Crónica Das Palavras

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Crónica das palavras Há muito se perdeu a noção de que as palavras têm honra. Políticos servem-se delas para mentir, ocultar, dissimular a verdade dos factos e as evidências da realidade. Mas também escritores e jornalistas as debilitam e as entregam às suas pessoais negligências. Não é, somente, uma questão de gramática e de estilo; mas é, também, uma questão de gramática e de estilo. Há escritores e jornalistas que o não são à força de o querer ser. A confusão instalou-se, com a cumplicidade leviana de uma crítica pedânea 1 e de um noticiário predisposto a perdoar a mediocridade e a fraude. As palavras possuem cores secretas, odores subtis, densidades ignoradas. O discurso político conduz-nos ao nojo da frase. Pessoalmente, tento limpar o reiterado registo da aldrabice e da ignorância com a releitura dos nossos clássicos. Recomendo o paliativo 2 . Eis-me às voltas com as Viagens na Minha Terra. Garrett não era, propriamente, uma flor imaculada. Mas foi um mestre inigualável na arte da escrita. Lembro-o porque, a seguir, revisitei o terceiro volume de As Farpas, onde Ramalho reproduz uma conversa com Herculano. O historiador retratou assim o seu companheiro das lutas liberais: "Por cem ou duzentas moedas, num dia de apuro, o Garrett seria capaz de todas as porcarias que quiserem, menos de pôr num papel, a troco de todo o ouro do mundo, uma linha mal escrita." Desaprendeu-se (se é que, vez alguma, foi seriamente aprendido) o vocabulário da língua. Lê-se o por aí publicado e a pobreza lexical chega a ser confrangedora 3 . Não se trata de simplicidade; antes, desconhecimento, incultura, ausência de estudo. "Foge de palavras velhas; mas não receies o uso de palavras antigas." Recomendava Garrett. Palavras velhas, travestidas de “modernidade”, são, por exemplo: expetável, incontornável, enfatizar, implementar, recorrente, elencar, fatível, plafonamento, exequível, checar, fraturante, imperdível, abrangente, atempadamente, alavancar, empolamento - e há mais. Reconheço o meu verdete por certas palavras e expressões. Não é embirração de caturra, nem rabugice de um reta-pronúncia. Será o gosto da palavra, a alegria de com elas trabalhar há longuíssimos anos, a circunstância de ser um leitor com fôlego,

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Crónica das palavras

Há muito se perdeu a noção de que as palavras têm honra. Políticos servem-se delas para mentir, ocultar, dissimular a verdade dos factos e as evidências da realidade. Mas também escritores e jornalistas as debilitam e as entregam às suas pessoais negligências. Não é, somente, uma questão de gramática e de estilo; mas é, também, uma questão de gramática e de estilo. Há escritores e jornalistas que o não são à força de o querer ser. A confusão instalou-se, com a cumplicidade leviana de uma crítica pedânea1 e de um noticiário predisposto a perdoar a mediocridade e a fraude.

As palavras possuem cores secretas, odores subtis, densidades ignoradas. O discurso político conduz-nos ao nojo da frase. Pessoalmente, tento limpar o reiterado registo da aldrabice e da ignorância com a releitura dos nossos clássicos. Recomendo o paliativo2. Eis-me às voltas com as Viagens na Minha Terra. Garrett não era, propriamente, uma flor imaculada. Mas foi um mestre inigualável na arte da escrita. Lembro-o porque, a seguir, revisitei o terceiro volume de As Farpas, onde Ramalho reproduz uma conversa com Herculano. O historiador retratou assim o seu companheiro das lutas liberais: "Por cem ou duzentas moedas, num dia de apuro, o Garrett seria capaz de todas as porcarias que quiserem, menos de pôr num papel, a troco de todo o ouro do mundo, uma linha mal escrita."

Desaprendeu-se (se é que, vez alguma, foi seriamente aprendido) o vocabulário da língua. Lê-se o por aí publicado e a pobreza lexical chega a ser confrangedora3. Não se trata de simplicidade; antes, desconhecimento, incultura, ausência de estudo. "Foge de palavras velhas; mas não receies o uso de palavras antigas." Recomendava Garrett. Palavras velhas, travestidas de “modernidade”, são, por exemplo: expetável, incontornável, enfatizar, implementar, recorrente, elencar, fatível, plafonamento, exequível, checar, fraturante, imperdível, abrangente, atempadamente, alavancar, empolamento - e há mais.

Reconheço o meu verdete por certas palavras e expressões. Não é embirração de caturra, nem rabugice de um reta-pronúncia. Será o gosto da palavra, a alegria de com elas trabalhar há longuíssimos anos, a circunstância de ser um leitor com fôlego, o facto de ter tido professores como o gramático e linguista Emílio Menezes, goês paciente, sábio e afável; e de haver frequentado alguns dos maiores escritores do século passado, para os quais o ato de escrever representava moral em ação. Lembro, com emoção e orgulho, Aquilino, José Gomes Ferreira, Migueis, Sena, Mário Dionísio, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Abelaira.

Esta crónica foi, também, um pretexto para os lembrar.

Baptista Bastos, Diário de Notícias, 4 de Fevereiro de 2009

1.Dizia-se antigamente dos juízes que, nas aldeias, julgavam de pé.2.Remédio que não cura mas que atenua a doença.3.Angustiante

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As crónicas são um tipo de texto informativo, dos media, cuja finalidade básica não é informar, tal como a notícia ou a reportagem. Normalmente é um texto breve, que se pode encontrar numa página de jornal, ou num espaço da rádio/televisão. É um texto que é sempre assinado pelo autor e parte de um assunto do quotidiano, um acontecimento banal, uma moda, um hábito, uma situação presenciada ou vivida pelo cronista. Desta forma é um texto de reflexão que visa tocar os ouvintes/leitores/espetadores para que estes ponderem sobre aquilo a que está a ser alvo da crónica. Este tipo de texto é muito caraterizado pela sua subjetividade, sendo que nele se encontram as opiniões pessoais do cronista.

A crónica das palavras tem como ponto de partida o facto de as palavras serem hoje em dia usadas para ocultar, dissimular a verdade e as evidências da realidade, por parte de membros representantes do governo ou outras pessoas de relevância na política, e de as palavras serem mal usadas por jornalistas. Nesta crónica está presente a opinião de que hoje em dia as pessoas já não escrevem como antigamente, já não possuem o domínio sobre as palavras, do jeito de antigamente em que alguns escritores como Garrett, o “mestre inigualável na arte da escrita”, fazia das suas palavras uma arte poderosa.

Na crónica fala-se também do quanto caíram em desuso algumas palavras e dos avanços na escrita revelando aquilo a que o cronista designou de “palavras revestidas de modernidade”, evidenciando este que o próprio Garrett recomendava o “uso de palavras antigas”. Enfim de certa forma o escritor tentou sensibilizar as pessoas para o poder que as palavras possuem e o quanto elas significam na atualidade.

O cronista não finalizou o texto sem relembrar as personagens com relevância na sua vida enquanto escritor, salientado este mesmo no fim que a crónica foi “um pretexto para os lembrar”.

Rafael Martins Nº2930 Turma RCP1316A