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Sinapse Ambiental edição especial – Abril de 2008
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DA AMAZÔNIA PARA O CERRADO: AS RESERVAS
EXTRATIVISTAS COMO ESTRATÉGIAS SÓCIOAMBIENTAIS
DE CONSERVAÇÃO.
Ricardo Ferreira Ribeiro ([email protected])1 1 - Professor do Curso de Ciências Biológicas – PUC Minas
Resumo
O presente artigo tem por finalidade debater a proposta de criação de Reservas
Extrativistas, surgida na Amazônia, e, hoje, reivindicada também para o Bioma Cerrado, frente à destruição que vem sofrendo pelo avanço recente da fronteira agrícola sobre o seu território.
Palavras- chave: Cerrado; Reserva Extrativista; Comunidades Tradicionais
Introdução: o Cerrado em perigo
Tema recente no debate, tanto nos meios populares, que a reivindicam, como
entre os ambientalistas, que se dividem em sua defesa, a proposta de criação de Reserva
Extrativista, no Cerrado, dá ainda os primeiros passos para a sua concretização. Assim,
o que se pretende aqui é apresentar uma contribuição a esse debate, apontando suas
origens históricas e as perspectivas para sua viabilização, dentro de um contexto maior
das discussões em torno das questões sociais e ambientais.
O Cerrado é o segundo bioma brasileiro, com uma área em torno de 204 milhões
de hectares, que se distribui, sobretudo, pelos estados de Minas Gerais, Goiás, Mato
Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Bahia, Piauí, Maranhão e Distrito Federal.
Localizado numa área central do Brasil, se conecta com quase todos os outros biomas,
constituindo áreas de transição entre eles e representando um ponto de equilíbrio entre
as diversas paisagens brasileiras. Localizado no Planalto Central, em altitudes que
variam de 300 a 600 metros, é chamado de a “cumieira do Brasil” e também da América
do Sul, porque distribui uma significativa quantidade de água que forma as principais
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bacias do continente: Amazônica, do São Francisco, do Paraná/Prata, do Doce, do
Jequitinhonha, do Parnaíba, dentre outras (PIMENTEL, 1977). Além de possuir uma
das mais expressivas biodiversidades do planeta, o Cerrado também apresenta uma
grande diversidade de ambientes, incluindo paisagens florestais (mata ciliar, mata de
galeria, mata seca e cerradão), como savânicas (cerrado sentido restrito, parque cerrado,
palmeiral e vereda) e campestres (campo sujo, campo rupestre e campo limpo)
(RIBEIRO; WALTER, 1998). Essa diversidade de espécies e ambientes permitiu a
constituição de variadas estratégias de reprodução social por diferentes culturas que
conviveram ou se sucederam nesse bioma, desde que os primeiros grupos humanos
penetraram o Cerrado há mais de 12 mil anos, desenvolvendo a caça, a pesca e a coleta
vegetal até as comunidades tradicionais, que ainda vivem ali (RIBEIRO, 2005).
Nenhum bioma brasileiro sofreu um processo de destruição tão acelerado, como
o que se observa no Cerrado nas últimas quatro décadas, especialmente favorecido pela
construção da nova capital federal no centro do seu território e pelas estradas que lhe
dão acesso. O Estado implementou, a partir do início dos anos 70, diversos programas
de desenvolvimento do Cerrado, baseados em um uso intensivo de tecnologia e capital e
no preço baixo das terras favoráveis à mecanização e que compensavam os
investimentos destinados à correção do solo. Já havia, naquele momento, todo um
conhecimento científico e tecnológico suficiente para torná-lo produtivo e
economicamente viável. Vantagem que se somava à sua topografia plana, que facilitava
a mecanização, e à sua localização e infra-estrutura disponível, que ofereciam melhores
condições de produção e favoreciam o seu escoamento para os grandes centros urbanos
e os mercados internacionais.
Cerca de 20 anos depois, o Cerrado já possuía grande importância na produção
agrícola brasileira, pois contribuía com 25,4% da soja, 16% do milho, 13,2 % do arroz
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de sequeiro e 8,3 % do café. (SHIKI, 1995). Esses projetos de desenvolvimento tiveram
como pólo irradiador o oeste de Minas, se espalhando gradativamente, até os dias atuais,
para os outros estados cobertos pelo Cerrado.
Os programas de desenvolvimento representaram significativos impactos
ambientais para esse bioma, com centenas de milhares de hectares transformados em
monocultura, que resultaram em prejuízos para a fauna, flora, as nascentes, rios e o solo
da região, com gigantesca perda da biodiversidade, contaminação e assoreamento.
Estudos recentes apontam o quanto o Cerrado teve a sua paisagem modificada pela
intensificação das atividades econômicas ali desenvolvidas desde os anos 1970. Carlos
A. Klink e Ricardo B. Machado (2005) apresentam os resultados baseados em estudo de
Machado et al (2004), que procurou mapear a cobertura vegetal nativa do Cerrado
utilizando imagens de satélite do sensor MODIS (Moderate Resolution Imaging
Spectroradiometer) que está instalado a bordo de dois satélites americanos lançados em
2000: Terra e Aqua1, obtendo os seguintes dados:
QUADRO 1 Principais usos da terra no Cerradoa.
USO DA TERRA ÁREA (ha) % ÁREA CENTRAL DO BIOMA
Áreas nativasb 70.581.162 44,53 Pastagens plantadas 65.874.145 41,56 Agricultura 17.984.719 11,35 Florestas plantadas 116.760 0,07 Áreas urbanas 3.006.830 1,90 Outros 930.304 0,59 Total 158.493.921 100 a Categorias classificadas de acordo com o tipo de cobertura do solo (Machado et al., 2004a). b Estimativas sem aferição em campo e incluindo áreas nativas em qualquer estado de conservação.
Fonte: KLINK; MACHADO, 2005.
1 Sano et al (2001) obtém números diferentes, trabalhando a partir dos dados do Censo Agropecuário 1995/1996, por município, referentes a pastagens cultivadas, pastagens nativas, culturas agrícolas anuais e perenes e outros tipos de uso (áreas em pousio, produtivas não utilizadas, etc). A área preservada representaria, nesse caso, 41 % do total, enquanto as pastagens nativas corresponderiam a 13%, as pastagens cultivadas a 23%, as culturas agrícolas a 5% e outros tipos de uso a 18%.
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Esses pesquisadores apontam que tal destruição adquire números superiores ao
observados na Amazônia, pois os 880.000 km² já desmatados no Cerrado representam
quase três vezes a área correspondente daquele bioma. Não apenas esse quadro é
preocupante, mas também o ritmo de destruição do Cerrado adquire proporções
alarmantes e superiores ao observado, historicamente, em outras paisagens brasileiras:
As taxas anuais de desmatamento também são mais elevadas no Cerrado: entre os anos de 1970 e 1975, o desmatamento médio no Cerrado foi de 40.000 km² por ano – 1,8 vezes a taxa de desmatamento da Amazônia durante o período 1978–1988 (Klink & Moreira, 2002). As taxas atuais de desmatamento variam entre 22.000 e 30.000 km² por ano (Machado et al., 2004a), superiores àquelas da Amazônia. Estas diferenças se devem em parte ao modo que o Código Florestal trata os diferentes biomas brasileiros: enquanto é exigido que apenas 20% da área dos estabelecimentos agrícolas sejam preservadas como reserva legal no Cerrado, nas áreas de floresta tropical na Amazônia esse percentual sobe para 80% (KLINK; MACHADO, 2005, p. 148).
Essa situação de rápido desaparecimento do Cerrado acendeu o alerta vermelho
entre os ambientalistas e, assim, a região foi considerada um Hotspot de biodiversidade2
e torna-se urgente a implementação de uma política ambiental que estanque esse ritmo
de devastação e, ao mesmo tempo, impulsione a criação de unidades de conservação
neste bioma.
Unidades de Conservação de Proteção Integral e de Uso Sustentável
A Lei No 9.985, de 18 de julho de 2000, que institui o Sistema Nacional de
Unidades de Conservação da Natureza – SNUC representou um significativo avanço na
política ambiental brasileira ao consolidar a contribuição das chamadas “populações
tradicionais” e a perspectiva de combinar a conservação da natureza com o seu uso
sustentável. Em trabalho recente, em que estuda a proteção jurídica à diversidade
biológica e cultural, Juliana Santilli resume a sua importância neste campo:
2 O ecólogo inglês Norman Myers criou, em 1988, o conceito Hotspot com o objetivo de delimitar as áreas mais significativas para a conservação da biodiversidade.
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É fácil constatar que grande parte dos conceitos-chave incorporados pela lei que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Lei n° 9.985/2000 conhecida como "Lei do Snuc") tem claramente uma inspiração socio-ambiental, que prevaleceu, em grande parte, sobre conceitos defendidos pelo preservacionismo clássico ou tradicional. A síntese socioambiental permeia todo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, que privilegia a interface entre biodiversidade e sociodiversidade, permeada pelo multiculturalismo e pela plurietnicidade. Apesar de terem sido excluídas do sistema duas importantes unidades de conservação socioambiental - as terras indígenas e as de quilombolas -, pode-se dizer que o conceito de bens socioambientais está presente e consolidado em todo o Snuc (SANTILLI, 2005, p. 112)
Essa lei cria duas categorias de unidades de conservação:
I - Unidades de Proteção Integral, cujo objetivo básico é preservar a natureza, sendo
admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, com exceção dos casos
previstos nesta Lei. (Art. 7º § 1º), define as seguintes categorias (Art. 8º): I - Estação
Ecológica; II - Reserva Biológica; III - Parque Nacional; IV - Monumento Natural e V -
Refúgio de Vida Silvestre.
II - Unidades de Uso Sustentável, que tem como finalidade principal compatibilizar a
conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais.
(Art. 7º§ 2º), possuindo como categorias (Art. 14º): I - Área de Proteção Ambiental; II -
Área de Relevante Interesse Ecológico; III - Floresta Nacional; IV - Reserva
Extrativista; V - Reserva de Fauna; VI - Reserva de Desenvolvimento Sustentável; e VII
- Reserva Particular do Patrimônio Natural (BRASIL, 2006)l.
As Unidades de Proteção Integral seguem uma tradição histórica que, segundo
Diegues (1996), data do século XIX, estando originalmente associada à noção
americana de natureza selvagem – wilderness – que se contrapunha à noção de natureza
domesticada dos europeus. Essa noção, construída a partir da grande destruição florestal
como o avanço da colonização e das empresas de mineração e madeireiras em direção
ao oeste, disseminou a idéia de que o mundo natural só pode ser protegido quando
separado da convivência humana. É, nesse contexto, que surge o primeiro parque
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nacional do mundo, Yellowstone, cuja criação, em 1872, se deu em território dos índios
Crow, Blackfeet e Shoshone-Bannock (DIEGUES, 1996). Esse modelo de unidades de
conservação se expandiu por outros países, alcançando maior expressão, no Brasil, a
partir dos anos 1970, porém tem recebido críticas por resultar em conflitos sócio-
ambientais a partir da expulsão de populações que antes viviam nas áreas que se
pretende preservar. Essas comunidades e aqueles que com elas se solidarizam apontam
que o estado de conservação destas áreas está relacionado exatamente à sua presença ali,
ao seu modo de vida e às relações que desenvolvem com o mundo natural. Embora
reconheçam a importância das unidades de conservação de proteção integral, não as
consideram como a única via possível e criticam a generalização da idéia de que todos
os grupos humanos representam uma ameaça à natureza. Apontam que há, nesse
aspecto, muitas diferenças culturais na forma de se utilizar, manejar e apropriar dos
recursos naturais.
O surgimento das Unidades de Uso Sustentável está ligado a essas críticas, em
particular àquelas que contemplam a presença de populações tradicionais, como a
Floresta Nacional; a Reserva Extrativista e a Reserva de Desenvolvimento Sustentável.
Das três, a segunda possui, sem dúvida, uma característica mais emblemática por estar
associada à organização dos seringueiros e dos povos da floresta na Amazônia, marcada
pela figura de Chico Mendes, cuja luta possui repercussão internacional. Suas origens
remontam ao período da Ditadura Militar, que promoveu uma política de ocupação e de
expansão da fronteira agrícola naquela região, incentivando a sua destruição e que
contribuiu para expulsão de muitos seringueiros, impulsionando um forte movimento de
resistência em defesa da Amazônia e que resultou na criação das Reservas Extrativistas.
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O extrativismo na Amazônia
“O termo extrativismo, em geral, é utilizado para designar toda atividade de
coleta de produtos naturais, seja de origem mineral (exploração de minerais), animal
(peles, carne, óleos), ou vegetal (madeiras, folhas, frutos...)” (RUENDIA, 1995, p. 3).
Considerando os objetivos deste trabalho, vamos tratar, aqui, especialmente da última.
Essa atividade está relacionada com as origens da colonização européia no país e com o
seu próprio nome, pois a exportação de pau-brasil foi a primeira prática comercial de
vulto aqui desenvolvida.
Pode-se imaginar que essa é uma atividade já em franco declínio e sem
expressão econômica e social nos dias de hoje, em um país com um considerável parque
industrial e com uma agricultura tida como uma das mais significativas do mundo. O
levantamento realizado pelo IBGE referente à Produção da Extração Vegetal e da
Silvicultura (2004) (BRASIL, 2004) revela uma grande variedade de produtos
pesquisados: borrachas, gomas não-elásticas (maçaranduba e sorva), ceras (carnaúba e
outras), fibras (buriti, carnaúba, piaçava e outras), tanantes (angico, barbatimão e
outros), oleaginosos (babaçu, copaíba, cumaru, licuri, oiticica, pequi, tucum e outros),
alimentícios (açaí, castanha de caju, castanha-do-pará, erva-mate, mangaba, palmito,
pinhão e umbu), aromáticos, medicinais, tóxicos e corantes (ipecacuanha ou poaia,
jaborandi, urucu e outros), madeiras (carvão vegetal, lenha e em tora) e o pinheiro
brasileiro. É verdade que os dois últimos itens concentram 80% do valor total da
produção da extração vegetal, que alcançou, naquele ano, o montante de R$
3.204.480.000,00. No entanto, não se deve subestimar os demais itens que alcançam o
expressivo valor de R$ 640.887.000,003, embora seja uma atividade muito concentrada
na Região Norte, que lidera a produção de todos os itens, ou, no máximo, em alguns, se
3 Cabe observa que, em 1995, o valor total dessa produção era de R$ 310.985.000,00, significando assim que ela mais que dobrou nos últimos dez anos.
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iguala à do Nordeste, à exceção apenas da erva-mate e do pinhão, produtos típicos do
Sul do Brasil.
O extrativismo está fortemente associado com a colonização da Amazônia, a
partir do século XVIII, com a exportação das chamadas “Drogas do Sertão”, que
incluíam plantas medicinais, óleos, resinas, cacau, etc, que se somavam aos produtos da
caça e da pesca. Essa atividade ganhou novo impulso na segunda metade do século
XIX, quando ocorreu o período conhecido como “ciclo da borracha”, que atraiu cerca
de 400 mil famílias do Nordeste para aquela região, vindo a somar-se aos caboclos e
índios que já se dedicavam à sua exploração. Em torno de 1920, ocorreu o seu declínio,
mas, durante a segunda guerra mundial, ganhou novo fôlego e incentivo oficial com
financiamentos para a comercialização e o beneficiamento, no entanto, a extração da
borracha continuou sofrendo crises periódicas devido aos baixos preços.
O extrativismo da borracha sempre esteve ligado ao da castanha que é praticado nas mesmas áreas; o primeiro, na época menos chuvosa (maio a novembro) e o segundo, no período mais chuvoso (dezembro a março) (...). O extrativismo da borracha e da castanha foi montado e se desenvolveu sobre dois grandes pilares: capital forâneo e latifúndio.. Hoje existem poucos seringais funcionando no modelo tradicional. Com a abertura de estradas e ramais e com o avanço da fronteira agrícola, apareceram muitos intermediários e aos poucos foi desaparecendo a figura do único patrão, dono do seringal, o seringalista (RUENDIA, 1995, p. 4).
O seringueiro não é dono da terra, nem possui contrato de arrendamento e não é
um empregado do seu patrão, mas tem direito a praticar o extrativismo, desde que se
disponha a trocar sua produção pelas mercadorias fornecidas por ele, que lucra com esse
comércio. Alves (1995) revela que em Rondônia havia também a cobrança de renda
pelos patrões, que representava 15% da produção anual da borracha e da castanha
colhida. Além dessa atividade, a renda era completada pela caça, pesca, a coleta de
frutos como açaí, bacaba, patoá, babaçu, o óleo de copaíba, etc e pelas poucas criações e
roçados que consegue desenvolver. Assim a produção do quintal e da roça é para o
consumo familiar e a do extrativismo se destina ao mercado: dessa forma, seu impacto
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ambiental é muito pouco significativo, contribuindo, ao contrário, para a preservação da
floresta.
A Ditadura Militar, porém, promoveu uma política de ocupação e de expansão
da fronteira agrícola na Amazônia que incentivava a sua destruição, através da
implantação de grandes fazendas e empresas madeireiras. Essa política afetou o
extrativismo, pois contribuiu para expulsão de muitos seringueiros, que passaram a
procurar outras áreas para prosseguir na sua atividade. Entre elas havia glebas
adquiridas pelo Governo Federal para a criação de assentamentos de Reforma Agrária,
onde ocorriam seringais abandonados, tornado-se, assim, “seringueiros autônomos”, ou
seja, sem estarem submetidos ao dono da terra. Essa iniciativa contribuiu para a
organização dos seringueiros, que realizavam os “empates”, visando impedir o
desmatamento de áreas de coleta da borracha, da castanha e de outros produtos: essas
lutas ganharam repercussão nacional e internacional.
O Governo Federal começou a refletir sobre a possibilidade de defender o extrativismo, a partir de 1982, quando, no Acre, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, INCRA, e a Superintendência da Borracha, SUDHEVEA, se encontraram frente ao impasse causado pelos projetos de colonização, chamados de Assentamentos Dirigidos, pois os retângulos criados pelo INCRA para assentar colonos desestruturavam o esforço que a SUDHEVEA fazia para aumentar a produção de borracha dos extrativistas, uma vez que o retângulo cortava e desmembrava a "colocação", unidade de produção do seringueiro, formada pela dispersão natural e sinuosa das espécies vegetais. Esta situação deu origem a sérios conflitos entre os vizinhos. Com a participação dos extrativistas e das lideranças sindicais de Rio Branco, Xapuri e Brasiléia foi possível chegar ao consenso de que o mais importante não era ter um título de propriedade individual de uma parcela, mas conservar a capacidade produtiva da floresta e, portanto, não era necessário cortar a terra em pedaços simétricos e retangulares, mas, talvez, encontrar uma forma de assegurar a permanência das famílias nas suas "colocações" exercendo a atividade extrativista. As duas instituições propuseram como solução a "Concessão Real de Uso" do seringal aos seus moradores (RUENDIA, 1995, p.7).
Essa proposta não vingou, mas mostrou que a questão de apropriação da terra
entre os extrativistas necessitava de um outro modelo diferente da forma clássica
promovida nos assentamentos de Reforma Agrária. Foi assim que surgiu a reivindicação
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da criação de Reservas Extrativistas, oficializada, em 1985, no Primeiro Encontro
Nacional dos Seringueiros e que viria a ser concretizada cinco anos mais tarde.
Essa nova forma de apropriação dos recursos naturais representou um
significativo avanço, pois combina a sua preservação com as preocupações sociais de
geração de trabalho e renda para populações pobres daquela região. Cria uma forma
participativa da sua gestão e, ao mesmo tempo, está baseada nos conhecimentos
tradicionais no seu uso e manejo. Também se constitui em uma alternativa a outras
formas de apropriação da terra e dos seus recursos naturais, pois não possui os impactos
ambientais e sociais da grande propriedade rural ou da grande exploração territorial para
barragens, mineração, recursos madeireiros e outros. Seus danos ao meio ambiente se
aproximam daqueles presentes nas unidades de proteção integral, mas possuem custos
menores e benefícios sociais maiores, porque os extrativistas são os próprios guardas
florestais.
Uma prova desse fato é que, surgida da luta dos seringueiros, ela logo foi
absorvida também para os babaçuais do Maranhão e os manguezais de Santa Catarina.
Uma década depois, ela alcançou o Brasil Central e tornou-se uma das reivindicações
dos extrativistas do Cerrado, que enfrentam problemas semelhantes aos observados,
nessas regiões, em relação ao futuro dessa atividade. Para melhor entender essa
reivindicação é importante conhecer a situação atual de conservação desse bioma e as
relações desenvolvidas entre ele e suas populações tradicionais.
Na atualidade, o Cerrado apresenta-se, no que se refere ao percentual de seu
território incluído em unidades de conservação de proteção integral (2,2%), de uso
sustentável (1,9%) e de terras indígenas (4,1%), em uma situação muito inferior ao da
Amazônia, que possui, respectivamente os seguintes números: 5,7%, 7,7 % e 17,7%.
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A preocupação ambiental com o Cerrado é recente: tomando-se apenas as
unidades de conservação federais, segundo dados do IBAMA de 31/12/2006, aquelas
identificadas como pertencentes este bioma4, 75,8% foram criadas nos últimos dez anos.
Quando se constata que 53% desse esforço ocorreu nos últimos cinco anos, percebe-se
que boa parte dessas unidades de conservação ainda estão em implantação e necessitam
do empenho de políticos e técnicos e de investimentos para sua consolidação. Há
também uma clara opção por unidades de proteção integral, que representam 69,6% do
total da área, revelando uma estratégia de conservação mais restritiva em termos de uso
dos recursos naturais e diferente daquela que se observa na Amazônia, como foi já
apresentado. Outro aspecto que merece destaque é que apenas duas categorias de
unidades de conservação (parques nacionais e áreas de proteção ambientais) somam
75,2% do total. Como visto estas não têm por finalidade contemplar a presença de
populações tradicionais, porém o Cerrado possui uma trajetória histórica de ocupação
humana muito mais intensiva que a Amazônia, sendo, dessa forma, mais difícil
encontrar áreas ainda preservadas sem a presença comunidades tradicionais, que ali
habitam e utilizam os seus recursos por várias gerações. Assim, acredita-se que uma
estratégia de expansão de criação de novas áreas protegidas nesse bioma deverá
contemplar a presença dessas populações, pois, caso contrário poderá agravar o quadro
social e ambiental do Brasil Central.
Populações e comunidades tradicionais
O conceito de populações e/ou comunidades tradicionais tem sido um dos mais
polêmicos na atualidade e vem sendo debatido nos meios acadêmico, ambientalista,
político, jurídico, popular e em vários outros, sob diferentes óticas, assentadas em
4 Estes dados excluem os ecótonos e as Reservas Particulares do Patrimônio Nacional e apresentam um total de 4.519.776 hectares.
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diversificados interesses envolvidos na questão. O surgimento desse conceito está
ligado à necessidade de distinguir o modo de vida das sociedades urbano-industriais
daquele presente em outros grupos humanos, cuja cultura apresentava características
muito distintas, em especial, no que se refere às formas de apropriação da natureza.
Antonio Carlos Diegues apresenta alguns aspectos particulares das relações entre as
chamadas “populações tradicionais” e o mundo natural:
a) dependência e até simbiose com a natureza, os ciclos naturais e os recursos naturais renováveis a partir dos quais se constrói um modo de vida; b) conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos que se reflete na elaboração de estratégias de uso e de manejo dos recursos naturais. Esse conhecimento é transferido de geração em geração por via oral; c) noção de território ou espaço onde o grupo social se reproduz econômica e socialmente; d) moradia e ocupação desse território por várias gerações, ainda que alguns membros individuais possam ter-se deslocado para os centros urbanos e voltado para a terra de seus antepassados; e) importância das atividades de subsistência, ainda que a produção de mercadorias possa estar mais ou menos desenvolvida, o que implica uma relação com o mercado; f) reduzida acumulação de capital; g) importância dada à unidade familiar, doméstica ou comunal e às relações de parentesco ou compadrio para o exercício das atividades econômicas, sociais e culturais; h) importância das simbologias, mitos e rituais associados à caça, à pesca e atividades extrativistas [eu acrescento, também, à agropecuária]; i) a tecnologia utilizada é simples, de impacto limitado sobre o meio ambiente. Há reduzida divisão técnica e social do trabalho, sobressaindo o artesanal, cujo produtor (e sua família) domina o processo de trabalho até o produto final; j) fraco poder político, que em geral reside com grupos de poder dos centros urbanos; l) auto-identificação ou identificação pelos outros de pertencer a uma cultura distinta das outras. (DIEGUES, 1996: 87/88).
O conceito é polêmico do ponto de vista antropológico, em primeiro lugar,
porque a noção de população vem da Geografia, definida como o conjuto dos habitantes
de um determinado espaço, não explicitando a complexidade sociocultural das relações
que se estabelecem entre eles. Assim, alguns preferem a denominação comunidades
tradicionais, embora a substituição não resulte em um ponto final dos debates. Esterci et
al (2004) apontam que o conceito de comunidade tem sido objeto de “renovadas
análises” e deve ser visto “simultaneamente, como expressão de uma unidade social
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forte e politicamente eficaz, fundada em relações de parentesco e comunhão de
interesses [...], e como uma unidade internamente diferenciada e estratificada, lócus de
negociações e acordos [...], mas também de disputa e dissenso”. (Esterci et al, 2004,
p.04). De forma, semelhante, o uso do adjetivo tradicional também gera dificuldades,
dada a “forte tendência de associá-la com concepções de imobilidade histórica e atraso
econômico”, como aponta Paul Little. Ele considera que, nesse caso, o “conceito de
tradicional tem mais afinidades com uso recente dado por Sahlins (1997) quando mostra
que as tradições culturais se mantêm e se atualizam mediante uma dinâmica de
constante transformação” (LITTLE, 2002, p. 23).
O conceito, embora reivindique a sua base antropológica, se configura, na
atualidade mais em uma dimensão empírica e política (ALMEIDA; CUNHA, 1999;
LITTLE, 2002; ESTERCI et al, 2004).
Assim como campesinato, produtores familiares e povos da floresta, a categoria populações tradicionais pertence a um conjunto de termos de classificação social que denotam um mesmo referencial social empírico. São atribuições conceituais conferidas a populações rurais que tiveram desenvolvimentos diferentes, gerando ou não identidades auto-atribuídas associadas a um estatuto político próprio, e contribuindo mais ou menos para a inclusão social dessas populações, de outro modo, não reconhecidas (Esterci, 2004, p. 04)
Manuela Carneiro da Cunha e Mauro Almeida destacam que a conceituação do
ponto de vista antropológico visa atender a demandas políticas, na construção de novos
sujeitos coletivos e no surgimento ou a revitalização de identidades sócio-culturais e
políticas, presentes no cenário nacional através expressão cada vez maior de índios,
quilombolas, seringueiros, povos da floresta, pescadores, camponeses, agricultores
familiares e tantas outras:
Nesse sentido, não são critérios substantivos que definem o que são as novas "populações tradicionais". Além disso, um grupo social não se torna uma "população tradicional" [...] em virtude de laudos antropológicos (por mais que tais laudos possam criar nichos de mercado para antropólogos) destinados a conferir se atendem ou não a uma lista de características. Os grupos assim chamados não são tradicionais - tornam-se "populações
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tradicionais" ao embarcarem na categoria-ônibus que lhes dá acesso a direitos territoriais e a outros direitos (Almeida; Cunha, 1999, p. 6).
Paul Little assinala que o conceito “procura oferecer um mecanismo analítico
capaz de juntar fatores como a existência de regimes de propriedade comum, o sentido
de pertencimento a um lugar, a procura de autonomia cultural e práticas adaptativas
sustentáveis” (LITTLE, 2002, p. 23). Assim, ao serem definidos ou se auto-definirem
como populações ou comunidades tradicionais, os grupos envolvidos reivindicam seus
direitos não só de posse ou propriedade, mas de formas de relacionamento com o
mundo natural, que remetem a uma idéia de sustentabilidade, presente em antigas
práticas de uso e manejo dos recursos naturais, identificados por seus conhecimentos e
representações simbólicas próprias. Neide Esterci aponta que o emprego da categoria
“recobre situações empíricas diversas” e que sua “prática de sustentabilidade é
extremamente vulnerável, suscetível a pressões políticas, econômicas e demográficas, o
que implica na necessidade de receberem apoio institucional para se manter” (ESTERCI
et al, 2004, p.04). Ameaçadas em seus territórios e no seu modo de vida tradicional,
tais comunidades reivindicam do Estado políticas de proteção, que lembram a sua
atuação histórica junto aos povos indígenas:
Populações tradicionais, salvo engano [...], aparece para abranger, no Brasil, algo que em certa medida se assemelha a, mas que é mais abrangente do que grupos indígenas. Se por um lado, um paradigma básico são os grupos indígenas, uma coisa básica os diferencia, o fundamento de sua reivindicação por terra. O fundamento da terra indígena é histórico, ou seja, cada grupo indígena tem direito à terra porque tem um vínculo histórico com primeiros ocupantes – sendo esse vínculo expresso freqüentemente em termos de descendência. Ao contrário, a reivindicação por terra das populações tradicionais baseia-se em um pacto: um pacto que poderia ser chamado de neo-tradicionalismo. O que se supõe das populações tradicionais é um passado não predatório de uso de recursos naturais; o que se espera delas é que levem um modo de vida coerente com a conservação da diversidade biológica. Mas pode o passado garantir o futuro? O passado assegura que a coisa é possível, o futuro é garantido pelo pacto. Esse pacto é materializado em leis e dispositivos a ela associados, como concessões de uso e planos de uso. Nesse sentido, são populações tradicionais aquelas que aceitam as implicações da definição legal que exige o "uso sustentável de recursos naturais" - seja conforme práticas transmitidas pela tradição, seja por meio de novas práticas. Uma outra maneira de entender este processo é perceber
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que "população tradicional" é uma categoria ocupada por sujeitos políticos, que se dispõem a ocupá-la, comprometendo-se com certas práticas associadas à noção de uso sustentável. Nesse sentido, mesmo os mais antigos e culturalmente mais conservacionistas dos grupos humanos podem tornar-se neo-tradicionais. Isso na medida em que se constituam enquanto populações tradicionais no sentido de se comprometerem a ser o que se espera delas, como parte de um pacto. (ALMEIDA; CUNHA, 1999, p.5/6).
Os aspectos políticos de se identificar como tal incluem a capacidade de
mobilização das comunidades e a luta interna e externa pelo seu reconhecimento, pois
“participar da categoria ‘populações tradicionais’ significa ter uma organização local e
lideranças legítimas, associar-se a tradições de uso sustentável dos recursos naturais no
passado, e aderir em um território especificado ao uso de técnicas de baixo impacto
ambiental no futuro” (ALMEIDA; CUNHA, 1999, p. 6).
Juliana Santilli, no seu livro Socioambientalismo e novos direitos, publicado em
2005, afirma que a “categoria ‘populações tradicionais’ tem sido bastante reconhecida
em sua dimensão política e estratégica, mas ainda carecia de uma definição jurídica”
(SANTILLI, 2005, p. 124). Essa lacuna foi preenchida só recentemente, com o Decreto
Nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais:
Art. 3o Para os fins deste Decreto e do seu Anexo compreende-se por: I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição; II - Territórios Tradicionais: os espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações; e III - Desenvolvimento Sustentável: o uso equilibrado dos recursos naturais, voltado para a melhoria da qualidade de vida da presente geração, garantindo as mesmas possibilidades para as gerações futuras (BRASIL, 2007, p.1).
Essas definições dão elementos para discutir o que seriam comunidades e
populações tradicionais no Cerrado, permitindo subsidiar a constituição de propostas de
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Reserva Extrativista adaptadas à realidade deste bioma. As diferentes definições
abordadas acima, embora relativizem a sua importância, mantêm como elemento
subsidiário da noção de “tradicional” o aspecto histórico da relação de tais comunidades
e populações com o território que reivindicam de onde desenvolveram todo um conjunto
de práticas e concepções em torno do mundo natural.
Comunidades tradicionais e extrativismo no Cerrado
A designação “populações tradicionais” do Cerrado se refere aqui a
comunidades formadas por índios, quilombolas, camponeses, vaqueiros, artesãos,
pescadores, extrativistas, etc, que são herdeiras históricas de diferentes formas de uso,
manejo, conhecimento e representações simbólicas relativas a esse bioma. A ocupação
do Cerrado pelos primeiros grupos humanos inicia-se há mais de 12 mil anos e possui
uma continuidade cultural nos vários povos indígenas encontrados pelos colonizadores,
a maioria deles, hoje, já desaparecidos. É com esses povos que os bandeirantes vão
aprender a sobreviver naquele bioma, através não só da caça, da pesca e da coleta
vegetal, mas também, pelo emprego da agricultura nômade. Os novos colonizadores e
seus escravos africanos vão introduzir outras atividades econômicas: a mineração e a
pecuária, que se beneficiam dos recursos naturais do Cerrado, mas introduzem
transformações significativas na paisagem. A sociedade que se constitui, no Sertão do
Brasil Central, ao longo do século XVIII é marcada pela rebeldia de potentados,
quilombolas, garimpeiros, etc, que utilizam-se do Cerrado para fugir das perseguições
das autoridades coloniais. No século seguinte, a região é devassada pelo interesse da
Ciência, que propõe melhorias na sua economia e a introdução da indústria, da
navegação a vapor e das ferrovias, que vão modificando significativamente a paisagem
e a vida de sua gente (RIBEIRO, 2005).
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Essa trajetória história contribui para a constituição do patrimônio cultural
sertanejo, um conjunto de tradições marcadas pelo desenvolvimento de atividades
combinadas dentro de estratégias de reprodução sócio-econômica e cultural. Tais
estratégias estão relacionadas com as diversificadas conformações regionais que o
Cerrado assume e com as variadas particularidades culturais de cada comunidade
presente nesse bioma. Tais atividades são dinâmicas e se modificam historicamente, em
especial no que se refere às relações destas comunidades com a sociedade mais ampla,
adquirindo, assim, novas feições, embora conservando muito dos seus aspectos
tradicionais (RIBEIRO, 2006).
Essas atividades, combinadas dentro das estratégias de reprodução sócio-
econômica e cultural, são articuladas em diferentes períodos do ano e utilizam-se de
vários ambientes específicos do Cerrado:
a) A agricultura, desenvolvida em ambientes florestais, particularmente nas matas
ciliares e de galeria, chamadas de “terras de cultura”, pode também ocorrer em outras
áreas, dependendo da sua fertilidade e da lavoura a ser plantada (milho, feijão, arroz,
mandioca, cana, amendoim, hortaliças, frutas, etc),
b) Beneficiamento de produtos agrícola em fábricas domésticas ou comunitárias.
c) A pecuária extensiva inclui tanto os pequenos animais, em especial, porcos e
galinhas, criados em ambientes florestais, soltos ou presos, quanto bovinos, eqüinos e
muares. Esses se alimentam na vegetação nativa de ambientes savânicos e campestres,
enquanto se mantém verde, mas também contam, nos períodos secos, com as pastagens
plantadas, ou que se desenvolvem em ambientes florestais, após seu esgotamento
decorrente de anos de uso agrícola.
d) A caça e a pesca também se constituem em importantes fontes de proteína
animal e são desenvolvidas em diferentes ambientes, mas, nas últimas décadas, vem se
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reduzindo em função da legislação proibitiva e da redução da fauna, devido a perdas de
grandes áreas de vegetação nativa.
e) A extração de mel, cera e outros produtos apícolas são realizados em ambientes
savânicos, mas também pode ser observada em paisagens florestais e inclui tanto as
espécies nativas sem ferrão, como daquelas exóticas, introduzidas no Cerrado a partir de
meados do século XIX.
f) A retirada de frutos e palmitos para alimentação é uma prática muito comum,
realizada, principalmente, nos ambientes savânicos, durante o final do período da seca e
boa parte da época das chuvas.
g) A coleta de plantas medicinais também é prática recorrente e se desenvolve,
sobretudo, nos ambientes savânicos, durante o período da seca.
h) O aproveitamento de madeira, em ambientes florestais, e de fibras, extraídas das
áreas savânicas, se destina para construção, marcenaria, artesanato, combustível e outras
finalidades.
i) A extração mineral inclui desde o uso de areia e argila para a construção e o
artesanato até o desenvolvimento do garimpo de ouro, diamante e cristais.
Apesar dessa longa trajetória de aproveitamento, só recentemente, quando o bioma já
vem sofrendo forte devastação, sua importância alimentar e econômica vem sendo
estudada mais aprofundadamente, resultando em uma considerável bibliografia.
Revendo esta produção científica, em grande parte fundada na longa tradição popular
sobre o uso do Cerrado e a pesquisa realizada por mim, nos anos de 1999 e 2000, junto
a camponeses, índios e quilombolas de comunidades de quatro regiões de Minas Gerais
(RIBEIRO, 2006), consegui identificar os seguintes usos da flora e da fauna do Cerrado
pelas populações tradicionais:
• 170 espécies de uso medicinal;
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• 65 frutos comestíveis;
• 130 tipos de madeira empregados para vários fins
• 167 plantas apícolas (mel, cera, etc.).
• 32 plantas com fibras utilizadas no artesanato, cobertura de habitações, vassoura,
etc;
• 20 empregadas pelo tanino;
• 18 com cortiça;
• 29 com óleo destinado à produção de resinas, sabão, perfumes, etc;
• 24 usadas para tingir, principalmente, tecidos;
• centenas de espécies nativas forrageiras;
• 10 tipos de abelhas produtoras de mel;
• 34 animais silvestres que fornecem carne.
Recentemente, em vários pontos da região do Cerrado, a exemplo do que acontece
também em outros biomas, uma série de iniciativas vêm se desenvolvendo no sentido de
construir alternativas sustentáveis para a continuidade do seu modo de vida. Elas se
configuram em pequenas experiências realizadas, isoladamente ou em conjunto, por
comunidades rurais, indígenas, negras, ribeirinhas, assentamentos de Reforma Agrária,
organizações não-governamentais, universidades, órgãos públicos, empresas, etc. Tais
experiências devem ser a base para planejar como a Reserva Extrativista deve ser gerida
pelas comunidades beneficiadas. A criação dessa categoria de Unidades de Uso
Sustentável tem grande significação não só para a preservação de um bioma tão
ameaçado, como representa a esperança de perenidade para patrimônio cultural
sertanejo. As Reservas Extrativistas devem, sempre que possível, compor um mosaico
de Unidades de Conservação incluindo tanto as de Uso Sustentável, como as de
Proteção Integral. Elas poderiam formar zonas de amortecimento entre as últimas e
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áreas de grande impacto ambiental, como grandes propriedades rurais ou de exploração
territorial para barragens, mineração, recursos madeireiros e outros. Também poderiam
se juntar, quando se mostrar viável, à comunidades indígenas, quilombolas e
camponesas ou assentamentos de Reforma Agrária, que constituiriam corredores
ecológicos entre diferentes mosaicos de Unidades de Conservação. Unindo estratégias
das políticas fundiária e ambiental, a Reserva Extrativista representa o resgate renovado
do tradicional e, ao mesmo tempo, uma revisão crítica do que há de mais conservador
no moderno.
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