Crônicas de Luis Fernando Veríssimo e Fernando Sabino

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LUIZ FERNANDO VERÍSSIMO FERNANDO SABINO Luiz Fernando Veríssimo Luis Fernando Veríssimo nasceu em 26 de setembro 1936, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Filho do grande escritor Érico Veríssimo, iniciou seus estudos no Instituto Porto Alegre, tendo passado por escolas nos Estados Unidos quando morou lá, em virtude de seu pai ter ido lecionar em uma universidade da Califórnia, por dois anos. Voltou a morar nos EUA quando tinha 16 anos, tendo cursado a Roosevelt High School de Washington, onde também estudou música, sendo até hoje inseparável de seu saxofone. É casado com Lúcia e tem três filhos. Jornalista, iniciou sua carreira no jornal Zero Hora, em Porto Alegre, em fins de 1966, onde começou como copydesk mas trabalhou em diversas seções ("editor de frescuras", redator, editor nacional e internacional). Além disso, sobreviveu um tempo como tradutor, no Rio de Janeiro. A partir de 1969, passou a escrever matéria assinada, quando substituiu a

Transcript of Crônicas de Luis Fernando Veríssimo e Fernando Sabino

LUIZ FERNANDO VERÍSSIMO

FERNANDO SABINO

Luiz Fernando

Veríssimo

Luis Fernando Veríssimo nasceu em 26 de setembro 1936,

em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Filho do grande escritor

Érico Veríssimo, iniciou seus estudos no Instituto Porto

Alegre, tendo passado por escolas nos Estados Unidos

quando morou lá, em virtude de seu pai ter ido lecionar em

uma universidade da Califórnia, por dois anos. Voltou a

morar nos EUA quando tinha 16 anos, tendo cursado

a Roosevelt High School de Washington, onde também

estudou música, sendo até hoje inseparável de seu saxofone.

É casado com Lúcia e tem três filhos.

Jornalista, iniciou sua carreira no jornal Zero Hora, em Porto

Alegre, em fins de 1966, onde começou como copydesk mas

trabalhou em diversas seções ("editor de frescuras", redator,

editor nacional e internacional). Além disso, sobreviveu um

tempo como tradutor, no Rio de Janeiro. A partir de 1969,

passou a escrever matéria assinada, quando substituiu a

coluna do Jockyman, na Zero Hora. Em 1970 mudou-se para

o jornal Folha da Manhã, mas voltou ao antigo emprego em

1975, e passou a ser publicado no Rio de Janeiro também. O

sucesso de sua coluna garantiu o lançamento, naquele ano,

do livro "A Grande Mulher Nua", uma coletânea de seus

textos.

Participou também da televisão, criando quadros para o

programa "Planeta dos Homens", na Rede Globo e, mais

recentemente, fornecendo material para a série "Comédias

da Vida Privada", baseada em livro homônimo.

Escritor prolífero, são de sua autoria, dentre outros, O

Popular, A Grande Mulher Nua, Amor Brasileiro, publicados

pela José Olympio Editora; As Cobras e Outros Bichos, Pega

pra Kapput!, Ed Mort em "Procurando o Silva", Ed Mort em

"Disneyworld Blues", Ed Mort em "Com a Mão no Milhão", Ed

Mort em "A Conexão Nazista", Ed Mort em "O Seqüestro do

Zagueiro Central", Ed Mort e Outras Histórias, O Jardim do

Diabo, Pai não Entende Nada, Peças Íntimas, O Santinho,

Zoeira , Sexo na Cabeça, O Gigolô das Palavras, O Analista

de Bagé, A Mão Do Freud, Orgias, As Aventuras da Família

Brasil, O Analista de Bagé,O Analista de Bagé em

Quadrinhos, Outras do Analista de Bagé, A Velhinha de

Taubaté, A Mulher do Silva, O Marido do Doutor Pompeu,

publicados pela L&PM Editores, e A Mesa Voadora, pela

Editora Globo e Traçando Paris, pela Artes e Ofícios.

Além disso, tem textos de ficção e crônicas publicadas nas

revistas Playboy, Cláudia, Domingo (do Jornal do Brasil),

Veja, e nos jornais Zero Hora, Folha de São Paulo, Jornal do

Brasil e, a partir de junho de 2.000, no jornal O Globo.

Na opinião de Jaguar "Veríssimo é uma fábrica de fazer

humor. Muito e bom. Meu consolo — comparando meu

artesanato de chistes e cartuns com sua fábrica — era que,

enquanto eu rodo pelaí com minha grande capacidade ociosa

pelos bares da vida, na busca insaciável do prazer (B.I.P.), o

campeão do humor trabalha como um mouro (se é que os

mouros trabalham). Pensava que, com aquela vasta

produção, ele só podia levantar os olhos da máquina de

escrever para pingar colírio, como dizia o Stanislaw Ponte

Preta. Boemia, papos furados pela noite a dentro, curtir

restaurantes malocados, lazer em suma, nem pensar. De

manhã à noite, sempre com a placa "Homens Trabalhando"

pendurada no pescoço."

Botecos

Lixo

O apito

O homem que vivia anedotas

Ressaca

Alívio

Gaúcho que é gaúcho

Incidente na casa do ferreiro

O desafio

O popular

Os moralistas

Povo

Terrorismo

O Casamento

O analista de Bagé

Clic

Botecos

Tinha uma mania: colecionava botecos. Não os freqüentava, apenas. Era

um estudioso.

Gostava de descobrir botecos e recomendar para os amigos.

Ultimamente vinha se especializando - um refinamento da sua paixão -

no que chamava

de botecos asquerosos. Daqueles que nenhum fiscal da Saúde Pública

incomoda porque não passa pela porta sem desmaiar.

Seu rosto se iluminava na frente de um boteco asqueroso recém-

descoberto.

Não resistia e entrava. Depois contava para os amigos.

- Uma glória. Sabe ovo boiando em garrafão com água?

- Repelentes, é?

As galinhas não os receberiam de volta. A própria mãe!

Descrevia o boteco com carinhoso entusiasmo. - E que moscas. Que

moscas!

Só não tinha paciência com o falso sórdido. Alguns botecos assumiam

suas privações como uma declaração de falta de princípios.

Ele preferia o sórdido inconsciente, o sórdido autêntico.

Principalmente o sórdido pretensioso.

Uma vez contara, extasiado, uma cena.

Terminara de comer uma inominável

almôndega, pedira um palito para o dono do boteco e desencadeara uma

busca

barulhenta e mal-humorada,

com o dono procurando por toda a parte e gritando para a mulher:

- Cadê o palito?

Finalmente o dono encontrara o palito, atrás da orelha,

e o oferecera. Ele se emocionava só de contar.

Os amigos, sabendo da sua paixão, mantinham-se

atentos para botecos sórdidos

que pudessem interessá-lo. Muitos ele já conhecia.

Um que tem uma Virgem Maria pintada num espelho com uma

barata esmigalhada de tapa-olho? Vou seguido.

A cachaça é tão braba que tem bula com contra-indicação.

Outro dia lhe trouxeram a notícia do pior dos botecos.

Não era um boteco de quinta categoria. Era um boteco de última

categoria.

Ficava no limite entre a vida inteligente, e a vida orgânica. Ele precisava

ir lá verificar.

Foi no mesmo dia. Ficou estudando o boteco de longe, antes de se

aproximar.

Tinha um garoto na porta do boteco.

A função do garoto era atacar cachorros sarnentos.

Quando passava um cachorro sarnento

o garoto o enxotava - para dentro do boteco!

Ele atravessou a rua na direção do boteco com aquele brilho no olhar que

tem o

pesquisador no limiar da grande revelação, ou o santo antes do doce

martírio.

O texto acima foi extraído da revista "Veja", Editora Abril, edição de 12-

12-84.

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Lixo

Luis Fernando Veríssimo

Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a

primeira vez que se falam

— Bom dia...

— Bom dia.

— A senhora é do 610.

— E o senhor do 612.

— É.

— Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...

— Pois é...

— Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...

— O meu quê?

— O seu lixo.

— Ah...

— Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...

— Na verdade sou só eu.

— Mmmm. Notei também que o senhor usa muita comida em lata.

— É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei

cozinhar...

— Entendo.

— A senhora também...

— Me chame de você.

— Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns

restos

de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim...

— É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes.

Mas como moro sozinha, às vezes sobra...

— A senhora... Você não tem família?

— Tenho, mas não aqui.

— No Espírito Santo.

— Como é que você sabe?

— Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.

— É. Mamãe escreve todas as semanas.

— Ela é professora?

— Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?

— Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.

— O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.

— Pois é...

— No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.

— É.

— Más notícias?

— Meu pai. Morreu.

— Sinto muito.

— Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.

— Foi por isso que você recomeçou a fumar?

— Como é que você sabe?

— De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras

de cigarro amassadas no seu lixo.

— É verdade. Mas consegui parar outra vez.

— Eu, graças a Deus, nunca fumei.

— Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...

— Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.

— Você brigou com o namorado, certo?

— Isso você também descobriu no lixo?

— Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora.

Depois, muito lenço de papel.

— E, chorei bastante. Mas já passou.

— Mas hoje ainda tem uns lencinhos...

— É que eu estou com um pouco de coriza.

— Ah.

— Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.

— É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.

— Namorada?

— Não.

— Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até

bonitinha.

— Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.

— Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer

que ela volte.

— Você já está analisando o meu lixo!

— Não posso negar que o seu lixo me interessou.

— Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria

de conhecê-la. Acho que foi a poesia.

— Não! Você viu meus poemas?

— Vi e gostei muito.

— Mas são muito ruins!

— Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado.

Eles só estavam dobrados.

— Se eu soubesse que você ia ler...

— Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando.

Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?

— Acho que não. Lixo é domínio público.

Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público.

O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros.

O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?

— Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...

— Ontem, no seu lixo..

— O quê?

— Me enganei, ou eram cascas de camarão?

— Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.

— Eu adoro camarão.

— Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...

— Jantar juntos?

— É.

— Não quero dar trabalho.

— Trabalho nenhum.

— Vai sujar a sua cozinha.

— Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.

— No seu lixo ou no meu?

Texto extraído do livro “O Analista de Bagé”, L&PM Editores – Porto

Alegre, 1981, pág. 83.

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O Apito

Luis Fernando Veríssimo

Tudo o que o Mafra dizia, o Dubin duvidava. Eram inseparáveis, mas

viviam brigando.

Porque o Mafra contava histórias fantásticas e o

Dubin sempre fazia aquela cara de conta outra.

-- Uma vez...

-- Lá vem história.

-- Eu nem comecei e você já está duvidando?

-- Duvidando, não. Não acredito mesmo.

-- Mas eu nem contei ainda!

-- Então conta.

-- Uma vez eu fui a um baile só de pernetas e...

-- Eu não disse? Eu não disse?

O Mafra às vezes fazia questão de provar as suas histórias para o Dubin.

-- Dubin, eu sou ou não sou pai-de-santo honorário?

O Dubin relutava, mas confirmava.

-- É.

Mas em seguida arrematava:

-- Também, aquele terreiro está aceitando até turista argentino...

Então veio o caso do apito. Um dia, numa roda, assim no mais , o Mafra

revelou:

-- Tenho um apito de chamar mulher.

-- O quê?

-- Um apito de chamar mulher.

Ninguém acreditou. O Dubin chegou a bater com

a cabeça na mesa, gemendo:

-- Ai meu Deus! Ai meu Deus!

-- Não quer acreditar, não acredita. Mas tenho.

-- Então mostra.

-- Não está aqui. E aqui não precisa apito. É só dizer "vem cá".

O Dubin gesticulava para o céu, apelando por justiça.

-- Um apito de chamar mulher! Só faltava essa!

Mas aconteceu o seguinte: Mafra e Dubin foram juntos numa viagem

(Mafra queria provar ao Dubin que tinha mesmo terras na Amazônia,

uma ilha que mudava de lugar conforme as cheias) e o avião caiu em

plena selva.

Ninguém se pisou, todos sobreviveram e depois de uma semana a

frutas e água foram salvos pela FAB.

Na volta, cercados pelos amigos, Mafra e Dubin contaram sua aventura.

E Mafra, triunfante, pediu para Dubin:

-- Agora conta do meu apito.

-- Conta você -- disse Dubin, contrafeito.

-- O apito existia ou não existia?

-- Existia.

-- Conta, conta -- pediram os outros.

-- Foi no quarto ou quinto dia. Já sabíamos que ninguém morreria.

A FAB já tinha nos localizado. O salvamento era só uma questão de

tempo.

Então, naquela descontração geral, tirei o meu apito do bolso.

-- O tal de chamar mulher?

-- Exato. Estou mentindo, Dubinzinho?

-- Não -- murmurou Dubinzinho.

-- Soprei o apito e pimba.

-- Apareceram mulheres?

-- Coisa de dez minutos. Três mulheres.

Todos se viraram para o Dubin incrédulos.

-- É verdade?

-- É -- concedeu Dubin.

Fez-se um silêncio de puro espanto. No fim do qual Dubin falou outra

vez:

-- Mas também, era cada bucho!

A crônica acima foi extraída do livro "Outras do analista de Bagé", L &

PM Editores - Porto Alegre, 1982, pág. 15.

O Homem que Vivia Anedotas

Luis Fernando Veríssimo

— Sempre deu tudo errado comigo. Desde criança.

— Compreendo.

— Na escola, não conseguia prestar atenção em nada.

Estava sempre pensando em mulher nua.

— Espera aí. Você é…

— Sou. O Juquinha. Todo mundo ficou sabendo das minhas histórias, virei

anedota.

— Mas as histórias até que eram engraçadas.

— Engraçadas para quem não foi expulso da escola, como eu.

Meus pais me mandaram a um médico para curar minha obsessão. Um

psiquiatra.

— Não foi esse o médico que...

— É. Começou a me mostrar desenhos. Uma cadeira.

Um chapéu. Um telefone. Pediu para eu me concentrar.

— E aí você disse…

— Eu disse: "Me concentrar como, se o senhor não pára de mostrar

figurinha erótica?".

O senhor está rindo porque não foi com o senhor. Fiquei anos em

tratamento.

— Desculpa. Eu não estava rindo de você. Continue.

— Como não tinha educação, fui ser mecânico. Não deu certo.

— Por quê?

— Sabe aquela história do cara que acendeu um fósforo dentro do tanque

do carro para ver se tinha gasolina, e tinha?

— Foi você?

— Foi. No hospital, tiveram que me reconstituir.

Pegaram as partes e juntaram de novo. Tudo bem, só que…

— Só que para ouvir direito, você precisava levantar o braço! Essa é

ótima.

— Ótima porque não foi com o senhor.

— Desculpe. Foi horrível.

— Quando saí do hospital comprei uma motocicleta.

Uma noite na estrada, vi os holofotes de duas motocicletas que

vinham em sentido contrário. Só por farra, resolvi passar com a minha

entre as duas.

— E era um automóvel. Essa eu conheço.

— Voltei para o hospital. Tiraram radiografias. Eu estava péssimo.

Quando o médico disse quanto ia custar o tratamento, eu disse que não

podia pagar.

— E ele?

— Ele disse que por um preço módico mandava retocar as radiografias.

— Grande! Quer dizer, horrível. E seus pais?

— Está vendo esse relógio? Está na família há gerações.

— É uma beleza.

— No seu leito de morte, poucos minutos antes de expirar, papai me

vendeu.

— Boa, boa. Quer dizer, triste, triste.

— Me casei. Não durou muito. Minha mulher estava convencida que era

um refrigerador.

— Realmente, não dava para continuar vivendo com uma louca.

— O pior não era isso. O pior é que ela dormia com a boca aberta e a luz

não

me deixava dormir. O senhor está rindo outra vez.

— Não posso me conter. É que você teve uma vida engraçada.

— Engraçada? Trágica. Tudo comigo deu errado. As pessoas riem de

sádicas.

— Você tem razão.

— Para esquecer tudo, fui fazer uma viagem. Quando o avião estava a

dez mil metros de altura,

ouviu-se uma voz que dizia: "Isto é uma gravação. Este avião não tem

piloto.

É dirigido por um sistema totalmente automático que substitui com

vantagem

o controle humano. Não há com o que se preocupar.

O sistema foi exaustivamente testado é absolutamente

aprova de falhas, de falhas, de falhas…".

— O avião caiu e foi assim que você veio parar aqui?

— Não, São Pedro. O avião caiu no mar, eu sobrevivi e passei uma

temporada numa ilha deserta com uma mulher. Só que a mulher era a

Betty Friedman.

— Acho que já vi esse cartum.

— Pois é. Aí fui salvo e ainda passei por várias anedotas até resolver me

matar.

Não conseguia fazer anda certo. Só restava o suicídio. Dei um tiro na

cabeça.

— E aqui está você.

— Não. Errei o tiro. Depois fiquei tão contente de ainda estar vivo que

dei um tiro para o ar.

Aí acertei na cabeça. E aqui estou eu. Livre, finalmente, das anedotas. O

senhor ainda está rindo!

— Meu filho você sabe quantas anedotas de São Pedro na porta do céu

existem?

— Não, São Pedro. Por favor. Não!

— O que é que eu posso fazer? Esta é uma delas. Houve um maremoto

em Copacabana,

morreu todo mundo e nós estamos com o céu lotado.

— Lotado? Mas só a população de Copacabana lota o céu?

— É que tinha os argentinos.

Você só vai encontrar lugar no Purgatório, e na lista de espera.

Texto extraído do livro "Sexo na Cabeça", L&PM Editores - Porto

Alegre, 1982, pág. 15.

Ressaca

Luis Fernando Veríssimo

Hoje, existem pílulas milagrosas, mas eu ainda sou do tempo das grandes

ressacas.

As bebedeiras de antigamente eram mais dignas, porque você as tomava

sabendo

que no dia seguinte estaria no inferno. Além de saúde era preciso

coragem.

As novas gerações não conhecem ressaca,

o que talvez explique a falência dos velhos valores. A ressaca era a

prova de que a retribuição

divina existe e que nenhum prazer ficará sem castigo.

Cada porre era um desafio ao céu e às suas feras. E elas vinham: Náusea,

Azia, Dor de Cabeça,

Dúvidas Existenciais - golfadas. Hoje, as bebedeiras não têm a mesma

grandeza.

São inconseqüentes, literalmente. Não é que eu fosse um bêbado, mas me

lembro

de todos os sábados de minha adolescência como uma luta desigual entre

a cuba-libre e o meu instinto de autopreservação. A cuba-libre ganhava

sempre.

Já dos domingos me lembro de muito pouco, salvo a tontura e o desejo de

morte.

Jurava que nunca mais ia beber, mas, antes dos trinta, "nunca mais" dura

pouco.

Ou então o próximo sábado custava tanto a chegar que parecia mesmo

uma eternidade.

Não sei o que a cuba-libre fez com meu organismo, mas até hoje quando

vejo uma

garrafa de rum os dedos do meu pé encolhem.

Tentava-se de tudo para evitar a ressaca. Eu preferia um Alka-Seltzer e

duas aspirinas antes de dormir.

Mas no estado em que chegava nem sempre conseguia completar a

operação.

Às vezes dissolvia as aspirinas num copo de água, engolia o Alka-Seltzer

e ia

borbulhando para a cama, quando encontrava a cama. Mas os métodos

variavam.

Por exemplo:

Um cálice de azeite antes de começar a beber

-- O estômago se revoltava, você ficava doente e desistia de beber.

Tomar um copo de água entre cada copo de bebida

-- O difícil era manter a regularidade. A certa altura, você começava a

misturar a água

com a bebida, e em proporções cada vez menores.

Depois, passava a pedir um copo de outra bebida entre cada copo de

bebida.

Suco de tomate, limão, molho inglês, sal e pimenta -- Para ser tomado no

dia seguinte,

de jejum. Adicionando vodca ficava um bloody-mary,

mas isto era para mais tarde um pouco.

Sumo de uma batata, sementes de girassol e folhas de gelatina verde

dissolvidas em querosene -- Misturava-se tudo num prato pirex forrado

com velhos cartões do sabonete Eucalol. Embebia-se um algodão na

testa e deitava-se

com os pés da ilha de Páscoa. Ficava-se imóvel durante três dias,

no fim dos quais o tempo já teria curado a ressaca de qualquer maneira.

Uma cerveja bem gelada na hora de acordar -- Por alguma razão o

método mais popular.

Canja -- Acreditava-se que uma boa canja de galinha de madrugada

resolveria qualquer problema. Era preciso especificar que a canja era

para tomar,

no entanto. Muitos mergulhavam o rosto no prato e tinham de ser

socorridos às pressas antes do afogamento.

Minha experiência maior era com a cuba-libre, mas conheço outros tipos

de ressaca,

pelo menos de ouvir falar. Você sabia que o uísque escocês que tomara

na noite

anterior era paraguaio quando acordava se sentindo como uma harpa

guarani.

Quando a bebedeira com uísque falsificado era muito grande, você

acordava se

sentindo como uma harpa guarani e no deposito de instrumentos da boate

Catito's em Assunção.

A pior ressaca era de gim.

Na manhã seguinte, você não conseguia abrir os dois olhos ao mesmo

tempo.

Abria um e quando abria o outro, o primeiro se fechava. Ficava com o

ouvido

tão aguçado que ouvia até os sinos da catedral de São Pedro, em Roma.

Ressaca de martini doce: você ia se levantar da cama e escorria para

o chão como óleo. Pior é que você chamava a sua mãe, ela entrava

correndo

no quarto, escorregava em você e deslocava a bacia.

Ressaca de vinho. Pior era a sede. Você se arrastava até a cozinha,

tentava alcançar a garrafa de água e puxava todo o conteúdo

da geladeira em cima de você.

Era descoberto na manhã seguinte imobilizado por hortigranjeiros e

laticínios

e mastigando um chuchu para alcançar a umidade. Era deserdado na

hora.

Ressaca de cachaça. Você acordava sem saber como, de pé num canto do

quarto.

Levava meia hora para chegar até a cama porque se esquecera como se

caminhava:

era pé ante pé ou mão ante mão? Quando conseguia se deitar,

tinha a sensação que deixara as duas orelhas e uma clavícula no canto.

Olhava para cima e via que aquela mancha com uma forma vagamente

humana no teto finalmente se definira. Era o Peter Pan e estava piscando

para você.

Ressaca de licor de ovos. Um dos poucos casos em que a lei brasileira

permite a eutanásia.

Ressaca de conhaque. Você acordava lúcido.

Tinha, de repente, resposta para todos os enigmas do universo.

A chave de tudo estava no seu cérebro.

Devia ser por isso que aqueles homenzinhos estavam tentando

arrombar a sua caixa craniana.

Você sabia que era alucinação, mas por via das dúvidas,

quando ouvia falar em dinamite, saltava da cama ligeiro.

Hoje não existe mais isto. As pessoas bebem, bebem e não acontece

nada.

No dia seguinte estão saudáveis, bem-dispostas e fazem até piadas a

respeito.

De vez em quando alguns dos nossos se encontram e se saúdam em

silêncio.

Somos como veteranos de velhas guerras lembrando os companheiros

caídos e o nosso heroísmo anônimo.

Estivemos no inferno e voltamos, inteiros.

Um brinde.

E um Engov.

Alívio

Luis Fernando Veríssimo

Um homem sente que acordou, mas não consegue abrir os olhos. Tenta

se mexer mas descobre está paralisado. Começa a ouvir vozes.

— Coitado...

— Olha a cara. Parece que está dormindo...

Sente cheiro de velas. Será que...?

Outras vozes:

— É. Descansou.

— Ninguém esperava. Tão saudável.

— Coitado...

As vozes parecem conhecidas. Ele começa a entrar em pânico.

Concentra toda a sua força em abrir os olhos. Não consegue.

Tenta mexer uma das mãos. Um dedo! Nada. Meu Deus. Preciso mostrar

que é um engano,

não morri. Vão enterrar um vivo. Ou será que não houve engano? Morri

mesmo.

Estou ouvindo tudo, sentindo tudo, mas estou morto. Isto é horrível, isto

é...

— Um homem tão bom...

— Grande caráter...

— Que marido.

— Vida exemplar...

O homem fica mais aliviado. Pode estar num velório. Mas,

definitivamente, não é o seu.

Texto extraído do livro "A Mãe do Freud", L&PM Editores - Porto

Alegre, 1985, pág. 75.

Gaúcho que é Gaúcho

Luis Fernando Veríssimo

Gaúcho que é Gaúcho não usa camiseta sem manga a não ser para jogar

basquete.

Gaúcho que é Gaúcho não gosta de canapés, de cebolinhas em conserva

ou de

qualquer outra coisa que leve menos de 30 segundos para mastigar e

engolir.

Gaúcho que é Gaúcho não come suflê.

Gaúcho que é Gaúcho - de agora em diante chamado GQEG - não deixa a

sua

mulher mostrar a bunda pra ninguém. Nem em baile de carnaval. GQEG

não mostra

a sua bunda pra ninguém. Só no vestiário, para outros homens, e assim

mesmo,

se olhar por mais de 30 segundos dá briga.

GQEG só vai ao cinema ver filme do Franco Zefirelli quando a mulher

insiste muito,

e passa todo tempo tentando ver as horas no escuro.

GQEG não gosta

de musical, filme com a Jill Claybourgh ou do Ingmar Bergman.

Prefere filmes com o Charles Bronson.

Diz que ator mesmo era o Spencer Tracy e que dos novos,

tirando Schwartzneger, é tudo veado.

GQEG não vai mais a teatro porque também não gosta que mostrem a

bunda à sua mulher.

Se você quer ver um GQEG no momento mais baixo de sua vida, precisa

vê-lo no ballet.

Na saída ele diz que até o porteiro é veado e que se enxergar mais

alguém de malha justa mata.

Se você não sabe se tem um GQEG dentro de você, faça este teste.

Leia esta série de situações. Estude-as, pense, e depois decida como

você reagiria em cada situação.

A resposta dirá o seu coeficiente de GQEG.

Se pensar muito, nem precisa responder: você não é um GQEG. GQEG

não pensa muito!

SITUAÇÃO 1

Você está num restaurante com nome francês. O cardápio é todo escrito

em francês.

Só o preço está em reais, muitos reais.

Você pergunta o que significa o nome de um determinado prato ao

maitre.

Você tem certeza que o maitre está se segurando para não rir da sua

pronúncia.

O maitre levará mais tempo para descrever o prato do que você para

comê-lo,

pois o que vem é uma pasta vagamente marinha em cima de uma torrada

do

tamanho aproximado de uma moeda de um real, embora custe mais de

50.

Você come de um golpe só, pensando no que os operários são obrigados

a comer.

Com inveja. Sua acompanhante pergunta qual é o gosto e você responde

que não deu tempo para saber.

O prato principal vem trocado. Você tem certeza que pediu um "boeuf à

quelque chose"

e o que vem é uma fatia de pato sem qualquer acompanhamento. Só.

Bem que você tinha notado o nome: "Canard Melancolique".

Você a princípio sente pena do pato pela sua solidão, mas muda de idéia

quando tenta cortá-lo.

Ele é um duro, pode agüentar.

Quando vem a conta, você nota que cobraram pelo pato e pelo boeuf que

não veio.

Você:

1.paga assim mesmo para não dar à sua acompanhante a impressão de

que se

preocupa com coisas vulgares como dinheiro, ainda mais o brasileiro;

2.chama, discretamente, o maitre e indica o erro, sorrindo para dar a

entender que,

"merde", "alors", estas coisas acontecem;

3.vira a mesa, quebra uma garrafa de vinho contra a parede e, segurando

o gargalo, grita:

"Eu quero o gerente e é melhor ele vir sozinho!"

SITUAÇÃO 2

Você foi convencido pela sua mulher, namorada ou amiga - se bem que

GQEG não tem

"amigas", quem tem "amigas" é veado - a entrar para um curso de

Sensitivação Oriental.

Você reluta em vestir a malha preta, mas acaba sucumbindo.

O curso é dado por um japonês, provavelmente veado.

Todos sentam num círculo em volta do japonês, na posição de lótus.

Menos você que, está um pouco fora

de forma, pode sentar na posição de arbusto despencado pelo vento.

Durante quinze minutos todos devem fechar os olhos, juntar a ponta dos

dedos e fazer

"Ron", até que se integrem na Grande Corrente Universal que vem do

Tibete,

passa pelas cidades sagradas da Índia e do Oriente Médio e,

estranhamente,

bem em cima do prédio do japonês, antes de voltar para o Oriente.

Uma vez atingido este estágio, todos devem virar para a pessoa ao seu

lado e

estudar seu rosto com as pontas dos dedos, não se surpreendendo se o

japonês

chegar por trás e puxar suas orelhas com força para lembrá-los da

dualidade de todas as coisas.

Durante o "Ron" você faz força, mas não consegue se integrar na grande

corrente universal, embora comece sentir uma sensação

diferente que depois revela-se ser cãibra.

Você:

1.finge que atingiu a integração para não cortar a onda de ninguém;

2.finge que não entendeu bem as instruções, engatinha, fazendo "Ron",

até ao lado daquela grande loura, e na hora de tocar o seu rosto erra

o alvo e agarra os seus seios, recusando-se a soltá-los mesmo que

o japonês quase arranque suas orelhas; ou

3. diz que não sentiu nada, que não vai seguir adiante com aquela

bobagem,

ainda mais de malha preta, e que é tudo coisa de veado.

SITUAÇÃO 3

Você está numa reunião social, daquelas que há lugares de sobra para

sentar mas

todo mundo senta no chão. Você não quis ser diferente, se atirou num

almofadão

colorido e tarde demais descobriu que era a dona da casa.

Sua mulher ou namorada está tendo uma conversa confidencial, de mãos

dadas,

com uma moça que é a cara do Charlton Heston, só que de bigode.

O jantar é à americana e você não tem mais um joelho para colocar o seu

copo

de vinho enquanto usa os outros dois para equilibrar o prato e cortar o

pedaço

de pato, provavelmente o mesmo do restaurante francês, só que algumas

semanas mais velho.

Aí o cabeleireiro de cabelo mechado, ao seu lado oferece:

- Se quiser usar o meu..

- O seu...?

- Joelho.

- Ah...

- Ele está desocupado.

- Mas eu não o conheço.

- Eu apresento. Este é o meu joelho.

- Não. Eu digo, você...

- Eu, hein? Quanta formalidade. Aposto que se eu tivesse oferecendo a

perna toda você ia estar pedindo referências. Ti-au.

Você:

1.resolve entrar no espírito da festa e começa a tirar as calças:

2.leva seu copo de vinho para um canto e fica, entre divertido e irônico,

observando aquele curioso painel humano e organizando um pensamento

sobre

estas sociedades tropicais, que passam da barbárie para a decadência

sem

a etapa intermediária de civilização; ou

3.pega sua mulher ou namorada e dá o fora, não sem antes

derrubar o Charlton Heston com um soco.

ESCORE

Se você escolheu a resposta "1" para todas as situações, não é um

GQEG. Se escolheu a resposta "2", não é um GQEG. E se escolheu a

resposta "3", também não é um GQEG. Um GQEG acha que teste é coisa

de veado.

Profissão para um GQEG é motorista de caminhão. Daqueles que depois

de comer um mocotó com duas Malzibier, dormem na estrada e, se

sentem falta de mulher,

ligam o motor e trepam com o radiador.

No futebol, GQEG é beque central, cabeça de área ou centroavante.

Meio de campo é coisa de veado.

Mulher do amigo de Gaúcho que é Gaúcho é homem. GQEG não tem

amizade colorida,

que é a sacanagem por outros meios. GQEG não tem um relacionamento

adulto,

de confiança mútua, cada um respeitando a liberdade do outro, numa

transa,

assim, extra conjugal, mas assumida, entende?

Que isso é papo de mulher pra dar pra todo mundo.

GQEG acha que o movimento gay é coisa de veado.

GQEG nunca vai a vernissage.

GQEG diz que não tem preconceito, mas que se um dia estivesse na sala

com

todas as cantoras da música popular brasileira, não desencostaria da

parede.

Coisas que você jamais encontrará no bolso de um GQEG: batom neutro

para

lábios ressequidos, pastilhas para refrescar o hálito, o telefone do

Gabeira,

entradas para um espetáculo de mímica.

Coisas que você jamais deve dizer a um GQEG: "ton sur ton", "vamos

ao ballet?", "prove estas cebolinhas".

Coisas que você jamais ouvirá um GQEG dizer: "assumir", "amei", "minha

porção mulher",

"acho que o bordeau fica melhor no sofá e a ráfia em cima do pufe".

GQEG acha que ainda há tempo de salvar o Brasil e já conseguiu a

adesão de todos os Homens

que são Homens que restam no país para uma campanha de regeneração

do macho brasileiro.

Os quatro só não têm se reunido muito seguidamente porque pode

parecer coisa de veado.

O texto acima, foi publicado nos livros "A mulher do Silva" e em "

As mentiras que os homens contam" sob o título "Homem que é homem".

Incidente na Casa do Ferreiro

Luis Fernando Veríssimo

Pela janela vê-se uma floresta com macacos. Cada um no seu galho.

Dois ou três olham o rabo do vizinho, mas a maioria cuida do seu. Há

também um estranho moinho, movido por águas passadas. Pelo mato,

aparentemente perdido — não tem cachorro — passa Maomé a caminho

da montanha,

para evitar um terremoto. Dentro da casa, o filho do enforcado

e o ferreiro tomam chá.

Ferreiro — Nem só de pão vive o homem.

Filho do enforcado — Comigo é pão, pão, queijo, queijo.

Ferreiro — Um sanduíche! Você está com a faca e o queijo na mão.

Cuidado.

Filho do enforcado — Por quê?

Ferreiro — É uma faca de dois gumes.

(Entra o cego).

Cego — Eu não quero ver! Eu não quero ver!

Ferreiro — Tirem esse cego daqui!

(Entra o guarda com o mentiroso).

Guarda (ofegante) — Peguei o mentiroso, mas o coxo fugiu.

Cego — Eu não quero ver!

(Entra o vendedor de pombas com uma pomba na mão e duas voando).

Filho do enforcado (interessado) — Quanto cada pomba?

Vendedor de pombas — Esta na mão é 50. As duas voando eu faço por 60

o par.

Cego (caminhando na direção do vendedor de pombas)

— Não me mostra que eu não quero ver.

(O cego se choca com o vendedor de pombas, que larga a pomba que

tinha na mão.

Agora são três pombas voando sob o telhado de vidro da casa).

Ferreiro — Esse cego está cada vez pior!

Guarda — Eu vou atrás do coxo. Cuidem do mentiroso por mim. Amarrem

com uma corda.

Filho do enforcado (com raiva) — Na minha casa você não diria isso!

(O guarda fica confuso, mas resolve não responder.

Sai pela porta e volta em seguida).

Guarda (para o ferreiro) — Tem um pobre aí fora que quer falar com

você.

Algo sobre uma esmola muito grande. Parece desconfiado.

Ferreiro — É a história. Quem dá aos pobres empresta a Deus,

mas acho que exagerei.

(Entra o pobre).

Pobre (para o ferreiro) — Olha aqui, doutor. Essa esmola que o senhor

me deu.

O que é que o senhor está querendo? Não sei não. Dá para desconfiar...

Ferreiro — Está bem. Deixa a esmola e pega uma pomba.

Cego — Essa eu nem quero ver...

(Entra o mercador).

Ferreiro (para o mercador) — Foi bom você chegar. Me ajuda a amarrar

o mentiroso com uma...

(Olha para o filho do enforcado). A amarrar o mentiroso.

Mercador (com a mão atrás da orelha) — Hein?

Cego — Eu não quero ver!

Mercador — O quê?

Pobre — Consegui! Peguei uma pomba!

Cego — Não me mostra.

Mercador — Como?

Pobre — Agora é só arranjar um espeto de ferro que eu faço um galeto.

Mercador — Hein?

Ferreiro (perdendo a paciência) — Me dêem uma corda.

(O filho do enforcado vai embora, furioso).

Pobre (para o ferreiro) — Me arranja um espeto de ferro?

Ferreiro — Nesta casa só tem espeto de pau.

(Uma pedra fura o telhado de vidro, obviamente atirada pelo filho do

enforcado,

e pega na perna do mentiroso.

O mentiroso sai mancando pela porta enquanto as duas pombas

voam pelo buraco no telhado).

Mentiroso (antes de sair) — Agora quero ver aquele guarda me pegar!

(Entra o último, de tapa-olho, pela porta de trás).

Ferreiro — Como é que você entrou aqui?

Último — Arrombei a porta.

Ferreiro — Vou ter que arranjar uma tranca.

De pau, claro.

Último — Vim avisar que já é verão.

Vi não uma mas duas andorinhas voando aí fora.

Mercador — Hein?

Ferreiro — Não era andorinha, era pomba. E das baratas.

Pobre (para o último) — Ei, você aí de um olho só...

Cego (prostrando-se ao chão por engano na frente do mercador) - Meu

rei.

Mercador — O quê?

Ferreiro — Chega! Chega! Todos para fora!

A porta da rua é serventia da casa!

(Todos se precipitam para a porta, menos o cego, que vai de encontro à

parede.

Mas o último protesta).

Último — Parem! Eu serei o primeiro.

(Todos saem com o último na frente. O cego vai atrás).

Cego — Meu rei! Meu rei!

Texto extraído do livro “O Gigolô das Palavras”, L&PM Editores – Porto

Alegre, 1982, pág. 37.

O Desafio

Luis Fernando Veríssimo

Um publicitário morreu e, como era da área de atendimento e mau para o

pessoal da criação,

foi para o inferno. O Diabo, que todos os dias recebe um print-out com

nome e profissão d

e todos os admitidos na data anterior, mandou que o publicitário fosse

tirado da grelha e

levado ao seu escritório. Queria fazer-lhe uma proposta.

Se ele aceitasse sua carga de castigos diminuiria e ele teria regalias. Ar-

condicionado, etc.

— Qual é a proposta?

— Temos que melhorar a imagem do inferno — disse o Diabo. — Falam

as piores coisas do inferno.

Queremos mudar isso.

— Mas o que é que se pode dizer de bom disto aqui? Nada.

— Por isso é que precisamos de publicidade.

O publicitário topou. Era um desafio. E as regalias eram atraentes.

Quis saber algumas coisas que diziam do Inferno e que mais irritavam o

Diabo.

— Bem. Dizem que aqui todos os cozinheiros são ingleses, todos os

garçons são italianos,

todos os motoristas de táxi são franceses e todos os humoristas alemães.

— E é verdade?

— É.

— Hmmm — disse o publicitário. — Uma das técnicas que podemos usar

é

transformar desvantagem em vantagem. Pegar a coisa pelo outro lado.

Sua cabeça já estava funcionando. Continuou:

— Os cozinheiros ingleses, por exemplo. Podemos dizer que a comida

é tão ruim que é o local ideal para emagrecer. Além de tudo, já é uma

sauna.

— Bom, bom.

— Garçons italianos. Servem a mesa pessimamente. Mas cantam,

conversam,

brigam. Isto é, ajudam a distrair a atenção da comida inglesa.

— Ótimo.

— Motoristas franceses. São mal-humorados e grosseiros.

Isso desestimula o uso do táxi e promove as caminhadas. É econômico e

saudável.

Também provoca a indignação generalizada, une a população e combate a

apatia.

— Muito bom!

— Uma situação que não seria amenizada pelos humoristas.

Os humoristas, como se sabe, não têm qualquer função social. Eles só

servem para

desmobilizar as pessoas, criar um clima de lassidão e deboche, quando

não

de perigosa alienação. Isto não acontece com os humoristas alemães, cuja

falta de graça

só aumenta a revolta geral, mantendo a população ativa e séria.

O alívio é dado pelos garçons italianos.

— Perfeito! — exclamou o Diabo. — Já vi que acertei.

Quando podemos começar a campanha?

— Espere um pouquinho — disse o publicitário. — Temos que combinar

algumas coisas, antes.

Por exemplo: a verba.

— Isto já não é comigo — disse o Diabo. — É com o pessoal da área

econômica.

Você pode tratar com eles. E aproveitar para acertar também o seu

contrato.

Com isto o Diabo apertou um botão intercomunicador vermelho que

havia sobre a sua mesa e disse:

— Dona Henriqueta, diga para o

Silva vir até a minha sala.

— Silva? — estranhou o publicitário.

— Nosso gerente financeiro. Toda a nossa economia

é dirigida por brasileiros.

Aí o publicitário suspirou, levantou e disse:

— Me devolve pra grelha...

Texto extraído do livro "A Mãe do Freud", L&PM Editores, Porto Alegre,

1985, pág. 93.

O Popular

Luis Fernando Veríssimo

Um número recente da revista Veja trazia fotografias sensacionais

das (como diria um inglês) "incomodações" na Irlanda do Norte.

Todas eram de ganhar prêmio, mas uma me impressionou especialmente.

Nela aparecia a versão irlandesa do Popular.

É uma figura que sempre me intrigou. A foto da Veja mostra um soldado

inglês espichado

na calçada, protegido pela quina de um prédio, o rosto tapado por uma

máscara de gás,

fazendo pontaria contra um franco-atirador local. Atrás dele, agachados

no vão de uma porta,

dois ou três dos seus companheiros, também em plena parafernália de

guerra,

esperam tensamente para entrar no tiroteio.

Há fumaça por todos os lados, um clima de medo e drama.

Mas ao lado do soldado que atira, em primeiro plano, está o Popular.

De pé, olhando com algum interesse o que se passa, com as mãos nos

bolsos e

um embrulho embaixo do braço. O Popular foi no armazém e na volta

parou para ver a guerra.

Sempre pensei que o Popular fosse uma figura exclusivamente brasileira.

Nas nossas incomodações políticas, no tempo em que ainda havia política

no Brasil,

o Popular não perdia uma. Os jornais mostravam tanques na Cinelândia

protegidos por soldados

de baioneta calada e lá estava o Popular, com um embrulho embaixo do

braço,

examinando as correias de um dos tanques. Pancadaria na Avenida.

Corria polícia,

corria manifestante, corria todo mundo, menos o Popular. O Popular

assistia.

Cheguei a imaginar, certa vez, uma série de cartuns em que o Popular

apareceria assistindo ao Descobrimento do Brasil, à Primeira Missa, ao

Grito da Independência,

à Proclamação da República... Sempre com seu embrulho embaixo do

braço.

E de camisa esporte clara para fora das calças (o Popular irlandês veste

terno e

sobretudo contra o frio, o Popular tropical é muito mais Popular).

Não se deve confundir o Popular com o Transeunte, também conhecido

como o Passante.

O Transeunte ou Passante às vezes leva uma bala perdida, o Popular

nunca.

O Transeunte às vezes vai preso por engano, o Popular é o que fica

assistindo à sua prisão.

O Transeunte, não raro, se compromete com os acontecimentos.

Aplaude o visitante ilustre que passa, por exemplo. O Popular fica com as

mãos

no bolso e quase sempre presta mais atenção ao motociclo dos

batedores do que à figura ilustre.

O Transeunte pode se entusiasmar momentaneamente

com uma frase de comício ou um drama na rua, e aí o Popular

é o que fica olhando o Transeunte.

O Popular não tem opinião sobre as coisas.

Quando o rádio ou a televisão resolvem ouvir "a opinião de um popular"

na rua, sempre se enganam.

O Popular nunca é o entrevistado, é o sujeito que está atrás

do entrevistado, olhando para a câmara.

O Popular não merece nem os méritos nem a calhordice que a imprensa

lhe atribui.

Alguém que é "socorrido por populares", outro, menos feliz, que é

"linchado por populares"... Engano. Onde há um bando de populares não

há o Popular.

O Popular é a antimultidão. Sua única virtude é a sua singularidade.

E um certo ceticismo inconsciente diante da História e das coisas.

Não é que o Popular desmereça o Poder e os grandes lances da

Humanidade, é que ele tem

uma fatal curiosidade pelo detalhe supérfluo, um fascínio irresistível pelo

insignificante.

Nas revoluções, o que atrai o Popular é a estranha postura de um soldado

deitado no chão,

o mecanismo de um tanque, as lentes de uma câmara.

O Popular é uma figura tipicamente urbana. Não tem domicílio certo.

Seu habitat natural é a margem dos acontecimentos. E -- este é o seu

maior mistério, a chave da sua existência -- ninguém jamais conseguiu

descobrir o

que o Popular leva naquele embrulho.

E tem mais. O dia que pegarem um Popular para desvendarem o mistério,

será inútil.

Vão se enganar outra vez. O Popular verdadeiro estará atrás do preso,

assistindo tudo.

Texto extraído do livro "O Gigolô das Palavras", L&PM Editores - Porto

Alegre, 1982.

Os Moralistas

Luis Fernando Veríssimo

— Você pensou bem no que vai fazer, Paulo?

— Pensei. Já estou decidido. Agora não volto atrás.

— Olhe lá, hein, rapaz...

Paulo está ao mesmo tempo comovido e surpreso com os três amigos.

Assim que souberam do seu divórcio iminente, correram para visitá-lo no

hotel.

A solidariedade lhe faz bem. Mas não entende aquela insistência deles em

dissuadi-lo.

Afinal, todos sabiam que ele não se acertava com a mulher.

— Pense um pouco mais, Paulo. Reflita. Essas decisões súbitas...

— Mas que súbitas? Estamos praticamente separados há um ano!

— Dê outra chance ao seu casamento, Paulo.

— A Margarida é uma ótima mulher.

— Espera um pouquinho. Você mesmo deixou de freqüentar

nossa casa por causa da Margarida.

Depois que ela chamou vocês de bêbados e expulsou todo mundo.

— E fez muito bem. Nós estávamos bêbados e tínhamos que ser

expulsos.

— Outra coisa, Paulo. O divórcio. Sei lá.

— Eu não entendo mais nada. Você sempre defendeu o divórcio!

— É. Mas quando acontece com um amigo...

— Olha, Paulo. Eu não sou moralista. Mas acho a família uma coisa

importantíssima.

Acho que a família merece qualquer sacrifício.

— Pense nas crianças, Paulo. No trauma.

— Mas nós não temos filhos!

— Nos filhos dos outros, então. No mau exemplo.

— Mas isto é um absurdo! Vocês estão falando como se fosse o fim do

mundo.

Hoje, o divórcio é uma coisa comum. Não vai mudar nada.

— Como, não muda nada?

— Muda tudo!

— Você não sabe o que está dizendo, Paulo! Muda tudo.

— Muda o quê?

— Bom, pra começar, você não vai poder mais freqüentar as nossas

casas.

— As mulheres não vão tolerar.

— Você se transformará num pária social, Paulo.

— O quê?!

— Fora de brincadeira. Um reprobo.

— Puxa. Eu nunca pensei que vocês...

— Pense bem, Paulo. Dê tempo ao tempo.

— Deixe pra decidir depois. Passado o verão.

— Reflita, Paulo. É uma decisão seriíssima. Deixe para mais tarde.

— Está bem. Se vocês insistem...

Na saída, os três amigos conversam:

— Será que ele se convenceu?

— Acho que sim. Pelo menos vai adiar.

— E no solteiros contra casados da praia, este ano, ainda teremos ele no

gol.

— Também, a idéia dele. Largar o gol dos casados logo agora. Em cima

da hora.

Quando não dava mais para arranjar substituto.

— Os casados nunca terão um goleiro como ele.

— Se insistirmos bastante, ele desiste definitivamente do divórcio.

— Vai agüentar a Margarida pelo resto da vida.

— Pelo time dos casados, qualquer sacrifício serve.

— Me diz uma coisa. Como divorciado,

ele podia jogar no time dos solteiros?

— Podia.

— Impensável.

— É.

— Outra coisa.

— O quê?

— Não é reprobo. É réprobo. Acento no "e".

— Mas funcionou, não funcionou?

Texto extraído do livro "As Mentiras que os Homens Contam"

, Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 41.

Povo

Luis Fernando Veríssimo

— Geneci...

— Senhora?

— Preciso falar com você.

— O que foi? O almoço não estava bom?

— O almoço estava ótimo. Não é isso. Precisamos conversar.

— Aqui na cozinha?

— Aqui mesmo. O seu patrão não pode ouvir.

— Sim, senhora.

— Você...

— Foi o copo que eu quebrei?

— Quer ficar quieta e me escutar?

— Sim, senhora.

— Não foi o copo. Você vai sair na escola, certo?

— Vou, sim senhora. Mas se a senhora quiser que eu venha na Terça...

— Não é isso, Geneci!

— Desculpe.

— É que eu... Geneci, eu queria sair na sua escola.

— Mas...

— Ou fazer alguma coisa. Qualquer coisa. Não agüento ficar fora do

Carnaval.

— Mas...

— Vocês não têm, sei lá, uma ala das patroas? Qualquer coisa.

— Se a senhora tivesse me falado antes...

— Eu sei. Agora é tarde. Para a fantasia e tudo o mais.

Mas eu improviso uma baiana.

Deusa grega, que é só um lençol.

— Não sei...

— Saio na bateria. Empurrando alegoria.

— Olhe que não é fácil...

— Eu sei. Mas eu quero participar. Eu até sambo direitinho. Você nunca

me viu sambar?

Nos bailes do clube, por exemplo. Toca um samba e lá vou eu.

Até acho que tenho um pé na cozinha. Quer dizer. Desculpe.

— Tudo bem.

— Eu também sou povo, Geneci! Quando vejo uma escola passar, fico

toda arrepiada.

— Mas a senhora pode assistir.

— Mas eu quero participar, você não entende? No meio da massa.

Sentir o que o povo sente. Vibrar, cantar, pular, suar.

— Olhe...

— Por que só vocês podem ser povo? Eu também tenho direito.

— Não sei...

— Se precisar pagar, eu pago.

— Não é isso. É que...

— Está bem. Olhe aqui. Não preciso nem sair na avenida. Posso

costurar.

Ajudar a organizar o pessoal. Ajudar no transporte. O Alfa Romeo está aí

mesmo.

Tem a Caravan, se o patrão não der falta. É a emoção de participar

que me interessa, entende? Poder dizer "a minha escola...".

Eu teria assunto para o resto do ano. Minhas amigas ficariam loucas de

inveja.

Alguns iam torcer o nariz, claro. Mas eu não sou assim. Eu sou legal.

Eu não sou legal com você, Geneci? Sempre tratei você de igual para

igual.

— Tratou, sim senhora.

— Meu Deus, a ama-de-leite da minha mãe era preta!

— Sim, senhora.

— Geneci, é um favor que você me faz. Em nome da nossa velha

amizade.

Faço qualquer coisa pela nossa escola, Geneci.

— Bom, se a senhora está mesmo disposta...

— Qualquer coisa, Geneci.

— É que o Rudinei e Fátima Araci não têm com quem ficar.

— Quem?

— Minhas crianças.

— Ah.

— Se a senhora pudesse ficar com eles enquanto eu desfilo...

— Certo. Bom. Vou pensar. Depois a gente vê.

— Eu posso trazer elas e...

— Já disse que vou pensar, Geneci. Sirva o cafezinho na sala.

"Extraído do livro "A mãe do Freud", LP&M Editores Ltda. - Porto

Alegre, 1985, pág. 55.

Terrorismo

Luis Fernando Veríssimo

Betty insistia, queria conhecer a Europa, e Bob resistia. Pense só, disse

Betty,

nós num bom restaurante francês, você dando um dinheiro ao maître e

pedidndo a melhor mesa, e nós comendo aquela comida maravilhosa.

Bob fez uma careta de desgosto. Numa frase Betty incluíra tudo que o

revoltava na

idéia de ir à Europa: lugares estranhos onde falavam línguas estranhas e

você pagava

muito mais para comer coisas estranhas. E maîtres franceses.

Bob ouvira falar de maîtres franceses. Sabia que eles gostavam de

humilhar turistas americanos.

Eles se reuniam depois do trabalho, os patifes, soltavam

a gravatinha preta, desabotoavam a camisa engomada e trocavam

histórias cruéis.

"Hoje fiz um americano chorar...". E davam gargalhadas. Ele sabia.

Ou superiores risadinhas francesas. Pois não o humilhariam, pensou Bob,

desembarcando em Paris, já que Betty tanto insistiu que o carregou para

a

Europa. Não me humilharão. Não com o que eu carrego no bolso,

escondido

da Betty. Está certo, só usarei em autodefesa.

Mas eles que não tentem nada comigo, pensou Bob.

Na noite seguinte Betty e Bob foram ao seu

primeiro restaurante em Paris. Quando soube que eles não tinham

reserva o maître

começou a revirar os olhos como quem vai dizer "Ah, les innocents!",

mas foi interrompido por uma nota de cem dólares estrategicamente

colocada

na sua mão por Bob e lembrou-se que alguém cancelara a reserva e

havia, s

im, uma mesa. Num canto escuro e pouco freqüentado, principalmente

por garçons.

Betty e Bob esforçaram-se para ler o menu, prejudicados pela pouca luz

e pelo fato do menu ser em francês e, apesar de repetidos sinais de Bob

-- Betty conseguiu dissuadi-lo de bater com

a faca no lado do copo vazio --, ninguém apareceu para ajudá-los ou

tomar

seu pedido ou apenas saber como estavam passando.

Finalmente Bob resolveu agir. Olhou em volta.

Na mesa mais próxima um casal de meia-idade, que chegara depois

deles e já estava no meio da refeição, comia pequenas aves

aparentemente

sacrificadas na infância e trazidas à mesa em meio a delicados

arranjos de flores de nabo. Bob levantou-se da mesa, ao mesmo tempo

que tirava

o pequeno frasco do bolso e, rapidamente, seqüestrou o prato com o

pequeno

pássaro da frente do homem de meia-idade, segurando-o no ar com uma

mão e ameaçando derramar nele o conteúdo

do frasco que segurava na outra.

-- Ninguém se mexa! -- disse Bob.

Espanto e paralisia no restaurante.

-- Isto é ketchup -- anunciou Bob.

-- Agh!

Bob gostou de ver que o som de repulsa escapara dos lábio do maître.

Continuou:

-- Se minha mulher e eu não começarmos a ser servidos no

próximo minuto, esse passarinho inocente será

sepultado em ketchup. E não pensem que eu não sei usá-lo.

-- Calma! -- pediu o maître, ao mesmo tempo que instruía uma

equipe, com gestos, a dar atenção à mesa

dos americanos. -- O que vocês querem?

-- Para começar, um cardápio em inglês.

-- Impossível.

Bob aumentou a inclinação do frasco.

-- Não!

O grito foi do chef, que aparecera da cozinha para ver o que estava

acontecendo.

-- Façam tudo que ele pedir! -- ordenou o chef quase aos prantos.

Bob sorria triunfalmente.

Luis Fernando Veríssimo morou durante oito meses em Paris,

a exemplo do que já havia feito em New York e Roma. "Traçando Paris",

editado pela Artes e Ofícios - São Paulo,1997

O casamento

Luis Fernando Verissimo

— Eu quero ter um casamento tradicional, papai.

— Sim, minha filha.

— Exatamente como você!

— Ótimo.

— Que música tocaram no casamento de vocês?

— Não tenho certeza, mas acho que era Mendelssohn. Ou Mendelssohn é

o d

a Marcha Fúnebre? Não, era Mendelssohn mesmo.

— Mendelssohn, Mendelssohn...

Acho que não conheço. Canta alguma coisa dele ai.

— Ah, não posso, minha filha. Era o que o órgão tocava em

todos os casamentos, no meu tempo.

— O nosso não vai ter órgão, é claro.

— Ah, não?

— Não. Um amigo do Varum tem um sintetizador eletrônico e ele vai

tocar na cerimônia.

O Padre Tuco já deixou. Só que esse Mendelssohn, não sei,não...

— É, acho que no sintetizador não fica bem...

— Quem sabe alguma coisa do Queen...

— Quem?

— O Queen.

— Não é a Queen?

— Não. O Queen. E o nome de um conjunto, papai.

— Ah, certo. O Queen. No sintetizador.

— Acho que vai ser o maior barato!

— Só o síntetizador ou...

— Não. Claro que precisa ter uma guitarra elétrica, um baixo elétrico...

— Claro. Quer dizer, tudo bem tradicional.

— Isso.

*

— Eu sei que não é da minha conta. Afinal, eu sou só o pai da noiva.

Um nada. Na recepção vão me confundir com um garçom.

Se ainda me derem gorjeta, tudo bem. Mas alguém pode me dizer por que

chamam o nosso futuro genro de Varum?

— Eu sabia...

— O quê?

— Que você já ia começar a implicar com ele.

— Eu não estou implicando. Eu gosto dele. Eu até o beijaria na testa se

ele

algum dia tirasse aquele capacete de motoqueiro.

— Eles nem casaram e você já está implicando.

— Mas que implicância? É um ótimo rapaz. Tem uma boa cabeça.

Pelo menos eu imagino que seja cabeça o que ele tem debaixo do

capacete.

— É um belo rapaz.

— E eu não sei? Há quase um ano que ele freqüenta a nossa casa

diariamente.

E como se fosse um filho. Eu às vezes fico esperando

que ele me peça uma mesada. Um belo rapaz. Mas por que Varum?

— E o apelido e pronto.

— Ah, então é isso. Você explicou tudo. Obrigado.

— Quanto mais se aproxima o dia do casamento, mais intratável você

fica.

— Desculpe. Eu sou apenas o pai. Um inseto. Me esmigalha. Eu mereço.

*

— Aí xará!

— Ôi, Varum, como vai? A sua noiva está se arrumando. Ela já desce.

Senta aí um pouquinho. Tira o capacete...

— Essa noivinha...

— Vocês vão ao cinema?

— Ela não lhe disse? Nós vamos acampar.

— Acampar? Só vocês dois?

— É. Qual é o galho?

— Não. E que... Sei lá.

— Já sei o que você tá pensando, cara. Saquei.

— É! Você sabe como é...

— Saquei. Você está pensando que só nós dois, no meio do mato, pode

pintar um lance.

— No mínimo isso. Um lance. Até dois.

— Mas qualé, xará. Não tem disso não. Está em falta. Ôi,gatona!

— Oi, Varum. O que é que você e papai estão conversando?

— Não, o velho aí tá preocupado que nós dois, acampados pode

pintar um lance. Eu já disse que não tem disso.

— Ô, papai. Não tem perigo nenhum. Nem cobra. E qualquer coisa

o Varum me defende. Eu Jane, ele Tarzan.

— Só não dou o meu grito para proteger os cristais.

— Vamos?

— Vamlá?

— Mas... Vocês vão acampar de motocicleta?

— De motoca, cara. Vá-rum, vá-rum.

*

— Descobri por que ele se chama Varum.

— O quê? Você quer alguma coisa?

— Disse que descobri por que ele se chama Varum.

— Você me acordou só para dizer isto?

— Você estava dormindo?

— É o que eu costumo fazer às três da manhã, todos os dias. Você não

dormiu?

— Ainda não. Sabe como é que ele chama ela? Gatona.

Por um estranho processo de degeneração genética, eu sou pai de uma

gatona.

Varum e Gatona, a dupla dinâmica, está neste momento, no meio do mato.

— Então é isso que está preocupando você?

— E não é para preocupar? Você também não devia estar dormindo.

A gatona é sua também.

— Mas não tem perigo nenhum!

— Como, não tem perigo? Um homem e uma mulher,

dentro de uma tenda, no meio do mato?

— O que é que pode acontecer?

— Se você já esqueceu, é melhor ir dormir mesmo.

— Não tem perigo nenhum. O máximo que pode acontecer é entrar um

sapo na tenda.

— Ou você está falando em linguagem figurada ou eu é que estou ficando

louco.

— Vai dormir.

— Gatona. Minha própria filha...

— Você também tinha um apelido pra mim, durante o nosso noivado.

— Eu prefiro não ouvir.

— Você me chamava de Formosura. Pensando bem, você também tinha

um apelido.

— Por favor. Reminiscências não. Comi faz pouco.

— Kid Gordini. Você não se lembra? Você e o seu Gordini envenenado.

— Tão envenenado que morreu, nas minhas mãos. Um dia levei num

mecânico

e disse que a bateria estava ruim.

Ele disse que a bateria estava boa, o resto do carro é que tinha que ser

trocado.

— Viu só? E você se queixa do Varum. Kid Gordini!

— Mas eu nunca levei você para o mato no meu Gordini.

— Não levou porque meu pai matava você.

— Hmmmm.

— “Hmmmm” o quê?

— Você me deu uma idéia. Assassinato...

— Não seja bobo.

— Um golpe bem aplicado... Na cabeça não porque ela

está sempre bem protegida. Sim. Kid Gordini ataca outra vez...

— O que você tem é ciúme.

Nisso tudo, tem uma coisa que me preocupa acima

de tudo que é o que me tira o sono.

— O quê?

— Será que ele tira o capacete para dormir?

*

— Bom dia.

— Bom dia.

— Eu sou o pai da noiva. Da Maria Helena.

— Maria Helena... Ah, a Gatona!

— Essa.

— Que prazer. Alguma dúvida sobre a cerimônia?

— Não, Padre Osni. E que...

— Pode me chamar de Tuco. E como me chamam.

— Não, Padre Tuco. E que a Ga... A Maria Helena me disse que ela

pretende entrar dançando na igreja. O conjunto toca

um rock e a noiva entra dançando, é isso?

— É. Um rock suave. Não é rock pauleira.

— Ah, não é rock pauleira. Sei. Bom, isto muda tudo.

— Muitos jovens estão fazendo isto. A noiva entra dançando e na saída

os dois saem dançando. O senhor sabe, a Igreja hoje está diferente.

É isto que está atraindo os jovens de volta à Igreja. Temos que evoluir

com os tempos.

— Claro. Mas, Padre Osni...

— Tuco.

— Padre Tuco, tem uma coisa. O pai da noiva também tem que dançar?

— Bom, isto depende do senhor. O senhor dança?

— Agora não, obrigado. Quer dizer, dançava. Até ganhei concurso de

chá-chá-chá.

Acho que você ainda não era nascido. Mas estou meio fora de forma e...

— Ensaie, ensaie.

— Certo.

— Peça para a Gatona ensaiar com o senhor.

— Claro.

— Não é rock pauleira.

— Certo. Um roquezinho suave.

Quem sabe um chá-chá-chá? Não. Esquece, esquece.

*

— Você está nervoso, papai?

— Um pouco. E se a gente adiasse o casamento? Eu preciso uma

semana a mais de ensaio. Só uma semana.

— Eu estou bonita?

— Linda. Quando estiver pronta vai ficar uma beleza.

— Mas eu estou pronta.

— Você vai se casar assim?

— Você não gosta?

— É... diferente, né? Essa coroa de flores, os pés descalços...

— Não é um barato?

*

— Um brinde, xará!

— Um brinde, Varum.

— Você estava um estouro entrando naquela igreja.

Parecia um bailarino profissional.

— Pois é. Improvisei uns passos. Acho que me sai bem.

— Muito bem!

— Não sei se você sabe que eu fui o rei do chá-chá-chá.

— Do quê?

— Chá-chá-chá. Uma dança que havia. Você ainda não era nascido.

— Bota tempo nisso.

— Eu tinha um Gordini envenenado. Tão envenenado que morreu. Um dia

levei no...

— Tinha um quê?

— Gordini. Você sabe. Um carro. Varum, varum.

— Ah.

— Esquece.

— Um brinde ao sogro bailarino.

— Um brinde. Eu sei que vocês vão ser muito felizes.

— O que é que você achou da minha beca, cara?

— Sensacional. Nunca tinha visto um noivo de macacão vermelho, antes.

Gostei. Confesso que quando entrei na igreja e vi você lá no altar, de

capacete...

— Vacilou.

— Vacilei. Mas aí vi que o Padre Tuco estava de boné e pensei, tudo

bem.

Temos que evoluir com os tempos. E ataquei meu rock suave.

Texto extraído do livro "O analista de Bagé", L&PM Editores – Porto

Alegre, 1981, pág. 13

O Analista de Bagé

Luis Fernando Verissimo

Certas cidades não conseguem se livrar da reputação injusta que,

por alguma razão, possuem. Algumas das pessoas mais sensíveis e

menos grossas que eu conheço vem de Bagé, assim como algumas das

menos

afetadas são de Pelotas. Mas não adianta. Estas histórias do psicanalista

de Bagé

são provavelmente apócrifas (como diria o próprio analista de Bagé,

história apócrifa é mentira bem educada)

mas, pensando bem, ele não poderia vir de outro lugar.

Pues, diz que o divã no consultório do analista de Bagé é forrado com um

pelego.

Ele recebe os pacientes de bombacha e pé no chão.

— Buenas. Vá entrando e se abanque, índio velho.

— O senhor quer que eu deite logo no divã?

— Bom, se o amigo quiser dançar uma marca, antes, esteja a gosto.

Mas eu prefiro ver o vivente estendido e charlando que nem china da

fronteira,

pra não perder tempo nem dinheiro.

— Certo, certo. Eu...

— Aceita um mate?

— Um quê? Ah, não. Obrigado.

— Pos desembucha.

— Antes, eu queria saber. O senhor é freudiano?

— Sou e sustento. Mais ortodoxo que reclame de xarope.

— Certo. Bem. Acho que o meu problema é com a minha mãe

— Outro.

— Outro?

— Complexo de Édipo. Dá mais que pereba em moleque.

— E o senhor acha...

— Eu acho uma pôca vergonha.

— Mas...

— Vai te metê na zona e deixa a velha em paz, tchê!

~//~

Contam que outra vez um casal pediu para consultar, juntos, o analista de

Bagé.

Ele, a princípio, não achou muito ortodoxo.

— Quem gosta de aglomeramento é mosca em bicheira... Mas acabou

concordando.

— Se abanquem, se abanquem no más. Mas que parelha buenacha, tchê! .

Qual é o causo?

— Bem — disse o home — é que nós tivemos um desentendimento...

— Mas tu também é um bagual. Tu não sabe que em mulher

e cavalo novo não se mete a espora?

— Eu não meti a espora. Não é, meu bem?

— Não fala comigo!

— Mas essa aí tá mais nervosa que gato em dia de faxina.

— Ela tem um problema de carência afetiva...

— Eu não sou de muita frescura. Lá de onde eu venho,

carência afetiva é falta de homem.

— Nós estamos justamente atravessando uma crise de relacionamento

porque ela tem procurado experiências extraconjugais e...

— Epa. Opa. Quer dizer que a negra velha é que nem luva de maquinista?

Tão folgada que qualquer um bota a mão?

— Nós somos pessoas modernas.

Ela está tentando encontrar o verdadeiro eu, entende?

— Ela tá procurando o verdadeiro tu nos outros?

— O verdadeiro eu, não. O verdadeiro eu dela.

— Mas isto tá ficando mais enrolado que lingüiça de venda. Te deita no

pelego.

— Eu?

— Ela. Tu espera na salinha.

Texto extraído do livro "O gigolô das palavras", L&PM Editores – Porto

Alegre, 1982, pág. 78.

Clic

Luis Fernando Verissimo

Cidadão se descuidou e roubaram seu celular. Como era um executivo e

não

sabia mais viver sem celular, ficou furioso. Deu parte do roubo,

depois teve uma idéia. Ligou para o número do telefone. Atendeu uma

mulher.

— Aloa.

— Quem fala?

— Com quem quer falar?

— O dono desse telefone.

— Ele não pode atender.

— Quer chamá-lo, por favor?

— Ele esta no banheiro. Eu posso anotar o recado?

— Bate na porta e chama esse vagabundo agora.

Clic. A mulher desligou. O cidadão controlou-se. Ligou de novo.

— Aloa.

— Escute. Desculpe o jeito que eu falei antes.

Eu preciso falar com ele, viu? É urgente.

— Ele já vai sair do banheiro.

— Você é a...

— Uma amiga.

— Como é seu nome?

— Quem quer saber?

O cidadão inventou um nome.

— Taborda. (Por que Taborda, meu Deus?) Sou primo dele.

— Primo do Amleto?

Amleto. O safado já tinha um nome.

— É. De Quaraí.

— Eu não sabia que o Amleto tinha um primo de Quaraí.

— Pois é.

— Carol.

— Hein?

— Meu nome. É Carol.

— Ah. Vocês são...

— Não, não. Nos conhecemos há pouco.

— Escute Carol. Eu trouxe uma encomenda para o Amleto.

De Quaraí. Uma pessegada, mas não me lembro do endereço.

— Eu também não sei o endereço dele.

— Mas vocês...

— Nós estamos num motel. Este telefone é celular.

— Ah.

— Vem cá. Como você sabia o número do telefone dele? Ele recém-

comprou.

— Ele disse que comprou?

— Por que?

O cidadão não se conteve.

— Porque ele não comprou, não. Ele roubou. Está entendendo? Roubou.

De mim!

— Não acredito.

— Ah, não acredita? Então pergunta pra ele. Bate na porta do banheiro e

pergunta.

— O Amleto não roubaria um telefone do próprio primo.

E Carol desligou de novo.

O cidadão deixou passar um tempo, enquanto se recuperava. Depois

ligou.

— Aloa.

— Carol, é o Tobias.

— Quem?

— O Taborda. Por favor, chame o Amleto.

— Ele continua no banheiro.

— Em que motel vocês estão?

— Por que?

— Carol, você parece ser uma boa moça. Eu sei que você gosta do

Amleto...

— Recém nos conhecemos.

— Mas você simpatizou. Estou certo? Você não quer acreditar que ele

seja um ladrão. Mas ele é, Carol. Enfrente a realidade.

O Amleto pode Ter muitas qualidades, sei lá. Há quanto tempo vocês

saem juntos?

— Esta é a primeira vez.

— Vocês nunca tinham se visto antes?

— Já, já. Mas, assim, só conversa.

— E você nem sabe o endereço dele, Carol. Na verdade você não sabe

nada sobre ele.

Não sabia que ele é de Quaraí.

— Pensei que fosse goiano.

— Ai esta, Carol. Isso diz tudo. Um cara que se faz passar por goiano...

— Não, não. Eu é que pensei.

— Carol, ele ainda está no banheiro?

— Está.

— Então sai daí, Carol. Pegue as suas coisas e saia.

Esse negocio pode acabar mal. Você pode ser envolvida. — Saia daí

enquanto é tempo, Carol!

— Mas...

— Eu sei. Você não precisa dizer. Eu sei. Você não quer acabar a

amizade.

Vocês se dão bem, ele é muito legal. Mas ele é um ladrão, Carol.

Um bandido. Quem rouba celular é capaz de tudo. Sua vida corre perigo.

— Ele esta saindo do banheiro.

— Corra, Carol! Leve o telefone e corra! Daqui a pouco eu

ligo para saber onde você está.

Clic.

Dez minutos depois, o cidadão liga de novo.

— Aloa.

— Carol, onde você está?

— O Amleto está aqui do meu lado e pediu para lhe dizer uma coisa.

— Carol, eu...

— Nós conversamos e ele quer pedir desculpas a você.

Diz que vai devolver o telefone, que foi só brincadeira.

Jurou que não vai fazer mais isso.

O cidadão engoliu a raiva. Depois de alguns segundos falou:

— Como ele vai devolver o telefone?

— Domingo, no almoço da tia Eloá. Diz que encontra você lá.

— Carol, não...

Mas Carol já tinha desligado.

O cidadão precisou de mais cinco minutos

para se recompor. Depois ligou outra vez.

—Aloa.

Pelo ruído o cidadão deduziu que ela estava dentro de um carro em

movimento.

— Carol, é o Torquatro.

— Quem?

— Não interessa! Escute aqui. Você está sendo cúmplice de um crime.

Esse telefone que você tem na mão, esta me entendendo?

Esse telefone que agora tem suas impressões digitais.

É meu! Esse salafrário roubou meu celular!

— Mas ele disse que vai devolver na...

— Não existe Tia Eloá nenhuma! Eu não sou primo dele.

Nem conheço esse cafajeste. Ele esta mentindo para você, Carol.

— Então você também mentiu!

— Carol...

Clic.

Cinco minutos depois, quando o cidadão se ergueu do chão,

onde estivera mordendo o carpete, e ligou de novo, ouviu um "Alô" de

homem.

— Amleto?

— Primo! Muito bem. Você conseguiu, viu? A Carol acaba de descer do

carro.

— Olha aqui, seu...

— Você já tinha liquidado com o nosso programa no motel,

o maior clima e você estragou, e agora acabou com tudo.

Ela está desiludida com todos os homens, para sempre. Mandou parar o

carro e desceu.

Em plena Cavalhada. Parabéns primo. Você venceu. Quer saber como ela

era?

— Só quero meu telefone.

— Morena clara. Olhos verdes. Não resistiu ao meu celular.

Se não fosse o celular, ela não teria topado o programa.

E se não fosse o celular, nós ainda estaríamos no motel.

Como é que chama isso mesmo? Ironia do destino?

— Quero meu celular de volta!

— Certo, certo. Seu celular. Você tem que fechar negócios,

impressionar clientes, enganar trouxas. Só o que eu queria era a Carol...

— Ladrão

— Executivo

— Devolve meu...

Clic.

Cinco minutos mais tarde. Cidadão liga de novo.

telefone toca várias vezes. Atende uma voz diferente.

— Ahn?

— Quem fala?

— É o Trola.

— Como você conseguiu esse telefone?

— Sei lá. Alguém jogou pela janela de um carro. Quase me acertou.

— Onde você está?

— Como eu estou? Bem, bem. Catando meus papéis, sabe como é.

Mas eu já fui de circo. É. Capitão Trovar. Andei até pelo Paraguai.

— Não quero saber de sua vida. Estou pagando uma recompensa por este

telefone.

Me diga onde você está que eu vou buscar.

— Bem. Fora a Dalvinha, tudo bem. Sabe como é mulher.

Quando nos vê por baixo, aproveita. Ontem mesmo...

— Onde você está? Eu quero saber onde!

— Aqui mesmo, embaixo do viaduto. De noitinha.

Ela chegou com o índio e o Marvão, os três com a cara cheia, e...

Extraído do livro "As Mentiras que os Homens Contam",

Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 41.

FERNANDO SABINO

Já faz um longo tempo que fui apresentado a Fernando Sabino. Meu

irmão Francisco era um

ano mais velho que eu. Como todo irmão da mesma idade, vivíamos as

grandes alegria e as piores

tristezas. Num dos meus aniversário ele me presenteou com o livro

Encontro Marcado.

Logo em seguida o Senhor Deus da vida fez com que transcendesse a

temporalidade.

Hoje tenho uma filha que é parecida com ele, na fisionomia e no gênio.

Selecionei alguns textos que acho legal e interessante

O Homem Nu

Fernando Sabino

Ao acordar, disse para a mulher:

-- Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem

aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não

trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.

-- Explique isso ao homem -- ponderou a mulher.

-- Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir

rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica

quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém.

Deixa ele bater até cansar -- amanhã eu pago.

Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar

um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava,

resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço

para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com

cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos

até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito.

Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos,

porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo,

impulsionada pelo vento.

Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à

espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água

do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa

a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos

dedos:

-- Maria! Abre aí, Maria. Sou eu -- chamou, em voz baixa.

Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.

Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o

ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da

televisão!

Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o

elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a

segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:

-- Maria, por favor! Sou eu!

Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos,

regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor,

fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar

um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam,

e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão.

Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa,

encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado,

enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.

Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.

-- Ah, isso é que não! -- fez o homem nu, sobressaltado.

E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele

ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu,

desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu

apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka,

instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do

Terror!

-- Isso é que não -- repetiu, furioso.

Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares,

obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a

momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão

do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de

mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou

descer? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta,

enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.

-- Maria! Abre esta porta! -- gritava, desta vez esmurrando a porta, já

sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si.

Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente

cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:

-- Bom dia, minha senhora -- disse ele, confuso. -- Imagine que eu...

A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:

-- Valha-me Deus! O padeiro está nu!

E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:

-- Tem um homem pelado aqui na porta!

Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:

-- É um tarado!

-- Olha, que horror!

-- Não olha não! Já pra dentro, minha filha!

Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era.

Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se

lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora,

bateram na porta.

-- Deve ser a polícia -- disse ele, ainda ofegante, indo abrir.

Não era: era o cobrador da televisão.

Esta é uma das crônicas mais famosas do grande escritor mineiro

Fernando Sabino. Extraída do livro de mesmo nome, Editora do Autor -

Rio de Janeiro, 1960, pág. 65.

A mulher do vizinho

Fernando Sabino

Contaram-me que na rua onde mora (ou morava) um conhecido e

antipático general de nosso Exército morava (ou mora) também um sueco

cujos filhos passavam o dia jogando futebol com bola de meia. Ora, às

vezes acontecia cair a bola no carro do general e um dia o general

acabou perdendo a paciência, pediu ao delegado do bairro para dar um

jeito nos filhos do sueco.

O delegado resolveu passar uma chamada no homem, e intimou-o a

comparecer à delegacia.

O sueco era tímido, meio descuidado no vestir e pelo aspecto não parecia

ser um importante industrial, dono de grande fabrica de papel (ou coisa

parecida), que realmente ele era. Obedecendo a ordem recebida,

compareceu em companhia da mulher à delegacia e ouviu calado tudo o

que o delegado tinha a dizer-lhe. O delegado tinha a dizer-lhe o

seguinte:

— O senhor pensa que só porque o deixaram morar neste país pode logo

ir fazendo o que quer? Nunca ouviu falar numa coisa chamada

AUTORIDADES CONSTITUÍDAS? Não sabe que tem de conhecer as leis

do país? Não sabe que existe uma coisa chamada EXÉRCITO

BRASILEIRO que o senhor tem de respeitar? Que negócio é este? Então é

ir chegando assim sem mais nem menos e fazendo o que bem entende,

como se isso aqui fosse casa da sogra? Eu ensino o senhor a cumprir a

lei, ali no duro: dura lex! Seus filhos são uns moleques e outra vez que eu

souber que andaram incomodando o general, vai tudo em cana. Morou?

Sei como tratar gringos feito o senhor.

Tudo isso com voz pausada, reclinado para trás, sob o olhar de

aprovação do escrivão a um canto. O sueco pediu (com delicadeza)

licença para se retirar. Foi então que a mulher do sueco interveio:

— Era tudo que o senhor tinha a dizer a meu marido?

O delegado apenas olhou-a espantado com o atrevimento.

— Pois então fique sabendo que eu também sei tratar tipos como o

senhor. Meu marido não e gringo nem meus filhos são moleques. Se por

acaso incomodaram o general ele que viesse falar comigo, pois o senhor

também está nos incomodando. E fique sabendo que sou brasileira, sou

prima de um major do Exército, sobrinha de um coronel, E FILHA DE UM

GENERAL! Morou?

Estarrecido, o delegado só teve forças para engolir em seco e balbuciar

humildemente:

— Da ativa, minha senhora?

E ante a confirmação, voltou-se para o escrivão, erguendo os braços

desalentado:

— Da ativa, Motinha! Sai dessa...

Texto extraído do livro "Fernando Sabino - Obra Reunida - Vol.01",

Editora Nova Aguiar - Rio de Janeiro, 1996, pág. 872.

O Golpe do Comendador

Fernando Sabino

Ele sabia que aquilo ainda ia acabar mal. Ele era noivo, à antiga: pedido

oficial, aliança no dedo, casamento marcado, Mas, no ardor da juventude,

não se contentava em ter uma noiva em Copacabana: tinha também uma

namorada na cidade.

Encontravam-se na hora do almoço, ou em algum barzinho do centro, ao

cair da tarde, encerrado o expediente. Ele trabalhava num banco, ela num

escritório. A noiva não trabalhava: vivia em casa no bem-bom.

E tudo ia muito bem, até que a namorada, que morava na Tijuca, resolve

se mudar também para Copacabana.

A princípio ele achou prudente não voltarem juntos, já que uma não sabia

da existência da outra. Com o correr do tempo, porém, foi relaxando o

que lhe parecia um excesso de precauções. Mais de uma vez eu adverti

ao meu amigo:

— Cuidado. Um dia a casa cai.

— Seria o auge da coincidência — protestava ele.

Pois acabou acontecendo. Foi numa tarde em que os dois voltavam de

ônibus para Copacabana, muito enleados, mãozinhas dadas. Ali pela altura

do Flamengo, ao olhar casualmente pela janela, ele viu e reconheceu de

longe a moça que fazia sinal no ponto de parada.

Em pânico, o seu primeiro impulso foi o de gritar para o motorista que

não parasse, para evitar o encontro fatal. Era o cúmulo do azar: havia um

lugar vago justamente a seu lado, naquele último banco, que comportava

cinco passageiros.

O ônibus parou e ela subiu. Ele se encolheu, separando-se da outra,

mãos enfiadas entre os joelhos e olhando para o lado — como se

adiantasse: já tinha sido visto. A noiva sorriu, agradavelmente

surpreendida:

— Mas que coincidência!

E sentou-se a seu lado. Você ainda não viu nada — pensou ele, sentindo-

se perdido, ali entre as duas. Queria sumir, evaporar-se no ar. Num

gesto meio vago, que se dirigia tanto a uma como a outra, fez a

apresentação com voz sumida:

— Esta é a minha noiva...

— Muito prazer — disseram ambas.

E começaram uma conversa meio disparatada por cima do seu

cadáver:

— Você o conhece há muito tempo? — perguntou a noiva titular.

— Algum - respondeu a outra, tomando-o pelo braço: — Só que

ainda não estamos propriamente noivos, como ele disse...

— Ah, não? Que interessante! Pois nós estamos, não é, meu bem? E

a noiva o tomou pelo outro braço:

— Você não havia me falado a respeito da sua amiguinha...

Atordoado, nem tendo 0 ônibus chegado ainda ao Mourisco, ele

perdeu completamente a cabeça. Desvencilhou-se das duas e se

precipitou para a porta, ordenando ao motorista:

— Pare! Pare que eu preciso descer!

Saltou pela traseira mesmo, sem pagar, os demais passageiros o

olhavam, espantados, o trocador não teve tempo de protestar. Atirou-se

num táxi que se deteve ante seus gestos frenéticos, foi direto à minha

casa:

— Você tem que me ajudar a sair dessa.

Amigo é para essas coisas, mas não me dou por bom conselheiro em tais

questões. Mal consigo eu próprio sair das minhas: a emenda em geral é

pior do que o soneto. Ainda assim, tão logo ele me contou o que havia

acontecido, ocorreu-me dizer que, se saída houvesse, ele teria que abrir

mão de uma — com as duas é que não poderia ficar. Qual delas preferia?

— A minha noiva, é lógico - afirmou ele, sem muita convicção: É

com ela que vou me casar.

E torcia as mãos, nervoso:

— Pretendia, né? Imagino o que a esta hora já não devem ter dito

uma para a outra. O pior é que minha noiva é meio esquentada, para

acabar no tapa não custa.

Respirou fundo, mudando o tom:

— Também, que diabo tinha ela de tomar exatamente aquele

ônibus? E o que é que estava fazendo àquela hora no Flamengo? De onde

é que ela vinha?

— Eu que sei? — e comecei a rir: — Me desculpe, meu velho, mas

essa não pega.

Ele se deixou cair na poltrona.

— É isso mesmo. Não pega. Nenhuma pega. Estou liquidado. Não

tem saída.

— Só vejo uma — e fiz uma pausa, para dar mais ênfase: — O

golpe do comendador.

Marido exemplar, pai extremoso, avô dedicado, como se usava

antigamente, o ilustre comendador era de uma respeitabilidade sem jaça.

Vai um dia sua digníssima consorte, chegando inesperadamente em casa,

dá com o ilustre na cama da empregada. Com a empregada.

Enquanto a esposa ultrajada se entregava a uma crise de nervos lá

na sala, o comendador se recompunha no local do crime, vestindo

meticulosamente a roupa, inclusive colete, paletó e gravata. Em seguida

se dirigiu a ela nos seguintes termos:

— Reconheço que procedi como um crápula, um canalha, um

miserável. Cedi aos sentidos, conspurcando o próprio lar. Você tem o

direito de renegar-me para sempre, e mesmo de me expor à execração

pública. E provocar em conseqüência a desgraça de nosso casamento, a

desonra de meu nome e o opróbrio de nossos filhos e netos. A menos

que resolva me perdoar, e neste caso não se fala mais nisto. Perdoa ou

não?

Aturdida com tão eloqüente falatório, a mulher parou de chorar e

ficou a olhá-lo, apalermada.

— Vamos, responda! — insistiu ele com firmeza: — Sim ou não?

— Sim — balbuciou ela, timidamente.

Ele cofiou os bigodes e, do alto de sua reassumida dignidade,

declarou categórico:

— Pois então não se fala mais nisto.

Tão logo ouviu o caso do comendador, o noivo desastrado resolveu

imitá-lo. De minha casa mesmo telefonou para a noiva, dizendo-lhe

atropeladamente que ele era um crápula, um canalha — em resumo: o ser

mais ordinário que jamais existiu na face da terra. Depois, sem lhe dar

tempo de retrucar, despejou-lhe uma cachoeira de declarações

amorosas, invocando o casamento marcado, a felicidade de ambos para

sempre perdida, os filhos que não mais teriam... Não faltaram nem

reminiscências dos primeiros dias de namoro - tanto tempo já que se

amavam, ela não tinha treze anos quando se conheceram, as trancinhas

que usava, lembra-se? Tudo isso ia por água abaixo — a menos que o

perdoasse.

Desligou o telefone, vitorioso.

— Concordou em se encontrar comigo.

— Não se esqueça. O comendador.

— Já sei. Não se fala mais nisto.

E se foi, alvoroçado. Nem comigo se falou mais nisto, mas de

alguma forma deu certo, pois acabou se casando, teve vários filhos e,

segundo ouvi dizer, vive feliz até hoje.

Com a outra.

Texto extraído do livro “Fernando Sabino – Obra Reunida”,

Volume III, Editora Nova Aguilar S.A. – Rio de Janeiro, 1996, pág. 148.

No Quarto da Valdirene

Fernando Sabino

Mal ele entrou em casa, a mulher o tomou pelas mãos, ansiosa:

- Estava aflita para você chegar.

E sussurrou, apontando dramaticamente para os lados da cozinha:

- Tem um homem no quarto da Valdirene.

Sacudiu a cabeça com irritação:

- Desde o primeiro dia eu achei que essa menina não era boa coisa. Ela

nunca me enganou.

Valdirene, a jovem empregada, uma mulata de olhos grandes, não faria

feio num palco.

- Como e que você sabe? - perguntou ele, para ganhar tempo. Não

partilhava da opinião da mulher: desde o primeiro dia achou que a

Valdirene era ótima.

- Sei porque vi. Escutei um ruído qualquer ai fora no corredor, olhei pelo

olho mágico, e vi quando ela punha ele para dentro pela porta de serviço.

- Ele quem?

- O homem. Não sei quem é, só sei que é um homem. Deve ser o

namorado dela, ou o amante, tanto faz. O certo e que os dois estão

trancados lá no quarto faz um tempão.

- Vai ver que já saiu.

- Não saiu não, que eu não sou boba, fiquei de olho. Esta lá dentro com

ela até agora.

- E o que e que você quer que eu faça?

- Quero que bote ele pra fora, essa e boa.

- Por quê?

Ela botou as mãos na cintura:

- Por quê? Você ainda pergunta por que? Então tem cabimento a gente

deixar que a empregada receba homens no quarto dela? O que e que essa

menina está pensando que minha casa é? Um motel? Se você não for lá,

eu mesma vou.

- Espera ai, vamos com calma, mulher. Você tem razão, mas deixa a

gente raciocinar um pouco. Não podemos é perder a cabeça. Pode ser

perigoso. Como é que ele é?

- Não cheguei a ver direito. Só vi que era um homem. Para mim, basta.

- Não posso ir lá no quarto dela sem mais nem menos. Quem sabe é

algum parente? Um irmão, talvez...

- Um irmão, talvez... Você tem cada uma! Pior ainda: que é que um irmão

tem de ficar fazendo trancado no quarto com a irmã como eles dois

estão? Você tem de pôr esse homem pra fora.

- E se estiver armado? Ele pode muito bem estar armado.

- Já que você está com medo...

- Não estou com medo. Só que temos de agir com calma. Vamos ver

como a gente sai dessa. Deixa comigo.

Ele respirou fundo e se meteu pela cozinha, ganhou a área de serviço,

ficou à escuta. Nada, tudo quieto e às escuras no quarto da Valdirene.

Bateu de leve na porta:

- Valdirene.

Via-se pelas frestas da veneziana na própria porta que o quarto

continuava no escuro. Ele bateu de novo:

- Valdirene, está me ouvindo? Valdirene!

Escutou alguém se mexendo lá dentro e a voz estremunhada da moça:

- Senhor?

- Tem alguém com você ai dentro, Valdirene?

- Tem não senhor.

- Abra um instante, por favor.

Em pouco ela abria a porta, furtivamente, e o encarava sem piscar.

Vestia um baby-doll pequenino e transparente que, sob a luz mortiça

vinda da área, deixava quase todo seu corpo à mostra.

- Acenda essa luz, minha filha.

Mais para vê-la melhor do que para olhar o quarto, pois mesmo no

escuro podia-se verificar que ali dentro não havia mais ninguém. Luz

acesa, ela se protegia discretamente com os braços, enquanto ele dava

uma olhada rápida por cima do seu ombro:

- Tudo bem. Desculpe o incômodo. Boa noite.

Voltou para a sala, onde a mulher o aguardava, tensa de expectativa. - E

então?

- Não tem ninguém.

- Como não tem ninguém? Pois se eu vi o homem entrando!

- Se viu entrando, não viu saindo. O certo é que não tem ninguém no

quarto da Valdirene, além dela própria. Vamos dormir.

- Como é que eu posso ir dormir sabendo que tem um estranho dentro de

casa? Você vai voltar lá e olhar direito.

- Eu olhei direito. Se não acredita, vai lá e olha você.

- Quem e o homem nesta casa? Se você não for olhar eu não fico aqui

dentro nem mais um minuto. Vou direto à polícia.

Ele ergueu os braços e os deixou cair, com um suspiro resignado:

- Essa mulher, meu Deus. Agora é você que está com medo. Direto à

polícia. Como se fosse um crime... Tudo bem, eu vou lá olhar direito.

Voltou a bater na porta da empregada:

- Valdirene.

Desta vez ela respondeu logo:

- Senhor?

- Abra ai um instante, por favor.

- Sim senhor.

Ela abriu e foi logo acendendo a luz. Estimulado pela nova oportunidade

de vê-la tão de perto, ele perdeu a cerimônia e entrou no quarto. Sempre

de olho nela e ouvido atento à mulher lá na sala. Ali dentro só cabia a

cama e o armariozinho com uma cortina, atrás da qual ninguém poderia

se esconder. Ainda assim ergueu o pano para se certificar. Satisfeito,

voltou-se para a moça que, ao sentir seus olhos tão próximos, abaixara

modestamente os dela:

- Desculpe, minha filha. É que minha mulher, você sabe, quando ela

cisma uma coisa... Mas pode dormir sossegada. Boa noite.

Na sala, a mulher voltou a questioná-lo:

- Você olhou direito desta vez?

- Não há como olhar errado. Um quarto deste tamaninho! Olhei o que

tinha para olhar: a Valdirene e a cama.

- A Valdirene e a cama? O que você quer dizer com isso?

- Não quero dizer coisa nenhuma. É que ali dentro não cabe mais nada

além da Valdirene e da cama.

- Não é isso que parece estar insinuando, com essa sua cara.

- Que é que tem minha cara? Você é que insinuou que tinha um homem lá

dentro, não fui eu. Não me admiraria nada. Mas acontece que não tem. Só

faltou olhar debaixo da cama.

- Não admiraria nada - ela o imitou, com um trejeito. E ordenou, braço

estendido:

- Pois então vai olhar debaixo da cama.

- Essa não! - relutou ele: - Já disse que não cabe ninguém...

Mas acabou indo. Pobre da menina, de novo importunada:

- Me desculpe, Valdirene, mas é preciso que você abra aí outra vez. '

Ela acendeu a luz, abriu a porta e deu-lhe passagem. Seus olhos o

acompanharam impassíveis, quando ele entrou e se agachou para olhar

debaixo da cama. De quatro, sentindo-se ridículo naquela postura, ele

baixou a cabeça até que a ponta do queixo tocasse o chão, e enfiou-a

sob o estrado. Seu nariz esbarrou de cheio em algo branco e macio - era

nada menos que o traseiro de um homem.

- Oi - assustou-se, recuando.

- Oi - fez o homem, como um eco, encolhendo-se ainda mais.

Ele se ergueu. perturbado, limpou a garganta, procurando dar firmeza à

voz:

- O senhor tem um minuto pra sair deste quarto.

Um último olhar para Valdirene, como a dizer que sentia muito mas não

podia deixar de cumprir o seu dever, e foi ter com a mulher na sala:

- Tinha sim. Tinha um homem debaixo da cama. Está satisfeita?

- Eu não disse? E o que é que você fez?

- Mandei que ele se pusesse pra fora. É o tempo de se vestir.

- Meu Deus, ele estava nu?

- Que é que você queria? Não sei é como ele pôde caber lá debaixo.

Imagino o susto dele. E o da Valdirene, coitadinha.

No dia seguinte, mal amanheceu, ela despedia a Valdirene, coitadinha.

Texto extraído da revista "Playboy", edição de outubro/1983.

(Publicado no livro "O Gato Sou Eu", Editora Record - Rio de Janeiro,

1983, pág. 147).