutela antecipada somente seja

apreciada quando da prolatação da sentença, expediente este cuja aceitabilidade provoca

debate entre os processualistas, razão pela qual se reserva a exposição desta celeuma para o

tópico desta exposição relativo à sentença.

6.2.2.4 Julgamento conforme o estado do processo

Cumpridas as providências preliminares, ou não havendo necessidade delas, o juiz

proferirá julgamento conforme o estado do processo (Art. 328, CPC), adotando uma das

seguintes soluções: extinção do processo, julgamento antecipado da lide ou designação de

audiência preliminar.

Poderá, neste momento processual que sucede a possibilidade de adoção de providências

preliminares, verificar a extinção do processo com ou sem resolução do mérito.

Haverá extinção do processo sem resolução do mérito, dentre outras hipóteses previstas

no Código de Processo Civil, quando o juiz indeferir a petição inicial; verificar-se a ausência

de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo; o juiz

acolher a alegação de perempção, litispendência ou de coisa julgada; não concorrer qualquer

das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse

processual; o autor desistir da ação (art. 267, CPC). Salvo os casos de perempção,

litispendência ou de coisa julgada, a extinção do processo não obsta a que o autor intente de

novo a ação. Em contrapartida, haverá extinção com resolução do mérito, quando o réu

reconhecer a procedência do pedido; as partes transigirem; o juiz pronunciar a decadência ou

a prescrição; o autor renunciar ao direito sobre que se funda a ação (art. 269, CPC).

Dentre as hipóteses de extinção do processo, destaca-se, para fins de aplicação na ação

de conversão de confisco ilegal em desapropriação, a hipótese em que o Poder Público

reconhece a procedência do pedido. Neste caso, não haverá dilação probatória, o que impedirá

até mesmo ao autor o requerimento de prova pericial acerca do valor do bem, sobre o qual se

alega a expropriação. Assim, na decisão de mérito, limitar-se-á a determinar a autoridade

competente que a mesma deflagre o processo de desapropriação.

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Se não se verificaram as hipóteses de extinção do processo, o juiz poderá promover o

julgamento antecipado da lide (art. 330, CPC), proferindo sentença, quando a questão de

mérito for unicamente de direito, ou, sendo de direito e de fato, não houver necessidade de

produzir prova em audiência; ou quando ocorrer a revelia (art. 319, CPC). Não se pode deixar

de referenciar a dispensa de comprovação de fato notório9, por sua possível aplicabilidade em

casos de confisco ilegal, os quais usualmente são notificados na imprensa ou o imóvel

expropriado passa a abrigar repartição pública. Na hipótese de a expropriação se tratar de fato

notório, o julgado também deve, em regra, conduzir ao julgamento antecipado da lide, sempre

que não for necessária a produção de prova em audiência.

No que se refere à revelia, não se pode olvidar que o efeito da mesma consiste na

presunção de veracidade no que se refere às alegações do autor (art. 319, CPC). O art. 320 do

mesmo diploma adjetivo estabelece que não serão observados os efeitos da revelia se litígio

versar sobre direitos indisponíveis. Com isso, poder-se-ia travar debate acerca dos efeitos da

revelia, em ações que, como o proposto feito de obrigação de fazer, envolva a Fazenda

Pública. De todo modo, qualquer que seja a conclusão, não se afeta o fato de que basta que

ocorra a revelia para que se viabilize o julgamento antecipado da lide. Assim, seja ou não o

efeito de presunção do alegado pelo autor não se aplique às causas que envolvam o Poder

Público, se o réu não contestar a ação de conversão de confisco ilegal em desapropriação,

consubstanciada estará a revelia, fato este que legitima o julgamento antecipado da lide.

Como não ocorrerá dilação probatória, o sujeito ativo não poderá requerer a prova pericial.

Assim, na decisão de mérito, limitar-se-á a determinar à autoridade competente que a mesma

deflagre o processo de desapropriação. O mesmo ocorre se o julgamento antecipado da lide

decorrer da concepção do magistrado de que a questão de mérito foi unicamente de direito ou

de direito e de fato e não houver a necessidade de produção de prova em audiência.

Se o caso concreto não ensejar a extinção ou o julgamento antecipado da lide, o juiz

designará audiência preliminar, a realizar-se no prazo de 30 (trinta) dias, para a qual serão as

partes intimadas a comparecer (art. 331, CPC). A condição para a realização da audiência

preliminar consiste no fato de que a causa deve versar sobre direitos que admitam transação.

Tendo em vista o princípio da indisponibilidade do interesse público, poder-se-ia argumentar

que, na proposta de ação de conversão de confisco ilegal para desapropriação não poderia se

realizar audiência preliminar, em face da impossibilidade de transação nas causas em que

9 “Art. 334. Não dependem de prova os fatos: I - notórios;” (Código de Processo Civil brasileiro)

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figure a Fazenda Pública. Acontece que, nestes casos, trata-se, justamente, da omissão do

Poder Púbico, no que se refere às iniciativas para regularização da expropriação. Dentre os

expedientes necessários para a subtração de bem de legítimo titular, os agentes públicos têm o

dever de tentar o acordo, em reverência ao teor do art. 10 do Decreto-lei 3365/41.10

Destarte, o acordo, para os casos de desapropriação, não somente é admitido pela legislação

pertinente, como as suas tratativas são obrigatórias, à medida que, somente quando frustrada a

composição amigável, deve-se recorrer às esferas judiciais. Ora, o objetivo da ação de obrigação

de fazer consiste em fornecer ao autor efeito similar àquele que teria direito, caso o Poder Público

tivesse atendido aos preceitos legais que regem a desapropriação. Como o direito de pleitear o

acordo, antes da esfera judicial, fora negado pelo atropelo das etapas administrativas pelo gestor

público, nada mais coerente do que assegurá-lo nas vias judiciais. Não se pode aduzir qualquer

questionamento acerca da admissibilidade da conciliação nesta ação.

Pelo exposto, demonstra-se a viabilidade da realização de acordo com o Poder Público,

na ação de obrigação de fazer, sendo admitido e, até mesmo, recomendável, a resolução

amigável, em audiência preliminar, que pode conduzir aos seguintes efeitos: (a)

reconhecimento do apossamento administrativo e de sua afetação à finalidade pública, ou (b)

até mesmo para a composição de acordo para o pagamento do imóvel, sobre o qual se litiga.

Uma vez obtida a conciliação, a mesma será reduzida a termo e homologada por sentença (art.

331, § 1°, CPC). Caso não se obtenha acordo algum, mas tendo a Fazenda Pública

apresentado oferta pecuniária para a aquisição do imóvel, tal valor deve ser consignado em

ata. Cumpre acentuar que a oferta frustrada de valor pelo imóvel não implicaria em confissão

ou reconhecimento do confisco ilegal, posto que se trabalhou a busca por solução amigável,

esforço este no qual se debate ou se cogita do mérito do embate judicial.

6.2.2.5 Do saneamento do processo

Se, por qualquer motivo, não for obtida a conciliação, o juiz fixará os pontos

controvertidos, decidirá as questões processuais pendentes e determinará as provas a serem

produzidas, designando audiência de instrução e julgamento, se necessário (art. 331, § 2°,

CPC). Se a causa alcançar este estágio, deve-se admitir que o titular requeira, na condição de

sujeito ativo, a realização de perícia acerca do valor do bem, o qual se alega ser objeto de

10“Art. 10. A desapropriação deverá efetivar-se mediante acordo ou intentar-se judicialmente, dentro de cinco

anos, contados da data da expedição do respectivo decreto e findos os quais este caducará.”

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expropriação. Tal expediente torna-se necessário para que se especifique o valor do bem sobre

o qual recaiu a alegada omissão do Poder Público. O pedido para produção de prova pericial

deve ser previsto na petição inicial e ratificado na audiência preliminar. Em benefício da

celeridade processual, o magistrado deve nomear o perito na própria audiência e fixar o prazo

para entrega do laudo (art. 421, CPC). Ademais, não se pode esquecer que a audiência de

instrução, se necessária, será marcada já na audiência preliminar e a perícia deve ser entregue

no prazo de 20 dias antes da data desta segunda audiência (art. 433, CPC). Às partes

competem a nomeação de assistentes técnicos e a apresentação de quesitos, no prazo de cinco

dias da intimação da nomeação do perito (§ 1°, art. 421, CPC).

6.2.2.6 Da audiência de instrução e julgamento

Na forma já defendida em tópico anterior, também nesta segunda audiência, antes de

iniciar a instrução, o juiz tentará conciliar as partes (Art. 448, CPC). A diferença com relação

aos efeitos da conciliação, em comparação com aquela obtida em primeira audiência, é a de

que, caso o acordo se resuma ao reconhecimento do confisco ilegal, a perícia já realizada será

emprestada para provável causa em que se discutirá de forma incisiva a desapropriação. O

termo de conciliação, assinado pelas partes e homologado pelo juiz, terá valor de sentença

(Art. 449, CPC).

Frustrada a conciliação, ao iniciar a instrução, o juiz, ouvidas as partes, fixará os pontos

controvertidos sobre os quais incidirá a prova (art. 451, CPC). As provas serão produzidas na

audiência na seguinte ordem, estabelecida pelo art. 452 do CPC: a) o perito e os assistentes

técnicos responderão aos quesitos de esclarecimentos; b) o juiz tomará os depoimentos

pessoais, primeiro do autor e depois do réu; c) finalmente, serão inquiridas as testemunhas

arroladas pelo autor e pelo réu.

Finda a instrução, o juiz dará a palavra ao advogado do autor e ao do réu, bem como ao

órgão do Ministério Público, sucessivamente, pelo prazo de 20 (vinte) minutos para cada um,

prorrogável por mais 10 (dez) minutos, a critério do juiz (art. 454, CPC). Quando a causa

apresentar questões complexas de fato ou de direito, o debate oral poderá ser substituído por

memoriais, caso em que o juiz designará dia e hora para o seu oferecimento (§3º, art. 454,

CPC). Encerrado o debate ou oferecidos os memoriais, o juiz proferirá a sentença desde logo

ou no prazo de 10 (dez) dias (art. 456, CPC).

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6.2.2.7 Da sentença

Na forma do art. 458, II e III, na sentença, logo após o relatório, o magistrado

competente deve apontar os fundamentos de fato e de direito para a resolução apontada na

parte dispositiva. O juiz proferirá a sentença, acolhendo ou rejeitando, no todo ou em parte, o

pedido formulado pelo autor (art. 459, CPC).

Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz

concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências

que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento (art. 461, CPC).

A possibilidade de conversão do cumprimento da obrigação de fazer em perdas e danos,

na forma do § 1o do art. 461 do CPC, somente ocorrerá quando o autor o requerer ou se

impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente. A referida

conversão em perdas e danos se trata de recurso que prejudica todo o esforço desprendido no

presente estudo, posto que, invariavelmente, a condenação em perdas e danos conduz ao

pagamento por meio da ordem cronológica de precatórios.

Reitera-se, portanto, o empenho no sentido de resolver o confisco ilegal de forma

alternativa à indenização a ser paga por precatórios. O objetivo consiste em encontrar

mecanismos legais para a imposição do dever de obediência do procedimento

desapropriatório, previsto no Decreto-lei 3365/41. Neste sentido, cumpre prestar relevo ao

teor dos dispositivos processuais voltados para o efetivo cumprimento da obrigação de fazer.

6.2.2.8 Da viabilidade e utilidade prática da concessão de tutela antecipada em sentença

O teor do art. 520 do CPC implica em preocupação legítima quanto à efetividade e

celeridade da solução ora proposta. A parte inicial do dispositivo processual citado impõe a

regra da atribuição do efeito suspensivo para o recurso de apelação. Assim, no curso de ação

de conversão de confisco ilegal em desapropriação, caso a Fazenda Pública venha a recorrer,

a ordem para a observância do dever de proceder à expropriação com base na lei ficaria

suspensa, até a confirmação da instância superior. Revela clara iniquidade a submissão de tal

espera em desfavor de titular de propriedade que fora comprovadamente sujeito a ato

inconstitucional de confisco.

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A solução para este obstáculo à efetividade encontra-se no mesmo artigo 520, que, in

fine, dispõe que a apelação será recebida apenas no efeito devolutivo quando for interposta de

sentença que confirmar os efeitos da tutela11. Assim, nas ações de conversão de confisco ilegal

em desapropriação, caso a sentença confirme os efeitos de tutela antecipada em favor do

autor, o recurso de apelação interposto pelo Poder Público ou ex officio será recebido apenas

no efeito devolutivo, fato este que permitirá ao titular da propriedade promover, desde logo, a

execução provisória da sentença.12

Já se asseverou em tópico específico desta exposição que a tutela antecipada em

cognição sumária, em celeumas relativas ao confisco ilegal, seria temerária. Mas o mesmo

não se pode dizer da concessão de tutela antecipada, em sede de sentença, cujo instante

processual da elaboração já se concluiu a dilação probatória e pela análise de todos os

elementos de prova, o magistrado convenceu-se da procedência do pedido.

No que se refere à aceitabilidade jurídica da concessão de tutela antecipada no bojo da

sentença, cumpre colacionar o seguinte posicionamento doutrinário:

Assim, a existência da sentença, do ponto de vista da prestação da tutela jurisdicional, é insuficiente. Seus efeitos concretos é que completam o ciclo da prestação jurisdicional, e, por isso mesmo, é que haverá casos em que a tutela antecipada será responsável por isso. Parece ser lícita a afirmação, posto genérica, de que, em todos aqueles casos em que, antes da sentença, não tenha sido concedida a tutela antecipada e em que o recurso de apelação interponível da sentença tenha efeito suspensivo (que é, nunca é demais repetir, a regra escrita no caput do art. 520), haverá espaço para a tutela antecipada na sentença. (BUENO, 2004, p. 84). (Grifou-se)

A possibilidade de que se conceda tutela antecipada na sentença também é consagrada

na jurisprudencial nacional, como se observa do teor do acórdão seguinte:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. CONCESSÃO DE TUTELA ANTECIPADA EM SENTENÇA. [...] - Comprovada a condição de companheira incluso através de sentença de procedência exarada em ação declaratória de união estável proposta perante a Justiça Estadual, defere-se a tutela antecipada para determinar a implantação imediata da pensão vindicada, máxime porque se trata de

11“Art. 520. A apelação será recebida em seu efeito devolutivo e suspensivo. Será, no entanto, recebida só no

efeito devolutivo, quando interposta de sentença que: [...] VII - confirmar a antecipação dos efeitos da tutela;” 12Sobre a execução provisória: “Art. 475-O. A execução provisória da sentença far-se-á, no que couber, do mesmo

modo que a definitiva, observadas as seguintes normas: I – corre por iniciativa, conta e responsabilidade do exeqüente, que se obriga, se a sentença for reformada, a reparar os danos que o executado haja sofrido; II – fica sem efeito, sobrevindo acórdão que modifique ou anule a sentença objeto da execução, restituindo-se as partes ao estado anterior e liquidados eventuais prejuízos nos mesmos autos, por arbitramento; III – o levantamento de depósito em dinheiro e a prática de atos que importem alienação de propriedade ou dos quais possa resultar grave dano ao executado dependem de caução suficiente e idônea, arbitrada de plano pelo juiz e prestada nos próprios autos.”

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verba de natureza alimentar, nada impedindo que assim se proceda em sede de sentença, descaracterizados os óbices atinentes à satisfatividade e irreversibilidade. (BRASIL. TRF – Tribunal Regional Federal da 4ª Região. AG 200204010487939. AG - Agravo de instrumento. Relator (a): Amaury Chaves De Athayde. Órgão julgador Quarta turma. Fonte: DJ 17/09/2003)

Em se concedendo a tutela antecipada, portanto, em sentença em que se defere o pedido,

o recurso da parte adversa não ostentaria efeito suspensivo. Daí a importância de se incluir

pedido de tutela de antecipação na ação de obrigação de fazer, para reparação do confisco

ilegal.

6.2.2.9 Dos requisitos para a concessão de tutela antecipada em sentença

Eis a compilação do artigo do Código de Processo Civil que consagra os pressupostos

para a concessão de tutela antecipada:

Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: (Redação dada pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994) I - haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994) II - fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu. (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)

A concessão de tutela antecipada em favor do autor dependeria da avaliação casuística

de prova inequívoca da afetação do bem à destinação pública e da verossimilhança na

alegação. Ainda restaria para a parte requerente o dever de demonstrar que o caso enseja

fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação ou, ainda, a caracterização de abuso

de defesa ou manifesto propósito protelatório. Anota-se que o abuso de direito ou propósito

protelatório são critérios indicados para a punição dos agentes processuais que atuem com

má-fé, em atentado ao princípio de lealdade entre os litigantes. Assim, a má-fé do litigante,

associada à prova inequívoca e à verossimilhança da alegação, compõe cenário em que se

legitima a concessão de tutela antecipada. Para os casos de confisco ilegal, já se pressupõe a

má-fé do agente competente, cujo ente estatal figura no pólo passivo da ação de obrigação de

fazer. Ora, no confisco ilegal, destina-se bem, cuja titularidade pertence a terceiro, sem a

observância de qualquer critério legal.

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6.2.2.10 Dos meios para a obtenção da tutela específica da obrigação de fazer

Uma vez convencido do apossamento do bem do autor da ação pelo Poder Público e da

destinação pública do mesmo, o juiz determinará, em sentença, que a autoridade competente

cumpra a obrigação legal de proceder à desapropriação regular. Para impelir à prática da

obrigação, o magistrado pode impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor,

se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento

do preceito. (§ 4o, art. 461, CPC). O juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade da

multa, caso verifique que se tornou insuficiente ou excessiva (§ 6o, art. 461, CPC).

Com o condão de conferir mecanismos para a imposição do cumprimento específico da

obrigação de fazer, o legislador nacional estabeleceu, de forma ilustrativa, mecanismos no §

5º, art. 461, do CPC. Como o rol não é taxativo, atribui-se ao poder geral de cautela do

jurisprudente a possibilidade de adotar medidas para a efetivação da tutela específica ou a

obtenção do resultado prático equivalente. Uma vez expedida a ordem judicial para o

cumprimento do dever de expropriar na forma da lei, pode-se determinar: (a) multa diária, (b)

requisição de força policial, (c) apuração de responsabilidade civil e penal pelo

descumprimento de ordem judicial.

Se mesmo diante de tais medidas, a autoridade pública destinatária da determinação se

recusar a instaurar o processo de desapropriação (tutela específica), pode-se voltar para a

obtenção de resultado prático equivalente ao processo regular de expropriação. Para tanto,

cumpre, inicialmente, questionar-se: quais providências materializariam resultado prático

equivalente? Ora, se o processo de desapropriação tivesse sido observado, quando o bem já

estivesse à disposição do interesse público, a autoridade pública já teria promovido o depósito

prévio (art. 15 do Decreto-lei 3365/41) ou, até mesmo, o depósito do preço fixado por

sentença (art. 33 do Decreto-lei 3365/41).

O próximo passo talvez seja o que origine maiores controvérsias e consiste na

observância de depósito judicial pela Fazenda Pública. Defende-se que, nas ações de obrigação

de fazer para conversão de confisco ilegal em desapropriação e em caso de relutância em

observar o comando sentencial, o titular possa requer que a Fazenda Pública seja intimada a

realizar depósito na forma do art. 15 da Lei de Desapropriações, que a seguir se reproduz:

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Art. 15. Se o expropriante alegar urgência e depositar quantia arbitrada de conformidade com o art. 685 do Código de Processo Civil, o juiz mandará imití-lo provisoriamente na posse dos bens; § 1º A imissão provisória poderá ser feita, independente da citação do réu, mediante o depósito: (Incluído pela Lei nº 2.786, de 1956) a) do preço oferecido, se êste fôr superior a 20 (vinte) vêzes o valor locativo, caso o imóvel esteja sujeito ao impôsto predial; (Incluída pela Lei nº 2.786, de 1956) b) da quantia correspondente a 20 (vinte) vêzes o valor locativo, estando o imóvel sujeito ao impôsto predial e sendo menor o preço oferecido; (Incluída pela Lei nº 2.786, de 1956) c) do valor cadastral do imóvel, para fins de lançamento do impôsto territorial, urbano ou rural, caso o referido valor tenha sido atualizado no ano fiscal imediatamente anterior; (Incluída pela Lei nº 2.786, de 1956) d) não tendo havido a atualização a que se refere o inciso c, o juiz fixará independente de avaliação, a importância do depósito, tendo em vista a época em que houver sido fixado originàlmente o valor cadastral e a valorização ou desvalorização posterior do imóvel. (Incluída pela Lei nº 2.786, de 1956)

Não se pode esquecer que o objetivo da tutela específica consiste em conceder à parte

prejudicada a prestação judicial mais próxima possível do resultado prático, caso a obrigação

estatal tivesse sido observada. Ora, em caso de confisco ilegal, caso a expropriação tivesse sido

conduzida de acordo com as bases legais, para que o Estado se apossasse do bem, tornar-se-ia

obrigatório o depósito judicial. No art. 15 do Decreto-lei 3365/41, portanto, atribui-se ao Poder

Público a possibilidade de, através de depósito judicial, imitir-se na posse. Acontece que, o que

se reveste de prerrogativa para o agente expropriante na desapropriação regular, transforma-se

em obrigação nos casos de confisco ilegal. Ora, o bem já se encontra afetado pelo serviço

público e, portanto, os agentes estatais já assumiram a posse do bem, restando apenas o dever de

pagar o valor, em respeito a uma das alternativas previstas no artigo supramencionado.

Não se torna viável a alegação de que este depósito contrariaria a regra dos precatórios.

Reitera-se que, se o legislador nacional previu o depósito supramencionado como condição

para imissão provisória na posse, com muito mais razão a aplicabilidade para o caso em que o

bem expropriado esteja, irreversivelmente, à disposição do interesse público. A

constitucionalidade do depósito em processo de desapropriação, inclusive, é consagrada em

súmula da máxima corte nacional para assuntos constitucionais.13

A persistência na recusa em atender à ordem judicial para a conversão de confisco ilegal

em desapropriação legitimaria o bloqueio das contas do ente público que figura no pólo

passivo da ação e, sucessivamente, outra determinação de pagamento, desta vez, com base no

13 “Súmula 652 – Não contraria a Constituição o art. 15, § 1°, do Decreto-lei 3.365/41” (Lei de Desapropriação

por Utilidade Pública)

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art. 33 do Decreto-lei 3365/41. Já quanto ao levantamento do valor, estar-se-ia adstrito aos

limites estabelecidos para levantamento de valores em execução provisória, na forma dos

pertinentes artigos do Código de Processo Civil.14

6.2.2.11 Da Propositura de Ação de Desapropriação em Obediência à Ordem de Ação de Conversão de Confisco Ilegal em Desapropriação

Logicamente que a sentença em ação de conversão de confisco ilegal em

desapropriação, uma vez atendida pelo sujeito passivo, não pode representar obrigação de

fazer acordo ou pagar – salvo como sanção pelo não-cumprimento da ordem judicial. Caso

não se obtenha a composição amigável do valor do bem expropriado, compete à autoridade

pública responsável o ajuizamento imediato da Ação de Desapropriação, que será conexa à

obrigação de fazer. Todos os atos praticados no curso da ação de obrigação de fazer e que

forem pertinentes ou relevantes à ação de desapropriação serão aproveitados, em benefício da

economia e celeridade processuais.

A ação de desapropriação seguirá seu curso regular, com exceção dos seguintes aspectos:

a) O Decreto-lei 3365/41 dispõe como medida primordial do procedimento desapropriatório a expedição de decreto pela autoridade máxima do Poder Executivo da respectiva entidade expropriante, no sentido de declarar a utilidade pública (art. 2° e 6° - Decreto-lei 3365/41). O principal objetivo desta medida, além de deflagrar o processo de desapropriação consiste em permitir que autoridades administrativas adentrem nos prédios compreendidos pela declaração (art. 7° - Decreto-lei 3365/41). No caso de confisco ilegal, o Poder Público já se apoderou do bem respectivo, fato este que torna inócua e desnecessária a formalização de qualquer ato administrativo de declaração de utilidade pública do imóvel. Ademais, o Poder Judiciário não poderia adentrar no mérito administrativo de indicar a existência de utilidade púbica de determinado nem (art. 9° - Decreto-lei 3365/41). b) seriam considerados os depósitos, por ventura, impostos na ação de obrigação de fazer, como mecanismo de coação ao cumprimento da ordem judicial; c) seria aproveitada a perícia, por ventura realizada no curso da ação de obrigação de fazer, no qual se arbitrou o valor do bem. (obs.: nova

14 “Art. 475-O. A execução provisória da sentença far-se-á, no que couber, do mesmo modo que a definitiva,

observadas as seguintes normas: [...] III – o levantamento de depósito em dinheiro e a prática de atos que importem alienação de propriedade ou dos quais possa resultar grave dano ao executado dependem de caução suficiente e idônea, arbitrada de plano pelo juiz e prestada nos próprios autos. [...] § 2o A caução a que se refere o inciso III do caput deste artigo poderá ser dispensada: [...] II – nos casos de execução provisória em que penda agravo de instrumento junto ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça (art. 544), salvo quando da dispensa possa manifestamente resultar risco de grave dano, de difícil ou incerta reparação.”

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perícia realizada apenas em sede de execução, para liquidação de perdas e danos e outras verbas que seriam pagas através de precatório; d) seriam liberados, independentemente de caução, os levantamentos dos arts. 15 e Art. 33, do Decreto-lei 3365/41. O desapropriado, ainda que discorde do preço oferecido, do arbitrado ou do fixado pela sentença, poderia levantar até 80% (oitenta por cento) dos depósitos. O levantamento do preço será deferido mediante prova de propriedade, de quitação de dívidas fiscais que recaiam sobre o bem expropriado, e publicação de editais, com o prazo de 10 dias, para conhecimento de terceiros (Art. 34, do Decreto-lei 3365/41).

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CONCLUSÃO

O regime jurídico da propriedade, como a integralidade do Direito Privado, vem sendo

inundado pelo sentimento de compromisso social. Atualmente, consagram-se, inclusive, a

função social das empresas e a dos contratos, institutos estes que, juntamente com a

propriedade, formam a base do sistema capitalista e da economia de mercado. Esta evolução

social deve ser creditada à confirmação histórica de que o individualismo liberal não favorece

os ideais de justiça, que devem permear todo conteúdo jurídico.

No presente estudo, poder-se-ia apontar pretensa incongruência: ao mesmo tempo em

que se classifica como evolutiva a inserção social dos institutos seminais do capitalismo,

dedica-se à defesa da propriedade, contra a ação do Estado no sentido de afetar um bem ao

serviço público. Acontece que a tutela das prerrogativas de maior repercussão social e a

titularidade do interesse público não podem ser aduzidas como forma de negar garantias

fundamentais do indivíduo. Há de se equacionar, através da interpretação das normas jurídicas

pertinentes e da ponderação dos antagônicos princípios de Direito Público e Privado, a

garantia da propriedade e a superação do individualismo originário das idéias liberais.

Para o enfrentamento teórico da problemática proposta, tratou-se de elaborar o conceito

de desapropriação como sendo “a aquisição de bem por aquele beneficiado pela ponderação

jurídica de predominância de interesses, de acordo com critérios elegidos no ordenamento

jurídico público, através de perda indenizada da propriedade do titular originário”.

Logo após, foram apontadas as situações fáticas, usualmente tratadas pela doutrina e

jurisprudência nacional, como sendo hipóteses de “desapropriação indireta”. Através da

análise comparativa entre o conceito de desapropriação e os casos de “desapropriação

indireta”, atestou-se a impossibilidade de que os mesmos sejam modalidades de

desapropriação, mormente pela ausência de indenização ao titular originário.

Especificamente, no que se refere às chamadas “desapropriações indiretas”, nega-se a

coerência desta terminologia e, em consequência, sua aplicabilidade, com o escopo de se

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evitar as confusões pretorianas, na solução dos casos concretos, usualmente, identificados por

esta locução. Uma vez constatada esta inidoneidade de termos, tratou-se de atribuir nova

terminologia. Ao se analisar as situações fáticas que incorrem como hipóteses de

“desapropriações indiretas”, percebeu-se que, na verdade, duas circunstâncias são abrangidas:

esbulho administrativo e confisco ilegal.

Defende-se que, nos casos de tomada da posse em que não se observou a afetação ao

serviço público, materializa-se esbulho administrativo, que, por sua vez, transforma-se em

confisco ilegal quando o bem esbulhado passa a ser vinculado à finalidade pública e seu

titular, em face desta afetação, não mais possa reivindicá-lo.

Tais conclusões são relevantes, por sua vez, para a definição da modalidade de ação a

qual os titulares do direito de propriedade devem recorrer, quando atingidos pela conduta

ilegal da Administração Pública.

Como o esbulho administrativo não se confunde com quaisquer modalidades de

desapropriação, o proprietário pode recorrer às ações possessórias para a tutela de seus

legítimos interesses. Ora, quando o Poder Público se apossa de determinado bem, o direito

brasileiro assegura, ao titular da propriedade, o recurso às ações possessórias. Destarte, esta é

a solução processual que deve ser acolhida para a resolução dos esbulhos administrativos.

Como confisco ilegal também não se confunde com quaisquer modalidades de

desapropriação, o lesado deve fazer uso de ação de cumprimento de obrigação de fazer,

através da qual se imponha judicialmente à autoridade responsável a conversão do confisco

ilegal em desapropriação regular. Com esta solução, respeita-se tanto a diretriz da Supremacia

do Interesse Público, que impõe a impossibilidade de reivindicação do bem afeto ao serviço

público, como também se busca preservar ao máximo os direitos que o titular teria caso

tivesse deflagrado o procedimento regular de desapropriação.

Com base nas constatações do Law and Economics, defende-se a alteração do

posicionamento jurisprudencial brasileiro para os casos de confisco ilegal, porque se entende

que o pagamento de indenização através do sistema de precatórios representa um incentivo à

prática da expropriação irregular. Entre pagar de forma antecipada a indenização em processo

legal de desapropriação ou se relegar a quitação da reparação financeira para a ordem dos

precatórios, as autoridades podem ser levadas à conclusão de que é mais vantajosa

economicamente a opção pela transgressão das regras estabelecidas para a matéria.

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Defende-se a mudança na orientação jurisprudencial, ainda com base no texto

constitucional, posto que se elege entre os direitos e garantias fundamentais do cidadão o

pagamento prévio e em dinheiro de indenização, nas desapropriações ordinárias ou não-

sancionatórias. Apontada esta prerrogativa individual contra os abusos do Poder Público em

conjunto com o retrato atual do sistema de precatórios, pode-se deduzir sua incompatibilidade

com a busca por uma solução eficaz para os casos de confisco ilegal.

Não se pode olvidar que as deduções apontadas neste estudo são inseridas em uma

moldura restritiva, a qual se elegeu desde a introdução deste esforço doutrinário: a

observância às determinações da ordem legal e o conformismo com o sistema capitalista.

Optou-se por não se poder negar os preceitos legais e as bases do capitalismo, pelo fato de

que os mesmos vinculam a prática social e política brasileira.

Pode-se argumentar, como crítica ao resultado obtido, que as apontadas falhas na

abordagem jurisprudencial para o confisco ilegal e a solução processual proposta

denunciariam pretenso esforço retórico na tentativa de formar uma coletânea de bases

jurídicas com o afã de confirmar sentimento germinal de injustiça perante os casos de

“desapropriação indireta”. Em resposta, defendem-se as linhas teóricas ora defendidas para

enfrentamento dos esbulhos administrativos e confiscos ilegais, como esforço, nos limites da

lei de desapropriação, no sentido de conferir eficácia à garantia constitucional do pagamento

prévio da indenização ou, ao menos, a atribuição ao proprietário afetado por prática

administrativa ilegal de resultado prático equivalente ao que desfrutaria, caso a expropriação

fosse regularmente conduzida.

Atuou-se como forma de repudiar a recepção das normas constitucionais como meras

orientações ou sugestões. Se a Constituição, em cláusula pétrea, impõe a prévia indenização

para desapropriações sem caráter sancionatório, que se busque o resultado prático mais

próximo possível deste comando normativo.

Se também é fato que a Constituição determina que as condenações, transitadas em

julgado, contra a Fazenda Pública sejam inseridas na lei orçamentária para pagamento no

exercício financeiro seguinte, tratou-se de buscar tutela processual que não implicasse em

condenação de pagar, justamente para se evadir o tratamento dos confiscos ilegais da

amplitude do campo de aplicação das regras dos precatórios.

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Grande desafio consistia em afastar a resolução dos casos de confisco ilegal ao confuso

e falido sistema de pagamento por precatórios. Se a norma em abstrato que rege a emissão e

pagamento de precatórios já se demonstra iníqua para os casos de confisco ilegal, o retrato

prático e as recentes alterações promovidas pela Emenda Constitucional n. 62/09 elevam ao

grau de inaceitabilidade absoluta a submissão do direito do proprietário à infindável fila dos

precatórios. Não se pode sujeitar este imbróglio ao titular de um direito protegido com a

garantia constitucional da prévia indenização, para as hipóteses ordinárias de desapropriação.

Como forma de equacionar os interesses públicos e privados sem ferir a regra, também

constitucional, dos precatórios, apresentou-se o recurso à ação de obrigação de fazer, através

da qual o prejudicado pelo confisco ilegal pode impor à autoridade administrativa competente

a observância do dever de promover o devido procedimento de desapropriação do bem.

Assim, através da solução proposta, o proprietário do bem afetado por confisco ilegal pode,

ao mesmo, receber a quantia relativa ao depósito prévio para imissão na posse, na forma

prevista nas normas desapropriatórias. Tal fato já atenua os prejuízos do titular do direito de

propriedade sem se afetar a regra constitucional dos precatórios. Para esta parcela, paga a

título de depósito prévio por imissão na posse, somente os efeitos financeiros pelo decurso do

lapso temporal entre a afetação do bem ao serviço público e o devido pagamento da

indenização seriam passíveis de resolução por perdas e danos.

Ainda com relação à relevância prática da ação de conversão de confisco ilegal em

desapropriação, alerta-se a concentração neste feito processual da comprovação dos fatos

relativos à ocupação irregular do bem, além de se permitir ampla conciliação entre as partes e

antecipação de procidências próprias do regular procedimento desapropriatório. Ademais,

como já enfatizado, o expropriado pode receber, caso não se formule composição amigável,

parcela pecuniária pertinente a percentual do depósito prévio, sem necessidade de observância

de precatório, seja como medida coercitiva para cumprimento da obrigação de conversão ou

como decorrência regular do processo judicial de desapropriação. Na atual ação de

desapropriação indireta, em contrapartida, já se remete toda a discussão para uma única causa

judicial, na qual toda a matéria factual é tratada de maneira uniforme, sendo que a única

resolução viável é a reparação por perdas e danos.

Consciente da impossibilidade de se conceber uma obra jurídica definitiva, urge a

recepção deste esforço de promoção da justiça, como um primeiro passo para um debate que

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conduza à resolução para o confisco ilegal, de forma a respeitar os preceitos constitucionais e

as garantias individuais.

Se é certo que a necessidade de ponderar princípios conflitantes das esferas pública e

privada confere maior liberdade interpretativa ao julgador nos casos concretos, que se

recepcione o estudo em apreço como fonte de reflexão para as mudanças a que a temática

precisa ser submetida, ao menos para que o agentes públicos sejam induzidos ao cumprimento

das regras desapropriatórias. Para que as vantagens práticas da inobservância da lei sejam

suplantadas, torna-se imprescindível a imposição de sanção, cuja dosimetria implique em

afetação da órbita de direitos do responsável, de tal forma que a prática infracional torne-se

desvantajosa. Caso persista a abordagem jurídico-legal que se constata atualmente, continuar-

se-á a permitir o recurso a prerrogativas de Direito Público como escudo para acobertamento

e incentivo a práticas administrativas irresponsáveis.

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