Crise Econômica e Movimentos Sócio

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Crise Econômica e Movimentos Sócio-Políticos na América Latina: da “Transição Democrática” à Nova Emergência da Luta Social Osvaldo Coggiola Movimentos como o dos piqueteros argentinos, ou os cocaleros na Bolívia, surgiram das inéditas condições de miséria social provocadas pela crise econômica mundial, e suas repercussões na América Latina. Os regimes democráticos (ou melhor, democratizantes) foram o veículo continental desse novo grau de exploração, promovido pelo imperialismo, norte-americano em primeiro lugar. O aprofundamento da crise econômica mundial, de um lado, e a resistência das massas trabalhadoras da América Latina, do outro, levaram ao impasse e à crise final dos regimes militares, abrindo a etapa das “transições democráticas”. Em 1979, a queda da ditadura de Somoza e as greves no ABC paulista mudaram o signo da etapa política na América Latina, e abriram uma nova fase da luta de classes no continente. A derrota de uma das mais velhas ditaduras da região, bastião do imperialismo ianque na América Central, diante de uma revolução popular; a recomposição social o política do proletariado mais numeroso e concentrado da América Latina, quebrando a fragmentação social em que se baseava a ditadura militar brasileira, colocaram um limite definitivo ao processo de derrotas do movimento operário o camponês latino- americano dos anos 1970 (1971 Bolívia, golpe de Banzer; 1973 Chile, golpe de Pinochet; no Uruguai, golpe de Bordaberry em 1975, no mesmo ano em Peru, golpe de Morales Bermúdez; em 1976, na Argentina, golpe de Videla e a Junta Militar). Ao mesmo tempo, a curta duração do processo de franca reação política demonstrou a precariedade das vitórias obtidas pelo imperialismo e a burguesia nativa durante a década de 1970, que não conseguiram realmente fragmentar as massas de modo semelhante ao obtido pelo fascismo ou pelo nazismo na década de 1930, na Europa. O imperialismo dos EUA era o primeiro a ser consciente da fragilidade das vitórias contra-revolucionárias. Toda a burguesia ianque encampou a política de "direitos humanos" do governo de Jimmy Carter (eleito em 1976), que pressionava em favor de uma institucionalização dos regimes de reação política latino-americanos. Nos finais da década de 1970, a recomposição do movimento das massas não fez mais do que confirmar esses temores. A crise econômica e a resistência das massas levaram a crise não só dos regimes reacionários, mas de todo o sistema de dominação imperialista. A guerra das Malvinas foi a expressão mais espetacular da podridão do aparelho político-militar dos EUA na América Latina, e abalou, em poucas semanas, as bases de um sistema montado ao longo de mais de três décadas (Tratado do Rio de Janeiro, OEA, TIAR, força inter-americana de intervenção, etc.). A ditadura mais pró-imperialista do Cone Sul (a do ditador argentino Leopoldo Galtieri), os treinadores da “contra” nicaragüense, dos “esquadrões” salvadorenhos e dos narco-terroristas bolivianos, foram paradoxalmente a ponta de lança da desmontagem de um sistema que ruiu na sua própria entranha. A ocupação das Malvinas pela ditadura argentina, para desviar a atenção da sua crise interna, que atingira seu pico em 30 de março de 1982, dois dias antes da invasão, colocou todas ao nações latino-americanas em rota de colisão objetiva com a OTAN, traduzindo a inadequação de todo o sistema político imperialista diante das novas relações políticas entre as classes A política democratizante, impulsionada diretamente pelo imperialismo norte-americano, surgiu no bojo dos problemas criados pelo conjunto da crise

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Crise Econômica e Movimentos Sócio-Políticos na América Latina: da “Transição Democrática” à Nova Emergência da

Luta SocialOsvaldo Coggiola

Movimentos como o dos piqueteros argentinos, ou os cocaleros na Bolívia, surgiram das inéditas condições de miséria social provocadas pela crise econômica mundial, e suas repercussões na América Latina. Os regimes democráticos (ou melhor, democratizantes) foram o veículo continental desse novo grau de exploração, promovido pelo imperialismo, norte-americano em primeiro lugar.

O aprofundamento da crise econômica mundial, de um lado, e a resistência das massas trabalhadoras da América Latina, do outro, levaram ao impasse e à crise final dos regimes militares, abrindo a etapa das “transições democráticas”. Em 1979, a queda da ditadura de Somoza e as greves no ABC paulista mudaram o signo da etapa política na América Latina, e abriram uma nova fase da luta de classes no continente. A derrota de uma das mais velhas ditaduras da região, bastião do imperialismo ianque na América Central, diante de uma revolução popular; a recomposição social o política do proletariado mais numeroso e concentrado da América Latina, quebrando a fragmentação social em que se baseava a ditadura militar brasileira, colocaram um limite definitivo ao processo de derrotas do movimento operário o camponês latino-americano dos anos 1970 (1971 Bolívia, golpe de Banzer; 1973 Chile, golpe de Pinochet; no Uruguai, golpe de Bordaberry em 1975, no mesmo ano em Peru, golpe de Morales Bermúdez; em 1976, na Argentina, golpe de Videla e a Junta Militar). Ao mesmo tempo, a curta duração do processo de franca reação política demonstrou a precariedade das vitórias obtidas pelo imperialismo e a burguesia nativa durante a década de 1970, que não conseguiram realmente fragmentar as massas de modo semelhante ao obtido pelo fascismo ou pelo nazismo na década de 1930, na Europa.

O imperialismo dos EUA era o primeiro a ser consciente da fragilidade das vitórias contra-revolucionárias. Toda a burguesia ianque encampou a política de "direitos humanos" do governo de Jimmy Carter (eleito em 1976), que pressionava em favor de uma institucionalização dos regimes de reação política latino-americanos. Nos finais da década de 1970, a recomposição do movimento das massas não fez mais do que confirmar esses temores. A crise econômica e a resistência das massas levaram a crise não só dos regimes reacionários, mas de todo o sistema de dominação imperialista. A guerra das Malvinas foi a expressão mais espetacular da podridão do aparelho político-militar dos EUA na América Latina, e abalou, em poucas semanas, as bases de um sistema montado ao longo de mais de três décadas (Tratado do Rio de Janeiro, OEA, TIAR, força inter-americana de intervenção, etc.). A ditadura mais pró-imperialista do Cone Sul (a do ditador argentino Leopoldo Galtieri), os treinadores da “contra” nicaragüense, dos “esquadrões” salvadorenhos e dos narco-terroristas bolivianos, foram paradoxalmente a ponta de lança da desmontagem de um sistema que ruiu na sua própria entranha. A ocupação das Malvinas pela ditadura argentina, para desviar a atenção da sua crise interna, que atingira seu pico em 30 de março de 1982, dois dias antes da invasão, colocou todas ao nações latino-americanas em rota de colisão objetiva com a OTAN, traduzindo a inadequação de todo o sistema político imperialista diante das novas relações políticas entre as classes

A política democratizante, impulsionada diretamente pelo imperialismo norte-americano, surgiu no bojo dos problemas criados pelo conjunto da crise política latino-americana.1[1] Ela foi parida pelo governo Reagan (1980-1988), surgido com o objetivo explícito de inverter as tendências políticas internacionais, caracterizadas pelo retrocesso mundial do imperialismo ianque, depois das derrotas nas guerras do Vietnã e do sudeste asiático (1972-1975). A política democratizante visava resolver a contradição entre a necessidade de uma política mais intervencionista (determinada pela própria crise) e a necessidade de manobras políticas, determinada pelo fato do imperialismo e a burguesia não estarem diante de uma perspectiva de estabilização econômica, que permitisse o uso de métodos de guerra civil contra as massas; tudo no quadro de uma tendência ascendente do movimento operário e popular latino-americano. O democratismo pró-imperialista visou capitalizar, com vistas a esse objetivo, o entrelaçamento inédito das burguesias nacionais com o capital financeiro internacional (produto da re-colonização econômica desenvolvida no segundo pós-guerra, com uma expressão monstruosa na dívida externa latino-americana), a crise da burocracia russa e de sua política mundial crescentemente subordinada ao imperialismo (que levaria ao fim da URSS em 1991), e a ausência de independência política revolucionária do proletariado e das massas latino-americanas. Este último fator estava em

1[1] Para um resumo, ver: Kevin J. Middlebrook e Carlos Rico. The United States and Latin America in the 1980s. Contending perspectives of a decade of crisis. Pittsburgh, University of Pittsburgh Press, 1986.

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completa contradição com a falência das antigas direções das massas, nacionalistas e, em menor medida, stalinistas (falência da qual o surgimento do PT no Brasil, em 1980, foi a expressão mais contundente). Neste ponto teve um papel decisivo a pequena-burguesia democratizante "de esquerda", hoje dominante na esquerda latino-americana, cujas posições políticas foram o reflexo tardio do longo boom econômico de pós-guerra, combinado com o efeito das derrotas da esquerda e da guerrilha na década de 1970.

As transições políticas, passagens de regimes militares para regimes democratizantes, resultaram portanto da iniciativa política do imperialismo combinada com a crise de dominação política das burguesias latino-americanas.2[2] No caso extremo e tardio do Chile, até o empresariado pinochetista considerou mais favorável votar não no último plebiscito pró-ditatorial convocado por Pinochet. Como afirmou com toda clareza um documento oficial dos EUA: “O autoritarismo de extrema direita tem sido assim importante fator que contribuiu para uma nova e crescente ameaça à democracia na América Latina: a ameaça do totalitarismo comunista...O apoio à democracia, a própria essência da sociedade americana, está se tornando o novo principio em torno do qual se organiza a política externa norte-americana. O apoio à democracia promove os interesses dos Estados Unidos de várias formas importantes. A democracia ajuda a garantir a segurança dos Estados Unidos. Os governos democráticos, precisamente porque devem ser sensíveis aos desejos dos seus povos, tendem a ser bons vizinhos. A competição política aberta e regular diminui a polarização e as extremas oscilações do pêndulo (como aconteceu no Chile, em Cuba e na Nicarágua) e torna as nações mais resistentes à subversão. Os governos democráticos são mais confiáveis como signatários de acordos e tratados porque seus atos são sujeitos ao exame do público. A democracia também favorece importantes interesses políticos e econômicos dos Estados Unidos” (grifo nosso).3[3]

O cumprimento dos acordos e o respeito dos contratos era decisivo para os EUA, haja vista das dimensões atingidas pela dívida externa, que determinaria a ulterior política privatizante das “democracias” latino-americanas. Basta pensar no exemplo da Argentina que, entre 1976 e 1983, período da infame ditadura, drenou muito do excedente de capital existente no mundo, incrementando o seu próprio endividamento em 364%. Obviamente as empresas mais favorecidas foram as estatais (YPF por exemplo, cujo endividamento duplicou naquele período) que ainda não tinham nenhuma necessidade de tomar emprestado novas somas. Os sucessivos planos de estabilização (Planos Baker, Brady etc.) tinham aqui o objetivo de criar as condições para o ingresso (a custo muito baixo) dos proprietários do capital emprestado (os credores) mediante, nota-se, o resgate dos créditos acumulados no tempo (cifras embaraçosas).

Foi assim que a América Latina, após as privatizações insanas, determinadas principalmente pelos efeitos de décadas de endividamento, tornou-se a “zona” na qual o percentual de investimentos diretos externos derivado das privatizações (que não prevêem a instalação de novas indústrias) é a maior do planeta. Basta lembrar a experiência da própria YPF (Yacimentos Petroliferos Fiscales), que em pouco mais de dez anos foi desmantelada graças a sua aquisição farsosa pela ibérica Repsol que, por 15.400 dólares (mais investimentos…) adquiriu 97% da velha indústria do Estado. De forma diferente, mas quase ao mesmo tempo, verificou-se a agressão ao México. É visível para todos a crise do débito de finais de 1993 que só encontrou solução na aceitação da adesão à NAFTA (janeiro 1994). À diferença da experiência sul-americana, neste caso o ingresso de capital estrangeiro veio sob a forma de verdadeiros e próprios investimentos produtivos, isto é, a construção material de novas indústrias. Basta pensar nas famosas maquilladoras. Não seria necessário dizer que este deslocamento geográfico possibilitou aumentar a sua taxa de mais-valia, aproveitando os salários mais baixos dos trabalhadores mexicanos em relação aos norte-americanos. Considera-se que no setor de vestuário os salários dos norte-americanos eram cinco vezes aqueles dos mexicanos em 1994 (8.70 dólares a hora, contra 1,61). 4[4]

No Brasil, partir de 1969 o endividamento crescera rapidamente, chegando em 1985, quando o último general deixou o governo, a passar de 100 bilhões de dólares. A relação da dívida com o Produto Interno Bruto-PIB demonstra com clareza o crescimento do endividamento brasileiro durante o regime militar. Em 1969 a dívida externa representava

2[2] Contra o ponto de vista defendido pela maioria dos sociólogos: cf. Guillermo O’Donnel, Philippe Schmitter e Laurence Whitehead. Transitions from Authoritarian Rule. Latin America. Baltimore, The Woodrow Wilson International Center, 1986; ou: Alain Rouquié, Bolivar Lamounier e Jorge Schvarzer. Como Renascem as Democracias. São Paulo, Brasiliense, 1985. 3[3] Departamento de Estado dos EUA/Bureau de Assuntos Públicos. Democracia na América Latina e no Caribe. A promessa e o desafio. Relatório Especial n° 158, Washington DC, março 1987. 4[4] Sobre as relações entre América Latina e o capital financeiro internacional no período recente, ver: Paul H. Boeker (org.). Transformações na América Latina. Privatização, investimento estrangeiro e crescimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995; e, Ricardo Ffrench-Davis e Stephany Griffith-Jones. Os Fluxos Financeiros na América Latina. Um desafio ao progresso. São Paulo, Paz e Terra, 1997.

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11% do PIB, já em 1973 passou para 16,6%, em 1978 para 26% e em 1984 para 48,2% do PIB. O endividamento do Brasil e de outros países nesse período só foi possível porque havia uma enorme massa de capitais disponíveis com juros atrativos.

O aumento do petróleo elevou os gastos em importação. O preço do barril subiu de 12,4 dólares para 34, 4 dólares, acarretando um adicional de despesas na balança comercial brasileira de 37,3 bilhões de dólares entre 1979 e 1983. O aumento da taxa de juros nos Estados Unidos acarretou para o Brasil despesas extras de 26,6 bilhões de dólares somente no período compreendido entre 1975 a 1984. A taxa básica de empréstimos bancários subiu nesse período de 5,7% para 18,8%. Considerando que uma parte expressiva dos empréstimos eram contratados a taxas de juros flutuantes, ocorreu uma verdadeira sangria das riquezas dos países periféricos, os capitais que vieram como generosos empréstimos voltam engordados aos países de origem. A transferência de riquezas, que era feita principalmente sob forma de remessa de lucros, passou também a ser realizada como pagamento da dívida. Na década de 80 o Brasil conseguiu um superávit na sua balança comercial de 99,5 bilhões de dólares. Mas o déficit na balança de serviços foi de 141,9 bilhões de dólares: foi enviada para o exterior, só nos anos 1980, a quantia líquida de 42,3 bilhões de dólares.5[5]

Vê-se por aí o engodo de apresentar as "democracias" latino-americanas só como uma conquista da luta das massas. O imperialismo e a burguesia nacional procuraram os regimes democráticos como um recurso de emergência perante a falência completa dos regimes militares. A crise econômica mundial afundou todas as ditaduras militares que procuraram abrir um período de desenvolvimento econômico, e colocou a necessidade para a burguesia e para o imperialismo de preventivamente substituir as ditaduras. O imperialismo sustentou todos esses processos democráticos: em todas as crises militares da Argentina na década de 1980, quando militares direitistas procuraram entrar num atrito muito profundo com o governo Alfonsin, o governo Reagan e os governos europeus apoiaram Alfonsin, achando que, nas condições existentes, só os governos que procurassem cooptar as oposições operárias e pequeno-burguesas, num marco constitucional, podiam sustentar o Estado e continuar a pagar a dívida externa, o que significava uma política de crescente exploração da classe operária e dos camponeses. Nenhum desses regimes foi um desenvolvimento democrático genuíno da burguesia nacional. Na Constituinte brasileira, os cinco anos para José Sarney foram arrancados por uma pressão organizada pelas empresários ligados à ditadura militar e pelos militares. A mudança dos regimes militares para regimes civis não significou verdadeiramente a implantação de uma democracia política, mas apenas uma fachada constitucional para um conjunto de instituições que tinham sua origem na ditadura militar. Os compromissos internacionais, o eixo do processo de exploração internacional da América Latina, foram todos respeitados pela democracia, em especial o pagamento da dívida externa.

A continuidade institucional dos regimes democratizantes com os militares foi clara no Brasil, onde os mi1itares garantiram sua participação direta no poder; no Chile, a oposição (incluídos o PC e o PS) aceitou governar na base de Constituição pinochetísta de 1980 e garantir 8 anos de mando de tropa para os comandantes pinochetistas; no Peru, a Constituinte legislou sob o governo militar de Morales Bermúdez; no Uruguai, o co-governo blanco-colorado-Frente Ampla baseou-se no Pacto do Clube Naval, que garantiu a impunidade militar, reforçada em plebiscito; na Argentina, as crises militares foram aproveitadas pelos "democratas" radicais, peronistas e liberais para institucionalizar o poder militar no Conselho de Segurança Nacional, e para inocentar os militares genocidas através das leis de "ponto final" e da "obediência devida''; na Guatemala, em El Salvador, os governos democráticos não passaram de marionetes declaradas do golpista Rios Montt, ou do chefe dos “esquadrões" Major D’Abuisson; no Paraguai, o governo “civil” sequer transcendeu os limites familiares, pois o general Andrés Rodriguez era parente do ditador Stroessner, ao qual substituiu.

Além da continuidade institucional com o autoritarismo militar, a política democratizante não foi o contrário do intervencionismo militar. Foram os democratas bolivianos que admitiram a intervenção das tropas ianques, sob pretexto de combate ao tráfico de drogas; o mesmo pretexto foi usado para o bloqueio naval da Colômbia (e para o atual “Plano Colômbia”); foi reforçado o cerco militar sobre Cuba e invadida a ilha de Granada; foi militarizada toda a América Central, através da "contra" nicaragüense, do envio de tropas a Honduras e El Salvador e, caso extremo mas exemplar, foi invadida Panamá... para impor um governo “democrático", resultante de “eleições”. Definiu-se a política dos EUA, então, como "Guerra (ou Conflito) de Baixa Intensidade" (GBI), o que foi unilateral, toda vez que a política ianque consistiu em combinar a manobra democratizante com o velho big stick, o verdadeiro conteúdo do democratismo imperialista. Paralelamente, Fidel Castro

5[5] Dados se encontram em: Sistema Económico Latinoamericano (SELA). El FMI, el Banco Mundial y la Crisis Latinoamericana. México, Siglo XXI, 1986.

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lançou a proposta de Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI), que incluiu o "perdão'' das dívidas externas, como saída conjunta para a crise latino-americana e mundial.

Exatamente pelos motivos apontados, o conteúdo econômico dos processos democratizantes tem sido, não o de opor uma resistência limitada ao imperialismo, mas o de aprofundar a entrega nacional, levando-a a níveis inéditos, inclusive se comparada com as ditaduras militares. Nem sequer os governos com maior base burguesa nacional puseram em questão o pagamento da dívida externa, inclusive quando esse pagamento se tornou impossível diante das exauridas reservas nacionais. O governo Collor aceitou o princípio do pagamento dos juros como garantia para a renegociação do pagamento da dívida impagável. O governo mexicano foi mais longe, entrando em cheio no Plano Brady, no qual, sob pretexto de reduzir a dívida externa em US$ 10 bilhões, aumentou a dívida interna em US$ 30 bilhões, transformando-a num fator direto de sucateamento e de entrega da economia nacional. Os principais governos democratizantes aceitaram o princípio da "capitalização da dívida'', liquidando o aparelho produtivo, e entregando, em troca de “papel pintado” (os títulos desvalorizados da dívida, aceitos pelo seu valor nominal ou de face) o patrimônio nacional: no Brasil, Fernando Collor de Mello acabou com a histórica reserva de mercado para os setores estratégicos (informática, petroquímica); no México, questionou-se até a nacionalização do petróleo (conquista histórica da revolução mexicana); na Argentina foram vendidas as linhas aéreas e todo o sistema de comunicações. Os "modelos" deste "liberalismo modernizante" -Chile e Bolívia- falaram por ele. No Chile, em 1965, 96% das exportações estavam compostas por matérias primas; em 1986 (depois de 13 anos de "liberalismo" pinochetiano) essa percentagem era ainda de 92%, a diferença de 4% era produto da lenta recuperação da desindustrialização operada entre 1973 e 1986, que levou o desemprego de 4,7% a 25,7%. Esse fabuloso exército industrial de reserva não provocou, no entanto, nenhuma corrente de inversões produtivas estrangeiras, devido à crise capitalista mundial.

A estrutura do atraso econômico relativo da América Latina não só se manteve intocada, mas se aprofundou. Na Bolívia, a economia afundou, os investimentos estrangeiros não chegaram, e o desemprego, no caso da COMIBOL (minérios) chegou a 75%, com os mineiros transformados em nômades, que se deslocaram em barracas a procura de emprego, enquanto a massa camponesa viu-se obrigada a sobreviver através da plantação ilegal de coca (destinada à pasta-base de cocaína): essa foi a base do movimento cocalero. O estanho só produzia US$ 70 milhões anuais (as exportações de pasta de cocaína, US$ 600 milhões). Na Argentina, já sob a “democracia”, triplicou o número de pobres, que atingiu 18 milhões, com 3 milhões de crianças anêmicas, e 1,5 milhão de pessoas abaixo do limite de sobrevivência; a emigração atingiu 3 milhões de pessoas (10% da população total) incluídos quase todos os quadros técnicos e científicos. No México, o avanço do latifúndio e a crise industrial fez com que os trabalhadores agrícolas sem-terra passassem de 1,5 milhão em 1950 (30% da força de trabalho) para mais de 6 milhões (60% dessa força de trabalho), preparando uma crise agrária que explodiria na década de 1990, em especial em 1994, com a revolta indígena-camponesa de Chiapas.

O conjunto da América Latina, que detinha 12% das exportações mundiais em 1950, passou para 5,4% em 1975, e para 4% em 1990. Na década de 1980, em apenas três anos (1981 a 1983) a América Latina pagou 81,7 bilhões de dólares de serviço da dívida, aproximadamente o dobro do que havia pago durante os anos 70. Em 1982 o governo mexicano não conseguiu continuar pagando a sua dívida e declarou moratória. Os banqueiros privados internacionais reagiram interrompendo os créditos novos para os países devedores, inviabilizando assim a rolagem da dívida externa e provocando o surgimento do FMI como assegurador do pagamento da dívida externa através do processo de reprogramação e refinanciamento das dívidas. O FMI, criado com a função básica de fornecer recursos financeiros, tal como um banco, para aqueles países que apresentassem déficits nas contas externas, passou a ser um órgão gerenciador dos países endividados, utilizando as "cartas de intenções" para implementar os programas de ajustes de caráter “neoliberal”.

Setores inteiros das economias nacionais (na Bolívia, no Peru, na Colômbia) passaram a girar em torno do narco-tráfico, que foi apresentado por alguns como a mola mestra da reorganização de um “capitalismo nacional”. Mas o império da droga, filho mais novo do imperialismo, foi gerado e testado no útero da divisão internacional do trabalho. É, portanto, uma forma de vida econômica parasitária, que se alimenta dos restos mortais de uma economia local. O comércio internacional de drogas não fez outra coisa senão ocupar o vazio econômico resultante da exploração de um capital estrangeiro que, vitorioso, conseguia abortar todas as tentativas latino-americanas de desenvolvimento autônomo. O que mais incomodou os EUA, na que foi habilmente denominada de narco-guerrilha, é que esta se constituiu num mecanismo de refluxo dos recursos econômicos anteriormente retirados da Colômbia.

Na verdade, a produção e o comércio de drogas é típico das economias coloniais (como China ou Índia, no século XIX). Para os EUA é importante, mas secundário, que o

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consumo de drogas nos EUA chegue a US$ 150 bilhões por ano, o que significa que parte da burguesia norte-americana deixa de faturar essa quantia, e que o governo sofra uma queda diretamente proporcional na arrecadação de impostos, decorrente deste desvio de recursos do consumo formal para o “informal”. O mais importante é que o "combate ao narco-tráfico" seja o álibi para a remontagem do sistema de dominação político-militar da América Latina, na qual a produção e o tráfico de drogas são a ponta-de-lança do avanço da “economia informal", ou seja, da regressão para as formas mais bárbaras e primitivas de exploração e acumulação capitalistas. Isto se traduziu em formas bárbaras de regressão política, como na Bolívia ou na Colômbia.

A unidade continental, histórica bandeira do nacionalismo latino-americano, foi igualmente surrada pelos processos democratizantes. Se na década de 1960, os pactos regionais (Acordo de Cartagena ou Pacto Andino) foram incapazes de fazer frente à penetração imperialista, na década de 1980 os governos dos países 1atino-americanos não souberam ou não quiseram aproveitar a situação muito precária na qual se achava a banca internacional: as burguesias foram incapazes de formar uma frente para renegociar conjuntamente a dívida externa. Os bancos internacionais aproveitaram para reduzir de 200% para 121% a relação capital próprio/empréstimos aos 15 países mais endividados do Plano Baker (latino-americanos). O comércio intra-América Latina caiu mais ainda do que o comércio total da região, passando de uma participação no mesmo de 13,2% (1981) para 11,3% (1985). As importações intra-AL caíram 38,5% nesse período, e as exportações 27%, cifra dramática se levarmos em conta que ao mesmo tempo as exportações totais da América Latina ao restante do mundo se mantiveram constantes. O excedente nacional tendeu a ser integralmente expropriado pelo pagamento da dívida externa. A “integração latino-americana”, supostamente defendida pela criação do Mercosul, decorrente de um tratado regional assinado em 1991, e com uma união aduaneira funcionando a partir de 1995, nada mais foi do que a racionalização das multinacionais operantes na região, que se adaptaram à crise mundial reduzindo custos, através das fusões, como a Autolatina “argentino-brasileira” (Ford-Volkswagen), com a sua seqüela de desemprego e redução de salários: a "integração" liberalizante foi parte integral da política mundial do capital financeiro no sentido de descarregar a crise do capitalismo nas constas dos trabalhadores.

Constatou-se, nesse quadro, a completa falência do nacionalismo burguês histórico (peronismo, varguismo, priísmo, só para mencionar os mais importantes), incapaz de enfrentar os problemas nacionais senão desde um ângulo de conciliação com o imperialismo e, portanto, de conservar suas bases políticas entre as massas. Mas o nacionalismo burguês fornecera também, historicamente, os principais mecanismos e os principais aparelhos de controle das massas pela burguesia. Diante desse processo, a pequena-burguesia democratizante de esquerda se projetou como candidata ao poder. As circunstâncias de inédita crise política criaram condições excepcionais para as aspirações da pequena-burguesia democratizante que foi, por exemplo, a coluna vertebral da equipe governante de Alfonsin na Argentina (1984-1989), quando demonstrou a sua absoluta falta de independência em relação à burguesia e ao imperialismo.

A crise mortal da esquerda foquista e stalinista deu o pretexto para a elaboração ideológica da pequena-burguesia, que tomou a forma da "democracia como valor universal", na qual, sob pretexto de crítica aos Estados “socialistas” degenerados ou ao aventurismo foquista, proclamou-se a eternidade da representação política burguesa, da burocracia estatal, portanto, do Estado opressor. No Chile, a Esquerda Unida apoiou a candidatura do ex-ministro pinochetista Patricio Aylwin; na Bolívia, a UDP no governo tornou-se responsável pelo maior caos econômico da história do país, possibilitando o retorno em força da burguesia ao poder; no caso do Peru, a “Esquerda Unida” tentou capitalizar eleitoralmente o desespero das massas, atrás do carreirista Alfonso Barrantes (ex-prefeito de Lima, cúmplice do assassinato de centenas de guerrilheiros na prisão local) mas colheu o que semeou: um desastre político. Este teve tal magnitude que quase deu nova chance a um partido oligárquico (encabeçado pelo escritor Mário Vargas Llosa) voltar ao poder: a vitória do então desconhecido Fujimori, deveu-se a que recebeu no segundo turno o apoio da esquerda. No México, a esquerda democratizante tentou projetar-se organizando uma Frente Popular ao redor de Cuauhtémoc Cárdenas, um político orgânico do Estado burguês (governou durante longos anos o estado de Michoacán pelo PRI, Partido Revolucionário Institucional, verdadeira “ditadura civil” mexicana até há pouco tempo atrás) sob pretexto de "transição do corporativismo para a república": Cárdenas perdeu por fraude as eleições de julho de 1988. O PT do Brasil lançou quatro vezes a candidatura presidencial de Lula, não como candidato independente dos trabalhadores, mas de uma frente de colaboração de classes. A política do PT tendeu a projetar-se para toda a América Latina, o que a o PT organizou, desde julho de 1990, no “Fórum de São Paulo”.

O final e o fracasso da revolução sandinista comprovaram a inviabilidade histórica do democratismo, inclusive na sua versão mais radical. A perda do governo pelo FSLN, vitorioso com as armas em 1979, foi pavimentada pelo congelamento da revolução no seu estágio

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democrático, que permitiu o retorno da “contra” somozista e ditatorial. Na véspera das eleições, a FSLN dissolveu, em junho de 1989, as milícias populares: o desarmamento do povo mostrou a FSLN diretamente engajada na reconstituição do Estado burguês. Nem a passagem do conjunto da burguesia ao campo contra-revolucionário levou a FSLN a expropriá-la definitivamente. As eleições de 1989 foram convocadas pela FSLN para fechar “oficialmente” a revolução de 1979. Os porta-vozes do sandinismo enunciaram a necessidade de um governo de coalizão com a UNO (União Nacional Opositora) contra-revolucionária, a aliança com os empresários, os planos do FMI e o acordo político com o governo norte-americano (depois da eleição, o comandante Victor Tirado declarou findo o ''período das revoluções anti-imperialistas”). Era a política de Gorbachev para a América Central, com apoio de Fidel Castro. Os objetivos revolucionários foram abandonados: a revolução tinha acabado.

Em El Salvador, no início, o sandinismo apoiou militarmente à FMLN (mas sem denunciar o nulo apoio da URSS e de Cuba), na véspera das eleições chegou a assinar a Declaração de San Isidro de Coronado, que incluiu o apoio ao governo direitista de Alfredo Cristiani e o chamado, sob pretexto de "paz", à desmobilização da FMLN. A FMLN conseguiu impor a sua presença em todo o país e o controle de vastas regiões ao exército, treinado pelos EUA, e aos "esquadrões de morte", conseguiu inclusive penetrar na capital pondo em xeque o exército, durante a ofensiva de novembro de 1989. Mas não conseguiu superar a estratégia política de aliança com a burguesia (Guillermo Ungo), que excluía a tomada do poder pelo FMLN. "As revoluções sociais não resolvem os problemas", declarara Fidel Castro em 1985.

Mas já em 1990, todos os indicadores econômicos da América Latina manifestavam a maturidade das forças produtivas sociais para a revolução social: a renda per capita caira aos níveis de 1970; na década de 1980, o crescimento econômico ficou bem atrás do crescimento demográfico; o investimento caiu de 25% do PNB nos anos 70 para 16,5 % em 1987; a inflação ficou fora de controle na maioria dos países; a dívida externa total pulou de US$ 100 bilhões em 1980 para US$ 420 bilhões em 1990; a produção de alimentos reduziu-se absolutamente em 17 de 23 países latino-americanos entre 1981 e 1987. A partir de meados de 1991 o fenômeno do ingresso de capitais estrangeiros atinge toda a América Latina. A entrada líquida total de capitais que era em 1989 de 9,3 bilhões de dólares passou a ser de 60,8 bilhões de dólares em 1992. Esse mesmo fenômeno de ingresso de capital especulativo aconteceu na Ásia, e acabou sendo o principal causador da crise asiática de outubro de 1997. A América Latina e os países endividados de outros continentes seguiram as receitas do FMI. O diagnóstico era quase sempre o mesmo: "excessiva presença de empresas estatais na economia", "excessivo volume de incentivos fiscais e subsídios creditícios", "restrições às importações" e "aumentos salariais acima da produtividade". Em 1987, o governo brasileiro suspendera o pagamento da dívida externa devido a queda no superávit comercial e redução nas reservas brasileiras, que estavam próximas de apenas 3 bilhões de dólares. No entanto o governo Sarney retomou as negociações para voltar a pagar a dívida em novembro do mesmo ano. Os governos do Brasil, sucessivamente, têm submetido o povo aos mais penosos sacrifícios visando cumprir integralmente com os compromissos externos, ou seja, as dívidas com os banqueiros e com os organismos internacionais.

Antes de assumir a presidência, o ministro da Fazenda de Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, declarou ao Senado que estava "extremamente feliz com o fim do problema da dívida externa". Preparando sua candidatura à presidência noticiava a conclusão das negociações com os bancos estrangeiros e a adesão ao Plano Brady (do nome do Secretário de Estado do governo dos EUA, Nicholas Brady), que estava sendo negociado desde o final do governo Collor. O acordo firmado pelo Brasil em 1994, com base nos princípios do Plano Brady, resultou em moderados descontos na dívida do setor público com bancos comerciais estrangeiros, no entanto, na prática representou um aumento significativo dos pagamentos em comparação com a situação anterior, quando o Brasil pagava 30% dos juros devidos, pois substituiu-se a dívida velha por bônus que não permitiam a capitalização dos juros. Durante o primeiro mandato de Fernando Henrique (1995-98) o Brasil desembolsou cerca 126 bilhões de dólares a título de juros e amortização da dívida externa. As despesas líquidas de juros subiram de 8,2 bilhões de dólares em 1995 para 15,2 bilhões de dólares em 1999. A nova moeda brasileira, o real, foi artificialmente valorizada em relação ao dólar por um longo período. Entre 1995 e 1999, as importações (mais baratas) superaram as exportações (mais caras), gerando um déficit comercial acumulado de 24,7 bilhões de dólares.

As privatizações, embora tenham produzido um abatimento contábil na dívida interna, aumentaram a dívida externa. Além da dívida, cresceu o passivo externo do país, pois os proprietários estrangeiros de empresas privatizadas remeteram lucros e dividendos para o exterior, sem falar em outras formas disfarçadas de remessa de capitais. No período de 1991-99 foram remetidos para o exterior 27,3 bilhões de dólares. O governo FHC

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incentivou o chamado investimento estrangeiro direto, por meio de subsídios, renúncia fiscal e empréstimos de bancos públicos para que empresas estrangeiras comprassem as estatais. No entanto, parte considerável do capital que entrou no Brasil destinou-se à especulação e à aquisição de patrimônio já existente, não resultando em novo investimento e crescimento econômico. A dívida externa do Brasil que estava em 148 bilhões de dólares em 1994 passou para 234,6 bilhões de dólares em 1998; neste mesmo período, foram pagos US$ 126 bilhões aos credores. O processo brasileiro deu-se no quadro da adoção, por todos os países latino-americanos, dos chamados “planos de estabilização”.6[6]

Por trás desses planos estava a introdução do conjunto das políticas de ajustamento do BIRD e do FMI, tendo como eixo a chamada “redução das funções do Estado”. Para tal foram exigidas várias reformas: do Estado, Previdência, universitária, quebra do monopólio estatal, flexibilização dos direitos trabalhistas. A questão monetária, ao ser o ponto culminante do plano, privilegiou esta finalidade não tocando em questões centrais como a distribuição de renda e da propriedade (reforma agrária), investimentos e geração de empregos. Os “novos movimentos sociais” brasileiros (MST, ou os sem-moradia das cidades) floresceram no solo adubado pela “democracia” neoliberal. Estes "modelos de estabilização" produziram uma quase uniformização das políticas econômicas na América Latina, deixando um quadro econômico e social desastroso, acelerando o grau de dependência em todos os sentidos, preparando o terreno para fundamentar os princípios re-colonizadores da ALCA (Acordo de Livre Comércio das Américas). Tratou-se de um programa de ajuste estrutural, que visava atender a todas as modalidades do capital: 1) Abertura comercial para as grandes corporações multinacionais; 2) Privatização das empresas estatais, de preferência para o capital estrangeiro; 3) Flexibilização dos direitos trabalhistas, "desonerando" o capital; 4) Restrição ao movimento sindical e desindexação dos salários.

No México, o crescimento exportador, baseado também em uma enorme “racionalização” produtiva, não diminuiu a polarização social, pelo contrário (75 milhões de mexicanos, 75% da população, vivem em situação de pobreza absoluta), tampouco diminuiu o êxodo de mão de obra “negra” para o campo e –cada vez mais- para a indústria do sul estadunidense (os “lomos mojados”), nem a concentração agrária. Tudo isso levou ao fracasso os programas paliativos de “modernização” agrária implementados antes e durante o salinato. Em janeiro de 1994, quando a assinatura do TLC (Tratado de Livre Comércio) com os EEUU consagrava a “internacionalização” da economia mexicana, produziu-se o levante de Chiapas, encabeçado pelo EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional). O levante consagrou o fracasso das políticas de aggiornamento do regime político, complemento necessário exigido pelo imperialismo para a ‘integração norte-americana’ do México, em especial do Pronasol (Programa Nacional de Solidariedade) dirigido principalmente ao Estado de Chiapas, que chegou a ser saudado como um grande êxito pelos sociólogos... exatamente nas vésperas do levantamento chiapaneco. O levante, por sua vez, reconhece sua própria história, pois resultou da continuação, e superação, da luta que, iniciada na primeira metade dos anos 1970 (o Congresso Indígena de San Cristóbal de 1974 é um ponto de referência obrigatório) se estende nos anos seguintes até conformar um verdadeiro processo de rebelião popular no Estado de Chiapas. Neste período se formam organizações camponesas independentes de todo tipo, que cobrem os terrenos da demanda agrária, da defesa dos direitos humanos, da reivindicação gremial e sindical, e de diversas exigências relativas à produção, o abastecimento e a comercialização.

Em dezembro de 1994 o “tequilaço” financeiro derrubou o peso, evidenciou a fraqueza e o parasitismo do “crescimento exportador”, levou à quebra milhares de empresas e à supressão de 800 mil empregos, obrigou a um inédito empréstimo direto dos EEUU (US$ 50 bilhões) para evitar um abalo do sistema financeiro internacional, o que provocou una crise nas relações poder executivo-parlamento na própria metrópole. A polarização social e política se acentuou com a crise: daí a pressa de Clinton em socorrer o México, dado o caráter pré-revolucionário da situação em sua fronteira sul. A desvalorização duplicou o preço das importações de alimentos: em 1996 a penúria mundial de cereais novamente duplicou o preço do milho e do trigo, base da alimentação mexicana. O governo Zedillo continuou favorecendo o setor exportador (já favorecido pela desvalorização) em detrimento dos produtos de consumo interno (a produção de cereais caiu 20%) o que motivou um novo êxodo rural em direção às cidades e aos EEUU. A crise econômica teve um efeito devastador. O PIB caiu 7%, a inflação subiu de 7% a 51%. Do total de pessoas empregadas em 1996 (35 milhões e 200 mil) 11,5% não recebiam salário, 19,7% recebiam menos que o salário mínimo (3 dólares por dia), 29,5% entre um e dois salários mínimos, 25,2% entre dois e cinco salários, e apenas 9,5% mais que cinco salários mínimos, o que significa que 31% dos trabalhadores não recebiam o mínimo para cobrir os gastos alimentares básicos. Os salários reais haviam de reduzido 67% entre 1982 e 1993: com a incorporação ao NAFTA, sofreram

6[6] Sobre a política latino-americana na década de 1990, ver: Abraham F. Lowenthal e Gregory F. Treverton (org.). América Latina en un Mundo Nuevo. México, Fondo de Cultura Económica, 1996.

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uma nova queda de 19%, entre 1994 e abril de 1997. O salário mínimo, em pesos de 1994, era de quase 41 pesos diários em 1982: em 1997 apenas superava os 11 pesos (uma queda de 72% em quinze anos). A luta social minou as bases do Estado priista, e preparou a “transição” para o governo neoliberal de Fox.

A dívida externa, cuja crise eclodiu nos anos 1980, continuou a crescer exponencialmente em toda a América Latina. No fim de 2001, segundo informe da SELA (Secretaria de Estudos Econômicos da América Latina), a dívida atingiu a cifra de US$ 784 bilhões, ou seja, US$ 30 bilhões a mais do que em 2000, com tendência para superar US$ 800 bilhões. Ao mesmo tempo, na década de 1990, quase todos os países da América do Sul (a Argentina desde 1992, e o Brasil a partir de 1994) passaram a ter déficits em suas balanças comerciais, sobretudo como conseqüência da desregulamentação da economia e da abertura dos mercados, intensificada pelos acordos resultantes do Uruguay Round do GATT, sem que fossem instituídas barreiras não tarifárias que dificultam as importações, como fazem os EUA e outros integrantes da OCDE. Nessas circunstâncias tornou-se cada vez mais difícil para os países latino-americanos pagar o serviço da dívida externa, o que até então haviam feito com o saldo positivo da balança comercial. As remessas de lucros e royalties, e as transferências clandestinas, recrudesceram em conseqüência da desnacionalização das empresas, principalmente as estatais.

A insolvência que levou à Argentina ao default configurou uma ameaça, inclusive para o Brasil, e a implantação da ALCA só agravaria essa situação. A ALCA estenderia a todo o continente um tratado cujas conseqüências sociais já estão claras. A ALCA é essencialmente uma expansão a todo o continente americano do NAFTA (acordo de livre comércio assinado por EUA, Canadá e México em 1994). Em seu período de vigência, o NAFTA demonstrou as conseqüências que traz para os trabalhadores, a sociedade e o meio ambiente. Desde que o NAFTA entrou em vigor, o número de mexicanos que ganham menos de um salário mínimo aumentou em um milhão, e 8 milhões de famílias submergiram na pobreza. Prevendo a livre circulação de capitais, não estendeu essa "liberdade" ao trabalho: no México, o NAFTA provocou um enorme surto de desemprego, ao mesmo tempo que cinco milhões de crianças foram obrigadas a trabalhar. Por outro lado, o NAFTA provocou uma onda de desregulamentação e de demissões nos próprios EUA.

O "efeito tequila" mexicano de 1995 e a desvalorização brasileira de 1999 foram antecipações que mostravam o caminho para a quebra. A Argentina foi o elo seguinte, mas poderia ter sido outro. América Latina afundava e afunda sob o peso da dívida externa e a crise de sobre-produção mundial, o esvaziamento financeiro, produtivo e comercial, o afundamento das moedas e dos sistemas bancários, a recessão e a quebra de empresas. O conteúdo social da crise latino-americana é o mesmo que está afundando o negócio capitalista das telecomunicações e a indústria informática nos Estados Unidos e na Europa, ou o sistema bancário japonês. A América Latina não enfrenta uma "crise regional"; a crise latino-americana é uma das manifestações da agudeza da crise do capitalismo mundial, do qual o nosso continente é um dos elos mais débeis. Como em 1982, quando estalou a "crise da dívida" depois que o México entrou em cessação de pagamentos, na América Latina encerrou-se um ciclo. Com a crise da Argentina em 2001-2002, houve redução do comércio em todas as direções (as importações argentinas provenientes do Brasil e do Uruguai caíram 70%). Como poderia se sustentar o Mercosul, no quadro de uma recessão, de desvalorizações competitivas e de um colapso financeiro comum a todos os seus membros? O bloco comercial das burguesias do Cone Sul, morreu de morte natural, como conseqüência da quebra de cada um de seus integrantes.7[7]

Na Venezuela, a emergência da liderança de Hugo Chávez, sustentado por uma coalizão política construída às pressas, da qual fizeram parte figuras históricas da esquerda venezuelana (como seu vice, José Vicente Rangel, ex candidato presidencial do MAS) se explica no quadro da crise terminal do regime “partidocrático” criado em 1958, depois da queda do ditador Rojas Pinilla. Sem dúvida, a sua vitória eleitoral esmagadora, à cabeça de uma heterogênea coalizão de populistas, militares e esquerdistas, contra a velha partidocracia venezuelana, lhe deu enormes meios políticos. As velhas classes dominantes venezuelanas, assim como o próprio imperialismo ianque, já vinham tomando nota da falência do “sistema” venezuelano, que levou o velho líder Carlos Andrés Pérez à prisão, e deflagrou uma onda de escândalos bancários na década de 90. Isto num quadro de crescente insurgência popular, que teve um ponto alto no “caracazo” de 1989 (270 mortos). A tentativa golpista de Chávez, em 1992, expressou a crise do conjunto do sistema. Sete anos depois,

7[7] Até o Chile, apresentado como uma “ilha de estabilidade” no Cone Sul, apresenta agora índices alarmantes de crescimento da pobreza e de “concentração da renda” (com 10% da população se apropriando de 41% da renda nacional). Ver. Nira Reyes Morales. Um Chili plus mal em point qu’il n’y paraît. Le Monde Diplomatique. Paris, novembro 2002. Sobre o custo das chamadas “reformas neoliberais”, ver: Anita Kon et al. Costos Sociales de las Reformas Neoliberales en América Latina . Caracas. FCES/UCV e Prolam/USP, 2000.

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Chávez chegou ao poder por outros meios, numa conjuntura internacional favorável: o preço do petróleo foi de 7 para 20 dólares o barril, o que permitiu incrementar a renda nacional em 25%, embora a produção caísse 9%.

A Venezuela possui condições excepcionais de barganha com os EUA, pois disputa com a Arábia Saudita o título de maior fornecedora do petróleo importado pelo amo do norte. No entanto, Chávez, em nome do déficit fiscal e da corrupção da PDVSA (empresa petroleira estatal) reduziu as inversões da empresa estatal, terceirizando suas operações e promovendo os investimentos estrangeiros em ramos vinculados ao petrolífero, como a petroquímica. No plano político, foi significativa a afirmação de Chávez de que “deve-se esvaziar a democracia para salvá-la”. A súbita vocação nacionalista da esquerda venezuelana não deve surpreender, pois a própria esquerda latino-americana olhou para Chávez como um líder antiimperalista de alcance continental (ou como um porta-bandeira da luta contra a “globalização”). O apoio popular, por outro lado, se explica pelo inacreditável grau de corrupção e reacionarismo do “sistema democrático” precedente, que levou de 33% a 67% a percentagem de venezuelanos com renda inferior a dois dólares diários.

A crise da Venezuela combinou-se explosivamente com a da Colômbia. As FARC fortemente armadas, contam com dezenas de milhares de homens e uma implantação muito forte nas zonas rurais; seu mais recente desenvolvimento foi a aparição das milícias urbanas. Os norte-americanos encobrem sua intervenção direta com uma "privatização" crescente da guerra, ou seja, com mercenários e o apoio da indústria bélica norte-americana ao Exército colombiano e aos paramilitares, sem passar pelo Pentágono. Mas o Estado colombiano não domina a totalidade de seu território; portanto não arrecada impostos nem fornece serviços educativos ou sanitários. Seu exército, pese a ser o que, depois de Israel e Egito, recebe mais ajuda militar dos Estados Unidos, é reduzido, débil, manifestamente inepto no combate. Sofreu humilhantes derrotas dos guerrilheiros e não exerce o monopólio da repressão estatal. O aparato do Estado está penetrado pelo narcotráfico, que também financia, junto com os criadores de gado, os paramilitares. Colômbia tem um exército de camponeses pobres, que envia para a combater uma guerrilha camponesa em defesa do regime político dos latifundiários. Na Colômbia, 2.300 proprietários de terras (sendo um deles o presidente Uribe) possuem 40 milhões de hectares; 2,5 milhões de camponeses pobres possuem apenas 4,5 milhões de hectares.

O “pacote” brasileiro de 2002 provocou uma curta euforia nas Bolsas de todo o mundo e nos especuladores. Paul Erdman escreveu que o pacote estava destinado a resgatar o Citigroup e o FleetBoston, expostos em mais de US$ 20 bilhões no Brasil; Paul Krugman acrescentou, no New York Times, que, em troca, ambos grupos se comprometeram a financiar a campanha eleitoral de novembro do Partido republicano (do presidente George W. Bush). Só no período dos dois mandatos de FHC, foi o terceiro empréstimo contratado pelo governo junto ao Fundo. O primeiro, em outubro de 1998 (US$ 41 bilhões), teve a função de adiar a desvalorização do real, às vésperas da reeleição de FHC. O real acabou quebrando em janeiro do ano seguinte. Como resultado, o Fundo conseguiu estabelecer um instrumento de forte monitoramento do Estado brasileiro, a Lei de Responsabilidade Fiscal que assegurava o pagamento da dívida em detrimento dos serviços públicos. Em setembro de 2001, o governo tomou outros US$ 16 bilhões, desta vez como "seguro" frente ao perigo do contágio da insolvência Argentina, que batia à porta. Nesta ocasião, além de novo aprofundamento da dívida brasileira, o Fundo impôs a meta de superávit primário de 3,75% do PIB, “economia” dos gastos públicos às custas da saúde, da educação, da reforma agrária, etc. O governo de Lula da Silva foi , essencialmente, o continuador desta política. O FMI estabeleceu, de fato, as bases do programa de governo para os quatro anos do governo do PT.

A crise argentina foi, porém, o motor da crise latino-americana. Em inícios de março de 2001, a renúncia do ministro de economia Machinea traduziu todo o impasse do regime da Aliança e do plano (com um pacote de US$ 39,7 bilhões) bolado pelo FMI para conter a degringolada argentina. Era o fracasso da “blindagem” e da política do FMI e do FED, aplicadas a fundo por Machinea. Poucos dias depois, a Frepaso (uma das componentes da Aliança, junto com a UCR) renunciou ao governo. À crise “de cima” somou-se a iniciativa “de baixo”: os piquetes de desempregados e localidades transformadas em cidades-fantasma começaram a estender-se nacionalmente, com marchas de dezenas de milhares, funcionários públicos (ameaçados por um plano de demissões), estudantes (o novo ministro anunciou cortes drásticos no orçamento educacional) saíram às ruas, ao mesmo tempo que professores universitários deflagraram uma ocupação nacional de prédios, com cortes de estrada; a greve geral paralisou o país a 21 de março.

O país foi saqueado até o fim, aceitando uma “mega-troca” de títulos da dívida, que aumentou a dívida externa em 50 bilhões de dólares. O regime do "peso forte" virou seu contrário: de ter cada peso respaldado em um dólar se passou para a emissão de certificados, sem qualquer respaldo, para pagar os funcionários e provedores públicos. A crise arrastou o principal governo provincial peronista. Da crise da “Aliança” passamos para a

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crise geral do Estado. A tentativa desesperada de sair da crise com o “mega-roubo”, que hipotecava o país para toda a eternidade, fracassou. A impossibilidade de pagar ao capital financeiro explodiu com a bancarrota na província de Buenos Aires, nas mãos do peronismo: na principal província, que concentra el 40% da produção, del país, a moeda foi substituída por papeis sem respaldo. O desaparecimento do circulante monetário é a manifestação última do confisco geral: os capitalistas levaram consigo até o dinheiro necessário para movimentar seus próprios negócios. Em dezembro de 2001 Cavallo levou a fundo sua lógica, bloqueando todas as contas bancárias: a 19 e 20 de dezembro, o “argentinaço” derrubou Cavallo, De la Rua e todos o governo. Numa impressionante mobilização revolucionária, quatro governos foram derrubados em um mês, pelas massas mobilizadas sob o grito Que se vayan todos! O governo Duhalde admitiu finalmente a “flutuação” (desvalorização) do peso, que chegaria nos meses seguintes a valer US$ 0,25. Com a desvalorização do peso pretendia-se incentivar as exportações e proteger o mercado interno, mediante a desvalorização dos salários e do gasto público, que deu uma saída aos capitalistas. A desvalorização também foi estimulada pelo FMI e o imperialismo norte-americano. O quadro da economia do país ficou catastrófico. O desemprego atingiu 28% dos trabalhadores e o subemprego 20%, enquanto que o salário real (para os que ainda conservavam o emprego) retrocedeu 25% em 7 meses.

O grande objetivo estratégico do governo Duhalde, substituto de De la Rua, foi a liquidação do movimento piquetero, protagonista das principais lutas contra a política econômica dos distintos governos no último período. Em um primeiro momento, o plano consistiu em atrair o setor mais moderado deste para um acordo com a Igreja e as câmaras patronais, através dos conselhos consultivos, enquanto se reprimia o mais combativo. Este era o objetivo dos assassinatos de 26 de junho de 2002 em Puente Pueyredón, que pretendiam atribuir ao movimento piquetero. Com a suposta violência desatada pelos “descontrolados” o governo pretendia legitimar a repressão e fortalecer-se no âmbito da crise política e econômica. No entanto, a provocação foi desmascarada quando todo o mundo viu a morte de Maximiliano Kosteky pelas mãos da polícia. A resposta foram as mobilizações que se sucederam desde 27 de junho até 9 de julho, com a massiva ocupação da praça de Maio pelas organizações piqueteiras, junto das assembléias populares, que exigiam o castigo dos culpados (tanto os autores materiais, como os seus instigadores).

Temeroso de acabar como De la Rúa, Duhalde teve que retroceder, anunciando o castigo dos policiais responsáveis e a antecipação das eleições de setembro a março de 2003. O retrocesso do governo esteve acompanhado de novas vitórias populares (a extensão do seguro-desemprego a dois milhões de desempregados, a expropriação de várias empresas ocupadas, aumentos salariais e inclusive a redução da jornada de trabalho para os trabalhadores do metrô de Buenos Aires sem redução salarial, também se freou a repressão policial contra as casas ocupadas pelas organizações piqueteiras). Em uma das últimas declarações do ministro de economia argentino, Roberto Lavagna, em meio a suas intermináveis negociações com o FMI, comentava que a crise argentina apresentava os primeiros sinais de superação. Um dos indícios mais prometedores que revelava era o aumento da arrecadação de impostos por parte do Estado argentino. Lavagna se esquecia de dizer que 38% do arrecadado era em forma de títulos públicos completamente desvalorizados, apresentados pelas empresas para poder saldar suas dívidas pendentes com o Estado.

A Argentina é também a ponta avançada da organização social e política independente dos explorados. A América Latina é o cenário de profundos processos de luta de massas. Durante o verão de 2000, houve uma ampla onda de lutas operárias, camponesas, indígenas e populares, com epicentro na convulsionada região andina, mas que abarcou outros países: Costa Rica, Paraguai, Argentina. Uma nova onda de convulsões políticas e mobilização social começou a se estender: o novo levantamento indígena em Equador; a greve geral de 22 de março de 2001 na Colômbia; a incessante agitação na Bolívia; a polarização política e social na Venezuela; a virtual agonia do governo e a massiva mobilização camponesa no Paraguai... Em alguns dos processos mais agudos surgiram novas formas de organização e métodos radicalizados de luta: no Equador, sobre a base do grande levante camponês e indígena de 21 de janeiro de 2000 formou-se um Parlamento Popular. Na Bolívia, em abril de 2000, a Coordenadoria pela Água e pela Vida centralizou a rebelião de Cochabamba e em setembro um novo levantamento camponês comoveu o país. Na Argentina, a arma dos piquetes e bloqueios de estrada mostraram a extensão do protesto. As Assembléias Populares e o Bloco Piqueteiro Nacional são os filhos do argentinaço. As Assembléias nasceram ao calor da mobilização popular e se multiplicaram como cogumelos na semana posterior ao argentinaço. Iniciaram-se na pueblada que acabou derrubando Rodríguez Saá uma semana depois. O Bloco Piqueteiro é a conseqüência da delimitação política provocada pelo argentinaço e da conduta diante da rebelião popular das direções que até então haviam atuado em comum na Assembléia Piqueteira. Os acontecimentos levaram a que o movimento piqueteiro pudesse aparecer como a direção política natural de

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um processo de rebelião popular que o havia tido como a seu principal protagonista. As massas começam a lavrar com suas próprias mãos os degraus na construção de uma subjetividade superior para o movimento operário e popular.8[8]

Na Bolívia, a trajetória política dos camponeses cocaleros na Bolívia, movimento social de maior envergadura nacional das últimas duas décadas, deve ser compreendida. Mesmo em se tratando da defesa dos seus interesses econômicos, os cocaleros nunca se definiram apenas como camponeses, mas como indígenas plantadores e protetores de uma folha simbólica para a sua cultura andina, a consagrada folha de coca. A partir desta definição identitária étnico-cultural é que se destacam as condições da exclusão social à que foram submetidos desde tempos coloniais, e posteriormente do empobrecimento e da exploração econômica. Longe de ser, na América Latina, um movimento isolado, o dos cocaleros foi um movimento que acompanhou a emergência de outros novos setores ativos da sociedade, que imbricaram a questão étnica com reivindicações sociais. Seja na Selva Lacandona ou na colombiana, seja na serra equatoriana ou nos Andes peruanos ou bolivianos, chama a atenção o acúmulo de experiências de luta destes movimentos emergentes de camponeses-indígenas.

A partir de final da década de 70 e início dos anos 80, respondendo ao chamado da central sindical boliviana, os camponeses paralisaram o país, bloquearam estradas e acessos às cidades e precipitaram a queda do governo militar. Ao fracasso evidente do ciclo nacionalista aberto em 1952 em fazer progredir um projeto nacional e moderno, adicionaram-se as conseqüências do endividamento recente do país. A dívida externa boliviana, na década de 1970, pulou de US$ 460 milhões para US$ 3 bilhões, entre empréstimos recebidos e dívida contraída pelos governos militares. A retomada da democracia não evitou a iminência da crise econômica manifestada numa hiperinflação, que em 1985 atingiu a cifra de 23.500 % anual. Neste contexto surgem os cocaleros, como síntese da nova fase de crise econômica e social: resultam do êxodo rural, da crise econômica e do desemprego; do modelo afiliado a interesses e capitais externos.

Há, entre os indígenas bolivianos, no mínimo dois horizontes básicos e distintos: o dos povos quechuas e dos aymaras. Historicamente, os primeiros desempenharam um papel de conquista e de negociação, enquanto que os segundos foram os da resistência. Emergiram então duas vertentes que constituiriam a liderança futura do novo movimento indígena e camponês. O primeiro foi o katarismo no altiplano, o segundo foi o movimento cocalero, organizado politicamente a partir de um setor dos camponeses quechuas que, não acatando o pacto militar-camponês, fugiram para o Chapare, no trópico cochabambino a fim de conquistar novas fronteiras de sobrevivência. Os cocaleros levaram para as colônias do Chapare a organização sindical dos camponeses revolucionários, sem perder, no entanto, um eco longínquo da memória ancestral: a estrutura familiar como base produtiva e de reprodução social. Na medida em que se organizaram e se constituíram em movimento popular, porém, os cocaleros fizeram prevalecer os valores que apreenderam dos rebeldes kataristas e das suas lideranças: a necessária defesa da sua identidade e do mérito da busca de sua autonomia de ação. Mas definir o movimento cocalero apenas pela sua origem étnica e cultural seria negar uma realidade mais complexa na construção da sua identidade, a sua situação histórica como classe.

Na Bolívia, apesar da inferioridade numérica, as zonas rurais concentram os índices de pobreza maiores no país: 80 % vivem em estado de pobreza e 55 % em situação de extrema pobreza. Nas áreas rurais, a taxa de analfabetismo para maiores de 15 anos é de 25 %, enquanto 75 % dos lares não possuem energia elétrica, 59 % não têm água encanada e 95 % está sem nenhum serviço de esgoto. Nesse contexto, o camponês boliviano tem buscado alternativas de sobrevivência seja migrando para cidades e fora do país, seja diversificando sua economia, principalmente no artesanato. Todavia, um setor desta população optou pela migração para a região do Chapare, departamento de Cochabamba, a fim de plantar a folha de coca, e incentivado, desde a década de 1980, pela expansiva demanda da folha pelo narcotráfico. Dados de início da década de 70, anteriores ao impulso do mercado da droga, afirmam que naquela época o Chapare tinha 25 mil habitantes, e que cinco anos mais tarde, quando o influxo da droga é deflagrado, a população se expandiu para 140 mil habitantes. Atualmente, apesar do relativo sucesso das campanhas de erradicação da folha, a população do Chapare supera a cifra de 300 mil habitantes.

Para o colonizador, a produção para o mercado é um objetivo mais importante que a de subsistência e dentre os cultivos que ele escolhe, pela facilidade de venda e de produção, está a folha de coca. Enfim, a característica mais importante do cocalero está no fato de o cultivo da folha acabar se tornando o centro predominante do seu sistema produtivo, quando emerge com ímpeto o mercado da cocaína. Com a coca, o produtor da folha consegue uma margem de autonomia maior mas, nem por isso, ele tem superado os índices de pobreza

8[8] Para o movimento piquewtero, ver: Luis Oviedo. Una Historia del Movimiento Piquetero. Buenos Aires, Ediciones Rumbos, 2002.

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característicos das zonas rurais. Pelo lugar que ocupa na cadeia produtiva do narcotráfico, é reservada ao cocalero a menor parte dos lucros gerados pelo negócio da droga, suficientes para sair das estatísticas de extrema pobreza em que se encontra o camponês boliviano, mas não para superar o quadro da pobreza rural.

O cocalero é filho da pobreza estrutural agravada nas áreas rurais. Para dar força ao movimento, articularam as colônias em sindicatos centralizados numa Federación Especial de Trabajadores Campesinos del Trópico Cochabambino (FETCTC) sob o comando do setor dominará nas seguintes décadas, sob a liderança de Evo Morales. A partir de 1985, o movimento cocalero recebeu o reforço da migração do ex-operariado mineiro e de setores urbanos desempregados que fundaram colônias novas, se unindo aos camponeses residentes e aos recém-chegados das diversas regiões empobrecidas do país rural. O êxodo para o Chapare, desde a crise que começa em 1982, cujo pico são as reformas estruturais de 1985, foi o momento constitutivo do movimento cocalero, pois abriu o movimento para outros sujeitos políticos.

Entre 1987 e o início da década de 90, sob o mote “Hoja de Coca, 500 Años de Resistencia”, os cocaleros iniciaram um plano de conquista da opinião pública. O objetivo era articular o movimento com a sociedade e legitimar a defesa da folha como forma de resgate e de luta pela soberania nacional. fato, a irradiação do movimento na sociedade afora foi facilitada pela abertura do movimento ao diálogo e pela articulação dos seus argumentos políticos com as demandas sociais gerais, mas também pelo crescente repúdio nas cidades, contra a política econômica do governo e a intervenção coercitiva dos Estados Unidos. Esta fase inicia também o momento de maior atrito entre o movimento e o governo. No início da década de 1990, o movimento cocalero já era o setor de maior projeção política nacional.

O crescimento do movimento cocalero não foi tranqüilo. Paralelamente à sua consolidação e irradiação social, as disputas internas e influências externas foram limitando a margem das suas ações. A pressão internacional sempre exigiu um posicionamento enérgico do governo contra o movimento, bem como importantes partidos políticos, na incapacidade de absorver o movimento, passaram a hostilizar ou cooptar suas lideranças. A repressão das forças policiais e militares encontrou apoio moral e incentivo das empresas agrícolas do Chapare, prejudicas pelos bloqueios de estradas, e setores da mídia lançaram campanhas de desinformação e desprestígio do movimento. Aos poucos o governo recuperou do movimento cocalero o controle sobre a coca, o que provocou, na segunda metade da década de 1990, o acirramento dos conflitos e da violência estatal. Nas eleições presidenciais e para deputados, de junho de 1997, através da Asamblea para la Soberania de los Pueblos, os cocaleros conseguiram conquistar pela primeira vez quatro cadeiras no parlamento, sendo que a Evo Morales correspondeu a maior votação das eleições, obtendo ainda um índice acima de 70 % dos votos na sua região.

Em 2000, a Guerra del Agua foi integrada por segmentos diversos organizados na Coordenadora del Agua mas atingiu seus objetivos pela pressão massiva dos camponeses nas cidades, cujo eixo de organização era o movimento cocalero. A aliança inédita das populações do campo e da cidade, elemento novo da Guerra del Agua, foi um movimento de solidariedade espontânea manifestada na recepção com alimento e abrigo aos camponeses na cidade. A mobilização massiva de 2000 quebrou por um instante a distância histórica que separa o campo da cidade, o que foi possível porque a aliança vinha sendo construída com anterioridade pelo movimento cocalero.9[9]

Em julho de 2002, com 20,94 %, o Movimiento Al Socialismo, partido liderado por Evo Morales, atingiu o segundo lugar nas eleições, seguindo de perto o primeiro colocado, o MNR com 22,45 %. Com o segundo lugar em votos e em número de parlamentares, o MAS e seu candidato -que também foi o deputado com maior votação nacional, 85 % na sua região- habilitou-se à disputa do segundo turno a novo presidente da República. A vitória de Sánchez de losada, do MNR, não impediu que fosse derrubado pela mobilização popular, assim com também aconteceu ao seu substituto, Carlos Mesa, derrubado pela luta das massas bolivianas pela nacionalização dos hidrocarbonetos, que configurou uma transitória situação revolucionária. Para as eleições de 2006, a candidatura do MAS aparece em primeiro lugar em todos os sondagens, ao mesmo tempo que seu líder, Evo Morales,é crescentemente denunciado como “traidor” pelas lideranças mais combativas do movimento operário e camponês.

A economia da América Latina, depois das incursões “neoliberais” feitas pelos “nacionalistas” (e até “socialistas”) de outrora, apresenta um quadro caótico de crise generalizada, que desmente qualquer análise de “dificuldades conjunturais”. Uma das características desse período foi a abertura desregrada das fronteiras nacionais com a drástica redução das tarifas alfandegárias, ampliando a oferta de produtos importados. Outro

9[9] Ver: Vivian F.D. Urquidi . O movimento cocalero na Bolívia. In Osvaldo Coggiola (org.). América Latina na Encruzilhada. São Paulo, Xamã-Prolam/USP, 2003.

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aspecto dessa política foi a desvalorização dos patrimônios nacionais (seguindo a tendência mundial de queda dos valores) vendidos a empresas multinacionais a preços irrisórios, para garantir a entrada de dólares e cumprir as obrigações com o capital financeiro. No Brasil, as privatizacões renderam US$ 63,6 bilhões. Mesmo assim, a dívida externa saltou de US$ 123,9 bilhões em 1991, para US$ 236 bilhões em marco de 2002. Com as reformas, as conseqüências sócias foram dramáticas: desemprego aberto, perdas de postos assalariados e trabalho precário. De 1989 para 1999 o número de desempregados na AL aumentou em 11,1 milhões, com a taxa de desemprego aberto saltando de 4,8% da população economicamente ativa para 9,2%, de acordo com os dados oficias da OIT. Caiu também o emprego assalariado. Em 1989, 57,8% do total da ocupação latino-americana eram assalariados. Em 1999, esse porcentual havia caído para 51%, com a perda de 4,7 milhões de empregos, sendo 3 milhões só no setor industrial. A renda per capita media dos latino-americanos em relação aos norte-americanos era de 33,5% em 1980, caindo para 22,9% em 1990, e para menos de 20% na virada do século. Em 2000, mais de 36% das famílias latino-americanas (220 milhões de pessoas) viviam abaixo da linha de pobreza. Só na Argentina, a atividade econômica regrediu entre 1998 e 2002 mais do que o dobro do que na Grande Depressão da década de 1930.

A ascensão do governo Lula-PT foi vista, neste quadro histórico-político, com esperanças por todos os setores populares, mas também com beneplácito pelos representantes do governo e do establishment dos EUA. O novo governo da principal nação latino-americana se estruturou claramente como um governo de Frente Popular, com um programa de reformulação do capitalismo, e com importantes representantes da burguesia financeira no seu interior. Isto significa que são as manobras políticas de colaboração de classes a arma privilegiada dos “senhores do mundo” para tentar conter a inédita emergência do movimento operário e camponês da América Latina. A catastrófica degringolada do governo de Lula demonstrou as debilidades e limitações desse tipo de saída política.

Mas isso não impede aos EUA de preparar também outras armas, complementares e não contraditórias: existe um verdadeiro labirinto de organizações militares dos EUA na América Latina, além de uma dúzia de bases aéreas não oficialmente existentes, radares, centros de mando e outras posições militares, que constituem uma teia de aranha que se estende desde Honduras e El Salvador, descendo até o Equador, Peru, Bolívia e Colômbia e que fecha o polígono ao norte das ilhas de Curação, Porto Rico e Bahamas.10[10] A partir da América Central e do Sul, passando por Israel e pelo Golfo Pérsico, mais de 200 mil soldados norte-americanos (e um número indefinido de "funcionários privados") são assim espalhados pelo mundo. Desde a época da Guerra Fria seu número se reduziu em 50%, mas 90% dessa redução teve lugar na Europa, principalmente na Alemanha. Em todos os outros lugares há um crescimento significativo da presença clandestina de tropas norte-americanas. Somente um salto de qualidade política, baseado no internacionalismo proletário, poderá abrir chances de vitória para a revolução latino-americana nas novas condições históricas.

Referências Citadas Abraham F. Lowenthal e Gregory F. Treverton (org.). América Latina en un Mundo Nuevo. México, Fondo de Cultura Económica, 1996. Alain Rouquié, Bolivar Lamounier e Jorge Schvarzer. Como Renascem as Democracias. São Paulo, Brasiliense, 1985. Anita Kon et al. Costos Sociales de las Reformas Neoliberales en América Latina. Caracas. FCES/UCV e Prolam/USP, 2000.Departamento de Estado dos EUA/Bureau de Assuntos Públicos. Democracia na América Latina e no Caribe. A promessa e o desafio. Relatório Especial n° 158, Washington DC, março 1987. Guillermo O’Donnel, Philippe Schmitter e Laurence Whitehead. Transitions from Authoritarian Rule. Latin America. Baltimore, The Woodrow Wilson International Center, 1986.John Lindsay-Polland. The Pentagon has a new infrastructure in Latin America. Fellowship of Reconciliation Task Force on Latin America & the Caribbean. Vol. 6, n. 35, novembro 2002.Juan O. Tamayo. CIA’s Andean spying under attack planes monitor more than drugs. Miami Herald, 22 de maio de 2001.Kevin J. Middlebrook e Carlos Rico. The United States and Latin America in the 1980s. Contending perspectives of a decade of crisis. Pittsburgh, University of Pittsburgh Press, 1986.Luis Oviedo. Una Historia del Movimiento Piquetero. Buenos Aires, Ediciones Rumbos, 2002.Nira Reyes Morales. Um Chili plus mal em point qu’il n’y paraît. Le Monde Diplomatique. Paris, novembro 2002.Paul H. Boeker (org.). Transformações na América Latina. Privatização, investimento estrangeiro e crescimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995.Ricardo Ffrench-Davis e Stephany Griffith-Jones. Os Fluxos Financeiros na América Latina. Um desafio ao progresso. São Paulo, Paz e Terra, 1997. Sistema Económico Latinoamericano (SELA). El FMI, el Banco Mundial y la Crisis Latinoamericana. México, Siglo XXI, 1986.

10[10] John Lindsay-Polland. The Pentagon has a new infrastructure in Latin America. Fellowship of Reconciliation Task Force on Latin America & the Caribbean. Vol. 6, n. 35, novembro 2002; Juan O. Tamayo. CIA’s Andean spying under attack planes monitor more than drugs. Miami Herald, 22 de maio de 2001.

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Vivian F.D. Urquidi . O movimento cocalero na Bolívia. In Osvaldo Coggiola (org.). América Latina na Encruzilhada. São Paulo, Xamã-Prolam/USP, 2003.

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