Cronistas do século xv, Depois de Fernão Lopes

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CRONISTAS DO SÉCULO XV POSTERIORES A FERNÃO LOPES Biblioteca Breve SÉRIE LITERATURA

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Biblioteca Breve nº 3

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  • CRONISTAS DO SCULO XV POSTERIORES A FERNO LOPES

    Biblioteca Breve SRIE LITERATURA

  • ISBN 972 566 140 0

    DIRECTOR DA PUBLICAO

    ANTNIO QUADROS

  • JOAQUIM VERSSIMO SERRO

    Cronistas do Sculo XV posteriores a Ferno Lopes

    MINISTRIO DA EDUCAO

  • Ttulo Cronistas do Sculo XV posteriores a Ferno Lopes _____________________________________________________ Biblioteca Breve / Volume 3 _____________________________________________________ 1. edio 1977 2. edio 1989 _____________________________________________________ Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Ministrio da Educao e Cultura _____________________________________________________ Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Diviso de Publicaes Praa do Prncipe Real, 14 -1. 1200 Lisboa Direitos de traduo, reproduo e adaptao reservados para todos os pases _____________________________________________________ Tiragem 4 000 exemplares _____________________________________________________ Coordenao geral Beja Madeira _____________________________________________________ Orientao grfica Lus Correia _____________________________________________________ Distribuio comercial Livraria Bertrand, SARL Apartado 37, Amadora Portugal _____________________________________________________ Composio e impresso Grfica Maiadouro Rua Padre Lus Campos, 686 4470 MAIA Dezembro 1989 Depsito Legal n. 34 513/90 ISSN 0871 - 5165

  • N D I C E

    Pg. QUADRO HISTRICO

    Croniciado ............................................................................................... 7 Histria interna ..................................................................................... 10 Expanso ultramarina.......................................................................... 13 Doutrina do sigilo ................................................................................ 18 Religio e economia ............................................................................. 20 Bibliografia............................................................................................. 25

    GOMES EANES DE ZURARA

    Vida e obra ............................................................................................ 27 O historiador......................................................................................... 30 O Infante D. Henrique ....................................................................... 32 O cronista .............................................................................................. 36 Mateus de Pisano.................................................................................. 38 Bibliografia............................................................................................. 41

    FREI JOO LVARES

    Vida e obra ............................................................................................ 42 O Infante Santo................................................................................... 43 O hagigrafo ......................................................................................... 46 Bibliografia............................................................................................. 47

    VASCO FERNANDES DE LUCENA

    Vida e obra ............................................................................................ 48 O cronista .............................................................................................. 50 Actividade cultural ............................................................................... 51 Bibliografia............................................................................................. 53

  • RUI DE PINA

    Vida e obra ............................................................................................ 54 Plagiador de Ferno Lopes? ............................................................... 57 O historiador......................................................................................... 60 O escritor ............................................................................................... 66 Bibliografia............................................................................................. 69

    DOCUMENTRIO ANTOLGICO

    Retrato do Infante D. Henrique........................................................ 71 A partilha dos escravos no porto de Lagos..................................... 73 Os mouros choram a perda de Ceuta .............................................. 75 Morte de D. Duarte de Meneses....................................................... 77 Prlogo orao do deo de Vergy.................................................. 78 Retrato do Infante Santo .................................................................... 80 Prlogo crnica de D. Duarte ........................................................ 82 Retrato de D. Afonso V...................................................................... 84 Retrato do Prncipe Perfeito .............................................................. 85 A fundao do castelo da Mina ......................................................... 89

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    I / QUADRO HISTRICO

    1. CRONICIADO Na segunda metade do sculo XV, o cronista rgio

    acumulava as funes de guarda das escrituras do Tombo ou seja, chefe do arquivo da Coroa. Tal situao obrigava-o a passar certides dos documentos e permitia-lhe examinar velhos papis que serviam de base para os seus trabalhos. Era pois, ao mesmo tempo, um escritor e um funcionrio, cabendo-lhe poer em caronyca as estorias dos Reys e zelar pela arrumao dos actos rgios e privados que se guardavam no castelo de Lisboa.

    A sucesso de Ferno Lopes recau, em 6 de Junho de 1454, na pessoa de Gomes Eanes de Zurara, que j se incumbia do labor histrico. A carta rgia de nomeao comprova a incapacidade do primeiro cronista, que estava velho flaco, e o valimento do sucessor, no apenas como cavaleiro da Ordem de Cristo, ttulo que justificava a merc, mas tambm pelos servios que j prestara Coroa. Sobre Zurara recaiu entretanto uma nova misso: a de bibliotecrio da

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    Livraria Real que D. Afonso V estava a formar nos paos da Alcova.

    O novo cronista exerceu o cargo durante vinte anos e nele realizou obra proveitosa. J hoje no se mantm a acusao, de que foi alvo no sculo passado, de ter mandado destruir, por ordem de D. Afonso V, muitos diplomas da chancelaria. Como o arquivo carecia de espao e era preciso atender muitas solicitaes para a transcrio de documentos de interesse familiar, supunha-se que tal facto tivesse levado inutilizao dos livros rgios anteriores ao sculo XV. Mas, como bem provou D. Jos Pessanha, foi s no perodo de 1526 a 1529 que o escrivo Tom Lopes, servindo de Guarda-mr da Torre do Tombo, fez desaparecer 68 livros, pelo que a memria de Zurara fica liberta da injusta mcula. A sua obra histrica prova, alis, o cuidado posto no desempenho da funo.

    Por sua morte, em 1474, ignora-se o nome do sucessor. J ento se achava em Portugal o humanista Frei Justo Baldino, que D. Afonso V mandara vir da Itlia com o encargo de redigir em latim as antigas crnicas dos reis portugueses. Mas o facto de ter sido nomeado bispo de Ceuta antes de 1480 afasta a hiptese de haver sucedido a Zurara. Tudo permite supor que o cargo de Guarda-mr foi desempenhado, a ttulo interino, por Afonso Eanes de bidos, que se limitou a organizar o arquivo e no deixou qualquer apontamento de crnica. Cr-se tambm que o ofcio foi exercido de maneira privada por um Ferno Loureno, de quem tudo se ignora. Eram, sem dvida, letrados de formao, que foram incumbidos de zelar pelo funcionamento da

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    Torre do Tombo, mas no propriamente de elaborar obras histricas.

    A partir de 1486 surge como cronista e guarda-mr o doutor Vasco Fernandes de Lucena, que conservou a funo at ao ano de 1497, em que renunciou ao pesado labor. Devido aos seus cargos e misses oficiais, nada pde fazer de til, sucedendo que em 1490, talvez por sua influncia, surge com a designao de nosso caronista o clrigo Anto Martins, que rondava os 70 anos de idade. Foi nulo o trabalho deste como historiador, pois na mesma poca j se dedicava a escrever e assentar os feitos famosos do Reino o corteso Rui de Pina, que era cronista de ofcio, embora no o fosse de ttulo. Veio a s-lo 7 anos mais tarde, na vaga de Lucena, cabendo-lhe retomar a tradio interrompida pela morte de Zurara. Embora o seu labor histrico exceda os limites do sculo XV, pois guardou o croniciado at 1522, deve ainda ser considerado um historiador quatrocentista, visto que grande parte da sua obra foi composta no tempo do Prncipe Perfeito e nos primeiros anos do reinado de D. Manuel I.

    Como historiadores menores, que no foram cronistas de nomeao, importa referir o italiano Mateus de Pisano, que comps uma verso latina da tomada de Ceuta; e Frei Joo lvares, autor de uma biografia do Infante D. Fernando. Outros letrados teriam composto trabalhos do gnero, como assessores ou substitutos do cronista de ofcio, mas nada se conhece nesse domnio. A importncia do cargo ressalta da circunstncia de serem os cronistas a principal fonte de informao para a histria do tempo. Pode assentar-se que a nomeao para o croniciado visava pessoas da confiana rgia,

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    quer homens doutos, como Zurara e Lucena, quer cortesos de valimento, como foi o caso de Rui de Pina.

    2. HISTRIA INTERNA A segunda fase de quatrocentos corresponde, como

    baliza histrica, ao perodo que se abre com a batalha de Alfarrobeira, em 1449, e termina com a elevao ao trono de D. Manuel, em 1495. Lanam-se ento os fundamentos do Estado moderno, devido crise do regime senhorial e aco centralizadora de D. Joo II. Foram cinquenta anos que mudaram a face poltica e a estrutura social da Nao, completando-se o processo ultramarino que permitiu ligar a Europa e as terras do Oriente.

    A Idade Mdia portuguesa, que para Oliveira Martins terminou com a batalha de Aljubarrota e com o impulso que levou conquista de Ceuta, teve pelas prprias condies do reino uma existncia mais longa, podendo fixar-se o seu termo no perodo de 1450 a 1480. O apoio que a alta nobreza, dirigida pela Casa de Bragana, concedeu a D. Afonso V tornou possvel vencer em Alfarrobeira a faco do infante D. Pedro, duque de Coimbra. O fortalecimento do poder fez-se, ento, custa da prpria Coroa, pois negando o centralismo que o antigo Regente preconizara, D. Afonso V permitiu o aumento das principais casas do reino, por meio de largas doaes e outras benesses. Rui de Pina critica-o veladamente por essa tendncia perdulria, que foi em tanto estremo que para rei superior no foi muito de louvar.

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    A sua interveno na poltica castelhana, de 1475 a 1479, traduziu-se por um grande fracasso militar e diplomtico. Vagando o trono de Castela por morte de Henrique IV e sendo posta em dvida a legitimidade da infanta D. Joana, conhecida por Beltraneja, filha do rei defunto e de D. Joana de Portugal, pretendeu D. Afonso V defender os direitos da sobrinha e coloc-la no trono que era tambm reivindicado por Fernando e Isabel, os futuros Reis Catlicos. Vivo de D. Isabel, falecida em 1455, o rei portugus concebeu ento o plano de casar com a Infanta e de reunir sua a Coroa castelhana, para o que tentou apoio no reino vizinho, junto de muitos nobres que eram desafectos outra causa. Invade Castela, celebra os esponsais em Placensia, mas a batalha de Toro, indecisa militarmente mas politicamente favorvel faco adversa, rouba-lhe os frutos do projecto com que sonhara.

    No podendo suportar o travo da derrota e mantendo os seus direitos, D. Afonso V decidiu ento passar a Frana para obter o apoio de Lus XI. Este levantou dificuldades ao auxlio que lhe era solicitado, em virtude da guerra que ento mantinha com Carlos-o-Temerrio. Ardendo em idealismo, mas longe do mundo real da poltica do tempo, o nosso monarca decidiu-se a servir de medianeiro na luta, pensando que a concrdia entre o rei de Frana e o duque de Borgonha, libertando aquele dos encargos de uma guerra interna, lhe traria um substancial auxlio para a sua causa em Castela. Mas a viagem correspondeu a um novo fracasso, levando D. Afonso V a assinar um tratado de paz nas Alcovas, a 9 de Setembro de 1479,

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    em que reconhecia a realeza castelhana dos seus adversrios de Toro.

    D. Afonso V pode assim considerar-se um monarca de tipo medieval e sem a perspectiva do novo tempo histrico que se abria na Europa. Foi o ltimo rei cavaleiro, ainda embalado por uma estrutura senhorial que a revoluo econmica do sculo XV estava prestes a demolir. Deixaria a seu filho as ingratas tarefas de controlar a administrao pblica, abatendo o poderio da classe nobre e garantindo de novo os direitos do Terceiro Estado que seu pai e av tinham protegido e que ele quase ignorara. O advento de D. Joo II trouxe, com efeito, a concentrao da actividade governativa nas mos do monarca.

    A poltica real orientou-se no sentido de abater o poderio das casas nobres do reino, sobretudo da casa ducal de Bragana. Como o 3. duque, D. Fernando, tivesse recusado a prestao do juramento de menagem nas Cortes de vora de 1481, o monarca julgou encontrar a linha de uma conjura urdida pelo Duque, como aliado dos Reis Catlicos, para o depor. Tanto bastou para que D. Joo II definisse o caso como atentado Realeza e mandasse degolar D. Fernando na praa de vora. Seguiu-se a confiscao de todos os bens da Casa ducal, assim como dos restantes conspiradores, uns perdendo a vida e outros forados ao exlio. Tambm D. Diogo, duque de Viseu e irmo da Rainha, esteve implicado na conjura, mas viu-se perdoado; tendo, porm, reincidido, abateu-se sobre ele a desgraa, sendo apunhalado pelo prprio cunhado em Setbal, a 28 de Agosto de 1484.

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    Assim se estabeleceu a centralizao rgia nos anos de 1481 a 1495. No se tratava ainda da primeira fase do absolutismo poltico, mas j se caminhava para ela, graas a um novo conceito da realeza, no como forma de atributos pessoais, mas como smbolo de uma autoridade que grei se impunha acatar. O coevo Rui de Pina claramente refere do monarca que as cousas de sua honra e Estado quiz que em todollos tempos sempre a elle fossem afectas, e guardadas com grande veneraam e muito acatamento, de maneira que em todas parecia sempre lhe esquecer que era homem, e nunca lhe leixava de lembrar que era Rey e grande senhor (Chronica de D. Joo II, captulo LXXXII). A prpria divisa do rei um pelicano, como ave que simboliza o apego na criao dos filhos ajuda a compreender a viso paternalista, mas no ainda absolutista, de D. Joo II, que queria defender a sua grey no respeito sagrado pela sua ley, ou seja, na vontade acatada da autoridade real.

    3. EXPANSO ULTRAMARINA No reinado de D. Afonso V prosseguiu a conquista

    de praas em Marrocos, assim como a expanso martima no descobrimento e povoamento de novas ilhas e terras. As fontes oficiais e o testemunho dos cronistas permitem acompanhar esse movimento, que traduz o reflexo de uma poltica ultramarina identificada com o chamado plano das ndias, que culmina na viagem de Vasco da Gama, em 1497-98.

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    Os feitos militares em Marrocos outorgaram a D. Afonso V, na galeria dos reis portugueses, o cognome de O Africano. Foi o perodo de rei-cavaleiro, qual novo cruzado em defesa da f crist. Desejando colaborar com o Papado na luta contra os Turcos, na poltica de reaco provocada pela tomada de Constantinopla, decidiu atacar os infiis do norte de frica, preparando uma operao contra Tnger; mas foi Alccer-Ceguer que se tornou objectivo da empresa, caindo a praa aps trs dias de luta renhida, a 23 de Outubro de 1458. A vitria no contentava, porm, o nimo do monarca, cujo sonho consistia na posse de Tnger, a fim de reaver os restos mortais de seu tio, o infante D. Fernando. Vrias expedies realizadas em 1460, 1462 e 1464 no se traduziram por xitos militares, tendo a vida do rei corrido grave risco na serra de Benacofur, onde D. Duarte de Meneses, fronteiro de Alccer-Ceguer, achou a morte para cobrir a retirada do soberano. S em 1471 se alargam as vitrias com a tomada de Arzila, logo seguida pelo abandono de Tnger e a posse de Larache. Foi assim que D. Afonso V pde juntar ao seu ttulo de rei de Portugal e dos Algarves a meno de aquem e alm mar em frica, com que marcava a projeco do seu reino em terras da Mauritnia.

    No campo da expanso martima, o papel do Infante D. Henrique tornou-se relevante at 1460, ano da sua morte, em que as naus portuguesas j tinham descoberto quase todo o arquiplago de Cabo Verde e chegado Serra Leoa. A partir de 1469 o prncipe D. Joo quem toma o comando dessa poltica, celebrando um contrato com o burgus de Lisboa, Ferno Gomes, que levou explorao do golfo da Guin, descoberta

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    das ilhas de S. Tom e Prncipe e chegada de Rui de Sequeira ao cabo de Catarina, em 1474. J depois da sua ascenso ao trono, patrocinou as duas viagens de Diogo Co, a segunda das quais, em 1485, teria atingido a serra Parda, no litoral de Angola. Logo a seguir, a enrgica vontade de D. Joo II deu fora viagem de Bartolomeu Dias, que descobriu o sul do continente africano, enquanto Pero da Covilh e Afonso de Paiva se dirigiram, pela via do Mediterrneo, ao Egipto e Etipia, num plano destinado a estabelecer ligaes com o Prestes Joo das ndias. Numa poltica genialmente concebida, o rei de Portugal sentiu a grandeza da sua misso histrica, no querendo que lhe escapasse uma vitria que sentia ao seu alcance.

    Est hoje provado que os descobrimentos visaram tambm a zona do Atlntico ocidental, primeiro no achado de novas terras e depois, nos fins do sculo XV, na busca dos caminhos do Oeste, quando a concepo da esfericidade da terra atraiu, no apenas o esprito de Colombo, mas tambm o dos navegadores lusos conhecedores dessa rota. No pois sustentvel que o Infante D. Henrique s considerasse a via do Atlntico sul para chegar ndia. Se a expanso seguiu esse curso, foi porque o contorno de frica tornou a empresa mais acessvel, dado que o Mediterrneo, como trao de unio entre a Europa e a frica, permitia notcias mais concretas para acompanhar o processo martimo. No que respeita ao conhecimento de terras na zona ocidental, tudo era ainda vago e sem a garantia de aproximao que a costa africana dava aos navegadores. O conceito de ndia se tal esteve no pensamento do Infante, como supem Joaquim Bensade e Jaime

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    Corteso ligava-se a uma realidade geogrfica mais prxima, no sentido meridional do Atlntico, enquanto as viagens para Oeste faziam parte da ampla indagao que os nautas procuravam fazer do mundo que se lhes oferecia.

    Na concepo medieval, esse mar estava povoado de ilhas maravilhosas de que corriam notcias estranhas. Tal o caso da ilha de S. Mateus, onde os portugueses teriam abordado em 1438, e sobretudo da ilha das Sete Cidades, que parece corresponder grande Antilha. Respondem os tcnicos que o condicionalismo fsico do Atlntico no permitia, ao redor de 1450, que um navio vela pudesse atingir tais paragens. O que no obsta a que Jaime Corteso defenda o descobrimento da Terra Nova em 1452, por Diogo de Teive e o castelhano Pero Vsquez de La Frontera, e que outras viagens tivessem lugar para ocidente no tempo de D. Joo II, preanunciando a expedio de Colombo.

    Por volta de 1479 esteve em Lisboa este comerciante ou navegador genovs, em misso da casa mercante dos Centurione. Na ilha da Madeira, onde foi em negcios de acar, contrau matrimnio com Filipa Moniz, filha de Bartolomeu Perestrelo. Mantinha contacto com o cosmgrafo italiano Toscanelli, que defendia o princpio de que era mais fcil atingir a ndia navegando para ocidente do que contornando a frica. Esse projecto foi apresentado Corte portuguesa, que o recusou pela incerteza do resultado, tanto mais que D. Joo II j tinha conhecimento da viagem de Diogo Co e considerava que os seus navios estavam s portas da ndia. Tal reaco levou o genovs a seguir para Castela em 1485, onde deu origem a morosas diligncias que se

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    concretizaram, seis anos depois, na pequena frota para a ambicionada viagem. Julgava ter descoberto a ndia oriental, quando apenas chegara s ilhas de Cuba e de Haiti.

    De regresso Pennsula Ibrica, o navegador fez escala pelos Aores e aportou em Lisboa a 4 de Maro de 1493. Logo D. Joo II reivindicou as terras acabadas de descobrir, ordenando o apresto de uma frota do comando de D. Francisco de Almeida, a fim de impor os seus direitos. Teve assim incio um perodo de negociaes luso-castelhanas que levaram promulgao pelo papa Alexandre VI da bula Inter Coetera, de 3 de Maio de 1493, que determinava o traado de uma linha de meridiano a cem lguas a oeste das ilhas dos Aores ou Cabo Verde. O nosso monarca protestou contra a deciso papal, que afirmou lesar os descobrimentos portugueses, assentando-se depois no tratado de Tordesilhas, a 7 de Junho de 1494, em que se desviava a linha de meridiano para trezentas e setenta lguas a oeste da ilha de Santiago, estabelecendo-se duas zonas de influncia a atribuir a Portugal e Espanha.

    No hemisfrio portugus iria caber o grande territrio do Brasil, o que tem levado alguns historiadores a defender que D. Joo II adivinhou a presena dessas terras, como escreveu Damio Peres, de que no tinha certamente um perfeito conhecimento, mas sabia que existiam ou, pelo menos, pressentiu genialmente a sua existncia. A empresa atlntica deixava-nos ainda longe da ndia, sem conceder ao monarca tamanha glria; mas o acordo de Tordesilhas garantia a continuidade dessa aco, evitando a concorrncia dos navios castelhanos e

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    instaurando de direito a doutrina do mare clausum, sombra da qual o nosso pas veio, ao longo do sculo XVI, a manter o exclusivo da rota do Cabo e o Imprio oriental.

    4. DOUTRINA DO SIGILO Por que razo as fontes portuguesas do tempo

    deixaram pouco rastro desses acontecimentos, pelo que se impe recorrer, muitas vezes, a notcias castelhanas e outras? Os cronistas tiveram um conhecimento inseguro das viagens martimas e, mais preocupados com a histria interna, no deram Expanso o devido relevo? Ou foram impedidos de o fazer por razes polticas?

    Jaime Corteso defendeu a chamada teoria do sigilo para demonstrar que houve da parte das esferas oficiais o desejo expresso de ocultar dos outros povos a marcha da expanso portuguesa na poca de D. Afonso V e D. Joo II. Por ordem rgia, ter-se-ia procedido voluntria mutilao e falseamento de crnicas, destruio de papis importantes, com o fim de evitar que esses segredos viessem a cair em poder de Castela, dos genoveses e de outros concorrentes no processo martimo. Impunha-se defender os processos da navegao e o monoplio do nosso comrcio. Os naturais do reino que se fizessem ao mar sem licena da Coroa sofriam graves penas, desde o confisco dos bens e perda da mercadoria pena de morte. Por altura de 1480, o prncipe D. Joo determinou que os navios estrangeiros que fossem encontrados na zona do golfo da Guin deviam ser afundados. O sigilo aparece como

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    orientao poltica, o que permitiu a Jaime Corteso afirmar: Os dirigentes da empresa nacional, por menos dotados de previso que fossem, no podiam deixar de a rodear das maiores reservas e defesas.

    O grande historiador aponta vrios exemplos para comprovar a sua tese. Assim, o sequestro da Crnica dos Descobrimentos de Afonso Cerveira, anterior a 1446, e que Zurara utilizou; a mutilao da Crnica da Guin, cujo texto impresso no pode corresponder ao seu original; a nulidade criadora de Vasco Fernandes de Lucena, que recusou submeter-se s imposies do sigilo; e a referncia de autores coevos a notcias de que se perdeu o rastro. A maneira vaga como Zurara e Rui de Pina mencionam certas viagens martimas, quando no as ocultam, escondendo o ano de realizao e os seus navegadores, pode constituir justificao para aceitar o silncio premeditado ou imposto. Acresce que os documentos da cincia nutica do sculo XV desapareceram em Portugal, o que parece estranho num pas votado a uma poltica ultramarina e onde deviam abundar os testemunhos da cartografia.

    Que base histrica assiste doutrina do sigilo? No ponto de vista cartogrfico, evidente que houve cuidados para evitar o extravio de mapas, roteiros e outros informes nuticos. Nas frotas do Infante D. Henrique havia pilotos e nautas de origem castelhana e genovesa, pelo que se tomaram, decerto, as devidas precaues. No se conhecem casos para o sculo XV; mas, no imediato, deu-se a fuga de vrios homens de mar, aliciados por outras Coroas e que levaram segredos da marinharia lusa. O sigilo no campo nutico pode aceitar-se sem custo, tanto mais que Portugal procuraria

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    tambm conhecer os segredos nuticos de Castela e, sobretudo, dos italianos.

    Todavia, o facto mais difcil de provar no que respeita s crnicas rgias na sua fase de composio manuscrita. O labor dos cronistas guardava-se na Livraria real. E, no havendo imprensa entre ns antes de dcada de 1480, custa admitir que se procedesse mutilao de textos manuscritos que no se destinavam a imediata divulgao. Se as crnicas quatrocentistas nem sempre relatam os descobrimentos e feitos de alm-mar, deve-se isso incompleta cobertura de informao que rodeava os factos. Tenha-se em conta que o escritor pretendia, acima de tudo, traar a histria interna de um reinado, pelo que os feitos ocorridos sem a participao do monarca no constituam forosamente matria histrica. de aceitar que no crculo do Infante D. Henrique se registasse a data da partida e chegada das frotas, assim como o nome dos seus componentes. Mas esses dados no tinham de ser levados ao conhecimento do cronista, que ocupava o seu tempo na chancelaria ou na biblioteca real, cabendo o seu registo Casa de Ceuta, anterior a 1434, ou repartio que tratava dos feitos da Guin e Arguim, que funcionava ao redor de 1445, ou, mais tarde, chamada Casa da Guin e da Mina. Eram estes os organismos oficiais que superintendiam na marcha da Expanso ao longo do sculo XV.

    5. RELIGIO E ECONOMIA Durante sculos a Expanso ultramarina foi

    considerada uma empresa movida apenas por razes de

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    ordem espiritual. A fora da Igreja romana cobria a Europa ocidental, mantendo o esprito de guerra contra os infiis e vendo na libertao da Terra Santa, por meio das cruzadas, o ideal que devia animar o homem cristo. A vizinhana da Mauritnia e o facto de ter suportado cinco sculos de domnio muulmano davam a Portugal vantagens de ordem poltica e estratgica para manter esse combate. Acresce que, no incio do sculo XV, os rabes de Granada ocupavam ainda uma parte da Andaluzia, o que representava uma grave ameaa para a integridade dos reinos da Pennsula Ibrica, j duramente batidos pelo processo da Reconquista crist.

    O Mediterrneo constitua ento um equador religioso, na expresso de Jaime Corteso, a separar o mundo romano das terras de infiis. E, na zona oriental desse mar fechado, desde o sculo XIV que um perigo rondava a Europa: a lenta infiltrao dos Turcos, que, tendo partido da sia, obtiveram em 1360 a vitria de Andrinopla e passaram a dominar grande parte do antigo Imprio de Bizncio. Ainda que suscitasse grande emoo na Europa, no causou espanto a tomada de Constantinopla em 1453, dado que a cidade vivia isolada no mundo otomano e no podia resistir ao forte assdio de Maomet II. O conceito de infiel, que tinha nos sculos XII a XIV uma aplicao restrita aos muulmanos do norte de frica, passou a designar todos os inimigos da religio crist, ainda que, na limitao geogrfica do tempo, os Estados hispnicos no tivessem plena conscincia do avano turco e vissem no Magrebe a regio que se impunha combater. O Portugal henriquino orientou a expanso num sentido tipicamente nacional, tendo em conta o secular adversrio que lhe ocupara o

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    territrio e que continuava na Mauritnia a constituir uma ameaa para a sobrevivncia do reino.

    No se devem afastar, pois, as motivaes de ordem espiritual que explicam a conquista de Ceuta e de outras praas de Marrocos. O veculo dessa poltica foi, sem dvida, a classe senhorial, que buscava feitos hericos para merecer os louros da cavalaria e, motivo no menos ponderoso, para alcanar ttulos e riqueza que lhe permitissem manter os antigos privilgios. Lcio de Azevedo viu o problema com realismo, ao justificar a iniciativa de D. Joo I de ocupar a nobreza ociosa das guerras com Castela e que no Magrebe podia dar largas ao seu instinto guerreiro. As razes de ordem social juntam-se s religiosas para explicar, em grande parte, a poltica de conquistas a que a Expanso ultramarina deu lugar.

    Mas a poltica de Marrocos torna-se inexplicvel sem o recurso aos dados econmicos que teriam contribudo para a empresa. O advento da dinastia de Avis garantiu o triunfo da burguesia com assento nas cidades martimas e que procurava novos mercados para o surto comercial do Pas. Eram j frequentes as relaes com os portos do Atlntico norte e do Mediterrneo, havendo tambm notcias de contactos econmico entre o Algarve e o norte de frica. Levanta-se, assim, o problema das carncias do mercado portugus e as vias de interveno para as evitar. Foi-se a Ceuta em busca de cereais para suprir as necessidades frumentrias da Metrpole, como pretendeu Antnio Srgio? Ou para o reino se aproximar das fontes do ouro e de outros metais preciosos, como aventou Jaime

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    Corteso? Ou, ainda, para obter pontos de apoio de uma poltica econmica destinada ao surto da Europa?

    O facto de Portugal apenas dispor de praas isoladas no supunha um domnio efectivo na Mauritnia. Todavia, o contacto que se estabeleceu com as populaes era de molde a permitir o intercmbio de produtos essenciais, por compra ou troca, que incrementavam a economia nacional e davam grandes lucros burguesia. Muitas terras do Magrebe eram abastadas de po, carnes, pescarias, mel, cera, frutas, couros, cavalos, etc. Mesmo que em certos anos de crise o abastecimento dos castelos portugueses forasse a Coroa a enviar cereais e a suportar despesas com a sua manuteno, a verdade que Ceuta, Alcacer-Ceguer, Arzila e Tnger foram pontos de comrcio que activaram a vida econmica do Pas.

    O quadro era diferente nas ilhas atlnticas, pois estavam desertas e havia que estimular o seu povoamento como meio de as valorizar no ponto de vista agrcola. Sendo terra de ningum, no de estranhar que o Infante D. Henrique guardasse a sua posse e explorao. Dispondo de terras frteis para a implantao de novas culturas, a Madeira e os Aores compensaram o esforo realizado com o seu povoamento. O mesmo no sucedeu com o arquiplago de Cabo Verde, onde a aridez do clima e a fraca pluviosidade no permitiram, de 1460 ao fim do sculo XV, um verdadeiro esforo de colonizao interna, ficando as ilhas, apenas, como quase ponto de escala para a navegao.

    inicial cultura de cereais na ilha da Madeira, que dava apenas para o consumo local, sucedeu a partir de

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    1460 o surto da economia sacarina que fez ento dessa terra o maior produtor de acar do Atlntico. Logo aps a descoberta operou-se tambm a plantao da vinha, que ali encontrou terreno favorvel para uma larga produo. Acresce que a riqueza florestal dava para o abastecimento da Metrpole, sendo Zurara a confirmar que a arquitectura civil se desenvolveu no sculo XV, em Portugal, graas madeira dali enviada.

    Quanto aos Aores, a terra hmida mostrou-se favorvel pastorcia, que logo constituiu uma das riquezas locais. Tambm as culturas do trigo e do centeio encontraram condies apropriadas, havendo certamente o intuito de fazer do arquiplago uma fonte de abastecimento do reino em anos de crise. Sucedeu, com efeito, que, tanto o pas como as praas do norte de frica, muitas vezes receberam cereais daquele arquiplago. Duas outras culturas tiveram uma certa voga na tinturaria: o pastel e a urzela. J a cana de acar, talvez pelo revestimento do terreno e por falta de mo-de-obra, nunca encontrou condies para se implantar nas ilhas aorianas.

    A explorao da costa africana abriu novos rumos economia nacional, pela obteno do ouro de Arguim, que serviu para as amoedaes do tempo de D. Afonso V, e por volta de 1470, quando da chegada costa da Mina. Isso esteve na origem da reitoria ali mandada erguer por D. Joo II, que recolhia sobretudo o ouro daquela regio. Uma outra receita provinha de uma especiaria cultivada na zona do cabo das Palmas, a chamada malagueta, que permitiu o monoplio desse comrcio concedido pelo prncipe D. Joo a Ferno Gomes, burgus de Lisboa. Desde 1440 que, com base

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    em Arguim, se fazia o trato dos escravos vindos do Sara e da Guin, estendendo-se a compra para outras regies mais ao sul. O marfim foi outro produto cobiado, mormente na zona da Guin.

    Os cronistas Zurara e Rui de Pina e outros autores do tempo, como Diogo Gomes, Cadamosto e Jernimo Munzer, fornecem dados de interesse para compreender o quadro econmico em que se operou a expanso portuguesa na segunda metade do sculo XV.

    BIBLIOGRAFIA

    Jaime Corteso, Do Sigilo Nacional sobre os Descobrimentos, in Lusitnia, vol. I, Janeiro de 1924, pp. 45-81; e em nova edio, A Expanso dos Portugueses no Perodo Henriquino, in Obras Completas de Jaime Corteso, vol. V, Lisboa, 1965, pp. 225-278.

    Duarte Leite, Coisas de Vria Histria, Lisboa, 1941. Damio Peres, Histria dos Descobrimentos Portugueses,

    Porto, 1943. Vitorino Magalhes Godinho, A Economia dos

    Descobrimentos Henriquinos, Lisboa, 1962. Orlando Ribeiro, Aspectos e Problemas da Expanso

    Portuguesa, Lisboa, 1962.

  • 26

    Joaquim Verssimo Serro, A Historiografia Portuguesa. Doutrina e Crtica, vol. I, Lisboa, 1972.

    Idem, Itinerrios del-Rei D. Joo II, vol. I (1481-1488); Academia Portuguesa da Histria, Lisboa, 1975.

    Martim de Albuquerque, O Poder Poltico no Renascimento Portugus, Lisboa, 1968.

    Humberto Baquero Moreno, A Batalha de Alfarrobeira. Antecedentes e Significado Histrico, Loureno Marques, 1973.

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    II / GOMES EANES DE ZURARA 1. VIDA E OBRA Nasceu o sucessor de Ferno Lopes pelo ano de

    1404, cr-se que na vila do Pinheiro Grande, termo de Santarm. Era filho de um cnego da S eborense, mas tudo se ignora quanto aos seus estudos e formao cultural. Aparece na Corte de D. Afonso V, onde, a partir de 1446, teria beneficiado da presena de Mateus de Pisano, preceptor do jovem monarca. Tambm no de excluir que contasse com a ajuda do primeiro cronista, a quem presta rasgado elogio. Trs anos depois j desempenhava o cargo de guarda das escrituras rgias no castelo de Lisboa. Os seus bigrafos no aceitam que tenha feito cursos regulares na Universidade, inclinando-se antes para uma cultura de autodidacta, como a sua obra em muitos pontos parece revelar.

    Foi autor da Crnica da Tomada de Ceuta, comeada a escrever antes de 1449 e concluda no incio do ano seguinte. Serviu-se, para o efeito, de papis ou apontamentos deixados por Ferno Lopes, que apenas ligou o nome s duas primeiras partes da Crnica de Dom

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    Joo I, englobando os acontecimentos de 1383 a 1411. Coube, portanto, a Zurara compor a terceira parte da referida obra, onde tratou dos preparativos da expedio e da conquista daquela praa mauritana. Quer dizer que os ltimos dezoito anos do reinado no foram objecto do seu estudo, o que representa uma lacuna na histria do primeiro monarca de Avis. A Crnica guarda, todavia, o mrito de ser a mais antiga fonte da nossa histria ultramarina.

    Nesse domnio orientou o cronista o seu labor histrico, compondo em seguida, pelos anos de 1452-53, a Crnica de Guin, tambm chamada Crnica dos Feitos de Guin, que ficou desconhecida at ao sculo passado. Foi em 1839 que o lusfilo Ferdinand Denis revelou a existncia do cdice da Biblioteca Nacional de Paris que serviu de base edio de 1841, dos Viscondes de Santarm e da Carreira, com o ttulo de Crnica do Descobrimento e Conquista da Guin. Sabe-se hoje, graas investigao de Sousa Viterbo, que esse manuscrito data do sculo XV e que foi seu copista Joo Gonalves, escrivo do rei D. Afonso V, sendo a iluminura que representa o Infante D. Henrique da autoria do clrigo Gonalo Eanes, inlumynador dos livros rgios.

    O cdice da Crnica, no que respeita ao ttulo e composio da obra, tem levantado os maiores problemas investigao histrica e literria. A confidncia do prprio Zurara, de que utilizou uma narrao das primeiras descobertas da autoria de Afonso Cerveira, personagem de quem tudo se ignora, poderia fazer duvidar da sua probidade. Mas no se tratava de uma Crnica, apenas de um treslado ou apontamentos que Cerveira quisera ordenar, pelo que, se houvesse da

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    parte de Zurara uma inteno de plgio (e sabemos como esta noo controversa no quadro cultural do sculo XV), teria omitido uma fonte informativa que podia deslustrar o seu labor pioneiro. Temos, pois, de concluir que o manuscrito de Cerveira no formava uma obra acabada, o que torna difcil aplicar-lhe a doutrina do sigilo enunciada por Jaime Corteso.

    opinio geralmente aceite (Costa Pimpo, Duarte Leite, Jos de Bragana, Dias Dinis) que o cdice parisino rene duas obras distintas: a Crnica dos Feitos do Infante D. Henrique (caps. III a VI, LXXIX a LXXXV, XCV a XCVII) e a Crnica dos Feitos de Guin (restantes captulos). Zurara confessa no prlogo que, por ordem rgia, desejara traar os grandes e muy notavees fectos do senhor Iffante dom Henrique duc de Viseu e senhor da Covilha; e no primeiro captulo acrescenta que o manuscrito contm todollos feitos que se passarom na conquista de Guin. No dizer de Dias Dinis, o cdice foi organizado sobre cadernos ou folhas, soltos e incompletos, de dois trabalhos do cronista. Tal facto retira unidade temtica obra, se bem que a localizao temporal da matria no prejudique a narrao.

    Nos fins do sculo XVIII, por diligncia da Academia Real das Cincias, foram reveladas as Crnicas do conde D. Pedro de Meneses, que governou a praa de Ceuta de 1415 a 1437, e de seu filho D. Duarte de Meneses, fronteiro de Alccer Ceguer no tempo de D. Afonso V. Trata-se de obras de carcter senhorial, destinadas a exaltar o herosmo de dois cavaleiros que tinham ajudado a consolidar o poderio nacional em Marrocos. Nelas se pe em relevo a ajuda que a Coroa recebeu da principal nobreza, elevando-se o papel

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    militar da famlia Meneses, tronco da casa de Viana, que assim procurou engrandecer seu nome e fama.

    Importa referir que a primeira Crnica no se baseou em documentos, mas sobretudo no testemunho de pessoas que conheciam a aco do primeiro governador de Ceuta. Mas como este falecera havia trinta anos, nem sempre os factos narrados correspondiam verdade dos acontecimentos. No elogio do seu biografado, Zurara cometeu erros e omisses que deram origem inveja de muitos cortesos. Tal facto levou o nosso cronista, antes de se abalanar feitura da segunda Crnica, a visitar o norte de frica com o fim de conhecer o palco geogrfico da sua narrao e escutar o depoimento de companheiros de armas de D. Duarte de Meneses, morto trs anos antes.

    Ali recebeu uma carta de D. Afonso V, de 21 de Novembro de 1467, em que este reconhecia o escrpulo do cronista na averiguao da verdade histrica: no sendo sem rrazo que os homens que tem vosso carguo sa de prezar e honrar. O documento no enaltece apenas a fama de Zurara, como honra tambm o monarca que o assinou, no preito que dispensa ao homem de letras que, para reconstituir fielmente os sucessos de Alccer-Ceguer, no hesitara em deslocar-se Mauritnia. Se tal facto prova os interesses culturais de D. Afonso V, no expressa menos a considerao que Zurara auferia pelo seu labor histrico.

    2. O HISTORIADOR A primeira definio que se extrai da sua obra

    respeita ao mtodo. No desejo de traar o passado na

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    lio das fontes, Zurara utiliza o documento escrito como base da informao, mas no descura os dados particulares que lhe permitiam alargar o campo da sua histria. A tradio ou testemunho oral foi um dos meios que utilizou para a recolha de notcias.

    O contacto com a realidade geogrfica foi tambm uma das suas preocupaes, como se infere da j mencionada viagem a Marrocos que lhe permitiu conhecer as praas de Ceuta e Alccer-Ceguer. Nisso mostrou Zurara uma viso geo-histrica que, luz do iderio do sculo XV, importa assinalar. No era, pois, um autor imaginativo, antes buscando o suporte documental para descrever pessoas e factos numa viso tanto quanto possvel concreta dos primrdios da nossa expanso ultramarina.

    Apesar das limitaes da sua formao cultural, que os autores de maneira geral reconhecem, a sua probidade no suscita dvidas. Foi, acima de tudo, um fiel narrador, tomando a histria recente como base das Crnicas. A sua vida coincidiu com o tempo histrico que foi objecto do seu estudo, ou seja, da conquista de Ceuta, em 1415, morte de D. Duarte de Meneses, em 1464. Podemos assim defender que Zurara trata de acontecimentos vivos na sua lembrana, no lhe sendo difcil reconstituir uma poca histrica de que se considerava, ao mesmo tempo, criatura e testemunha. Para alm das lacunas de que a obra se possa revestir, o seu depoimento constitui um espelho fiel para a evocao de figuras e do quadro social da primeira metade do sculo XV.

    Zurara tinha conscincia de que nem todos os informes podiam revelar matria histrica, pelo que

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    competia ao cronista fazer a destrina dos factos acumulados para estudo. Procurou assim conferir histria uma dimenso tica e panegrica, buscando exaltar os feitos hericos na memria e ensinana dos outros. Fundou os seus grandes modelos na escola da cavalaria, elevando as figuras que marcaram o rumo da histria. Nesse sentido a sua obra foi panegrica ou laudativa, respeitando os valores senhoriais que definiam o homem medieval. Tal facto permite afirmar que o cronista narrou um tempo histrico ainda vinculado a um tipo de mentalidade prestes a desaparecer e talvez sem ter em conta a grande revoluo histrica que os descobrimentos martimos estavam a abrir para o mundo.

    3. O INFANTE D. HENRIQUE O Infante ocupa o centro da obra de Zurara, como

    inspirador e guia dos Descobrimentos. O seu nascimento, costumes e valorosos feitos receberam um tratamento herico que o identifica com a prpria Expanso. Embora as quatro Crnicas no sejam apenas o repositrio das aces polticas e militares a que D. Henrique ligou o nome, reconhece-se que a sua presena domina a narrao de Zurara que, alm de primeiro bigrafo, foi o seu maior apologista. A viso henriquina, de lenda ou culto, que se manteve at ao nosso tempo, deve-se indiscutivelmente ao segundo cronista de Avis, que exaltou a obra do Infante como nico motor da Expanso nacional.

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    Se a conquista de Ceuta fora sugerida a D. Joo I pelos trs filhos mais velhos D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique -, o mrito da vitria recaa quase por inteiro no ltimo, que em 1418 voltou ao norte de frica para salvar a praa da arremetida dos mauritanos. Todo o que se segue foi feito per sua ordenana e mandado escreve Zurara, custa de sacrifcios e despesas que apontavam D. Henrique como o grandor de todos os feitos (Crnica dos Feitos de Guin, cap. I, Lisboa, 1949, p. 3). Reconhecia o cronista que a aco dos vassalos devia tambm merecer referncia, mas s a do Infante uma apartada scriptura. As suas virtudes, em que engloba a grandeza de nimo, a nsia de conhecer novas terras, a dureza contra o infiel e a piedade crist, eram garantia bastante para desvendar a Portugal outras terras com abundncia de po, mel, cera e mais produtos que podiam correr no reino.

    Ao contrrio do que por vezes ainda se defende, no verdade que Zurara tenha apenas encarado as razes ideolgicas que conduziram expanso nos mares. Se o seu esprito eleva de preferncia o ideal cristo por meio da cavalaria, o captulo VII da mesma Crnica revela objectivos mais amplos da parte do Infante D. Henrique. Assim, desejava este aver manifesta certidom das terras que ficavam para alm do cabo Bojador; estabelecer aliana com os povos cristos que viviam naquelas paragens; avaliar o efectivo poder dos mouros; e converter os infiis como dever imposto pela Igreja. Destas cinco razes, que se reduzem a quatro linhas de explicao, extrai-se o imperativo que levou o Infante a mandar descobrir as terras de Guynea, expresso que engloba a costa ocidental

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    africana. Aqui se encontra expressa uma teoria poltica, econmica e religiosa dos descobrimentos, com o aproximar de povos e raas diferentes.

    D. Henrique fora acompanhado na empresa por vrias famlias nobres que se destacaram pela fora das armas. Zurara considera necessrio proceder ao memorial das suas virtuosas obras (Crnica, captulo III), o que fez em relao aos Meneses. O elogio da principal nobreza levou Antnio Jos Saraiva a ver no cronista o historiador da classe senhorial que viu o seu poder poltico fortalecido na batalha de Alfarrobeira. No de estranhar essa tendncia de Zurara, que os estratos sociais da poca plenamente justificam. Vivia-se um ambiente de glorificao rgia e a nobreza afecta a D. Afonso V tirava benefcios da aco militar em Marrocos, o que o cronista no podia ignorar. Mas, da a ver-se nele um porta-voz dos interesses da alta corrente palaciana, vai uma grande distncia, pois a elaborao das duas Crnicas dos Meneses partiu, sem qualquer dvida, do prprio monarca: a primeira, aproveitando o clima eufrico da conquista de Alccer-Ceguer; e a segunda, preparando o ambiente que levou conquista de Arzila e Tnger, maneira de redimir o sacrifcio feito por D. Duarte de Meneses. Imposio da prpria nobreza para ter o cronista nas mos, parece de difcil prova.

    Mas as Crnicas de Zurara tambm no esquecem os colaboradores de D. Henrique, os muytos boos criados seus, e outras boas pessoas de nosso regno, que em os dictos feitos vertuosamente trabalharom (Crnica dos Feitos de Guin, cap. I). Na descrio das viagens atlnticas, h muitas referncias a escudeiros, moos,

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    pilotos e moradores da casa do Infante, o que faz da obra de Zurara um repositrio de nomes humildes que se ligaram empresa da Expanso. Tudo servia de moldura para elevar os mritos do Infante de Sagres que, na expresso do cronista, no acharia outro que pudesse iguallar a excelencia da fama daqueste (Crnica, cap. II).

    Curioso ainda referir que na Crnica da Tomada de Ceuta, ao descrever a cerimnia de Tavira em que o Infante D. Pedro recebeu o ducado de Coimbra e o Infante D. Henrique o ducado de Viseu e o senhorio da Covilh, no se regista qualquer palavra de encmio para o primeiro. O mrito da expedio vai todo para o irmo mais novo, polla grandeza do trabalho que filhou em todollos estes feitos... e por todas as cousas que em ello obrou (Ibidem, cap. CI, 1915, p. 267). A cena no traduz, de modo algum, a realidade histrica, dado que D. Joo I no faria especial distino entre os filhos, e tem de entender-se no clima posterior batalha de Alfarrobeira, quando o silncio em torno da pessoa do antigo Regente era princpio seguido na Corte.

    Poderiam aduzir-se outros factos para demonstrar que a figura de D. Henrique recebeu de Zurara um tratamento herico para ainda mais a valorizar. No est provado que, antes da morte do progenitor, o Infante tivesse exercido uma aco poltica que deixasse na sombra a dos irmos. Veio a t-la, de facto, ao longo do reinado de D. Duarte e, aps o breve eclipse provocado pelo desastre de Tnger, nos anos da regncia do Infante D. Pedro, quando as viagens de descobrimento e a colonizao das ilhas atlnticas lhe conferiram, como Mestre da Ordem de Cristo, o papel de condutor da

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    empresa ultramarina. O personagem que Zurara descreve, em muitos pontos de feio idealista, portanto o D. Henrique da fase posterior a 1440, quando o seu prestgio e fora actuante fizeram dele a figura de proa da histria portuguesa do tempo.

    Nesse relato literrio, a fisionomia deve corresponder do prncipe de Sagres, mas as propores da moldura e as pinceladas do artista excederam as dimenses do modelo. Mesmo que o revestimento seja exagerado, no custa aceitar que, luz da prpria poca, Zurara tenha querido e sabido eternizar um homem que historicamente foi grande.

    4. O CRONISTA Costuma distinguir-se em Zurara o historiador

    probo do escritor pesado que no teve a arte de dominar o estilo e cuja obra traduz um retrocesso literrio em relao a Ferno Lopes. A crtica no o tem poupado no exame textual, censurando-lhe as citaes e o empolamento que confere ao estilo. verdade que o cronista cai muitas vezes em pura retrica, dando mostras de uma erudio que torna a matria histrica dispersiva. A tendncia para citar autores clssicos prejudica a sua narrao e corta o fio do seu discurso. Joaquim de Carvalho, a quem se deve nesse domnio o estudo de maior profundidade, atribuiu o facto s limitaes culturais de Zurara, que procurou cobrir-se com uma cincia de fonte alheia a fim de esconder o seu autodidactismo.

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    O problema situa-se talvez num campo distinto pois nem todas as Crnicas sofrem dessa tendncia para a expresso retrica. O Abade Correia da Serra, que foi um dos seus primeiros bigrafos, pressentiu que havia dois estilos na obra de Zurara: um, sem dvida agreste, quando procura dissertar sobre temas gerais e busca o testemunho de modelos literrios; outro, de leitura agradvel, quando reconstitui cenas histricas em que a vivncia das personagens o obrigou conciso literria. H pois duas tendncias literrias no escritor: a que se prende com a teorizao dos factos e a que respeita narrativa concreta, dando origem a uma simbiose de estilos que a crtica nem sempre procura compreender.

    A comparao com Ferno Lopes, de que se tem usado e abusado, no deve manter-se, apesar de serem quase contemporneos. Foram autores distintos pela formao mental e pela investigao a que procederam. Distingue-os, sobretudo, o campo histrico que procuraram narrar, Lopes voltado para um passado a que, s em parte, lhe fora dado assistir (a realeza de D. Joo I antes da empresa de Ceuta), Zurara como autor contemporneo e, portanto, traduzindo uma opinio vivida sobre os acontecimentos. No louvor que dispensava ao primeiro cronista, Alexandre Herculano deu origem a uma corrente de opinio que diminui Zurara como historigrafo e escritor, como se quisesse separar o autor medieval do que j revela dons de modernidade.

    Mesmo aceitando que o segundo no possua a mestria literria que faz, em grande parte, a glria do antecessor, tal facto no justifica que saia diminudo do confronto historiogrfico. Lopes foi, sem dvida, um

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    extraordinrio pintor de multides, ao passo que Zurara possui menos dons de visualista, mas no lhe inferior pela sensibilidade. Ainda que no ignore muitas figuras humildes da Expanso, Zurara raramente procede reconstituio de conjuntos humanos como o fez de maneira segura o velho cronista. Compete crtica verificar o tratamento que ambos deram matria histrica e, nesse domnio, cada um tem as suas caractersticas prprias, no sendo de ignorar o realismo que anima muitas pginas do cronista henriquino.

    Quando descreve a colocao da bandeira do Infante na torre de Ceuta, sente-se a aco colectiva em que foram todos juntamente (Crnica, captulo CLXXXVII, 1915, p. 233). Ainda de maior expresso a cena da partilha dos primeiros escravos na praia de Lagos, em que no esconde a tristeza que lhe causava o apartamento hs dos outros... os filhos dos padres, e as molheres dos maridos, e os hus irmaos dos outros (Crnica dos Feitos de Guin, cap. XXV, 1949, pp. 125-127). Essa pgina bastaria para fazer de Zurara um grande evocador histrico, como se tivesse estado presente e revelando um profundo sentimento de alma em que o homem se sobrepe ao narrador.

    5. MATEUS DE PISANO Pelo ano de 1446 j vivia na Corte de D. Afonso V

    o italiano Mateus de Pisano, sem dvida natural da cidade donde lhe adveio o nome, que o regente D. Pedro chamara a Portugal para exercer o cargo de preceptor do monarca. Era poeta laureado e cultor de

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    filosofia. Zurara beneficiou do seu convvio e de aceitar que muitos autores por ele referidos lhe tenham sido indicados pelo humanista de Pisa. O facto confirma ainda a existncia de uma corrente italiana nos meados do sculo XV que exerceu aco fecunda na cultura portuguesa do tempo. Mateus era j falecido em 1466.

    Pelo ano de 1460 comps a descrio em latim da tomada de Ceuta, a que deu o ttulo de De Bello Septensi per Reverendum Mathaeum de Pisano, artium Magistrum Poetamque Laureatum. Este trabalho, de que se guarda um precioso cdice na Biblioteca Ducal de Vila Viosa, manteve-se indito at 1790, ano em que o Abade Correia da Serra o inseriu nas publicaes da Academia Real das Cincias. No mbito do V centenrio daquela efemride, a mesma Academia publicou em 1915, por diligncia de Roberto Correia Pinto, uma traduo portuguesa com o ttulo de Livro da Guerra de Ceuta, escrito por Mestre Mateus de Pisano em 1460.

    A composio deve ter obedecido ao desejo rgio de dar a conhecer na Europa do tempo o valor histrico da conquista de Ceuta. O latim constitua o veculo ideal para essa projeco do feito militar de D. Joo I, que a Coroa portuguesa queria consolidar com a poltica dO Africano. Se foi esse o pensamento do monarca, no teve realizao prtica, pois o manuscrito ficou esquecido e no se conhece qualquer diligncia para o confiar aos prelos, ainda no sculo XV, tanto em Portugal como no estrangeiro. Cremos que a tomada de Alccer-Ceguer, em 1458, fortaleceu o desejo de D. Afonso V de levar avante a poltica marroquina, procurando assim colaborar com o Papado no esprito de cruzada que se pretendia espalhar entre as naes crists.

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    A obra tem reduzido valor histrico, sendo uma cpia quase fiel da Crnica da Tomada de Ceuta de Zurara. Abrange somente a narrao dos preparativos da conquista, desde 1411, at ao regresso de D. Joo I ao Algarve, em Setembro de 1415. Para o autor, o ideal de cavalaria surge como razo nica da empresa, dado que a inteno rgia fora armar os trs filhos cavaleiros. O cronista dera tambm valor ao argumento religioso, que Mateus de Pisano quase deixa na sombra. O esprito senhorial do tempo de D. Afonso V encontrou, pois, no humanista italiano um fiel tradutor.

    Redigiu tambm no idioma latino uma Crnica de D. Pedro de Meneses, mas no se conhece o rastro do original. Sabe-se que Zurara o utilizou sem omitir a fonte de informao, o que refora o conceito de probidade do cronista rgio. A morte do fronteiro de Alccer-Ceguer em 1464, que se imolou para salvar a retirada do monarca, fez despontar um sentimento de exaltao pela sua fidelidade guerreira. Foi nesse ambiente que Pisano elaborou o trabalho, que no devia conter dados histricos apreciveis, mas apenas valer pela inteno laudativa.

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    BIBLOGRAFIA

    Chronica do Conde D. Pedro de Meneses e Chronica do Conde D. Duarte de Meneses, in Colleco de Livros Inditos de Historia Portugueza, vol. II, Lisboa, 1792, pp. 213-635; idem, vol. III, 1793, pp. 3-385.

    Chronica do Descobrimento e Conquista da Guin, Paris, 1841. Ibidem, com estudo de Jos de Bragana, vols. I-II,

    Porto, 1937. Crnica dos Feitos de Guin, A. G. das Colnias, Lisboa,

    1949. Crnica da Tomada de Ceuta, ed. Francisco Maria Esteves

    Pereira, Academia das Cincias de Lisboa, 1915. Antnio Joaquim Dias Dinis, Vida e Obras de Gomes

    Eanes de Zurara, vol. I, Lisboa, 1949. Idem, Estudos Henriquinos, vol. I, Coimbra, 1960. Antnio Jos Saraiva, Histria da Cultura em Portugal, vol.

    I, Lisboa, 1950. lvaro Jlio da Costa Pimpo, Histria da Literatura

    Portuguesa, vol. I (Sculos XII a XV), Coimbra, 1947. Joaquim de Carvalho, Sobre a erudio de Gomes Eanes de

    Zurara, in Biblos, vol. XXV, Coimbra, 1949 e idem, Estudos sobre a Cultura Portuguesa no Sculo XV, Coimbra, 1948, pp. 1-197.

    Chronique de Guine, trad. e prefcio de Lon Bourdon, in Mmoires de lInstitut Franais dAfrique Noire, n. 60, Ifan, Dakar, 1960.

    Joaquim Verssimo Serro, A Historiografia Portuguesa, vol. I, Lisboa, 1972, pp. 65-89.

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    III / FREI JOO LVARES 1. VIDA E OBRA Cr-se que nasceu em Torres Novas no incio do

    sculo XV, tendo abraado a carreira de frade professo da Ordem de So Bento de Avis. Foi moo de cmara e secretrio do Infante D. Fernando, filho de D. Joo I e de D. Filipa de Lencastre, tendo-o acompanhado em 1437, na expedio a Tnger. Seguiu-o depois no cativeiro e assistiu-lhe morte em Fez, a 5 de Julho de 1443. Cinco anos mais tarde foi resgatado, voltando a Marrocos em 1450 para buscar algumas relquias do amo. O Infante D. Henrique incumbiu-o ento de compor a Crnica dos feitos do irmo, para o que se deslocou Corte de Borgonha antes de 1460, talvez em busca de informes para completar a obra. Ali voltou de novo em 1466, prosseguindo a viagem at Roma, onde foi suplicar de Paulo II um breve de indulgncias para os que mantinham o culto do Infante Santo. Estava j de regresso a Portugal em 1471. Os seus ltimos anos foram passados no mosteiro beneditino de Pao de Sousa, de que era Abade comendatrio, e ali faleceu por volta de 1490.

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    Foi autor do Trautado da Vida e Feitos do Muito Vertuoso Sor Iffante D. Fernando, mais conhecido por Crnica do Infante Santo, que comps entre 1451 e 1460. A obra ficou manuscrita, conhecendo as primeiras edies no sculo XVI: Lisboa (1527) e Coimbra (1577). Ambas correspondem a momentos de crise na histria portuguesa de Marrocos, quando D. Joo III sentiu a impossibilidade de conservar a maior parte dos castelos do Magrebe e, j no tempo de D. Sebastio, quando se preparava o ambiente nacional para a jornada de Alccer-Quibir. Um novo movimento para reafirmar o culto do Infante levou sada da 3. edio, em Coimbra (1730). Apesar da renovao histrica que o Liberalismo tornou possvel, o sculo XIX no foi propcio ao aparecimento de novas edies. J no nosso tempo saram mais duas, em Coimbra: com estudo de Mendes dos Remdios (1911) e com introduo e notas de Adelino de Almeida Calado (1960), que o texto mais cuidado historicamente.

    2. O INFANTE SANTO Tendo vivido na intimidade do Prncipe, Frei Joo

    lvares dispunha de informes precisos acerca do seu biografado. Acompanhara-o na sua juventude e, sobretudo, viveu com D. Fernando nas horas amargas do cativeiro, recebendo-lhe as ltimas confidncias. Esta circunstncia outorga ao Trautado a qualidade de uma fonte viva, no bebida nos documentos, mas registando a conduta humana e traduzindo as confisses de uma alma que no tinha segredos para o autor. Este

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    procurava assim dar testemunho da verdade, procurando calar as vozes de maldizentes e sofismadores que espalhavam falsas verses sobre a morte de D. Fernando. Que rumores corriam a esse respeito?

    Sem dvida, que o Infante Santo fora abandonado pelos seus familiares e vtima de uma desastrada poltica que o imolou no altar da Ptria. No quisera D. Duarte aceitar as condies do resgate, que impunham a devoluo de Ceuta a troco da entrega do irmo. As Cortes de Leiria de 1438 deixaram o problema em suspenso, por ser forte a corrente que se opunha perda daquela praa, considerada de Deus e no do reino. O infante D. Henrique mostrou-se tenaz na defesa desta posio, ainda que sacrificasse D. Fernando ao que poderia definir-se como razo do Estado. Mas to pouco D. Pedro, que logo a seguir assumiu a regncia e era defensor do resgate, conseguiu alcanar a libertao do irmo que, entretanto, faleceu em Marrocos.

    A morte de D. Fernando tomava a feio de sacrifcio colectivo e revestia-se de um cunho de desgraa nacional. Ao tempo, devia murmurar-se que os culpados de Tnger haviam escapado, enquanto o Infante se vira sacrificado como um inocente. Foi assim que um historiador contemporneo, David Lopes, no receou emitir o seguinte juzo como espelho da provvel opinio que nos meados do sculo XV circulava em Portugal: Assim, o abandono do Infante foi um crime. Praticou-o D. Duarte e havia de morrer rodo de remorso da a pouco; praticou-o a nao, que se acovardou, e sobretudo praticaram-no aqueles que lhe

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    deveram a vida; praticou-o D. Henrique, o grande culpado, de conscincia condescendente.

    No prlogo do Trautado, o autor pretende acabar com as verses que no passavam de fingidas patranhas e ociosas fbulas. Ele podia afirmar, invocando o testemunho de Deus, que a matria era do seu conhecimento, pelo que lhe fora dado ver e ouvir, durante vinte e cinco anos, no convvio permanente com o Infante. Por eu ser ao presente a mais certa e chegada testemunha de sua vida e de seus feitos, referia lvares, no era possvel que se contassem factos do seu cativeiro que no correspondiam verdade histrica. Havia que defender a honra da Coroa e criar o ambiente de venerao que fizesse do prncipe um santo.

    Nesta perspectiva, a obra de Frei Joo lvares ajudou a cimentar o culto do Infante Santo, que se oferecera voluntariamente para o sacrifcio e no fora vtima do olvido dos irmos D. Pedro e D. Henrique. Para demonstrar que a Coroa no se poupara a esforos para obter o resgate de D. Fernando e de que fora este quem aceitara morrer para que Ceuta no fosse entregue aos mouros, o cronista eleva a crueldade dos infiis que haviam cometido tamanho crime na pessoa do jovem prncipe. lvares convida o Infante D. Henrique a vingar a morte do irmo, com uma nova cruzada no norte de frica que levasse destruio do inimigo. Sugere-se, mesmo, uma expedio contra Tnger, que chegou a estar projectada em 1458 e foi depois alterada com o ataque a Alccer-Ceguer.

    Da que o Trautado contenha um vibrante apelo luta contra os infiis, ao mesmo tempo que um fim apologtico, mostrando que a obra da Expanso visava

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    converter os inimigos da religio crist e que fora nesse esprito, no como conquistador da praa de Tnger, que D. Fernando cara prisioneiro e encontrara a morte. A obra patenteia a mistura do sentimento guerreiro e do ideal da aproximao crist, visando obter a entrega dos restos mortais do Infante Santo para lhes ser dado condigna sepultura no panteo real de Santa Maria da Vitria. Tal facto veio a acontecer em 1472, como refere em bela pgina de evocao o cronista Rui de Pina (Crnica do Senhor Rey Dom Affonso V, cap. CLXXII, pp. 536-537).

    3. O HAGIGRAFO Na viso do bigrafo, o Infante D. Fernando

    mostrara no cativeiro dons de coragem que excediam o valor humano. Era pois digno de perpetua memoria e de nome gloryoso e imortal, o que traduz um pensamento de santificao que se denota do princpio ao fim da obra. Invocando a frase de S. Gregrio, de que h pessoas que devem viver na companhia dos anjos, o autor no acredita que a morte seja motivo bastante para alcanar a redeno. O sofrimento reservado a certos eleitos para lhes elevar os mritos. Neste caso, Deus fizera esclarecer a piedade e lume de merecimento da linhagem real portuguesa.

    A Crnica do Infante Santo possui, desta forma, um acento religioso que, a juntar ao seu fundo dramtico, o aproxima dos textos hagiogrficos. Em muitos passos no se encontra a marca humana do prncipe sacrificado em Tnger, mas a viso ideal que dele traa Frei Joo

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    lvares. Em vo se procurar nessa Crnica o reflexo de um tempo histrico que foi marcante na vida portuguesa a abrir-se s solicitaes da Expanso ultramarina. O facto reduz o valor da obra como fonte histrica, tornando reduzido o seu valor informativo.

    BIBLIOGRAFIA

    Jos Saraiva, Os Painis do Infante Santo, Leiria, 1925. David Lopes, Os portugueses em Marrocos: Ceuta e

    Tnger, in Histria de Portugal sob a direco de Damio Peres, Portucalense Editora, vol. III, Barcelos, 1931, pp. 407-432.

    Frei Joo lvares, Obras. Edio crtica, com introduo e notas de Adelino de Almeida Calado, vol. I, Coimbra, 1960.

    Adelino de Almeida Calado, Frei Joo lvares, Boletim da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, vol. XXVII, 1967, pp. 1-387.

    Domingos Maurcio Gomes dos Santos, D. Duarte e as Responsabilidades de Tnger, 2. edio, Lisboa, 1960.

    Joaquim Verssimo Serro, D. Fernando, in Dicionrio de Histria de Portugal, vol. II, pp. 210-211.

    Idem, A Historiografia Portuguesa, vol. I, Lisboa, 1972, pp. 89-93.

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    IV / VASCO FERNANDES DE LUCENA

    1. VIDA E OBRA Foi o terceiro cronista oficial do sculo XV, ainda

    que no tenha deixado obra histrica. Era espanhol de nascimento e doutor em Direito,

    tendo-se fixado em Portugal no reinado de D. Duarte. Assistiu j ao conclio de Basileia, em 1435, e nesse mesmo ano proferiu uma orao em Bolonha, em louvor do papa Eugnio IV. Esteve por vrias vezes em Roma, Frana, Castela e Borgonha, como embaixador especial. Figura grada nas Cortes de D. Afonso V e D. Joo II exerceu os mais altos cargos, sendo membro do Conselho rgio, presidente do Desembargo do Pao e cronista-mr, alm de lhe caber ainda o honroso ttulo de Conde palatino. Faleceu, carregado de anos, nos fins do sculo XV.

    O seu nome aparece muitas vezes confundido com o do poeta e historigrafo Vasco de Lucena, natural de Coimbra e escolar em Paris nos anos de 1454-55, onde obteve a mestria em Artes. Acrescente-se que o quase homnimo no mais voltou a Portugal, passando a

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    servir a Corte de Borgonha, onde disps da proteco da duquesa D. Isabel, de quem foi escudeiro, e de seu filho Carlos o Temerrio. Na parte final da vida ligou-se ao futuro Carlos V, vindo a falecer em Lovaina, a 31 de Dezembro de 1512. A sua biografia, bem traada por Charles Samaran, no permite manter a identidade com o doutor Vasco Fernandes de Lucena que aqui nos ocupa.

    Refere Alexandre Herculano que dele no resta uma s pgina original sobre histria, merecendo esta afirmao ser esclarecida. Quanto ao labor cronstico, ou seja, a reconstituio dos factos histricos ligados ao passado nacional, no subsiste qualquer texto com a marca de Lucena. Mas tal circunstncia no exclui que deixasse pginas de interesse histrico e que a sua actividade cultural tivesse sido fecunda. Escreveu Oraes para a abertura das Cortes de Torres Novas (1438) e de vora (1481) e para as embaixadas que realizou perante Eugnio IV (1435) e Inocncio VIII (1485). A pedido do Infante D. Pedro verteu para portugus a Orao de Plnio e o De Senectute de Ccero; e, por diligncia de D. Joo II, traduziu a terceira das quatro oraes latinas que Jean Jouffroy, Deo de Vergy, pronunciou na corte de D. Afonso V, em 1449-1450, quando veio protestar, em nome dos duques de Borgonha, contra a morte do antigo Regente em Alfarrobeira e a perseguio movida aos seus adeptos e familiares.

    Estamos, pois, em presena de um escritor de reconhecida cultura e que desempenhou, pela sua formao de jurisconsulto e humanista, um papel de relevo na vida portuguesa da segunda metade do sculo XV.

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    2. O CRONISTA A razo por que no redigiu crnicas deve

    encontrar-se, segundo Herculano, na vida pblica de Lucena, que dividiu o tempo em negcios do Estado e misses diplomticas, passando longas pocas ausente do reino. Faltava-lhe a calma necessria para se consagrar ao trabalho historiogrfico que impunha reflexo do esprito e permanncia na Livraria real. Todavia, Jaime Corteso no acredita que o cronista ficasse inactivo durante 15 anos, atribuindo a sua inoperosidade relutncia em aceitar a poltica de sigilo que a Coroa lhe impunha. Lucena no quisera assim extorquir, mutilar ou destruir o alheio labor, defraudando a uns a glria dos feitos e a outros o mrito de os ter perpetuado. Tal circunstncia levou-o a no exercer cabalmente o ofcio, impedindo-o de elaborar crnicas de que o seu talento e cultura se mostravam capazes.

    J no incio deste trabalho se procurou mostrar a dificuldade em aplicar a doutrina do sigilo obra dos cronistas do sculo XV. No caso de Lucena, como consciente defensor da poltica de centralizao rgia, o escolho tese de Jaime Corteso ainda maior, pois no se aceita que o cronista pudesse discordar de uma orientao poltica escala nacional. No quadro temporal de Quatrocentos, no era possvel ao cronista rgio tomar uma atitude contrria ao interesse da Coroa, recusando-se a cumprir as obrigaes do seu cargo. Conhecendo-se, alm disso, a firme determinao de D. Joo II, importa assinalar que teria perdido a sua confiana o funcionrio, por mais elevada que fosse a

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    hierarquia, cujo comportamento desse origem a qualquer dvida.

    Apenas duas razes permitem uma explicao para o facto: ou o original dos seus trabalhos se perdeu, o que nenhuma fonte histrica permitiu ainda aventar; ou a idade e os encargos cortesos no deixaram tempo a Lucena para se dedicar ao ofcio historial. A ltima explicao parece adequada, tendo-se em conta a idade do cronista, a rondar os oitenta anos, quando tomou posse do cargo, alm da sua presena no Conselho rgio e Desembargo do Pao. No seriam cargos a mais para um ancio que no soubera ou no pudera recusar a guarda do arquivo rgio? A idade parece ser a nica justificao para que Lucena no continuasse a obra de Zurara como cronista oficial. Alis, esse labor foi confiado, desde 1490, a Rui de Pina, cujo nome teve sem dvida o aprazimento daquele, tanto mais que sete anos depois lhe sucedeu na efectividade da funo. Tal circunstncia permite manter como vlida a posio de Herculano quanto ao labor cronstico de Vasco Fernandes de Lucena.

    3. ACTIVIDADE CULTURAL Mas o facto de no ter redigido Crnicas no impede

    de considerar a sua restante produo cultural, que contm pginas de indiscutvel valor histrico.

    No seu entender, a histria devia ser encarada na lio ciceroniana de mestra da vida, como espelho de notveis aces e fonte de ensinamento. Tudo o que fosse matria histrica devia traduzir a elevao de feitos

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    hericos e moralizantes. Para Lucena, a chave do futuro impunha o conhecimento do passado como ideal de vida e forma de sabedoria humana. Nisto se patenteia a influncia que nele exerceram Ccero e Plnio, assim como a concepo largamente humanstica que domina o seu pensamento.

    So em pequeno nmero as referncias histria portuguesa que se vislumbram nas duas Orationes j mencionadas, ambas notveis pela elegncia do estilo e pela riqueza do lxico, atributos que permitem considerar o seu autor como um dos primeiros clssicos da lngua portuguesa. A obra de Lucena interessa mais histria das ideias polticas no sculo XV, por defender a autoridade rgia contra os interesses senhoriais. No estertor da Europa medieval, a fora dos Estados aparece como a nica via de governo eficiente para o bem dos povos. Polla ley & polla grey, tal era a divisa de D. Joo II. Comprova-se tal facto por este monarca ter incumbido o cronista de traduzir a terceira orao de deo de Vergy, proferida em vora a 12 de Janeiro de 1450. Este texto contm a teoria do poder real que o Prncipe Perfeito estava a executar trinta anos mais tarde, constituindo, no dizer de Martim de Albuquerque, uma regra de actuao poltica inteiramente conforme aos objectivos do nosso monarca. Dir-se- que o valor da Orao no pertence a Lucena, que se limitou a traduzir o pensamento do enviado da Borgonha. F-lo, porm, no estilo adequado nova concepo rgia e numa transposio de conceitos que tinha efectiva aplicao poltica centralizadora iniciada em 1481.

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    Pode assim considerar-se Lucena, como jurista formado na escola do Direito cesreo, um excelente transmissor do pensamento joanino que criou em Portugal o Estado moderno.

    BIBLIOGRAFIA

    Jaime Corteso, Do Sigilo Nacional sobre os Descobrimentos, in Lusitnia, vol. I, Janeiro de 1924, pp. 45-81; e em nova edio, A Expanso dos Portugueses no Perodo Henriquino, in Obras Completas de Jaime Corteso, vol. V, Lisboa, 1965, pp. 225-278.

    Alexandre Herculano, Opsculos, tomo V, p. 17. Charles Samaran, Vasco de Lucena la Cour de Bourgogne,

    in Bulletin des tudes Portugaises, tomo V, fasc. 1, Lisboa, 1938, pp. 13-26.

    Humberto Baquero Moreno, A Conspirao contra D. Joo II: O Julgamento do Duque de Bragana, in Arquivos do Centro Cultural Portugus, vol. II, Paris, 1970, pp. 47-103.

    Joaquim Verssimo Serro, A Historiografia Portuguesa, vol. I, Lisboa, 1972, pp. 95-99.

    Martim de Albuquerque, As Regncias na Histria do Direito Pblico e das Ideias Polticas em Portugal, in Portugaliae Historica, vol. I, Lisboa, 1973, pp. 207-210.

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    V / RUI DE PINA

    1. VIDA E OBRA Rui de Pina nasceu na dcada de 1450, na cidade da

    Guarda, terra dos seus familiares a que sempre ficou ligado pelo sangue e pela fortuna. Proveio o seu valimento da amizade do prncipe D. Joo, que o teria introduzido na Corte e fez dele, ainda no tempo de D. Afonso V, pessoa da confiana rgia. Com a ascenso ao trono do seu protector, Rui de Pina fez parte de misses diplomticas em Castela (1482) e Roma (1484), voltando ao reino vizinho em Maro de 1493, quando do conflito gerado pela viagem de Colombo e que veio a traduzir-se no acordo de Tordesilhas. Como secretrio de D. Joo II, acompanhou-o nas suas deslocaes e assistiu-lhe na morte, em Alvor, tendo aberto e lido o testamento do monarca.

    To dedicado se mostrou ao Prncipe Perfeito que seria natural que viesse a perder a influncia palaciana com a realeza de D. Manuel. To no sucedeu, pois o ofcio de cronista, que j desempenhava de maneira privada desde 1490, foi-lhe conferido em 1497, a ttulo

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    efectivo, pelo novo rei, que lhe concedeu vrias mercs na serra da Estrela e na regio da Guarda. Pina devia ser um homem extremamente hbil, pois no precisava de renegar o antigo protector para obter as boas graas do Venturoso. Na Corte manuelina viria a decorrer a sua vida de escritor e de guarda da livraria e do arquivo rgios. O nmero das suas obras permite aceitar que teve existncia trabalhosa e de que foi digno da confiana nele depositada. Carregado de anos, veio a falecer antes de 18 de Novembro de 1522, tendo conseguido que o cargo de cronista fosse transmitido a seu filho Ferno de Pina, j nomeado por carta rgia de 30 de Abril de 1523.

    O seu labor de cronista estende-se ao longo de trinta anos, tendo composto as crnicas de D. Duarte, D. Afonso V e D. Joo II e, com fortes razes, as de todos os reis da primeira dinastia at D. Afonso IV. Deixou ainda materiais para a Crnica de D. Manuel, que foi composta, quarenta anos mais tarde, por Damio de Gis. Deve-se-lhe, enfim, uma Relao sobre o reino do Congo, de recente publicao, e vrias epstolas sobre temas da Expanso portuguesa. De tudo se pode concluir que foi um escritor operoso e que abriu largas perspectivas no campo da historiografia nacional.

    A Chronica dElRey D. Affonso V constitui, por ordem cronolgica, o seu primeiro trabalho, que comeou ainda a elaborar por ordem de D. Joo II. Seguiu-se a Chronica deste monarca, cujo incio deve ser posterior a 1495, pois a elevao que nela traa de um Prncipe to perfeito, mais do que a narrativa visual, mostra a evocao saudosa do rgio protector. Sabe-se que os dois manuscritos estavam concludos em Maro

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    de 1504, o que levou D. Manuel a atribuir a Pina uma tena de trinta mil ris. S depois deu incio Chronica do Senhor Rey D. Duarte, declarando no respectivo prlogo que apenas faltava aquela obra para perfazer as crnicas dos quatro primeiros reis da dinastia de Avis. Finalmente, na fase posterior a 1504, elaborou ou retocou as crnicas de D. Afonso Henriques a D. Afonso IV.

    Estranha-se que estes manuscritos no fossem logo dados ao prelo e que s nos fins do sculo XVIII, por diligncia do Abade Correia da Serra e o patrocnio da Academia Real das Cincias, tivessem sado na Colleco de Livros Ineditos de Historia Portuguesa (tomos I-II, 1790-91). Ter de concluir-se que a Coroa no estava ainda interessada na divulgao dos antigos feitos rgios, pois s nos meados do sculo XVI que se espalhou essa tendncia no ambiente laudatrio do Renascimento portugus. Nada obstava a que a obra de Rui de Pina fosse ento confiada ao prelo, como sucedeu com a Crnica de D. Joo II de Garcia de Resende (1544) e a Crnica do Felicissimo Rei D. Manuel de Damio de Gis (1566). Mas, alm de no haver clima propcio para a edio das crnicas de D. Duarte e D. Afonso V, evidente que a Coroa tinha maior interesse em distinguir a histria dos reis mais prximos.

    Deu-se assim o consciente olvido de Rui de Pina, que no apenas atingiu a sua probidade de cronista, como os seus familiares. Esse descrdito pode explicar o silncio a que foram votados os seus manuscritos, que levaram mais de dois sculos a sair da penumbra. To forte se manifestou essa tendncia, que deu origem a um longo processo histrico para o qual a investigao e a

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    crtica no encontraram ainda a justa soluo. Nenhum outro caso de originalidade textual deixou marcas to profundas na cultura portuguesa.

    2. PLAGIADOR DE FERNO LOPES ? Deve-se a Damio de Gis, no captulo

    XXXVIII da IV parte da Crnica do Rei D. Manuel, um severo juzo quanto probidade de Rui de Pina. No que respeita histria dos reis da primeira dinastia, o cronista ter-se-ia servido dos manuscritos de Ferno Lopes, retocando o texto e afeioando-o ao seu estilo. Haveria, pois, manifesta usurpao de obra alheia, tanto mais que o primeiro cronista afirmara em vrios passos da Crnica de D. Joo I que havia composto a histria dos restantes monarcas afonsinos. Para mais, Rui de Pina tambm no fora original na descrio dos feitos rgios de D. Duarte e D. Afonso V, que eram da lavra de Zurara at narrao da tomada de Arzila e Tnger, em 1471. A nica obra que podia sem descrdito ser-lhe atribuda, no testemunho de Damio de Gis, era a histria de D. Joo II, sendo tudo o mais produto do esforo alheio.

    O quadro acusatrio de Damio de Gis aponta, pois, para a existncia de uma Crnica Geral do Reino, cobrindo os doze reinados at D. Afonso V, sendo de Lopes a totalidade dessa obra, excepto a parte referente ao episdio de Tnger, em 1437, da indiscutvel autoria de Zurara. Ora, a crtica posterior j demonstrou que Ferno Lopes no excedeu o ano de 1411 na sua descrio dos feitos de D. Joo I, sendo a terceira parte

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    dessa obra, referente conquista de Ceuta, da pena do segundo cronista. To pouco se prova que Lopes tivesse redigido a Crnica de D. Duarte, que sem discusso de Rui de Pina. Como presumvel delito literrio fica assim por resolver o problema das primeiras crnicas, nico material de que Pina poderia indevidamente ter-se servido. Nestes termos pergunta-se: houve ou no plgio da obra de Ferno Lopes? E, a provar-se a crtica, como deve interpretar-se o facto luz cultural do tempo?

    Quanto ao primeiro quesito, no h prova concreta da utilizao, ainda que a maioria dos autores creia no testemunho de Gis. O prestgio do velho cronista, que as correntes liberais do sculo XIX elevaram como o grande padro da Idade Mdia portuguesa, no era de molde a consentir que a sua fama de escritor fosse nimbada. Conhece-se o parecer implacvel de Alexandre Herculano, que atribui a perda ou aniquilamento das primeiras crnicas a Rui de Pina, que considera o pobre corvo de D. Joo II que quis adornar-se com as brilhantes penas de pavo do Homero de D. Joo I (Opsculos, tomo V, p. 21). Autores de crdito seguro, para apenas referir Braamcamp Freire e Aubrey Bell, tambm no escaparam tendncia acusatria, vendo Rui de Pina a manusear os velhos escritos na Livraria Real, e, emenda aqui, rasoira acol, a adapt-los ao seu estilo histrico. No haveria que duvidar desta apropriao, tanto mais que o testemunho de Lopes permitia crer no plano de uma histria geral dos reis portugueses de que fora autor.

    A crtica de Gis assenta numa forte base de rancor pessoal contra o cronista manuelino e seu filho Ferno

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    de Pina. Chega mesmo a acusar o cronista de homem venal: pello que he necessario que escreva eu aqui ho que sobreste negoio passa, pois me a m coube ho trabalho, & os aneis de pedras preciosas a Rui de Pina, que lhe Afonso dalbuquerque, mandava pera screuer com melhor vtade hos memoraueis feitos que elle fez na ndia... (Crnica do Felicissimo Rei D. Manuel, parte IV captulo XXXVII). mais do que evidente a falta de serenidade do acusador, cuja argumentao, alm de confusamente expressa, no convence por completo.

    O facto de Ferno Lopes ter afirmado que compusera as crnicas, no significa que o houvesse feito, podendo limitar-se a reunir elementos para uma obra de conjunto que era sua inteno redigir. Na edio crtica de 1950 Crnica de D. Joo II, Alberto Martins de Carvalho viu o problema com lucidez ao referir a falta de provas que havia para acusar Rui de Pina e o sentido a dar aos conceitos de ordenamento e composio quanto s crnicas do sculo XV. A utilizao de papis ou rascunhos sobre a matria no correspondia forosamente a um plgio, demonstrando Rodrigues Lapa que um homem da formao de Rui de Pina no plagiava Lopes no caso de copiar os seus apontamentos.

    Se o fez, na realidade, o seu gesto ter de ser considerado benemrito, na medida em que salvou da perda total um manuscrito de que no havia decerto outras cpias. Servindo-se da fonte de Ferno Lopes por encargo rgio, o cronista estava no seu direito de compor uma narrao diferente e de completar a srie de crnicas dos reis passados. No dever por tal ser objecto de crtica, pois redigiu ou completou um acervo

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    de obras que primam pela antiguidade dos seus informes. Mas o exame estilstico das discutidas crnicas, na comparao simultnea com a obra conhecida de Lopes e Pina, demonstra que no h identidade de estilo com a primeira, mas, do contrrio, evidente paralelismo com a segunda. O que permite concluir que houve uma redaco integral da parte do autor em causa, que procurou redigir crnicas novas e, portanto, sem qualquer nexo com o manuscrito que lhe teria servido de base.

    De qualquer forma, no a histria dos primeiros monarcas que cobre de justo prestgio o nome de Rui de Pina, mas as de D. Duarte, D. Afonso V e D. Joo II que contm a marca do seu valor histrico e literrio. neste conjunto da sua produo que a crtica deve assentar, acabando de vez com uma acusao que visa mais a pessoa do cronista do que a sua obra. O que compete realmente examinar so as trs crnicas cujo registo cobre os anos de 1433 a 1495. esse o mundo histrico de Rui de Pina e que, como tal, reflecte a sua capacidade de escritor.

    3. O HISTORIADOR Importa ter em conta que o historiador viveu numa

    poca em que o labor histrico comeava a ser um carrego de exaltao do poder real. Tendncia laudativa, no cntico de glrias ligadas realeza e no silncio dos factos que pudessem comprometer a euforia do tempo vivido. A histria, que havia sido em Ferno Lopes a clara certidom da verdade e em

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    Zurara uma exaltao do Infante D. Henrique e da nobreza senhorial, torna-se no quarto cronista de Avis um ofcio ao servio da vontade do monarca.

    Tenha-se em conta os trs prlogos. Na Crnica dElRey D. Affonso V, o autor elogia o valor da histria como meio cultural de valorizar o homem. Procede ao elogio dos livros que, apesar de serem conselheiros mortos, ajudavam a fugir de paixes vs e davam bons ensinamentos para se alcanar a verdade das coisas. A histria um vivo espelho dessa tendncia, escreve Rui de Pina, que conduz glria e acende excelentes virtudes e prosperas empresas no corao humano. Recordar as grandes obras de um monarca servia de lio aos vindouros, porque mantinha o conhecimento dos seus feitos. O conceito de Pina claramente bebido na fonte de Ccero, na defesa da histria tica que se impunha divulgar.

    J na Crnica de El-Rei D. Joo II, embora o critrio glorificativo volte a impor-se, o cronista estabelece uma destrina na matria histrica. Nem todas as aces podiam ser objecto de narrao, pois os feitos susceptveis de crtica no eram para relembrar, mas para esquecer. O ofcio historial no podia aceitar baixezas nem situaes medocres. Devia o cronista trazer ao de cima a figura de hum dos melhores Reys do mundo, que fora grande pelas suas virtudes e excelncias. O iderio continua a ser de Ccero, mas o prlogo revela j a tendncia para desmistificar o personagem e fazer de D. Joo II o melhor de todolos mundanos. A idealizao da figura evocada cede, em muitos pontos, nsia do cronista que, sem deixar de

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    considerar o monarca um ente rgio, pretende humaniz-lo no tratamento histrico.

    O prlogo que menos serve para comprovar o seu conceito de histria o da Crnica do Senhor Rey D. Duarte, apesar desta obra ser a ltima de Rui de Pina. A, o cronista d largas sua imaginao literria, considerando a histria como mui liberal Princeza que dava fora de nimo aos seus leitores. H, todavia, um ponto que merece realce, quando o cronista entende que o ofcio histrico impunha onestidade e razam para atribuir o mrito a quem dele era digno. Pensava no caso dos reis e prncipes que lhe impunham a divida obrigatoria de exaltar devidamente os seus feitos.

    A histria de Rui de Pina oscila, desta forma, entre os prismas memorativo e tico, traduzindo conceitos prprios da atmosfera clssica que comeava a impor-se em Portugal. O autor busca a verdade dos factos, por meio de documentos oficiais e de testemunhos privados, procedendo narrao segundo um critrio objectivo e temporal. Mas o seu quadro de apreciao varia com a poca, na tendncia natural, medida que recua no tempo, para idealizar situaes e restringir o campo narrativo.

    A Crnica de D. Duarte quase toda consagrada aos preparativos e expedio de Tnger, o que prova que este acontecimento afectou a vida nacional e deixou marcas na histria posterior. Depois de tratar da elevao do monarca e das primeiras medidas para dar ordem administrao pblica, o cronista debrua-se na participao lusa no conclio de Basileia e na obteno da bula de Cruzada como prlogo daquela funesta jornada. Pina constitui a principal fonte para o

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    conhecimento dessa efemride e da emoo que provocou no pas o cativeiro do Infante D. Fernando. Basta referir que vinte e trs dos quarenta e quatro captulos da obra so dedicados matria.

    O seu retrato de D. Duarte corresponde figura que vive no remorso de ter consentido na expedio: E a lembrana desta culpa lhe deu tanta pena e tormento, que seu corao com rebates de dor, que continuadamente recebia, se apostemou em tanto grau de que acabou sua vida. O testemunho de Rui de Pina, apresentando D. Duarte como um rei sem vontade prpria e manobrado pela rainha D. Leonor e pelo Infante D. Henrique, sofreu em 1932 uma severa crtica por parte de Domingos Maurcio Gomes dos Santos, que procurou demonstrar as responsabilidades do monarca na empresa de Tnger, que desejou e patrocinou, dando-lhe todo o seu decidido, perseverante e eficaz apoio.

    Assim se ps termo lenda do rei misantropo, quase ablico, vivendo apenas para o estudo e a reflexo, cujo reinado fora dirigido por vontades alheias, como a tradio que encontrou eco na obra de Oliveira Martins faria supor. Alis, o prprio cronista apresenta o rei como homem desenvolto e costumado em todallas boas manhas, bom cavaleiro e lutador. Decerto a tragdia de Tnger h-de t-lo afectado na medida em que, por ter orientado o plano da expedio, se julgava culpado da desgraa de D. Fernando. Mas no se pode manter nele o retrato do monarca contemplativo e sonhador, ignorando as qualidades de homem de aco que patenteou durante o seu governo.

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    A Crnica de D. Afonso V surge como uma grande obra pelas propores e matria histrica. Compreende-se o facto, na medida em que, ao longo de duzentos e treze captulos, se regista um reinado de quarenta e trs anos frteis em acontecimentos. tanto a histria interna (o perodo da Regncia, Alfarrobeira) como as guerras que o monarca teve em frica, o conflito por causa do trono de Castela e a viagem a Frana para obter a aliana de Lus XI. A expanso ultramarina ocupa um lugar secundrio, ainda que o Infante D. Henrique surja muitas vezes a conduzir os acontecimentos. Deve elogiar-se em Rui de Pina a dimenso que ofereceu obra, raramente cortando o fio dos acontecimentos e procurando dar sempre relevo aos de maior projeco.

    O cronista v em D. Afonso V um rei-cavaleiro para quem o uso das almas constituiu a principal ocupao. A ndole religiosa levou D. Afonso V a tomar atitudes de cruzado, pondo os interesses da Cria romana muitas vezes acima da poltica do reino. Mas no deixa tambm de o elogiar como prncipe culto, primeiro Rey destes Reynos que ajuntou bos livros e fez livraria em seus paos) (Ibidem, captulo CCXIII). O facto de ter conhecido o monarca permite a Rui de Pina traar um retrato vivo do personagem, talvez num dos primeiros textos caracteriolgicos da historiografia nacional.