DA CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE NARRATIVA NA OBRA “O SI-MESMO COMO UM OUTRO” DE RICOEUR

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Pólemos, Brasília, vol. 1, n. 1, maio 2012 DA CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE NARRATIVA NA OBRA “O SI-MESMO COMO UM OUTRO” DE RICOEUR Paulo Gilberto Gubert Resumo: O núcleo desta pesquisa consiste em demonstrar quais são as condições de compreensão do conceito de identidade narrativa em Paul Ricoeur, a partir da obra: “O si -mesmo como um outro”. Inicialmente, num aspecto puramente descritivo, é apresentado um “si” que tem a possibilidade de agir, sendo necessária a identidade pessoal para estabelecer a temporalidade da existência humana, por meio de duas noções de permanência no tempo: a identidade idem e a identidade ipse. Estas, respectivamente, equivalem ao caráter e à promessa. Cabe à narrativa garantir a unidade da vida e apontar os limites entre o poder de agir e a imputabilidade inerente à ação. Palavras-Chave: ação, identidade, idem, ipse, narrativa. Abstract: The kernel of this research consists in to demonstrate which are the conditions of the comprehension of the concept of narrative identity in Paul Ricoeur‟s book: “Oneself as Another”. Initially, at a purely descriptive aspect, it is presented as “self” that has a chance to act, being necessary to personal identity to establish the temporality of human existence by means of two notions of permanence in time: the idem identity and the ipse identity. These respectively are equivalents to the character and promise. Its behoove to the narrative to ensure the unity of life and to point the limits between the power of acting and the imputability inherent to the action. Keywords: action, identity, idem, ipse, narrative. 1. Introdução Na obra: “O si-mesmo como um outro”, Ricoeur elabora, primeiramente, uma “hermenêutica da ação”, introduzindo a idéia de que o indivíduo compreende a si mesmo narrando suas próprias experiências e que é possível descrever a ação humana como um texto a ser interpretado. O “interpretar” passa a significar a possibilidade de imaginar a situação proposta pelo texto e, em seguida, compreendê-lo na singularidade de nossa vida, nas situações de nosso cotidiano. Dessa forma, um dos objetivos da hermenêutica, na filosofia ricoeuriana, é estabelecer a condição de possibilidade de interpretação do si. Nesta pesquisa, em um primeiro momento, investiga-se acerca da teoria da ação ricoeuriana, baseada na filosofia da linguagem e na analítica. Esta teoria demonstra-se rica de compreensão e significado. Em nível lingüístico, o si é apresentado e constituído com sucesso, embora se trate de um “si” desistoricizado, que não estabelece relações, visto que,

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O núcleo desta pesquisa consiste em demonstrar quais são as condições de compreensão do conceito de identidade narrativa em Paul Ricoeur, a partir da obra: “O si-mesmo como um outro”. Inicialmente, num aspecto puramente descritivo, é apresentado um “si” que tem a possibilidade de agir, sendo necessária a identidade pessoal para estabelecer a temporalidade da existência humana, por meio de duas noções de permanência no tempo: a identidade idem e a identidade ipse. Estas, respectivamente, equivalem ao caráter e à promessa. Cabe à narrativa garantir a unidade da vida e apontar os limites entre o poder de agir e a imputabilidade inerente à ação.

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    DA CONSTITUIO DA IDENTIDADE NARRATIVA NA OBRA O SI-MESMO

    COMO UM OUTRO DE RICOEUR

    Paulo Gilberto Gubert

    Resumo: O ncleo desta pesquisa consiste em demonstrar quais so as condies de compreenso do

    conceito de identidade narrativa em Paul Ricoeur, a partir da obra: O si-mesmo como um outro. Inicialmente, num aspecto puramente descritivo, apresentado um si que tem a possibilidade de agir, sendo necessria a identidade pessoal para estabelecer a temporalidade da existncia humana, por

    meio de duas noes de permanncia no tempo: a identidade idem e a identidade ipse. Estas,

    respectivamente, equivalem ao carter e promessa. Cabe narrativa garantir a unidade da vida e

    apontar os limites entre o poder de agir e a imputabilidade inerente ao.

    Palavras-Chave: ao, identidade, idem, ipse, narrativa.

    Abstract: The kernel of this research consists in to demonstrate which are the conditions of the

    comprehension of the concept of narrative identity in Paul Ricoeurs book: Oneself as Another. Initially, at a purely descriptive aspect, it is presented as self that has a chance to act, being necessary to personal identity to establish the temporality of human existence by means of two notions

    of permanence in time: the idem identity and the ipse identity. These respectively are equivalents to

    the character and promise. Its behoove to the narrative to ensure the unity of life and to point the limits

    between the power of acting and the imputability inherent to the action.

    Keywords: action, identity, idem, ipse, narrative.

    1. Introduo

    Na obra: O si-mesmo como um outro, Ricoeur elabora, primeiramente, uma

    hermenutica da ao, introduzindo a idia de que o indivduo compreende a si mesmo

    narrando suas prprias experincias e que possvel descrever a ao humana como um texto

    a ser interpretado. O interpretar passa a significar a possibilidade de imaginar a situao

    proposta pelo texto e, em seguida, compreend-lo na singularidade de nossa vida, nas

    situaes de nosso cotidiano. Dessa forma, um dos objetivos da hermenutica, na filosofia

    ricoeuriana, estabelecer a condio de possibilidade de interpretao do si.

    Nesta pesquisa, em um primeiro momento, investiga-se acerca da teoria da ao

    ricoeuriana, baseada na filosofia da linguagem e na analtica. Esta teoria demonstra-se rica de

    compreenso e significado. Em nvel lingstico, o si apresentado e constitudo com

    sucesso, embora se trate de um si desistoricizado, que no estabelece relaes, visto que,

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    neste ponto, o outro ainda no est includo na reflexo. Portanto, trata-se da relao de um

    si consigo mesmo.

    Por conta desta relao totalmente egolgica, a questo da identidade pessoal surge

    com muita fora. Para Ricoeur, a identidade pode ser percebida, de dois modos distintos, com

    relao permanncia no tempo: trata-se do idem e do ipse. O idem possui a

    caracterstica da mesmidade, da permanncia no tempo, o ser que idntico a si e imutvel

    atravs do tempo, ou seja, sempre o mesmo. O ipse no reflete acerca de algum ponto

    invarivel ou imutvel da personalidade. Ipseidade compreende a identidade pessoal,

    reflexiva, marcada pela alteridade.

    A identidade pessoal permitir, atravs do desdobramento idem e ipse, desenvolver a

    teoria da identidade narrativa, que por sua vez, se insere no mbito da unidade narrativa de

    uma vida. Por fim, ser demonstrada a importncia de um si que se narra e quais so as

    implicaes ticas derivadas de sua plena historicidade.

    2. A Importncia do Discurso e da Ao

    Paul Ricoeur, na obra: O si-mesmo como um outro, do Primeiro ao Quarto Estudos1,

    trata, em perspectiva analtica, das relaes entre agente e ao. Ele desenvolve uma teoria

    da ao, que vai desembocar na dialtica entre ipseidade e mesmidade. Mais precisamente,

    os dois primeiros Estudos se referem ao discurso e o terceiro e o quarto Estudos referem-se

    ao.

    Inicialmente, Ricoeur, nos dois primeiros Estudos, se situa no plano do discurso.

    Trata-se de uma anlise da linguagem ordinria. Duas questes bsicas so apresentadas. De

    quem falamos quando designamos [...] a pessoa como distinta das coisas? e quem fala

    designando-se a si mesmo como locutor (dirigindo a palavra a um interlocutor)? (RICOEUR,

    1991, p. 29). A partir destas questes, Ricoeur afirma que cada pessoa um indivduo

    (Primeiro Estudo) e um particular de base (Segundo Estudo).

    Segundo Ricoeur, a pessoa no apenas um indivduo qualquer, mas um cada um

    de fato. Ora, cada um uma pessoa e possui um corpo. As noes de pessoa e de corpo so,

    de acordo com Ricoeur, primrias, de forma tal que no se poderia identificar um ser humano

    1 Convencionou-se empregar o termo Estudo com letra maiscula, por se tratar de uma terminologia

    utilizada por Paul Ricoeur. De acordo com ele, seus Estudos possuem um carter fragmentrio, sendo que, cada um dos Estudos constitui uma parte total, autorizando o leitor a iniciar a leitura de sua obra no Estudo que considerar mais oportuno. Assim se justifica que o ttulo de estudo tenha sido preferido ao de captulo (RICOEUR, 1991, p. 31).

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    sem pressupor estes dois conceitos. Contudo, a questo da pessoa como particular de base

    ainda no indica um sujeito que possa designar-se falando de si prprio. A pessoa apenas

    (uma das coisas) de que se costuma falar e no ela mesma um indivduo falante.

    O ato de falar a primeira manifestao do agir. a partir da fala que so

    determinadas todas as outras modalidades do agir: a filosofia da aco , na sua fase

    analtica, uma semntica das frases de aco e na sua fase reflexiva, uma investigao sobre

    as formas de o agente se dizer e se reconhecer verbalmente autor de seus prprios actos

    (RICOEUR apud SILVA, 2001, p. 6).

    No Terceiro e Quarto Estudos, Ricoeur desenvolve a teoria da ao no sentido

    considerado por ele restrito e limitado que esta teoria herdou da filosofia analtica de lngua

    inglesa. Estes Estudos possuem uma forte ligao com os dois primeiros Estudos (de filosofia

    da linguagem), que lhes servem de organon.

    Especificamente no Terceiro Estudo, Ricoeur apresenta as aes puras, independentes

    de seus agentes. So investigados os motivos e as causas da ao, em que se sobressaem s

    perguntas: o qu? e porqu? sobre a pergunta quem?. A perspectiva de que se possa

    ler a ao como se ela fosse um texto. Neste sentido, estabelecer uma relao entre a aco

    e um conjunto de motivos como interpretar um texto relacionando-o com seu contexto

    (SILVA, 2001, p. 6).

    A relao da ao2 com seu agente perpassa o Quarto Estudo, a partir da pergunta:

    quem?. A pessoa, neste contexto, algum que pode agir. Sua ao no desprovida de

    intencionalidade. A tarefa da questo quem?, a ascrio da ao ao seu agente. Por

    ascrio entende-se a pessoa enquanto particular de base, sujeita atribuio de predicados,

    ou seja, a pessoa uma entidade nica, a qual se atribuem predicados fsicos e psquicos.

    Estes predicados podem ser atribudos a um si-mesmo e a um diverso de si. O conjunto de

    estudos relativos aco est intimamente ligado aos estudos anteriores pelo facto de ser nos

    enunciados e proposies que se descreve a aco. E porque no acto de discurso que o

    locutor se torna agente e se designa como o autor de seu acto(SILVA, 2001, p. 6).

    2 As aes so, segundo Ricoeur, entidades to extraordinrias, e o vnculo entre a ao e seu agente

    constitui uma relao to original, que a teoria da ao tornou-se realmente uma coisa diferente de uma simples

    aplicao da anlise lingstica esboada (1991, p. 73).

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    3. A Identidade Pessoal

    A partir do Quinto Estudo, Ricoeur trata da questo da identidade. Ele reconhece que,

    seus quatro Estudos iniciais, regidos sob a gide da anlise, so simplesmente descritivos, por

    no levarem em conta a dimenso temporal tanto do si, quanto da prpria ao. Ora, a pessoa

    da qual se fala, ou seja, o agente do qual depende a ao, possui uma histria. Portanto, a

    identidade pessoal s poder se articular na dimenso temporal da existncia humana.

    A identidade pessoal se baseia nos princpios da mesmidade e da ipseidade. Estes

    princpios se constituem em uma forma de permanncia no tempo que responda pergunta:

    Quem sou eu?. Quando falamos de ns mesmos, usamos dois modelos de permanncia no

    tempo: o carter e a palavra considerada [promessa]. Num e noutro, reconhecemos de bom

    grado uma permanncia que dissemos ser de ns mesmos (RICOEUR, 1991, p. 143).

    A mesmidade3 busca um princpio de permanncia invarivel no tempo, mesmo

    quando parea ter sido tudo mudado. Por analogia, pode-se pensar a mesmidade como se

    fosse o cdigo gentico de uma determinada pessoa. O que permanece aqui a

    organizao de um sistema combinatrio; a idia de estrutura, oposta de acontecimento,

    responde a esse critrio de identidade [...] (RICOEUR, 1991, p. 142). De fato, a questo da

    identidade pessoal gira sempre em torno de um invariante que represente a permanncia no

    tempo, ou seja, a estrutura invarivel de um instrumento do qual teremos progressivamente

    mudado todas as peas (RICOEUR, 1991, p. 142).

    De acordo com Ricoeur, o carter o conjunto total das marcas distintivas que

    permitem reidentificar um sujeito como o mesmo. Trata-se de uma continuidade ininterrupta,

    aquilo que permanece no tempo. Assim, ele designa de modo emblemtico (simblico) a

    mesmidade do sujeito. a permanncia substancial. Portanto, pode-se tambm compreender o

    carter como a mesmidade na totalidade.

    Alm da mesmidade, existe um modo de proceder que caracteriza a promessa (palavra

    mantida na fidelidade palavra dada). Trata-se da constncia a si, ou ipseidade4. Uma coisa

    a perseverao do carter; uma outra, a perseverao da fidelidade palavra dada. Uma

    3 A mesmidade se refere sempre ao temperamento, ou ao carter das pessoas e significa dizer que cada

    uma a mesma para si mesma (VILLA, 2000, p. 483). Alm disso, a mesmidade significa: continuar igual atravs do tempo. Os mesmos traos corporais, fisionmicos, mais ou menos variam. Se algum tiver de todos os

    anos uma fotografia, vai ver que muda de ano em ano, mas muito pouco, pois continuam os mesmos traos

    fisionmicos e o mesmo carter (RABUSKE, 1995, p. 142). 4 A ipseidade significa ser autntico, responsvel, manter a palavra dada. A ipseidade no pode ser

    provada, por uma prova dedutiva ou uma prova emprica, ela s pode ser atestada. Para ser eu mesmo, preciso do

    Outro (RABUSKE, 1995, p. 142).

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    coisa a continuao do carter; uma outra a constncia na amizade (RICOEUR, 1991, p.

    149). A ipseidade estabelece uma dialtica que vai para alm do si. Diferentemente da

    mesmidade, ela busca o dilogo do si com o diverso do si. Na mesmidade, o outro apenas

    oposto ou distinto de mesmo. No entanto, de acordo com Ricoeur, a alteridade e a ipseidade

    andam juntas, num grau to elevado de intimidade, que no possvel pensar uma sem pensar

    na outra. Portanto, somente ser possvel a manuteno da identidade5, ser constante a si

    mesmo, no momento em que se fiel quilo que se promete. pela promessa feita a algum

    que a ipseidade desponta.

    A partir dos modelos de permanncia no tempo (carter e promessa) que, segundo

    Ricoeur, poder-se- fazer uma distino bem fundamentada entre a identidade idem e a

    identidade ipse, por meio de uma interveno da identidade narrativa na constituio da

    identidade pessoal.

    4. A Identidade Narrativa

    No Sexto Estudo, Ricoeur afirma que compreender a histria de uma vida significa

    tentar estabelecer a articulao de uma teoria narrativa da identidade pessoal, ou seja, a

    identidade narrativa. Sob este ngulo, preciso construir uma teoria narrativa que contribua

    com a constituio do si6. Desta forma, Ricoeur pretende demonstrar que atravs da teoria

    narrativa7 que a dialtica da ipseidade e da mesmidade atinge sua plena expanso.

    A noo de identidade narrativa apresentada por Ricoeur como o entrecruzamento

    entre histria e fico. Neste entrecruzamento, as histrias contadas pelas pessoas ao seu

    prprio respeito se tornam mais inteligveis quando buscam na fico modelos narrativos que

    5 O si , portanto, o sujeito que assume a dialtica de sua identidade, na perpetuao de seu carter

    (idem) e na manuteno de sua palavra e promessa (ipse). aquele que acompanha a histria de suas

    transformaes, para por a experincia da alteridade; o sujeito que agente de suas aes, e paciente, no gozo

    ou na dor dos outros (GARRIDO, 2002, p. 130). 6 Com relao constituio de si-mesmo, possvel inferir, numa perspectiva ricoeuriana, que entre o

    ponto de partida e o ponto de chegada h um processo, h um tempo que passa e que tudo transforma. Um tempo

    que tambm constitutivo desse sujeito, sua vida, sua histria. Um tempo em que ele sofre mudanas,

    transforma-se em outro. ele mesmo, mas outro. J no o mesmo de quando partiu, no entanto, ainda ele

    mesmo. Si-mesmo como um outro. Para dar conta dessa dimenso temporal do sujeito, dessa alteridade temporal

    que tambm o constitui como si-mesmo, Ricoeur cunhou a noo de identidade narrativa (GENTIL, 2008, p. 10). 7 As narraes sempre se referem a coisas que acontecem no tempo, ao passo que as descries dizem

    respeito a coisas que acontecem no espao. A msica est no tempo, mas basta que a coloquemos na partitura e ela passa a estar no espao. Da mesma forma o pensamento: ele ocorre em nossa mente no tempo, mas se o

    escrevemos, ele estar no espao (IUSKOW, 1998, p. 150).

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    so aplicados prpria histria8. Pareceria, portanto, plausvel considerar vlida a cadeia

    seguinte de asseres: a compreenso de si uma interpretao; a interpretao de si, por sua

    vez, encontra na narrativa [...], uma mediao privilegiada (RICOEUR, 1991, p. 138).

    Para se constituir a identidade narrativa, que supe histria e fico, necessariamente

    se depende de um enredo (intriga), que estabelea as devidas conexes entre os

    acontecimentos que compem uma determinada histria. A intriga nas narrativas de fico

    o mediador entre o acontecimento e a histria, o acto de tomar juntamente os ingredientes

    da aco que, na experincia vulgar, permanecem heterogneos e discordantes(RICOEUR,

    1989, p. 09).

    De acordo com Ricoeur, o personagem o responsvel pela ao da narrativa.

    quando se passa da ao ao personagem que se pode conceber uma identidade pessoal pela

    narrativa. O encadeamento da narrativa se d quando se respondem s perguntas: quem?, o

    qu?, como?. As respostas a estas perguntas abarcam personagem, temporalidade e

    conexo de fatos. As [...] respostas a essas questes formam uma cadeia que no outra que

    no o encadeamento da narrativa. Relatar dizer quem fez o que, por que e como, mostrando

    no tempo a conexo entre esses pontos de vista. (RICOEUR, 1991, p. 174).

    A pessoa, ao ser compreendida como personagem de uma narrativa, no separada de

    suas prprias experincias. Na verdade, sua identidade necessariamente interage com a

    histria relatada9, que tambm faz parte da identidade. A narrativa constri a identidade do

    personagem que podemos chamar sua identidade narrativa, construindo a da histria relatada.

    a identidade da histria que faz a identidade do personagem (RICOEUR, 1991, p. 176). A

    partir da relao entre histria e personagem, pode-se inferir a unidade narrativa de uma

    vida, pois, no h dvidas de que a vida mais que uma seqncia de atos ou episdios

    desconexos. O contrrio que vale, os atos ou episdios vividos constituem uma mesma

    unidade narrativa de vida (ROSSATTO, 2008, p. 26).

    Segundo Ricoeur, as pessoas possuem experincias do que seja terminar um curso de

    ao, ou seja, uma parte da vida. So as fases da vida que se costuma falar. Pela literatura,

    fixamos o contorno destes fins provisrios, conseguimos compreend-los melhor, entendendo

    8 A vida humana se torna mais legvel, quando interpretada a partir das histrias que cada pessoa

    conta a respeito de si mesma. Por exemplo, uma biografia, ou at uma autobiografia, quando combina histria

    com elementos romanceados, demonstra de que forma a identidade narrativa se situa no cruzamento entre fico

    e histria. Estas histrias de vida no so tornadas, por sua vez, mais inteligveis quando lhes so aplicados modelos narrativos intrigas obtidas por emprstimo histria propriamente dita ou fico (drama ou romance)? (RICOEUR, 1991, p. 138). 9 As narrativas literrias e as histrias de vida, no se excluem, mas completam-se, a despeito ou por

    causa de seu contraste. Essa dialtica nos lembra que a narrativa faz parte da vida antes de se exilar da vida na

    escrita; [depois], ela volta vida (RICOEUR, 1991, p. 193).

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    que uma fase passou e se iniciou outra. Mesmo com relao morte, as narrativas literrias

    no tm a funo de angustiar a pessoa diante de um nada desconhecido, mas podem ensinar a

    viver com conscincia da morte. Ricoeur usa o exemplo da meditao da Paixo de Cristo,

    que j levou muitos fiis fervorosos consolao at os ltimos momentos da vida. Este tipo

    de consolao no deixa de ser uma maneira lcida, como a catarse de Aristteles, de uma

    pessoa fazer luto de si mesma. Aqui uma troca frutuosa pode instaurar-se entre a literatura e

    o ser-para-(ou para-com)-a-morte (RICOEUR, 1991, p. 192).

    Em virtude de a narrativa literria ser retrospectiva, pode parecer, num primeiro

    momento, que s pode levar a refletir sobre o passado da vida. Mas, na verdade, a narrativa

    literria s parece ser retrospectiva aos olhos do narrador. Entre os fatos narrados num tempo

    passado, tomam lugar os projetos, as esperas, as antecipaes, atravs dos quais os

    protagonistas da narrativa so orientados para seu futuro mortal (RICOEUR, 1991, p. 192).

    Portanto, a narrativa tambm aponta para o futuro, pois ela relata uma preocupao.

    5. A Narrativa e a tica

    Ricoeur pretende demonstrar como se estabelecem as relaes entre a narrativa e a

    tica10, propondo a seguinte questo: de que maneira a componente narrativa da

    compreenso do si pede como complemento as determinaes ticas prprias imputao

    moral da ao a seu agente? (RICOEUR, 1991, p. 193).

    As implicaes ticas esto presentes j no prprio ato de buscar o enraizamento da

    narrativa literria no solo da narrativa oral, no plano da prefigurao narrativa (RICOEUR,

    1991, p. 193). O ato, ou a arte de narrar , sem dvida, uma troca de experincias, no

    cientficas, mas populares, que dizem respeito sabedoria prtica. Esta sabedoria tem

    implicaes, como apreciaes e aplicaes que so abordadas pelas categorias teleolgicas e

    deontolgicas. Na troca de experincias, que a narrativa opera, as aes no deixam de ser

    aprovadas ou desaprovadas, e os agentes, de ser elogiados ou censurados (RICOEUR, 1991,

    p. 194).

    Segundo Ricoeur, a narrativa, ao pisar no solo da tica, reincide sobre a questo da

    identidade. Conforme mencionado acima, a identidade possui dois modos de permanncia no

    10

    A distino entre tica e moral, convencionada por Ricoeur, trata a tica enquanto perspectiva de uma

    vida concluda e a moral enquanto articulao dessa perspectiva em normas. Aqui se distingue claramente o legado aristotlico e o legado kantiano: uma herana aristotlica, em que a tica caracterizada pela perspectiva teleolgica, e uma herana kantiana, em que a moral definida pelo carter de obrigao da norma, portanto, por

    um ponto de vista deontolgico (RICOEUR, 1991, p. 201).

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    tempo. Trata-se da mesmidade, marcada pelo carter que a identifica, e da ipseidade, marcada

    pela tica, que se pauta na responsabilidade.

    A manuteno de si [ipseidade] para a pessoa a maneira de se comportar tal que o

    outro possa contar com ela. Porque algum conta comigo, eu sou responsvel por

    minhas aes diante de um outro. O termo de responsabilidade rene as duas

    significaes: contar com..., ser responsvel por... Ele as rene, acrescentando a a idia

    de uma resposta: Onde est voc? indagada por outro que me solicita. Esta resposta : Eis-me aqui. Resposta que enuncia a manuteno do si (RICOEUR, 1991, p. 195).

    De acordo com Ricoeur, entre a imaginao que diz que possvel tentar tudo e a

    voz que diz: tudo possvel, mas nem tudo benfico, subentende-se, no segundo caso, que

    seja aos outros e a si mesmo. Certamente, o sujeito11

    poder tentar tudo, mas na promessa

    que ele pode sustentar sua individualidade, sem desrespeitar a individualidade do outro.

    Assim, pode-se afirmar que a narrativa est vinculada identidade de um sujeito

    concreto, que age, interage e se comunica com os outros12

    . Alm disso, pertence idia de

    ao que ela seja acessvel a preceitos que, sob a forma do conselho, da recomendao, da

    instruo, ensinam a ter bom xito, portanto, a fazer bem o que empreendemos13

    (RICOEUR, 1991, p. 200).

    11

    O uso do termo sujeito denota, no pensamento de Ricoeur, uma reafirmao do si. Desenvolver uma hermenutica do si significa garantir um carter epistmico ao sujeito, diferenciando-o das filosofias do cogito e do anti-cogito. O cogito cartesiano o princpio fundador das filosofias egolgicas. Trata-se um eu exaltado, a ponto de perder a relao interlocutria com os outros, com sua prpria historicidade e com a responsabilidade de si-mesmo. Por outro lado, Nietzsche, no exerccio da dvida hiperblica, se torna ele prprio

    o gnio maligno, denunciando a maior iluso que ele percebe no cogito. Esta iluso se caracteriza por uma inverso de causas e efeitos, ou seja, no cogito, o eu efeito e no causa do pensamento. Dessa forma, Ricoeur no pretende estabelecer uma nova forma de exaltao do sujeito, visto que, o sujeito, para Ricoeur, no fundamento, nem do conhecimento, nem da existncia do mundo, nem de si mesmo. um sujeito que, por

    relao tradio francesa de raiz cartesiana, pode ser sugerido pela expresso cogito ferido ou cogito partido, um sujeito justamente atravessado e constitudo pela alteridade (GENTIL, 2008, p. 07). 12

    O sujeito no vive sozinho no mundo, isolado como se estivesse numa ilha sozinho, como o personagem principal da primorosa obra de Daniel Defoe: Robinson Cruso. Do contrrio, verdade que convivo com outros, vivo entre outros, prximos e distantes, no tempo e no espao. No tempo: meus antecessores, para com os

    quais tenho uma dvida que devo reconhecer; meus sucessores, que devo levar em considerao nas

    conseqncias de minhas aes, e, portanto, em minhas deliberaes e decises. A promessa, explcita e

    implcita, em cada iniciativa minha, pede para ser honrada. No espao: meus contemporneos, prximos e

    distantes, da intimidade do amor impessoalidade do anonimato, passando pela pessoalidade da amizade (GENTIL, 2008, p. 07). 13

    H ainda um terceiro aspecto que vale mencionar. Para Ricoeur, a noo de identidade narrativa tambm pode

    contribuir no desenvolvimento de um espao imaginrio para experincias de pensamento em que o julgamento moral se exerce de modo hipottico (1991, p. 200).

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    6. Consideraes finais

    Esta pesquisa teve por objetivo, primeiramente, compreender a importncia da

    hermenutica da ao de Paul Ricoeur, que garante as condies de possibilidade para que o

    leitor interprete sua prpria vida e suas aes como se estivesse diante de um texto. Para

    tanto, procurou-se enfatizar a importncia da descrio e da narrao. No momento analtico,

    a primeira afirmao que se pode fazer a de que o humano pessoa e corpo, que pode

    ser descrito, uma coisa da qual se pode falar. Entretanto, segundo Ricoeur, os enunciados

    proferidos somente tero significado no contexto de aplicao (interlocuo). Portanto, o ato

    de falar que constitui a primeira manifestao do agir. Qualquer modalidade da ao

    sempre antes definida pela fala.

    A ao necessariamente depende de um agente. O agente algum que tem

    possibilidade de agir, tornando-se o locutor que se designa como autor de seus prprios

    atos. Entretanto, a descrio, situada no mbito da filosofia analtica, da pura filosofia da

    ao, descreve com propriedade o si, mas o apresenta desistoricizado, sem nenhuma

    implicao tica, pois trata apenas de um si que pode agir.

    Diante deste contexto, a abordagem da questo da identidade pessoal se mostrou

    necessria, visto que, o agente do qual depende a ao, algum que possui uma histria. A

    identidade pessoal s pode ser estabelecida na temporalidade da existncia humana. Neste

    ponto, duas noes fundamentais de permanncia no tempo so propostas por Ricoeur: a

    mesmidade e a ipseidade. A mesmidade configura um carter ao si e refere-se a tudo o que

    permanece invarivel no indivduo atravs do tempo. A ipseidade que possibilita ao si

    extrapolar o mbito do carter, atravs da promessa e da manuteno da palavra dada ao

    outro.

    Contudo, a identidade pessoal necessita do auxlio da narrativa. Elemento

    indispensvel na filosofia hermenutica de Ricoeur, a narrativa mediadora entre o poder da

    ao e a responsabilidade do si. a narrativa que garante a unidade de uma vida. Assim como

    num texto, a vida uma unidade de fatos que pode ser narrada. Portanto, se a narrativa pode

    assegurar a unidade de toda uma vida, deve poder abarcar no s uma identidade pessoal, mas

    tambm questes ticas. Quando o si narra suas experincias, a um outro que ele narra. E o

    outro tambm capaz de narrar suas prprias experincias ao si. atravs da narrativa que as

    pessoas se apercebem de que podem tentar tudo, pois sabem que tm poder para agir.

    Entretanto, pela narrativa tambm entendem que, se tudo possvel, talvez nem sempre tudo

    seja benfico, tanto para si mesmas, quanto para os outros.

  • 145 Da Constituio da Identidade Narrativa na Obra O Si-Mesmo como um Outro de Ricouer

    Plemos, Braslia, vol. 1, n. 1, maio 2012

    Por fim, importante mencionar que a identidade narrativa no encerra com as

    pretenses dO si-mesmo como um outro. Ricoeur inicia o Stimo Estudo apresentando o

    terceiro conjunto de investigaes que compem a obra. Estas investigaes sero

    responsveis por acrescentar e analisar a contribuio tica e moral para a linguagem prtica e

    narrativa da ipseidade, demonstrando o primado da perspectiva tica sobre a norma moral.

    Referncias Bibliogrficas

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