Criança Um Sujeito de Direito1

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  CRIANÇA: UM SUJEITO DE DIREITO 1  Maria Rutimar de Jesus Belizario - UFAM INTRODUÇÃO O presente artigo tem por objetivo discutir acerca do processo de reconhecimento da criança como um sujeito de direito, posto que no âmbito da legislação brasileira seja recente a relevância dada ao respeito às suas necessidades. No processo de produção capitalista, cuja base se fundamenta na exploração da força de trabalho visando o lucro, nem mesmo as crianças são preservadas. Elas se tornam partes constitutivas das máquinas. Esse processo deteriora tanto os membros do organismo como os próprios membros da família, como salienta Karl Marx (1989) em O Capital. Mesmo com o surgimento da lei fabril, as condições desumanas em que estavam submetidos os trabalhadores não foram superadas, posto que tal lei voltava-se para atender a um pequeno grupo que detinha o poder econômico e político. As disposições regidas pela lei fabril estabeleceram a instrução primária como condição para a empregabilidade das crianças nas fábricas. As escolas se tornaram uma extensão da monotonia vivenciada na fábrica. Foram várias mudanças que propiciaram o fomento de leis cujo centro era o cuidado e a educação da criança, dentre elas a inserção da mulher no mercado de trabalho. A contribuição dos movimentos da sociedade civil foi fulcral nesse processo. Com isso, o mundo infantil começa a receber atenção, sobretudo com a criação do Jardim de Infância, em 1839, por Froebel. A partir daí, os brinquedos, os jogos, as brincadeiras entram em cena, e surgem vários projetos para o atendimento das crianças, embora com aspectos assistencialistas. 1  Artigo resultante da disciplina “Educação, Cultura e Desafios Amazônicos”, ministrada pelo Prof. Dr. Luiz Carlos Cerquinho de Brito no Curso de Mestrado em Educação do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Amazonas – PPGE/UFAM.

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artigo sobre os direitos das crianças

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  • CRIANA: UM SUJEITO DE DIREITO1

    Maria Rutimar de Jesus Belizario - UFAM

    INTRODUO

    O presente artigo tem por objetivo discutir acerca do processo de reconhecimento da criana como um sujeito de direito, posto que no mbito da legislao brasileira seja recente a relevncia dada ao respeito s suas necessidades.

    No processo de produo capitalista, cuja base se fundamenta na explorao da fora de trabalho visando o lucro, nem mesmo as crianas so preservadas. Elas se tornam partes constitutivas das mquinas. Esse processo deteriora tanto os membros do organismo como os prprios membros da famlia, como salienta Karl Marx (1989) em O Capital.

    Mesmo com o surgimento da lei fabril, as condies desumanas em que estavam submetidos os trabalhadores no foram superadas, posto que tal lei voltava-se para atender a um pequeno grupo que detinha o poder econmico e poltico. As disposies regidas pela lei fabril estabeleceram a instruo primria como condio para a empregabilidade das crianas nas fbricas. As escolas se tornaram uma extenso da monotonia vivenciada na fbrica.

    Foram vrias mudanas que propiciaram o fomento de leis cujo centro era o cuidado e a educao da criana, dentre elas a insero da mulher no mercado de trabalho. A contribuio dos movimentos da sociedade civil foi fulcral nesse processo.

    Com isso, o mundo infantil comea a receber ateno, sobretudo com a criao do Jardim de Infncia, em 1839, por Froebel. A partir da, os brinquedos, os jogos, as brincadeiras entram em cena, e surgem vrios projetos para o atendimento das crianas, embora com aspectos assistencialistas.

    1 Artigo resultante da disciplina Educao, Cultura e Desafios Amaznicos, ministrada pelo Prof. Dr. Luiz

    Carlos Cerquinho de Brito no Curso de Mestrado em Educao do Programa de Ps-Graduao da Universidade Federal do Amazonas PPGE/UFAM.

  • A CRIANA NO PROCESSO DE PRODUO CAPITALISTA

    Com a insero das mquinas no processo de produo capitalista uma alternativa para aumentar a renda familiar seria explorar a fora de trabalho da mulher e da criana. O monoplio da fora masculina destrudo. Os pais, mergulhados na misria e na degradao, s pensam em extrair o mximo possvel dos filhos. Estes, depois de crescidos, no querem mais saber dos pais e os abandonam (MARX, 1989, p. 538). A destruio no apenas de um membro da famlia, todos os seus membros esto comprometidos, submetidos a um estado de deteriorao em detrimento do aumento do lucro para o capital.

    Nem mesmo a lei fabril foi capaz de amenizar o estado exacerbado de humilhao humana submetida pelo capital, uma vez que tal normatizao estava a favor de um determinado grupo, o qual detinha o poder econmico e poltico. Assim, a lei fabril foi mais uma estratgia usada pelo capital como forma de acelerar a revoluo industrial, e quando se pensou que a mesma iria beneficiar os escravos do trabalho, houve a decretao da substituio destes pelas mquinas (ibidem, p. 561).

    No tocante s disposies legais das fbricas no que se refere instruo primria, houve a regulao da obrigatoriedade das crianas frequentarem s escolas como condio para o emprego, como salienta Marx:

    as disposies da lei fabril relativas educao fizeram da instruo primria condio indispensvel para o emprego de crianas. Seu sucesso demonstrou, antes de tudo, a possibilidade de conjugar educao e ginstica com trabalho manual, e consequentemente o trabalho manual com educao e ginstica (idem, p. 553).

    Como as crianas passavam uma parte do seu dia na escola e a outra na fbrica, ou seja, um ambiente era continuao do outro, qualquer um deles era um descanso, pois no que tange s atividades repetitivas e montonas no havia diferenciao, a diferena estava nos ambientes (MARX, 1989, p. 553).

  • No capitalismo, a criana concebida como um membro componente da fora de trabalho do processo de produo compe tambm, juntamente com as outras ferramentas, os elementos constitutivos da mquina. Assim, contribui com o aumento da produo e com o aumento da renda familiar. Embora a lei fabril determinasse a frequncia da criana na escola como condio para que esta se empregasse nas fbricas, sendo metade do tempo na escola e a outra metade na fbrica, a mesma era posta em condies as quais atrofiavam suas mltiplas capacidades, tornando-as reprodutoras de operaes que as incapacitavam de se desenvolver de forma plena.

    Assim, a indstria

    se patenteia, por exemplo, no terrvel fato de grande parte dos meninos empregados nas fbricas e manufaturas modernas, condenados desde a mais tenra idade a repetir sempre as operaes mais simples, serem explorados anos seguidos, sem aprender qualquer trabalho que os torne teis mais tarde, mesmo que fosse na mesma manufatura ou fbrica (ibidem, p. 555).

    A instruo escolar prevista nas clusulas de educao das leis fabris denota a exacerbao do capitalismo no que tange explorao humana. Essas leis explicitam a ganncia do capital em produzir mais valia, pois a instruo elementar foi prevista como uma forma de capacitar os jovens para melhor desempenhar suas funes junto s mquinas, unicamente. Ainda que beneficiasse, sobretudo ao capital, o desinteresse deste em financiar a instruo se revelou na falta de condies fsicas e administrativas em que estavam submetidas s instituies responsveis por tal capacitao.

    Como se observa, a educao escolar tem sua origem na fbrica, com vistas a garantir a ampliao da produo e assim assegurar lucros para o capital e a ateno dada criana era conforme esta era concebida, um ser cujos sentimentos e desejos eram desconsiderados. A concepo de criana como ser que necessita de uma ateno especfica, diferente da do adulto, s ocorreu na modernidade, como veremos a seguir.

    BREVE RETROSPECTIVA HISTRICA DAS POLTICAS PBLICAS PARA A INFNCIA

  • As transformaes ocorridas na sociedade moderna contriburam diretamente para a construo da concepo de criana, e consequentemente na elaborao e execuo de aes voltadas para este ser.

    De acordo com Silva e Carvalho

    Estas mudanas redimensionaram tanto a educao quanto os novos protagonistas (a mulher, a criana), at ento relegados a um plano secundrio. Portanto, a modernidade criou a concepo de criana como um ser diferente, importante e respeitvel. Por isso, a importncia de compreendermos a criana neste processo de mudanas, no qual o seu sentimento concebido e torna-se alvo do investimento afetivo e educacional (2004, p. 5-6).

    Com base nesta citao, presume-se que com a modernidade a organizao familiar tambm foi modificada, visto que na Idade Mdia esta organizao se dava por meio do princpio da coletividade, situao em que no havia distino entre o que era dos adultos e o que era das crianas. Este modelo de famlia tornava a criana um sujeito oculto, pois seus sentimentos e desejos eram desconsiderados, como tambm era desconsiderada a sua fala, o que ratifica o significado de criana, neste perodo: Desprovido de fala (ibidem, p. 7).

    Nessa perspectiva, a modernidade contribuiu decisivamente para o surgimento da concepo de criana, sobretudo a partir das transformaes decorrentes do capitalismo. Estas transformaes provocaram a insero da mulher no mercado de trabalho, demandando a necessidade de espaos para deixar seus filhos; fator preponderante no que se refere ao processo de entrada da criana na escola, quando sua instruo passa a se distinguir da dos adultos. Esta forma de conceber a infncia e a famlia marcou as relaes sociais da modernidade.

    Um fator bastante relevante nesse processo de compreenso e valorizao do mundo infantil se deu a partir da criao do Jardim de Infncia, em 1839, por Froebel, quando o mesmo suscita a produo de brinquedos adequados para a criana, e organiza a escola infantil atravs das salas por idade.

    No que tange ao papel social destes espaos destinados educao das crianas, Kant (2006) evidencia que uma educao pblica completa aquela que rene, ao mesmo tempo, a instruo e a formao moral (p. 30).

  • No obstante, h a dicotomia existente no atendimento aos filhos dos ricos e aos filhos dos pobres, uma vez que desde sua origem, as instituies de educao infantil oferecem uma educao de acordo com a procedncia social das crianas.

    As creches, ou a educao infantil, surgem da necessidade de expandir o trabalho feminino na segunda metade do sculo XIX, em poca de expanso e auge da indstria. Portanto, vinculando-se ao propsito maior: as mes no abandonarem os filhos ao ingressarem no mercado de trabalho. Contudo, a creche era fortemente marcada pelas diferenas sociais: enquanto os jardins-de-infncia tinham a funo de atender os ricos, as creches e asilos atendiam os filhos dos trabalhadores (SILVA; CARVALHO, 2004, p. 17).

    Parafraseando Silva e Carvalho, enquanto o jardim de infncia foi destinado s crianas nobres, as creches foram desenvolvidas para atender as crianas pobres. Essa distino ocorreu j desde a ao dos jesutas, perpetuando-se at os dias atuais. Para Condorcet

    Uma educao pblica no pode merecer esse nome seno quando se estende a todos as classes de cidados e quando o seu objetivo aperfeioar, tanto quanto possvel, a capacidade de cada indivduo, inspirando-lhe o desejo de utiliz-lo com o fim de tornar-se mais til para os outros (2010, p. 103).

    Esta viso de Condorcert destoa dos ideais que norteiam a educao para as crianas no Brasil. Com o advento da Repblica, estes ideais estavam voltados para a preparao do Brasil, a fim de que este se tornasse o pas do futuro, o que oportunizou uma preocupao com as crianas, todavia, o atendimento pautava-se em princpios assistencialistas, visando garantir um futuro promissor para o Brasil (SILVA; FRANCISCHINI, 2012, p. 260).

    Nessa perspectiva, o Estado comprometeu-se em cuidar da educao das crianas. Com o objetivo de atender aos filhos dos operrios, a primeira creche brasileira, criada em 1909, atravs do Instituto de Proteo e Assistncia Criana, atendia aos menores de 2 anos, e o atendimento s crianas de at 6 anos era de carter mdico (ibidem, p. 261). Vale ressaltar que estas creches estavam voltadas para o atendimento das crianas pobres.

    Importante ressaltar tambm que o modo como as crianas eram tratadas estava relacionado com o modo como se concebia o ser criana, que durante todo o sculo XIX era a fase que durava at o indivduo tornar-se adulto. Certamente esta forma de concepo de

  • criana explica a ausncia de polticas pblicas para a infncia nesse perodo da histria da educao brasileira.

    Mesmo com a criao do Departamento da Criana, em 1919, embora voltado para uma perspectiva jurdica, a poltica que norteava o atendimento permanecia fincada no assistencialismo. Primeira iniciativa de abrangncia nacional, este Departamento tinha como tarefa arquivar dados referentes proteo da criana, divulgar conhecimento, promover congressos e cursos educativos em puericultura e higiene infantil (SILVA; FRANCISCHINI, 2012, p. 264,).

    perceptvel a discrepncia entre o tratamento destinado s crianas, sobretudo s pobres. Por exemplo, a parceria existente entre a justia e a assistncia social; enquanto a primeira estava voltada para os menores, ou seja, as crianas tidas como pequenos infratores, a segunda voltava-se para atender as crianas cujos pais no tinham condies de mant-las. Assim tambm era a assistncia mdica prestada s crianas de famlias pobres, quando o atendimento era realizado na prpria residncia.

    De acordo com Kramer (1996, p. 2), com o avano das discusses e dos movimentos voltados para o desenvolvimento de polticas pblicas para a educao infantil, destaca-se a dcada de 1990, como sendo um grande marco de implementao de polticas pblicas para a educao infantil, resultando em leis e documentos, os quais (re)afirmam os direitos da criana enquanto sujeito de direito, no que concerne a educao e ao cuidado, dentre eles: Constituio Federal; Estatuto da Criana e do Adolescente; Poltica Nacional de Educao Infantil; Lei de Diretrizes e Bases; Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil; Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil; Parmetros Nacionais de Qualidade para a Educao Infantil.

    Estes Documentos contriburam de forma positiva para o avano das discusses acerca do direito da criana. Entretanto, to importante quanto elaborao dessas leis e desses documentos como meio de assegurar o direito da criana, diminuir o mximo possvel a discrepncia entre o legal e o real. Como assinala Santos

    No nosso pas, nos ltimos vinte anos, foi promulgada legislao que de modo mais ou menos afoito pretende ir ao encontro dos interesses sociais das classes trabalhadoras e tambm dos interesses emergentes nos domnios da segurana social e da qualidade de vida, por exemplo, a que so

  • particularmente sensveis as classes mdias. Sucede, porm, que muita dessa legislao tem permanecido letra morta (2013, p. 219).

    Desse modo, torna-se imprescindvel que o Estado enquanto provedor de polticas pblicas, implante e execute aes que efetivamente traduzam o estabelecido das leis e dos documentos, de modo a aplicar o direito da criana, sobretudo o da criana pobre, pois quanto mais caracterizadamente uma lei protege os interesses populares e emergentes maior a probabilidade de que ela no seja aplicada (SANTOS, 2013, p. 219).

    Esta aplicao tanto mais eficiente ser quanto mais for adequada s reais necessidades das crianas, desde a organizao do espao e do trabalho pedaggico2, formao dos educadores. Para tanto, faz-se necessrio a promoo de atividades que de fato valorizem o saber das crianas, o que no se atingir sem a formao inicial e permanente dos profissionais da educao infantil, sobretudo dos professores. praticamente impossvel, tanto a formao destes profissionais, como o prprio desenvolvimento da educao sem investimentos, sem recursos especficos; do contrrio, as leis se configuraro em letras mortas.

    CRIANA: SUJEITO DE DIREITO

    Embora a discusso acerca do direito da criana seja antiga, a implementao de polticas pblicas para a Educao Infantil um fato recente na histria da educao brasileira. No tocante aos aspectos legais, a Constituio Federal de 1988, o Estatuto da Criana e do Adolescente e a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional foram fundamentais no processo de reconhecimento desta modalidade de ensino, inclusive sendo preconizada na Carta Magna como um direito da criana e concebida como a primeira etapa da educao bsica.

    2 De acordo com as Diretrizes Curriculares para a Educao Infantil, esta organizao deve assegurar a

    educao em sua integralidade, entendendo o cuidado como algo indissocivel ao processo educativo (2010, p. 19).

  • Este reconhecimento requer consonncia entre o que est estabelecido nos dispositivos legais, os quais garantem o direito da criana educao, e a realidade brasileira. Um grande avano no que se refere a esta consonncia pode ser verificado nas Diretrizes Curriculares para a Educao Infantil, quando por meio delas busca-se nortear as aes desenvolvidas nos estabelecimentos que atendem crianas de 0 a 6 anos de idade. Tais iniciativas so recentes na histrica da educao brasileira, como enfatiza Kramer.

    Iniciativas de rgos de carter educativo existem, em nvel nacional, h pouco mais de 20 anos e voltam-se com maior frequncia s crianas de 4 a 6 anos. S em 1974, o pr-escolar recebeu ateno do governo federal, evidenciado na criao da Coordenao de Educao Pr-Escolar (MEC/COEPRE), em documentos e pareceres do Conselho Federal de Educao (2006, p. 801).

    A elaborao de instrumentos para subsidiar os trabalhos nas creches e pr-escolas igualmente importante quanto a dotao de recursos para sua execuo, sendo o financiamento um dos principais instrumentos na efetivao do direito das crianas, visto que at a dcada de 1970, os programas e aes educacionais voltados para as crianas se consubstanciaram em aes compensatrias e assistencialistas.

    Como sinaliza Kramer (ibidem, p. 803), na dcada de 1980 os movimentos da sociedade civil, com vistas a romper com a viso de privao cultural, defendidas inclusive pelos rgos governamentais, lutaram pela garantia dos direitos das crianas, de modo que a democratizao dos estabelecimentos que atendiam a este grupo social se tornasse realidade, culminando com o reconhecimento do direito das crianas de 0 a 6 anos.

    Este direito evidenciado na Constituio Federal de 1988, quando a mesma incumbiu o Estado de oferecer creche e pr-escola para crianas dessa faixa etria, sendo esta incumbncia ratificada no Estatuto da Criana e do Adolescente e na Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional.

    Considerando que polticas pblicas o Estado em ao, como enfatiza Hfling, o Estado implantando um projeto de governo, atravs de programas, de aes voltadas para setores especficos da sociedade (2001, p. 31), esta ao no se concretizar sem as devidas condies, as quais devero ser viabilizadas com recursos especficos, o que traz para o centro

  • dessa discusso o financiamento, sem o qual dificilmente ser efetivado o direito da criana educao, principalmente das crianas pobres.

    As disparidades de acesso em relao faixa etria, etnia/cor, localizao (urbano/rural), renda familiar e escolaridade dos pais/responsveis, sobretudo da me, vm sendo recorrentemente apontadas nos estudos sobre a oferta de educao infantil no Brasil, concorrendo para penalizar as crianas mais novas, as mais pobres e as no brancas (VIEIRA, 2010, p. 817).

    Como se observa, o financiamento da educao infantil fundamental para assegurar o direito da criana educao. A Lei de Diretrizes e Bases, Lei n 9.394/1996, responsabiliza os municpios por oferecer a educao infantil. Esta mesma lei estabelece o regime de colaborao por meio do qual a Unio, os Estados, o Distrito Federal e os Municpios formularo diretrizes, as quais orientaro os currculos, de modo a proporcionar uma formao bsica comum, o que traduz a possvel eliminao da discrepncia no que se refere ao acesso, permanncia e sucesso das crianas nos estabelecimentos escolares.

    No que tange a finalidade da educao infantil, como forma de materializar o direito da criana, a Lei supracitada, ao situar esta etapa como sendo a primeira da educao bsica, devendo ser ofertada em creches, para crianas de at 3 anos, e em pr-escolas para crianas de 4 a 5 anos, define em seu artigo 29 esta finalidade: desenvolvimento integral da criana at cinco anos de idade, em seus aspectos fsico, psicolgico, intelectual e social.

    Na obra Sobre a Pedagogia (2006), Kant enfatiza que os planos de uma educao para as crianas devem pautar-se no seguinte princpio:

    no se deve educar as crianas segundo o presente estado da espcie humana, mas segundo um estado melhor, possvel no futuro, isto , segundo a ideia de humanidade e da sua inteira destinao. Esse princpio da mxima importncia. De modo geral, os pais educam seus filhos para o mundo presente, ainda que seja corrupto (p. 22).

    A viso de Kant, acerca do princpio da pedagogia, expressa a importncia da Educao Infantil, quando a mesma se torna a base da educao do ser humano, pois o homem no pode se tornar um verdadeiro homem se no pela educao. Ele aquilo que a educao dele faz (ibidem, p. 15).

  • Partindo do pressuposto de que as crianas devem ser instrudas apenas naquelas coisas adaptadas sua idade (KANT, 2006, p. 83), destaca-se a importncia do jogo, da brincadeira e do brinquedo no processo de aprendizagem da criana na Educao Infantil.

    Segundo Brougre (1981, 1993) e Henriot (1983, 1989) apud Kishimoto (1994), o jogo pode ser definido das seguintes formas: sistema lingustico; sistema de regras e um objeto (p. 107). O sistema lingustico diz respeito ao modo como cada contexto social cria sua imagem de jogo, esta imagem ser construda de acordo com os valores, e manifestar atravs da linguagem.

    Da porque o professor no pode desvirtuar estas caractersticas do jogo, querendo antecipar os resultados destas atividades, at porque no jogo quem deve determinar o desenvolvimento dos acontecimentos so os envolvidos, no caso as crianas. Necessrio se faz que a criana viva intensamente os momentos das brincadeiras, de forma espontnea, e no inibida pelo cotrole imposto pelo professor.

    O brinquedo, diferente do jogo, no necessita de um sistema de regras, o que implica no haver uma determinao quanto ao uso, ficando a criana livre para manipul-lo (KISHIMOTO, 1994, p.108). E por ser uma forma de representar a realidade, o brinquedo pode ser um excelente instrumento de observao daquilo que uma criana est querendo transmitir, ou no transmitir.

    Ao brincar de forma espontnea, a criana est exercendo seu direito de brincar, de ser livre; livre para escolher, para tomar deciso, pressupondo autonomia. Desse modo, importante que os brinquedos estejam acessveis s crianas, pois ao movimentarem-se para explorar as diversas funes dos objetos, as crianas estaro desenvolvendo a coordenao motora, o movimento, a deciso, a organizao, ao tirar e colocar os objetos em seus lugares.

    No tocante s brincadeiras, Kishimoto ressalta que

    toda conduta do ser humano, incluindo suas brincadeiras, so construdas como resultado de processos sociais. Considerada situao imaginria, a brincadeira uma conduta predominante a partir de 3 anos e resulta de influncias sociais recebidas ao longo dos anos anteriores (1994, p. 123).

    A base do desenvolvimento da linguagem escrita formada pelo brincar e pelo desenhar. Segundo Pereira, o desenho deve ser considerado tambm como o resultado de

  • atividade intencional envolvendo aspectos cognitivos e emotivos no seu ajuste realidade com a qual convive (2011, p. 5).

    Conhecer a importncia do jogo, da brincadeira e do brinquedo para o desenvolvimento da criana na Educao Infantil, implica oportunizar as condies necessrias para que o direito de brincar da criana seja efetivado, atravs dos materiais e estruturas adequados, e de professores capacitados, o que pressupe a implementao de polticas pblicas condizentes com as reais necessidades da criana enquanto sujeito de direito, visando seu desenvolvimento integral.

    Durkheim ressalta que o educador obrigado a governar a ateno da criana. Ningum pode negar que ele a governar melhor se conhecer a natureza dela mais exatamente (2012, p. 21). Para tanto, torna-se fundamental conhecer as crianas para o bom desempenho das atividades desenvolvidas com as mesmas, mas no basta conhec-las, preciso fazer uso da criatividade para redescobri-las e assim vislumbrar as inmeras possibilidades de desenvolvimento, que so intrnsecas a elas; o que pressupe despertar o interesse e a ateno da criana.

    CONSIDERAES FINAIS

    Diante do exposto possvel concluir que o reconhecimento da criana enquanto ser de direito se deu na modernidade, embora as discusses a este respeito sejam antigas. Esse atraso na implementao de polticas pblicas voltadas para a Educao Infantil ocorreu justamente pela forma como a criana era concebida, tendo suas necessidades desrespeitadas. No havia diferena entre as necessidades das crianas e a dos adultos.

    A organizao e mobilizao dos movimentos sociais contriburam positivamente para o reconhecimento da criana como sujeito de direito, bem como a insero da mulher no mercado de trabalho, com isso surgiu a necessidade de um espao para deixar seus filhos enquanto trabalhavam.

    Mesmo com os avanos no debate acerca da elaborao e implementao de polticas pblicas para a infncia, ainda no foi o suficiente para suplantar as polticas compensatrias, as quais refletem a dicotomia arraigada na educao brasileira, educao destinada aos pobres e educao destinada aos ricos, cultura radicada nos primrdios do Brasil Colnia.

  • Urge o rompimento da educao dicotmica, atravs do fomento de polticas pblicas para a infncia cuja base esteja fundamentada numa educao democrtica e de qualidade, de modo a romper a distancia entre o legal e o real, posto que ainda haja muitas crianas, sobretudo das classes populares, excludas dos processos educativos desenvolvidos nas escolas, seja pelo no acesso, seja pela m qualidade dos servios oferecidos nos estabelecimentos que oferecem educao infantil.

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