CunhaGlóriaPereirada M
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO
DISSERTAO DE MESTRADO
rea de concentrao: ensino e prticas culturais
SONORIDADES DO SUL:
ausncias, emergncias, tradues e encantaria na educao
Autora: Glria Pereira da Cunha
Campinas
2010
Dissertao apresentada para obteno do grau de Mestre
em Educao pela Faculdade de Educao da UNICAMP,
sob a orientao do Profa. Dra. Corinta Maria Grisolia
Geraldi
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dedicatria minha me, Enilda Pereira da Cunha, por ser a pessoa espec ial que como mulher e c idad, pel o val or que s empre deu msica e educao e, sobretudo, por como me vejo em seus olhos.
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Agradecimentos
Que voz vem no som das ondas
Que no a voz do mar?
a voz de algum que nos fall a,
Mas que, se escutarmos, cala,
Por ter hav ido escut ar .
(Fernando Pessoa, Mensagem)
So muitas as vozes que ecoam nestes escritos :
algumas surgem potentes, outras apenas murmuram; agradeo aos gritos e sussurros.
Agradeo a todas as minhas professoras, em especia l s Marias: Maria Sa lete Bento Cicarone, Maria Amlia Martins, Clia Maria de Castro Almeida, Corinta Maria Grislia Geraldi. Agradeo a todos os meus professores, em especial a Joo Wanderley Geraldi, Milton Jos de Almeida, Jorge Larrosa. Agradeo a tod@s do GEPEC, em especia l ao Guilherme Prado e Ana Arago, t imoneiros e Rosaura Sol igo pela le itura desse texto e part ic ipao na banca ; aos pipoqueiros - Cr isHop, Maf, Rbia , Wilson e Marcemino - pelos constantes di logos e r isadas e L iana, cmplice na msica ; agradeo aos gepecquianos presentes nos agradveis encontros de orientao em Barequeaba, casa dos Geraldi , lugar para ouvir as vozes que chegam com o som das ondas . Agradeo a Ruth Joff ily por anos de conversas encantadas sobre educao e pela rev iso deste texto. Agradeo ao meu pai, Jos Maria Mart ins da Cunha, mame e Cndida, minha irm, vozes sempre presentes na caminhada da vida. Agradeo aos companheiros que repart iram ms icas comigo, em especia l a Jos Eduardo Gramani, Marco Antonio Ferrari , Ignacio de Campos e Nielson Santos. Agradeo minha f i lha, (um) presente nos meus fazeres.. .
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ix
Resumo Glria Pereira da Cunha
Esse trabalho uma narrativa do que mais sonoro na educao: a aula. Narrar a aula
narrar experincias do aprender e ensinar. As narraes - minhas e/ou de colegas do
Grupo de Estudo e Pesquisa em Educao Continuada (GEPEC), Faculdade de Educao,
Unicamp falam ora como o aluno de fomos, ora como o professor que somos. Com as
histrias, reflito sobre as tenses da atuao do sujeito professor em espaos diversos,
aprendo como o ensinar em outros lugares e contextos. Ensinar fazer algum ver, com
os seus olhos maravilhados, algo que o maravilha a ponto de ser tomado pela necessidade
de procurar saber mais sobre o que o tocou. S quem est encantado pode encantar. No
meio de tanto reveses, como encontrar o encantamento com a educao? Com as palavras-
personagem de Boaventura de Sousa Santos vou em busca das Sonoridades do Sul: as aulas
e, com elas, as pedagogias ausentes, as pedagogias emergentes e o trabalho de traduo do
professor-intrprete. (http://sonoridadesdosul.blogspot.com)
Abstract
Glria Pereira da Cunha
This work is a narrative of what is most audible in education: the classroom. Narrating the
class is narrating experiences of learning and teaching. The narratives - mine and/ or from
colleagues of the Group of Study and Research in Continuing Education (GEPEC), Faculty
of Education, Unicamp - speaking as the student that we went, and as teachers that we are.
Through the stories, I reflect about the tensions of teacher performance in diverse localities,
I learn how to teach in other places and contexts. Teaching is to do someone to see, with
their wondering eyes, something wonderful about to be taken by the need to find out more
about what touched. Only who is enchanted is able to enchant. In the midst of such
setbacks, how to find the enchantment with the education? Through the words-character
by Boaventura de Sousa Santos I go in search of Sonorities of the South: lessons and, with
them, absent pedagogies, emergent pedagogies and the translations work of the teacher-
performer. (http://sonoridadesdosul.blogspot.com)
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Sumrio
1 Movimento - Cheguei!
1. Guarnic. 1
2. LVai 9 Ressonncias opo esttica e metodolgica 12
3. Licena pro meu batalho de ouro 14 Memorial de identidade 22
4. Saudao senhora dona-da-casa 31
Intermezzo I Sobre Adlia e vdeos
2. Movimento - Seriado de Formao 1. Preludiando 37
2. O Primrio 39
Confisses de professores: a primeira indisciplina a gente jamais esquece 41
3. A msica e o Barcelona, ginsio e colegio 40 Desabafo de mame: Villa-Lobos, aquele chato! 43
Djame que me cuente 46
4. Dilemas Profissionais duas Pipocas 53
A menina que queria tocar tambor 53
Relato de uma aula 54
5. A Academia, de volta escola. 57
Samba da aluna doida 59
Quando o futuro chegar me avise: a tecnologia 60
O mail a mensagem 61
Na poca do Cartografia II 66
Dirio de Campus (Intermezzo II) 69
3 Movimento: e-Boa, meu orientador do fundo 1. Apresentao 83
2. Formatando e-Boa 85 Dos olhares nos silncios 89
Das histrias nos silncios 93 Dos silncios na traduo 95
Da encantaria 98
3. Reviso sitiogrfica: e-Boa em Redpolis 101 Boaventura e a pesquisa em Educao no Brasil 102
Da obsesso polmica e poesia 107
4. Dirio de Campo e bate-papo virtual 113
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Intermezzo III Viagens dolhar s viagens do mar
4 Movimento: New Teachers na rede - mestres-gris na pajelana
quilombola fandangueira
1. Pajelana 121
2. Quilombola 129
3. Fandangueira 138
4. Pajelanas pelo campus: de volta ao futuro. 147
Intermezzo IV Polifonia do Silncio
5. Movimento: Pipocas Pedaggicas a produo de 2008 do Grupo de Tera do GEPEC 1. GEPEC 153 {
2. Grupo de Tera 164
Ciranda de Textos 169
3. Exploso de escritos: a produo do Grupo de Tera do GEPEC de 2008 183
Pipocas Pedaggicas: crnicas da hora! 188
Pipoca com e-Boa 192
Princesa de Sedna e a Liga da Justia 203
Perplexidades do professor 211
Intermezzo V Transcriao
6. Movimento : Gran Finalle
1. Urrou 219
2. Inventrio 224
3. Adeus, Morena 235
4. Referncias Bibliogrficas 238
Referncias Musicais 248
5. Anexos
Pipocas Pedaggicas: listagem dos textos
Listagem das atas do Grupo de Tera
Guardados da glria
Minhas Escol(h)as
Anexo de poemas
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Deve haver um deus
Que no nos governe.
(Canine wisdom)
Peo a Deus Pelo bem De quem me ama E pelo bem De quem pode me odiar Pelo bem De quem me ajuda a sorrir e pelo bem De quem me ajuda a chorar Pelo bem De quem gosta de cantar Minhas toadas De quem D valor ao meu lugar (Humberto Barbosa Mendes do Boi de Maracan) Boi!
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1
1 Movimento: Cheguei!
1. Guarnic
Guarnece batalho, guarnece A vida cresce E meu povo no vai mais perder. (Chico Maranho)
Batalho de ouro, chegou a hora, Vamo guarnic. (Humberto Maracan)
Guarnic so toadas pra reunir, preparar e arrumar;
momento do primeiro encontro, preparao para a organizao.
O amo do boi chama o seu batalho rene brincantes e devotos, prepara e arruma todos para
dar incio brincadeira.
Reunir
pra reunir, vamos guarnic, ( Boi de Pindar)
do som da matraca Da ona e do pandeiro, Rene , rene e guarnece, Este o meu Batalho Brasileiro. (Pedro Duque)
Agradeo aos que vieram aqui se encontrar comigo para se perder e danarmos com as palavras
deste texto.
Chamo os olhares da professora Corinta para embarcar junto aos indcios das contra-palavras do
professor Wanderley Geraldi e das poucas palavras de Helena Kolodi e Leminski, na Jangada de
pedra que se aproxima;
do lado espanhol da peninsuilha est o filsofo-professor Jorge Larrosa, e o lado
portugus, num cenrio de saramagos, traz Pessoas e algum mais.
Nativo do pedao de rocha que para cerca de ns vem, um ser chega , surge, aparece, de alguma
forma se faz presente, e me lembra que [...] o ser humano no apenas um ser e a sua circunstncia.
tambm, e sobretudo, o que falta na sua circunstncia para que ele possa ser verdadeiramente
humano.1
1 SANTOS, Boaventura de Sousa (2008). Texto para um programa de concerto do compositor Antonio Pinho Vargas.
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2
Como tem acontecido com frequncia, sou assediada por um encantado, e-Boa, um encantado,
alter-ego internetical do cidado Boaventura de Sousa Santos, portugus polmico, poeta,
advogado, socilogo e socialista.
E-Boa est contido nas suas palavras, em entrevistas de 2001 a 2008 e nos escritos - srios ou
vadios - postados no territrio digital da Internet disposio de todos que aqui/l convivem;
captulos de livros e at o clssico Um discurso sobre as cincias, tambm navegam nestas guas
e fazem parte de suas falas.
Sua primeira apario foi enquanto lia Para uma sociologia das ausncias e uma sociologia das
emergncias;2
conhecia outros textos, algumas idias, mas, a partir do momento em que comecei a ler
este texto, ele comeou a criar vida independente, passou a me acompanhar por toda a parte,
conversando sobre o que eu via e sobre o que eu no via mesmo vendo;
mostrou que eu colecionava e narrava ausncias e emergncias, pedagogias silenciosas
ou silenciadas, desconsideradas, fora de moda ou do tempo, pedagogias perdidas, opacas e
algumas outras que mal tinham vida.
Encantado?
No Maranho, o termo encantado se refere a seres espirituais recebidos em transe medinico
nos terreiros de mina e nos sales de curadores e pajs;
no podem ser observados diretamente, mas podem ser vistos, ouvidos em sonho ou por
pessoas dotadas de poderes especiais, e podem ser observados por todos, quando incorporados;
afinal, a compreenso do mundo excede em muito a compreenso ocidental do mundo.(T, 3)
Este ser virtual caminhou comigo a tentar mostrar o que eu no via, a tal pergunta, aquela
necessria para o bom andamento de uma pesquisa, o mote desta dissertao, o centro dos
questionamentos de minha orientadora: sobre o que voc tem escrito? onde quer chegar? ou
sair?;
e suas possveis respostas...
2 SANTOS, Boaventura de Sousa (2002a). Para uma sociologia das ausncias e uma sociologia das emergncias. Este texto ser sempre referenciado como T (ele o texto
desta dissertao!), seguido do nmero da pgina.
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3
Preparar
Devo dar logo as primeiras pistas, coisas pequenas, indcios para que voc se sinta seguro e
embarque nesta composio, j que, caro leitor, para lev-lo pela mo, eu no tenho tempo,
cuidado! o tempo nesta dissertao nem sempre se porta como o relgio quer, e s sabem
disto pessoas que vigiam seus cronmetros quando correm pelo espao,
cuidado! o espao desta dissertao mltiplo, real, virtual, encantado, mas tambm o
da academia, senhora dona da casa.
A compreenso do mundo e a forma como ela cria e legitima o poder social tem muito
a ver com concepes do tempo e da temporalidade. [T, 3]
[...] no podendo o sempre durar sempre, como explicitamente nos tem ensinado a
idade moderna, (Saramago, 8)3
O Boi do Maranho
Boa tarde, minha gente, Foi agora que eu cheguei Fui chegando e fui tocando Se do seu gosto eu no sei.
Como aqui devo me guarnecer com sua cumplicidade, explico-lhe as senhas desta parte.
Chego cantando o refro desta cano, um cacuri de dona Tet, brincadeira que vem l do
Maranho, e tambm de l vem o Boi, de quem tomo emprestado o formato para a forma do
escrito desta dissertao.
Bumba-meu-boi ou Boi do Maranho o auto e as toadas do touro encantado com estrela na
testa, que morre e renasce todo ano pra conosco vadiar;
comea com um Guarnic, quando o amo do boi chama o grupo e arruma os baiantes e
toda a tropeada para a dramatizao do folguedo, soltam-se os fogos e comea a brincadeira;
o mesmo que fazemos quando precisamos caminhar com muitos para qualquer lugar:
reunir, preparar, avisar e arrumar para iniciar a jornada;
um juntar de foras que se faz cantando e tocando em conjunto, ampliando energia para
a funo.
Depois que a trupiada est guarnecida, hora de falar aos que esperam o Boi e anunciar o local
da apresentao;
3 SARAMAGO, Jos (1988). Jangada de pedra. Todos os textos deste livro sero referenciados como Saramago seguido da pgina do livro.
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4
so as toadas do L Vai , que so seguidas pelas toadas de Licena, apresentao da
trupiada e pedido de permisso dona da casa para que o grupo se apresente, tudo com muito
respeito e considerao, coisas prprias de um povo que sabe que em terra alheia deve-se pisar o
cho devagar e com muita considerao.
Gosto do LVai assim, juntinho, lembrando o ato de lavar, deixar escorrer a gua, e com quase
uma s palavra lvai - conseguimos lavar e lanar a alma em nova empreitada, brincadeiras
deste nosso divertido portugus!
Para finalizar esta chegana, canta-se a Saudao, toadas de louvao ao boi e ao dono da casa,
na esperana de que todo o Boi seja bem recebido.
A, d-se, propriamente, o incio do auto, a encenao da pea, a comdia, cujo
enredo gira em torno do desejo (antojo, tradio imemorial) de Catirina, o roubo e a
morte do boi, priso e castigo do Chico. Catirina a mulher do pai Francisco que,
grvida, deseja comer a lngua do boi; mas no de qualquer boi e sim do mais belo da
fazenda, o xod do fazendeiro. Para satisfazer a mulher, o negro Chico rouba e
esconde o boi, tira-lhe a lngua e oferece-a gestante. Descoberto o delito, preso seu
autor, que primeiro nega o crime, mas acaba por confess-lo custa de muitas
chicotadas e apertos.4
A encantaria vem de toda parte para socorrer o casal:
pajs e caboclos acodem junto com So Joo Batista, padrinho do Boi, e ainda todos os
santos, orixs e jurema e quem mais for necessrio doutores, farmacuticos e veterinrios - at
que o boi d sinal de vida e a transgresso de pai Francisco perdoada com a confraternizao
geral em torno do boi novamente em p.
Depois do auto, iniciam-se as toadas do final com o Urrou, o grito do boi ressuscitado;
a celebrao da renovao, pelo ressurgimento e restabelecimento do boi sacrificado.
E acaba com a Despedida, Linda morena ou Adeus morena, toadas para encerrar a brincadeira,
em que os cantadores, sempre homens, falam da dura separao e dizem que voltam no
prximo ano e se despedem das moas do pblico com as mais incrveis promessas:
Adeus Morena vou me retirar Batalho de Ouro Eu vou, mas eu volto pra te ver Pra outro terreiro eu vou levar [...] Quando voltar serei dois
E um ser pra voc (Humberto do Boi de Maracan)
4 LIMA, Carlos de (2004). Apresentando o bumba-meu-boi do Maranho.
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5
Peter O'Sagae afirma que
o Boi uma das representaes mais fiis de nossa brasilidade, um pedao de nossa
cultura, de nossa prpria Histria, parcela da razo do que atualmente somos. [...]
Folguedo popular que esconde, no conjunto de suas danas, os elementos da
arqueocivilizao, reminiscncias de um tempo primevo, como a comunicao direta
entre homens e animais, iguais entre si, falantes-brincantes [...]. A tnica do boi a
crtica social, exercitada atravs da stira, presentificando um sentido reivindicatrio,
subvertendo a ordem do Estabelecimento. [...] O conflito social que nos d a Histria
tambm perpassa a crnica do Boi. No entanto, dores e mgoas se dissolvem
musicalmente no ritmo de integrao das raas. Obviamente, aqui a Alegoria-objeto
Boi cede lugar para a Alegoria Smbolo-Boi de todo o pas, como catalisador da
interdependncia do modus vivendi de cada grupo tnico em novo territrio-nao. 5
Quem sentir necessidade de mais explicao viaje pela Internet e procure os cantos e histrias do
Boi do Maranho;
mas o melhor mesmo viajar para o Maranho e assistir, na noite de 23 para 24 de
junho, o batizado do boizinho, l no arraial do Boi de Maracan, com direito a ladainhas em
latim e Benditos em portugus, e verouvir tudo isto com os dois ps naquele cho;
depois fique mais um pouco e assista o grande desfile de todos os bois em frente da
Capela de So Pedro que comea na noite do dia 28;
se no puder ir em junho, pode ainda ver a outra festa do Boi, que acontece mais para o
final do ano e que termina com a morte do bichinho.
O Boi encantado, que ressuscita em junho, morre na outra festa, mas reaparece no prximo ano
com pele nova, novos bordados e novas toadas que falam dos acontecimentos do ano Copa do
mundo, eleies , de novas aflies doenas, falta de dinheiro -, tornando cada festa um ato
contemporneo, sempre a narrao da vida daquelas pessoas no ano em que apresentada.
A sucesso das estaes, a semeadura, a concepo, a morte, e o crescimento so os
componentes dessa vida produtora. A noo implcita do tempo contida nessas
antiqssimas imagens a noo do tempo cclico da vida natural e biolgica
(Bakhtin, 1993, p. 22). O sentimento que estabelecia um sinal de igualdade entre as
sucessivas estaes climticas, com as consequncias naturais do ciclo biolgico,
ampliado e aprofundado, abarcando os acontecimentos da sociabilidade humana.
Institui-se, assim, o sentimento da temporalidade histrica. No interior de todo esse
processo, o rito festivo sempre joga um papel importante na marcao do tempo,
seja do tempo csmico-natural, biolgico, seja da temporalidade histrica.
5 SAGAE, Peter O' (1998) Do Boi ao Brasil-bumb: alegria, alegoria.
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6
Vida, morte, ressurreio ciclo recorrente da existncia que marca momentos fortes da
festa. Vida, morte, ressurreio ciclo recorrente da festa que marca momentos fortes da existncia. 6
Boi de Baro
Boi bicho encantado, universal, mundial, global, um passado presente em todos os cantos
deste Brasil, e, portanto, tambm neste local!
Saibam senhoras e senhores que foi esse boi local, o Boi Fal, e no esta universidade, que
iniciou a tradio de sabedoria e falao destas paragens;
daqui mesmo, deste distrito de Campinas onde se aloca a Unicamp, que vem um boi
nico, um boi famoso que, de to grande feito, tornou o local conhecido como Terra do Boi Fal,
mesmo que oficialmente tenha o nome informal de quem foi seu dono: Baro Geraldo;
aqui nosso valente boi local se fez ouvir para garantir o direito ao descanso, ao cio
religioso, tanto seu, quanto de Toninho, o escravo, seu guia, direito sonegado pelo baro;
informo que no foi um discurso para a academia, como fez depois o macaco de Kafka7,
j que a universidade ainda no existia, afinal eram os idos de 1888.
Como se teria formado a arreigada superstio, ou convico firme, que , em
muitos casos, a expresso alternativa paralela, ningum hoje o recorda,[...]
(Saramago, 7)
Era sexta-feira da Paixo;
l vai o escravo Toninho colocar a canga no boi, obedecendo a ordem do Baro:
trabalhar, trabalhar e trabalhar;
mas o boi, cujos ancestrais das terras do norte sempre comemoravam a fertilidade e
renovao da natureza nesta mesma data em pajelanas dalm mar, considerou a ganncia do
nobre baro demasiada e resolveu ensinar;
falou e disse: hoje no dia de trabalhar!
O escravo, a testemunha de tudo, correu para a sede da fazenda gritando: o boi fal, o BOI fal,
O BOI fal, O BOI FAL!,
no foi acreditado pelo capataz, mas seu grito ecoou por toda a fazenda com uma
convico to firme que escapou do castigo e fez com que o Baro Geraldo de Rezende
6 MIRANDA, Dilmar. Carnavalizao e multidentidade cultural: antropofagia e tropicalismo, p.127. O livro citado de Mikhail Bakhtin A cultura popular na Idade Mdia e no
Renascimento. Os grifos so do autor.
7 Referncia primorosa montagem de PRIMUS, da Boa Companhia, baseada no conto de Franz Kafka Comunicado a uma academia, a histria de um macaco que para fugir da
jaula aprendeu a ser homem e conta isto a uma academia.
-
7
acreditasse no ocorrido e ordenasse que ningum mais trabalharia naquele dia em sua fazenda,
que so essas mesmas terras onde est nossa universidade...
at hoje, nestas plagas, festeja-se a data com uma grande festa na sexta-feira da Paixo,
quando voluntrios fazem uma macarronada com molho de tomate e sardinha, servida
gratuitamente para todos.
Do famoso boi local no temos foto, mas
comprovamos os fatos mostrando a do escravo
Toninho, este a ao lado, que est enterrado no
Cemitrio das Saudades, em rea nobre, num
tmulo comprada para ele pelo senhor Baro, onde
faz muito sucesso como milagreiro.
Sua histria foi contada de boca em boca nestas
terras e agora, nos tempos modernos, em filme
pela Internet.8
Boi, um bicho encantado e engajado e que agora
habita Redpolis.
e-Boa e Boi? tudo a ver...
Arrumar
As fontes deste escrito, tambm tenho que explicar.
O formato distinto das letras, eu uso para arrumar, tornar mais visvel os dilogos.
Alguns autores vo assumindo uma personalidade to prpria quando conversam comigo -
sotaques, timbres - que acabaram me obrigando a tentar traduzir estas sonoridades distintas
para formatos distintos de suas palavras; e-Boa tem este leitmotif grfico para a forma de suas
palavras, assim como Saramago9, tem sua prpria fonte e formato assim o lvaro de Campos, o Pessoa10 de
tabacaria, e alguns de seus outros, enquanto a doce Helena Kolodi11 tem seus haikus assim formatados;
8 Portal do filme: http://www.oboifalo.com.br.
9 Jos Saramago, escritor.
10 Refiro-me a
Fernando Pessoa e seus Heternimos.
11 Helena Kolodi (1912-2004). Poetisa paranaense de origem ucraniana; foi professora do Ensino Mdio e da Escola de Professores.
-
8
com letras irregulares, tentei tambm reproduzir a forma aproximada da minha letra no monte de
fragmentos de escritos que chamo de dirios, coisas encontradas em bas.
do ba um suspiro! escritinhos que saem de algum achado do inventrio;
so textos meus, alguns encontrados e outros reconstrudos;
quando encontrado, foi inventariado e legalizado.
Signos, sonhos, sombras, imagens
quem vai saber.
quantas lembranas trazem.
(p.leminski)
Outros textos desse ba foram
reaproveitados obedecem as normas
ecolgicas de bom aproveitamento de
palavras j escritas
e trazem o selo de
RECICLADO, como
este a ao lado ou
um similar.
"Passam os tempos, confundem-se
as memrias, em quase nada acabam por distinguir-se a verdade e as
verdades, antes to claras e delimitadas e, ento, querendo apurar o que
ambiciosamente denominamos rigor dos factos, vamos consultar os
testemunhos da poca, documentos vrios, jornais, filmes, gravaes de
vdeos, crnicas, dirios ntimos, pergaminhos, sobretudo os
palimpsestos[...]." (Saramago, 34)
do ba
fim
Fotos do 1. ano escolar e dirios
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9
2. LVai
L vai meu boi Levantando poeira
Vem ver, morena No descer da ladeira
Brilho da Noite Brilha como brilham as estrelas Em noite de lua cheia
(Graa Reis do Boi de Cupuau)
Oua este escrito como uma composio musical, no uma sonata to rgida, to restritiva com
suas regras, mas como uma fantasia, um gnero de pea instrumental de carter muito livre que,
sem esta rigidez formal, moldada pela prpria imaginao ou fantasia do compositor.
Para esta Fantasia contrapontstica escolhi os sons de cada melodia:
as notas, organizadas em determinadas sequncias, formam as minhas melodias,
algumas j conhecidas e outras novas;
minhas porque esto comigo de longe, mesmo vindas de gargantas diversas;
foram as canes herdadas, ou partes delas, as cantadas vrias vezes, ouvidas quando
menina em casa, rua ou escola e que, por usucapio, tornaram-se bakhtinianamente minhas;
melodias das vrias vozes que entrelao, aumento e diminuo seus tempos, modifico seus
timbres e volumes;
acrescento a esta polifonia outros sons em que sou mais frgil no uso;
no sei como soam junto aos outros, algumas vezes ainda parecem de fora, emprestados:
sons da academia...
Busco consonncias e ressonncias.
[...] ao vermos, ouvirmos, sentirmos algo, um fluxo de imagens aparece; falas antigas
ecoam; sons e msicas tocam nos ouvidos da mente, que lembra de cenas e filmes e
fotos; detalhes so recordados e uma rememorao de movimentos vem tomar
presena; a imaginao estimulada devaneia e fantasia o que no existiu; os desejos
aparecem para dizer um ol; indicando direes, medos e afetos mostram sua cara,
nem sempre de modo direto; futuros sonhados delineiam-se e um continuum parece
fazer a ligao entre todo este conjunto, que o que chamamos aqui de ressonncias.
12
RESSONNCIA
Bate breve o gongo.
Na amplido do templo ecoa
o som lento e longo.
(Helena Kolodi)
12 REONES, Albor Vives (2004). O imaginrio grupal: mitos, violncia e saber no Teatro de Criao, p. 47.
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10
Do encontro, o som!
Do breve encontro entre dois to diferentes - baqueta e gongo - nasce um som;
O tempo breve deste encontro to pequeno quanto o tempo do toque da experincia que nos
toca;
o restante so ressonncias.
O encontro coloca o corpo em movimento, ele vibra;
o som, liberto do material, viaja ao encontro de outros diferentes e desses encontros,
novas ressonncias surgem.
Sonoridades do Sul
O que h de sonoro na educao?
A aula
um e outro,
encontro
presena
professor & aluno produzindo e provocando ressonncias
disto que tratam fundamentalmente os meus escritos,
sobre aula, encontro de dois ou mais diferentes,
ressonncias do entre,
nas encruzilhadas
nos interstcios,
um breve gongo que provoca ressonncias ao longo da nossa vida.
Aulas
epistemologias ausentes, desperdiadas, no documentadas, ausncias produzidas
epistemologias criadas no dia a dia
emergncias aprimoradas ano a ano
epistemologias sonoras do Sul
Sonoridades do Sul
Cantos de professores
Loas que apresentam mundos, escritos do professor-intrprete que contam da polifonia
epistemolgica e sensvel de uma sala de aula;
Toadas que desfazem ausncias e ampliam o presente.
Canes que se comprometem com a construo de um indito vivel, futuros possveis
de um futuro desinchado.
Narraes do ba, escritos do tempo de aluna-menina e aluna-mulher , nas quais a memria dos
vividos de vrios tempos se (con)funde e se d a ler para receber o escrito de outros professores-
alunos-professores que buscam respostas diferentes das que a herana cultural nos deu;
-
11
gente que acredita que ao contrrio do lema aprender para viver, trata-se de assumir
efectivamente que vivemos aprendendo.13
na relao que construmos nossa identidade de professor como sujeito capaz de considerar o
seu vivido, de olhar para o aluno como um sujeito que tambm j tem um vivido14, e que se amplia
polifonicamente com as vozes escritas do vivido de outros, outras narraes de professores;
narraes contadas, algumas escritas, apesar de ausentes no que se considera herana
cultural , e outras por escrever, emergncias tambm no consideradas na vida cultural
vlida.
Ambas, minhas e alheias, sonoridades escapadas, laadas para um texto;
na transformao de palavras escritas, indcios de palavras ditas;
procuro os vividos, experincias inacessveis de outros, mesmo quando o outro fui eu, e,
na impossibilidade de encontr-las, construo novos pedaos de incompletudes que me
movimentam.
Transportemos o conceito de excedente de viso para o mundo da vida.
Da vida no h um autor e se estou vivendo, tenho um por-vir e portanto sou
inacabado. O todo acabado de minha vida eu no o domino. Por isso o mundo da
vida um mundo tico, embora a vida possa ser vivida esteticamente.
Consideremonos dentro deste mundo: estamos expostos e quem nos v, nos v com
o fundo da paisagem em que estamos. A viso do outro nos v como um todo
com um fundo que no dominamos. Ele tem, relativamente a ns, um excedente de
viso. Ele tem, portanto, uma experincia de mim que eu prprio no tenho, mas que
posso, por meu turno, ter a respeito dele. Este acontecimento nos mostra a nossa
incompletude e constitui o outro como o nico lugar possvel de uma completude
impossvel. [...]
Se a experincia de mim vivida pelo outro me inacessvel, esta inacessibilidade, a
mostrar sempre a incompletude fundante do homem, mobiliza o desejo de
completude. Aproximo-me do outro, tambm incompletude por definio, com
esperana de encontrar a fonte restauradora da totalidade perdida. na tenso do
encontro/desencontro do eu e do tu que ambos se constituem. E nesta atividade,
constri-se a linguagem enquanto mediao sgnica necessria. Por isso, a linguagem
trabalho e produto do trabalho. Enquanto tal, carrega cada expresso a histria de
sua construo e de seus usos.15
13 GERALDI, Joo Wanderley (2004a). A aula como acontecimento, p.19.
14 GERALDI, Joo Wanderley (2004a). A aula como acontecimento, p.19.
15 GERALDI, Joo Wanderley (2003c). Palavras escritas, indcios de palavras ditas, p.16.
-
12
Ressonncias
Opo esttica do escrito
Deslocamentos provocados pela colocao do texto no espao da folha de papel;
conversa entre contedo e forma de elementos visuais - letras, fontes, colocao espacial
- que provoque estranhamentos no leitor, apesar da restrio da materialidade que a academia
determina: um volume que possa ficar todo igualzinho numa estante um ao lado do outro: a
metfora visual da verdade nica.
Influncias concretas de John Cage, compositor e poeta americano, e dos concretistas paulistas
Haroldo e Augusto de Campos aos espaos de Jos Paulo Paes que sempre habitaram minhas
estantes e meus olhouvidos e de quem herdei uma certa obsesso pela forma e por toda forma das
letras, agora fontes, onde
Todos os elementos do poema tm funo ativa, o branco da pgina, as entrelinhas e
espacejamentos e os sinais de pontuao so utilizados de forma a alcanar uma
maior eficcia da gesticulao semitica do poeta. Augusto de Campos, em Poem(a)s,
fala dos objetivos que cummings pretende alcanar atravs de seus procedimentos de
criao:
O que ele pretende rejuvenescer a linguagem e explorar, com maior
flexibilidade do que permitem as estruturas entorpecidas dos sistemas
convencionais, o universo complexo da percepo e da sensibilidade. por
isso que ele introjeta num idioma moderno ocidental, como o ingls,
procedimentos derivados do ideograma chins (a figuralidade de origem
pictogrfica e o pensamento por analogia) e de lnguas clssicas como o grego
ou o latim, tratando o seu idioma como se fosse uma lngua flexionada.
(CAMPOS, 1999, p. 14)
Assim como em Mallarm, a grafia se faz funo na obra de cummings. O que ele e
os outros poetas que formam o paideuma pretendiam era a superao da versificao
linear.16
Sem pretender escrever uma dissertao-poema, aproprio-me de algumas caractersticas de
nossos poetas concretos para melhor me expressar e superar uma prosificao linear.
16 CARVALHO, Audrei Ap. Franco de (2007). Poesia concreta e mdia digital: o caso Augusto de Campos.
-
13
Opo metodolgica da pesquisa
Munir-me das mais diversas ressonncias, provoc-las, ouvir caminhos, trilhas e atalhos;
comear a process-las: juntar os montinhos, perceber algumas ligaes, dar a ver
algumas outras que se iniciam, produzir novas conexes, novos ns neste bordado.
Ressonncia produzida pelo que nos toca;
resultado de encontros,
o ressoar dos silncios amplia a realidade, alarga o presente;
no ressoar do quase inaudvel, tento ouvir suas direes, encontros emergem.
Trago neste escrito algumas ressonncias que formam um referencial terico sonoro,
contraponto a duas vozes, ambas mltiplas, com os escritos;
aulas formais, ginsio, colgio e universidade, palestras, seminrios, congressos;
encontros presenciais para aprendizagem e que s se tornam conhecidos se narrados por
um dos lados diferentes - baqueta ou gongo - que sentiu as ressonncias deste encontro.
Tornar presentes estas ausncias dando materialidade a elas, um dos objetivos deste escrito.
[...] a ateno ao acontecimento a ateno ao humano e a sua complexidade. Tomar
a aulas como acontecimento eleger o fluxo do movimento como inspirao,
rejeitando a permanncia do mesmo e a fixidez mrbida do passado.17
17 GERALDI, Joo Wanderley (2004a). A aula como acontecimento, p.21.
-
14
3. Licena pro meu batalho de ouro!
Batalho de ouro
Sou Glria, 56 anos, filha de Enilda, 85 anos, a quinta de sete filhos; piano sempre me lembra
mame e suas irms e os saraus caseiros no Rio de Janeiro, casa de vov; mame parou de
estudar na quinta srie quando, naqueles idos, a escola passava a ser paga, mas voltou a estudar
e formou-se em pedagogia com mais de 65 anos; nunca exerceu a profisso, mas sim as tarefas
do ofcio, porque, entre outras, foi quem alfabetizou suas duas filhas, eu e Cndida;
minha irm formada em Histria e hoje diretora de uma escola particular; eu
redimensionei o sonho clssico de mame - ver suas filhas pianistas e me tornei percussionista;
profisso e ganha-po principal por 22 anos, tocando na Sinfnica de Campinas, sempre junto
de tarefas de professora e me da Daniella;
minha filha, estudou na Escola Cooperativa Curumim e na Escola Municipal de Ensino
Fundamental Jos Pedro de Oliveira; depois se formou em magistrio na primeira turma do
CEFAM Centro de formao e aperfeioamento do magistrio - de Campinas, enquanto
cantava em vrios corais; me abandonou, foi para Curitiba e, depois de 2 anos de faculdade de
Pedagogia, foi estudar Educao Artstica, modalidade msica; cantora, rabequista,
percussionista e professora de Canto Popular da Universidade Federal da Paraba.
Sempre fui professora, sempre pensei sobre educao, mesmo quando aluna, talvez porque
minhas escolas de adolescncia fossem excelentes. Tanto o ginsio e colegial, quanto a de msica
eram ambientes muito instigadores, criativos, com professores generosos e interessados.
Um percurso incomum;
este ineditismo da minha formao, s reconheci muitos anos depois quando analisei,
para algumas disciplinas do curso de especializao Cincia, artes e prtica pedaggica18, a minha
formao;
entre tapas e beijos dos vrios relatos das escolas de meus colegas de curso, eu parecia a
Pollyana19, toda de bem com a vida escolar, professores maravilhosos em prdios modernos com
pedagogias renovadoras e tudo isto dentro do ensino pblico!
18 Curso de Especializao: Cincia, arte e prtica pedaggica, Faculdade de Educao/UNICAMP, 1996 1997.
Pergunte dona da casa Se meu boi pode brinc
Dona da casa seu terreiro alumi. Viva o terreiro em que meu boi cheg!
(Coxinho do Boi de Pindar)
O sol entra pela porta, E o luar pela janela Eu vim foi tir licena Eu no vou daqui sem ela.
-
15
E era verdade!
No precisei construir o sonho no qual qualidade, respeito e criatividade pudessem ser
deslocados para a educao, e ainda mais para uma escola pblica, convencer-me de que uma
outra educao possvel, eu vivi nesses territrios!
Fui cobrada, e com toda razo, pela minha orientadora por ter colocado, em uma verso anterior
desta dissertao, que ser professora e msico foi quase uma opo natural a partir da admirao
que sentia e sinto por vrios daqueles meus professores dos anos de formao;
este natural desmerece o trabalho desses profissionais, j que havia sim um esforo deles
para entrarmos em novos mundos, um convite para ver outros horizontes, uma seduo para a
ousadia;
no por acaso eram em grande parte das esquerdas dos anos 60/70 e estavam
encantados, lutando por um mundo melhor nas passeatas e nas salas de aula;
os gestos de lutas transbordavam em seus fazeres e provocaram em ns, alunos, um
interesse pelos seus interesses;
o clima de dilogo tambm nos dava a certeza de que se interessavam em nos ouvir.
E foi assim que, tambm numa escola, forjou-se, em tempos antigos, uma outra face que trago, a
de militante poltica.
Que tempos so esses, quando
falar sobre flores quase um crime. Pois significa silenciar sobre tanta injustia?
No final dos anos sessenta, quando falar sobre flores era quase um crime, como escreveu Brecht,
muso da juventude dos anos 60/70, no poema Aos que viro depois de ns20, numa poca de
tempos sombrios e violncia, uma professora e seus amigos universitrios no silenciaram sobre
tanta injustia e lutaram, montando um grupo de teatro na escola para, atravs da arte, mostrar
a vida que se escondia pelos cantos da ditadura, para podermos contar, como o poeta, que:
Realmente, vivemos tempos sombrios! A inocncia loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri ainda no recebeu a terrvel notcia
que est para chegar. Que tempos so estes, em que
quase um delito falar de coisas inocentes,
pois implica silenciar sobre tantos horrores21
19 Pollyana a personagem de um livro do mesmo nome de Eleanor H. Porter; uma menina totalmente alienada ou extremamente otimista, na opinio de outros, que entrava
num "jogo do contente".
20 BRECHT, Bertold. Aos que viro depois de ns.
21 BRECHT, Bertold. Tempos sombrios.
-
16
dirio de 1967, 13 anos, revisitado minha entrada no grupo de teatro da escola.
"A Dady, Dui e Lou * foram convidados para participar do GRUMASA (Grupo Maria Salete).
No 1. dia de ensaio, para o teste, eu fui junto. Entramos, sentamos, e, a, o Daniel apareceu e
deu um papel com a poesia "Os Homens da Terra" (Vincius de Morais), mandou-os para a frente (no palco), eu perguntei se poderia entrar tambm, e, recebendo resposta positiva, tambm fui
pra frente. Teramos de recitar a tal poesia. Tremia, mas fui firme ..."
A segunda apresentao.
Eu estava calma e... bem, para dizer a verdade eu estava apavoradssima porque tinha medo de
errar "rica tralha", mas conseguia disfarar [...] desnecessrio dizer que eu me apavorei e errei,
disse duas vezes "rica tralha"...
Senhores donos da Terra
Juntais vossa rica tralha (rica tralha)
Vosso cristal, vossa prata
Luzindo em vossa toalha.
Juntais vossos ricos trapos
Senhores Donos de terra
Que os nossos pobres farrapos
Nossa juta e nossa palha
Vm vindo pelo caminho
Para manchar vosso linho
Com o barro da nossa guerra:
E a nossa guerra no falha!22
* apelidos secretos de minha irm e seus amigos do clssico quando apareciam no meu dirio
esta outra face que determina timbres em minha vida: a cidad, que no aceita e nem se
adapta realidade dada, desconfia dela e se insere na luta por sua transformao.
Esta terceira face me levou para fazeres diferentes, ainda que alguns ligando msica e educao;
exerci cargos de direo no meu partido e fiz parte do governo popular e democrtico de
Campinas, como assessora da Secretaria de Municipal de Educao, em 2001, diretora de cultura
(2002) e diretora da Orquestra Sinfnica Municipal de Campinas (2003 e 2004).
22 MORAES, Vinicius. Homens da Terra.
do ba
fim
-
17
Aquecendo os tambores
Eu ainda estou firme, E meu povo faz tremer o cho. Com pandeiro, matraca, Marac de prata na mo. (Humberto, Boi de Maracan)
Voltei a aquecer os tambores!
esquecidos, entre uma tendinite, que me afastava da percusso, aliada s inmeras
tarefas de um cargo comissionado militante, meus tambores voltaram a ser aquecidos durante o
tempo do mestrado, mas em outros ritmos;
nos sonhos de percussionista aposentada, eu planejara viver um tempo no Nordeste,
entrar em algum grupo de Boi, Maracatu ou outra brincadeira popular de comunidade, e, para
isto, tinha cultivado alguns lugares, feito planos e contatos;
comecei a me questionar: por que esperar acabar o mestrado para fazer isto? por que no
fazer isto em Campinas?
O cenrio musical da cidade estava mudado, vrios grupos emergentes haviam surgido, grupos
de percusso, trabalhando com cultura popular, mas... aqui? por que no?
Me dei conta de que receava ser iniciante em terra onde fui mestra!
DESALENTO
Existncias ancoradas,
sem coragem de iar velas
para os rumos decisivos.
(Helena Kolodi)
Para vencer a resistncia que me levava estagnao, comecei a conhecer e a tocar em vrios
grupos e estabeleci pactos de respeito mtuo com minha tendinite: muito alongamento, melhor
alimentao e mais pores de felicidade.
Nos carnavais de 2007 a 2009, toquei todos os dias por mais de 5 horas com 4 grupos diferentes e
me reencantei com o tocar nos grupos de Baro Geraldo; em 2010 fui para o Recife ensaiar e
desfilar com duas naes de maracatu de baque virado: Encanto do Pina e Porto Rico.
E a educao?
Seguia, mas num andamento lento, um adaggio ma non troppo...
A percusso e a msica, aliadas educao, haviam me levado por territrios educacionais bem
distintos e interessantes, que, somados s boas escolas que conheci, haviam me tornado uma
testemunha, seja como aluna, professora ou me, de pedagogias preciosas e ausentes e contava
com isto quando iniciei a tarefa.
-
18
Projeto enviado em agosto de 2007 para a seleo deste mestrado
Cmplices! msica e educao,
parceiras, amigas, frequentemente amantes e at casadas
aproximao, distanciamento, contatos
movimentos de contrao e expanso
pas de deux, improvisos ou coreografias criadas para grandes palcos com a
assinatura de grandes nomes de sua poca
Coreografias: gesto preparado, pensado, analisado, discutido, consensuado e
perpetuado; escritos oficiais, currculos e programas; memria escrita e revisada.
(nos espaos do entre, nos meandros da macroestrutura encontro improvisos)
Improviso: gesto-espao da ousadia, da curiosa e rpida reflexo, instantneos para dar
asas pedra do cotidiano; [...] gestos para o alm do determinado, pequenos ou grandes,
singularidades de professores. [...]
Na procura de gestos encontro palavras
escritos, prosa e poesia;
memrias contidas em palavras;
memrias transformadas em palavras que so;
O fato de me perceber no mundo, com o mundo e com os outros me
pe numa posio em face do mundo que no de quem nada tem a
ver com ele. [ . . . ] minha presena no mundo no de quem se adapta,
mas a de quem nele se insere . 23
me insiro com o que carrego: educao e msica, cmplices em mim!
Comecei a pesquisa fazendo inmeros inventrios. Encontrei mais histrias escritas por mim e
outros colegas professores e pensei em reviver os debates que aconteciam no final do sculo XX
no grupo de pesquisa de que fazia parte, contar o que tinha abandonado antes de ir para a
administrao pblica, como se fosse possvel pegar o comboio da vida numa estao do
passado e seguir em outra direo.
O prazer das memrias era grande e me trazia de volta os retalhos de descobertas que guardara
para um futuro e, por um tempo na lida desta costura, realmente pensei que cosia apenas algo
para se empoeirar, embelezando a parede com suas cores de outrora;
23 FREIRE, Paulo (1996). Pedagogia da autonomia: saberes necessrios prtica educativa, p.31.
do ba
fim
-
19
Quem essa
que me olha
de to longe,
com olhos que foram meus?
refletir sobre a memria e suas artimanhas a partir de minhas memrias dodicentes me
parecia-me bastante tentador e prprio de uma senhora aposentada, que, em frente a algum
espelho, estava se perguntando, como Helena Kolodi em RETRATO ANTIGO:
Professora e percussionista se (re)vestindo de pesquisadora, tenho fios e retalhos, quero
aprender a tecer, mas o que fazer com isto?
Quando busco escrever as memrias, ao longo dessa escrita, como fazer uma viagem
a um mar interior, e como o territrio interno de cada um no soberano, sei que foi
atravs do olhar do outro que pude circunscrever esse territrio interno. A escrita
tenta fixar os traos das lembranas cada vez mais fugidias.25
Quem me d essas e outras pistas a Biga - Abigail Malavasi - colega do GEPEC26 dos idos de
1999 e que reencontro nos escritos de sua tese.
Ela me lembra que Para Walter Benjamin existem dois tipos de narrador, o que vem de fora e
conta suas viagens e o que ficou e conhece a sua terra, seus conterrneos e habitado pelo
passado.27
A experincia que passa de pessoa a pessoa a fonte a que recorreram todos os
narradores. [...] "Quem viaja tem muito que contar", diz o povo, e com isso imagina o
narrador como algum que vem de longe. Mas tambm escutamos com prazer o
homem [que] sem sair do seu pas [...] conhece suas histrias e tradies. [...] podemos
dizer que um exemplificado pelo campons sedentrio, e outro pelo marinheiro
comerciante.28
Camponesa e marinheira, sedentria e navegante...
A camponesa que h em mim quer um pano bonito para colocar em alguma parede da casa
como uma janela onde o tempo o passado, o confortvel passado de glria...
Enquanto lia minhas histrias e tambm as de outros companheiros como coisas antigas, apenas
tentava remend-las, dar novas vestimentas, mas arrastava o mestrado, no acertava seu baque!
Ao mesmo tempo que, aparentemente, pouco realizava da pesquisa, escrevia muito para o
24 SANTOS, Boaventura de Sousa. Ao espelho no hostal del Bosque Izquierdo.
25 MALAVASI, Abigail (2006). A dimenso esttica na constituio do trabalho coletivo no interstcio da escola constituda.
26 GEPEC - Grupo de Estudos e Pesquisas em Educao Continuada -, da Faculdade de Educao, Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP.
27 MALAVASI, Abigail (2006). A dimenso esttica na constituio do trabalho coletivo no interstcio da escola constituda.
28 BENJAMIN, Walter (1987). O narrador: consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov.
[...]As guas pensam.
Quando pensam muito
chamam-se espelhos.24
-
20
Grupo-de-Tera do GEPEC (GT), comentando histrias e causos de professores, envolvendo-
me com um universo de cotidianos escolares narrados por professores.
O narrador vence distncias no espao e volta para contar suas aventuras num
cantinho do mundo onde suas peripcias tm significao. O narrador expressa o que
narra da prpria experincia e a transforma em experincia dos que o escutam. Isso
tem a ver com as histrias que se entrecruzam e constroem a memria social e
tambm com o trabalho do professor. O professor o que vem de fora e narra suas
viagens.29
Navegar preci(o)so! e quase inevitvel, meio lusitana que sou, por parte de pai. Mesmo sem
saber que rumo tomar, aumentava a tripulao desse barco cujo combustvel o dilogo;
meu batalho de ouro original cresceu;
alm das mulheres da minha famlia e os ocupantes da Jangada de pedra, navego
tambm com outros professores generosos que tive, presenciais ou virtuais em forma de livros
ou na tela de um computador: minhas bssolas.
Se oriente, rapaz
Pela constelao do Cruzeiro do Sul
Se oriente, rapaz
Pela constatao de que a aranha
Vive do que tece
V se no se esquece
Pela simples razo de que tudo merece
Considerao
Considere, rapaz
A possibilidade de ir pro Japo
Num cargueiro do Lloyd lavando o poro
Pela curiosidade de ver
Onde o sol se esconde
V se compreende
Pela simples razo de que tudo depende
De determinao
Gilberto Gil, poeta de Oriente30, quem me faz considerar as mudanas de rumo, e me oriento
buscando no Sul a constelao de professores que me orientam pelos mares da educao.
Navego com as estrelas do GEPEC.
Determine, rapaz
Onde vai ser seu curso de ps-graduao
Se oriente, rapaz
Pela rotao da Terra em torno do Sol
Sorridente, rapaz
Pela continuidade do sonho de Ado
Mas discordo do poeta, o sonho de Eva.
29 MALAVASI, Abigail (2006). A dimenso esttica na constituio do trabalho coletivo no interstcio da escola constituda.
30 Oriente (1971), Gilberto Gil
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21
Foi ela que foi em busca do conhecimento, mesmo s custas de perder seu paraso...
Assim, alm dos sorrisos, dos olhares e das cumplicidades que toda viagem produz, trago, como
carta de navegao, os professores ligados ao GEPEC;
narraes orais, anotaes de suas falas em aulas ou reunies, ou nas memrias dos
meus dirios;
e seus escritos, dissertaes, teses, artigos, livros, cartas, e-mails.
Por que ter a produo do GEPEC como referencial terico? Quem me responde Adriana
Varani, na sua tese de doutorado:
Pesquisas produzidas neste grupo tm trilhado caminhos no sentido de tomar o
grupo como instncia importante na formao continuada do professor[...].
importante fazer uma retomada destas elaboraes, produzidas pelo/no GEPEC,
porque suas produes apresentam razes para acreditarmos que o grupo instncia
fundamental de formao. Esta retomada tambm se constitui como necessria, pois
as pesquisas realizadas proporcionam pistas e referenciais para interlocuo com o
trabalho de pesquisa que realizo.31
Havia voltado para o canto do mundo onde as histrias que encontrava poderiam ter
significado;
sabia agora que criava, dos fios antes encontrados, um pano em formato de vela para a
qualquer momento sac-la da parede e colocar na base de uma jangada, de pedra ou madeira,
real ou virtual, e voltar a navegar por outros mares, parando em novos portos de passagens.
Cruzeiro do Sul...
Epistemologias do Sul!
As propostas epistemolgicas, que tenho vindo a fazer [...] no apontam, apenas, para novos
tipos de conhecimento; apontam, tambm, para novos modos de produo de conhecimento.
Defino-os, em geral, como epistemologias do Sul, entendendo por Sul a metfora do
sofrimento humano, sistematicamente causado pelo capitalismo. Trata-se, pois, de um Sul no
imperial[...]32
Perceberam?
ele aparecendo: e-Boa!
31 VARANI, Adriana (2005). Da constituio do trabalho docente coletivo: re-existncia docente na descontinuidade das polticas educacionais.
32 SANTOS, Boaventura de Sousa (2007b). Em torno de um novo paradigma scio-epistemolgico.
-
22
Foi esse encantado que me mostrou as pedagogias das emergncias, o Ainda-No, o que aponta
como possibilidade e que preciso preservar, cuidar, aguar, alimentar, assoprar para que o fogo
no se apague;
emergncias que eu percebia na gestualidade da msica e da educao, que presenciava
nos grupos de percusso, nos encontros da Casa de Cultura Tain, nos novos velhos territrios da
educao;
emergncias que eu percebia nos grupos de msica que se formavam pela universidade
revelia da instituio compostos por alunos de reas distintas;
emergncias tambm contidas nos textos de outros professores, nas Pipocas
pedaggicas33, nos quais o institucional se alarga para abarcar, conter, uma outra parte do
mundo.
As emergncias so cristais da reinveno de uma outra educao para um outro mundo
possvel, so cristais de encantamentos, respostas pergunta que ainda no conhecia e que
procurava dentro de mim e nos meus escritos, a pergunta no feita, comprada na feira de
desencantos ps-gesto, momentos de procura de sentidos.
A pesquisa nas gestualidades possveis entre educao e msica era real, mas o objetivo oculto
era o de me provocar, me deslocar da desolao que roubava Pessoa e escrevia
Memorial de identidade: Pessoa, urboro, professores, monstros afins e a pergunta errada. 34
No sou nada.
Nunca serei nada.
No posso querer ser nada.
parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto.
Do meu quarto de um dos milhes do mundo que ningum sabe quem
(E se soubessem quem , o que saberiam?),
Este texto nasce de um incmodo.
Incmodo causado por coisas que gosto e defendo como certas.
33 Pipocas pedaggicas so crnicas de professores desenvolvidas pelo GEPEC; ser apresentada com pompas e glorias no quinto movimento.
34 CUNHA, Glria. Memorial de identidade: Pessoa, urboro, professores, monstros afins, e a pergunta errada. Texto incompleto. As prximas notas at a de nmero 40 fazem
parte deste texto.
do ba
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23
Certa, essencialmente certa, mas nesta posologia?
Posologia: indicao e dosagem.
Dosagem: que tamanho de recorte ainda mantm o DNA de uma realidade?
Indicao: quem precisa das minhas minudncias?
Incmodo como algo desconfortvel, que dificulta, que perturba e, procurando adjetivar esta sensao
um pouco mais, diria que a vejo e-xa-ta-men-te como o Houaiss35: algo que no oportuno, sobrevem em
mau momento, em ocasio imprpria; inconveniente, importuno, inapropriado como uma visita de sogra
em dia de namoro, me entende?
No? nem eu e por isto incomoda, este o meu problema...ou soluo?
vinheta musical
Fui dar umas voltas l fora
Nas voltas que o mundo d
por 4 anos, 2000 a 2004, deixei de ser msico e professora e assumi cargos comissionados na gesto
democrtica e popular do PT em Campinas; sem outras explicaes, conto apenas que deixei uma
carreira de professora universitria (situao profissional irregular, mas nada que no seria solucionado
com pacincia, muita e muita!) e um mestrado bem articulado, mas incompleto, na Faculdade de
Educao da Unicamp.
Cada um cada um
No desejo e no sonhar
(Itarcio Rocha)
meu partido no se reelegeu e acabaram assim os motivos e os (des)caminhos que me levaram quelas
tarefas.
De volta ao futuro, pensava eu, universidade e msica!
Participei do GEPEC grupo de estudos e pesquisa em educao continuada de 1997 at 2000; minha
volta depois de mais de 4 anos enfurnada nas burocracias do servio pblico, e mais outro lambendo
feridas, no foi fcil e confortvel como vestir um chinelo velho, estava mais para sapatos de salto alto e
bico fino: difcil de equilibrar, difcil de caber, difcil de andar: INCMODO!
Por um bom tempo procurei o meu GEPEC, com as minhas discusses e com minhas companheiras
e minha orientadora; a diferena em to pouco tempo me assustava, o mundo girava rpido e no tinha
parado para me esperar!.
Em meados de 2005, lendo o texto de qualificao de Maria Natalina36 me dei conta de que a autoria da
dissertao, o eu de quem escreve ganhara outras dimenses; os indcios j estavam delineados em
2000, existia no GEPEC, mas agora estava se constituindo como parte mais importante da dissertao
ou tese e no era apenas o cenrio onde acontece a montagem das reflexes.
A autoria no estava mais nas reflexes a partir do eu pensei/ me ancorei/ me sustentei/ no dilogo
com..., indispensveis numa dissertao. Migrara disto para ser a chave do paradigma montado e
remontado para cada pesquisa; mais do que quem urde a trama, o autor passara de tecelo a ser o
35 Quero manter aqui a intimidade que desfruto com o meu Dicionrio eletrnico Houaiss 1.0, em especial aquele que se aloja na mesma placa me que eu neste momento.
36 FARIAS, Maria Natalina de Oliveira (2006). Travessia da prtica docente: paisagens que constituram a formao e o trabalho numa escola de ensino fundamental.
-
24
prprio fio da teia que enlaa fatos e conceitos, mais ainda! agora ele o cara que planta o algodo,
colhe e fia, entrelaa; depois senta e narra, nos conta cada detalhe disto.
Para me explicar como estes caminhos so percorridos, leio Lima 2005, codinome da ex-colega do
GEPEC Maria Emilia, agora de volta federal de Minas; ela a autora de Sentidos do trabalho, um livro
de cheiros e sabores, fruto da tese de doutorado feito no GEPEC. Este livro uma das minhas senhas
para entender o movimento, a busca, dos detalhes da memria pessoal do pesquisador j que nesta
pesquisa a memria tambm foi considerada como fonte. Ela est prenhe de sentimentos e de
significados construdos nos acontecimentos37. Esta memria se cristaliza nas dissertaes em narrao
de relatos orais entrevistas, falas de corredores e salas de reunio e escritos, anotaes, narraes e
rabiscos em dirios de classe, portflio ou mesmo em cartas, cartas de Rosaura!38
Memrias...coisa antiga, mas a principal fonte de onde jorrar tanta memria passara a ser a do prprio
pesquisador. Tudo que li, ouvi e pensei certamente constituram de alguma forma minha viso de
mundo39, afirmou em sua tese Renata Cunha, doutora pelo tambm pelo Gepec e orientanda de
Guilherme Prado;
comecei a me perguntar: minha viso de mundo?
para que raios algum quer ou precisa dela?,
mas me perguntava principalmente:
(E, se soubessem quem , o que saberiam?),
Por tudo isto este era um incmodo inoportuno, esta pergunta, um problema... ou soluo?
a pergunta
Soluo sim! preciso de uma pergunta para uma pesquisa e isto sempre foi um problema para mim, afinal
havia aprendido que deveria perguntar, que era importante saber perguntar:
Pela ementa da discip lina no d para ter uma idia muito clara do
que vamos enfrentar, mas espero que ela me ajude a encontrar mais
perguntas 1 sobre as relaes entre a cincia e as suas implicaes na
produo e ensino da msica.
1 Ontem, numa aula na FE-UNICAMP, o prof. Joo Bernardo disse que clarificar tornar as interrogaes mais mutveis e que o objetivo do
conhecimento formular claramente uma pergunta. Amei!
O texto animadinho acima faz parte de uma avaliao escrita da especializao Cincia, arte e prticas
pedaggicas que fiz na Faculdade de Educao em 1996 e 1997.
Havia feito alguns gestos em relao academia, mas considero este curso meu primeiro contato real
com pesquisa acadmica, o incio da viagem de busca pelas grandes verdades, aquelas escritas,
pesquisadas, concludas e cristalizadas. Confesso o inconfessvel sim: era, sim, isto que eu esperava da
academia: organizao de minhas reflexes, alguma coisa que me dissesse quais eram as regras e onde
estava o belo e pavimentado caminho que eu deveria percorrer para conhecer a Verdade e saber mais,
ainda que no soubesse ainda o que queria saber.
37 LIMA, Maria Emilia Caixeta de Castro (2005). Sentidos do trabalho.
38 Referncia pesquisa sobre cartas de Rosaura Soligo, que fez mestrado no GEPEC com o professor Guilherme Prado.
39 CUNHA, Renata Cristina Oliveira Barrichelo (2006). Pelas telas, pelas janelas: a coordenao pedaggica e a formao de professores nas escolas.
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Fuihi. lograda!
O caminho suave, no me deram a conhecer, nem sequer me contaram onde esto as pedras, mas fiz
grandes descobertas durante estes dois anos, explorando as novas cartografias aprendidas a partir de
montes de curiosidades, agora chamadas de inquietaes epistemolgicas, um termo um pouco mais
sofisticado, que exigiam tambm uma curiosidade mais apurada. Perguntar era mais que possvel, era
desejvel!, mas havia uns predicados requeridos para as perguntas.
Em busca da pergunta no formulada, li Um discurso sobre as cincias40, de Boaventura de Sousa Santos,
onde o autor coloca estes nossos tempos como o fim do ciclo de hegemonia que nos deixa perplexos e
sem confiana epistemolgica. Lia e pensava: s agora que vim a saber sobre isto! bem eu, que vim
para a academia em busca da Verdade e pegava carona na ambiguidade e na complexidade da situao
do tempo presente, um tempo de transio, sncrone com muita coisa que est alm ou aqum dele, mas
descompassado em relao a tudo o que o habita. Tal como noutros perodos de transio, difceis de entender
e de percorrer, necessrio voltar s coisas simples, capacidade de formular perguntas simples [...] Uma
pergunta elementar uma pergunta que atinge o magma mais profundo da nossa perplexidade individual e
coletiva com a transparncia tcnica de uma fisga.
Convencida! Aprender sobre a importncia da pergunta eu aprendi, mas achar uma pergunta de fato
sempre foi um problema, no s meu, mas tambm foi para Maria Emilia41:
A idia de que preciso definir uma pergunta para prosseguir numa investigao tornou-
se, inicialmente, muito incmoda, uma vez que esta pesquisa no possibilitou de sada
uma pergunta, mas uma histria em Herdoto, a etimologia da palavra histria significa
investigao.
Finalmente! eu tinha a pergunta e era genuna, no a famosa pergunta acadmica, que pergunta o que
sabe s para poder dar a resposta. Preconceito? Talvez, com certeza sem grandes reflexes, mas diria
que um senso comum, com seus bons e maus sentimentos.
vinheta visual I (Quino)
40 SANTOS, Boaventura de Sousa (1987). Um discurso sobre as cincias.
41 LIMA, Maria Emilia Caixeta de Castro (2005). Sentidos do trabalho.
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Minha pergunta nasceu deste incmodo, ainda que desautorizado por mim mesma, que me habitou e
agua minha curiosidade que paulofreiramente procura neste texto transitar da ingenuidade para o que
venho chamando de curiosidade metodolgica.
(E se soubessem quem , o que saberiam?),
(E se soubessem quem , o que saberiam?),
(E se soubessem quem , o que saberiam?),
(E se soubessem quem , o que saberiam?),
(E se soubessem quem , o que saberiam?),
(E se soubessem quem , o que saberiam?),
(E se soubessem quem , o que saberiam?),
Est entre parnteses e assim deve ficar, quase como um comentrio feito com boca semi-fechada, de
mim para mim mesma. O incmodo contrariava toda minha briga contra a impessoalidade da
universidade e suas regras de pesquisas higinicas.
A pergunta de Pessoa tornada minha me perseguia sem me fazer ganhar espaos, s andar em
crculo;
por mais a srio que a encarasse, com leituras e pesquisas, ainda assim girava;
passei a escrever e a pensar sobre os memoriais procurando respostas, sem perceber que
ainda no conhecia minha verdadeira pergunta;
no avanava, mas comeava a encontrar, dentro do crculo que percorria, alguns
parceiros - como e-Boa, na pele de seu heternimo Boaventura de Sousa Santos e assuntos
como a sala de aula tornada real pela narrativa de professores e a ausncia da fala de mulheres
professoras.
Memorial de identidade: Pessoa, urboro, professores, monstros afins e a pergunta errada.42
Memorial de formao como se ceva meu conceito de memorial
Memoriais na educao, memoriais de formao to completos, to cheios de detalhes, to pessoais. Em
Sentidos do trabalho, Maria Emilia43 expe os objetos arqueolgicos de sua pesquisa, entre eles os
fragmentos que promovem uma aproximao do que foi e deixam questes abertas [...] vazios que
podem ser preenchidos pela imaginao como os vazios das experincias de vida cuja completude apenas
lhe atribuda a posteriori por interpretaes e memrias. Ela encontrou, ou melhor reencontrou seus
42 CUNHA, Glria. Memorial de identidade: Pessoa, urboro, professores, monstros afins, e a pergunta errada, continuao. Texto incompleto.
43 LIMA, Maria Emilia Caixeta de Castro (2005). Sentidos do trabalho.
do ba
fim
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fragmentos pelo paciente gesto de recolher peas e remover-lhes o p depositado pelo tempo; raspar de
leve, camada por camada, e desvelar o que havia acomodado embaixo delas; desfazer as nervuras do
tempo que, propositalmente ou por acaso, se dobraram sobre o que precisava ser dito. Alm dos
documentos oficiais, a autora declara o no-documentado que compe-se de peas desconexas: cadernos
de anotaes, agendas, fitas gravadas, bilhetes de alunos, telegramas, presentes de colegas, fotografias de
comemoraes de Natal e aniversrios, convites de casamento e cartes de despedida, entre outros.
A importncia da experincia parecia clara para mim, mas o detalhamento, esta intimidade toda, no
estaria fazendo com que os textos produzissem sentidos apenas para quem os escreveu/viveu e seu
pequeno grupo de pesquisa ou colegas da escola? ou outra panelinha? No estaria a intimidade, a
pessoalidade a que esto sendo levadas as dissertaes para o pntano da busca ao ego perdido dos
professores?
Enfim: at onde persiste o DNA de uma experincia pedaggica (ou de vida) num cenrio que, para ter
sentido, deve ser to detalhado, to especfico e particular que precisa ser explicado, remontado,
vivenciado e tecido com todas as provas do delito?
Indcios...
Antes de seguir, pistas volto ao mesmo Boaventura de Sousa Santos44 , e, nele encontro reproduzidas as
perguntas de Rousseau que parafraseio tentando aprimorar minha pergunta:
o detalhamento dos memoriais nos escritos de professores contribuir para purificar ou
corromper, esclarecer ou confundir mais o professor?
h alguma razo de peso para substituirmos a forma ampla de conhecimento
reconhecida que podemos partilhar com outros ncleos, institutos, universidades pelo
conhecimento especficos produzido para poucos e inacessvel maioria das pessoas a quem
poderia interessar?
contribuiro essas pesquisas para diminuir o fosso crescente na nossa sociedade entre o
que se e o que se apresenta ser, o saber dizer e o saber fazer, entre teoria e prtica?
Ser a resposta tambm um redondo no?
Dais para o mistrio de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessvel a todos os pensamentos,
Real, impassivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
44 SANTOS, Boaventura de Sousa (1985/86). Um discurso sobre as cincias. Citao original: Rousseau formula vrias questes enquanto responde que, tambm
razoavelmente infantil, lhe fora posta pela Academia de Dijon. Esta ltima questo rezava assim: o progresso das cincias e das artes contribuir para purificar ou para corromper
os nossos costumes? Trata-se de uma pergunta elementar, ao mesmo tempo profunda e fcil de entender. Para lhe dar resposta do modo eloqente que lhe mereceu o
primeiro prmio e algumas inimizades Rousseau fez as seguintes perguntas no menos elementares: h alguma relao entre a cincia e a virtude? H alguma razo de peso
para substituirmos o conhecimento vulgar que temos da natureza e da vida e que partilhamos com os homens e mulheres da nossa sociedade pelo conhecimento cientfico
produzido por poucos e inacessvel maioria? Contribuir a cincia para diminuir o fosso crescente na nossa sociedade entre o que se e o que se aparenta ser, o saber dizer e o
saber fazer, entre a teoria e a prtica? Perguntas simples a que Rousseau responde, de modo igualmente simples, com um redondo no., p.7.
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o mistrio de uma rua cruzada constantemente por gente, como uma sala de aula, ela tambm
inacessvel a todos os pensamentos, mas feita real por narrativas de professores que hoje se desdobram
em pesquisadores
Com mistrio das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pr umidades nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroa de tudo pela estrada de nada.
o mistrio das coisas por baixo das pedras e dos seres, intimidades, detalhes mnimos de olhos postos
no particular; escritos, parecidos com os dirios-agendas das garotas onde as lembranas vm com
palavras, bilhetes, cartes de telefone, presos com clipes e com gosto de papel de bala.
MOMENTO CULTURAL: Tabacaria
Dirios de garotas, talvez esta tenha sido a chave que abriu a gaveta onde guardava Tabacaria, poema que
me persegue desde os 13 anos, quando me foi dado a ouvir por Maria Salete Bento, professora de
portugus do ginsio. Na minha memria, Tabacaria no est escrita, palavra sonora, quase msica,
reminiscncias do Long Play com a gravao de poemas de Fernando Pessoa recitados por um ator
portugus.
Como uma fala imagtica que acompanha, comenta e uiva, o poeta lana sequncias de imagens, que
se sobrepem e expem uma parte de seu eu, ou um de seus eus, o lvaro de Campos, o narrador.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lcido, como se estivesse para morrer,
E no tive mais irmandade com as coisas
Seno uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabea,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Combio, com sotaque portugus, ressoa unido aos riscos do LP em mim h 40 anos junto com a
admirao pela professorinha de portugus que via sentidos em mostrar isto para uma reles
semiadolescente de escola pblica! No existem mais que duas possibilidades para um ataque esttico
destes: ou passa ao largo, no te atinge e some imediatamente, ou te invade e te toma para sempre e
passa a ser parte de voc.
Tabacaria foram palavras ouvidas, lidas e repetidas em sua sequncia, ou em partes, por mim e me levam a
um mundo de memrias que no so minhas, mas se tornaram minhas pelas prendas, as sensaes-vida
que me trazem desde um tempo anterior ao que poderia t-las sentido
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Pessoa narra uma srie de acontecimentos que acompanham ou explicam uma sequncia de imagens
poticas ou reais que poderiam compor um memorial de um lvaro de Campos vido, sempre vido,
transitando entre realidade e delrios. Apesar das palavras provocarem imagens caleidoscpicas, o
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poema se passa no tempo, um memorial narrado como em tempo real. O poeta narra sensaes e
memrias inventadas ou relembradas ao olhar a tabacaria do outro lado da rua da janela de seu quarto,
do seu quarto de um dos milhes do mundo que ningum sabe quem e, se soubessem quem , saberiam que l estava
um dos maiores poetas do mundo escrevendo um dos maiores poemas da lngua portuguesa, mas,
naquele momento, sua fala era desconhecida, sendo desconhecida no era ouvida.
Tambm as falas das mulheres-professoras foram desconhecidas por muito tempo, com poucas falas
transformadas em textos viajando para fora da sala de aula. Quando comecei a pesquisar em Educao,
sempre estranhava que as mulheres, responsveis por tantas horas-aulas, no escreviam sobre
educao e me perguntava por que, se as mulheres davam tantas aulas, eram os homens a ensin-las,
com seus livros, como era esse fazer.
Tentei tomar e retomar o texto inmeras vezes sem conseguir desenvolv-lo. Uma pergunta
errada pode levar s respostas erradas, e da a importncia de saber perguntar.
A pergunta do texto poderia ser: pra quem e para que interessam os detalhes de um memorial?
A realidade de cada pesquisa feita pelas escolhas contidas no inventrio de documentos e que
formam seus dados. O recorte, o limite, a censura no so dados por si mesmos, e no memorial
que digo, determino e conto, qual o meu papel nesta pesquisa ( pesquisadora, professora,
coordenadora de um grupo, diretora) e qual dos meus heternimos sociais gloria aluna,
professora, gestora, msico, percussionista, militante, me - est no comando e narrando fatos.
A pergunta que roubei de Pessoa, mesmo sendo uma pergunta errada, desencadeou algumas
reflexes interessantes e que esto a porque mostram parte do percurso deste escrito.
Reformulando o projeto enviado para o mestrado, Gestando sonhos: gestualidades sobre Educao e
Msica, numa tentativa de encontrar um rumo, sem pensar, meus dedos completaram o ttulo:
Gestando sonhos, parindo demnios!
Eram os desencantos ps-gesto, conquistas se dissolvendo no insustentvel peso da realidade,
os fantasmas que me afligiam.
A pergunta que procurava para me pr em movimento no era sobre memrias e memoriais.
(E, se soubessem quem , o que saberiam?)
Essa pergunta s escondia desconsolos;
no com o fim da histria, da Verdade ou da Realidade, ou algo to mundial, global ou
sideral;
nada que, aparentemente, eu pudesse inculpar cincia moderna e aos seus asseclas do
rigor monolgico;
fim
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mas que guarda parentescos locais com tudo isto, com a gesto da verdade e da
realidade construda ao som do mercado, das necessidades capitalistas, da imposio global e
neoliberal de uma realidade que resiste s mudanas, que no larga seu osso.
Meu desencanto era com o fim de mais uma histria de gesto democrtica, de uma verdade e
luta poltica, de uma realidade de sonhos e convices pessoais que se esvaa na lgica
neoliberal. Muito briguei eu comigo,
tive raiva,
me insultei.
E, de incontido desgosto,
em meu prprio ombro chorei. (Eu comigo Helena Kolody)
A pergunta que emergia deste desconsolo, a pergunta que existia a partir da ausncia que me
habitava, encontrei formulada por Wanderley Geraldi no ttulo de um texto e roubo sem
pudores:
Depois do show, como encontrar o encantamento?
E vem de lon ge o eco s urdo do bumb , sambando 45 frente de um cortejo de maracatu, reis e rainhas, lanceiros e batuqueiros da cultura popular brasileira, socorrendo-me na jornada de
descobertas, na busca por respostas.
Porque se chamava moo Tambm se chamava estrada Viagem de ventania 46
Vento que traz a voz de sereias, poetas pernambucanos que explodem seus versos;
sem amarras ou cera nos ouvidos, me movimento com seu cantar.
Vamo simbora que o mundo arrudiou Vamo simbora que o mundo arrudiou E se eu f i car parado aqui eu no vou E se eu f i car parado aqui eu no vou
Do Lixo do Mangue para Um passeio pelo mundo livre , Um passo frente e voc
no e s t mais no mesmo lugar" 47 com Chico Science e Siba chega a certeza de que tem
sentido este deslocar porque Toda vez que eu dou um passo, o mundo sai do lugar". 48
45 Boi-bumb, de Waldemar Henrique.
46 Clube de Esquina II, L Borges e Milton Nascimento
47 Um passeio pelo mundo livre e Lixo do Mangue, ambas de Chico Science.
48 Toda vez que dou um passo o mundo sai do lugar, de Siba e Fuloresta.
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Saudao senhora dona da casa
louvao ao boi, ao dono do local da
apresentao e o anncio do inc io do
auto do boi
So duas, as casas envolvidas nestes escritos.
Uma de sada e outra de chegada.
Uma das casas a minha, meus universos de referncias e de caminhar, e a outra a da dona
Academia, com seus universos, alguns comuns aos meus e outros diferentes.
Decido louvar a ambas:
Vou fazer a louvao, louvao, louvao
Do que deve ser louvado , ser louvado, ser
louvado.
Meu povo, preste ateno , ateno, ateno.
Repare se estou errado.
Louvando o que bem merece,
Deixo o que ruim de lado .
E louvo, pra comear
49
A casa desta senhora Ao ler pela primeira vez o texto de Benjamin sobre a casa do burgus, to cheia das coisas que
no d espao para nada, fiz um precipitado mea culpa:
minha casa tambm assim! tenho minhas coisas por toda a parte! no deixo espao a
nada de fora! nada cabe nada aqui, no permevel!!!!
Tenho algumas crises epstemopsicolgicas, felizmente passam logo.
Cheguei em casa decidida a olhar os apinhamentos das paredes e retirar as minhas marcas para
dar lugar ao outro.
Paro na porta de entrada e penso: o que retirar?
a mscara afrocubana, La Negra?
a Kamayur? a do indgena dos Andes?
ou a do amigo arteso?
as almofadas indianas sob a manta dos Mapuches no sof amarelinho que fica na parede
que tem a colcha linda de renda Fil nordestina, lado oposto onde esto os mveis que herdei de
meus avs e outros de meus pais...
49 Louvao, de Torquato Neto (poesia) e Gilberto Gil (msica).
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E encontro a metfora visual das alegorias desta dissertao: minha casa!
Torturei-me ao exigir definies.
usarei alegorias da msica erudita, meu bero, ou da cultura popular, meu batalho
atual, ou da popular de mercado, do imaginrio das emoes subjetivas?
no projeto eu falava de gestos e coreografias, ser que fao parceria com a msica ou a
dana e deixo as imagens?
Definies impossveis de definir, j que estas coisas todas so em mim uma s, e, ento, assim,
solenemente, declaro:
esta dissertao no fragmentada;
esta dissertao no multicultural em suas influncias e alegorias!
Reflete a cultura deste Brasil com suas trs matrizes culturais formadoras - africana, indgena e
europia - com as quais, de intensidades variadas, todos por aqui so seus benditos frutos.
Por baixo e por cima dos debates, os brasileiros foram construindo o Brasil brasileiro,
com todos os materiais que lhes chegaram s mos e com os que foram inventando,
com aquela voracidade antropofgica que Oswald de Andrade to bem caracterizou.
Hoje o Brasil tem suficiente identidade para poder dispensar-se de pensar nela. 50
Dispensado o Brasil, dispensada me sinto eu!
Meu av, Antnio Martins Cunha, nasceu no sculo XIX em Cardielos, uma aldeia portuguesa
perto de Viana do Castelo, e veio para o Brasil; considero que teve uma vida com experincias
to complexas, em termos de diversidade de culturas, quanto as de algum do sculo XXI.
O que, em nossos dias, querem mostrar como pedacinhos um todo cultural, a cultura tpica
das pessoas que vivem em centros urbanos ocidentais. As nossas formas de registro e as novas
ferramentas para rastrear informaes e rvores genealgicas das pessoas e culturas que nos
formam algumas vezes nos do uma idia de fragmentao que no encontra respaldo dentro de
ns.
Tenho, na minha casa, mveis que herdei desse meu av, inclusive um ba de madeira, sua
mala de quando veio para c. Esse pouco de Portugal fica junto da arte brasileira - a indgena, a
popular e a erudita - que convive bem com a arte africana e a andina, ao som de Beethoven,
passarinhos, Stravinsky, Gilberto Gil, cachorros, Lunsqui, Paulo Freire, o violeiro, claro!,
Maracatu Porto Rico, Carlos Gomes, Boi de Maracan, vizinhos, Marlui Miranda, Mundaru,
Gramanis, Hesperion XX, Len Gieco.
isto que nos gera, como Macunama, antropofagicamente ps-caipira, incorporando os
materiais mais diversos, deglutindo a academia nesse banquete para nos construirmos.
50 SANTOS, Boaventura de Sousa (2004a). In: jornal O Globo.
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Esse meu misturalismo no muito diferente dos de outros brasileiros, talvez mais explcito na
minha casa...
Ter ou no sangue negro no muda o ferver da veia quando toco um maracatu, o sangue
cultural j me constitui, j me pertence.
No sou no maracatu algo diferente do que sou na academia.
Levo ambos comigo. As conversas entre eles e outros mundos vo construindo minhas formas
de conhecer e superar ignorncias.
A casa da outra senhora
A outra dona da casa a Academia.
Sempre me vejo como quem chega e pede permisso para entrar, afinal no sou uma cria da
universidade, meu universo de formao foi outro...
Frequento seus bancos h mais de dez anos, mas ainda a estranho;
sinto-me l, como algo de fora;
um lugar que no me pertence: terra alheia.
Por que no me pertence?
A apropriao do conhecimento pelas cincias exatas e, da educao, pelo mercado, tem tornado
essa universidade mais vazia de saberes, direcionada para um tipo de saber que pode se
converter facilmente em capital, gerar lucro para quem j explora a outros - mercados e pessoas.
Comea a ser socialmente perceptvel que a universidade, ao especializar-se no
conhecimento cientfico e ao consider-lo a nica forma de conhecimento vlido,
contribuiu activamente para a desqualificao e mesmo destruio de muito
conhecimento no-cientfico e que, com isso, contribuiu para a marginalizao dos
grupos sociais que s tinham ao seu dispor essas formas de conhecimento.
Ou seja, a injustia social contm no seu mago uma injustia cognitiva.51
No a esta universidade que sado ou peo licena para entrar.
Deixando o ruim de lado, sado a outra academia, aquela que :
lugar de conhecimentos, no apenas das cincias, menos ainda s das exatas;
lugar de conhecimentos, saberes pesquisados, organizados;
conhecimentos vindo de alguns mundos da educao;
conhecimentos de formas diferentes, mas iguais, de perceber o mundo e
caminhar por ele.
51 SANTOS, Boaventura de Sousa (2008). A universidade no sculo XXI: para uma reforma democrtica e emancipatria da universidade, p.69.
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. . .no deveriam uns decidir do que s a outros caber cumprir .
[ . . . ] Da tenda sabe o tendeiro, de puxar sabem os cavalos
(Saramago)
Intermezzo I Sobre Adlia & Vdeo Uma outra forma de nos silenciar transformar nossa voz na eternidade da escrita Escrever claro, Sem ambiguidades!!
(como se a vida fosse ntida e una) cientificamente sem devaneios-mulher
SUBSTANTIVOS & VERBOS MEDIDAS & ESTATSTICAS
Penso, logo existo? Sinto, logo ... hesito!
sinto, sinto, sinto, sinto, sinto, sinto, sinto, sinto, sinto, sinto sinto que existo
uma existncia feita de adjetivos - boa, m, ansiosa, plena, vazia
uma existncia desmedida - Quanto pesa sua alegria?
- Madaaame, qual foi o volume do amor que sentiu? Aos poucos nos tornam nos tornamos incapazes castradas (do pau que nunca tivemos) temos que falar com lngua que no nossa sem instrumento que traduza nosso entender
(no pensamento e nem sentimento, a gente fatia pra dar conta de conhec-lo, classific-lo mas percebe-se/sabe-se uno,
Na lenda daquela que nasce dOutro - do 1, do que foi feito Imagem e Semelhana - J se deram conta?
ela quem 1 busca o saber... Foi castigada. castigada? Com o qu? Com a expulso do paraistero? (conforto da ignorncia) Com a dor que traz a vida?
(qual mulher troca a no-dor pela vida que gerou?) Castigo ou Prmio??
O suor do corpo em troca de nos tornarmos criadores no apenas criaturas dceis sem vida
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sem risco sem imutveis na perfeio bibels Boa Troca BOA TROCA !
Na lenda daquela que nasce dOutro J se deram conta?
ela quem 1 busca o saber... Intuio feminina, diro em coro ....
* * * * * * Americanfilmes da dcada de 50* * * * * * * *Perry Mason* * * * Papai-Sabe-Tudo** e outros homerois
A mulher sempre uma... * * * * * * D o n a - d e - C a s a * * * * * * *
Sei, sei, sei. Me lembro. a super-incrvel e eficiente secretria do Perry profissional , mas.........................sempre uma mulher com um homem forte,
sustentando- o na sua posio, (brao-direito, anjo-da-guarda, a essncia da alma-dona-da-casa)
(Robins, coadjuvantes na prpria vida)
Ela s vezes tinha alguma gran