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Organização, Recursos Humanos e Planejamento CULTURA ADMINISTRATIVA: UMA ""'" NOVA PERSPECTIVA DAS RELAÇOES ENTRE ANTROPOLOGIA E ""'" ADMINISTRAÇAO Lívia Neves de Holanda Barbosa Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense e Doutora em Antropologia Social. RESUMO: O artigo trata das relações entre antropologia e administração a partir de uma nova perspectiva. Seu principal objetivo é demonstrar que as contribuições que a antropologia tem a oferecer ao entendimento das práticas e políticas administrativas vão muito além do conceito de cultura organizacional, desenvolvido a partir do final da década de 1970.Além da idéia de cultura organizacional não dar conta das várias temáticas que a questão cultural trouxe para o âmbito da administração e dos negócios, a utilização de forma mecânica deste conceito, tanto no Brasil como nos Estados Unidos, tem dificultado ainda mais o entendimento de todas as possibilidades que são abertas por essa interdisciplinaridade. ABSTRACT:The artic/e dea/s with the re/ations between Anthrop%gy and Business Administration in a new perspective. Its main goa/ is to demonstrate that Anthrop%gy's contributions to the understanding of administrative practices and policies go far beyond the organizationa/ cu/ture concept, deve/oped in the end of 7970.Thisconcept does not cover ali the theoretica/ and memodotoçtcat possibi/ities raised by the idea of cu/ture in business and administration. Besides that, it has been used in a mechanica/ way /oosing most of its socioloqco' comprehensiveness. PAlAVRAS-CHAVE: antropologia, administração, cultura organizacional, cultura, práticas e políticas administrativas. KEYWORDS:anthropology, business administration, organizational cu/ture,cu/fure,administrative policies and pradices. 6 RAE - Revista de Administração de Empresas São Paulo, v. 36, n. 4, p. 6-19 Out./Nov./Dez. 1996

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Organização, Recursos Humanos e Planejamento

CULTURA ADMINISTRATIVA: UMA""'"

NOVA PERSPECTIVA DAS RELAÇOESENTRE ANTROPOLOGIA E

""'"

ADMINISTRAÇAO

Lívia Neves de Holanda BarbosaProfessora Adjunta da Universidade

Federal Fluminense e Doutora emAntropologia Social.

RESUMO: O artigo trata das relações entre antropologia e administração a partir de uma nova perspectiva. Seuprincipal objetivo é demonstrar que as contribuições que a antropologia tem a oferecer ao entendimento daspráticas e políticas administrativas vão muito além do conceito de cultura organizacional, desenvolvido a partirdo final da década de 1970.Além da idéia de cultura organizacional não dar conta das várias temáticas que aquestão cultural trouxe para o âmbito da administração e dos negócios, a utilização de forma mecânica desteconceito, tanto no Brasil como nos Estados Unidos, tem dificultado ainda mais o entendimento de todas aspossibilidades que são abertas por essa interdisciplinaridade.

ABSTRACT:The artic/e dea/s with the re/ations between Anthrop%gy and Business Administration in a newperspective. Its main goa/ is to demonstrate that Anthrop%gy's contributions to the understanding ofadministrative practices and policies go far beyond the organizationa/ cu/ture concept, deve/oped in the end of7970.Thisconcept does not cover ali the theoretica/ and memodotoçtcat possibi/ities raised by the idea of cu/turein business and administration. Besides that, it has been used in a mechanica/ way /oosing most of its socioloqco'comprehensiveness.

PAlAVRAS-CHAVE: antropologia, administração, cultura organizacional, cultura, práticas e políticasadministrativas.

KEYWORDS:anthropology, business administration, organizational cu/ture, cu/fure, administrative policiesand pradices.

6 RAE - Revista de Administração de Empresas São Paulo, v. 36, n. 4, p. 6-19 Out./Nov./Dez. 1996

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o interesse pelas questões culturais nointerior da administração não é recente,embora esse tema só tenha começado a to-mar vulto nas duas últimas décadas. Des-de a primeira metade do século, ainda quede forma incipiente, a literatura teórica deadministração registra alguns autores quemencionaram a importância ou se preocu-param com a influência dos aspectos cul-turais na gestão dos recursos humanos emateriais. 1

Entretanto, é apenas a partir de fins dosanos 70 e início dos 80, que o termo cultu-ra organizacional - de empresas oucorporativa - começa a ser usado com fre-qüência para designar um novo campo deinteresse no interior da administração. Ca-racteriza-se por reconhe-cer que a cultura de umaempresa é uma variávelimportante, podendofuncionar como umcomplicador ou um alia-do na implementação eadoção de novas políticasadministrativas, relacio-nado-se também ao seudesempenho econômico.êA partir desse período,congressos, seminários esimpósios de administra-ção de empresas começa-ram a incluir em suasagendas a temática dacultura organizacional.Datam dessa época, maisespecificamente de 1983,duas publicações impor-tantes: o número de setembro daAdministrative Science Quaterly e daOrganizational Dynamics, inteiramentededicadas ao assunto.

Quatro livros que bateram recordes devenda, Theory Z, de Ouchi (1981); The Artoffapanese Management, de Pascale eAthos(1981); Corporate Cultures, de Deal eKennedy (1981) e In Search ofExcellence, dePeters e Waterman (1982), consagraram, doponto de vista do grande público, a dis-cussão. Todos eles, direta ou indiretamen-te, procuravam fornecer respostas para osofrível desempenho econômico das em-presas norte-americanas , face ao desafiojaponês. O interessante desses quatro livrosé que eles forneciam uma resposta seme-

lhante para as diferentes questões coloca-das. Todos, em maior ou menor grau, commais ou menos ênfase, sinalizavam a im-portância da cultura organizacional ou na-cional no que se refere ao sucesso empre-saríal,"

A essas obras seguiram-se outras de cu-nho mais acadêmico, sendo que duas de-vem ser mencionadas não só por seremconsideradas clássicas sobre o assunto mastambém por terem marcado a discussãodas relações entre cultura e administraçãoem duas direções bem distintas. São elas:Organizational Culture and Leadership, de Ed-gar Schein (1984) e Culiure's Consequence,de Geertz Hofstede (1985).0 primeiroenfatiza a idéia da existência de culturas

organizacionais marcada-mente diferenciadas bemcomo o papel que o herói!fundador desempenha namoldagem dessa cultura. Osegundo, ao contrário, atri-bui pouca ou nenhuma im-portância às culturas orga-nizacionais particulares, su-blinhando a importância dacultura nacional na forma deadministrar. Neste livro,Hofstede reafirma a posiçãode um trabalho anterior, noqual procurou demonstrar oconteúdo cultural norte-americano contido nos pres-supostos de várias teorias deadministração.'

O impacto do conceito decultura organizacional se fez

sentir de imediato tanto no âmbito da prá-tica da administração, quanto do grandepúblico. Em 1989, a Time Inc. bloqueou,através de uma ação judicial, uma ofertahostil feita pela Paramount, argumentan-do que a aquisição da empresa naquelascondições afetaria de forma negativa a suacultura organizacional, prejudicando clien-tes, acionistas e, conseqüentemente, a so-ciedade. Tal alegação judicial teria sidoimpensável há 15 anos atrás." Essa impor-tância se toma mais evidente se levarmosem conta as grandes transformaçõesmacroeconômicas e políticas ocorridas naúltima década, responsáveis peloestreitamento dos contatos inter-culturaisa níveis nunca antes vistos, transformações

Embora a ques-tão cultural este-ja em moda, flãodeve ser vistacomo ma is umamoda. O ~'oflceitoclI/tltro/abre eu»miflho para umadiscussão moisp,·ofl •••da, que i! opeso da diluefl-são simbólica fiOSorgonizações efiOS dife,·entesfOI"'" os de gestão.

© 1996, RAE - Revista de Administração de Empresas / EAESP / FGV, São Paulo, Brasil.

1. BARNARD, C. Thefunctions ofexecutive. Cambridge, MA:Harvard University Press, 1938;SELZNIK, P. Leadership inadministration: a sociologicalinterpretation. New York: Harperand Row,1975.

2. Para a relação entre culturaorganizacional e desempenhoeconômico, ver: KOTTER, J. eHASKETT, J. A CulturaCorporativa e o DesempenhoEmpresarial. São Paulo: MakronBooks, 1994.

3. PETERS,T.J. e WATERMAN,R.H. In: Search of excellence.New York: Harper e Row,1982;OUCHI, W.G. Theory Z. MA:Addison-Wesley, 1981; DEAL, T.e KENNEDY, A. A. Corporatecultures. MA: Addison-Wesley,1982; SCHEIN, E.Organizational culture andleadership. San Francisco:Jessey-Bass Publishers,1985;HOFSTEDE, G. Culture 'sconsequence. internationaldifferences in work-relatedvalues. Beverty Hills:Sage,1980;PASCALE, R. e ATHOS, G. Theartof japanese management. NewYork: Simon and Schuster, 1981.

4. Ver HOFSTEDE,G. Motivation,Leadership and Organization: DoAmerican theories apply abroad?Organizational Dynamics,summer 1980, p. 42-63 e domesmo autor em parceria comBOND, M.H. The ConfuciusConnection: from cultural roots toeconomic growth. OrganizationalDynamics, v. 16, n.4, p. 4-21.

5. Ver: KOTTER, J. e HASKET,J.A Cultura organizacional e o de-sempenho econômico. Sã9 Pau-lo: Makron Books,1994. E inte-ressante também ver a movimen-tação em torno da compra daLotus pela IBM, duas companhi-as com culturas organizacionaisinteiramente distintas. A da IBMé caracterizada, entre outras coi-sas, pela sua ênfase nas relaçõescompetitivas e no desempenhoindividual e a Lotus, cujo nomeoriundo de uma posição da iogajá é sintomático por si só.

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6. Sobre a importância da cultura no mundocontemponlneo, ver o artigo de HUTCHISON,Samuel, Choque das civilizações? Pal/licaExIema,v.2,n 4, p.I20-141, março de 1994, noqual o auIDr alinma que os conftitos do futuronão !enio por base questOes econOmicas eideológicas, como no passado recente, mas Simcull!Jrais.

7. Outras caracterlsticas da empresatransnacional comparativamente à empresamullinacional são: organização dispersa,interdependente e especializada; contribui·çóes dijerenciadas, das unidades nacionaisà operações mundiais integradas; e conne-cimento desenvolvido em conjunto e com-partilhado em todo o mundo.

8. Em um levantamento feHo por AOLER, N.,Cross·cultural research: The ostrich and lhetrend.Academy of Management Review, v. 8,n.2, p.42·58, aprt11983, em 24 revistas deadministração num total de 11.219 artigos,a autora constatou que 3,6% (404)deles fra-tavam da questao cuttural, definida por elacomo comportamento organizacional. Des·se total de 404 , 53% abordavam a questãosob um prtsma unicuHural, ou seja, eram es-tudos sobre a administração em único paissem ser os Estados Unidos. Desses, 39%eram estudos comparativos de organizaçõesentre dois ou mais palses e culturas e 8%eram artigos que tratavam da interação en-tre os membros de dois ou mais palses ouculturas. No restante da literatura clássica deadministração, as referências às questõescuHurais são apenas incidentais.Pelo lado da antropologia, a produção é maisrestrita ainda. Em um levantamento feHo paratoda a década de 1980 em uma das maisprestigiosas revistas dessa área, CurrentAnthropology, não foi encontrado um únicoartigo que tratasse desse tema.No Brasil, um levantamento feHo por uma deminhas alunas em 8 revistas de administra·ção e marlceting (Revista de Administração,Revista de Administração de Empresas, Re·vista de Administração Pública, ldor!, Cader·nos de Administração Rural, Temática, Admi·nistração e Serviço, Revista de Administra·ção e Marketing), para toda a década de1980 e inicio de 1990, de um total de 1.969artigos, apenas 9,2% relacionavam ou men·cionavam a questão cultural e apenas 1,6%eram artigos especificamente sobre culturaorganizacional

9. Nos Estados Unidos, existem cerca de200 business anthropoJogists. O mais co-nhecido, no Brasil, é Edward Hall, cujo livroA Dimensão Deult (Rio de Janeiro:FranciscoAlves, 1986) aparece com freqüênCia em al-gumas das listas de leitura dos cursos deantropologia como um estudo da dimensãocultural do espaço. No Brasil, o número deantropólogos que se dedicam ao estudo deempresas e realizam um trabalho sistemáti·co nessa área é mais reduzido ainda. No eixoRio, São Paulo e Belo Horizonte podemoscontabilizar não mais que dez antropólogos.

10. Para o debate fundamental entre umarazão prática e outra simbólica ver o clássi·co livro de SAHUNS, Marshall, Cultura e ra·zão prática. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

11. Para a questão da racionalidade das de-cisões econOmicas e de negócios, ver a aná-lise de um mHo empresartal realizada porTAVARES, Maria das Graças, em A CulturaDrganizacional. Rio de Janeiro: QualityBooks,1984. Nesse livro, a autora examinaa atuação de Ford e laccoca na Ford, mos-trando o grau de irracionaHdade que predo-minava nas decisões tomadas no circuloIntimo do presidente da empresa. Essairracionalidade culminou com a demissãodo prtncipal executivo da organização, o pro.prto laccocca, justamente no prtmeiro anoem que a Ford, depois de amargar vártosanos consecutivos de prejulzo, conseguiu terum lucro de 1.800 000 dólares.Ver também as matértas que salram na Ga·zeta Meroantil de quarta feira,15 de feverei·ro de 1995, intituladas: O esotertsmo chegaàs empresas e Brasileiros recorrem à ajudados astros.

12. Um traballlo fundamental para a discus·são do conceito de interesse é o deHlRSCHMAN, Albert . As Paixtles e os inre-resses. Argumentos po/Iticos a favor do Ca·pitalismo anles de seu triunfo. Rio de Janei·ro: Paz e Terra,1979.

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estas que colocaram a questão cultural nocentro de várias decisões." Em termos denegócios, isso pode ser percebido na mu-dança da concepção de empresamultinacional para empresa transnacional,que requer um tipo de estrutura e organi-zação capaz de enfatizar a multicul-turalidade,"

Entretanto,à popularidade do conceitode cultura organizacional não se seguiuigual quantidade de pesquisas acadêmicasa respeito das novas possibilidades aber-tas pela relação entre antropologia e admi-nistração," Embora exista um mercado que,em termos de negócios, ao que tudo indi-ca, tende a crescer devido à intensificaçãodos contatos interculturais trazida sobre-tudo pela globalização da economia e dosnegócios, os profissionais dedicados aoassunto são poucos nos Estados Unidos emenos ainda no Brasil."

É importante frisar que, embora a ques-tão cultural esteja em moda, não deve servista como mais uma moda. O conceito decultural abre caminho para uma discussãomais profunda, que é o peso da dimensãosimbólica nas organizações e nas diferen-tes formas de gestão. Mais ainda, ajuda adesmistificar a idéia prevalecente de queo mundo dos negócios e da administraçãoé movido, exclusivamente, por uma lógicapragmática.'? Estaremos enganados se in-terpretarmos o comportamento do homemde negócios, do administrador e mesmo dofuncionário como determinado por umalógica de custos e benefícios, objetiva eímpesssoal." Estaremos enganados, tam-bém, se imaginarmos que as reações aosprocessos de mudança são devidas apenasàs pessoas que, supostamente, têm interes-se em defender um determinado status quo,para se beneficiarem dele de forma cons-ciente e intencional. Esse sentido de inte-resse precisa ser desmistificado e entendi-do numa perspectiva cultural, a partir daqual se busque saber qual é, de fato, o con-teúdo da categoria interesse. As pessoasacreditam, na maior parte das vezes, queaquilo que fazem é o certo. O funcionáriode uma empresa, qualquer que seja suafunção ou posição na hierarquia, é alguémcom memória, sentimentos e valores que ovinculam a um contexto social mais amplo,do qual a empresa faz parte." A lógica cul-tural não é um comportamento racional,

que pode ser explicada por uma lógicacientífica baseada no método hipotético-de-dutivo. É um comportamento mais do queracional e precisa ser entendida em seuspróprios termos.

o conceito de cultura crganizacionalAo longo das décadas de 1970 e 1980, o

termo cultura organizacional recebeu váriasdefinições e abordou inúmeros aspectosdo universo empresarial. Sob esse rótulopesquisadores investigaram valores, pres-supostos básicos, mitos, heróis, ritos, prá-ticas e políticas administrativas e projetosde mudança. Embora exemplar na descri-ção de alguns dos aspectos concernentes àempresa, o termo cultura organizacional(ou empresarial) apresenta-se restrito paradesignar a amplitude de questões que sãolevantadas pelas relações entre cultura,empresa e administração, principalmenteno que diz respeito às relações mantidaspelas organizações com a sociedadeenglobante.Tal restrição do termo temcriado alguns falsos problemas acerca dacompreensão e da natureza das relaçõescultura / empresa.

À primeira vista, talvez, esta restrição aotermo (cultura organizacional) possa pare-cer mais uma disputa terminológica inó-cua. Entretanto, pretendo demonstrar quea sugestão do termo cultura administrati-va está diretamente relacionada a umamaior amplitude conceitual e sociológicae a uma perspectiva relativizadora maisrica dos universos investigados, possibili-tando-nos uma compreensão melhor dasrelações entre cultura e não apenas empre-sa,mas, fundamentalmente, formas de gestão.

Uma observação bastante pertinente dizrespeito à ênfase atribuída pelo termo cul-tura organizacional! empresarial a um úni-co tipo de instituição do mundo moderno- a empresa ou a organização prestadorade serviço - deixando à margem inúmerasoutras formas institucionais que lidam,igualmente, com os dilemas da adminis-tração e do contato intercultural.

O mundo contemporâneo tem comouma de suas características a existência deinstituições com objetivos específicos edefinidos os quais atendem às diferentesnecessidades individuais anteriormentesatisfeitas pela família, pelo grupo de pa-rentesco e ou pela comunidade. Em tais ins-

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tituições, que não se caracterizam nemcomo empresariais nem como comerciaisa administrar também é fundamental.

O conceito de cultura organizacional ouempresarial, além de enfatizar que umaúnica instituição - a empresa - tem a tare-fa de administrar, privilegia, no interior douniverso empresarial, as organizações degrande porte - GM, IBM,U.S. Steel - colo-cando em segundo plano as de pequena di-mensão e expressão econômica. Todavia,se por um lado a grande empresa configu-ra a economia moderna, ignorando fron-teiras nacionais e colocando em contatomercados anteriormente fora do alcance devárias comunidades, por outro, as empre-sas de pequeno e médioporte sustentam um gran-de número de economiascomo a italiana apoiadanas pequenas empresas fa-miliares, uma das grandesfontes de seu dinamismo. Aprópria economia brasileiratem, nas médias empresas,um de seus maiores recur-sos geradores de emprego.

Do ponto de vista socio-lógico, mais importanteque o tamanho e ofaturamento das empresasé o significado que as suasdiferentes modalidades ouinstituições possuem no in-terior de uma sociedade.

Embora o conceito decultura empresarial não pres-suponha em si a exclusãodas organizações de dimen-sões mais modesta, na prática, verifica-seque quase a totalidade das pesquisas estãocentradas na grande empresa. Aliás, nãopoderia ser de outra maneira, uma vez quea ênfase na empresa como instituição, porexcelência responsável pela tarefa de ad-ministrar -mais particularmente nas gran-des organizações - reflete, em grande par-te, os valores e questões do campo intelec-tual que mais de perto tem tratado dessatemática: o norte-americano. De fato os Es-tados Unidos têm sido responsáveis porquase todas as teorias sobre a administra-ção moderna, não obstante a nenhuma so-ciedade possa ser atribuída a invenção daempresa produtora de bens e serviços e da

administração. No que concerne a Euro-pa, apenas recentemente começaram a so-bressair na área de administração algunsnomes como Charles Handy, professor con-vidado da London Business School; JohnKay e Sumantra Ghoshal, professores daLondon Business School, e Percy Barnevikda Asea Brown-Boveri, conglomeradosueco-suíço. Ainda assim os europeus es-tão longe de estabelecerem uma tradiçãoconsagrada sobre o assunto. Portanto,nada mais natural que parte das questõesteóricas, metodológicas e conceituais refli-ta valores e problemáticas norte-america-nas. Nesse sentido, toma-se importanteaplicar a lição básica da análise antropoló-

gica:a relativização deconceitos, que consis-te na verificação de ossignificados e o con-teúdo social das cate-gorias utilizadas se-rem os mesmos emum e outro universosocial. Tal verificaçãopossibilita reduzir amargem de erro emrelação ao emprego deconceitos não signifi-cativos a uma forma-ção social específica.

Como primeiropasso nessa direção,examinaremos o sig-nificado simbólico daempresa no imaginá-rio norte-americanovis-à-vis outras socie-~ -J

dades. Creio que apartir daí estaremos habilitados a utilizare a entender melhor o valor sociológico doconceito de cultura organizacional, tantopara os norte-americanos como para nós.

Do ponto de vista histórico e econômi-co, a empresa tem sido uma instituição fun-damental da nação norte-americana, con-fundindo-se com o próprio processo de for-mação dessa sociedade, não apenas comouma peça básica do seu sistema econômi-co,mas como um instrumento da conquis-ta e integração territorial, social e econô-mica do país. Ao contrário do que ocorreuentre nós - a Coroa portuguesa foi a res-ponsável pela colonização, conquista eintegração do território nacional - nos Es-

('ma obsel·l~açã" bas-tante pe,·tineJlte. di:"espeit" à êJlfase atri-buida pe'" tel'IUOeul»t.n·a orgaJli:a(";.JJlal!empI'es,u'ia' a .m••iJli-(." tipo de i••stituiçãodo ••u•••do •••oâer ••o - aemp"esa ou a ,u'gani-:ação p"estadora dese"l"i~'" - deb".a••do àlIla"gem buímeras ou-t r a« formasiJlstitudoJlais que li-daJII~igua'meJlte~ ("0111os dilemas da admi-nistração e do ('ollta-to intereutturut,

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13. Para se ter uma idéia mais clara do pesoda iniciativa privada na colonização norte-americana, é interessante saber que, porexemplo, aNorthwest Railroad era uma com-panhia de estrada de ferro de propriedade deJames HiI!. Posteriormente, Donald A.Smithassociou-se a HiII e criaram juntos aCanadian Pacific e a Great NorthernRailroad. Com Goerge Stephen, os dois em-presários compraram a falida SI. Paul &Pacific Railroad (também uma companhiaprivada) chamando-a de Great NorthernRailroad. A Great Northern, a NorthernPacific e a Union Pacific foram as responsá-veis pelo acesso ao interior do pais até asmontanhas rochosas e pelo fantástico de-senvolvimento que se seguiu, no estado deOregon, Idaho,Washington,Texas etc. Parauma descrição mais detalhada do processode colonização dos Estados Unidos e do pa-pei que o empreendimento privado desem-penhou nele ver: MORISON, Samuel Eliot,The Oxford History ot tne AmericanPeople. New York: Oxford UniversityPress,1965.

14. Para o sign~icado da liberdade na so-ciedade ocidental moderna, ver: DUMONT,L. Homo hierarchicus. Paris: Tell,1969; e, domesmo autor, O individualismo, Rio de Ja-neiro: Rocco,1985, p. 123-141. Para a imoportãncia da liberdade enquanto um valorna sociedade norte-americana, ver:TOCaUEVILLE, A. Democracy in America.New York: AHred Knopl, 1945. Para o peso eo significado da liberdade no Brasil ver: BAR-BOSA, L. O Jeitinho Brasileiro ou a Arte deSer Mais Igual que os Outros. Rio de Janei-ro: Campus,1992.

15. Para uma comparação do sign~icado daidéia de desempenho entre Brasil e EstadosUnidos ver de BARBOSA, L. Avaliaçao ouJustificativa de desempenho? Uma perspec-tivacomparativa. Rio de Janeiro,1992.Paperde circulação restrita.

16. Ao se falar sobre ética do trabalho, éimpossivel não citar o clássico de MaxWeber, A éOca protestante e o esplrito docapitalismo. São Paulo: Pioneira,1967. Essetrabalho se torna mais interessante para osnossos proposnos quando comparamos adescrição da ética protestante e capítalistacom a teita por TOCaUEVILLE, Alex de, Op.cn., para os Estados Unidos; e com a deKOWARICK. Lúcio, para o Brasil, em Traba-lho e Vadiagem. São Paulo: Brasiliense,1987;e MATOS, Claudia. Acertei no Milhar. Rio deJaneiro: Paz e Terra,1982.

17. Para a idéia e sentido de missão dosnorte-americanos, ver REAGAN, Ronald,Closing Statement, The New York Times, 22de setembro de 1980, B 7,do qual reproduzoo seguinte trecho: "esta terra foi colocadaaqui por algum plano divino. Foi colocadaaqui para ser encontrada por um tipo espe-cial de povo, uma nova raça de humanoschamados americanos(. ..) {destinados] acomeçar o mundo de novo (...) {e a] cons-truir uma terra aqui, que será para toda aespécie humana uma cidade brilhante so-bre uma colina." Apud: BERKOVITCH,Sacvan, A retórica como autoridade. In:SACHS, Viola. Brasil e Estados Unidos. Re-Iigiao e IdenOdade Nacional. Rio de Janeiro:Graal,1988.

18. Para uma discussão sobre as origensreligiosas ou não dos valores norte-ameri-canos, ver: ELUOT, E., Religião, identidade eexpressão na cultura americana: motivo esign~icado.ln : SACHS, Viola. Op. cit. E, ain-da, BROGAN, D. W. TheAmerican Character.Nova YOrk,1956; ARIELU, y. Individualismand naOonaJism in American ideology. MA:Cambridge,1964; BELLAH, R. lhe Brokenconvento Civil religion in Time 01 Tria!. NewYork: The Seabury Press, 1975 eBERKOVlTCH, S. The American Jeremiad.Wisconsin: Madison:,1978.

19. Ver KOVARICK, L. Op. cn.

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tados Unidos O empreendimento privadotomou a frente de todo esse processo deinteriorização forjados no seio da socieda-de nascente, como bem mostram as gran-des estradas de ferro, frutos de empreen-dimentos particulares, que cortam o terri-tório norte-americano de leste a oeste, pro-piciando a sua Integração."

Portanto, nos Estados Unidos, socieda-de e empresa privada cresceram juntos.Esta última talvez seja a instituição quemelhor sintetiza os princípios ideológicoscentrais da cultura norte-americana.Aempresa privada é, do ponto de vista ide-ológico, a expressão concreta e substanti-va da idéia de livre iniciativa, de liberda-de econômica e do direito individual deproduzir." Ela é percebida como a raiz dodesenvolvimento econômico e a seara pri-vilegiada para a expressão da autonomia edo desempenho individual; a medida pelaqual, num universo individualista, iguali-tário e moderno um indivíduo pode ser, le-gitimamente, diferenciado de outro." Aessa representação simbólica da empresajunta-se uma ética do trabalho que vê nosbens materiais e no lucro a recompensa le-gítima pelo trabalho árduo, o instrumentopelo qual todos podem realizar o sonhoamericano.O sonho de uma terra onde o in-divíduo vale e ascende socialmente peloque faz e não pelo seu nascimento e posi-ção social; uma terra de liberdade, autono-mia, igualdade, justiça, progresso e opor-tunidades ilimitadas para todos. 16Sea ori-gem desses valores é religiosa, como que-rem alguns, ou procedem da racionalidadedo Iluminismo, como advogam outros, ofato é que os Estados Unidos, a partir de-les, desenvolveram um sentimento depredestinação, que deriva em outro maisforte ainda: o de terem como missãoordernar o mundo. Neste contexto a ima-gem da terra da livre-iniciativa e das opor-tunidades ilimitadas desempenham umpapel fundamental. 1718

No interior deste universo simbólico, aempresa fornece, sintomaticamente, nãoapenas trabalho e emprego, mas tambémelementos para a construção de identida-des sociais e da própria identidade nacio-nal norte-americana. Não é por acaso quea empresa é privilegiada em termosconceituais para se falar de cultura e deadministração nos Estados Unidos. Conse-

qüentemente, o conceito de culturaorganizacional! empresarial neste país ex-pressa uma dimensão sociológica estrutu-ral, que necessariamente não é verdadeirapara outras sociedades como, por exemplo,a brasileira.

Entre nós, apenas recentemente, demeados deste século em diante, é que a em-presa passa a ser parte integrante do nossoprocesso de formação histórica e econômi-ca, uma vez que toda a colonização, con-quista e integração nacional ocorreram soba égide do Estado, tendo o empreendimen-to e a iniciativa particulares estado prati-camente ausentes desse movimento deconstrução nacional . Ao contrário da so-ciedade anglo-saxã, nas sociedades ibéri-

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cas a ética prevalecente em relação ao tra-balho, principalmente o manual, desesti-mulava, até bem pouco tempo, qualqueriniciativa individual, já que o trabalho nãosó não dignificava o homem como este nãose definia pelas suas atividades de traba-lho e sim pela rede de suas relações so-ciais. Segundo esse sistema de valores o lu-cro não era percebido como a recompensadevida ao trabalho árduo, mas a apropria-ção de algo (o tempo) que não pertenciaao homem e sim a Deus. Neste, o trabalhonão era inferior porque era feito por escra-vos, mas era realizado por escravos por-que era inferior,"

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Contrariamente aos Estados Unidos, aausência da iniciativa individual foi tãomarcante entre nós que o Barão de Mauáteve um tratamento especial por parte danossa historiografia, justamente por tersido um homem empreendedor, talvez oúnico, no panorama econômico do séculoXIX. Embora hoje suas realizações sejamvalorizadas, não era esse o sentimento quea sociedade brasileira nutria a seu respeitona época. Aliás sua vida e suas relaçõescom a sociedade e com os políticos brasi-leiros do século XIX são ilustrativas da éti-ca ibérica em relação ao lucro e ao trabalhocomo descrevemos acima. Apesar do gran-de número de novidades que introduziuno país, o Barão de Mauá era um persona-gem hostilizado na razão direta de seuslucros e embora todos gostassem dos con-fortos introduzidos no país por ele, tinhamsérias dúvidas acerca das intenções que osacompanhavam. Mauá não fazia trens, na-vios ou implantava a iluminação a gás porprazer ou generosidade, mas porque es-ses empreendimentos geravam lucros. To-davia, para a época e sua ética, tal com-portamento revelava o grave desvio de ca-ráter de colocar os interesses materiais aci-ma do bem comum. Em outra ocasião, o pró-prio barão resumiu o problema: "desgraçada-mente entre nós entende-se que empresários de-vem perder para que o negócio seja bom para oEstado, quando é justamente o contrário".

Caldeira, em seu livro sobre Mauá."registra que o ano de 1865 foi particular-mente preocupante para o Barão, justamen-te pelos grandes lucros que ele tinha obti-do pois, caso a notícia viesse a público, maissuspeitas seriam levantadas acerca de suasintenções, idoneidade e caráter. Para amoral brasileira da época, uma fortuna per-manentemente alimentada por ganhoscrescentes era a prova concreta de que seuproprietário estaria fazendo alguma coisamuito errada eticamente. Tal riqueza e su-cesso não eram vistos como sinal de bomserviço ao progresso do país.

Mauá foi, em sua época, um dos homensmais ricos e poderosos do mundo. Suafama era maior em Londres e em Paris doque no Brasil. Seu poder no Prata causavainveja aos diplomatas e políticos brasilei-ros que, a despeito de suas tentativas emutilizar de sua influência para auxiliá-los eaos negócios brasileiros na região, só fazia

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aumentar a hostilidade que lhes devota-vam." Ora, uma sociedade que concebelucro, empreendimento individual e visãoempresarial como indicadores de desviosde caráter bem como de ameaça ao bemcomum não associa à instituição empresao mesmo conjunto de valores que outra quevê nessas categorias sentidos simétricos in-versos.

Quando a empresa moderna surge nocenário brasileiro, com o processo de in-dustrialização, já no século XX, ela apare-ce novamente por iniciativa do Estado. Aempresa privada, enquanto expressão devalores a nortear o nosso comportamentoeconômico, continua, em parte, a reboquedesse processo. Portanto, sua trajetória nãose encontra entranhada simbolicamente nonosso fazer social. Segue-se que o sentidoque ela possui para nós refletirá justa-mente essa sua dimensão histórica esignificacionaL Enquanto instituição noBrasil a empresa está longe de ser umaequivalente estrutural dos valores que vemsimbolizar nos Estados Unidos. Entre nós,o seu significado e função econômica são,em inúmeras circunstâncias, eclipsadospelo o que as pessoas denominam de fun-ção social. De instituição econômica dassociedades modernas, cujo papel central éo de geradora de empregos e riquezas nosEstados Unidos, a empresa agrega umaresponsabilidade social, juntando à ava-liação do seu desempenho econômico ava-liações de ordem ética e moral. A partirdessa dupla dimensão que lhe é atribuídano Brasil ela passa a um dos principaisagentes da arena político-ideológica brasi-leira, ocupando nesta um dos pólos da ex-plosiva oposição capital/trabalho paramuitos grupos paradigmática na explica-ção da nossa realidade.

Se considerarmos, ainda, que o signifi-cado do que é atividade empresarial pri-vada no Brasil não mudou muito do tem-po de Mauá para hoje, fica mais evidenteainda as limitações da empresa no Brasilcomo fonte de identidade. Embora o seg-mento de empresários exercite um discur-so liberal, as representações dos mesmossobre a própria atividade prática é bem dis-tinta. O investimento privado é concebidoe imaginado como uma conseqüência con-dicional do investimento estatal. "Se o go-verno entrar, se o governo investir, se o gover-

20. CALDEIRA, Jorge. Mauá: em-presário do império, São Paulo:Companhia das Letras, 1995.

21. Em 1867, Mauá era um doshomens mais ricos do mundo.Seu dinheiro era "115 mil contosde ativos, que equivaliam a 12mi-lhões de libras esterlinas ou 60milhões de d6lares. O valor po-deria ser comparado aos 43 mi-lhões de libras de ativos, em1865, da mais s61ida instituiçãofinanceira do planeta: o banco daInglaterra, ou à maior herançanorte-americana do século pas-sado, os 100 milhões de d6la-res deixados por CorneliusVanderbilt, o magnata das estra-das de ferro. " (p.32) . Aliás, foimuito sugestiva a declaração doPresidente do Uruguai, ao visitaro Brasil em junhO de 1995, quan-do declarou ser Mauá mais famo-so em seu país do que no Brasil.

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22. A esse respeito, sugeriria aleitura da entrevista das páginasamarelas de Veja, ano 28, n.29,19 de julho de 1995, com o pes-quisador e fisico brasileiro AlbertoSantoro, sobre as suas tentati-vas junto ao setor privado com oobjetivo de conseguir financia-mento para suas pesquisas.

23. Ver HOFSTEDE, G. Op. cito

24. Para uma compreensão so-ciológica da sociedade japonesa,ver NAKANE, C. Japanesesociety. Middlesex: PenguinBooks,1973; LEBRA, IS.Japanese pattems of behavior.Honolulu: University of HawaiiPress,1986; BEASLEY,w.G. Therise of modem japan. Tokyo:Charles E. Tuttle,1990; TAYLOR,J. Shadows of the rising sun.Tokyo: Charles Tuttle, 1983;WOLFEN, K.V. The enigma otjapanese power. New York:Vintage Books,1990; KOICHI, K.Politics in modem Japan. Tokyo:Japan Echo, 1988.

25. Por exemplo, os rituais de ad-missão de várias empresas japo-nesas são ilustrativos dessa pas-sagem. Na Fuji, os novos mem-bros são admitidos na empresanuma cerimônia em que falam osdiretores da organização;um re-presentante dos pais dos novosfuncionários, que agradece a em-presa receber seus filhos e decla-ra esperar que os jovens sejamtão leais aos seus novos patrõesquanto foram a eles e, finalmen-te, um representante dos novosfuncionários. Mais do que um ri-tual de admissão, podemos con-siderar isso um ritual de transfe-rência de lealdades.

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no comprar, então faremos isso ou aquilo."22 Ouseja, ser empresário privado no Brasil,principalmente o de grande porte, não seconstitui necessariamente como atividadeestritamente individual, caracterizada poruma visão de mundo que comportapionerismo, risco e desconhecimento.

Essa visão da incerteza não se configuracomo um privilégio de nossa elite empre-sarial. Na verdade, é compartilhada pordiferentes níveis dos nossos escalões ad-ministrativos, principalmente no queconcerne ao setor estatal, como denota umestudo intercultural realizado em mais de40países por Geert Hofstede, entre empre-gados de uma empresa multinacional, so-bre as relações entre cultura nacional e ca-racterísticas administrativas. Neste estu-do, o Brasil aparece como um dos paísesque apresentou um dos índices mais altosde sociedade avessa ao risco. Nossa cultu-ra administrativa caracteriza-se por práti-cas e valores que parecem privilegiar maisum bom relacionamento no trabalho, umapermanência longa em um mesmo empre-go, uma preferência por grandes organiza-ções como empregadoras, por uma rígidaestrutura hierárquica, por uma visão nega-tiva da competição individual por um ape-lo constante ao consenso, por um valoriza-ção de liderança consultiva e pouca ambi-ção de avanço individual etc. do que porvalores, tais como disponibilidade paramudança freqüente de emprego, grandeambição de ascensão e de sucesso indivi-dual, alta motivação para desempenho,valorização da competição individual etc."

Com esse significado e dimensão histó-rica, a empresa passa a ter um sentido bas-tante distinto entre nós, quando compara-do a sua similar norte-americana ou mes-mo japonesa. Entre nós, ela fornece empre-go e trabalho, mas não identidade comoocorre naquelas sociedades. Nasce daí adificuldade de se criar culturas orga-nizacionais claras e fortemente demar-cadas, como a Ibmistas, nos Estados Uni-dos. Mais ainda, a energização de empre-sas, tão em moda em algumas tecnologiasadministrativas modernas, é ainda maisproblemática, na medida em que o espaçosimbólico ocupado pelo trabalho e o pesorelativo do mesmo e das organizações navida privada das pessoas é consideravel-

mente menor quando comparamos o Brasilaos Estados Unidos e ao Japão.

No Brasil, os elementos utilizados paraa construção de identidades estão ancora-das, predominantemente, em outros gru-pos sociais, como, por exemplo, a família,os amigos, a rede de relações pessoais. Sãoeles que nos definem e nos posicionam nointerior da estrutura social. Trabalho e ocu-pação podem também desempenhar estepapel, mas o fazem vinculados a catego-rias gerais do tipo professor universitário,antropólogo, advogado, empresário etc. equase nunca a uma organização. Esta ésempre um segundo marcador social.Já noJapão é justamente o contrário. Sabemosantes a organização onde uma pessoa tra-balha e muito depois sua função e ativida-de. Essa ordem de precedência entre o lo-cal de trabalho e o que se faz demonstra ahierarquia que existe entre o grupo e o in-divíduo, e a importância do sentimento depertencimento na sociedade japonesa."Este último mantém-se como um valorestruturante das relações sociais ao longoda vida de qualquer japonês, embora o gru-po que será o alvo da lealdade se altere.Na infância e juventude a família ou a al-deia são os fundamentais. Desse períodoem diante, o local de trabalho e o trabalhoem si se tornam os mais importantes."

A partir daí, a empresa e o trabalho sãoabsolutamente prioritários na vida de qual-quer homem adulto japonês, englobandoo que denominaríamos, entre nós, a vidaprivada das pessoas. Muitas empresa man-têm condomínios para seus funcionários,que normalmente passam seus períodos deférias excursionando em conjunto pelo paísou pelo exterior, e algumas possuem atémausoléus onde seus membros podem serenterrados juntos.

Nos Estados Unidos, embora a éticaindividualista prevalecente impeça oenglobamento do indivíduo por qualquertotalidade maior do que ele próprio, aempresa possui outra importância além damencionada anteriormente, que favorece aconstrução de identidades organizacionais.Aempresa funciona como um indicador dodesempenho individual. Pelo tamanho,fama, prestígio e importância da organiza-ção em que se trabalha é possível se ava-liar o que cada um foi capaz de realizar.

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Ser gerente ou diretor de uma IBMou GMé um parâmetro social importante, que per-mite as pessoas medirem o grau de suces-so profissional, de achievement de um de-terminado indivíduo no interior da socie-dade norte-americana.

No Brasil, a empresa, seja esta públicaou privada, funciona muito mais como umindicador de posição social e estabilidadeeconômica do que qualquer outra coisa.Isso acontece porque, entre nós, estão au-sentes, para a maior parte dos segmentossociais, qualquer ideologia de "meri-tocracia" e self-reliance. As representaçõessobre os critérios de obtenção de empregoe a respectiva mobilidade vertical no inte-rior deles envolvem outros parâmetrosque a exclusiva capacidadeindividual. Nesse sentido,olugar onde trabalho e o queeu faço tem um peso muitomenor na indicação do quesou enquanto indivíduo, fun-cionando muito mais comoum marcador da minha in-serção enquanto pessoa, nointerior da sociedade brasilei-ra. 26 Exemplar a esse respei-to é o mitológico emprego noBanco do Brasil para as cama-das médias e a categoria tra-balhador para as classes tra-balhadoras. Como diversostrabalhos indicam, ser traba-lhador é um elemento impor-tante na identidade dessessegmentos; não pelo signifi-cado do trabalho em si, mas pelo fato deindicar uma opção moral entre uma vidahonesta e uma de bandido e reafirmar a posi-ção masculina de provedor," Não deixa deser sintomática, também, para os nossospropósitos, a diferenciação jocosa que se fazentre emprego e trabalho no Brasil e a au-sência do trabalho na nossa cinematogra-fia, dramaturgia e literatura como um temacentral. 28 29

Diante dos significados anteriores atri-buídos à empresa, à livre iniciativa, ao tra-balho etc, na nossa sociedade, parece-meque a relevância do estudo de culturasorganizacionais específicas, para o enten-dimento dos aspectos simbólicos da vidaempresarial e administrativa, é muito di-ferente para o Brasil e para os Estados

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Unidos. É devido a isso que vejo com cau-tela algumas das pesquisas e trabalhos pro-duzidos sobre cultura organizacional noBrasil.

Em quase todos ocorreu uma utilizaçãoliteral do conceito, como se a empresa ti-vesse a mesma dimensão estrutural e, porconseguinte, possuísse o mesmo conteú-do sociológico. Pesquisadores passaram aprocurar culturas organizacionais nos mol-des e esquadros norte-americanos, quan-do na verdade a sua existência no nossouniverso social, no mesmo sentido norte-americano, é no mínimo discutível."

Para além disso, ocorre, do meu pontode vista, uma grande confusão entre iden-tidade e cultura. O fato de as empresas, no

Brasilou em qualquer ou-tro lugar, perceberem-sediferentes não implica aexistência de uma cultu-ra diferente. A identida-de é o conjunto de ele-mentos que, numa deter-minada circunstância emomento histórico, umdeterminado grupo esco-lhe para se auto-definirou representar. É, diga-mos, a consciência domeu estilo, da minha tra-dição versus a dos demaise não pode ser confundi-da com um sistema cul-tural distinto, que impli-ca definições diferentespara um mesmo sistema

de símbolos e significados.Esse último aspecto nos remete a uma

outra questão que me parece, também, pro-blemática, nos trabalhos de culturaorganizacional no Brasil. A análise cultu-ral caracteriza-se, basicamente, por umprivilégio do nível das representações. E agrande maioria dos trabalhos pouco ouquase nada têm explorado do universosimbólico dos diferentes segmentos quecompõem uma empresa. Confundem po-líticas e procedimentos administrativosdos segmentos executivos com a cultura daempresa. Mais ainda, tomam como repre-sentativo da dimensão simbólica da orga-nização os valores que, normalmente, sãoexplicitados pelo grupo dirigente. A rela-ção entre os diferentes segmentos, tanto em

}\'os Estados lni-dos~ po,·tanto, so»dedade e empre-sa prit°ada ("'eS('e-"("" juntos. Esta.iltima tah-e= sejaa instit.dção quemelhor sinteti=aos prb.t"Ípios ide-ológicos cent"aisda cl"t''''a norte-americana.

26. Para a distinção entre indiví-duo e pessoa e os seus respecti-vos conteúdos sociológicos, ver:DA MAnA, Roberto. Carnavais,malandros e heróis. Para umaSociologia do Dilema Brasileiro.Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

27. Para a importância do traba-lho no processo de construção daidentidade das classes trabalha-doras, ver: DIAS DUARTE, L.F. DaVida Nervosa. Rio de Janeiro:Zahar, 1986; ZALUAR, A. A Má-quina e a Revolta. São Paulo:Brasiliense,1984.

28. Essa função do trabalho /ern-prego de indicador de posiçãosocial e estabilidade econômicanão significa negar, no absoluto,o seu significado de expressão dedesempenho individual. Entretan-to, essa sua dimensão é restritaaos segmentos mais intelec-tualizados da população.

29. Ao ministrar cursos sobre cul-tura administrativa, tentei encon-trar filmes ou textos literários bra-sileiros que ilustrassem ou tomas-sem o trabalho como tema cen-traI. Foi simplesmente impossívelencontrar. Por outro lado, foi difí-cil selecionar o mesmo materialno contexto da cinematografianorte-americana, tal a quantida-de de material existente. Só a tí-tulo de sugestão para o leitor: Fá-brica de Loucuras, Chuva Negra,A Firma e Assédio.

30. Aliás, acho que, do ponto devista teórico, o próprio conceito édiscutível em si mesmo, na me-dida em que ele atribui à empre-sa a capacidade de ser um cen-tro de produção simbólica espe-cífica e diferenciada no interior daprópria sociedade.

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Assis Chateaubriand é outro exemploparadigmático. Sua biografia, que tantosucesso fez recentemente, encanta-nos me-nos pelas realizações do empresário e maispelos meios pelos quais ele concretizouseus objetivos e pelo seu caráter. Ficamosmuito mais fascinados pelo seupersonalismo, pelo modelo de relações so-ciais e políticas do Brasil de sua época, pelaLei Teresoca, pelas suas eleições fraudulen-tas para senador por estados nos quaisnunca apareceu etc., do que pelas suasrealizações. O mesmo se aplica ao Sr.Roberto Marinho. Falamos de como ele usao seu poder de comunicação, de como so-mos dominados pela Globo, como o paísvive a mercê de seus interesses privados emuito pouco sobre a qualidade da televi-são brasileira, da sua capacidade técnicaetc. Não é que não saibamos disso ou nãoadmiremos isso, mas que o valor dessa di-mensão material e empresarial é neutrali-zado pelo comportamento moral, social epolítico que se atribui a esses personagens.Não é suficiente fazer, mas é necessário sefazer dentro de determinados parâmetros.Por isso que, no Brasil, winners são loosers eloosers se tornam winners. Nesse contexto,odono de uma empresa é, do ponto de vistarepresentacional, muito mais um patrão doque um realizador, um modelo para ação.Acrescente-se a isso os valores que asso-ciamos às trajetórias sociais verticais. Difi-cilmente as concebemos como resultadoexclusivo dos recursos interiores dos indi-víduos. Percebemo-las, via de regra, comoo resultado da mobilização do capital derelações sociais e familiares de cada umde nós.

O herói norte-americano, seja eleorganizacional, esportivo, político etc., nãotem esse significado. E a diferença entre onosso e o deles nasce justamente das dife-renças entre os princípios ideológicos queestruturam as duas sociedades. O Brasil éuma sociedade relacional, ou semi-tradi-cional, que conjuga uma visão hierárquicae tradicional do mundo com outra iguali-tária e individualista. Isso significa quepara nós as relações sociais têm mais valordo que os indivíduos que a compõem. OsEstados Unidos são, ao contrário de nós,uma sociedade onde predomina uma úni-ca ética: a individualista e igualitária. Lá oindivíduo é o sujeito moral e normativo das

termos de modelo de relações sociais e po-líticas e das representações que lhescorrespondem também não é abordada,ficando-se na dúvida acerca do que aspessoas consideram como cultura da em-presa.

Essa importação automática do concei-to de cultura organizacional tem levado àreprodução irrefletida de um receituárioantropológico do qual constam mitos, he-róis, ritos etc. que se procuram e, conse-qüentemente, acham-se em todas as empre-sas. Estórias empresarias são elevadas a ca-tegorias de mitos, empresas estatais ficamsuperlotadas de heróis organizacionais etc.,quando uma análise mais cuidadosa doconteúdo social de cada uma dessas cate-gorias, aqui ou lá, não nos levaria necessa-riamente aos mesmos personagens e con-ceitos.

Tomemos o caso do herói organizacionalnorte-americano, analisemos a estrutura doseu personagem e perguntemos: existe umcorrespondente estrutural, entre nós, des-se personagem social? Sim e não. Sim, namedida em que entre nós existem homensque marcaram de forma indelével a épocaem que viveram e a organização que fun-daram. E não, no sentido em que essa mar-ca é, entre nós, menos um modelo paraação, uma inspiração empresarial, uma in-dicação das realizações daquele indivíduoe funciona mais como ilustrativa da pes-soa, da sua dimensão e estatura social emoral. Ou seja, entre nós, as realizações sóimportam quando legitimamos socialmen-te o como e o contexto em que elas foramrealizadas.

Esse é justamente o caso de Mauá. Paraser um herói, em sua época, ele deveriafazer tudo o que fez, mas graciosamente,sem lucros, sem interesses e sem qualquermácula de caráter. Ou seja, deveria serperfeito. Nós, brasileiros, de modo geral,não esperamos que nossos heróis sejamgente como a gente, seres normais, maspessoas especialíssimas, que a todo mo-mento devem provar a sua excepcio-nalidade. Edson Arantes do Nascimento,vulgo Pelé, percebeu isso muito bem, quan-do declarou que, aqui no Brasil, a todomomento, você tem que provar que é he-rói. Não é suficiente ter feito uma coisa ex-cepcional uma única vez. É necessário fa-zer ou ser sempre.

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instituições; o elemento sobre o qual assen-ta-se todo o sistema. E, embora todos se-jam considerados iguais, cada indivíduo éúnico e idiossincrático."

Ora, o herói numa sociedade como essaé justamente aquele que consegue deixarsua marca, sua impressão digital no mun-do. É aquele que consegue, sozinho, e issoé fundamental, pois o código de condutadesse personagem social é baseado no self-reliance que, literalmente, significa contarapenas consigo mesmo, vencer todos osobstáculos com que se depara e, finalmen-te, impor sua ordem e visão de mundo so-bre os demais. O herói individualista é umpersonagem anônimo; não é um príncipe,um nobre, mas um regular guy, gente comoa gente, que tem fraquezas, que erra, massabe se soerguer. O que se glorifica atravésdele não é um caráter divino ou especial,mas a vitória das especificidades de cadaum, aquela diferença que, num oceano depessoas iguais, transforma cada indivíduonum ser único e sem similar. O que se glo-rifica também é o mérito e o desempenhoindividual, aquele elemento que permiteque se estabeleçam hieraquias que não con-trariam o princípio do tratamento iguali-tário perante a lei e a possibilidade abertapara cada um de nós de sermos tambémheróis. Mas, fundamentalmente, o que selouva é a proeminência do indivíduo so-bre o grupo, sobre as relações e os proces-sos sociais. Por isso é que o herói indivi-dualista é um modelo para ação, uma ins-piração.

Esse perfil heróico se reproduz indefi-nidamente nos mais diferentes contextose sob a pele dos mais diversos personagens.Suas características são as mesmas, estejaonde estiver: agindo no interior de umaorganização, como Ford ou Iaccocca, quereergueram empresas quase falidas; lutan-do contra índios no Velho Oeste, como [ohnWayne; debatendo-se, como 007, contra asforças do mal; ou lutando contra as forçasda natureza como os heróis de Inferno naTorre, Destino de Posseidon, Terremoto, Tuba-rão e toda a série de cinema catástrofe.

É devido a essas características do heróiindividualista que o fundador de uma or-ganização é percebido pela sociedade nor-te-americana como social e ideologicamen-te importante. A organização é criação in-dividual sua, trazendo a marca da sua iden-

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tidade. É a expressão concreta e materialde seu desempenho e da vitória da sua or-dem e visão de mundo sobre as demais. Émais do que uma simples empresa, é acorporificação de seus ideais e anseios. Porisso que muito antes do advento do pró-prio conceito de cultura organizacional,muitas firmas norte-americanas já tinhapor hábito falarem da sua missão e dosprincípios e valores dos seus fundadores.

No Brasil, por outro lado, consideran-do-se o significado que atribuímos a cate-goria do herói, fica difícil imaginar que elepossa ter a mesma dimensão sociológica eo mesmo tipo de importância para as cul-turas de empresas que o seu similar dohemisfério norte. Aliás, apenas recente-mente, com a popularização do conceito, éque firmas, em grande parte por iniciativade seus segmentos gerenciais, passaram afalar desse tema e a sistematizarem suasescalas de valores, missão e objetivos. Édevido a ausência de relativizações dessetipo que eu me refiro a uma importaçãoirrefletida do receituário teórico e metodo-lógico dos estudos de cultura organi-zacional dos Estados Unidos para o Brasil.

Uma outra questão trazida pelo concei-to de cultura organizacional é de ordemmetodológica. Por enfatizar a cultura deempresas, cada objeto de estudo é tratadocomo um universo fechado, descolado docontexto social onde se encontra. Nenhu-ma empresa ou cultura organizacional éentendida, descrita ou relacionada à cul-tura norte-americana. Cada empresa é per-cebida como um universo singular, autocontido, gerando suas próprias manifesta-ções culturais particulares.Cada organiza-ção seria única em relação a todas as de-mais. E isso é justamente o ponto central.Paradigma da ideologia individualista,igualitária e moderna, a sociedade norte-americana equaciona cada organização aum indivíduo e a trata metodológicamentecomo seu similar. E o interessante residejustamente aí, em conhecer as particulari-dades idiossincráticas de cada uma, comose conhece e valoriza a de indivíduos par-ticulares. Cada cultura organizacional é umcaso único, um exemplo de como uma de-terminada situação foi enfrentada, sem quequalquer teorização se siga a partir daí.

No meu ponto de vista, as possibilida-des da interdisciplinaridade entre antropo-

31. Sobre a moderna concepçãode individuo ver de DUMONT, L.The Modern Conception of the In-dividuaI. Notes on its genesis andthat of concomitant institutions.Contributions to Indian Sociology,t. VIII, 1965, p.13-61; sobre aquestão do individualismo no Bra-sil, ver: DA MATTA, R. A Casa e aRua. Rio de Janeiro: Guana-bara,19B?

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da. Está sujeita aos valores, princípios e tra-dições de uma determinada sociedade quesão atualizados, também, em suas práti-cas e políticas administrativas. Portanto,qualquer produção específica de uma em-presa se dá a partir do contexto signi-ficaciona1onde ela se encontra. E todas assuas produções internas, por mais especí-ficas que sejam, estão permanentementerelacionadas a este contexto que envolveos limites da organização. Nenhum signi-ficado se estabelece no absoluto, mas sem-pre a partir das relações internas do siste-ma a que pertence.

A melhor forma de ver o problema danatureza da cultura organizacional é con-siderar a cultura como um elemento bemmenos substantivo. Cultura não é algo quese produz no interior de uma empresa ouse carrega para dentro dela. É um sistemade símbolos e significados de domínio pú-blico, no contexto do qual as tarefas e prá-ticas administrativas podem ser descritasde forma inteligível para as pessoas quedelas participam ou não. Do ponto de vis-ta mais pragmático pode ser entendidacomo regras de interpretação da realidade,que necessariamente não são interpretadasunivocamente por todos, de forma a per-manentemente estarem associados seja ahomogeneidade ou ao consenso. Essas re-gras podem e são reinterpretadas, negoci-adas e modificadas a partir da relação en-tre a estrutura e o acontecimento,entre ahistória e a sincronia."

Essa substantivação do conceito de cul-tura, por parte da teoria de administração,precisa ser entendida no contexto da lógi-ca diferenciada que instrue as duas disci-plinas : a antropologia e a administração.Se hoje os administradores estão interes-sados nas produções simbólicas internasdas empresas e nos universos sociais queas circundam, isso se deve, estritamente,aos resultados que julgam advir da elabo-ração de uma teoria que melhor expliqueo comportamento empresarial. Ou seja, oque está no cerne dessa mudança de inte-resses da administração de uma dimensãomais factua1 e objetiva da realidade paraoutra mais expressiva e simbólica é a bus-ca dos seus tradicionais objetivos. Sea prá-tica administrativa tem demonstrado quedeterminados conceitos e valores não sãode aplicabilidade universal, que a determi-

32. Essa é a clássica definiçãode cultura organizacional dadapor Edgard Schein, em seu livroOrganizational Culture andLeadership (San Francisco:Jessey Bess, 1985) e a mais ci-tada no Brasil. Literalmente:(culture is) a pattern of basicassumptions - invented,discovered or developed by agiven group as it learns to copewith its problems of externaIadaptation and intemal integration- that has worked well enough tobe considered valid and,therefore, to be taught to newmembers as lhe correct way toperceive, think and feel in relationto lhose problems." (p.9).

33. Essa perspectiva é a desenvol-vida por HOFESTEDE,G. Op. cito

34. Para um conceito interpre-tativo de cultura, ver: GEERTZ,C.A interpretação das cuffuras. Riode Janeiro: Zahar, 1978.

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Se ho';e os admi-nistradores estãoillteressodos lUISPl'oduções silll')()U-cas h.te'·Jlos dasemploesos e IWSulli-."e,·s(,s sodais queflS dr(·,uldam. issose de ee ; estl'ito-mellte. oos resuita»dos q ••e ,;"'9fllllod."ir do e'ab(,ro-(:ão de 111110 tem'ia(,lIe metho» expli-que o cOlllporta-mento elllp.oesfuoia'.

logia e administração sinalizam para mui-to mais; como para a superação dasíndrome lido caso". O esforço deve ser nosentido de se retirar generalizações a par-tir dos exemplos especiais, de seaprofundar nos detalhes de maneira queeles possam nos revelar algo além de simesmos.

Esta ênfase analítica no universo inter-no da empresa cria, uma falsa questão teó-rica debatida quase a exaustão: a culturaorganizacional é alguma coisa que a em-presa tem, uma variável interna ou é partede um ambiente cultural mais amplo ondese insere a organização, uma variável ex-terna?

No primeiro caso, as organizações, alémde produzirem bens e serviços, criam pro-dutos culturais como lendas, ritos, símbo-los, mitos, heróis, pressupostos básicos devalores que são transmitidos as novas ge-rações à medida que se mostraram váli-dos." A cultura, neste caso, é um produtodas relações entre os indivíduos nas orga-nizações. No segundo, a cultura é trazidapara dentro das organizações pelos seusmembros. Nessa última perspectiva nãoexistiriam culturas organizacionais, apenasculturas nacionais.P

É evidente que nenhuma empresa, ouqualquer outro tipo de instituição ou mes-mo de ação, encontra-se boiando num vá-cuo. Embora a administração seja uma ta-refa objetiva, é culturalmente condiciona-

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nados processos sociais não correspondemos mesmos resultados, que a nacionalida-de dos gerentes é um dos fatores mais im-portantes nas sua escolhas e decisões ad-ministrativas, como não levar em contaesses fatores? Mais ainda, como tratar acultura de forma que ela possa se tomaruma variável controlável no interior dosmodelos administrativos?

O conceito de cultura organizacionalsurge e populariza-se justamente pela pos-sibilidade que oferece à instrumen-tralização dessa dimensão até então intan-gível. É fundamental dimensionar, de for-ma mais objetiva, as relações entre os as-pectos objetivos e representacionais da ad-ministração, e esperar que esse novoparadigma produza novos e melhores ins-trumentos de intervenção e compreensãoda realidade. Em suma, que se extraía alegitimidade de sua existência teórica dassuas possibilidades prático-instrumentais.

Esse sentido instrumental esperado doconceito de cultura, pode ser claramentepercebido no tratamento dado ao tema.Existe a preocupação constante em se cons-truir tipologias caracterizadas substantiva-mente, do tipo culturas fortes e fracas, cul-turas boas e más etc. Ou em se desenvol-ver metodologias de mudança cultural,onde previamente as etapas a serem per-corridas já estejam delimitadas. Aquestãoda mudança cultural é, sem dúvida algu-ma, a dimensão onde essa perspectivaempiricista e instrumental de cultura seexpressa com mais força. Como mudaruma cultura é a grande questão para to-dos. Os termos manejar, controlar, alterare direcionar, freqüentes no vocabulário so-bre mudança e nos títulos dos livros sobreo assunto, transmitem a preocupação como desenvolvimento de uma tecnologia deintervenção da realidade que seja realmen-te efetiva.

Esse sentido substantivo e pragmáticoque os administradores esperam poderderivar dos estudos de cultura organiza-cional me parecem problemáticos nestatentativa interdisciplinar. Em termos ins-trumentais e de intervenção pontual narealidade, a antropologia tem bem poucoa oferecer. Embora o conceito de culturasejacentral a essa disciplina há mais de cemanos, o sentido que a antroplogia tradicio-nalmente lhe tem atribuído é bem mais

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compreensivo e interpretativo do que ins-trumental e intervencionista. Até omomen-to, o conhecimento que a antropologia pos-sui acerca dos processos culturais, da pro-dução e circulação simbólica, da mudançae das relações entre diferentes sistemas estálonge de permitir a produção detecnologias que permitam intervenções,manejos e mudanças de forma tão contro-lada e orientada a corresponder às expec-tativas pragmáticas dos administradoresem geral.

Reconhecendo-se esses limites do con-ceito de cultura e a lógica pragmática queorienta os administradores, a questão quese coloca é: qual será a durabilidade do in-teresse acerca do conceito de cultura e suautilização na administração? Será que pas-sada a moda, o conceito de cultura deixa-rá raízes na administração?

Por fim, porém não menos importantedo que todo o resto nessa nossa críticaconceitual, o termo cultura organizacionalou de empresa não explicita o que é abso-lutamente fundamental e mais profícuonessa recente ligação entre antropologia eadministração. O que deve estar na raizdessa interdisciplinaridade não é a formade administrar a empresa ou quaisqueroutras instituições administrativas, mas aprópria administração. E com isso querodizer:

a. a lógica intrínseca subjacente à idéia doque é administrar para vários tipos deinstituições de diferentes universos so-ciais;

b. os valores e pressupostos subjacentesàs diversas teorias de administração;

c. a forma como eles se relacionam aosvalores e pressupostos que estruturamas sociedades onde essas teorias vão seraplicadas.

Se,por um lado, a antropologia não podeestabelecer relações causais entre determi-nadas formas e conteúdos culturais e de-terminadas teorias, práticas e políticas ad-ministrativas, por outro, não é difícil de-monstrar que estas últimas não são imple-mentadas no vazio. E, por mais envoltasque estejam na linguagem tranqüilizadorados números, é possível se identificar osvalores que estão expressando e prio-rizando. Valores estes que, por vezes, es-

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cultura organizacional para dar conta dadimensão simbólica da vida empresarial eadministrativa. Primeiro, o conceito não serestringe a um único tipo de instituição domundo moderno que tem a tarefa de ad-ministrar. Nem enfatiza, dentro do univer-so analítico que ele privilegia, uma só mo-dalidade de empreendimento empresarial,como as grandes empresas ou organiza-ções.

Segundo, ele não traz as marcas eviden-tes do campo intelectual que o gestou, con-templando de maneira mais sociológica atarefa de gerir recursos humanos e materi-ais, colocando o foco teórico na dimensãosimbólica da tarefa de administrar ao in-vés de nas instituições que o fazem. Issopossibilita que as categorias relevantes paracada universo social sejam atribuídas porele mesmo, diminuindo a possibilidade deutilização de categorias, metodologias eproblemáticas teóricas de forma pouca re-flexiva.

35. O conceito de instituição to-tal foi sistematizado porGOFFMAN, E. em, Manicômios,prisões e conventos. São Paulo:Perspectiva,1g87, e diz:. "Umadisposição básica da sociedademodema é que o indivíduo tendea dormir, brincar e trabalhar emdiferentes lugares, com diferen-tes co-participantes, sob diferen-tes autoridades e sem um planoracional geral. O aspecto centraldas insütuiçães totais pode ser des-crito como a ruptura das barreirasque comumente separa essas trêsesferas da vida... " (p.17-8).

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tão em claro conflito com aqueles privile-giados pela sociedade onde estão sendoempregadas.

Em resumo, a grande maioria das teori-as, práticas e políticas administrativas, foiproduzida em determinados contextos cul-turais, que enfatizam alguns valores fun-damentais a esses ambientes, mas que po-dem receber pesos e significados diferen-tes em diferentes casos. Portanto, quandoutilizados podem não se atualizarem deacordo com os parâmetros previstos, sus-citando leituras diferenciadas, adaptações,mudanças e jeitinhos.

Devido ao exposto ao longo deste tra-balho, acreditamos, conseqüentemente,que a forma mais produtiva de se conce-ber essa interdisciplinaridade é investindonos aspectos mencionados anteriormente.É nessa esfera que reside o sentido maispragmático que a administração pode ob-ter do seu interesse pela cultura, bem comoonde a antropologia pode contribuir me-lhor com a sua capacida-de interpretativa, articu-lando paradigmas sociaiscom situações particula-res e microscópicas.

Essa crítica à posturateórica de enfatizar o uni-verso interno da empre-sa não significa invalidaro estudo de organizacõesespecíficas. Significa sim,entender o significado so-ciológico da empresa noBrasil e as suas relaçõescom um contexto maisamplo, em permanenterelação com ele. A empre-sa moderna não é umainstituição total, no senti-do utilizado por Goffmanque supre todas as neces-sidades de seus membros." Estes estãodiariamente atravessando os muros que osseparam do universo social onda a empre-sa se encontra, atribuindo novas leituras avelhos símbolos, criando novos e abando-nando outros.

Terceiro, o conceito de cul-tura administrativa assinala,com mais clareza, a impor-tância da relação dos dife-rentes tipos de instituiçõesque administram e da pró-pria administração com ouniverso social no qual seacham inseridas. Ao mesmotempo, permite relacioná-lascom os pressupostosvalorativos subjacentes àsdiferentes teorias de admi-nistração moderna, possibi-litando um maior entendi-mento dos possíveis im-passes e inadequações quan-do das suas utilizações.

Essa dimensão sociológi-ca do conceito de cultura ad-ministrativa é que me pare-

ce ser sua grande vantagem comparativa,na medida em que ele nos permiterelativizar as diferentes instituições, teori-as, práticas e políticas administrativas decada universo social que podem represen-tar contribuições expressivas para a tarefade gerir recursos humanos e materiais, em-bora não sejam tradicionalmente associa-dos a ela. Por exemplo, o carnaval brasilei-ro apresenta uma fantástica organização ecriatividade, tanto em termos de recursos

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o conceito de cultura administrativaAcredito, justamente pelos motivos in-

dicados anteriormente, que o termo cultu-ra administrativa é mais apropriado do que

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como de utilização de materiais, que con-trasta vivamente com outros aspectos danossa vida administrativa. Seria o caso deperguntar o que existe na gestão carnava-lesca dos recursos humanos e materiais queo faz parecer como um dos mais bem suce-didos empreendimentos brasileiros.

Poderíamos, então, definir cultura admi-nistrativa como o conjunto de lógicas e va-lores contextualizados de forma recorren-te na maneira de administrar de diferentessociedades. Esses valores não são necessa-riamente intrínsecos à tarefa de gerir recur-sos humanos e materiais. São as mesmasregras de interpretação da realidade queinstruem a vida social como um todo, ape-nas hierarquizadas e relacionadas, em al-guns casos, de maneira distinta ou não, nointerior das instituições encarregadas degerir. As particularidades significacionaisque esses sistemas de valores assumem nouniverso das empresas, organizaçõesprestadoras de serviço, sindicatos, funda-ções beneméritas etc. podem ser apreendi-das, tendo como contraponto a compreen-são sociológica da sociedade envolvente.

Entender sociologicamente uma socie-dade é saber como ela está ordenada emtermos de valores e instituições e o respec-tivo peso e o significado que cada umapossue no contexto daquele universo so-cial. Morfologicamente, a grande parte dassociedades modernas está organizada emtorno das mesmas instituições (família, es-tado, partido político, sistema econômicoe judiciário autônomos etc.). Embora seme-lhantes neste aspecto, essas sociedades sãobastante distintas na sua operação práticae no significado que atribuem a muitas ca-tegorias sociais tidas como comuns. É jus-tamente neste nível que a análise de cunhomais sociológico faz toda a diferença, aoprocurar conhecer o conteúdo específicoque uma mesma categoria social ou valorrecebe nas várias sociedades nas quais éutilizada e como se relaciona com os de-mais. Por exemplo, as categorias pública eprivada possuem para nós o mesmo senti-do que para os norte-americanos? Se não,o que elas significam para nós, e como es-ses significados que lhes atribuímos se re-lacionam com as formas de gestão dos re-cursos privados e públicos no Brasil? Quaissão os princípios fundamentais que lança-mos mão quando nos envolvemos com ta-

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refas que classificamos como administrati-vas? A ética do trabalho é a mesma na em-presa pública e na empresa privada? O quesignificam qualidade, desempenho e pro-dutividade no âmbito das empresas pú-blicas e privadas brasileiras? É possível sefalar em uma cultura administrativa brasi-leira que pudesse ser singularizada atra-vés da identificação de princípios estrutu-rais que se fariam presentes tanto na em-presa pública como na empresa privada?Como os pressupostos valorativos sub-jacentes às teorias de administração moder-na se relacionam com a prática de gestãobrasileira, que parece, em muitos casos,estar em franco desacordo com o preconi-zado por essas teorias?

Se as questões acima parecem por de-mais vagas e distantes para os problemasconcretos da administração do cotidiano,consideremos, a título de um exercício prá-tico, os princípios ou valores que regem,de um modo geral, os programas de quali-dade e comparemo-los com o que já conhe-cemos sobre administração no Brasil. 36

Como podemos implementar um progra-ma que valoriza uma concepção de tempode longo prazo numa sociedade que privi-legia o curto prazo e cujos heróis orga-nizacionais são os chamados apagadores deincêndio? Como podemos conciliar a noçãode co-reponsabilidade de todos pelos pro-dutos com uma ótica individualista queenfatiza responsabilidade individual pe-los resultados? Como podemos contornara falta de tradição de trabalho em grupo ea expectativa de avaliação de desempenhoindividual com a proposta do programa detrabalhos em equipe e avaliação por gru-pos? Como compatibilizo uma gestão ba-seada em fatos com a nossa ausência detradição de estatísticas confiáveis?" Emsuma, o que requerem, em termos de valo-res, os programas de qualidade e em quemedida a lógica social e a hierarquia devalores brasileira ajuda ou dificulta aimplementação dos mesmos?

É no interior desta perspectiva teórico-metodológica que se insere a minha pro-posta de cultura administrativa, que nãotoma a empresa como sua unidade básicade análise, mas sim a própria idéia de ad-ministrar, no contexto significacional dasdiferentes sociedades nas quais é empre-gado. O

36. Sobre qualidade, ver: CARR,D. e LlTTMAN,I. Excelência nosserviços públicos: gestão da qua-lidade total na década de 90. Riode Janeiro: Qualitymark,1992;DEMING, W. Qualidade: a revo-lução na administração .Rio deJaneiro: Marques Saraiva,1990;JURAN, J. A qualidade desde oprojeto: novos passos para o pla-nejamento da qualidade em pro-duto e serviços. São Paulo: Pio-neira, 1992; CROSBY,P. Qualida-de é investimento. Rio de Janei-ro: José Olympio,1988.

37. Ver: FERRO, J.R. Cultura ad-ministrativa brasileira e qualida-de. São Paulo: FGV,1994. circu-lação restrita

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