CRIME, MERCADO E CONTROLE SOCIAL DE ELITES: SOBRE … · Prof. Dr. Roberto da Silva Fragale Filho...

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JOÃO GUSTAVO VIEIRA VELLOSO CRIME, MERCADO E CONTROLE SOCIAL DE ELITES: SOBRE O TRATAMENTO JURÍDICO DADO AO TRABALHO ESCRAVO Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Ciências Jurídicas e Sociais. Orientador: Prof. Dr. WILSON MADEIRA FILHO Coorientador: Prof. Dr. ROBERTO KANT DE LIMA Niterói 2005

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JOÃO GUSTAVO VIEIRA VELLOSO

CRIME, MERCADO E CONTROLE SOCIAL DE ELITES:

SOBRE O TRATAMENTO JURÍDICO

DADO AO TRABALHO ESCRAVO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Ciências Jurídicas e Sociais.

Orientador: Prof. Dr. WILSON MADEIRA FILHO

Coorientador: Prof. Dr. ROBERTO KANT DE LIMA

Niterói

2005

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VELLOSO, João Gustavo Vieira Crime, Mercado e Controle Social de Elites: sobre o tratamento jurídico dado ao trabalho escravo/ João Gustavo Vieira Velloso, UFF/ Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito. Niterói, 2005. 90 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas e Sociais) – Universidade Federal Fluminense, 2005. 1. Trabalho escravo. 2. Administração de conflitos em perspectiva comparada. 3. Ilegalismos dos poderosos. 4. Controle social. 5. Descriminalização. 6. Polissemia jurídica. I. Dissertação (Mestrado). II. Título

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CRIME, MERCADO E CONTROLE SOCIAL DE ELITES: SOBRE O TRATAMENTO JURÍDICO DADO AO TRABALHO ESCRAVO

JOÃO GUSTAVO VIEIRA VELLOSO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, como

requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Ciências

Jurídicas e Sociais.

Banca Examinadora:

_______________________________________________

Prof. Dr. Wilson Madeira Filho – PPGSD/UFF (Orientador)

_______________________________________________

Prof. Dr. Roberto Kant de Lima – PPGA/UFF (Coorientador)

_______________________________________________

Prof.ª Dr.ª Maria Stella Amorim – PPGD/UGF

_______________________________________________

Prof. Dr. Roberto da Silva Fragale Filho – PPGSD/UFF

Resultado: _______________________.

Grau obtido: ____________________.

Niterói, ______ /______ / _________.

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Dedico este trabalho a todos aqueles que conviveram comigo ao longo dos últimos oito anos no ICHF (UFF), no IFCS e na Praia Vermelha (UFRJ), nas rodas de samba, e, principalmente, nos bares, botequins e afins, que felizmente ainda são os principais espaços de interlocução existentes em nossa sociedade.

E de forma especial, dedico este trabalho àqueles(as) que tiveram saco de me aturar durante a pós-graduação – o que de certa forma é um presente de grego, já que provavelmente estas pessoas não agüentam mais me ouvir.

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Agradecimentos

Este trabalho é fruto de não apenas de um Mestrado em Sociologia e Direito,

mas das múltiplas institucionalidades as quais percorri nos últimos três anos. As

vezes eu acho que o meu lugar é um pouco o meio, o “&” que se encontra subscrito

em títulos, siglas, nomenclaturas etc. Sempre fui um pouco flâner, estando aqui e ali,

percorrendo diversos caminhos. Não estava a andar por precisar me encontrar como

diria o grande Candeia, mas apenas por andar, conversar com os outros, não me

fechar... Este triênio fechou um ciclo de andanças entre o Rio e Niterói que já se

arrastava por outros quatro anos anteriores. Enfim, os agradecimentos que se seguem

são tão interdisciplinares e esquizofrênicos quanto a minha trajetória. Tenho dádivas

a retribuir, extrema consideração em mencionar e muito a agradecer a inúmeras

pessoas, de muitos lugares, pois foram elas que me permitiram andar e a poder voar.

Neste triênio rompi as amarras com a graduação, aliás, com as graduações. Os

meus ritos de pós-graduação não foram somente associados ao mestrado. Após

terminar a minha graduação (de bacharel) em Ciências Sociais na UFF eu fiquei

vinculado a duas outras graduações: a licenciatura de Ciências Sociais e Comunicação

Social na UFRJ. Este período me ocupou cerca de um ano e meio do triênio, sendo

uma interessante experiência de “pós” graduação. Já não estava tão preso a questões

banais como a implicância com a língua estrangeira, obrigatoriedade de créditos etc.;

foi um tempo de mudança de posturas, de questões, de objetos... Tenho muito a

agradecer neste sentido aos professores Milton José Pinto e Maura Sardinha da

ECO/UFRJ pela amizade e incentivo, e ainda mais por me formarem enquanto

produtor editorial. Assim como devo menção ao professor Marcos Alvito,

História/UFF, que foi de suma importância nesta fase de “pós” graduação como

amigo, interlocutor, flamenguista, sambista etc.; sem o qual talvez não tivesse me

reaproximado das questões jurídicas. E é claro, tenho a agradecer aos companheiros

de curso e de esbórnia, o que era mais ou menos a mesma coisa, são eles: Lenílton,

Belo, Louise, PC, Michele, Raquel, Thiago, Pavuna, Leandro, Danielle, Milena,

Pri(s), Ypuan, Theou etc. (para lembrar dos prováveis esquecidos).

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Em relação aos espaços “não” universitários, merecem ser ressaltadas três

organizações: o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), o Centro de

Justiça Global e o Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (ISP).

O SNEL foi uma instituição que me acolheu em um período complicado, o que me

permitiu a atuar enquanto produtor editorial e a instrumentalizar recursos para

sobreviver um ano sem bolsa. Do eixo Justiça Global tenho muito que agradecer a

Andressa, Javier, Aninha, Diogo, Sandra, Marcelo, Xanxe, Juliana, Renata e,

sobretudo, às minhas conviventes Nathalie, Fannie, Dida e Emily – especialmente a

esta última por ter me esfregado o tema do trabalho escravo. E finalmente ao ISP,

tenho a agradecer, em especial, à Ana Paula, à Gláucia e à Sabrina, companheiras

também de pesquisa, com as quais espero colaborar certamente por um bom tempo.

No que diz respeito ao fomento e recursos, merece destaque a CAPES,

instituição a qual fui bolsista, e, sobretudo a PROPP/UFF que sempre se mostrou

solícita às demandas para participação em congressos e demais eventos. Neste

sentido, devo especialmente agradecer ao pró-reitor Sidney Mello pelo incentivo,

apoio e disponibilidade em diversas ocasiões.

E já que chegamos à UFF e à pós-graduação e pesquisa, seguimos às menções

que lhe são específicas. Em especial devo extrema gratidão aos dois espaços que me

formaram enquanto pesquisador: o Programa de Pós-Graduação em Sociologia e

Direito (PPGSD) e o Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP).

Do PPGSD devo agradecer não só aos professores e colegas de curso, mas

também às funcionárias e a própria dinâmica do programa. Eu não aprendi só nas

aulas, um dos maiores espaços de socialização acadêmica foi o dia a dia do Programa,

as reuniões de Colegiado, comissões etc. Aprendi a pós-graduação, eu vivenciei isso e

foi muito importante para minha formação. Com isso, tenho a agradecer a: Roberta,

Graça e Córa pela atenção de sempre no cotidiano do mestrado; Ellen, Marta, Fábio,

Rogério, Evandro, Rita, Leonardo e Felipe, companheiros(as) da turma de 2003, e em

especial aos quatro últimos pela amizade, interlocução e convívio em espaços não

acadêmicos; Maurício, Zé Fernando, Marcelo, Fridman, Daizy, Fragale e Napoleão,

sobretudo aos dois últimos pelo apoio, diálogo e interação fora da sala de aula. E é

claro, tenho muito a agradecer ao Wilson não só por ser meu orientador, mas também

parceiro, amigo e incentivador, que me permitiu uma interessante experiência docente

na Faculdade de Direito e sem o qual esta dissertação jamais se findaria.

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Do NUFEP devo extrema gratidão a todos e não são poucos: Flávinha, Lucía,

Lenin, Lúcio, Mello, Fabinho, André, Vanessa, Helinho, Roberta, Luis, Ronaldo,

Juliana, Fernanda, Michael, Luciane, Haydée, Rosa, Nígela, Naiana, Maria Fabiana,

Maria de Paula, Lídia, e até mesmo a Renatinha... Sei lá se tem mais gente, é capaz de

ter, mas acho que os que mais contribuíram com minha formação pessoal e de

pesquisador estão supracitados. Considero este grupo muito importante para mim e

todos colaboraram bastante lendo projetos, fazendo comentários, reclamando,

pesquisando, trocando experiências, participando em eventos, bebendo cerveja, sendo

grandes amigos etc. Neste sentido, também incluo neste meio os parceiros do

NECVU (IFCS/UFRJ), em especial Michel, Brígida e Vívian pelos mesmos motivos;

assim como os de Ottawa, em especial a Daniel dos Santos, um colaborador decisivo

para os rumos que tomaram minha pesquisa. E certamente tenho muito a agradecer ao

Roberto Kant por me orientar no núcleo, coorientar no mestrado e me ensinar a ser

competente academicamente, ao lidar com a universidade, agências de fomento etc.

Ainda do eixo pós-universitário há alguns perdidos, pessoas de encontros,

cursos e eventos esporádicos, mas que também foram importantes neste triênio; são

eles: André, Nilton, Lana, Luis e Elane (o casal cabeção), Angelinha e Raquel

(minhas queridas irmãs), e outros tantos que reconheço e cumprimento ao encontrar

nos espaços mais diversos – mesmo que por vezes não me lembre de seus nomes.

Em relação à disponibilização de material para a(s) pesquisa(s), devo

agradecer a algumas instituições jurídico-políticas:

- À Câmara Municipal de São Gonçalo, mais especificamente à Secretaria, à

Procuradoria e ao Arquivo;

- À Secretaria de Inspeção ao Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego

(SIT/MTE), responsável pelos dados sobre a atuação do Grupo Móvel, em especial

ao Marcelo Campos;

- Ao Ministério Público do Trabalho (MPT), sobretudo à coordenadoria atuante no

combate ao trabalho escravo;

- Ao Ministério Público Federal, especialmente à pesquisadora, professora e

subprocuradora geral da república Ela Wiecko e à sua acessora Morgana Pinheiro,

sem as quais esta pesquisa não teria os registros criminais – fruto do trabalho de

sistematização destes dados realizado junto à Procuradoria Federal dos Direitos do

Cidadão.

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Finalmente, agradeço também aos meus familiares, sobretudo à minha mãe e ao

meu irmão, pela ajuda, afetividade, confiança e paciência que tiveram principalmente

nos períodos difíceis de minha formação. E por último e não menos importante,

agradeço de forma especial à Marie-Eve, minha chérie companheira que cada vez

mais é a família que eu escolhi, pelos motivos supracitados, e sobretudo por uma

importância que é única nesta fase de mudanças pela qual eu passei nos últimos dois

anos. Esta dissertação não é uma obra individual e foi ela certamente quem mais

participou de sua elaboração, cotidianamente, do momento da simples tradução

despretensiosa de um artigo sobre trabalho escravo até as situações limites dos ajustes

finais da dissertação. Não só fonte de inspiração, mas de conhecimento. A melhor

interdisciplinaridade e interlocução que pude ter com o mundo jurídico.

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“Conflitos podem matar, mas em quantidade insuficiente podem paralisar.” A

Nils Christie (Conflicts as property, p. 1)

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SUMÁRIO

Prólogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 Parte I: Contextualização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20 1- Crime, ilegalismo e mercado: controle social

de elites nos estudos criminológicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 2- Panorama sobre escravidão contemporânea no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

Parte II: Formas de controle sobre o trabalho escravo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37 3- Controles Cíveis: Grupo Móvel, Ministério do

Trabalho e Emprego, Ministério da Justiça,

e Ministério Público do Trabalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38 4- Controle Penal: Ministério Público Federal,

a criminação-incriminação através do artigo 149 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47 Parte III: Gestão diferencial e controle social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56 5- Hipóteses sobre o movimento de descriminalização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68 Anexos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74 Notas de fim: originais de citações traduzidas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85

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Resumo

Dissertação desenvolvida a partir de entrevistas e análise de documentos acerca da

atuação do Grupo Móvel (da SIT/MTE) e do Ministério Público da União (MPT e MPF)

na administração de conflitos condizentes ao chamado trabalho escravo. O objetivo é

analisar as diferentes políticas públicas e ações dos agentes do Estado no controle social

destes ilegalismos. As persecuções geralmente são conduzidas no âmbito cível (SIT/MTE

e MPT), sendo estas apenas de cunho reparatório. A administração via justiça criminal

(de atribuição do MPF) é deixada de lado, salvo raras exceções, apesar de positivada no

artigo 149 do Código Penal. O movimento de descriminalização do trabalho escravo é

bastante sintomático para se pensar a lógica de atuação destes operadores em nossa

cultura jurídica e dos instrumentos de controle disponíveis. Se por um lado à falta de

tratamento jurídico igualitário se apresenta como mais um fator na reprodução de

desigualdades sociais; por outro, a utilização de sistemas normativos cíveis permite

problematizar o Penal enquanto forma de controle social, abrindo novos caminhos para

se pensar uma ordem pública no contexto democrático e republicano.

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Abstract

This dissertation is based on interviews and analysis of documents on the intervention

of the Ministry of Labor’s Special Mobile Strike Force (SIT/MTE), a roving unit that

conducts surprise inspections of properties accused of exploiting workers, and on the

intervention of the Federal Public Prosecutor Office (including the Public Ministry of

Labor – MPT, and the Public Prosecutor Office – MPF) in the resolution of conflicts

related to slave labor. Its aim is to analyze the different policies and the actions of

State agents in controlling these illegalisms. Legal actions are generally taken in the

civil law sphere (SIT/MTE and MPT) where the remedies are merely compensatory.

Although section 149 of the Brazilian Criminal Code provides for criminal penalties

for slave labor, public authorities apply criminal laws (under the jurisdiction of the

MPF) only exceptionally. The movement towards decriminalizing slave labor is

revealing of the logic within which State agents operate in our legal culture and of the

means of control available to them. On the one hand, unequal legal treatment appears

to be just another factor in the reproduction of social inequalities, but on the other

hand, the use of civil laws gives us the opportunity to think about the use of criminal

law as a mean of social control and opens new paths to think about public order in a

democratic and republican context.

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Lista de Siglas

ACC – Ação Civil Coletiva

ACP – Ação Civil Pública

AL – Alagoas

ANPOCS – Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais

BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CJG – Centro de Justiça Global

CLT – Consolidação das Leis do Trabalho

CONATRAE – Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo

CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito

CPP – Comissão Parlamentar Processante

CPT – Comissão Pastoral da Terra

DRPF – Delegacia Regional da Polícia Federal

ECO – Escola de Comunicação

FUNARTE – Fundação Nacional de Artes

GERTRAF – Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado

GT – Grupo de Trabalho

ICHF – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia

IFCS – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

ISP – Instituto de Segurança Púbica do Estado do Rio de Janeiro

MA – Maranhão

MEC – Ministério da Educação

MG – Minas Gerais

RO – Rondônia

MPF – Ministério Público Federal

MPT – Ministério Público do Trabalho

MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

MT – Mato Grosso

MTE – Ministério do Trabalho e Emprego

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NECVU – Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana

NUFEP – Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas

OEA – Organização dos Estados Americanos

OIT – Organização Internacional do Trabalho

ONG – Organização Não-Governamental

PA – Pará

PEC – Proposta de Emenda Constitucional

PFDC – Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão

PGR – Procuradoria Geral da República

PGT – Procuradoria Geral do Trabalho

PPGA – Programa de Pós-Graduação em Antropologia

PPGCP – Programa de Pós-Graduação em Ciência Política

PPGSD – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito

PROPP – Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa

RBA – Reunião Brasileira de Antropologia

RE – Recurso Extraordinário

RJ – Rio de Janeiro

RT – Reclamação Trabalhista

SIT – Secretaria de Inspeção do Trabalho

STF – Supremo Tribunal Federal

TCAC – Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta

TO – Tocantins

UFF – Universidade Federal Fluminense

UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Prólogo

Há cerca de três anos atrás, abril de 2002, comecei a acompanhar o desenrolar

de uma reportagem sobre corrupção na cidade de São Gonçalo (RJ). Achava aquilo

curioso: após a reportagem instaurou-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)

na Câmara de Vereadores, que logo se desdobrou em uma Comissão Parlamentar

Processante (CPP), e o Ministério Público entrou com duas ações na Comarca local,

uma civil e outra penal. Esta é a dissertação que eu não escrevi, mas que merece ser

lembrada aqui; pois, dentre outras coisas, despertou meu interesse para uma área de

pesquisa: a administração de conflitos em uma perspectiva comparada.

Ainda me lembro como se fosse hoje: foi o caso da “reportagem que virou uma

CPI e dois processos” (como eu dizia) que me levou ao Núcleo Fluminense de Estudos e

Pesquisas (NUFEP) em 2002 e ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito

(PPGSD) em 2003. Na minha primeira reunião do NUFEP eu me apresentei falando

sobre isso, como este caso despertava meu interesse etc., queria fazer uma discussão

comparativa da administração daquele evento no legislativo e no judiciário. Na entrevista

do processo de seleção do PPGSD eu também acabei falando da mesma coisa. Estes dois

espaços permitiram que eu desenvolvesse esta pesquisa por pouco mais de um ano:

levantei documentações, cheguei a realizar entrevistas, e li, li um monte de coisas. As

leituras, discussões e conversas que eu tive durante o ano de 2003 na pós-graduação e no

grupo de pesquisa me levavam mais e mais para uma discussão jurídica. Na verdade, a

CPI já não me preocupava tanto, mesmo sem querer assumir isso, o meu problema era os

dois processos. Na medida em que lapidava o meu objeto de estudo percebia que talvez

fosse mais interessante perceber as diferentes administrações de conflitos presentes no

próprio campo jurídico a partir da comparação entre os seus distintos sistemas

normativos. Esta não foi uma mudança fácil, lógica e imediata; não seria nenhum

exagero dizer que só cheguei a este ponto graças à convivência em um ambiente

institucional multidisciplinar que me incentivou e me deu liberdade em ir adiante.

A pesquisa sobre o tratamento jurídico dado ao trabalho escravo começou a

surgir por conta de uma daquelas fatalidades do destino, a roda da Fortuna estava a

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girar em minha frente, foi por bruxaria. Em janeiro de 2004 uma amiga, uma advogada

americana pesquisadora de ONG, precisava de alguém para traduzir e revisar um artigo

dela sobre trabalho escravo. Ela queria que realizasse este serviço porque era

complicado achar alguém que dominasse a língua e tivesse um mínimo de

conhecimento sobre as diferenças entre as tradições jurídicas do Brasil e dos Estados

Unidos. De início eu repassei para uma outra pessoa, pois estava fazendo campo em

São Gonçalo na ocasião. Mas acabei tendo que fazer a tal tradução por motivos de

enfermidade da tradutora e para não deixar minha amiga na mão.

O artigo era interessante, a pesquisadora levantou documentos, realizou

entrevistas com trabalhadores libertos, agentes do Estado e de organizações atuantes

nestes conflitos (a CPT, por exemplo) etc. No entanto, lá pelo meio do artigo eu

comecei a achar algo meio estranho: falava-se que trabalho escravo era crime, citava o

artigo 149 do Código Penal, mas os dados judiciais eram de ações cíveis (trabalhistas

na maior parte). Estava lá na minha frente: trabalho escravo é crime e não é crime – só

que ela não dizia isto de uma forma explícita. Esta questão me corroeu durante um bom

tempo. Tivemos uma conversa bem inusitada e esclarecedora, em resumo: perguntei se

era aquilo mesmo, crime e não-crime etc., e ela me respondeu “sei lá João, agora que

você falou é que eu me dei conta disso”. Aos poucos fui percebendo como aquilo era

parecido com o que estava estudando a partir de São Gonçalo e resolvi seguir adiante

nesta nova empreitada.

No início, acabei fazendo duas pesquisas ao mesmo tempo: uma sobre corrupção

e a outra sobre condição análoga a de escravo; o que era uma loucura, apesar dos objetos

serem próximos – eventos passíveis de administração em diferentes sistemas normativos

e tidos como um tipo de criminalidade associado às frações dominantes da sociedade.

Cada vez mais tinha prazer em desenvolver a temática relacionada ao tratamento jurídico

dado ao trabalho escravo e percebia limitações em relação à pesquisa sobre as diferentes

administrações do caso de São Gonçalo, sendo uma em especial: durante o ano de 2002 e

no início de 2003, quando fiz campo sobre a gestão jurídica, ative-me ao Civil e deixei

de lado o Penal. Isto era irrecuperável, somente acompanhei as audiências do processo

civil, e quando percebi e me indicaram este outro lado já era tarde. Deixei de lado um

evento associado ao político e me dediquei a observar o fenômeno da administração

diferencial de ilegalismos a partir de eventos associados ao econômico.

E deu no que deu...

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Introdução

Esta dissertação é resultado de uma pesquisa que teve início em janeiro de 2004

como uma derivação de uma temática anterior – vide prólogo. Crime, Mercado e Controle

Social de Elites surgiu a partir da idéia de analisar os diferentes tratamentos jurídicos dado aos

eventos associados à exploração de trabalhadores que geralmente é denominada de trabalho

escravo ou escravidão contemporânea por dívida, em especial a chamada impunidade penal.

A metodologia adotada nesta pesquisa foi essencialmente qualitativa, consistindo em

dois procedimentos principais: 1) levantamento de documentação pertinente, e 2) realização

de entrevistas; sendo a análise dos dados elaborada a partir do método comparativo.

A documentação (relatórios, estatísticas, normas e informes) foi levantada junto às

instituições responsáveis pelos registros das diferentes ações de “combate” ao trabalho

escravo, são elas: Secretaria de Inspeção ao Trabalho (SIT/MTE), responsável pelos dados

relativos ao Grupo Móvel e à Lista Suja; Ministério Público do Trabalho (MPT), medidas

relativas à Justiça do Trabalho; e Ministério Público Federal (MPF), em relação às ações

criminais. Igualmente, procurou-se levantar documentos de outras instituições como a

Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), Ministério da

Justiça, Secretaria Especial de Direitos Humanos, veículos de imprensa etc. para se ter uma

visão mais adequada dos atores atuantes (in loco, promovendo ações, participando de grupos

de trabalho ou comissões e assim em diante), e com isso delimitar as possíveis entrevistas.

Os entrevistados foram selecionados a partir da análise da documentação levantada,

o que resultou na escolha de cinco atores diretamente envolvidos na administração destes

conflitos. Institucionalmente eles são vinculados à SIT (atuantes no Grupo Móvel), ao

MPT e ao MPF; sendo, neste sentido, representativos do universo estudado e a opção mais

viável tendo em vista que em sua maior parte são sediados em Brasília. Todas as

entrevistas foram gravadas, fluíram sem grandes problemas ou restrições, e realizadas ao

longo do segundo semestre de 2004 em vindas dos atores ao Rio de Janeiro. As identidades

dos interlocutores foram preservadas por questões éticas, sendo os mesmos identificados

apenas por vinculação institucional – o que é suficiente para atender os critérios teórico-

metodológicos adotados na presente pesquisa.

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Cabe aqui um esclarecimento sobre o recorte dado na pesquisa em relação ao

tratamento jurídico: optei por considerar mais relevante o que seria associado ao

movimento em colocar (classificar) o evento nos termos da lei. Trata-se de uma opção

metodológica que em parte é pessoal, pois considero que o interesse maior desta

pesquisa é o de perceber os movimentos de ação do Estado no tratamento de

ilegalismos relacionados ao trabalho escravo; ou seja, a preocupação é muito mais com

a entrada no jurídico do que com a saída. É claro, como veremos na Parte II, que

consideramos dados de saída (sentenças), mas a idéia é demonstrar que a partir dos

registros mais gerais (os de entrada) é que se torna possível perceber mais

adequadamente a gestão diferencial dos ilegalismos – posição que os estudos clássicos

sobre objetos análogos (white-collar crime etc.) corroboram.

Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada durante o XXVIII Encontro Anual

da ANPOCS, no GT “Conflitualidade social, acesso à justiça e reformas do poder judiciário”,

com o título “Sobre o tratamento jurídico dado ao trabalho escravo: o movimento de

descriminalização”, em outubro de 2004. E uma segunda, em novembro, na Agenda

Acadêmica 2004 (UFF), no mini-curso “Crime e Mercado – administração de conflitos em

perspectiva comparada a partir do tratamento dado ao trabalho escravo”. Foram duas

oportunidades para apresentação de resultados e para obter retorno de um público interessado.

Os retornos recebidos nestas apresentações resultaram em pelo menos uma

alteração substancial na forma de apresentação dos resultados da pesquisa: a elaboração da

Parte I, o que não existia nos originais. A Parte I corresponde a uma contextualização da

pesquisa do ponto de vista teórico e empírico, dividindo-se em dois capítulos. O Capítulo 1

tem como objetivo inserir a presente pesquisa no horizonte dos estudos sociológicos e

criminológicos que lidam com objetos de pesquisa semelhantes, a saber: ilegalismos

econômicos administráveis em diferentes sistemas normativos (sejam eles jurídicos ou

políticos). Neste capítulo são retomados os estudos clássicos de Edwin Sutherland sobre

esta temática, passando por pesquisas mais recentes – em especial Susan Shapiro e

Vincenzo Ruggiero.1 Já o Capítulo 2 focaliza o “como, quando e onde” ocorrem os casos

de trabalho escravo. Trata-se de um breve panorama sobre a chamada escravidão

contemporânea por dívida no Brasil, o que ajuda a visualizar o plano dos eventos que

antecede o objeto desta pesquisa – a administração jurídica destes eventos conflituosos.

1 Como boa parte da bibliografia é estrangeira e não disponível em português, optei por traduzir todas as citações ao longo do texto e disponibilizar os originais em inglês ou francês através do recurso a notas de fim. Estas notas, alfabetizadas ( A, B, C, ..., AA, AB etc.), são restritas à remissão aos originais.

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Estes capítulos são uma parte da apresentação da pesquisa de escrita posterior e onde são

fornecidos subsídios mais adequados para uma melhor compreensão da administração dos

conflitos associados ao trabalho escravo.

A Parte II da dissertação corresponde à parte mais etnográfica da pesquisa: uma

descrição dos movimentos de ação dos atores, de diferentes instituições, envolvidos na

administração destes conflitos, sobretudo no que tange ao acesso à justiça, ao pôr em forma

jurídica. O termo acesso à justiça neste trabalho é entendido, em linha gerais, como acesso

às instâncias sociais legitimadas na administração de conflitos; enfim, o acesso aos

tribunais, à prestação de serviços jurisdicionais por parte do Estado. As Formas de

controle sobre o trabalho escravo

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Parte I

Contextualização

“Muitos dos white-collar crimes são cometidos por corporações. E ainda não foi inventado nenhum método efetivo de lidar com corporações através do direito penal. Não é possível condenar uma corporação à morte, ou açoitá-la, ou mandá-la para prisão, a não ser em um sentido figurado.” B

Edwin H. Sutherland (Crime and Business, p. 114)

21

Capítulo I

Crime, ilegalismo e mercado: controle social

de elites nos estudos criminológicos

Este capítulo foi fomentado pelos debates ocorridos durante o GT jurídico da última

ANPOCS e, sobretudo, pelo seguinte comentário jocoso de uma das participantes a

respeito do pioneirismo de alguns dos trabalhos: “O João também, de alguma forma, se

beneficia porque a gente diz o que a gente quer; os outros que venham depois e critiquem o

que a gente escreveu”. Isto me fez pensar bastante: se por um lado o trabalho é pioneiro ao

propor uma análise comparativa dos diferentes tratamentos jurídicos dado ao trabalho

escravo, por outro ele compartilha de um mesmo objeto em relação aos estudos

sociológicos e criminológicos clássicos sobre criminalidade econômica. Creio que a

associação entre o meu trabalho e tais estudos não é somente sugerida, uma reminiscência

de que não se trata de nenhuma novidade. Na verdade é muito mais do que isso, a presente

pesquisa se vincula diretamente com os estudos sobre white-collar crime2, criminalité des

puissants, criminalité d’afaires, corporate crimes, elite deviance, etc.

A referência clássica destes estudos é sem dúvida os trabalhos de Edwin Hardin

Sutherland sobre white-collar crime. Deve-se a Sutherland a introdução deste campo de

pesquisa nos estudos sociológicos e criminológicos ao longo dos 1940’s. Em seus

estudos iniciais, sua preocupação era muito mais confrontar as teorias criminológicas

hegemônicas que associavam crime à pobreza3. No entanto, como salienta Vincenzo

2 Não traduzo o termo white-collar crime porque a expressão usada, crime do colarinho branco, não é seu equivalente. Tratam-se de categorias distintas e para evitar equívocos optei pelo uso do original. 3 “As estatísticas criminais mostram sem equívocos que o crime, como popularmente concebido e oficialmente medido, tem uma alta incidência nas classes mais baixas e uma baixa incidência nas classes mais altas (...). Delas, se derivaram teorias gerais sobre o comportamento criminal. Estas teorias consideram que uma vez que o crime está concentrado nas classes mais baixas classe, ele é causado pela pobreza ou por de características pessoais e sociais que acreditam ser estatisticamente associadas a ela, incluindo desvios psicopáticos de debilidade mental, vizinhanças favelizadas, e ‘famílias deterioradas’. (...) As explicações convencionais são inválidas principalmente porque elas são derivadas de amostras enviesadas.” (Sutherland, 1940, p. 1-2)C

22

Ruggiero, Sutherland foi muito otimista neste sentido4; apesar de suas contundentes

criticas, seus escritos fizeram bodas de ouro ao som de “janelas quebradas” ecoando

pelos cantos. Mas o fato é que para questionar o par crime/pobreza ele precisou trazer

para os estudos sobre comportamento criminal certos eventos que até então eram

deixados de lado. Da iluminação desta zona cinzenta vem à tona o conceito de white-

collar crime, trilhando o caminho para esta área de pesquisa.

“White-collar crime é mesmo crime. Ele é chamado de crime aqui no sentido de trazê-lo para dentro do escopo da criminologia, o que é justificado porque se trata de uma violação à lei criminal. A questão crucial nesta análise é o critério da violação à lei criminal. A condenação penal, que é por vezes sugerida como o critério, não é adequada porque uma grande parcela daqueles que cometem crimes não são condenadas pela justiça criminal” (Sutherland, 1940, p. 5). E

“Um white-collar crime é definido como uma violação à lei criminal por uma pessoa de classe socioeconômica alta em curso de suas atividades ocupacionais. A classe socioeconômica alta é definida não só por sua riqueza, mas também por sua respeitabilidade e prestígio na sociedade em geral. (...) Esta definição é arbitrária e não muito precisa. Não há necessidade de ser precisa (...). O propósito do conceito de white-collar crime é chamar atenção para uma vasta área do comportamento criminal que geralmente é negligenciada como comportamento criminal.” (Sutherland, 1941, p. 112)F

Além da crítica às teorias hegemônicas, a idéia de white-collar crime traz

consigo algumas contribuições bastante interessantes. Primeiro, ele chama a atenção

para as diferentes manifestações que este tipo de criminalidade pode apresentar,

associando-a a violações a leis penais que ocorrem a partir de práticas espúrias em

diversas áreas profissionais, sobretudo: negócios, política, e medicina (Sutherland,

1940, p. 2 e ss.). Segundo, o fenômeno da relativa invisibilidade dos registros,

principalmente nas estatísticas criminais5, associada a uma espécie de vitimização

difusa não percebida – por exemplo, fraudes no mercado de ações. E finalmente, o mais

genial dele nisto tudo: “A mais geral, entretanto não universal, característica do white-

collar crime é a violação da confiança.” (Sutherland, 1941, p. 1)G Bingo! Sutherland foi

bastante perspicaz em perceber as condições e implicações institucionais na qual este

tipo de criminalidade se manifesta: 4 “Sutherland (1940: 4) conseguiu, como ele esperava, ‘trazer os white-collar crimes para dentro do escopo da criminologia’, mas talvez ele tenha sido um pouco otimista sobre a dissolução da correlação entre crime e ‘as condições psicopáticas e sociopáticas associadas à pobreza’. Ele subestimou a poderosa pulsão que conduz a maioria dos criminológos para as classes mais baixas, as quais eles adotam, um pouco filantropicamente e paternalisticamente, como as únicas classes que merecem atenção.” (Ruggiero, 2002, p.177)D

23

“O prejuízo financeiro dos white-collar crimes, grande como ele é, é menos importante do que os danos às relações sociais. Os white-collar crimes violam confiança e , com isso, criam desconfiança. Outros crimes produzem relativamente poucos efeitos em instituições sociais ou na organização social.” (Sutherland, 1940, p. 5)I

Este tipo de criminalidade se fundamenta essencialmente na confiança, e isto

não é pouca coisa. Ao contrário da criminalidade de rua, aqui o grande “q” da questão

se localiza nas relações impessoais (faceless commitments). Os white-collar crimes

possuem a capacidade de colocar em cheque as cadeias de confiança mútua, tão

essenciais para a manutenção dos chamados sistemas peritos (Giddens, 1991, p. 84 e

ss; p. 91). Os recentes casos de fraudes na Enron e na WorldCom ilustram bem esta

situação. Por mais estranho que possa parecer, isto também se relaciona com a

escravidão contemporânea – fundada no aliciamento de trabalhadores a partir de falsas

promessas e ‘aprisionamento’ por dívida, retenção de documentos etc.

Em contexto correlato, Margarida Maria de Moura, fala sobre o sentimento de traição

do trabalhador rural no Vale do Jequitinhonha, quando vê as antigas relações de agrado, trato

e favor serem substituídas pela mediação escrita dos contratos de trabalho. E destaca:

“A invasão e a expulsão da terra são atos separadores dos vínculos com a terra e o trabalho entre lavradores e fazendeiros, capazes de pagar e fazer evaporar uma etiqueta de convivência sertaneja que pode incluir: fazer a mesma festa, ir à mesma igreja, entrar em relações de compadrio e amizade.” (Molina et alli., 2002, p. 138)

A lógica do conceito de white-collar crime e do embate frente às teorias

crime/pobreza é a base do famoso dark number, a “cifra negra”, que em resumo afirma

que os crimes registrados são sempre em menor número do que os eventos crimináveis

ocorridos (Sutherland: 1985); sendo isto ainda ressaltado pelo tipo do registro, e

inserção, que tais eventos possuem nos sistemas de controle6. Apesar da construção

interessante, há dois problemas nestas considerações, e que são justamente as principais

críticas às abordagens de Sutherland.

5 “O predomínio do white-collar crime pode ser prontamente apreciado por qualquer um que leia alguns dos atuais relatórios anuais da Comissão Federal de Comércio e outras comissões que têm responsabilidade na regulação de negócios.” (Sutherland, 1941, p. 113) H 6 “Eles diferem principalmente na implementação das leis criminais que se aplicam a eles. Os crimes das classes baixas são manejados por policiais, promotores, e juízes, com sanções penais na forma de multas, aprisionamento e morte. Os crimes das classes mais altas não resultam em nenhuma ação oficial em geral, ou então resultam em processos por danos em tribunais civis ou são manejados por inspetores, e por conselhos administrativos ou comissões com sanções penais na forma de advertências, ordens de suspensão e renúncia, ocasionalmente na perda de uma licença, e somente em casos extremos através de multas ou sentenças de aprisionamento.” (Sutherland, 1940, p. 7-8)J

24

Primeiro, Sutherland propõe a extensão da categoria crime a outras agências

judiciais que não a justiça criminal, o que de fato existe nos EUA7, além de ser uma

posição que ele defende muito bem por sinal. E não devemos nos esquecer que sua

preocupação é com o par crime e pobreza. Neste sentido, ele afirma exatamente o

seguinte: “Outras agências além dos tribunais criminais devem ser incluídas, porque o

tribunal criminal não é a única agência que toma decisões oficiais em relação às

violações da lei penal.” (Sutherland, 1940, p. 6)K. Ele argumenta que o mesmo ocorre

nas análises sobre delinqüência juvenil (‘crimes’ que também são administrados fora da

justiça criminal)8, leia-se “teorias crime/pobreza”, e que no caso do white-collar crime

tais agências responsáveis são administrativas e civis9.

Se, por um lado, já nos 1940’s ele menciona claramente a gestão diferencial de

ilegalismos, como é possível perceber na supracitada epígrafe e em seu trabalho

empírico10; por outro lado, praticamente tudo vira crime: é violação a lei penal, tem

pena, então é crime. Este é o problema dele, ele mistura as categorias. Sutherland acha

que mariola e bananada são a mesma coisa, mas se esquece que nem sempre a mariola

é de banana e que muitas vezes a bananada não é mariola. Ele sabia muito bem que tal

ponto era controverso, tanto que se defendia acusando seus adversários de fazerem o

mesmo (delinqüência juvenil) e afirmando que em alguns estados dos EUA a justiça

criminal funcionava sem a aplicação de regras processuais associadas ao penal

(Sutherland, 1945, p.135 e ss.). Enfim, o fato é que existe nos escritos de Sutherland 7 Vide os trabalhos de Jack Katz (1979) e Susan Shapiro (1985, 1987 e 1990). Ambos lidam com determinadas situações de fraudes onde a lei penal é administrada fora da justiça criminal. No contexto dos casos estudados no Brasil há um movimento análogo por parte das associações de juízes e promotores do trabalho que defendem a posição de que os crimes associados ao trabalho escravo devem ser administrados pela Justiça do Trabalho – o que não ocorre hoje. 8 “White-collar crime é semelhante à delinqüência juvenil no que diz respeito à implementação diferencial da lei. Em ambos os casos os procedimentos da justiça criminal são modificados na forma de que o estigma de crime não seja atribuído aos ofensores.” (Sutherland, 1945, p. 138) L 9 “White-collar crimes são mesmo crime. Se não é uma violação da lei criminal, ele não é white-collar crime ou qualquer outro tipo de crime. Mas diferenças em procedimentos administrativos não justificam a designação deste comportamento como algo diferente de crime.” (Sutherland, 1941, p. 115) M 10 Em resumo: “(...)foi feita uma análise das decisões de tribunais e comissões contra as setenta maiores corporações industriais e mercantis dos Estados Unidos a partir de quatro tipos de leis, a saber: antitruste, propaganda enganosa, relações trabalhistas nacionais, infração de patentes, direito autorais e marcas registradas [todas violações criminais]. Isto resultou no descobrimento de que tinham sido tomadas 547 decisões adversas com uma média de 7,8 decisões por corporação e com cada corporação tendo pelo menos uma delas. Embora todos estas fossem decisões onde o comportamento era ilegal, só 49 ou 9 por cento do total foram tomadas através de justiça criminal e eram ipso facto decisões onde o comportamento era criminal.” (Sutherland, 1945, p. 132)N No entanto, após ele estender a análise do tal comportamento criminal, trabalhando como crime os casos de violações à lei penal administrados em outros sistemas

25

uma certa confusão sobre o que é crime; o que pode ser resolvido com a utilização do

termo ilegalismo11 (Foucault: 1999a; Acosta: 2005; e outros autores) para caracterizar

as violações em geral e com os operadores analíticos propostos por Misse (1999; 2004)

– tema que é abordado com maiores detalhes no Capítulo 4.

O segundo problema é a sua explicação para este fenômeno: a diferença entre as

posições sociais dos transgressores (vide nota 6). Consideração esta que além de ser

simplista e reducionista demais, focaliza a rotulação de criminal nos criminosos e não

nos ‘crimes’ – ou melhor, nos eventos, nos atos. Susan Shapiro corrobora esta posição12

brincando com o termo collar, “Collaring the crime, not the criminals”, e sugerindo a

liberação do conceito a partir da retomada de um ponto presente no próprio trabalho de

Sutherland que já foi salientado acima: a noção de “white-collar crime como uma

violação de confiança” (Shapiro, 1990, p.137) Q.

Em relação aos estudos mais contemporâneos, devem ser ressaltados os

trabalhos de Susan Shapiro sobre fraude acionária (stock fraud) nos EUA, e de

Vincenzo Ruggiero em relação às diversas associações entre mercado e criminalidade

na Europa de hoje, incluindo o tráfico de seres humanos. Alguns dos trabalhos são mais

próximos da linha que buscamos adotar sobre as administrações dos conflitos

associados à escravidão contemporânea no Brasil, como é o caso de Ruggiero. Outros,

apesar de lidarem com temas completamente distintos, abordam objetos com o mesmo

problema: como se dá a gestão jurídica de ilegalismos econômicos que em geral são

polissêmicos a luz do Direito?

Shapiro retoma a problemática dos white-collar crimes em fins dos anos 70 em

sua pesquisa sobre a atuação das Comissões de Câmbio e Valores Mobiliários dos

Estados Unidos (SEC)13 na regulação do mercado de capitais.

“A agência pode utilizar mecanismos de execução da lei (enforcement) civis e criminais ao mesmo tempo, assim como, os administrativos também. Enquanto as disposições criminais são geralmente apropriadas, elas raramente são prosseguidas até às fases de sentença. De cada 100 suspeitos investigados pela SEC, 93 cometeram violações de disposições sobre valores mobiliários que levam a penalidades criminais. A ação judiciária é iniciada contra 46 deles, mas só 11 são selecionados para tratamento criminal. Seis destes são indiciados; 5 serão condenados 5 e 3 sentenciados à prisão.

normativos ele chega a seguinte conclusão: “Esta conclusão, nesta parte semântica da discussão, é que 473 das 547 decisões são decisões onde crimes estavam sendo cometidos.” (Sutherland, 1945, p. 135)O. 11 Em algumas traduções o termo de Foucault aparece como ilegalidade, opto pela fidelidade ao original. 12 “(...)eles confundem atos com atores, normas com transgressores, o modus operandi com o operador.” (Shapiro 1990, p. 347)P 13 United States Securities and Exchange Commissions

26

Assim, na execução da lei (enforcement) pela Comissão de Câmbio e Valores Mobiliários, a persecução criminal representa freqüentemente um caminho não utilizado.” (Shapiro, 1985, p. 182)R

Em resumo ocorre que quando existe uma suspeita de fraude, é realizada uma

breve averiguação, seguida de uma investigação formal, se for o caso. Concluída a

investigação, é preparado um memorando com o detalhamento do caso e encaminham

para os agentes responsáveis pela decisão de ajuizar ações ou não. São quatro as opções

a partir de então: 1) não promover ações, 2) ações administrativas, 3) ações civis, e 4)

ações criminais, sendo que no caso desta última é obrigatório passar antes pelos US

Attorneys – instituição responsável pelo ajuizamento de denúncias (Shapiro, 1985, p.

184 e ss.). E no que diz respeito à administração diferencial dos ilegalismos, ela

elaborou uma tabela e um gráfico que são muito ilustrativos sobre a prioridade para o

não penal quando há outras possibilidades de controle.

(Shapiro, 1985, p. 191)

27

(Shapiro, 1985, p. 206)

Já Ruggiero desenvolve os seus estudos no contexto da globalização, fazendo

associações entre crime e mercado que se desdobram em subtemas relacionados ao

crime organizado, mercado informal, crimes transnacionais14, economias sujas etc.,

com o diferencial de se preocupar com as vinculações do lícito com o ilícito e

institucionalidades em jogo15. Mas sem dúvida onde Ruggiero mais auxilia a

14 “Este termo, que abraçou todos os empreendimentos ilegais trans-fronteiriços, foi, contudo, ligeiramente inclinado, como sendo principalmente aplicado às práticas ilícitas adotadas por companhias multinacionais. Em resumo, crime transnacional sugere a conduta ilegítima de atores e grupos poderosos, cujos recursos políticos e econômicos os protegeram do monitoramento público e da regulamentação institucional.” (Ruggiero, 2002, p.178-179)S 15 “White-collar crime é caracterizado através dos laços fracos com a sociedade civil e da alta integração com as instituições. A inabilidade dos criminosos de white-collar em ‘compartilhar’ os benefícios de sua ilegalidade com as comunidades ou seções de clientes deixam-nos distante da sociedade, enquanto a proximidade deles com os empregadores institucionais torna a conduta deles quase não detectável. Na variante conhecida como crime corporativo, é freqüentemente o envolvimento sobreposto entre a economia e

28

contextualizar esta dissertação é em sua pesquisa sobre escravidão contemporânea na

Europa. Geralmente os dados apresentados internacionalmente sobre o escravismo atual

classificam este fenômeno como algo associado aos países em desenvolvimento. No

entanto, Ruggiero chama a atenção para o quadro europeu pós-cortina de ferro16,

mostrando que isto também ocorre em países desenvolvidos.

“Exemplos são achados pela Europa, onde a indústria têxtil e a construção civil se beneficiam do trafico de seres humanos. Os empresários não são cobrados pelo serviço de contrabando provido a eles pelos traficantes, pois normalmente são esses contrabandeados que pagam. Refugiados do Irã, Iraque, Paquistão e Afeganistão freqüentemente chegam na ilha de Gotland, na Suécia, e a viagem custa mais do que US$ 1000. Eles embarcam em barcos oriundos da Estônia ou Latvia, onde os traficantes agem como recrutadores em nome de empresários.” (Ruggiero, 1997a, p. 235)V 17

É muito curiosa a maneira na qual é descrito o tráfico de seres humanos na

Europa, pois é exatamente da mesma forma que ocorre no Brasil – guardada as devidas

proporções, é claro. O primeiro caso se refere a fluxos internacionais e o segundo a

migrações regionais, porém em um país de dimensão continental e com peculiaridades

regionais extremas. Pessoas são aliciadas com propostas de trabalho no exterior ou

procuram agências com esta finalidade18, a partir de então segue uma dinâmica de

escravidão por dívida que tem no início já no transporte. Além do cativeiro por dívida,

há um outro dado que não ocorre na migração interna (o caso estudado no Brasil): o

tornar-se ilegal e/ou por ser ilegal ser refém do medo de deportação19 – o controle

também é feito através destas ameaças e da retenção de documentos como passaporte e

permissão de trabalho (Ruggiero, 1997a, p. 238). as instituições políticas que geram um ambiente criminogênico. Criminosos de white-collar e corporativo normalmente operam em mercados legítimos com meios e técnicas ilegítimos.” (Ruggiero, 2002, p.187)T 16 “O tráfico de seres humanos deveria ser analisado levando-se em conta um pano de fundo caracterizado pelo crescimento de setores ocultos dentro das economias Ocidentais. Estes setores incluem uma variedade de atividades legais, semi-legais e francamente ilegais que requerem os esforços empresariais de vários atores, incluindo algumas formas de crime organizado.” (Ruggiero, 1997b, p. 29)U 17 Na seqüência ele menciona casos de chineses na Itália e Inglaterra, albaneses na Itália etc. 18 “Embora legalmente registradas, estas agências de recrutamento administram valores oriundos de uma escravidão por dívida daqueles que buscam trabalho em países desenvolvidos. A ilegalidade do negócio deles também se estende da taxa de recrutamento, que é de longe mais alta do que o oficialmente declarado.” (Ruggiero, 1997a, p. 236)W 19 “Antes que eles possam começar a enviar dinheiro às suas famílias, o que é o propósito principal do trabalho deles no exterior, eles têm que amortizar estas dívidas. Na Inglaterra, a condição de escravo destes trabalhadores domésticos também é aparente na decisão que indica que, na entrada deles no país, o nome do empregador deve ser estampado em seus passaportes. Um folheto emitido pela British Home Office [a imigração inglesa] assinala: ‘O selo colocado em seu passaporte pelo Oficial de Imigração registrará o nome de seu empregador. Você não pode trabalhar para ninguém além dele’.” (Ruggiero, 1997a, p. 236-237)X

29

As áreas de atuação destes imigrantes, legais ou não, são as mais diversas:

“Em muitos países europeus os imigrantes ilegais são empregados em fábricas ou empresas noturnas relativamente grandes que operam em uma variedade de setores econômicos. Estes setores incluem em particular o alimentício, o têxtil e a construção civil. Os traficantes podem se limitar à provisão de serviços de contrabando ou podem também providenciar endereços de prováveis empregadores nestas indústrias.” (Ruggiero, 1997b, p. 29)Y

“Alguns destes negócios fazem parte do mercado paralelo, da economia informal, e são subsidiárias de companhias industriais maiores que operam no setor industrial. Outros fazem parte do setor de agricultura, que necessita de trabalhadores sazonais não registrados.” (Ruggiero, 1997a, p. 236)Z

Estes trabalhadores estão presentes no urbano, no rural, nas casas (vide nota 19),

nas fábricas, nas ruas, em todo lugar, vivendo em condições precárias20 e sem qualquer

reconhecimento senão pelos seus próprios, reproduzindo um círculo vicioso que muitas

vezes fazem com eles se encapsulem ainda mais em pequenas redes de sociabilidade.

Apesar de Ruggiero descrever esta situação a partir da Europa, não é nenhum exagero

supor que isto também ocorre em diversos locais do mundo. Recentemente foi noticiada

em vários jornais a situação de imigrantes bolivianos ilegais na cidade de São Paulo. No

entanto, nem sempre isto é percebido; estas novas velhas dinâmicas do trabalho21 são

caracterizadas, sobretudo, pela invisibilidade22 – o que requer técnicas de investigação

mais elaboradas, seja por parte das instituições de controle ou por pesquisadores; e que

20 “Em algumas fábricas invadidas pela polícia foram encontrados trabalhadores alojados nos mesmos locais onde eles trabalhavam com uma vigilância quase militar. Com o objetivo de pagar a soma pelo transporte deles para a Europa, muitos destes imigrantes foram mantidos em condições coercitivas, e eram castigados caso atrasassem com os pagamentos.” (Ruggiero, 1997b, p. 29-30)AA 21 Há uma controvérsia nos estudos sobre escravidão contemporânea que se relaciona com uma discussão de base marxista ortodoxa sobre modos de produção. O nó da questão é se trabalho escravo é um instrumento para o desenvolvimento econômico ou se é com a sua abolição que o capitalismo vai prosperar etc. Isto é algo bastante equivocado, até mesmo em termos de Marx. Uma abordagem da escravidão contemporânea a partir de um paradigma marxiano apontaria o seguinte quadro: é uma relação de produção pautada na superexploração da força de trabalho (FT), esta exploração é de tal ordem que a remuneração da força de trabalho não é suficiente nem para sua manutenção (vide o sistema da escravidão por dívida, onde o endividamento é sucessivo e se dá indefinidamente), quem dirá para sua reprodução. Certamente há uma confusão entre um regime essencialmente escravista e a escravidão contemporânea, este se trata de uma relação de produção capitalista tão nefasta que aniquila completamente a força de trabalho – tal ciclo do capital só se mantém devido à reposição da força de trabalho via exército industrial de reserva: sempre há novos trabalhadores vindos da África e Oeste Europeu. É uma dinâmica muito parecida com a descrita por Engels em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. 22 “Em resumo, o tráfico de seres humanos dever ser analisado dentro de uma estrutura de oferta e demanda. Enquanto que os migrantes ilegais são empregados na economia oculta, inclusive na indústria do sexo, eles respondem a uma demanda específica de países economicamente desenvolvidos. A invisibilidade caracteriza a condição destes migrantes, uma invisibilidade que informa ao mesmo tempo o modo no qual eles migram e a maneira na qual eles são obrigados a trabalhar e a morar no país de destino.” (Ruggiero, 2000, p.194)AB

30

de forma alguma devem se restringir à justiça criminal23. Nos Estados Unidos há

verdadeiros universos paralelos compostos por imigrantes ilegais, comunidades inteiras

que ficam invisíveis durante anos, trabalhando aqui e ali na fronteira entre a legalidade e

a ilegalidade – as leis atuais de imigração abrem alguma brecha para a legalização destas

populações somente após dez anos de residência; o que, aliás, é surreal.

Esta gama variada de ilegalismos de ordem econômica é algo cada vez mais

manifesto nas sociedades pós-industriais e de modernização tardia. O controle social de

elites, ou para ser mais preciso e não cair no mesmo engano de Sutherland, controlar

socialmente os ilegalismos do mercado é a tarefa a ser realizada. Não nos enganemos

em relação aos conflitos: ainda bem que eles existem e que podem ser administrados; o

que não é possível fazer é termos a pretensão de “acabar” com os conflitos, por meio de

sanções de um normativismo punitivo e sem efeitos de controle, expropriando-os dos

mais diretamente interessados: as partes envolvidas (cf. Christie: 1977).

“Estamos voltando agora à formulação que variações no crime espelham variações no controle social. As formas de controle social alimentadas pela globalização deixam hierarquias centralmente-estruturadas em redundância, como as relações de poder tendem em não mais estarem incrustadas em organizações e instituições centralizadas, mas em redes dispersas nas quais as instruções são processadas. (…) Negócios criminosos respondem às novas formas de controle social e a reorganização da soberania a partir do estabelecimento de suas próprias redes que evitam os regulamentos nacionais.” (Ruggiero, 2002, p.181)AD

Controle social e punição são coisas distintas. E o que todas as pesquisas

supracitadas apontam é que o penal nem sempre é a solução mais adequada para a

administração dos conflitos associados aos white-collar crimes. Nos capítulos a seguir

veremos como é o tratamento jurídico dado ao trabalho escravo, conflitos bradados

como crimes e administrados em diferentes sistemas normativos.

23 “Nestas circunstâncias, parece-nos interessante elaborar estratégias de pesquisa de tentarão abordar a criminalidade dos negócios (e o seu contexto político-econômico) da maneira mais ampla possível, a saber : estudo detalhado de material proveniente de fontes abertas de origem tão variada como possível (dados econômicos, releases de imprensa, trabalhos parlamentares etc.); estudo etnográfico no campo; estudo de decisões judiciárias; estudo dos efeitos do trabalho legislativo; etc.” (Ruggiero in: Mucchielli & Robert, 2002, p. 231).AC

31

Capítulo II

Panorama sobre escravidão contemporânea no Brasil

Embora a escravidão tenha sido abolida oficialmente em 1888, relações de

trabalho análogas à condição de escravo continuaram existindo em nosso país, sobretudo

no meio rural. Isto não é nenhuma novidade em dois sentidos: 1) a realidade não

necessariamente se adequa às normas e 2) há um consenso na historiografia sobre a

substituição da mão de obra escrava por imigrantes e/ou outros trabalhadores livres que

relata condições de trabalho tão degradantes quanto a dos escravos. Enfim, sejamos

claros, sempre existiram inúmeras formas de trabalho degradante no Brasil, o que não

significa que nosso passado colonial e imperial deva ser reproduzido e legitimado nos

dias de hoje. Abolido o escravismo no final do Império, restou à República criar os

instrumentos jurídicos e políticas públicas necessários para controlar socialmente estes

eventos associados à exploração desumana dos trabalhadores.

É sempre bom lembrar que somente em 1964, com o “Estatuto da Terra”

(regulamentado no governo Castello Branco), que a legislação trabalhista dos anos trinta

(Getúlio Vargas) foi juridicamente estendida ao campo. E mais, ocorre que, na campanha

de 1950 Getúlio prometera tal feito. Porém, o mesmo não ocorreu de imediato e quando

o projeto de estender os direitos trabalhistas ao campo foi votado no governo de JK, em

1957, ele foi rejeitado pelo Congresso terminantemente. O principal instrumento

normativo era o artigo 149 do Código Penal de 1940, que dizia “Reduzir alguém à

condição análoga a de escravo: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos”; o que

provavelmente não era sequer aplicado – vide o estudo clássico de Victor Nunes Leal

(1997) sobre a estrutura de poder no meio rural (coronelismo). Ou seja, os instrumentos

efetivos de controle são recentes e, portanto, a “ilegalidade” também o é.

É a partir de uma ação planejada, então, que passaram a surgir alguns casos e desde

de 196924 vêm sendo documentados diferentes formas contemporâneas de trabalho escravo,

24 Segundo o antropólogo Ricardo Rezende Figueira, que integrou o corpo eclesiástico de Conceição do Araguaia (sudeste do Pará) entre 1977 e 1996, o primeiro registro da Comissão Pastoral da Terra (CPT)

32

sobretudo da chamada escravidão por dívida. Apesar de prática ilegal sob diversos aspectos

(civil, trabalhista, administrativo e criminal)25 e de usualmente denunciada por atores da

sociedade civil (sobretudo por integrantes da Comissão Pastoral da Terra), somente a partir

de 1995 o Estado procurou intervir de forma mais sistemática sobre este ilegalismo. É

evidente que existiam medidas anteriores: fiscalização, grupos de discussão no Legislativo e

Executivo federal, programas do governo para erradicação do trabalho forçado (Pefor) e até

mesmo ações criminais; mas é consenso entre os diversos atores envolvidos que o “combate”

efetivo só ganhou mesmo força com a criação do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho

Forçado (GERTRAF, atual Grupo Móvel de Fiscalização) em junho de 1995.

Há uma longa discussão sobre as categorias usadas na classificação “deste tipo de

trabalho” em um contexto pós-abolicionista – isto inclusive ocasiona algumas implicações

jurídicas quando o debate em torno do par trabalho escravo/trabalho degradante ocupou a

agenda em parte dos anos noventa. No entanto, de forma alguma é um anacronismo utilizar

a categoria trabalho escravo para se remeter a tais situações. Além de ser tratar de uma

categoria nativa, ela também é de uso corrente por outros atores em nossa sociedade.

Ricardo Rezende faz um levantamento das categorias utilizadas na imprensa nos últimos

trinta anos para caracterizar tais relações de trabalho e, como é possível verificar abaixo

em seu quadro resumido com as categorias mais incidentes, sua constatação é indubitável:

a categoria escravo/escravidão é hegemônica.

Categorias utilizadas na imprensa brasileira, entre 1972 e 2002, para classificar o tipo de trabalho sob coerção

Categorias 1972-1998 1999-2002 Escravo/escravidão 83,38% 79,81% Escravidão branca 3,25% — Semi-escravo 2,60% 1,12% Análogo a escravo 1,95% 5,60% Assemelhado a escravo 1,49% 1,49% Trabalho degradante 2,28% — Trabalho forçado 4,88% 4,12%

In: FIGUEIRA, 2004, p. 434. (adaptado: categorias com valores médios superiores a 1%)

deste tipo de situação remete ao ano de 1969 – mais especificamente ao caso da fazenda “Reunidas Taine-Rekan” de propriedade do Grupo Bradesco e localizada no município de Santana do Araguaia, havendo ainda registros de reincidência nos anos de 73, 74, 86 e 87 (Figueira, 2004, p. 415 e ss.). 25 O chamado crime de trabalho escravo é além de violação ao Código Penal, violações às leis trabalhistas, administrativas e civis, podendo ser gerido, portanto, em diferentes sistemas normativos. O criminólogo Fernando Acosta desenvolve estudos interessantes sobre a gestão diferencial de ilegalismos e a polissemia jurídica presente em certos crimes, são os chamados “ilegalismos privilegiados” (Acosta: 1988, 2005) – o que também pode ser percebido nos trabalhos de Susan Shapiro (vide capítulo 1). Retornarei a este no Capítulo 5.

33

Apenas para situar como se dão as dinâmicas do trabalho escravo em nosso país,

pontuarei brevemente o assunto. O exemplo clássico de escravidão contemporânea

ocorre geralmente em remotas áreas rurais, consistindo basicamente em pessoas que

são empregadas em condições degradantes e perigosas, com pouca ou nenhuma

compensação. Endividados com seus empregadores através dos custos de alimentação,

suprimentos de trabalho (roupas, ferramentas etc.), e outras dívidas, tais trabalhadores

não possuem habilidades ou meios para partir – em vários casos ocorre também coação

física, com o uso de empregados armados. Trata-se de um fenômeno distinto das

chamadas escravidão clássica e moderna, mas que de forma alguma é suficiente para

caracterizar as atuais práticas como não sendo associadas ao trabalho escravo – esta

reminiscência é de fato e de direito.

Comparação entre as escravidões antigas, modernas e contemporâneas Escravidão antiga e moderna Escravidão contemporânea por dívida Legal Ilegal Por guerra, captura, compra Por aliciamento, compra Longo período para repor o investimento Curto período para repor o investimento Longa duração Curta duração Em geral, custo alto Em geral, custo baixo Falta de escravos potenciais Abundância de escravos potenciais Ficam com os escravos Dispõem dos escravos Diferenças étnicas e religiosas importam Diferenças étnicas e religiosas nem sempre importam.

Importa a situação econômica Mercadoria Mercadoria disfarçada Não se reproduz socialmente a não ser por captura ou por compra

Não se reproduz socialmente a não ser por aliciamento ou por compra

É necessário um local que, por razões diversas, favoreça a captura

É necessário um local onde, havendo abundância de mão-de-obra e escassez de oferta de emprego, o aliciamento seja favorecido. Ou um contingente de imigrantes em situação política, social e econômica desfavoráveis.

Em geral em situação degradante Em situação degradante Por pretexto religioso, étnico, racial, de guerra justa e declarada, e por dívida

Por pretexto de dívida

Estranho, não parente Estranho, não parente In: FIGUEIRA, 2004, p. 438-439.

Em um esquema bem típico, empregadores contratam trabalhadores para

desmatar áreas florestais, extraindo mogno e outros recursos naturais exportáveis, para

converter a terra em pasto para gado (roça da juquira) ou em plantio de monoculturas

rentáveis como a cana-de-açúcar. Os recrutadores da mão-de-obra, conhecidos como

34

“gatos”, procuram por desempregados em regiões bem pobres do país26, seduzindo-os a

trabalhar nas fazendas com promessas de altos salários e boas condições de trabalho.

Mas logo que chegam nos distantes locais de trabalho27, eles se afrontam com

condições muito diferentes, bem piores daquelas que foram prometidas.

No momento, a incidência do chamado trabalho escravo tende a estar

concentrada em localidades distantes dos grandes centros urbanos nos estados do Pará,

de longe com o maior número de casos, seguido por: Mato Grosso, Bahia, Tocantins e

Rondônia. Também há registros em menor escala nos estados do Rio de Janeiro, Goiás,

Mato Grosso do Sul e Minas Gerais.28

O presente trabalho se situa no panorama apresentado, mas a questão é outra.

Trata-se da administração institucional destes conflitos, ou seja, sobre como se dá a

gestão do ilegalismo “trabalho escravo” frente aos vários sistemas normativos à

disposição do Estado. A fim de tentar compreender melhor o fenômeno estou focando

este estudo no período recente, de 1995 aos dias de hoje e, sobretudo, de 2002 para cá.

Os motivos são elementares, em face de uma gestão efetiva deste ilegalismo a partir

da criação do Grupo Móvel em 199529, sendo a atuação mais destacada nos últimos

dois, três anos. Além do fato de antes ele não existir ou existir de forma incipiente, este

estudo foca as ações do Grupo Móvel com os seus desdobramentos nos diferentes

sistemas normativos. Este fato ficou destacado em várias de nossas entrevistas:

“De todas as estratégias de combate ao trabalho escravo, eu considero a criação da fiscalização móvel a maior, melhor e mais eficiente de todas as estratégias. No princípio, no início da fiscalização móvel, ela tinha um objetivo apenas repressivo, não havia ainda esta preocupação com a questão da prevenção. Mas nos últimos dois anos, o Ministério do Trabalho foi ultrapassando estes limites da competência apenas

26 Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho e do Ministério do Trabalho e Emprego divulgados em 2003, os estados do Maranhão, Piauí e Tocantins são a origem do maior número de trabalhadores escravos – somando mais de 75% dos casos, respectivamente: 39,2%, 22% e 15,5%. 27 A desterritorialização do trabalhador é uma estratégia clássica de todo e qualquer tipo de escravidão, não se escraviza o “eu” e sim o “estranho”. Somente quando se tira uma pessoa de seu local de origem, sua terra, cultura, sociedade, enfim, de seu espaço de referência e relacionamentos, é que a escravidão passa a ser possível e eficaz (por mais mórbido que soe o termo). Apesar da maior incidência de casos de trabalho escravo ser no Sul e Sudeste do Pará, o aliciamento se dá geralmente em outros estados (vide nota 26) – para uma melhor percepção destes fluxos veja os mapas presentes no anexo 1. 28 Os dados são da Secretaria da Inspeção ao Trabalho/MTE e da Comissão Pastoral da Terra e referentes à atuação da fiscalização móvel de 1995 a 2003. 29 O que lembra bastante os comentários que Marx faz no Posfácio a Segunda edição de O Capital em relação à Economia Política na Alemanha de sua época: antes, “faltava o terreno vivo”, não havia o concreto, e com isso, a possibilidade daquele objeto.

35

de repressão, e adotando políticas de prevenção.” – fala em entrevista de A, auditor fiscal do MTE atuante na coordenadoria do Grupo Móvel, junho de 2004.

Recentemente estas questões ganharam o cenário internacional com o debate em

torno do caso Zé Pereira. Em setembro de 1989, José Pereira Ferreira, na época com 17

anos, fugiu da Fazenda Espírito Santo, município de Sapucaia localizado no Sul do

Pará, tendo sido tocaiado por “funcionários” da fazenda, recebido um tiro pelas costas e

“desovado” à beira de uma rodovia. Mas ele foi um dos que acabaram se salvando e sua

trágica experiência30 foi levada à OEA, mais especificamente à Comissão

Interamericana de Direitos Humanos que considerou o Governo brasileiro também

responsável por tais atrocidades a tanto relatadas – e este reconheceu sua parcela de

culpa31, assumindo o trabalho escravo como uma prática de fato existente no Brasil.

Isso por si só já o tornou um ícone da luta contra a escravidão contemporânea, sendo

realçada pela indenização no valor de R$ 52 mil aprovada pelo Congresso em

novembro de 2003 como parte das exigências da OEA32.

Logo após sua vitória nas eleições de 2002, o presidente Luis Inácio Lula da

Silva, prometeu fazer da erradicação da escravidão uma prioridade nacional, anunciando

que iria lançar um plano nacional para erradicar o trabalho escravo no país no início de

30 Em entrevista realizada por Leonardo Sakamoto, da ONG Repórter Brasil, Zé Pereira a relata: “Já deviam muita coisa para a fazenda, segundo o gato? Ferreira – O gato [aliciador de serviço para a fazenda] já dizia que nós estávamos devendo muito. A gente trabalhava e eles não falavam o preço que iam pagar pra gente, nem das coisas que a gente comprava deles, nem nada. E aí, nós fugimos de madrugada, numa folga que o gato deu. Andamos o dia todo dentro da fazenda. Ela era grande. Mas a fazenda tinha duas estradas, e nós só sabia de uma. Nessa, que nós ia, eles não passavam. Mas eles já tinham rodeado pela outra e tinha botado trincheira na frente, tocaia, né. Nós não sabia... Mais de cinco horas passamos na estrada, perto da mata. E quando nós saímos da mata, fomos surpreendidos pelo Chico, que é o gato, e mais três. Que atiraram no Paraná, nas curvas dele, e ele caiu morrendo. Eles foram, buscaram uma caminhonete com uma lona e forraram a carroceria. Aí colocaram ele de bruços e mandaram eu andar. Eu andei uns dez metros e ele atirou em mim. De costas? Ferreira – É. Onde acertou meu olho. Pegou por trás. Aí eu caí de bruços e fingi de morto. Eles me pegaram também e me arrastaram, me colocaram de bruços, junto com o Paraná, me enrolaram na lona. Entraram na caminhonete, andaram uns 20 quilômetros e jogaram nós na [rodovia] PA-150 em frente da [fazenda] Brasil Verde.”; in: SAKAMOTO, Leonardo. Zé Pereira, um sobrevivente, entrevista disponível em: http://www.reporterbrasil.com.br/reportagens/novalibertacao/entrevista.php, último acesso em 21 de março de 2005. 31 “A petição número 11.289, relativa à solução amistosa do caso de Zé Pereira na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA afirma que ‘o Estado brasileiro assume o compromisso de continuar com os esforços para o cumprimento dos mandados judiciais de prisão contra os acusados pelos crimes cometidos contra José Pereira’. O caso ainda está aberto, aguardando julgamento de acusados.”; in: SAKAMOTO, Leonardo. Nova libertação na fazenda dos Mutran, reportagem disponível em: http://www.reporterbrasil.com.br/reportagens/novalibertacao/iframe.php, último acesso em 21 de março de 2005. 32 As outras diziam respeito a basicamente políticas pública de combate ao trabalho escravo.

36

200333. O Plano Nacional é um conjunto de medidas elaboradas por diversos atores

atuantes nesta questão e que descreve uma série propostas (setenta e cinco ao todo)

definindo responsabilidades institucionais e prazos para serem efetivadas. As propostas

são variadas e o que pode se observar é que se destinam a dar mais eficiência aos vários

sistemas normativos passíveis de serem acionados para a administração destes conflitos.

Existe de tudo, de aumento da pena mínima a cláusulas impeditivas para obtenção e

manutenção de crédito, passando por campanhas, programas de renda mínima para as

regiões de origem dos trabalhadores escravizados, melhora da logística dos órgãos

destinados à repressão etc. Estas medidas buscam intensificar e ampliar as medidas

estabelecidas nos governos anteriores (1995-2002).34

33 O Plano Nacional Para a Erradicação do Trabalho Escravo encontra-se disponível em: http://www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/iniciativas/plano_nacional.pdf, último acesso em 21 de junho de 2004. 34 “De uma vez por todas, o combate do trabalho escravo deixou de ser uma tarefa do Ministério do Trabalho, como se fosse uma exacerbação da violação de uma lei trabalhista; ela é colocada em relação como uma gravíssima violação dos direitos humanos. Portanto, é uma tarefa da sociedade, do Estado em todos os seus níveis, de todas as suas instâncias, é uma tarefa de todos. E de fato, de lá para cá, esse combate se intensificou. Por exemplo, no ano passado, foram libertados 4995 trabalhadores. (...)” – Ministro Nilmário Miranda, in: Simpósio Multidisciplinar sobre Trabalho Escravo, Rio de Janeiro, de 22 a 24 de junho de 2004.

37

Parte II

Formas de controle sobre o trabalho escravo

“Há um problema de se estudar a justiça, e não é porque ela é corporativa, é porque ela é naturalizada.”

Roberto Kant de Lima

(Salas de aula e XXVIII ANPOCS)

38

Capítulo III

Controles Cíveis: Grupo Móvel, Ministério do

Trabalho e Emprego, Ministério da Justiça,

e Ministério Público do Trabalho

Este capítulo tem o objetivo de descrever a atuação dos atores responsáveis pelas

formas de controle cíveis em relação aos ilegalismos associados ao trabalho escravo. Ele se

encontra dividido em três seções: 1) Grupo Móvel de Fiscalização, as bases dos registros;

2) Nos arredores do Grupo Móvel, ainda no contexto do MTE; e 3) Ministério Público do

Trabalho, das persecuções cíveis e acordos.

Grupo Móvel de Fiscalização, as bases dos registros:

O ilegalismo de trabalho escravo é, como já apresentado, administrável de

várias maneiras e o Grupo Móvel, de alguma forma, representa uma tentativa de

atenuar a polissemia existente no campo jurídico para se lidar com este plano de

eventos. A idéia é que o grupo que faz a inspeção in loco tenha condições de dar o

prosseguimento das devidas medidas cabíveis, por isso sua composição é multi-

institucional, envolvendo atores que representam os vários sistemas normativos em

jogo35 (apesar dele ser mais atrelado ao Ministério do Trabalho e Emprego, MTE). No

limite, tudo que é considerado, juridicamente, como trabalho em condição análoga a de

escravo passa pelo Grupo Móvel: aos auditores fiscais cabe lavrar os autos de infração;

se o evento vai ser (in)criminado ou não, se vai ter persecução ou não, é outra história.

35 “Cada ação dessa, do Grupo Móvel de Fiscalização, é acompanhada e/ou por: auditores do trabalho, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal, Polícia Federal, mas há regiões também (...) que nós estamos contando com o apoio das forças armadas, polícia rodoviária federal, IBAMA (...).” (Ministro Nilmário Miranda, in: Simpósio Multidisciplinar sobre Trabalho Escravo, Rio de Janeiro, de 22 a 24 de junho de 2004).

39

É interessante começar, pois, por estes registros produzidos pela ação do Grupo Móvel.

Segue abaixo uma tabela que compara sua atuação ao longo dos anos:

Trabalhadores

Ano Número de Operações

Número de Fazendas

Fiscalizadas Registrados Libertados

Pagamento de

Indenizações

Autos de Infração Lavrados

2004* 35 198 1.906 1.505 2.737.126,47 1.267

2003 66 196 6.785 4.879 5.892.381,62 1.424

2002 33 94 3.352 2.493 2.203.582,42 680

2001 27 147 1.858 1.297 817.952,16 759

2000 25 88 1.159 527 631.282,84 536

1999 19 56 725 411

1998 18 47 159 282

1997 20 95 394 796

1996 26 219 425 1.751

1995** 11 77 84 906

* até junho/julho, segundo a fonte do MTE; ** o GERTRAF foi criado em 27 de junho de 1995. Fonte: Quadro das Operações de Fiscalização Móvel (anos de 1995-2003), documento elaborado pela Secretária de Inspeção do Trabalho do MTE.

A ação do Grupo Móvel é um primeiro nível de gestão desse conflito, que possui

um alto grau de variedade interna (dada sua composição) e desdobramentos posteriores à

atividade de fiscalização. Grosso modo, o que ocorre é o seguinte: o Grupo Móvel é

mobilizado através informações que denunciam a prática de trabalho escravo e realiza

uma operação de fiscalização nas fazendas ou estabelecimentos referidos. Na maior parte

das vezes isso ocorre porque alguém conseguiu fugir e pedir ajuda. Nesse sentido, a

Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Secretária de Inspeção do Trabalho (SIT) possuem

um papel importantíssimo, pois geralmente são eles que fazem esta mediação. Enfim, o

Grupo Móvel realiza a operação e, durante a fiscalização, verifica a real situação dos

trabalhadores que lá se encontram. Inspecionam tudo (os locais, as condições de trabalho

etc.), tiram fotos, tomam depoimentos e assim por diante – lembre-se que é uma ação

multi-institucional orientada para diferentes sistemas normativos.

Quando constatadas irregularidades, os diversos atores procuram agir conforme as

suas atribuições. No entanto, os produtos mais diretamente relacionados com a fiscalização

móvel são os atrelados ao MTE: relatórios e autos de infração. A forma mais aparente e

latente do conflito se resolve ali, in loco, na fiscalização. O fazendeiro ou responsável pela

propriedade rural é chamado e confrontado com o “flagrante”. Na maior parte das vezes,

40

ele opta por tentar resolver logo a questão trabalhista, evitando, com isso, a prisão em

flagrante. Os trabalhadores são libertados e/ou registrados, recebendo os seus direitos

trabalhistas – atrasados, indenização e até mesmo fazem cadastro para receber seguro

desemprego. Eles ficam felizes, alegres por estarem livres, como costumam dizer os

participantes do Grupo Móvel; e em geral voltam para as suas localidades de origem.

Ou seja, é disso que falam os dados acima, do trabalho escravo sob o enfoque de

uma das possíveis administrações do conflito e o mais atrelado à ação local. É

necessário explicitar isso por dois motivos que têm a ver com alguns estudos clássicos

de criminologia, sobretudo em relação aos trabalhos sobre white-collar crimes. O

primeiro está relacionado com o que Edwin Sutherland chamou de dark-number, a

“cifra-oculta”, e que também é conhecida como a diferença entre “criminalidade real” e

“criminalidade registrada”; isto é, o número de casos registrados é sempre menor (e é

impossível determinar o quanto) do que as violações que ocorrem de fato.36 O segundo

se relaciona com o tipo de ilegalidade registrada e o fato de que determinados “crimes”

são mais visíveis em outras estatísticas do Estado do que propriamente nas criminais (o

que é bem comum nestes tipos de estudo). É exatamente este o caso: se nos ativermos

apenas aos dados criminais, a tal “cifra-oculta” ficará maior ainda, pois há uma

diferença dentro dos próprios registros do Estado, entre o ilegalismo registrado e aquele

registrado como crime. No caso do trabalho escravo existe um registro estatal que é do

plano da ilegalidade; em alguns casos, como os de crimes financeiros, por exemplo,

nem isso ocorre, pois os fatos chegam a ser registrados como legais e estes crimes

passam despercebidos em relatórios ou outros documentos.

O que podemos concluir, de maneira preliminar, é que as informações que são

produzidas pelo Grupo Móvel é que vão servir de base para os demais sistemas

normativos, sendo estes dados os registros mais gerais que circulam de maneira válida

(e reconhecida pelo Estado) no espaço público. É um filtro do plano dos eventos e por

isso pode ser considerado como um primeiro pronunciamento no espaço público do que

pode vir a ser criminado ou não. Para além da diferença entre a “criminalidade real” e a

“criminalidade registrada”, o nosso interesse aqui é o que vem depois, é discutir a

disparidade entre os registros, a proporção existente nos prosseguimentos que se dão

36 Note que ainda não estou falando de crime, apesar de Sutherland considerar white-collar crime tanto as violações às leis penais como as decisões por danos em âmbito civil, penalidades administrativas etc.; enfim, qualquer sanção normativa (vide Capítulo 1).

41

após a ação do Grupo Móvel. O conflito ainda está em aberto, e sujeito a administração

em outras esferas decisórias regidas por diferentes sistemas normativos.

Nos arredores do Grupo Móvel, ainda no contexto do MTE:

Se por um lado à fiscalização do Grupo Móvel é o primeiro e mais amplo foco

normativo gestor do conflito, ainda há uma série de medidas de controle vinculadas ao

governo federal (no âmbito do MTE e outros) que não estão diretamente associadas ao

judicial. Dentre tais, merece destaque a chamada “lista suja” que segundo diversos

atores envolvidos é o mais eficaz instrumento repressivo que se dispõe hoje no combate

do trabalho escravo.37

A lista suja ou lista negra é uma relação de “escravocratas” que é liberada pela

Secretária de Inspeção ao Trabalho/MTE (o mesmo órgão que gere o Grupo Móvel)

com o objetivo de restringir crédito a tais infratores. Entra na lista suja o infrator com

ação “que transitou em julgado do ponto de vista administrativo, e não tem para onde

mais recorrer das multas que recebeu.” (Ministro Nilmário Miranda, idem, ibdem.).

“Nós divulgamos esta lista para proibir que os fundos constitucionais sejam utilizados por eles, negativa de créditos, subsídios, empréstimos, financiamento para estas empresas, destas supostas empresas e empresários. Isto causou uma fortíssima apreensão e até um certo pânico nestas pessoas. (...) ou seja, todas as empresas, empresários, os aventureiros que praticam o trabalho escravo que buscam financiamento federal. Aliás, até desmentindo aquela idéia que dizem que são pessoas pobres coitadas que não conhecem a lei, que não sabem o que estão fazendo, que falta informação para evitar, que não pode chamar de trabalho escravo, que são exceções. Na verdade a maior parte das empresas fiscalizadas são tão coitadinhas que são capazes de arrancar dinheiro público dos fundos constitucionais, dos bancos públicos etc.” (Ministro Nilmário Miranda, idem, ibdem)

A primeira lista suja foi divulgada em 18/11/2003, contendo 52 nomes; e a

segunda em 26/07/2004, contendo 49 nomes (ver anexo 2). “E mais, o Banco Central

preparou uma resolução, que vai ser votada no Conselho Monetário Nacional,

ampliando o espectro da proibição de crédito para estes aventureiros.” (Ministro

Nilmário Miranda, idem). Além de perder a concessão de créditos e financiamentos em

instituições estatais, como o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal, BNDES, 37 Por exemplo: “Efetivamente nós temos em termos de repressão, com algum retorno, com algum sucesso, a questão da lista negra que tem trazido uma grande dor de cabeça aos escravocratas modernos.” (informante C – MPT); ou ainda: “A lista suja, ela mexe com o bolso deles (...), eles ficam desesperados, eles querem sair da lista e não sabem como”. (informante A - MTE)

42

Banco do Nordeste, entre outros, eles provavelmente também terão restrições a créditos

privados. Uma outra derivação adotada é a verificação da regularidade destas propriedades

junto ao Ministério do Desenvolvimento Agrário:

“Eles estão iniciando uma fiscalização cadastral dos imóveis da ‘lista suja’. E vejam só, o objetivo desta fiscalização é identificar os vícios na cadeia dominial; os nomes que estão na lista suja, eles podem estar sendo sustentados por títulos inválidos e até mesmo em terras de domínio público.” (informante A – MTE)

Estas propostas possuem uma finalidade bem clara, inviabilizar a prática do

trabalho escravo enquanto relação econômica possível.38 Explorar o trabalho escravo passa

a ter um alto risco do ponto de vista econômico, pois o empreendedor no limite não teria

acesso a crédito e ainda teria sua “propriedade” questionada em casos de irregularidade.

A chamada “PEC do trabalho escravo” vai no mesmo sentido, ao propor a

expropriação das glebas.39 Trata-se de um esforço normativo que tem recebido grande

atenção dos atores políticos e jurídicos envolvidos nesta temática, mobilizando grandes

debates na Câmara. “Para eles perder a terra é pior até do que ser condenado, a possa

da terra é sagrada ninguém quer perder um centímetro de sua terra (...) fecha o tempo,

fazendeiro não quer perder a terra (...) ainda mais para reforma agrária” (informante A -

MTE). Após alguma relutância a PEC foi aprovada em primeiro turno, e não levou em

consideração apelos da chamada “bancada ruralista” em nome dos direitos dos

herdeiros e da necessidade da “sentença judicial condenatória ou absolutória, exeqüível

após o trânsito em julgado” para respeitar os princípios da ampla defesa e do

contraditório (vide voto em separado do deputado Asdrúbal Bentes(PMDB/PA)40). Na

verdade, como afirma o deputado Paulo Rocha (PT/PA) estas questões referentes ao

38 A imprensa noticiou durante o último mês de março que alguns proprietários têm conseguido na justiça a retirada de seus nomes da lista suja. Com isso eles voltam a ter a possibilidade de utilizar empréstimos de fundos constitucionais que são administrados por instituições públicas. “Já são nove fazendas retiradas por ordem judicial da relação feita pelo governo de empregadores que mantinham funcionários em condições análogas à escravidão. Agora, eles voltam a ter acesso a linhas de crédito operadas por Banco do Nordeste, o Banco da Amazônia e o Banco do Brasil.”; disponível em: http://www.reporterbrasil.com.br/noticias/ver2.php?id=179, último acesso em 18 de abril de 2005. Maiores informações disponíveis no jornal O Globo de 20 de março de 2005, p. 12, e em http://agenciacartamaior.uol.com.br/agencia.asp? coluna=reportagens&id=2722, último acesso em 16 de abril de 2005. 39 A Proposta de Emenda à Constituição 438/2001, a “PEC do trabalho escravo”, é uma tentativa de alterar o artigo 243 da Constituição Federal (que dispõe sobre a expropriação de glebas onde forem localizadas plantas psicotrópicas), estendendo o princípio aonde for encontrado trabalho escravo, vide Anexo 4. Proposta pelo Senado em 2001, ganhou maior visibilidade e, de certa forma, empenho político no atual governo e legislatura como é possível constatar a partir da sua dinâmica atual na Câmara dos Deputados – detalhes em: http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=36162, último acesso em 31 de agosto de 2004. 40 Disponível em: http://200.219.132.4/sileg/integras/215187.htm, último acesso em 31 de agosto de 2004.

43

artigo 243 da Constituição Federal já se encontram decididas em jurisprudência datada

de 1995, inclusive destacando a que independe de ação penal.41

Outrossim, como salienta um informante, atuante na coordenadoria do MPT que

se destina a esta questão, a expropriação já poderia ser realizada hoje:

“Nós temos a discussão da PEC (...), mas hoje a Constituição já permite que as terras onde houver trabalho escravo sejam expropriadas. E por que? Porque estas terras não cumprem a função social42. (...) E no meu entendimento é que tanto o Ministério Público Federal quanto o Ministério Público do Trabalho podem dirigir estes requerimentos ao INCRA solicitando esta expropriação que vai ser feita dentro do processo do contraditório, do processo administrativo, lá no âmbito do INCRA.” (informante B – MPT)43

A Fazenda Castanhal Cabaceiras foi o primeiro caso de desapropriação por

incidência de trabalho escravo, sendo efetivada através de ato presidencial (vide Anexo

5) fundamentado na função social da terra. E conforme salienta Carlos Henrique

Kaipper, Consultor Jurídico do Ministério do Desenvolvimento Agrário:

“Sobram razões para comemorar a publicação do decreto que declarou de interesse social para fins de reforma agrária o imóvel rural denominado Fazenda e Castanhal Cabaceiras, situado no município de Marabá, Estado do Pará, que ocorreu no diário oficial do dia 19 de outubro de 2004. E não estamos nos referindo unicamente ao fato de ter declarado de interesse social para fins de reforma agrária um imóvel de 9.774 hectares, que beneficiará cerca de 340 famílias numa das regiões do país onde a disputa pela terra é das mais sangrentas: o sul do Pará. O mérito maior do ato presidencial é ter, pela primeira vez na história, invocado o descumprimento da função social ambiental e da função social trabalhista da propriedade rural para fins de desapropriação-sanção.” 44

Nesse contexto, Alberto da Silva Jones tem leitura mais rígida e chega a propor

que o não atendimento da função social da propriedade deveria ensejar a expropriação,

41 Detalhes em: http://200.219.132.4/sileg/integras/217717.htm, último acesso em 31 de agosto de 2004. 42 Como disposto no artigo 186 da Constituição de 1988, sobretudo os incisos III e IV: “Art. 186: A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm, último acesso em 10 de abril de 2004. 43 Percebe-se claramente que, neste ponto, o informante parece confundir expropriação com desapropriação. 44 In: http://www.mte.gov.br/Noticias/Conteudo/6447.asp, último acesso em 03 de novembro de 2004.

44

não cabendo nenhuma indenização, pelo fato de a propriedade no Brasil possuir origem

pública. E complementa:

“(...) permanecendo públicas, as terras estão disponíveis para o Estado exercer o poder legal de definir destinação, uso ou apropriação, independentemente de qualquer procedimento de desapropriação ou indenização. Duas hipóteses decorrem da geral: (1.ª) para estas terras não cabem processos de desapropriação, por se tratar de terras públicas; (2.ª) conseqüentemente, não cabem indenizações territoriais. Pode-se antever questões fundamentais, de cujas respostas depende o avanço do processo de reorganização da estrutura agrária, no âmbito do qual se coloca a pobreza no campo e a reforma Agrária.” (Molina et alli, 2002, p. 123)

Outras medidas de âmbito ministerial são mais de cunho preventivo, tais como:

seguro desemprego para os trabalhadores libertos pelo Grupo Móvel; implementação de

políticas sociais de renda mínima nos estados de origem destes trabalhadores;

ampliação da rede dos Balcões de direitos, visando dar mais assistência jurídica a estas

populações; campanhas de conscientização; e outras medidas presentes no Plano de

Erradicação. Ou então visando um melhoramento da logística na administração dos

conflitos em âmbito trabalhista: a capacitação de auditores fiscais e a solicitação (junto

com o MPT) de varas itinerantes são um bom exemplo disso.

Ministério Público do Trabalho, das persecuções cíveis e acordos:

A atuação do MPT na gestão dos conflitos associados à prática de trabalho

45

Públicas, nove Ações Civis Coletivas, uma Ação Cautelar, 12 Reclamações Trabalhistas e uma Ação Anulatória.”45

Como podemos observar os procedimentos mais típicos são os acordos, uma fez

firmado o TCAC46 o conflito se resolve em seu plano mais aparente (não há mais a

relação de trabalho anterior e o compromisso desta reparação), não havendo

necessidade de persecução trabalhista – é o que explica o baixo número de RTs.

Segundo os atores do MPT, uma vez firmado o acordo não há porquê encher os

Tribunais. No entanto, em boa parte dos casos o MPT vai além do TCAC, promovendo

persecuções civis, sejam elas ACPs ou ACCs, por danos morais.

“A ação do Ministério Público do Trabalho é a Ação Civil Pública, a Ação Civil

Coletiva é uma ação que está colocada a nossa disposição, mas que por exceção que o

Ministério Público do Trabalho pode se utilizar.” (informante B – MPT). A ACP é

ajuizada não para atender individualmente, ela ataca a lesão aos direitos sociais

homogêneos (direitos difusos e coletivos); isto é, o valor obtido pela indenização vai

para o fundo constitucional da ACP de gestão orçamentária decidida pelo Congresso. É

a ACC que vai postular os direitos de uma coletividade de indivíduos (direitos

individuais homogêneos), sendo neste caso o valor revertido aos trabalhadores

envolvidos na prática de trabalho escravo.

Aliás, a indenização por danos morais é a outra ação que nos dias de hoje é

reconhecidamente efetiva contra a prática de trabalho escravo.47 O que em geral não

veiculam ao se divulgarem estes números é a distinção entre o destino das indenizações

obtidas nas ACPs e nas ACCs. Enquanto o valor das ACPs, assim como o das multas

45 In: http://www.pgt.mpt.gov.br/escravo/geral/estatisticas.html, último acesso em 14 de julho de 2004). 46 O Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta é um importante instrumento de atuação do MPT do ponto de vista administrativo. Trata-se da proposição de um ajuste por meio do qual o empregador assume a obrigação de não mais cometer a infração legal, regularizando a situação. O seu objetivo é buscar o cumprimento da lei de forma célere, com baixo custo, de forma consensual e ainda desafogar o Poder Judiciário. Em geral, fixa-se um multa elevada para o caso de descumprimento das obrigações acordadas; e caso o TCAC seja descumprido, executa-se a multa fixada e requer-se a execução da obrigação estabelecida, sob pena de uma nova multa a ser fixada pelo juiz – ambas as multas se revertem ao FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador). 47 “Hoje, pode-se dizer que há basicamente dois avanços significativos, ou duas punições efetivas em relação aos escravocratas dos dias de hoje: é o pagamento da indenização por dano moral e a chamada lista suja. (...) Além da lista suja o que nós temos de efetivo é a condenação da Justiça do Trabalho das indenizações por dano moral.” (informante C – MPT); em alguns casos, como o do Grupo xxxxx [omiti o nome da empresa], reincidentes, chegam a pedir o valor de 80 milhões de reais [como indenização]. Segundo o informante B (atuante na coordenadoria de trabalho escravo do MPT) a orientação é jogar o valor lá para cima, em um patamar da ordem do valor da propriedade. Estas indenizações por “danos morais coletivos; também mexe com o bolso do fazendeiro. (...) e é uma expropriação indireta, na verdade.” (informante A – MTE).

46

derivadas dos TCACs, são remetidos para o FAT; as da ACCs, ajuizadas em menor

número, é que remuneram diretamente para os trabalhadores envolvidos.

É importante ressaltar que a ACP na defesa de interesses individuais homogêneos

não possui paralelo com uma reclamação trabalhista comum, uma vez que não persegue

48

hoje, mesmo sendo a criminalização dada e havendo um certo consenso sobre a

criminação, a incriminação nos casos de trabalho escravo ainda é de difícil realização.

O “trabalho escravo é crime”, mas não era bem assim que estava na lei. A

redação primitiva do artigo 149 do Código Penal consistia em: “Reduzir alguém a

condição análoga à de escravo: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos.”. Trabalho

escravo era uma das formas de reduzir alguém a condição análoga à de escravo; hoje

com a redação nova, ela é a forma por excelência50, como é salienta “D”:

“No entanto, apesar da clareza do dispositivo e da manifestação da doutrina, a alteração do Código Penal foi feita pela lei 10.803 de dezembro do ano passado [2003] que ao explicitar condutas restringe as hipóteses que caracterizam infração penal, já que, ao contrário da lei civil, não se admite analogia em matéria penal51 (...) com os artigos que versam sobre cárcere privado (148), violações a leis trabalhistas e constrangimento ilegal. A norma, pois, toma uma situação pela outra e não as distingue claramente. O maior problema da lei nova é a descriminalização de outras condutas [que estão para além da relação trabalhista, tais como: escravização de mulheres, escravização para tráfico de órgãos etc.]52. Esta nova lei não mais abrange estas condutas no núcleo de reduzir alguém à condição análoga a de escravo, pois ao exemplificar o modo como se efetiva esta conduta acaba por reduzir a situações típicas das relações de trabalho. A redação anterior do artigo 149 do Código Penal, para evitar a sensação de impunidade precisava de alteração apenas da pena mínima atribuída ao crime; de modo a evitar a prescrição ou que se atribuísse ao condenado penas alternativas não condizentes com a gravidade desta infração penal. No entanto, esta pena mínima não foi alterada.” (informante D – MPF; grifos meu)

Este é sem dúvida o ponto chave da dificuldade em “tornar crime” segundo o

aspecto da criminalização: a descriminalização por excelência. Algumas condutas

deixam de ser criminalizáveis porque as alterações realizadas na lei penal reduziram a

gama de eventos passíveis de serem classificados como o crime previsto no art. 149.

49 Mais adiante retomaremos este ponto com maiores detalhes 50 Versa o Código Penal, na Seção I, do Capítulo VI (Dos crimes contra a liberdade individual), sobre a Redução à condição análoga à de escravo, em redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003: “Art. 149: Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1o Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.”; in: Código Penal Brasileiro, disponível em https://legislacao.planalto.gov.br/, último acesso em 10 de abril de 2004. 51 O que criaria uma polissemia jurídica dentro do próprio Código Penal. 52 Esta frase foi reformulada por mim devido a truncamentos na fala e falhas na gravação.

49

Em relação à criminação, já apontamos acima um dado que durante algum

tempo (entre 1999 e 2001) dificultou a interpretação e o encaixe do evento no tipo

penal: a dissensão entre trabalho escravo e trabalho degradante. A nova redação do

artigo 149, conforme vimos acima, pôs fim a esta discussão no final de 2003, como

salienta “E”: “De fato limitou-se o tema (...), mas pôs fim à distinção entre trabalho

escravo e trabalho degradante. (...) Esta é a vantagem, por fim a esta distinção foi

importante.” (informante E – MPF).

No entanto, um outro aspecto deve ser enunciado aqui: a competência do

intérprete. Questões referentes a quem compete julgar o crime do artigo 149, qual o

intérprete qualificado (Justiça Federal ou Estadual), vinha sendo um obstáculo no

ajuizamento de denúncias. Por vezes não se entrava com a ação, pois havia o sério risco

dela não ser aceita por motivos de competência – o evento não seria criminável naquela

esfera, a interpretação seria da ordem de um não crime, algo como “uma absolvição

objetiva”53 (antes mesmo da responsabilização penal). Hoje há um certo consenso de

que a competência é da Justiça Federal, mas ainda é aguardada a votação de um recurso

extraordinário no Supremo Tribunal Federal que deliberará sobre esta questão.54

Em relação à incriminação, a dificuldade é maior ainda, confirmando inclusive

o que é apontado pelos estudos clássicos sobre white-collar crime neste sentido (o

problema da responsabilização de corporações e pessoas jurídicas). Os “problemas”

associados à incriminação são talvez mais determinantes para explicar o baixo índice

de ações penais do que as questões apresentadas sobre criminalização e criminação.

Por serem vários os fatores que dificultam a incriminação, resolvi classificá-los

provisoriamente em três grupos, são eles: 1) fatores processuais; 2) relacionamento

com os outros sistemas normativos; e 3) fatores de ordem prática.

Os fatores processuais podem ser divididos em dois subgrupos: aspectos

procedimentais e viabilidade técnica. Em relação a aspectos procedimentais, como a

subsunção da norma ao fato, a grande questão é a exigência da culpabilidade em

matéria penal.

53 “D” utilizou este termo em um sentido figurado, conotando uma situação de não aceitação da denúncia. 54 “Do ponto de vista criminal, eu acredito que este esforço recente ele provocou uma mudança, e a mudança mais esperada na verdade esta ainda dependente da decisão do Supremo sobre quem é competente.” (informante D – MPF). O acompanhamento processual do Recurso Extraordinário Nr.398041 e maiores informações podem ser obtidas a partir do sítio do STF, disponível em:

50

“A prova que serve para o ajuizamento de uma relação de trabalho ou mesmo de uma Ação Civil Pública por dano moral é muito diferente da prova em matérias penais. É muito diferente porque..., porque para a relação cível (...) [explica resumidamente a distinção cível/penal], a matéria do cível se contenta com a prova objetiva; no penal você exige culpabilidade, isso é uma grande diferença. Para a Justiça do Trabalho a ação civil pública é ajuizada contra a pessoa jurídica, empresa xxxxx xxxxx, essa pessoa jurídica, ela tem bens, ela tem personalidade própria jurídica. A ação penal tem que ser ajuizada contra pessoa física. E quem escravizou, na condição de responsável, daquela pessoa jurídica? Isso é muito diferente.” (entrevista – informante D – MPF).

O informante ainda afirma que ajuíza tanto ações cíveis como criminais pelo MPF

e enfatiza: “que é muito diferente mesmo, a diferença é muito grande. Não é

comparável uma situação e outra.” (entrevista – informante D – MPF).

Trata-se da questão já antecipada acima sobre os white-collar crimes55 e que, em

si, já impõe um problema de viabilidade técnica para a ação penal: certa

impossibilidade de se determinar quem exatamente é o responsável. Neste quesito

existem basicamente mais dois fatores. O primeiro se refere ao tempo de prescrição:

“como a pena é de dois a oito, vai prescrever em mais ou menos 12 anos; depois de

julgado, tem a prescrição pela pena concreta, se for a mínima, 2 anos, cai para 4.”

(entrevista – informante D – MPF).

E quanto ao segundo subgrupo, referindo a viabilidade técnica, trata-se de um

fator que indica não propriamente uma dificuldade em incriminar, mas um recurso

processual que tem um efeito prático de distorção do número de registros entre

sistemas normativos; trata-se da fusão de alguns casos já registrados em uma só ação56.

Isso indica o quão complexa é a questão: se nos ativermos apenas aos dados estatísticos

dos registros podemos cometer sérios erros de análise, uma vez que esta não-

incriminação é apenas aparente.

http://www.stf.gov.br/processos/processo.asp?PROCESSO=398041&CLASSE=RE&ORIGEM=AP&RECURSO=0&TIP_JULGAMENTO=M, último acesso em 21 de março de 2005. 55 “Uma incapacidade em estabelecer a intenção criminal também é uma das principais razões pela qual os promotores freqüentemente prosseguem ações civis em vez de acusações criminais. A duvidosa capacidade para condenar os indivíduos culpáveis e a falta de recursos necessários para uma investigação mais extensa ou completa, eles optam pela ação civil e pelo padrão menos oneroso de prova que estas respostas requerem.” (Shover, 2000, p. 143)AE 56 “Para resumir, destes 681 casos (...) [os registros das inspeções dos nove meses anteriores], eu acredito que tenha trinta e tantas denúncias. Uma delas, o proprietário da xxxxx [omiti o nome da propriedade] refere-se a seis inspeções. É uma técnica em matéria penal que por economia de atos processuais (...) você reúne as seis acusações em uma ação só; isto é vantajoso para quem acusa.” (entrevista – informante D – MPF). Ou seja, daqueles 681 casos, seis viraram uma ação penal só.

51

Quanto ao relacionamento com outros sistemas normativos em jogo (que, aliás,

são todos cíveis)57, há pelo menos dois subfatores que dificultam a incriminação: o

primeiro é articulado com a produção dos registros dos eventos em questão; e o

segundo, com a comunicação interinstitucional. Conforme destacamos nos fatores

processuais, há problemas sérios na relação jurídica entre o cível e o penal; e, como

vimos acima, a fiscalização móvel (o filtro inicial) envolve várias instituições, mas é

essencialmente procedimental em um ponto de cível – vinculada ao MTE.

O primeiro subfator (a produção dos registros) está diretamente relacionado a

isso. Em resumo, o registro do auditor fiscal nem sempre é válido no processo penal.

“O relatório dos fiscais do Ministério do Trabalho (...) [fotos, depoimentos etc.], os Autos de Infração... é suficiente para instruir uma eventual denúncia criminal porque são consideradas peças de informação e serão prova documental no processo tanto da prática do crime de trabalho escravo quanto dos crimes contra a organização do trabalho.” (informante E – MPF).

De fato, os relatórios servem para criminar, dizer que há crime, mas, no entanto,

muitas vezes a incriminação é prejudicada – vide as considerações já expostas acima

sobre os fatores processuais (p. 55). Neste sentido, “D” acrescenta:

“Então o auditor fiscal do trabalho, ele é um técnico que vai produzir provas, indícios de prova que interessam para a relação de fiscalização e dentro da relação jurídico trabalhista. Ela é uma pessoa treinada em ler a CLT. Essa pessoa, que faz um trabalho excelente, ela não sabe lidar com esta prova para o processo penal. (...) [comenta sobre o monopólio da prova/investigação na polícia judiciária]. A prova do auditor fiscal do Grupo Móvel não serve para o processo penal. É toda uma complicação procedimental que tem sede nos princípios constitucionais do direito da ampla defesa, do contraditório e tal, que obriga o Ministério Público a ter muito cuidado no oferecimento da denúncia. Senão, acontece uma coisa que é uma conseqüência pior que o não oferecimento, que é o não recebimento da denúncia – que é um ato judicial formal que pode se entendido como uma absolvição. Então é preciso ter muito zelo, muito cuidado com a denúncia que se oferece.” (entrevista – informante D – MPF)

E em relação à atuação da Polícia Federal, a produção de registros, em geral,

também não é adequada, ficando a cargo do próprio MPF.

57 Trabalho com a idéia de diferentes sistemas normativos porque mesmo que se considere como uma a normatividade do Estado, onde a Constituição representa seus princípios fundamentais, ainda assim há diferenciações o suficiente no campo jurídico para permitir pensar em distintos sistemas normativos com regras, procedimentos e éticas próprias. Proposição esta reforçada através de situações de campo, onde inclusive há registros da concorrência entre tais sistemas. Não foram poucas às vezes onde o interlocutor mencionava “podres” de companheiros do Grupo Móvel originários de outro sistema normativo, no sentido de desqualificar a atuação da outra instituição e reafirmar a sua própria identidade institucional.

52

“O inquérito policial instaurado pela polícia federal, ele é importante, principalmente quando ocorre prisão em flagrante daquele que esteja submetendo o trabalhador imediatamente ao trabalho escravo já que o crime é permanente. E junto com o citado relatório corrobora a denúncia [em geral o relatório atua na criminação, o inquérito na incriminação], inclusive podendo incluir outros crimes que são comuns também. Se o empregador for pessoa jurídica é também através da investigação policial em que se pode determinar, enfim, se definir quem de fato, qual representante legal daquela sociedade tinha conhecimento daquela situação. A atuação da Polícia Federal não pode de forma alguma ficar reduzida a segurança dos fiscais da equipe que se dirige ao local [o por vezes acaba ocorrendo]. (...) havendo presença de um delegado da Polícia Federal, ele deve cumprir sua função [se possível durante a inspeção porque depois ‘já era, não acha ninguém’]. O ideal é quem instaurou o inquérito, o presida e o relate, encaminhando para a DRPF mais próxima.” (informante E – MPF).

O inquérito é, portanto, uma peça chave na incriminação, mas como coloca “D”:

“(...) nós estamos conseguindo colher provas, investigando pelo Ministério Público

mesmo, minimamente estamos. [e a polícia neste processo?] Na verdade ela não está

participando. [ela está omissa?] É, está omissa.” (entrevista – informante D – MPF).

Em outra situação, sugere uma maior capacitação de policiais federais para lidar com

estes conflitos, assim como um maior efetivo:

“A nossa dificuldade no Brasil, infelizmente, continua sendo na aplicação da lei. Nós temos uma dificuldade tremenda disso, seja por falta de capacitação dos policiais, seja por, às vezes, insuficiência de policiais no número adequado para fazer frente a estas questões, seja por muitas vezes a morosidade entre o início de uma investigação e a sua conclusão – o que faz operar muitas vezes causa de prescrição.” (informante D – MPF).

Em relação ao segundo subfator, a comunicação interinstitucional, apenas

recentemente ela passou a ser mais efetiva. Ao falar sobre as poucas denúncias, “D”

afirma que: “a possibilidade de ajuizar ações criminais começou em março de 2003,

quando nós passamos a receber esta documentação (do Grupo Executivo). Então a

partir daí você pode começar a calcular a velocidade da atuação [do MPF].”. E

comenta, na seqüência, a situação atual:

“(...) na minha opinião, nós tivemos um incremento muito significativo, não só...: 1º) do fato que agora somos notificados regularmente [na seqüência se referiu a denúncias envolvendo políticos, nas quais o material tinha ficado ‘preso’ em algum lugar]; 2º) a possibilidade da gente pensar se houve em algum momento controle político das informações; 3º) nós estamos conseguindo colher provas, investigando pelo Ministério Público mesmo...” (entrevista – informante D – MPF).

53

E finalmente os fatores de ordem prática. Nesta categoria procurei colocar aqueles

fatores que se dão na relação do jurídico com o empírico, com os elementos que circundam

o evento em questão. Refiro-me, portanto, a questões como o desaparecimento dos “gatos”

(que em geral são réus nestas denúncias – os “fulano de Tal”, Anexo 3), a impossibilidade

de localizar ex-escravos e arrolar testemunhas etc. O informante “E” ao relatar a situação

na qual encontrou a procuradoria de Marabá no final dos anos 90 atribui a estes fatores um

dos empecilhos em seguir o caminho da justiça criminal.

“A maior parte (dos processos e inquéritos) [estavam] fadados à prescrição. Por que? Eram denunciados esses gatos, que quase sempre desapareciam, normalmente não havia a presença do réu durante o curso do processo e do inquérito policial. As testemunhas, tanto na parte do inquérito quanto da ação penal, eram os próprios trabalhadores. É importante o depoimento da vítima, mas no caso do trabalho escravo, após a fiscalização com a rescisão do contrato de trabalho, eles voltam para o seu local de origem ou vão parar em outra fazenda e dificilmente eles são localizados.” (informante E – MPF).

Durante alguns anos isso dificultou o oferecimento de denúncias e favoreceu a

prescrição; hoje isso se encontra mais ou menos resolvido, sobretudo em relação às

testemunhas, pois agora são arrolados os fiscais. Foi com este procedimento58 que “E”

conseguiu uma sentença condenatória, uma das únicas – ela foi convertida no

pagamento de cestas básicas (ver nota 59 a seguir).

Enfim, iniciei abordando as práticas do MPF pelas dificuldades encontradas,

problemas da ordem da criminalização, criminação, e incriminação. Relatadas estas

questões, torna-se necessário abordar suas práticas, a persecução criminal, o movimento de

criminação-incriminação. É claro que, ao pontuar, tais dificuldades de alguma forma já se

adiantou algumas destas práticas, mas é importante abordá-las mais especificamente.

Dado o que está criminalizado, (artigo 149 do Código Penal), “reduzir alguém à

condição análoga a de escravo” atrelado ao aspecto “trabalho” e com pena de 2 a 8 anos,

as estratégias para o ajuizamento de denúncias vão incidir basicamente em três aspectos:

1) associação do crime do artigo 149 com outros crimes; 2) responsabilização dos

proprietários; e 3) arrolamento de testemunhas. Obviamente estou em uma perspectiva

limitada à ação do MPF; ou seja, supõe-se que a questão da competência já esteja

resolvida (na prática está, mesmo sem a posição do STF sobre o RE Nr. 398041) e que as 58 “Aí eu denunciei quatro fazendas na época, em que em algumas eu responsabilizei o fazendeiro sozinho e em outras conjuntamente com alguns gatos, e arrolei como testemunhas os fiscais que tinham participado das

54

demais instituições envolvidas na administração destes conflitos estejam notificando os

eventos registrados junto ao MPF (o que desde 2003 ocorre regularmente).

Associar o crime do artigo 149 do Código Penal com outros é até simples, já

que, como anunciado acima, a redação nova superpõe o artigo 149 com as condutas

definidas em alguns dos artigos que enunciam os crimes contra a ordem do trabalho

(em especial os artigos 197 e 207); ou seja, em si o artigo 149 é associado a outros

crimes. Além disso, não é difícil encontrar no evento em questão outras condutas

crimináveis que não são necessariamente associadas ao trabalho, tais como: lesão

corporal (artigo 129), cárcere privado (artigo 148), formação de quadrilha (artigo 288),

crimes ambientais diversos etc. No entanto, este movimento mais elementar de associar

o artigo 149 com os chamados crimes contra a ordem do trabalho não possui utilidade

alguma – já que o artigo 149 absorve os demais crimes por ser considerado mais

grave59. Resta, portanto, ao MPF tentar associá-lo aos outros crimes descritos, através

de uma melhor investigação ou caracterização do evento60; sendo o inquérito da Polícia

Federal de suma importância neste sentido.

A responsabilização dos proprietários tem sido bastante usada como estratégia

de incriminação, sob o argumento que são os beneficiários da exploração da força de

trabalho e que mantém sempre algum contato com a propriedade (visitas mensais, por

exemplo); tendo, portanto, algum grau de ciência do que ocorre. Em geral esta tese é

bem aceita nos tribunais e, com isso, contorna-se o problema dos corporate crimes.

“Para o Ministério Público Federal, a princípio, o autor do crime tem sido compreendido na pessoa do empregador rural. Porque é o proprietário do imóvel rural que é responsável pelo o que ocorre em seus domínios. Muitos têm plena consciência que os trabalhadores permanecem trabalhando sem receber ou recebendo parte da remuneração porque entendem que estes trabalhadores lhe devem mesmo em razão da alimentação que é contraída no local de trabalho. (...) Então a gente não pode dissociar a figura do empregador rural de sua responsabilidade criminal, mesmo quando ele se utiliza de um terceiro [administradores e/ou gatos] (...) para fraudar a legislação trabalhista e submeter

operações e não mais os trabalhadores. E, com isso, em seis meses realmente houve a primeira sentença condenatória de um fazendeiro sozinho pelo crime de trabalho escravo” (informante E – MPF). 59 “Na época, o juiz federal de Marabá (...) entendeu que todos os outros crimes contra a organização do trabalho eram o meio para a prática do crime de trabalho escravo. Ele utilizou-se de um princípio penal comum na aplicação da pena e fez com que o crime de trabalho escravo absorvesse os outros crimes por ser o crime mais grave. E foi aplicada apenas a pena do crime de trabalho escravo, que é pequena, 2 anos, o fazendeiro tinha a folha de antecedentes criminais limpa, logo ele teve direito a pena alternativa.” (informante E – MPF) 60 “Nós adotamos a estratégia de denunciar não mais apenas pelo crime do artigo 149, mas aprofundar esta investigação e também denunciar pela prática, sobretudo, do crime de quadrilha – porque isso é o nefasto desta história.” (informante D – MPF)

55

seus empregados a trabalhos forçados, pois toda a atividade lucrativa é dele.” (informante E – MPF).

E em relação às testemunhas, o já referido arrolamento dos fiscais envolvidos

foi um grande fator de mudança e, inclusive, possibilitou a primeira e única sentença

existente. O que acontecia antes era que as testemunham desapareciam ao longo do

processo, e quando encontradas, muitas vezes temiam o depoimento e/ou não queriam

testemunhar contra; isto não ocorria só por conta da outra parte envolvida (“gatos” e

proprietários), mas também devido à relação que aquelas pessoas “humildes” tinham (e

têm) com o judiciário.61

“Ninguém melhor do que os próprios fiscais para esclarecer ao juiz da causa como aqueles trabalhadores estão sendo enganados naquele caso concreto, quais os direitos deles que estão sendo desrespeitados, e eles se encontram também menos sujeitos a serem desmoralizados pelos advogados da defesa (...). Os fiscais estão melhor preparados para este confronto.” (informante E – MPF).

Através de mudanças ocorridas nos últimos anos e da utilização destas medidas

em conjunto, é que foi possível promover estas, ainda poucas, persecuções criminais –

25 denúncias, envolvendo 116 pessoas. No entanto, vale ressaltar que “só em 1 ano foi

feito o que não foi feito durante muito tempo” (informante A – MTE). Somente na

atual conjuntura, política e jurídica, é que foi possível chegar ao atual estágio de

administração destes conflitos e adoção de medidas de controle destes ilegalismos,

utilizando-se, inclusive, dos recursos penais.

61 A tese de Ricardo Rezende Figueira, recentemente publicada (2004), é bastante elucidativa neste sentido ao abordar a questão da escravidão por dívida. O trabalhador pode não se perceber na condição de escravo, ele não pode sair porque tem uma dívida e ela deve ser honrada. Os informantes “E” e “B” comentaram esta situação, falando que os advogados de defesa usavam o argumento da dívida para, de certa forma, coagir os trabalhadores a negarem a situação escravista.

56

Parte III

Gestão diferencial e controle social

“João, não se deve fazer uma igualdade jurídica a partir da punição... Quando penso nestes casos, creio que é muito melhor soltar todo mundo do que mandar prender também os poderosos... Isso não é controle...”

Daniel dos Santos (Um café no ICHF/UFF)

57

Capítulo V

Hipóteses sobre o movimento de descriminalização

Observamos, de forma inventariada, as diferentes maneiras de se administrar

juridicamente o ilegalismo de trabalho escravo, apresentando dados que ajudam a

visualizar distorções no tipo de tratamento dentro e entre os diferentes sistemas

normativos. O que chamo de movimento de descriminalização é o conjunto de

dificuldades e impedimentos existentes na aplicação da lei penal que impulsionam e

propiciam a administração do conflito em outras vias de resolução que não a penal. O

movimento de descriminalização engloba tanto a criminalização como a criminação e a

incriminação; aliás, trata-se muito mais de um movimento de não criminar-incriminar,

pois apesar de ocorrer no caso estudado, a incidência direta na norma (diminuir o

espectro da lei) é algo raro.

Estes movimentos de descriminalização só são possíveis na gestão dos conflitos

atrelados aos chamados ilegalismos privilegiados, conceito que Fernando Acosta define

da seguinte maneira:

“Chamo de ilegalismos privilegiados ao conjunto de qualificações jurídicas aplicáveis às situações conflituosas, por vezes muito diversas, que apresentam as três características seguintes: i) no plano jurídico: a apreensão dos conflitos pode ser feita à luz de diferentes sistemas normativos, notadamente o direito civil e, muito particularmente, o direito administrativo, além do direito penal. É, portanto da natureza desses ilegalismos, como já sugeri em outros termos, poderem inserir-se em mais de um registro jurídico de cada vez, sendo assim passíveis de mais de um tipo de qualificação à luz do direito positivo. ii) no plano dos eventos: os eventos constitutivos dessas situações conflituosas guardam uma indiscutível homologia com aqueles cuja qualificação jurídica e eventual resolução são de competência exclusiva do direito penal. (...). iii) no plano das práticas de resolução dos conflitos: as situações conflituosas dispõem, em princípio de um amplo leque de modos de resolução (acordos amigáveis advertências, sanções disciplinares, multas administrativas, reparações cíveis, sanções penais de caráter simbólico, etc.). A utilização efetiva de um modo de resolução de conflito e não de outro depende de diversos fatores que variam consideravelmente em função do tipo de situação em jogo e do contexto no qual elas se produzem (...). É essencialmente em razão dessa ampla disponibilidade de

58

modos de resolução e, igualmente, da extrema complexidade que parece caracterizar a dinâmica de sua operação que eu qualifico de privilegiados os ilegalismos em questão.” (Acosta, 2005, p.71)

É de fato disso que estamos tratando neste trabalho. Só é, portanto, passível de

um movimento de descriminalização aquilo que está colocado polissemicamente no

ordenamento jurídico.

A racionalidade que em parte orienta este movimento está dada logo no início

deste trabalho e ratificada nas formas de lidar com o conflito. O Plano é de Erradicação

do Trabalho Escravo, isto é muito significativo, ainda mais quando se percebe que se

trata também de um projeto político que almeja resultados em pequeno e médio prazos.

A idéia expressa no Plano é no sentido de se erradicar logo o trabalho escravo – dentro

dos quatro anos de mandato preferivelmente. Erradicar em pouco tempo é algo inviável

de ser realizado em um sistema normativo criminal, em especial na maneira como ele

se apresenta no Brasil de hoje. Sobretudo quando o ilegalismo em questão é percebido

pelos atores responsáveis por administrar o conflito como uma atividade que visa uma

maior lucratividade e que só se consuma porque o Estado se encontra ausente no locus

dos eventos.

O discurso que surge entre os atores é o do crime como uma oportunidade:

comete-se o crime porque existe facilidade de se obter mão-de-obra escrava, os fatores

de risco são baixos e as benesses são altas; e tudo isso é associado à ausência do

Estado. “Longe dos centros urbanos muitos proprietários rurais apostam na ineficiente

fiscalização da administração pública e disso se aproveita” (informante E – MPF).

Então, como erradicar? Parece receita de bolo: a fórmula mágica é levar o

Estado de maneira preventiva e normativa a fim de se diminuir a facilidade de se obter

a mão-de-obra (programas sociais em geral) e aumentar os fatores de risco (maior

fiscalização e sanções que visam inviabilizar esta atividade econômica), colocando em

cheque as possíveis benesses que passam a não compensar os riscos em jogo. A

racionalidade é toda econômica, os atores do Estado supõem (e, com isso, assumem a

postura de) que o crime é praticado dentro da lógica da oportunidade e da escolha

racional (com fins essencialmente econômicos); a partir daí a administração do conflito

é regida com os mesmos parâmetros:

“(...) muitos deles são reincidentes de dez vezes, de nove vezes, de oito vezes, sete vezes, são pessoas que tem fazendas modelos perto das grandes cidades do sul do Pará, tem pista de pouso em sua fazenda, que recebe políticos,

59

promovem grandes festas. Mas lá em São Félix do Xingu eles têm fazenda com trabalho escravo, aproveitando a ausência do Estado, aproveitando a ausência das instituições republicanas, (que na verdade é disso que se trata). O trabalho escravo é fruto da ausência das instituições do Estado, do Estado de Direito, são pessoas que se aproveitam da ausência do Estado de Direito. Portanto, para combater de uma forma definitiva e consistente, é preciso levar as instituições republicanas a todos os lugares, sobretudo a estes, onde é praticado o trabalho escravo.” (Ministro Nilmário Miranda, idem, ibdem).

E isso funciona? Sim, funciona, mesmo sem criminar-incriminar. Aliás, como já

vimos, a administração da justiça criminal é, hoje, praticamente incapaz de elevar os

fatores de risco.62 A força do Penal, enquanto um sistema normativo que aumenta o risco

para os infratores, é fundada nos princípios da vigilância e da punição. Nestes dois quesitos

a justiça criminal perde em eficiência quando comparado com a atuação da SIT/MTE, o

impacto da presença dos auditores fiscais e da lista suja é muito maior. Se os objetivos são

ações imediatas e erradicação do trabalho escravo a curto e médio prazo, a saída possível é

o movimento de descriminalização mesmo – os outros sistemas normativos são muito mais

eficientes para administrar este conflito do que a justiça criminal.

E não se trata aqui de propor o aumento da pena, pois a pena, em si, é um dos

fatores que menos influi no ajuizamento de denúncias e nas condenações criminais. Isto

sem contar que o aprisionamento não significa um maior controle e quanto mais o aumento

dos fatores de risco. Da mesma forma, aumentar o efetivo policial também parece não

suscitar tantos efeitos, uma vez que até o momento a polícia federal cumpre mais uma

função de escolta dos seus parceiros de Grupo Móvel do que suas atribuições judiciárias. O

problema não é a pena e/ou o efetivo, mas o Penal: a sua falência enquanto instrumento de

administração de conflitos e de controle social, sobretudo para o caso estudado.

Estas considerações suscitam uma outra questão, que diz respeito à disposição

de diferentes sistemas normativos de controle social em nossa sociedade e aponta para

dilemas dos direitos de cidadania, ordem pública e acesso à justiça no Brasil. Os dados

da pesquisa não se reduzem à temática do trabalho escravo e da impunidade penal uma

vez que as ações das instituições jurídico-políticas sobre o mercado permitem pensar

alternativas civilizatórias em tempos de Estado mínimo.

62 A única sentença obtida só aconteceu porque o fazendeiro aceitou a pena alternativa (pagamento de cestas básicas) e não recorreu, o MPF também aceitou porque temia a mudança da sentença no Tribunal Regional Federal. Depois ele foi reincidente e condenado a 4 anos em primeira instância, recorreu e o Tribunal mudou a sentença alegando que a competência era estadual. O MPF recorreu e hoje o caso está no Supremo (trata-se exatamente do já referido RE Nr.398041 ainda a ser julgado) – dados do informante “E”, MPF, participante do processo inicial. Isso sem contar tudo o que fora descrito na seção sobre “a criminação-incriminação através do artigo 149”; a pena baixa é o de menos, há inúmeros outros fatores.

60

Controle social e punição são coisas distintas, apesar de, geralmente, serem

pensados em conjunto. A idéia de controle social, e ordem, é essencial para as

sociedades modernas. Ela tem a ver com a civilidade e com a continuidade da vida

social, seja através da domesticação dos corpos, do asceticismo, da introjeção da

norma, do autocontrole etc63. As instituições de controle estão presentes de forma

variada nas sociedades modernas e nem sempre elas são jurídicas – vide a escola,

hospitais etc. Aliás, em geral a atuação dos sistemas normativos como forma de

controle social fogem à regra. Eles são mobilizados em momentos de ausência de

autocontrole ou para garantir, através da explicitação de regras, a continuidade de um

dado padrão de civilidade.

O Penal, em tese, atua com um sistema de controle de maior exceção ainda, até

mesmo devido aos seus excessos. Ele é acionado quando os outros sistemas normativos

e instituições disciplinares não funcionaram, o que é incomum, a sua justificativa é uma

disciplinarização mais radical, ou o seqüestro dos desviantes (e/ou dos indesejados). No

entanto, o fato dele ser um instrumento de controle para situações de exceção, não

impede que na prática ele esteja disponível, quase que exclusivamente como regra, para

parcelas determinadas da população e com uma lógica simplesmente punitiva. Muitas

vezes é o único sistema normativo disponível, ele nem sequer controla ou disciplina. A

preocupação já não é mais a da manutenção de uma pretensa ordem jurídica, mas de uma

estratégia de contenção de demandas sociais, onde se limita o acesso aos bens jurídicos; a

lógica que impera não é a do (auto)controle, e sim a da punição, da limpeza, da exclusão

(Young, 1999; Wacquant, 2001).

Uma derivação da questão geral colocada acima, “como estão dispostos os

diferentes sistemas normativos de controle social em nossa sociedade?”, para a

especificidade deste estudo seria a indagação: por que os outros sistemas normativos

funcionam e a justiça criminal não? Ora, o que se procurou argumentar ao longo deste

trabalho foi que na própria justiça criminal estão as condições de possibilidade da

impunidade e da sua não capacidade de controle. É nela mesma (no Código Penal, no

Código de Processo Penal e em outras especificidades do campo) que se encontra a

impossibilidade de administrar uma série de conflitos ligados aos ilegalismos das elites,

à criminalidade dos poderosos.

63 Ver em especial os trabalhos de Elias (1993) e Foucault (1995, 1997, 1999a, 1999b).

61

Em uma tradição onde a efetividade dos direitos civis é problemática, e a justiça

criminal possui dificuldades concretas em disciplinar e exercer controle, o movimento

de descriminalização pode se apresentar como uma estratégia eficaz não só de

administração de conflitos, mas também de acesso à justiça, incorporando parcelas da

população que em geral estão restritas a normas punitivas que não educam em prol de

um autocontrole. O acesso à justiça no Brasil é desigual não por bruxaria, uma

fatalidade do destino ou coisa parecida, mas porque historicamente as relações entre

Estado e jurisdicionados se constituíram desta maneira64. No mesmo sentido, alguns

aspectos culturais também devem ser destacados; sobretudo, no que tange às

concepções de subjetividade e de ordem pública envolvidas65.

O tratamento jurídico dado ao trabalho escravo e as formas cíveis de controle

social em jogo não são descoladas da realidade e nem se encontram em um vazio

sociológico. A exposição de alguns destes aspectos histórico-culturais podem tanto

fornecer subsídios para um melhor o entendimento desta múltipla disponibilidade de

instrumentos normativos que alguns tipos penais possuem66, como potencializar a

discussão em torno do movimento de descriminalização como forma de controle e de

direito à justiça67. Este argumento é desenvolvido em duas partes: primeiro, do ponto

de vista sócio-antropológico, ele se fundamenta nas subjetividades em jogo no par

indivíduo/pessoa e nas concepções de ordem pública daí derivadas; e segundo, do

ponto de vista histórico, ele remete à historicidade dos direitos de cidadania e à

constituição de uma cultura jurídica punitiva de base não republicana no Brasil.

A individualidade subjetiva não é necessariamente equivalente à idéia de

indivíduo. Indivíduo é um tipo particular de subjetividade individual que reedifica, 64 Como podemos perceber nos estudos de José Murilo de Carvalho (1996, 2002), Wanderley Guilherme dos Santos (1979), Maria Stella Amorim (2003), Stuart B. Schwartz (1979) e outros sobre a constituição do Estado brasileiro e heranças ainda presentes de uma ordem imperial. 65 Roberto Da Matta (1985, 1990), Louis Dumont (1993, 1997, 2000) e Roberto Kant de Lima (1999, 2000, 2004). 66 Em geral este “privilégio” se concentra nos tipos que processa em contextos pessoais e associados a uma criminalidade não-violenta. Estes crimes são mais elaborados e necessitam de condições de possibilidade que vão além do o uso da força. Eles mobilizam determinados recursos que não são disponíveis para as camadas populares, e, por isso, se concentram nas classes mais altas. 67 Trabalho esta noção a partir das considerações clássicas de Thomas Humphrey Marshall sobre cidadania: “(...) pretendo dividir o conceito de cidadania em três partes. (...). Chamarei estas três partes, ou elementos, de civil, política e social. O elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito a propriedade e de concluir contratos válidos e o direito a justiça. Este último difere dos outros porque é o direito de defender e afirmar todos os direitos em termos de igualdade com os outros e pelo devido

62

dentre outras coisas, a noção de indivíduo biológico empiricamente dado. Trata-se de

um certo padrão de subjetividade que se torna mais hegemônico na chamada

modernidade.

Neste sentido, Da Matta resume muito bem as considerações de Dumont:

“Sabemos que não há formação social humana sem o indivíduo. Mas entre reconhecer a existência empírica do indivíduo e surpreendê-lo como uma unidade social relevante e ativa numa formação social, capaz de gerar os ideais concomitantes de individualismo e igualitarismo, é um fato social e histórico, objetivamente dado, produto do desenvolvimento de uma formação social específica: a civilização ocidental. É só nesta civilização que a idéia de indivíduo foi apropriada ideologicamente, sendo construída a ideologia do indivíduo como centro e foco do universo social.” (Da Matta, 1990, p. 180-181).

O indivíduo possui um conjunto de características e valores derivados de um

processo histórico-cultural atrelado ao desenvolvimento do modelo burguês de

sociedade. O ator social enquanto agente reflexivo e dotado de direitos é fruto desta

tradição que segue os ditames do liberalismo político e econômico. Não pretendo

fornecer de forma específica uma definição de indivíduo, mas apenas reafirmar

algumas idéias gerais: um ente único e diverso, particular e universal, ao mesmo tempo

diferente e igual, um ente dotado de direitos e de poder (capacidade de intervenção na

realidade), de uma consciência individual, e que é centro e foco do universo social.

“Uma outra vertente importante do indivíduo natural ou empiricamente dado é a elaboração de seu pólo social. Aqui, a vertente desenvolvida pela ideologia não é mais a da igualdade paralela de todos, mas a da complementaridade de cada um para formar uma totalidade que só pode ser constituída quando se tem todas as partes. Em vez de termos a sociedade contida no indivíduo, temos o oposto: o indivíduo contido e imerso na sociedade. É essa vertente que corresponde a noção de pessoa como a entidade capaz de remeter ao todo, e não mais à unidade, e ainda como o elemento básico através do qual se cristalizam relações essenciais e complementares do universo social. Como se observa, as duas noções são básicas, e ambas são largamente utilizadas em todas as sociedades humanas. Ocorre apenas que a noção de indivíduo enquanto unidade isolada e autocontida foi desenvolvida no Ocidente, ao passo que nas sociedades holísticas, hierarquizantes e tradicionais, a noção de pessoa é dominante. Mas – e esse ponto é importante – as duas noções estão sempre presentes, e de fato existe uma dialética entre elas.” (Da Matta, 1990, p. 182).

A idéia de pessoa não só desequalisa, mas hierarquiza ao colocar, de maneira

segmentada, o complementar preso à totalidade social. O não indivíduo, pensado em

encaminhamento processual. Isto nos mostra que as instituições mais intimamente associadas com os direitos civis são os tribunais de justiça.” (Marshall, 1967, p. 63-64)

63

termos de pessoa, pode variar tanto para cima, como para baixo do igualitário. Sua

inserção na ordem social pode ser dar por baixo ou por cima da regra geral, a lei, que se

supõe ser válida universalmente para todos aqueles considerados iguais. Estas noções,

indivíduo e pessoa, são concomitantes e de certa forma antagônicas. Em geral, elas

possuem espaços distintos de operacionalidade em uma dada sociedade; e que são

explícitos (por exemplo: o público e o privado, o doméstico e o impessoal etc.). As

regras são dadas, sabemos como operar nestes diferentes espaços. O problema se dá

quando estas noções se superpõem no espaço público de uma forma não explícita, ou

melhor, quando se explicita uma delas como regra e se opera com ambas.

O modelo de ordem burguesa, que Dumont denomina estratificação e Kant de

Lima de hierarquias includentes, trabalha com uma idéia de diferença associada à

igualdade (indivíduo). A desigualdade se dá no mercado, ela não está posta do ponto de

vista nominal, jurídico, mas se manifesta a partir da ação individual no mercado. Neste

sentido, um modelo holístico na civilização ocidental é um retrocesso, dada sua

concepção de ordem pautada em uma hierarquia estamental de parâmetros análogos aos

do Antigo Regime. A desigualdade jurídica limita, por definição, a capacidade de ação

de indivíduo no mercado, uns podem mais do que outros. Esta concepção de hierarquia

excludente de forma alguma equaliza o mercado e acaba reproduzindo desigualdades

para além das do mercado – não se trata de mais de classe social, uma hierarquia

dinâmica, e sim de status. Os ilegalismos associados ao escravismo não são cometidos

por elites, e sim por aristocracias.

“Em uma dessas concepções de ordem – a das hierarquias excludentes –, a idéia de conflito aparece, em primeiro lugar, como desarrumação da ordem, como um princípio de desordem, que põe em risco a totalidade da estrutura social. Esta é concebida aqui como um sólido edifício de arcabouço previamente dado, como um rol de componentes diferentes e desiguais, mas fixos e complementares. A diferença é associada à idéia de posições existentes na estrutura social, que são “natural” e inevitavelmente desiguais: essa estrutura, para ser mantida, depende da manutenção de tal desigualdade, da mesma relação entre os elementos diferentes desiguais. A resolução do conflito não é a solução das desigualdades que incomodam, mas a sua manutenção, ordenadamente. A idéia de igualdade é associada à semelhança dos pares; a de diferença, à de desigualdade substantiva entre as pessoas. A formula para administrar o conflito é ou a conciliação ou a punição das partes nele envolvidas.

Em uma outra – a das hierarquias includentes –, o significado do conflito, ao contrário, é o de pressuposto necessário para a ordem social. A sociedade se imagina como constituída de elementos substancialmente diferentes, mas formalmente iguais e, portanto, opostos, móveis e intercambiáveis em inúmeras combinações possíveis: os chamados ‘indivíduos’ (individuals). Dessa forma, os conflitos de interesses são absolutamente inevitáveis, quase naturais. A resolução

64

dos conflitos é a construção de uma nova ordem que elimina as desigualdades, mantendo as diferenças. A diferença, aqui, é associada à idéia de igualdade formal, ao direito de ser diferente.” (Kant de Lima, 2000, p. 117)

A superposição dos modelos hierárquico e igualitário no espaço público

proposta por Da Matta, e de uma maneira mais elaborada para o campo jurídico, por

Kant de Lima relaciona-se diretamente à historicidade da cidadania uma vez que

apontam para dilemas na superação de uma concepção de ordem típica do Antigo

Regime e na efetividade de instituições jurídicas republicanas.

Para Marshall a cidadania plena deve ser entendida como uma totalidade composta

por três elementos: direitos civis, políticos e sociais68, mesmo que nem sempre eles

estejam presentes e/ou disponíveis em sua plenitude. Em seu entendimento há uma

seqüência lógica entre tais elementos e que para o caso por ele estudado, a Inglaterra,

também é histórica69. A lógica da seqüência: civil, político e social, está fundada em

dois princípios. Primeiro, nas condições de possibilidade destes direitos e sua

complementaridade ao se trabalhar em uma perspectiva individual. Faz sentido em

primeiro se conquistar os direitos civis para se ter garantias frente ao Estado e poder

lutar por direitos políticos, que permite a prática necessária para a concretização dos

direitos sociais. E, segundo, no próprio processo histórico de superação do Antigo

Regime por uma ordem republicana (e burguesa).

Estas considerações são importantes porque é exatamente o ponto enfatizado por

historiadores e brasilianistas: tais direitos se constituíram historicamente de uma

maneira diferente, o que resulta em um modelo de cidadania que não opera na mesma

lógica. Aliás, o que nossa historiografia nos mostra é que aqui o movimento foi

completamente outro:

“Aqui não se aplica o modelo inglês. Ele nos serve apenas para comparar por contraste. Para dizer logo, houve no Brasil pelo menos duas diferenças importantes. A primeira refere-se à maior ênfase em um dos direitos, o social, em relação aos outros. A segunda refere-se à alteração na seqüência em que os direitos foram

68 E ele continua: “Por elemento político se deve entender o direito de participar no exercício do poder político, como um membro de um organismo investido de autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo. As instituições correspondentes são o parlamento e conselhos do Governo local. O elemento social se refere a tudo que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, da herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade. As instituições mais intimamente ligadas com ele são o sistema educacional e os serviços sociais.” (Marshall, 1967, pp. 63-64). 69 Marshall não afirma que tal seqüência é lógica e histórica, sugerindo um certo evolucionismo. Ele explica porque ela é lógica e que para a Inglaterra ela também é histórica.

65

adquiridos: entre nós o social precedeu os outros. Como havia lógica na seqüência inglesa, uma alteração dessa lógica afeta a natureza da cidadania. Quando falamos de um cidadão inglês, ou norte-americano, e de um cidadão brasileiro, não estamos falando exatamente da mesma coisa.” (Carvalho, 2002, pp. 12-13)

O termo “conquistados” encontra-se, de certa forma, ausente em nosso processo

histórico e está articulado, dentre outras coisas, à referida alteração da seqüência. Antes

de terem se constituído os direitos civis elementares (igualdade jurídica, liberdade de

contrato e até mesmo a propriedade), alg

66

civis iguais para todos e essencialmente protetivos do cidadão, tal como integram o paradigma do Estado de Direito oriundo do século XVIII.

Com razão, alguns de nossos estudiosos apontam no Brasil, a presença de um Estado patrimonialista, situação própria de uma sociedade marcada por privilégios estruturados em desigualdades jurídicas, como as existentes no Antigo Regime europeu (...).” (Amorim, 2003, p. 212-213)

O acesso à justiça pressupõe um direito à justiça, este pressupõe o elemento

civil da cidadania (e suas respectivas instituições), que por sua vez é impensável sem a

idéia de indivíduo. Acesso à justiça não é apenas a resolução do litígio, mas a

administração do conflito em instituição jurídica, legitimamente reconhecida pela

coletividade, sendo as partes envolvidas iguais enquanto entes dotados de direito. A lei

republicana vale para iguais, ela vale para os indivíduos. A nossa tradição histórico-

cultural deixou traços que ainda se fazem presentes nos dias de hoje. A oscilação entre

indivíduo e pessoa no espaço público, e a superposição de concepções de ordem

públicas paradoxais, são alguns deles. E configuram uma real possibilidade da

utilização de vias para-jurídicas de administração de conflitos (percebidas como

legítimas), da inserção diferenciada no conjunto de sistemas normativos presentes no

ordenamento jurídico, e em alguns casos no uso personalizado da regra da lei (seja sob

a ótica da punição ou através da reificação de privilégios) – até mesmo porque eles

encontram guarida em normas, procedimentos e práticas jurídicas atuais.71

A desigualdade de tratamento dado aos conflitos rurais hoje no Brasil – onde

temos situações nas quais os proprietários de terra, em geral, não são criminados-

incriminados por cometerem certos ilegalismos privilegiados e certos movimentos

sociais (o MST, por exemplo) o são, por danos (e formação de quadrilha), quando da

ocupação de propriedades alheias –, revelam a insuficiência dialógica do presente

modelo. Uma igualdade não punitiva é muito mais preferível ao seu outro lado punitivo

perverso, com sua bizarra ilusão de pacifismo. Gestão violenta e aprisionamento não irão

resolver um problema, nem o outro; e muito menos “levar paz ao campo”.

Não pretendo, de forma alguma, propor uma espécie de igualdade punitiva, algo

como um “Estado Penal” (Wacquant: 2001) mais igualitário. Muito pelo contrário, pois

uma das coisas que procuro mostrar neste estudo é o fato de que as estratégias de

controle social dos sistemas normativos cíveis são mais eficientes do que o sistema

criminal, pelo menos para o ilegalismo em questão. Se esse raciocínio pode vir a ser

71 É bastante ilustrativo neste sentido os trabalhos de Regina Lucia Teixeira Mendes da Fonseca (2003, 2004) sobre igualdade jurídica.

67

estendido a outros crimes é uma outra questão; porém, certamente, há formas mais

eficazes de se gerir democraticamente os conflitos no espaço público do que a solução

penal geralmente adotada.

Isto não quer dizer necessariamente que os sistemas cíveis trabalhem numa lógica

mais igualitária, não punitiva, centrada do indivíduo ou coisa do gênero. A idéia que se

apresenta é que quanto mais opções de entrada nas instituições jurídicas melhor, a

capacidade de realização de escolhas faz parte do exercício da cidadania. Esta é a lição

das relações entre crime e mercado: quem controla os excessos do econômico não é o

penal, ele é uma exceção enquanto sistema normativo e não controla estes ilegalismos.

A repressão não é a única forma de controle social possível. Do mesmo modo,

nenhuma concepção de cidadania se sustenta em um contexto onde a solução penal é a

forma de acesso à justiça de uma boa parte da população, quiçá a maior. Para além do

movimento de criminalização de condutas, o movimento de descriminalização pode ser

muito mais propício a ser utilizado como uma estratégia de controle de ilegalismos,

sejam eles privilegiados ou não. A disponibilidade de normas não punitivas são mais

suscetíveis ao aprendizado, e, com isso, permite uma maior possibilidade de adesão por

parte dos jurisdicionados. Neste sentido, a existência de opções ao penal previne, ao

contrário do que pregam as correntes hegemônicas da área de segurança pública e

controle social, uma vez que promove civilidade via normalização e autocontrole.

68

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73

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74

ANEXO 1: Mapas FFlluuxxooss ddee ttrraabbaallhhaaddoorreess ddoo PPiiaauuíí ee ddoo MMaattoo GGrroossssoo aaoo ssuull ee ssuuddeessttee ddoo PPaarráá

Fonte: Figueira, 2004, p. 96.

75

FFlluuxxooss ddee ttrraabbaallhhaaddoorreess ddoo PPiiaauuíí ee ddoo MMaattoo GGrroossssoo aaoo PPaarráá

ppoorr mmeeiioo ddee ffeerrrroovviiaa ee rrooddoovviiaa

Fonte: Figueira, 2004, p. 97.

76

FFlluuxxooss ddee ttrraabbaallhhaaddoorreess ddoo PPiiaauuíí ee ddoo MMaattoo GGrroossssoo aaoo PPaarráá

ppoorr mmeeiioo ddaa rrooddoovviiaa

Fonte: Figueira, 2004, p. 98.

77

ANEXO 2: Listas Sujas

1ª LISTA SUJA – divulgada pelo MTE em 18/11/2003

Empregador Localidade Trabalhadores Libertados

Destilaria Gameleira Fazenda Gameleira, MT 318 pessoas Açaí Florestal Ltda Fazenda Medalha, MA 265 pessoas Agropecuária Carajás Ltda Fazenda Primavera, PA 248 pessoas Agro Industrial Nova Aurora Ltda Fazenda Nova Aurora, MA 203 pessoas Agropec São Pedro S.A Fazenda São Pedro, PA 186 pessoas André Mitsuo Igarashi Fazenda Igarashi, MA 168 pessoas Fernando Luiz Quagliato Fazenda Rio Vermelho, PA 167 pessoas Senor Ltda Fazenda Senor, PA 153 pessoas José Coelho Vitor Fazenda Santa Lúcia, PA 133 pessoas Sebastião Doujas Xavier Fazenda Santa Luzia, MT 129 pessoas ATS Serviços Ltda ME Fazenda Tuerê, PA 127 pessoas Agropecuária Umuarama Ltda Fazenda Santa Fé, PA 118 pessoas Edmilson José Cesílio Agropecuária Progresso Agropol, MT 98 pessoas Jairo de Andrade Fazenda Forkilha, PA 97 pessoas Márcio Carvalho Ribeiro Fazenda Primavera, PA 97 pessoas José Vaz da Costa Fazenda N.S.Aparecida, PA 90 pessoas Vale Bonito Agro Pecuária S.A, PA PA 88 pessoas Florestal Maracaçumé Ltda Fazenda Entre Rios, MA 86 pessoas Roque Quagliato Fazenda Colorado, PA 81 pessoas Ediones Bannach Fazenda 5 Irmãos, PA 77 pessoas Marcus Ribeiro de Carvalho Fazenda Taguará, PA 77 pessoas Pedro Lopes Lima Fazenda Pai Eterno, PA 77 pessoas Wellington Francisco Rosa Fazenda Maranata, PA 76 pessoas Reinaldo José Zucatelli Fazenda Sol Nascente, PA 71 pessoas Miguel de Souza Rezende Fazenda Zonga, MA 70 pessoas Antônio das Graças Almeida Murta Fazenda Lagoinha, MA 65 pessoas Newton Cunha Lemos & Outros Fazenda Marapaí, PA 64 pessoas Carmo Guimarães Giffone Fazenda Acapulco, PA 62 pessoas Francisco Donato Linhares de Araújo PA 60 pessoas Lima Araújo Agropecuária Ltda Fazenda Estrela de Alagoas, AL 59 pessoas Inocêncio Gomes de Oliveira Fazenda Caraíbas, MA 56 pessoas Romualdo Alves Coleho Fazenda São Paulo, PA 55 pessoas Divino Andrade Vieira Fazenda Santa Luzia Tuerê II, PA 52 pessoas Aziz Mutran Neto Fazenda Mutamba, PA 48 pessoas Jorge Multran Exportação e Imp. Fazenda Castanhal Cabaceiras, PA 47 pessoas Humberto Rubens Cansanção Filho Fazenda Ouro Verde, PA 43 pessoas

(continuação)

78

Empregador Localidade Trab. Libert. Eutimo Lippaus Fazenda 1200 (Fazenda Boa Fé), PA 36 pessoas Gilberto Andrade MA 36 pessoas Sebastião Vieira Fazenda Gleba Porta do Amazonas, MT 35 pessoas Josemar da Costa Filho Fazenda Marcélia IV e V, MT 30 pessoas Jairo Carlos Borges Fazenda Ouro Preto, PA 27 pessoas Sandra Nancy de Souza Cunha Fazenda Buriti II, PA 27 pessoas Wilson Moreira Torres Fazenda Rio Lages, PA 27 pessoas Iolandes Bannach Fazenda e Irmãos, PA 26 pessoas Milton Alonso Fazenda Dona Francisca, PA 25 pessoas Constantino de Oliveira Guimarães Fazenda Colorado, PA 23 pessoas Pedro Castanheira de Oliveira Silva Fazenda Ribeirão Bonito, PA 23 pessoas José Humberto de Oliveira Fazenda Palmar, PA 20 pessoas Eurélio Piazza Faz. Diadema IV ou Faz. Surucucu, PA 18 pessoas José Gilberto Borges de Freitas Faz. Stº André Agropec. Fischer, MT 17 pessoas Miguel Vieira Messias Fazenda Boca Quente, PA 13 pessoas

Fonte: Secretaria de Inspeção do Trabalho/MTE e Secretaria Especial de Direitos Humanos.

2ª LISTA SUJA – divulgada pelo MTE em 26/07/2004 UF Nome do Empregador Trabalhadores LibertadosMA Adailto Dantas de Cerqueira 45 MA Agropecuária Vale do Mutum Ltda 44 MA Alcides Reinaldo Gava 18 MA Antônio das Graças Murta 48 MA João José de Oliveira 32 MA João Soares Filho Pessoa 20 MA Mauro Rossati 19 MA Max Neves Cangussu 19 MA Miguel de Souza Rezende 64 MA Olindo Chaves dos Santos 54 MG Reginaldo Freire Leite 24 MT Agropecuária Tupy S/A 69 MT Alcomat - Companhia Sucro Alcooleira de Mato Grosso S/A 78 MT Antenor Duarte do Valle 188 MT Antenor Santos Alves Junior 45 MT Ari Giongo 129 MT Carlos Neston Vasconcelos Bonfim Júnior 124

(continuação)

79

UF Nome do Empregador Trabalhadores LibertadosMT José Francisco de Morais 15 MT José Pupim 56 MT Maeda S/A Agroindustrial 135 MT Nélio Piva 7 MT Neuri Antonio Frozza 44 MT Osamu Yabuta e Outros 79 MT Pinesso Agropecuarista Ltda 52 MT Roberto Guidoni Sobrinho 17 MT Sandra Vilela de Freitas 14 MT Sidney Polato 49 RO Agropecuária Itauna LTDA. 11 RO Agropecuária Pimenta Bueno S/A 18 RO Osvaldo Marcelino de Mendonça 12 TO Joaquim Faria Daflon 23 TO Nivaldo Carlos Barbosa 13 PA Alvany Dias Santana 13 PA Antônio Barbosa de Melo 20 PA Antônio Luiz Fuchtel 169 PA Dalva Navarros 1 PA Evandro Liegie Chukuia Mutran 54 PA Geraldo Bernardino de Souza 14 PA Haroldo Vieira Passarinho 152 PA Jairo Carlos Borges 18 PA José Braz da Silva 10 PA José de Ribamar Oliveira 58 PA Lázaro José Veloso 3 PA Marcos Antônio Eleutério Neto 15 PA Pecuária Rio Largo LTDA. 54 PA Romar Divino Montes 15 PA Romualdo Alves Coelho 56 PA Valfredo Macedo da Costa 41 PA Yasuhide Watanabe 42

Fonte: Secretaria de Inspeção do Trabalho/MTE e Secretaria Especial de Direitos Humanos.

80

ANEXO 3: Denúncias Ajuizadas no período de 03/2003 até 03/2004.

Fazenda Município UF Nº Processo / Vara Denunciados (Em negrito, os proprietários)

Nº de pessoas atingidas

CARAÍBAS Gonçalves Dias MA IP 2054 STF Min. Ellen

Gracie

Inocêncio Gomes de Oliveira Sebastião Cesar Marques de Andrade

2

AGROVÁS – Agropecuária Vale do Suiá S/A

São Félix do Araguaia MT 2003.02.01.010356-6 / TRF

2ª Jorge Sayed Picciani 1

RECANTO OU 5 ESTRELAS Novo Mundo MT 2003.36.00.009842-0 / 2ª

Sebastião Neves de Almeida Raimunda Abreu Maciel Luiz Carlos Machado Paulo Nonato de Oliveira Maria do Socorro Araújo Feitosa

5

FAZENDA MARINGÁ Novo São Joaquim MT 2004.36.00.001851-6 / 2ª

Vara

Antenor Santos Alves Júnior Sinvaldo Fernandes de Oliveira Antônio Eugênio Pereira

3

FAZENDA BRASÍLIA - Bial algodoeira Industria e

Comérco LTDA. Alto Graças MT 2004.36.00.001891-7 / 5ª

Vara

Carlos Newton Vasconcelos B. Jr. José Bonfim da Silva Neto Lourival Francisco de Oliveira

3

FAZENDA MARINGÁ Comodor MT 2004.36.00.001930-9 / 2ª Vara

Antenor Duarte do Vale Antônio Donizete Nogueira Marques

2

FAZENDA SÃO PEDRO Santa Rita do Trivelato MT 2004.36.00.002031-7 / 5ª

Vara

Luiz Viero Trevisan Evandro Viero Trevisan Ayrton Luiz Darcol Trevisan Dacy João de Deus Jamil Adão dos Anjos

5

FAZENDA PRATA Cuiabá MT 2004.36.00.002066-3 / 5ª Vara

Clóvis Patriota Alaelson José Minzon Edilson Pereira Neto

3

FAZENDA PORANGA Agropecuária Daroit LTDA Sorriso MT 2004.36.00.002293-4 / 5ª

Vara

Valdir Daroit Elirio Daroit Elpidio Daroit

3

FAZENDA JAÓ Xavantina MT 2004.36.00.002295-1 / 1ª Vara

Roberto Guidoni Sobrinho Romes Farias da Costa

2

FAZENDA VÓ GERCY Campo Verde MT 2004.36.00.02294-8 / 1ª

Vara José Francisco de Moraes Agenor dos Santos Pereira

2

LAGOA DAS VACAS São Félix do Xingu/Regiã

o do Iriri PA 2003.35.01.000763-1 /

Marabá

Aldimir Lima Nunes Francisco Sérgio da Silva Siqueira Manoel de Tal Raimundo Nonato Zé Roque Francisco Ferreira

6

(continuação)

81

Fazenda Município UF Nº Processo / Vara Denunciados (Em negrito, os proprietários)

Nº de pessoas atingidas

VALE DO RIO FRESCO Santana do Araguaia PA 2003.39.01.000458-4 /

Marabá

José Silva Barros Antônio Lucena de Barros Marcelo Lessa Josué Messias Filho Eduardo Coelho Araújo João Batista de Souza Nelson Felix de Paiva Vanice Alves da Silva Odilon de Tal

9

SANTA ANA Santa Ana Agropecuária e

Industrial S/A

Cumaru do Norte PA 2003.39.01.000497-0 /

Marabá

Augusto Farias Eleuza Farias Flávio Mendonça Santana Hilton Cezar Rodrigues da Silva Pedro Silvio Bento Freire Jairo Soares Lima

7

SÃO ROBERTO Agropecuária São Roberto

S/A

Santana do Araguaia PA 2003.39.01.000539-3 /

Marabá

Antônio Lucena de Barros Adriana Villarinho Euvio Luiz Techie Alcides Nogueira Queiroz Arnaldo de Tal Cleber de Tal Iron Martins Cardoso Dino de Tal Canetão

9

ESTÂNCIA DO PONTAL São Félix do Xingu/Regiã

o do Iriri PA 2003.39.01.000811-4 /

Marabá

Wanderley Dias Vieira Admilson Dias Vieira Francisco José Ferreira Reginaldo Pereira Maranhão

4

LAGO AZUL Xinguara PA 2003.39.01.000957-9 / Marabá

Adauto José Galli Marcelo Guimarães Galli Elviro Faria Arantes Juarez Feitosa Gomes Francisco Souza Santos Raimundo Nonato Soares Desuíta Lima da Silva Cícera Lopes de Oliveira Maria Cristina Araújo Antônia dos Santos Machado Maria das Dores Soares

11

TAXI AEREO Agropal – Agropecuária

Palmeira S/A Redenção PA 2003.39.01.001405-0 /

Marabá

Maria de Lourdes Miranda Donizete de Miranda Alves Ricardo de Miranda Alves Dayse Ubelina Alves Edmilson Dantas de Santana

5

(continuação)

82

Fazenda Município UF Nº Processo / Vara Denunciados (Em negrito, os proprietários)

Nº de pessoas atingidas

FAZENDA ESTRELA DE MACEIO e DE ALAGOAS Lima Araújo Agropecuária

LTDA.

Santana do Araguaia PA 2004.39.01.000293-6 /

Marabá

José Maria Coelho Bandeira Antônio Luiz Coelho Bandeira Gilvan Passos Filho Antônio Abadio Fostal José Monteiro Silva Henrique Pereira dos Santos Filho

7

FAZENDA BAGUÁ Eldorado dos Carajás PA Não cadastrada

Celso Chuquia Mutran José Gomes de Almeida José Maria Diogo da Silva

3

FAZENDA SOSSEGO Canaã dos Carajás PA Não cadastrada

Milton Ribeiro de Oliveira Elton João Zimemrnnn João Calixto

3

Agroindustrial São João S.A – AGRISA –

Agropecuária LTDA

São Pedro da Aldeia RJ 2004.51.08.000019-0 / 1ª

Vara

Demétrios Fontes Tourinho Adilson de Barbosa de Jesus Mário Rubens Viana Higino Manoel Messias Santos Ramilton Pereira da Silva

5

SÃO JOAQUIM (MEQUENS), Roberto Caldas Agropecuária e

Transporte Ltda

Pimenteiras do Oeste RO 2003.41.00.003384-1 / 2ª

Vara

Roberto Demário Caldas Valdir de Melo Jair Bispo Gusmão

3

TAPYRATYNGA Corumbiara RO 2003.41.00.003385-5 / 3ª Vara

José Carlos de Souza Barbeiro Lídio dos Santos Braga

2

ASSENTAMENTO REMANSÃO Nova Olinda TO 2002.43.00.000023-0 / 1ª

Vara

Wagner Luis Gratão Wilson Gratão Luis Carneiro Filho Arnaldo Campos da Silva Enoque Viana Souza Jose Gouveia Caminha Luis Carlos dos Santos Alves Luis Carlos Ferreira da Silva Luiz José Carneiro Mauro Atanael de Oliveira

11

Fazenda Ouro Verde Piçarra PA INQ 2131 / Min Gilmar Mendes

João Batista de Jesus Ribeiro Osvaldo Brito Filho 2

Fonte:PFDC/PGR.

83

ANEXO 4: PEC 438/2001

84

ANEXO 5:

Presidência da República

Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos

DECRETO DE 18 DE OUTUBRO DE 2004.

Declara de interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural denominado "Fazenda e Castanhal Cabaceiras", situado no Município de Marabá, Estado do Pará, e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso das atribuições que lhe conferem os arts. 84, inciso IV, e arts. 184 c/c 186, I, II e III da Constituição, e nos termos dos arts. 2o da Lei Complementar no 76, de 6 de julho de 1993, 18 e 20 da Lei no 4.504, de 30 de novembro de 1964, e 2o e art. 9º, incisos I, II e III c/c 6º da Lei no 8.629, de 25 de fevereiro de 1993,

DECRETA:

Art. 1o Fica declarado de interesse social, para fins de reforma agrária, nos termos dos arts. 18, alíneas "a", "b", "c" e "d", e 20, inciso VI, da Lei no 4.504, de 30 de novembro de 1964, e 2o e art. 9º, inciso I, II e III c/c 6º da Lei no 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, o imóvel rural denominado "Fazenda e Castanhal Cabaceiras", com área de nove mil, setecentos e setenta e quatro hectares, quatro ares e cinco centiares, situado no Município de Marabá, objeto dos Registros no R-2-11.505, fls. 01, Livro Ficha 2 e R-11-394 (remanescente), fls. 2v, Livro Ficha 2-B, do Cartório de Registro Geral de Imóveis da Comarca de Marabá, Estado do Pará (Proc/INCRA/SR-27/No 54600.002168/99-97).

Art. 2o Excluem-se dos efeitos deste Decreto o domínio direto relativo ao imóvel registrado na matrícula no 11505, os semoventes, as máquinas e os implementos agrícolas, bem como as benfeitorias existentes no imóvel referido no art. 1o e pertencentes aos que serão beneficiados com a sua destinação.

Art. 3o O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA fica autorizado a promover a desapropriação do imóvel rural de que trata este Decreto, na forma prevista na Lei Complementar no 76, de 6 de julho de 1993, e a manter a área de Reserva Legal prevista na Lei no 4.771, de 15 de setembro de 1965, preferencialmente em gleba única, de forma a conciliar o assentamento com a preservação do meio ambiente.

Art. 4o Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 18 de outubro de 2004; 183o da Independência e 116o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Miguel Soldatelli Rossetto

Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 19.10.2004

In: http://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Dnn/Dnn10316.htm, último acesso em 03 de novembro de 2004.

85

Notas de fim: originais de citações traduzidas

A. “Conflicts might kill, but too little of them might paralyse.” (Christie, 1977, p. 1)

B. “Many of the white-collar crimes are committed by corporations. No effective method of dealing with

corporations under the criminal law has yet been devised. It is not possible to put a corporation to death,

or whip it, or commit it to prison except in a figurative sense.” (Sutherland, 1941, p. 114)

C. “The criminal statistics show unequivocally that crime, as popularly conceived and officially

measured, has a high incidence in the lower class and a low incidence in the upper class (...). From

them, they have derived general theories of criminal behavior. These theories are that since crime is

concentrated in the lower class it is caused by poverty or by personal and social characteristics believed

to be associated statistically with poverty, including feeblemindedness psychopathic deviations, slum

neighborhoods, and ‘deteriorated’ families. (...) The conventional explanations are invalid principally

because they are derived from biased samples.” (Sutherland, 1940, p. 1-2)

D. “Sutherland (1940: 4) did succeed, as he hoped, ‘to bring white-collar crime within the scope of

criminology’, though perhaps he was slightly optimistic about severing the correlation between crime

and ‘the psychopathic and sociopathic conditions associated with poverty’. He underestimated the

powerful drive leading most criminologists towards the lower classes, whom they adopt, somewhat

philanthropically and paternalistically, as the only classes deserving attention.” (Ruggiero, 2002, p.177)

E. “White-collar crime is real crime. It is called crime here in order to bring it within the scope of

criminology, which is justified because it is a violation of the criminal law. The crucial question in this

analysis is the criterion of the violation of the criminal law. Conviction in the criminal court, which is

sometimes suggested as the criterion, is not adequate because a large proportion of those who commit

crimes are not convicted in criminal courts” (Sutherland, 1940, p. 5)

F. “A white-collar crime is defined as a violation of the criminal law by a person of the upper

socioeconomic class in course of its occupational activities. The upper socioeconomic class is defined

not only by its wealth but also by its respectability and prestige in the general society. (...) This

definition is arbitrary and not very precise. It is not necessary that it be precise (...). The purpose of the

concept of white-collar crime is to call attention to a vast area of criminal behavior which is generally

overlooked as criminal behavior.” (Sutherland, 1941, p. 112).

G. “The most general, although not universal, characteristic of white-collar crime is violation of trust.”

(Sutherland, 1941, p. 1)

86

H. “The prevalence of white-collar crime can be readily appreciated by anyone who reads a few of the

current annual reports of the Federal Trade Commission and others commissions which have

responsibility of regulating business.” (Sutherland, 1941, p. 113)

I. “The financial loss from white-collar crime, great as it is, is less important than the damage to social

relations. White-collar crimes violate trust and therefore create distrust. Other crimes produce relatively

little effect on social institutions or social organization.” (Sutherland, 1940, p. 5)

J. “They differ principally in the implementation of the criminal laws which apply to them. The crimes

of the lower class are handled by policemen, prosecutors, and judges, with penal sanctions in the form

of fines, imprisonment and death. The crimes of the upper class either result in no official action at all,

or result in suits for damages in civil courts or are handled by inspectors, and by administrative boards

or commissions with penal sanctions in the form of warnings, orders to cease and desist, occasionally

the loss of a license, and only in extreme cases by fines or prison sentences.” (Sutherland, 1940, p. 7-8)

K. “Other agencies than the criminal court must be included, for the criminal court is not the only agency

which makes official decisions regarding violations of the criminal law.” (Sutherland, 1940, p. 6)

L. “White-collar crime is similar to juvenile delinquency in respect to the differential implementation of

the law. In both cases the procedures of the criminal law are modified so that the stigma of crime will

not attach to the offenders.” (Sutherland, 1945, p. 138)

M. “White-collar crimes is real crime. If it is not a violation of the criminal law it is not white-collar

crime or any other kind of crime. But differences in administrative procedures do not justify the

designation of this behavior as something different from crime.” (Sutherland, 1941, p. 115)

N. “(...)an analysis was made of the decisions by courts and commissions against the seventy largest

industrial and mercantile corporations in the United States under four types of laws, namely, antitrust,

false advertising, National Labor Relations, and infringement of patents, copyrights and trademarks

[todas violações criminais]. This resulted in the finding that 547 such adverse decisions had been made

with an average of 7,8 decisions per corporation and with each corporation having at least one.

Although all of these were decisions that the behavior was unlawful, only 49 or 9 per cent of the total

were made by criminal courts and were ipso facto decisions that the behavior was criminal.”

(Sutherland, 1945, p. 132)

O. “This conclusion in this semantic portion of the discussion is that 473 of the 547 decisions are

decisions that crimes were committed.” (Sutherland, 1945, p. 135)

P. “(...) they confuse acts with actors, norms with normbreakers the modus operandi with the operator.”

(Shapiro 1990, p. 347)

Q. “white-collar crime as a violation of trust” (Shapiro, 1990, p.137)

R. “The agency may draw on both criminal and civil as well as administrative enforcement mechanisms.

While criminal dispositions are often appropriate, they are rarely pursued to the sentencing stages.

88

the building industries. Traffickers may limit themselves to the provision of smuggling services or may also

provide addresses of prospective employers in these industries.” (Ruggiero, 1997b, p. 29)

Z. “Some of these businesses are part of the parallel, unofficial economy, and are subsidiaries to larger

industrial companies operating in the manufacturing sector. Others are part of the farming sector, which

is in need of seasonal unregistered workers.” (Ruggiero, 1997a, p. 236)

AA. “In some workshops raided by the police illegal workers were found to be housed under quasi-

military surveillance in the same rooms in which they worked. In order to pay the sum for their

transportation to Europe, many of these immigrants were kept under coercive conditions, and punished

if they fell behind with payments.” (Ruggiero, 1997b, p. 29-30)

AB. “In sum, tracking in human beings should be analysed within a demand-supply framework, as illegal

migrants employed in the hidden economy, including the sex industry, meet a specific demand in

economically advanced countries. Invisibility characterises the condition of these migrants, an

invisibility informing both the way in which they migrate and the way in which they are required to

work and live in the country of destination.” (Ruggiero, 2000, p.194)

AC. “Dans ces circonstances, il nous semble intéressant d’élaborer des stratégies de recherche qui

tenteront d’aborder la criminalité d’affaires (et son contexte politico-économique) de la manière la plus

large possible, comme: l’étude détaillée de matériel provenant de sources ouverts d’origine aussi variée

que possible (données économiques, communiqués de presse, travaux parlementaires etc.); l’étude

ethnographique sur le terrain; l’étude de décisions judiciaires; l’étude de l’effet du travail législatif;

etc.” (Ruggiero in: Mucchielli & Robert, 2002, p. 231).

AD. “We are now returning to the formulation that variations in crime mirror variations in social control.

The forms of social control fostered by globalisation make centrally-structured hierarchies redundant, as

power relationships tend no longer to be embedded in centralised organisations and institutions, but in

dispersed networks in which instructions are processed. (…) Criminal business responds to the new

forms of social control and the reorganisation of sovereignty by establishing its own networks which

bypass national regulations.” (Ruggiero, 2002, p.181)

AE. “An inability to establish criminal intent also is a major reason that prosecutors frequently pursue

civil action instead of criminal charges. Uncertain of their ability to convict culpable individuals and

lacking the resources needed to investigate more extensively or thoroughly, they instead opt for civil

action and the less onerous standard of proof these responses require.” (SHOVER, 2000, p. 143)