Crónica D. João I

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CRÓNICA D. JOÃO I Fernão Lopes

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CRÓNICA D. JOÃO I Fernão Lopes

Sebenta português 12 ano

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Crónica D. João I – Fernão Lopes

Quem foi Fernão Lopes?

(1418–1459) foi escrivão e cronista oficial do reino

de Portugal e o 4.° guarda-mor da Torre do Tombo.

De origem plebeia, pelos serviços prestados à

Coroa, recebeu carta de nobreza. Distinguiu-se dos

seus antecessores, dando grande importância à

análise crítica da História e à comprovação

documental dos eventos, buscando relatar os factos

como eles ocorreram, com verdade e objetividade,

corrigindo as opiniões parciais, os exageros

retóricos e as lendas. De uma forma inovadora, mostrou o povo como um

importante agente da História. Por isso, é considerado um renovador do género

da crónica histórica e o fundador da historiografia portuguesa.

A data de sua morte é incerta, mas consta-se que terá morrido com cerca de 80m

anos de idade.

Das crónicas que escreveu sobre a história de Portugal restam-nos apenas três

identificadas com segurança: a Crónica de D. Pedro, a Crónica de D. Fernando e

a Crónica de D. João I.

Fernão Lopes forma-se num contexto próximo a acontecimentos que se faziam

recentes na memória dos portugueses, como a Crise de 1383-1385 e a Batalha de

Aljubarrota (1385), o que lhe permitiu entrar em contacto com testemunhos dos

acontecimentos, sendo estes eventos relatados na sua obra de 1443, Crónica de D.

João I.

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Género de texto - Crónica medieval - textos em que se registam acontecimentos

históricos por ordem cronológica.

Características inovadoras de Fernão Lopes:

• Articulação entre a compilação de fontes e a investigação original e crítica;

• Dimensão interpretativa e estética;

• Visão global e integradora de várias perspetivas.

Afirmação da consciência coletiva:

• crise política de 1383-1385 (período sem rei/período de tomada de consciência de

liberdades e responsabilidades).

• Povo:

• Papel decisivo na fase de nomeação do Mestre (cap. 11).

• Preparação para o cerco, de forma empenhada e valorosa (cap. 115).

• Vivência da miséria associada à falta de mantimentos durante o cerco (cap. 148).

Atores individuais e atores coletivos

• Personagens históricas – Mestre de Avis, Álvaro Pais, D. Leonor, D. Nun’Álvares

Pereira, entre outros.

• Povo, massa anónima, a “arraia miúda”, a população das cidades, em especial a de

Lisboa. Mesmo em caso de diálogo, são vozes, normalmente não identificadas, que saem

da multidão, representando-a, ou dirigindo-se a outros companheiros.

Estilo

• Objetividade vs subjetividade

• Objetividade presente no rigor da pormenorização (cf. Descrições

pormenorizadas com valor descritivo e informativo).

• Subjetividade: presente na apreciação crítica e emotiva dos factos

relatados (interrogação retórica, frase exclamativa). “pensa alto, comenta,

interpela”

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• Conjugação de planos – planos gerais (focalização da cidade e dos atores coletivos que

nela intervêm) e planos de pormenor (incidência em grupos de personagens e/ou

situações particulares).

• Visualismo – recursos (comparação, personificação, enumeração, hipérbole) e

vocábulos que marcam o sensorialismo da linguagem (atos de ver e ouvir). Uso da

técnica da reportagem: o leitor "vê" e "sente" os acontecimentos, está no centro da ação.

• Coloquialismo – recursos expressivos (interrogação retórica, apóstrofe) e interpelação

do interlocutor, recorrendo à 2ª pessoa do plural.

• Dinamismo – recriação dos acontecimentos de forma dinâmica.

• Uso do discurso direto e indireto, misturados, com períodos longos e curtos e

alternados.

A crise de 1383-1385

Em 1383, D. Fernando, rei de Portugal estava a morrer. Como descendentes

deixava apenas a infanta D. Beatriz, a qual havia sido prometida a dois príncipes

castelhanos, a um Inglês e a mais um castelhano: Fernando, filho de D. João I de

Castela. No tratado de Salvaterra de Magos, o qual assinalava a paz com Castela,

o seu casamento havia sido decidido por este último castelhano e o filho varão

que nascesse herdaria o reino de Portugal.

O povo português temia este acordo, pois se D. Beatriz falecesse antes de dar à

luz um filho varão, Portugal perderia a sua independência.

Começaram a surgir dois candidatos ao trono (meios-irmãos) e os seus apoiantes:

• D. João, filho do Rei Pedro I de Portugal e D. Inês – acabou por ser preso;

• João, Grão-Mestre de Avis, filho bastardo de D. Pedro I – filho de D. Teresa

Lourenço, aia de Inês de Castro.

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Quando o rei morre, a regência do reino é entregue a D. Leonor Teles, a rainha e

os conflitos iniciam-se.

D. João I, mestre de Avis, foi apoiado pelas tropas Inglesas e organizou uma

reunião nas Cortes de Coimbra, onde acabou por ser eleito rei de Portugal. Esta

situação levantou uma grande revolta por parte dos castelhanos.

D. João I nomeou Nuno Álvares Pereira, Condestável de Portugal, para ser

protetor do reino.

Das lutas consta-se a batalha de Trancoso, o cerco de Lisboa e a batalha de

Aljubarrota. Nesta última, o exército castelhano foi derrotado, praticamente

aniquilado e o rei castelhano não voltou a tentar novas invasões nos anos

seguintes. Com esta vitória, João I foi reconhecido como rei de Portugal, pondo

um fim ao interregno e à anarquia da Crise de 1383-1385. O reconhecimento de

Castela chegaria apenas em 1411 com a assinatura do tratado de Ayllón-Segovia.

A aliança Luso-Inglesa seria renovada em 1386 no Tratado de Windsor e

fortalecida com o casamento de João I com Filipa de Lencastre (filha de João de

Gaunt). O tratado, que, ainda em vigor, vem a ser a mais antiga aliança do

mundo, estabeleceu um pacto de mútua ajuda entre Inglaterra e Portugal.

D. Leonor Teles e o Conde Andeiro

Com a morte de Fernando em 22 de outubro de 1383, Leonor assumiu

a regência do reino e o seu amante galego, João Fernandes Andeiro, passou a

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exercer uma influência decisiva na corte. Esta ligação e influência desagradavam

ao povo e à burguesia e a alguma nobreza, que odiavam a regente e temiam ser

governados por um soberano castelhano.

D. João, Mestre de Avis, apoiado por um grupo de nobres, entre os quais Álvaro

Pais e o jovem Nuno Álvares Pereira, foi incentivado pelo descontentamento

geral a assassinar o conde Andeiro. A ação ocorreu no paço, a 6 de dezembro de

1383.

Leonor abandonou Lisboa, fiel ao Mestre de Avis, e refugiou-se em Alenquer e

depois em Santarém, cidades fiéis à causa da rainha, onde tentou manobrar

politicamente a sua continuidade no poder. No entanto, com o desenvolver do

conflito entre o Mestre de Avis e o rei castelhano, a regente perdeu espaço de

manobra e acabou por ser constrangida a abdicar da regência a favor de João I de

Castela e de Beatriz, sua filha, a esposa do rei castelhano.

Com a vitória do partido do Mestre de Avis na guerra civil e contra Castela, este

tornou-se regente e depois rei. D. João I de Castela, genro de Leonor, logo em

1384, pouco depois dela ter renunciado à regência, havia-a internado no Mosteiro

de Tordesilhas, perto de Valhadolide, onde, segundo alguns historiadores,

faleceu em 1386. No entanto, referências do cronista castelhano Lopez de Ayala,

seu contemporâneo, dão-na como viva em 1390 e em data ainda mais tardia1.

Síntese da obra:

• Glorificação da memória de D. João I;

• Construção dos pilares da consciência nacional, através da criação de uma

tradição histórica legitimadora, mediante a elaboração da História de

Portugal desde os primórdios da humanidade.

• Narração do reinado de D. João I, desde a sua aclamação (depois da morte

do Conde Andeiro) até ao estabelecimento da paz com Castela.

• Nesta obra existe uma afirmação da consciência coletiva:

1 https://pt.wikipedia.org/wiki/Leonor_Teles

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o Afirmação de D. João como Regedor e Defensor do reino e,

posteriormente, como rei;

o Manifestação da coragem, do espírito de sacrifício e dos

sentimentos de patriotismo da população durante a Guerra Civil

com Castela.

Obra:

• Está dividida em duas partes:

o Na primeira parte: narração dos acontecimentos desde o

assassinato do Conde Andeiro (dezembro de 1383) e até à

aclamação do Mestre de Avis como rei de Portugal (abril de 1385);

▪ Tem 193 capítulos, onde se apresentam temas como:

• Relação e casamento de D. Fernando com D. Leonor

Teles;

• Conflitos com Castela;

• Assinatura do Tratado de Salvaterra de Magos

(determinando o casamento de D. Beatriz, filha de D.

Fernando e herdeira da coroa portuguesa, com o rei

de Castela); morte de D. Fernando; Envolvimento de

D. Leonor Teles com o Conde Andeiro.

o Na segunda parte: relato do conflito entre Portugal e Castela, desde

a aclamação de D. João I nas cortes de Coimbra (abril de 1385) à

assinatura do tratado de paz (31 de outubro de 1411).

▪ Tem 204 capítulos, onde se apresentam temas como:

• Descontentamento popular e reações à aclamação de

D. Beatriz e de D. João de Castela como monarcas

portugueses;

• Assassínio do Conde Andeiro pelo Mestre de Avis.

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A primeira parte da crónica – capítulos fulcrais para a afirmação da consciência

coletiva:

• Capítulo 11 – o povo vê no Mestre de Avis o seu herói

• Capítulo 115 – esta é a Lisboa prezada

• Capítulo 148 – a fome em Lisboa

Capítulo 11

Assunto do capítulo

Neste capítulo, Fernão Lopes narra a forma como a população de Lisboa, incitada pelos apelos do Pajem e de Álvaro Pais para que acudissem ao Mestre, porque o estavam a matar nos Paços da Rainha, se armou, saiu em multidão pelas ruas da cidade e se dirigiu em grande alvoroço para aqueles, a que quis lançar fogo e arrombar as portas. Os gritos que se ouvem (“Matam o Mestre”) vai aumentando a revolta ao longo do capítulo e os populares juntam-se diante do paço, jurando incendiá-lo. Embora tenham gritado de dentro do paço que quem morreu foi o conde Andeiro, a população não acredita e os seus intentos só foram travados quando, aconselhado pelos seus partidários, o Mestre apareceu a uma janela à multidão (“Amigos, apacificai-vos”), que, reconhecendo, se acalmou, aclamando-o e insultando o conde Andeiro e a rainha. Posteriormente, questionam-no: “Que nos mandais fazer, senhor?”. Ele responde que já não precisa de ajuda e, no momento em que se vai sentar à mesa para comer com o conde de Barcelos, chega a notícia de que a multidão furiosa quer matar o bispo. Título «Do alvoroço que foi na cidade cuidando que matavom o mestre, e como aló foi Alvoro Paez e muitas gentes com ele» Estrutura interna2

Momentos Delimitação Personagens Ação Espaço

Introdução

Convocação /

Apelo Linhas 1 a 5

Pajem

Álvaro Pais

O Pajem do Mestre

deixa o Paço da

Rainha e cavalga

velozmente pelas

ruas, em direção à

casa de Álvaro Pais,

gritando que mata, o

Mestre.

Pelas

ruas da

cidade

até à

casa de

Álvaro

Pais.

2 http://portugues-fcr.blogspot.com/2017/11/capitulo-xi-da-cronica-de-d-joao-i.html

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Desenvolvimento

Movimentação

+

Concentração

Linhas 6 a 21

Pajem

Álvaro Pais

Aliados de

Álvaro Pais

Povo

Álvaro Pais sai com

os seus homens e

grita pela cidade que

é necessário acudir

ao Mestre, por ser

filho de D. Pedro.

O povo junta-se a

Álvaro Pais e avança

em direção ao Paço.

Pela

cidade, a

partir da

casa de

Álvaro

Pais

Manifestação Linhas 22 a

43 Povo

O povo chega ao

Paço e mostra-se

gradualmente

furioso e impaciente

por saber o que

sucedeu ao Mestre e

planeia invadi-lo. É o

momento em que a

ação atinge o seu

clímax.

Às

portas

do Paço.

Aclamação Linhas 44 a

59

Povo

Mestre

Convencido pelos

que o rodeiam, o

Mestre dirige-se à

janela e mostra-se ao

povo,

tranquilizando-o

(pois está vivo e o

conde morto) e sendo

por ele aclamado.

À janela

do Paço

Conclusão

Dispersão Linhas 59 a

80

Mestre

Povo

O Mestre sai do Paço

e convence o povo a

dispersar.

O Mestre atravessa a

cidade e dirige-se ao

Paço do Almirante.

Paço

Pelas

ruas da

cidade

Alexandre Dias Pinto e Patrícia Nunes (in Entre nós e as Palavras 10, Santillana, p. 75) propôs outra divisão do capítulo.

. 1.ª parte (de “O Page do Meestre que estava aa porta…” a “… que matam sem por

quê.”) – Os partidários do Mestre percorrem Lisboa para mobilizar a população

(a favor do Mestre), que os segue. . 2.ª parte (de “A gente começou de se juntar…” a “– Pois se vivo é, mostrae-no-lo e

vee-lo-emos.”) – A multidão junta-se no Paço e ameaça invadi-lo se não tiver notícias de D. João.

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. 3.ª parte (de “Entom os do Meestre veendo…” a “E assi forom pera os Paaços u pousava o Conde.”) – O Mestre mostra-se à janela, abandona o Paço e pede à multidão que disperse.

. 4.ª parte (de “E estando eles por se assentar…” a “… desta guisa que se segue.”) – D.

João é informado de que o Bispo de Lisboa está em perigo, mas é aconselhado a não intervir.

GRUPO I

Leia o seguinte excerto, transcrito do Capítulo 11 da Crónica de D. João I, de Fernão Lopes. Em caso de necessidade, consulte o glossário apresentado, por ordem alfabética, nas Notas.

Do alvoroço que foi na cidade cuidando que matavom o Mestre, e como aló foi Alvoro Paez e muitas gentes com ele.

O Page do Mestre que estava aa porta, como lhe disserom que fosse pela vila segundo já era percebido, começou d'ir rijamente a galope em cima do cavalo em que estava, dizendo altas vozes, bradando pela rua: – Matom o Mestre! matom o Mestre nos Paços da Rainha! Acorree ao Mestre que matam! E assi chegou a casa d’ Alvoro Paez que era dali grande espaço. As gentes que esto ouviam, saíam aa rua veer que cousa era; e começando de falar u~us com os outros, alvoraçavom-se nas vontades, e começavom de tomar armas cada u~u como melhor e mais asinha podia. Alvoro Paez que estava prestes e armado com ~ua coifa na cabeça segundo usança daquel tempo, cavalgou logo a pressa em cima du~u cavalo que anos havia que nom cavalgara; e todos seus aliados com ele, bradando a quaesquer que achava dizendo: – Acorramos ao Mestre, amigos, acorramos ao Mestre, ca filho é deI-Rei dom Pedro. E assi bradavom el e o Page indo pela rua. Soarom as vozes do arroido pela cidade ouvindo todos bradar que matavom o Mestre; e assi como viuva que rei nom tiinha, e como se lhe este ficara em logo de marido, se moverom todos com mão armada, correndo a pressa pera u deziam

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que se esto fazia, por lhe darem vida e escusar morte. Alvoro Paez nom quedava d'ir pera alá, bradando a todos: – Acorramos ao Mestre, amigos, acorramos ao Mestre que matam sem por quê! A gente começou de se juntar a ele, e era tanta que era estranha cousa de veer. Nom cabiam pelas ruas principaes, e atrevessavom logares escusos, desejando cada u~u de seer o primeiro; e preguntando u~us aos outros quem matava o Mestre, nom minguava quem responder que o matava o Conde Joam Fernandez, per mandado da Rainha. Crónica de D. João I de Fernão Lopes (ed. Teresa Amado), Lisboa,

Comunicação, 1992 (Texto com algumas alterações, feitas de acordo com a grafia atual.)

Notas

aló (l. 1): então.

alvoraçavom-se nas vontades (l. 9):

excitavam-se os ânimos.

arroido (l. 15): ruído.

asinha (l. 10): depressa.

coifa (l. 10): parte da armadura que cobria a

cabeça.

com mão armada (l. 17): com armas na mão.

em logo de (l. 16): em lugar de.

era dali grande espaço (l. 7): era longe dali.

escusar (l. 18): evitar.

escusos (l. 21): escondidos ou pouco

frequentados.

minguava (l. 22): faltava.

nom quedava d'ir pera alá (l. 18): não parava

de ir para lá; continuava a dirigir-se para lá.

percebido (l. 4): combinado.

prestes (l. 9): pronto; preparado.

rijamente (l. 4): energicamente; depressa.

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens.

1. Contextualize os acontecimentos relatados no excerto da Crónica de D. João I.

2. As ações do Pajem e de Álvaro Pais obedecem a um plano previamente traçado. Justifique esta afirmação, com base na informação contida no texto.

3. Descreva três das reações das «gentes» aos apelos lançados pelo Pajem e

por Álvaro Pais.

4. Explique a relação de sentido que se estabelece entre o texto e a frase que lhe serve de título.

5. O narrador vai alternando entre discurso direto e discurso indireto ao longo da narração.

a. Explique o efeito produzido e a sua relevância para a missão de cronista.

6. Refira uma característica da escrita de Fernão Lopes patente no texto,

fundamentando a resposta com citações relevantes

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Capítulo 115

Assunto do capítulo A cidade de Lisboa estava organizada para resistir ao cerco. As muralhas com as

suas 67 torres, foram divididas em setores, cada um dos quais confiado a um

capitão e a certo grupo de defensores. Apesar do cerco, continuou a trabalhar-se

na construção da barbacã ( é um muro anteposto às muralhas, de menor altura

do que estas, com a função de proteger as muralhas dos impactos da artilharia),

do lado do acampamento

castelhano. As moças, sem nenhum

medo, andavam pelas terras a

apanhar pedra para as obras e

cantavam em alta voz dizendo:

«Esta é a Lisboa prezada – mira-la

e deixa-la…»

Título «Per que guisa estava a cidade corregida per se defender, quando el-rei de Castela pôs

cerco sobre ela»

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Capítulo 115

Per que guisa estava a cidade corregida para se defender, quando el-Rei de Castela pôs cerco sobre ela.

[…] Nom leixavom os da cidade, por serem assi cercados, de fazer a barvacãa1

d’arredor do muro da parte do arreal, des a porta de Santa Caterina, ataa torre d’Alvoro Paaez, que nom era ainda feita, que seriam dous tiros de besta; e as moças sem neuũ medo, apanhando pedra pelas herdades, cantavom altas vozes dizendo:

Esta Lixboa prezada, mirá-la e leixá-la. Se quiserdes carneiro, qual derom ao Andeiro; se quiserdes cabrito, qual derom ao Bispo.

e outras razões semelhantes. E quando os ẽmigos os torvar2 queriam, eram postos em aquel cuidado em que forom os filhos de Israel, quando Rei Serges, filho de rei

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Dario, deu licença ao profeta Neemias que refezesse os muros de Jerusalem, que guerreados pelos vezinhos d’arredor, que os nom alçassem3, com ũa mão poinham a pedra, e na outra tinham a espada pera se defender; e os Portugueses fazendo tal obra, tinham as armas junto consigo, com que se defendiam dos ẽmigos quando se trabalhavom de os embargar4, que a nom fezessem.

As outras cousas que pertenciam ao regimento da cidade, todas eram postas em boa e igual ordenança; i nom havia nẽuũ que com outro levantasse arroido nem lhe empecesse per talentosos excessos5, mas todos usavom d’amigavel concordia, acompanhada de proveito comuũ.

Ó que fremosa cousa era de veer! Uũ tam alto e poderoso senhor como el-Rei de Castela, com tanta multidom de gentes assi per mar come per terra, postas em tam grande e boa ordenança, teer cercada tam nobre cidade! E ela assi guarnecida contra ele de gentes e d’armas com taes avisamentos6 por sua guarda e defensom! Em tanto que diziam os que o virom, que tam fremoso cerco de cidade nom era em memoria d’homeẽs que fosse visto de mui longos anos atá aquel tempo.

(1) barvacãa: barbacã, muro com função de defesa das muralhas, um pouco menor que a parede da muralha. (2) torvar: atrapalhar, perturbar. (3) que os nom alçassem: para que não erguessem os muros.

(4) embargar: impedir. (5) nem lhe empecesse per talentosos excessos: nem lhe causasse dano por atos intencionalmente desordeiros. (6) avisamentos: precauções.

1. Identifique o acontecimento histórico descrito neste excerto.

2. Mostre de que forma Lisboa e os seus habitantes preparam a defesa da cidade. Justifique a sua resposta com transcrições textuais.

3. Comprove que a caracterização de D. João de Castela e seu exército contribui para

enaltecer a população de Lisboa.

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Capítulo 148

Assunto do capítulo Em Lisboa, os mantimentos esgotaram-se totalmente, sobretudo para os pobres,

porque o pouco trigo que existia era muito caro. Alguns enganavam a fome com

ervas e água; nas ruas e praças da cidade aparecem os cadáveres de homens e

cachopos com as barrigas inchadas. Faltava o leite às mães, que mais nada tinham

que dar aos filhos senão as lágrimas que choravam. Muitos maldizem o dia em

que nasceram e pedem que a morte os leve depressa. Está ainda presente o

desabafo: oh, gente que depois veio, povo bem-aventurado, que não soube parte

de tantos males nem partilhou tão triste sofrimento.

Título «Das trilulações de Lisboa padecia per mingua de mantimentos»

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Capítulo 148 Das tribulações que Lisboa padecia per míngua de mantimentos.

Ó quantas vezes encomendavom nas missas e pregações que rogassem a Deos

devotamente por o estado da cidade! E ficados os geolhos1, beijando a terra, braadavom a Deos que lhes acorresse, e suas prezes2 nom eram compridas! Uũs choravom antre si, mal-dizendo seus dias, queixando-se por que tanto viviam, como se dissessem com o Profeta: «Ora veese a morte ante do tempo, e a terra cobrisse nossas faces, pera nom veermos tantos males!» Assi que rogavom a morte que os levasse, dizendo que melhor lhe fora morrer, que lhe serem cada dia renovados desvairados3 padecimentos. Outros se querelavom4 a seus amigos, dizendo que forom desaventuirada gente, que se ante nom derom a el-Rei de Castela5 que cada dia padecer novas mizquiindades6, firmando-se de todo nas peores cousas que fortuna em esto podia obrar.

Sabia porem isto o Meestre e os de seu Conselho, e eram-lhe doorosas d’ouvir taes novas; e veendo estes males a que acorrer nom podiam, çarravom suas orelhas do rumor do poboo.

Como nom querees que maldissessem sa vida e desejassem morrer alguũs homẽes e molheres, que tanta diferença há d’ouvir estas cousas aaqueles que as entom passarom7, como há da vida aa morte? Os padres e madres viiam estalar de fame os filhos que muito amavom, rompiam as faces e peitos sobr’eles, nom tendo com que lhe acorrer, senom planto e espargimento de lagrimas; e sobre todo isto, medo grande da cruel vingança que entendiam que el-Rei de Castela deles havia de tomar; assi que eles padeciam duas grandes guerras, ũa dos emigos que os cercados tinham, e outra

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dos mantimentos que lhes minguavom, de guisa que eram postos em cuidado de se defender da morte per duas guisas8.

Pera que é dizer mais de taes falecimentos? Foi tamanho o gasto das cousas que mester haviam que soou uũ dia pela cidade que o Meestre mandava deitar fora todolos que nom tevessem pam que comer, e que somente os que o tevessem ficassem em ela; mas quem poderia ouvir sem gemidos e sem choro tal ordenança de mandado aaqueles que o nom tinham? Porem sabendo que nom era assi, foi-lhe já quanto de conforto. Onde sabee que esta fame e falecimento que as gentes assi padeciam, nom era por seer o cerco perlongado9, ca nom havia tanto tempo que Lixboa era cercada; mas era per aazo das muitas gentes que se a ela colherom de todo o termo; e isso mesmo da frota do Porto quando veo, e os mantimentos serem muito poucos.

Ora esguardae10 como se fossees presente, ũa tal cidade assi desconfortada e sem neũa certa feúza11 de seu livramento, como veviriam em desvairados cuidados quem sofria ondas de taes aflições? Ó geeraçom que depois veo, poboo bem aventuirado, que nom soube parte de tantos males, nem foi quinhoeiro12 de taes padecimentos! Os quaes a Deos por Sua mercee prougue13 de cedo abreviar doutra guisa, como acerca ouvires.

(1) geolhos: joelhos. (2) prezes: preces, orações. (3) desvairados: diversos. (4) querelavom: queixavam-se. (5) que se ante nom derom a el-Rei de Castela: por não se terem entregado ao rei de Castela em vez de. (6) mizquindades: desgraças.

(7) d’ouvir estas cousas aaqueles que as entom passarom: entre ouvir estas coisas e passá-las. (8) guisas: maneiras. (9) perlongado: de longa duração. (10) esguardae: observai, olhai. (11) feúza: confiança, segurança. (12) quinhoeiro: participante. (13) prougue: agradou.

Apresente, de forma clara e bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Contextualize os acontecimentos relatados no excerto da Crónica de D. João I.

2. O excerto apresentado refere-se à situação vivenciada pelo povo de Lisboa dentro

das muralhas da cidade.

2.1 Releia o primeiro parágrafo e explicite duas atitudes dos habitantes

perante as dificuldades com que deparam.

2.2 Relacione as referências ao Mestre com a intenção de fornecer desta

personalidade uma imagem de humanidade.

3. Retire do texto dois exemplos que demonstrem a necessidade que o cronista tem

de estabelecer uma ligação com o leitor.

4. Na linha 21 afirma-se que os habitantes padeciam de duas grandes guerras.

Identifique-as e refira os sentimentos despertados no povo.