Crise da autoridade em hannah jaqueline maria leichtweis
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SOBRE A CRISE NA AUTORIDADE E NA EDUCAÇÃO EM HANNAH ARENDT
Jaqueline Maria Leichtweis Unioeste – Campus de Toledo - PR
Rosane Maria Arnt Hilgert Unioeste – Campus de Toledo - PR
Cintia dos Santos Machado Unioeste – Campus de Toledo - PR
Resumo
O presente trabalho busca descrever o pensamento de Hannah Arendt (1906-1975), a
princípio, sobre a crise na autoridade, típica do mundo moderno e conectada
historicamente à perda da tradição. A partir disso, faremos uma relação da crise na
autoridade com a crise na educação. Desenvolver este tema é uma tarefa um tanto
difícil, à medida em que a autora, em seus escritos, não formula uma teoria sobre a
educação, porém permite entrever sua crítica e sua compreensão nos textos Que é
autoridade e A crise na educação, ambos contidos em seu livro Entre o passado e o
futuro. Para complementar nossa pesquisa, utilizamos a obra A condição humana, na
intenção de entender a distinção feita por ela entre política e educação. Por fim,
estabeleceremos qual o papel do educador no mundo atual.
1. Sobre o conceito de autoridade
De acordo com Hannah Arendt, a autoridade desapareceu do mundo moderno,
pois o próprio termo tornou-se confuso e controverso depois de vastas experiências
políticas e sociais pelas quais passamos nesta época. As revoluções e o advento dos
sistemas totalitários e das ditaduras no século XX e que terminaram em tirania, segundo
a pensadora, foram fatores determinantes para uma crise constante da autoridade, que
encontra-se crescente e cada vez mais profunda no campo político ou público. Essa crise
se espalha também em áreas pré-políticas, tais como a criação dos filhos e a educação
“onde a autoridade no sentido mais lato sempre fora aceita como uma necessidade
natural” (ARENDT, 2007, p.128).
Arendt (2007, p.129) diz que a autoridade sempre exige obediência e, por isso,
ela comumente é confundida com alguma forma de poder ou violência; contudo, a
autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção, pois onde a força é usada a
autoridade fracassa. Por outro lado, é incompatível com a persuasão, onde existe a
igualdade e o processo se faz por meio de argumentação, pois “onde se utilizam
argumentos, a autoridade é colocada em suspenso” (ARENDT, 2007, p.129). Nesse
sentido, a autoridade, em contraposição à coerção pela força e à persuasão através de
argumentos, é sempre hierárquica, cujo direito e legitimidade ambos os lados
implicados (quem manda e quem obedece) reconhecem e na qual ambos tem seu lugar
estável pré-determinado.
No processo histórico em geral, pode-se dizer, a perda da autoridade está
estreitamente ligada à perda da tradição, a qual discutiremos mais detalhadamente a
seguir, com suas implicações na crise na educação, a qual é o foco deste trabalho.
2. A crise na educação
A crise na autoridade e, consequentemente, a crise na educação, afirma Arendt,
está historicamente relacionada com a perda da tradição e são parte, inclusive, de uma
crise mais vasta: crise da autoridade, da tradição, da política, do espaço público, da
responsabilidade, e que invade a educação. A perda da tradição não é a mesma coisa
que a perda do passado. Na verdade, “com a perda da tradição, perdemos o fio que nos
guiou com segurança, através dos vastos domínios do passado” (ARENDT, 2007,
p.130). A perda da tradição, nesse sentido, coloca o passado em perigo na medida em
que ameaça esquecer esse passado e, esquecendo o passado, perde-se a profundidade da
existência humana. Da mesma forma é a autoridade: assenta-se em alicerces do passado
e dá ao mundo permanência e durabilidade:
Sua perda é equivalente à perda do fundamento do mundo, que, com efeito, começou desde então a mudar, a se modificar e transformar com rapidez sempre crescente de uma forma para outra, como se estivéssemos vivendo e lutando com um universo proteico, onde todas as coisas, a qualquer momento, podem se tornar praticamente qualquer outra coisa. Mas a perda da permanência e da segurança do mundo – que politicamente é idêntica à perda da autoridade – não acarreta, pelo menos não necessariamente, a perda da capacidade humana de construir, preservar e cuidar de um mundo que nos pode sobreviver e permanecer um lugar adequado à vida para os que vêm após (ARENDT, 2007, p.132).
Hannah Arendt vincula, ainda, o problema da educação às questões que são
tratadas em outra obra importante, A condição humana. Para a filósofa, o ser humano
está designado a três atividades fundamentais na sua condição: labor, trabalho e ação, e
essas mesmas atividades se distribuem em dois campos: público e privado. O labor visa
à confecção do que é necessário à vida, à sobrevivência. O trabalho, por sua vez, tem
por objetivo elaborar aquilo que é útil e belo, ou seja, os artifícios humanos. A ação,
diferentemente, está ligada à pluralidade humana e corresponde especificamente a toda
vida política. Para Arendt, essas três atividades descritas possuem uma estreita relação
com as condições mais gerais da existência humana, a saber: a natalidade e a
mortalidade. A ação, dentre as três atividades, é a que mais permite a condição humana
da natalidade, visto que sempre se encontra na experiência do “novo” como elemento
indissociável a cada nascimento. Assim, cada criança que nasce, traz consigo a
potencialidade de agir, ou seja, de participar da ação.
Mediante essas considerações, Arendt cita que um dos conceitos que fazem parte
da essência da educação é a natalidade, que é a chegada de algo novo, de uma nova
existência. Diante disso, entendemos que os filhos pertencem à esfera privada do lar e
da família. E que aos pais cabe protegê-los e prepará-los para seu futuro na vida pública
e social, papel também do educador. Nisso é constitutivo aos adultos uma dupla
responsabilidade diante das crianças que são novas no mundo e se encontram em
processo de desenvolvimento, em processo de formação. E para que esta criança se
desenvolva com segurança é preciso que ela esteja afastada, separada do espaço público,
pois a educação de maneira alguma deve estar vinculada à política – que se situa no
espaço público, pois isso elimina as condições básicas de desenvolvimento natural da
criança. O espaço do agir político é o espaço de decisões dos adultos, na política se lida
sempre com pessoas já adultas e educadas e que pertencem a um espaço onde há
exposição das singulares personalidades. Nesse sentido, devemos ter presente outro
fator da responsabilidade do adulto, o fato da natalidade referir-se à preservação do
mundo. Portanto, cabe aos pais a responsabilidade pela vida e o futuro da criança e pela
continuidade do mundo.
A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos as nossas crianças o bastante para não expulsá-las do nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tão pouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa
nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum (ARENDT, 2007, p.247).
Para Arendt, a responsabilidade da escola é a de mostrar ao jovem como é este
mundo em que ele é o novo integrante. O educador se apresenta como um representante
do mundo velho, mundo ao qual a criança está inserida pelo processo de nascimento,
mundo já existente. Para fazer a mediação entre a tradição do mundo velho e a novidade
que enlaça a criança nesses primeiros anos, o educador assume diante da criança a
responsabilidade pelo mundo tal como ele é, com suas tradições e costumes. E é nesta
responsabilidade que se funda a autoridade do professor, com o intuito de preparar as
crianças para este mundo, transmitindo-lhes conhecimento e educação.
Arendt diz que esse problema da autoridade na educação é o que mais aumenta a
crise, pois recusar a autoridade na educação é recusar a responsabilidade que o adulto
ou o educador tem sobre a criança, deixando-as abandonadas aos seus próprios recursos.
Por esta razão, a filósofa defende que devemos separar definitivamente política de
educação. Primeiro, porque educação e política não são compatíveis, pois a política é o
âmbito da igualdade e as relações se dão com pessoas já adultas (o que não é o caso da
educação). E segundo, que na educação o que se pretende é educar e preparar as
crianças em termos de conhecimento para o mundo, pois é um ser humano novo que
está em processo de formação, sendo necessário, para tanto, um certo tipo de hierarquia,
com a autoridade fazendo a função de alguém que está autorizado a fazer alguma coisa,
no caso o educador em relação à criança ou adolescente.
Quanto às ideias de Arendt a respeito de um certo conservadorismo seu, ela
afirma: A fim de evitar mal-entendidos: parece-me que o conservadorismo, no sentido de conservação, faz parte da essência da atividade educacional, cuja tarefa é sempre abrigar e proteger alguma coisa – a criança contra o mundo, o mundo contra a criança, o novo contra o velho, o velho contra o novo (ARENDT, 2007, p.242).
Partindo da citação acima, Arendt afirma que o conservadorismo, entendido
como conservação, é essencial à educação, já que esta trata de abrigar, proteger,
conservar algo. Esta conservação é necessária para que o novo – criança – e o velho -
mundo - não se destruam mutuamente. Educar exige assumir a responsabilidade pelo
mundo e pela apresentação de um novo ser humano às novas gerações. O adulto é visto
pelos olhos da criança como um representante do mundo, e como representante das
tradições. É devida, portanto, a responsabilidade pelo mundo tal como ele é, sendo que
o educador é aquele que mostra aos mais novos sua herança (a herança do mundo) e é
comprometido com ela. A criança, deste modo, que aprende o valor da tradição, mais
tarde, quando adulta, poderá usufruir e dispor dela consciente de sua responsabilidade
de dar continuidade ao mundo já existente.
Referências
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. 6ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2007, 348 p.
______. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, 352 p.