Cristiano José Pereira

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Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS DO VENDAVAL DESTRUTIVO À ESCOLA-MODELO: A TRAJETÓRIA DE UMA JOVEM DIRETORA NUMA ESCOLA MUNICIPAL EM TAUBATÉ-SP Cristiano José Pereira* Resumo: O estabelecimento de escolas públicas em determinadas comunidades e o estudo de caso de alunos oriundos destas com a escola, seja no campo disciplinar ou de aquisição de competências e habilidades, são temas recorrentes de trabalho no âmbito acadêmico. Porém, existe uma lacuna importante nos estudos que se relacionam com a escola: a de determinar com mais precisão o papel de um profissional muitas vezes estigmatizado – o Diretor. O presente artigo possui o objetivo de analisar a trajetória profissional de uma jovem Diretora, tendo como objeto específico o período que ela passou (2003-2007) à frente de uma escola pública municipal de Taubaté-SP. A escola partiu de um contexto de extrema carência: havia a falta de mobiliário, funcionários e até mesmo o prédio escolar foi destruído por um vendaval em 2003. Quatro anos mais tarde a carência e a destruição faziam parte do passado: a escola já era considerada como um autêntico modelo. Tal evolução deve-se, entre outros fatores, à ação contínua da Diretora como competente e efetiva gestora da escola. Portanto, estudaremos a ação e procedimentos desta Diretora frente à escola como gestora através do registro oral, recolhido através de entrevista. Palavras Chaves: Escola, competência, Diretora. Abstract: The establishment of public schools in certain communities and the study of students' case originating from of these with the school, be in the field to discipline or of acquisition of competences and abilities, they are appealing themes of work in the academic ambit. Even so, an important gap exists in the studies that link with the school: the one of determining with more precision the a professional's paper stigmatized a lot of times - the Director. The present article possesses the objective of analyzing the a Managing youth's professional trajectory, tends as specific object the period that she passed (2003-2007) ahead of a municipal public school of Taubaté-SP. The school left of a context of extreme privation: there was the furniture lack, employees and even the school building it was destroyed by a gale in 2003. Four years later the privation and the destruction were part of the past: the school was already considered as an authentic model. Such evolution is due, among other factors, to the Director's continuous action as competent and effective manager of the school. Therefore, we will study the action and procedures of this Managing front to the school as manager through the oral registration, picked up through interview. Keywords: School, competence, Director.

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Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS

DO VENDAVAL DESTRUTIVO À ESCOLA-MODELO:

A TRAJETÓRIA DE UMA JOVEM DIRETORA

NUMA ESCOLA MUNICIPAL EM TAUBATÉ-SP

Cristiano José Pereira*

Resumo: O estabelecimento de escolas públicas em determinadas comunidades e o estudo de caso de alunos oriundos destas com a escola, seja no campo disciplinar ou de aquisição de competências e habilidades, são temas recorrentes de trabalho no âmbito acadêmico. Porém, existe uma lacuna importante nos estudos que se relacionam com a escola: a de determinar com mais precisão o papel de um profissional muitas vezes estigmatizado – o Diretor. O presente artigo possui o objetivo de analisar a trajetória profissional de uma jovem Diretora, tendo como objeto específico o período que ela passou (2003-2007) à frente de uma escola pública municipal de Taubaté-SP. A escola partiu de um contexto de extrema carência: havia a falta de mobiliário, funcionários e até mesmo o prédio escolar foi destruído por um vendaval em 2003. Quatro anos mais tarde a carência e a destruição faziam parte do passado: a escola já era considerada como um autêntico modelo. Tal evolução deve-se, entre outros fatores, à ação contínua da Diretora como competente e efetiva gestora da escola. Portanto, estudaremos a ação e procedimentos desta Diretora frente à escola como gestora através do registro oral, recolhido através de entrevista. Palavras Chaves: Escola, competência, Diretora. Abstract: The establishment of public schools in certain communities and the study of students' case originating from of these with the school, be in the field to discipline or of acquisition of competences and abilities, they are appealing themes of work in the academic ambit. Even so, an important gap exists in the studies that link with the school: the one of determining with more precision the a professional's paper stigmatized a lot of times - the Director. The present article possesses the objective of analyzing the a Managing youth's professional trajectory, tends as specific object the period that she passed (2003-2007) ahead of a municipal public school of Taubaté-SP. The school left of a context of extreme privation: there was the furniture lack, employees and even the school building it was destroyed by a gale in 2003. Four years later the privation and the destruction were part of the past: the school was already considered as an authentic model. Such evolution is due, among other factors, to the Director's continuous action as competent and effective manager of the school. Therefore, we will study the action and procedures of this Managing front to the school as manager through the oral registration, picked up through interview. Keywords: School, competence, Director.

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INTRODUÇÃO – ESPAÇO DELIMITADO DE UMA ESCOLA

A cidade de Taubaté, situada numa região denominada Vale do Paraíba no

Estado de São Paulo, é uma cidade de porte médio, predominantemente industrial.

Analisaremos neste artigo um aspecto específico de um passado recente: em 1989,

foi aberto um novo loteamento em Taubaté, denominado “Quinta das Frutas”. A

região cresceu rapidamente.

Ao longo de 2002, já num novo loteamento situado acima do “Quinta das

Frutas”, o “Quinta dos Eucaliptos”, o prefeito José Bernardo Ortiz mandou construir

uma nova escola. A necessidade de ocupação do novo prédio escolar foi tão ingente

que as aulas começaram sem as mínimas condições básicas: limpeza, mobiliário,

cercamento do prédio escolar etc. A escola foi aberta ao público com mais de dois

meses de atraso (www.valeparaibano.com.br. Acesso em 29/12/2007).

Apesar das dificuldades, havia um elemento importante para o posterior

sucesso da escola: a presença de uma Diretora dinâmica, disposta a reverter a

situação de carência, tanto do prédio escolar, quanto da comunidade que,

finalmente, tinha um prédio escolar para iniciar ou continuar seus estudos.

HISTÓRIA ORAL E COMPREENSÃO DO CONTEXTO ESCOLAR

É evidente que analisar acontecimentos situados num tempo imediatamente

anterior ao presente reserva grandes dificuldades ao historiador: há a comoção

deste profissional ter acompanhado – vivo – tais acontecimentos, podendo

interpretá-los de forma parcial. Mas o historiador deve ter argúcia e, principalmente,

sensibilidade: o mais importante não é simplesmente acumular informações em

entrevistas, mas sim atribuir real importância ao que é dito pelo próprio entrevistado,

quando informações dadas via oralidade adquirirão real significado e pertinência.

Portanto, a descoberta da história oral pelos historiadores, agora em

andamento, provavelmente não será ignorada. E ela não é apenas uma

descoberta, mas também uma reconquista. Oferece à história um futuro livre

da significação cultural do documento escrito. E devolve também ao

historiador a mais antiga habilidade de seu ofício. (THOMPSON,1992:103)

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Cada contexto escolar possui potencialidades e também dificuldades em

alguns aspectos. O historiador, estudioso da escola, para compreender a

complexidade de cada contexto, deve ter a consciência de não deixar de lado uma

fonte de múltiplas informações e vivências: a Direção. Naturalmente, a trajetória de

um profissional para tornar-se Diretor não pode ser deixada de lado na compreensão

da importância que uma escola possui numa dada comunidade, região ou país,

trajetória esta que é muitas vezes simplesmente ignorada em estudos acadêmicos

brasileiros. Resta aos Diretores o estigma de “supremos mandatários inacessíveis”,

profissionais pouco dispostos a colaborarem com os pesquisadores e estudiosos

das escolas públicas brasileiras. Estigma injusto, conforme veremos neste artigo.

Fernand Braudel, em um artigo denominado “Por Uma Economia Histórica”,

não deixa de analisar tópicos que possuem imediatas relações com a História Oral:

O tempo que é o nosso, o da nossa experiência, da nossa vida, o tempo que

torna a trazer as estações e faz florescer as rosas, que marca o escoamento

da nossa idade, conta também as horas da existência das diversas

estruturas sociais, mas com um outro ritmo. (BRAUDEL,1965:349)

Portanto, este artigo está situado na curta duração, o que faz, dentro da

chamada “dimensão dos indivíduos” – no caso, a nossa entrevistada – ter, ao

lembrar-se do passado, uma “rápida tomada de consciência”. (BRAUDEL,1965:264).

Este artigo poderia situar-se numa duração maior; mas em Taubaté, e também em

outras cidades brasileiras, os diretores estão sujeitos a remanejamentos diversos.

DE ESTUDANTE À PROFESSORA: VIRGÍNIA DURCI

Virgínia Durci possui uma trajetória de vida modelar para compreendermos a

abnegação que envolve a profissão de Diretor: natural de Cruzeiro-SP, uma

pequena cidade do Vale do Paraíba, mudou-se para Taubaté ainda criança,

concluindo o Ensino Fundamental numa escola pública. Após ser aprovada numa

prova seletiva, tornou-se “normalista” na Escola Estadual “Monteiro Lobato”, situada

também em Taubaté, onde formou-se em 1987. Teve grandes professores, os quais

transmitiam o conhecimento com o mérito de não fazer o “ambiente escolar ficar

pesado”.

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Quando estudante, Virgínia teve a oportunidade de fazer um estágio, tanto de

observação, quanto de regência, na função de “auxiliar escolar”, o que foi de grande

importância para sua formação, “melhorando a criança” que havia dentro dela.

Aprendeu a utilizar a prática montessoriana de ensino, além de elementos preciosos

que devem estar obrigatoriamente inclusos numa escola: organização, visão de uma

determinada estrutura e a aplicação possível de disciplina com liberdade.

Após terminar o seu curso de Magistério, Virgínia Durci foi trabalhar numa

Secretaria de uma escola particular de Taubaté, que estava no início de suas

atividades na cidade. Também essa experiência lhe foi preciosa: aprendeu todas as

rotinas presentes numa Secretaria Escolar, inclusive aquelas que se referiam

especificamente à burocracia presente em centenas de papéis para preencher,

carimbar e assinar. Ao mesmo tempo, teve a oportunidade de formar-se em

Comunicação Social pela Universidade de Taubaté (UNITAU), terminando o seu

curso em dezembro de 1991.

Como profissional consciente de suas capacidades, Virgínia Durci não

contentou-se em permanecer como Secretária. Ao contrário: a Prefeitura Municipal

de Taubaté fez um Concurso Público para Professor no ano de 1989. Virgínia foi

aprovada no Concurso. Dez meses depois foi convocada para assumir um cargo.

Uma jovem professora, portanto. Virgínia tinha 21 anos quando tornou-se uma

funcionária pública. A responsabilidade não a amedrontava.

DE PROFESSORA À DIRETORA: VIRGÍNIA DURCI

Nesta época, o Departamento de Educação e Cultura (DEC) de Taubaté

sofria um déficit: havia poucos prédios escolares para atender o público, desde a

creche até o Ensino Fundamental (antigo Ginasial). Virgínia Durci foi trabalhar numa

creche mantida por uma entidade denominada “Lar Bom Samaritano”, conveniada

com a Prefeitura Municipal de Taubaté: esta fornecia os professores, aquela o

espaço físico. Sua sala situava-se embaixo de uma escada. Os professores tinham

que exponenciar o termo “polivalente”: além de ensinar, ainda limpavam as salas de

aula e a escola, preparavam material para as aulas e davam banho nas crianças.

Dois anos depois, houve um grande remanejamento: Virgínia foi trabalhar em

duas escolas: numa, o trabalho era realizado com crianças que necessitavam ser

alfabetizadas, na periferia de Taubaté; em outra, eram aulas para adultos, numa

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comunidade paupérrima: muitos iam para escola não para aprender algo, mas sim

por causa de alimento, quase invariavelmente sopa. Alguns, premidos pela

necessidade, levavam grandes potes para levar um pouco da sopa para suas

respectivas casas.

Trabalhar em comunidades que não conseguem satisfazer necessidades

básicas como moradia e alimentação é um desafio presente a professores e

diretores em inúmeras regiões do Brasil. Obrigatoriamente, nestas escolas que

possuem diversas carências, os profissionais da educação envolvidos devem

priorizar uma pedagogia humanitária, que vise a real melhoria das comunidades

envolvidas dentro do contexto da real educação.

Virgínia sabia que precisava agir de forma diferenciada. “A comunidade pode

ver o mundo de outra maneira” – afirmou. Ela resolveu aplicar métodos mais

realistas na escola onde ministrava aulas para adultos: as aulas deveriam referir-se

diretamente à resolução de problemas presentes na comunidade. Vejamos um

exemplo citado pela Diretora:

Os alunos tinham entre 20 e 50 anos, e eles muitas vezes tinham fome...

Eles precisavam de elementos motivadores (...) Então resolvi fazer a

“educação pela alimentação”: associava as matérias de sala de aula com a

necessidade direta do alimento. Os portões da escola ficavam abertos,

muitos iam embora após o intervalo, horário da sopa. Mesmo assim muitos

conseguiram formar-se na 4.ª série (...).

Trabalhar em duas escolas com real interesse pelos problemas dos alunos e

ainda conciliar esse trabalho com a maternidade é um desafio para qualquer mulher.

Em 2000, Virgínia teve o seu primeiro filho, Pedro. Dois anos mais tarde, nascia

Maria Luiza. Mas os desafios profissionais estavam presentes. Em Taubaté os

diretores de creches e escolas da Educação Básica e Fundamental são indicados,

até os presentes dias, diretamente pelo DEC. Virgínia recebeu o convite de ser

diretora de uma creche situada em um bairro denominado “Parque Aeroporto”.

Aceitou, pois tinha a certeza de que poderia fazer algo decisivo para a melhoria da

educação para a comunidade.

VIRGÍNIA DURCI: INOVAÇÕES, NÃO SEM RESISTÊNCIAS

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Ao mesmo tempo em formava-se em Pedagogia pela UNINCOR

(Universidade de Três Corações-MG), Virgínia assumiu a direção de uma creche

situada numa comunidade de poucos recursos. O prédio escolar sequer possuía

uma caixa d’água. Para Virgínia, esses elementos não eram empecilhos em justificar

que o trabalho pedagógico deveria oferecer menos que qualidade absoluta. Ao

contrário: Virgínia resolveu inovar através de sua dupla ação de alfabetizadora e

diretora: através da criação de uma apostila, que em nada lembrava uma clássica

cartilha: os alunos deveriam ser necessariamente alfabetizados antes de entrarem

em uma escola para cursar a 1.ª série.

Para tanto, Virgínia fez parcerias com a comunidade e também com o

comércio local, que cedeu à creche folhas de papel sulfite e cópias xerográficas,

além de angariar recursos com bingos e venda de latas de alumínio. Os resultados

não tardaram a surgir, e também as resistências, inclusive institucionais: elementos

menos esclarecidos do Departamento de Educação e Cultura (DEC), numa reunião,

simplesmente proibiram a utilização da apostila na creche.

Virgínia não esmoreceu frente a proibição. Ela tinha o apoio da comunidade, e

simplesmente, “esqueceu” que havia a tal ordem. A rede municipal de Ensino Básico

de Taubaté, na época, era composta de poucas escolas: havia um “vestibulinho”

para os alunos que quisessem adentrar na 1.ª série. O resultado final não tardou:

boa parte dos alunos da creche dirigida por Virgínia conseguiu uma vaga na rede

municipal de ensino, com a ajuda, naturalmente, de um bom material didático

desenvolvido pela equipe escolar.

Após três anos, por vontade própria, Virgínia quis recomeçar seu trabalho

como Diretora em outra creche, situada em outra região carente, no “Parque

Planalto”. Sua nova administração notabilizou-se pela organização de uma horta

comunitária, atendendo uma necessidade da população local. Foram quase três

anos de trabalho.

Em 2000, Taubaté muda de Prefeito. Bernardo Ortiz faz uma série de

mudanças no DEC e Virgínia é convidada a assumir a Vice-Diretoria de uma escola

de Ensino Básico e Fundamental que está num bairro que é considerado até hoje

um dos mais carentes de Taubaté: o São Gonçalo.

O desafio foi grande. Virgínia foi obrigada a aprender a lidar com elementos

que, definitivamente, deveriam estar longe de uma escola: Conselho Tutelar e

Juizado de Infância. Os problemas estruturais da comunidade eram grandes, além

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das questões que Virgínia logo percebeu nos alunos: baixa auto-estima e

defasagem escolar.

Virgínia, então, criou um projeto pedagógico que ganhou a denominação de

“Metamorfose”. Segundo a Diretora, “visava mudar a forma do como o conhecimento

deveria ser adquirido”, e também “a melhoria da comunidade, da qualidade de vida,

formar verdadeiros cidadãos”. Para tanto, resolveu investir, junto com o corpo

docente, na formação prática dos alunos, através da criação de laboratórios, tais

como o de Ciências. Os alunos colaboraram trazendo espécies animais e vegetais.

Houve uma melhoria na aquisição de conhecimentos, ao mesmo tempo, de várias

outras matérias.

Outro elemento que Virgínia investiu e que muitas vezes é subestimado nas

escolas, sejam elas públicas ou não, foi a questão da Educação Física. Os alunos

não tinham sequer uniformes ou tênis adequados para a prática de esportes. Com a

ajuda de parcerias conseguidas no comércio local, e também junto a funcionários da

Volkswagen que se cotizaram para tanto, os alunos mais carentes tiveram uniformes

e tênis comprados. Uniformes são, muitas vezes, combatidos. Mas eles perfazem

papéis importantes: ao mesmo tempo que massificam, indicam um sentido de

pertencimento a um grupo escolar. E os alunos da escola do São Gonçalo

necessitavam de pertencer a algo.

Outro elemento presente no projeto “Metamorfose” era tornar realidade um

projeto da Prefeitura Municipal de Taubaté: manter uma fanfarra. Taubaté é uma

cidade que não descuida da Educação Musical, tão importante para a formação dos

cidadãos – a cultura e a beleza podem fazer parte e ter importância em nossas

vidas. As escolas públicas municipais de Taubaté participam anualmente de

concursos para definir qual é a melhor fanfarra da cidade.

Em conjunto com a Direção, Virgínia decidiu que os alunos deveriam

participar. A incredulidade de vários alunos foi grande: “nós não temos sequer

uniformes para nos apresentar!”. Mas Virgínia, além de pedir para os alunos

“levantarem a cabeça”, conseguiu novas parcerias para a compra de uniformes

apropriados para uma Fanfarra. Os alunos ensaiaram por vários meses, e qual não

foi a surpresa da cidade em verificar que o “São Gonçalo”, tão decantado, sagrava-

se campeã das fanfarras taubateanas.

Após tantos sucessos e ganho de disciplina e auto-estima por parte dos

alunos, Virgínia começou a enfrentar dificuldades pessoais com a Diretora.

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Problemas que geraram incômodos, a tal ponto que a fizeram ter o projeto de mudar

de escola.

NOVA DIREÇÃO NA ESCOLA DO VENDAVAL

Em 2003, Virgínia recebeu uma nova incumbência: ser diretora da escola do

“Quinta dos Eucaliptos”, batizada oficialmente de “Dr. Avedis Victor Nahas”, que

funcionaria em período integral. A escola está situada numa média elevação, tendo

uma vista privilegiada da Serra da Mantiqueira. Porém, a beleza da paisagem não

resolvia os principais problemas da escola: falta de mobiliário, ventiladores,

funcionários, além da onipresença do pó vermelho.

A escola começou a funcionar sem mínimas condições por causa do grande

clamor da comunidade local, pois a necessidade do funcionamento do prédio escolar

era ingente. A escola não possuía sequer alambrados em alguns pontos. Virgínia

teve que começar praticamente do zero: comprou cestos de lixo, cadeados e

correntes. Antes, entrava e saía da escola quem quisesse, em quaisquer horários.

Era uma comunidade extremamente heterogênea. Faziam parte dela tanto

alunos extremamente carentes, quanto alguns que tinham melhores condições de

vida. A escola começou as suas atividades com cerca de 400 alunos.

Virgínia enfrentou o desafio com decisão. Não sem deixar um pouco a família

de lado, a Diretora fez de tudo na escola: limpeza, organização de Secretaria,

parcerias com o comércio local para obtenção de ajuda, além de preparar a

merenda aos sábados, pois este dia era utilizado para que os dias letivos

regulamentares fossem devidamente cumpridos naquele ano de 2003.

Em agosto de 2003, Virgínia ganhou o auxílio de Wilma Camões, uma ex-

supervisora do DEC, que agora seria a sua vice-diretora, e de Cláudia Reis de Paula

Machado, mãe de dois alunos, que trabalhou como uma servente voluntária. Ajuda

bem-vinda, pois além de administrar o “Quinta dos Eucaliptos”, Virgínia ainda

recebeu a incumbência de ser Diretora de uma pequena escola rural, o “Chácaras

Ingrid”, que contava com cerca de 80 alunos. Duas escolas para uma só Diretora.

Como Virgínia estava numa escola com tudo ainda por fazer, resolveu criar

um projeto que privilegiasse a conservação e manutenção – com beleza – do prédio

escolar, o “Escola Bela, Espaço do Ser, Vivência do Saber”. Através desse projeto,

os corpos docente e discente eram incentivados a conservar a escola, plantar

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mudas de árvores e grama, pois a escola era quase toda composta por terra

vermelha. Alunos utilizavam declives do terreno para escorregarem com papelões

morro abaixo, e alguns desses mesmos declives eram escavados para converterem-

se em “confortáveis” bancos para consumir a merenda. Os pratos e talheres eram

abandonados por lá mesmo.

Virgínia, naturalmente, combateu tais hábitos, não só através de seu projeto,

mas também pela concepção da disciplina. “Eu acredito na disciplina. A escola pode

ser chamada de retrógrada, ou tradicional. A escola funciona bem quando há

disciplina.” Na entrevista que fizemos surgiram naturalmente, de entrevistador e

entrevistada, versos de Renato Russo, em “Há Tempos”:

Disciplina é liberdade

Compaixão é fortaleza

Ter bondade é ter coragem. (Legião Urbana. Faixa 1, 1989)

Foram mudanças consideráveis instituídas logo no primeiro ano de vida da

escola. Os alunos pararam de utilizar os declives do terreno para brincadeiras. Uma

escada foi construída, o que facilitou o acesso dos alunos às dependências

escolares. No final do ano, a primeira turma de 8.ª série formava-se: grande lufa-lufa

na escola para a preparação da formatura.

Mas o lufa-lufa transformou-se em vendaval: no dia 5 de dezembro de 2003,

uma sexta-feira, a escola foi literalmente destruída. Havia poucos alunos no prédio:

uns do Período Integral, outros na Educação Física. Era um dia de Conselho de

Classe, muitos professores e a Direção estavam presentes.

De repente, vieram os trovões e relâmpagos. Barulho. Logo o vendaval

começou e o telhado picou como Marzipan. Os vidros foram quebrados,

telhas Eternit cravaram-se nas paredes... Nós nos refugiamos num corredor.

E eu não deixava de pensar: “Será que alguma criança machucou-se?”.

Balanço do vendaval: uma escola destruída, absolutamente sem cobertura e

com a fiação elétrica totalmente comprometida. Ninguém feriu-se. Três dias depois,

na ocasião da formatura da 8.ª série, a escola recebeu o primeiro prêmio

denominado “Espaço e Pessoas”, dado pelo DEC, de escola melhor conservada da

rede pública de Taubaté.

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A Prefeitura liberou rapidamente todas as verbas possíveis para recuperar a

escola, inclusive equipando a Sala de Informática com computadores. Em Fevereiro

de 2004 o prédio escolar já estava pronto para receber condignamente os alunos.

DE ESCOLA DESTRUÍDA À MODELO

Ao longo de sua permanência como Diretora do “Quinta dos Eucaliptos”,

Virgínia Durci não descuidou-se de sua formação. Utilizando-se da disponibilidade

de cursos de pós-graduação com poucas aulas presenciais, Virgínia pós-graduou-se

em Gestão Escolar pelo Instituto Educacional de Carapicuíba-SP entre 2006 e 2007.

Ao longo dos anos, Virgínia preocupou-se com aspectos básicos de infra-

estrutura escolar. As ruas próximas à escola não possuíam asfalto. Com grande

insistência, até o estacionamento da escola foi asfaltado. Foram feitas festas para

arrecadação de fundos, para oferecer a possibilidade, de, por exemplo, compra de

roupas adequadas para a Fanfarra. Em 2003, a Fanfarra da escola foi vencedora em

Taubaté. Virgínia, é, portanto, bicampeã de Fanfarras em duas escolas diferentes.

Também em 2003, Virgínia fez uma parceria com uma Associação

denominada “Graça”. Essa Associação tinha o objetivo de melhorar a qualidade de

vida da comunidade através de cursos ministrados por instrutores voluntários do

SENAI. Cursos como Hidráulica, Pneumática, Logística, Desenho Mecânico,

Manutenção de Micros, Tapeçaria, entre outros, começaram a ser ministrados nos

finais de semana, atraindo alunos de todo o Vale do Paraíba.

Como afirma Virgínia, “tudo reflete na parte pedagógica: o bem-estar traduz-

se numa boa escola”. Foi posto em prática a utilização do uniforme, e o boné foi

relegado para os portões afora. Até o canto dos hinos de Taubaté e Nacional

Brasileiro teve lugar na escola, algo tão em desuso, ao menos no Estado de São

Paulo.

Em junho de 2006, foi instaurada na Escola a “Sala Ambiente”, que oferece

aos professores a possibilidade de ter total liberdade de guardar materiais, dispor as

carteiras a seu bel prazer, fazer atividades diferenciadas etc. Foi um ganho de

qualidade para a escola: com maior liberdade dentro de sala de aula, as aulas

tinham uma dinâmica diferenciada, gerando, dessa forma, menos indisciplina.

Em 2006, a Prefeitura Municipal de Taubaté promoveu um Concurso Público,

que convocou mais de 100 professores para serem “estatutários”, ou seja,

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funcionários públicos em caráter permanente, com a obrigatoriedade do período

probatório de três anos. No final do mesmo ano, os professores foram convocados

para o trabalho já para o início do ano letivo de 2007. Louve-se a rapidez da

Prefeitura Municipal de Taubaté no preenchimento das vagas: muitas outras

Prefeituras no Brasil fazem Concursos apenas para a criação de “lista de cadastros”,

em resumo, para arrecadar recursos de profissionais interessados em um cargo

público.

Em 2007, Virgínia contou com uma equipe de Professores para o Ensino

Fundamental totalmente nova, composta quase que exclusivamente de jovens

professores, dentre os quais o autor deste artigo. A equipe de professores destacou-

se durante o ano: foram feitos vários projetos, alguns de caráter interdisciplinar. O

trabalho foi reconhecido pelo DEC: dois professores, além de terem os seus projetos

publicados em um jornal distribuído por toda a cidade (“A Rede”), foram convocados

para serem professores “capacitadores” (de Matemática e História) de seus colegas

na Rede Municipal de Ensino em Taubaté, a partir do início de 2008.

A escola passou a ser conhecida como uma verdadeira escola-modelo em

Taubaté. É adotada como referência em várias áreas: administração, corpo docente,

conservação de instalações, qualidade e seriedade das atividades realizadas com os

alunos do Período Integral. Em 2007 a Prefeitura Municipal de Taubaté utilizou

imagens da escola e de seus corpos docente e discente para propaganda

institucional da eficiência de sua rede escolar em rede regional de televisão.

Portanto, a transformação de escola destruída pelo vendaval para uma

escola-modelo não foi indolor. Ao contrário: foi repleto de percalços, sustos,

lágrimas, tempos e contratempos. Virgínia fortaleceu-se frente a todos esses

elementos: só não resistiria a um remanejamento na rede municipal. No final do ano

de 2007, Virgínia transferiu-se de escola: tornou-se vice-diretora da “Escola Juvenal

da Costa e Silva”, mais próxima de sua casa. Dedicará mais tempo a seus dois

filhos, Pedro e Maria Luiza.

CONCLUSÃO

A transformação profissional de um professor, apto a trabalhar em sala de

aula, num Diretor, que deve ter competências e habilidades diferenciadas para dirigir

uma escola, é ainda um campo de pesquisa a explorar em âmbito acadêmico. O

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diretor muitas vezes é um ser estigmatizado, pouco procurado por pesquisadores,

que muitas vezes não consideram as suas informações confiáveis.

Até mesmo grandes historiadores como Paul Thompson comprovam a

afirmação acima:

Ao mesmo tempo, a história oral implica, para a maioria dos tipos de

história, uma certa mudança de enfoque. Assim, o historiador da educação

passa a preocupar-se com as experiências dos alunos e estudantes, bem

como com os problemas dos professores e administradores.(THOMPSON,

1992:26)

Para Thompson, administradores ficam por último numa gradação de

elementos pertencentes numa escola. Acreditamos que os administradores de

escolas devam ser colocados em primeiro plano não só na escola, mas também em

estudos em âmbito acadêmico. Acompanhamos, como um dos membros de sua

equipe, o trabalho de Virgínia Durci. Sua postura sempre foi discreta e humilde: “Não

me vejo como principal funcionária da escola.”

Temos o testemunho pessoal de que ela possuía grande tato ao lidar com os

alunos, sempre incentivando a melhoria de cada um, e também respeitava não só

cada professor como profissional, mas também outros membros da equipe escolar.

O respeito e incentivo dados pela Diretora proporcionavam uma escola realmente

prazerosa de se trabalhar, oferecendo a professores e alunos um ambiente

extremamente confortável. Devemos dizer que a ação de Virgínia Durci como

profissional e como pessoa foi decisiva para muitas pessoas, inclusive para nós,

autores desse artigo. Além de professor e Mestrando em História Econômica, somos

também escritores:

À Morte Do Que Já Foi

Hoje vejo tristeza em lápide

Morreu de vez homem célebre

– consciente, nada deletério –

Que acabava com seu fôlego

Ministrando sua têmpera

De lágrima em lágrima,

Tarefa dantes tépida.

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Conhecimento sólido,

Não lhe faltava ânimo,

Nem ao menos êxito.

Ele era o símbolo

Mais que límpido

Da validade da Pátria

E de trabalho sério.

Um dia a sua régua

Quebrou-se em fúria

Nervosismo nada fátuo.

Agulhada no crânio,

— Apagou-se a lâmpada –

Afirmou o médico:

Professor morto em epílogo. (PEREIRA,2006:14)

Dantes nós éramos professores frustrados por não conseguir exercer de

forma digna nossa profissão, como se vê pela poesia. Observando in loco ao longo

de 2007 a ação profissional de Virgínia Durci, que sempre nos encorajou e ofereceu

apoio incondicional, podemos dizer que fomos salvos. Pensamos em deixar a

profissão de professor: hoje sentimos orgulho de exercer esta profissão tão bela e

difícil.

E qual é o diretor consciente que não quer proporcionar melhoras aos

membros de sua equipe? Temos certeza de que não somos os únicos a fazer esta

afirmação, com a diferença de que as nossas estão devidamente registradas neste

artigo, uma pequena contribuição à História da Educação Brasileira via História Oral.

Devemos dizer que uma Direção consciente de seus deveres frente à

comunidade e às equipes discente e docente e disposta realmente a fazer a

diferença nas escolas, sejam elas públicas ou particulares, carentes ou não, fazem

as pessoas realmente sentirem que a escola é uma “manhã de primavera”. Isso não

é tão somente uma imagem lírica da escola realmente formadora de cidadãos

conscientes e honestos.

Mais do que nunca, sabemos que as escolas públicas brasileiras merecem

Diretores tão abnegados e capazes como Virgínia Durci.

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Page 14: Cristiano José Pereira

Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS

14

* Mestrando em História Econômica (Depto. de História – FFLCH-USP).

REFERÊNCIAS:

BRAUDEL, Fernand. “Por Uma Economia Histórica”. In: Revista de História. São

Paulo : vol. XXX, n.º 61, pp. 343-350.

__________________. “História e Ciências Sociais. A longa duração”. In: Revista de

História, vol. XXX, n.º 62, 1965, pp. 261-294.

ENTREVISTAS com Virgínia Durci, realizadas em 18 de dezembro de 2007 e em 24

de janeiro de 2008 em Taubaté/SP.

HÁ TEMPOS. Legião Urbana. As Quatro Estações. Faixa 1, n. 835836-2 EMI. 1989

CD.

PEREIRA, Cristiano José. Bornal Sensitivo. São José dos Campos : Papercrom,

2006.

THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: história oral. Rio de Janeiro : Paz e Terra,

1992.