Criança e Desenho

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105 Revista de divulgação técnico-científica do ICPG Vol. 2 n. 5 - abr.-jun./2004 ISSN 1807-2836 1. INTRODUÇÃO O nosso planeta Terra passou e vem passando por trans- formações. A história do ser humano é feita de desenvolvimentos e evoluções. Tudo no mundo tem seu tempo e sua hora. O dese- nho também passa por fases e evoluções. Ao desenhar, a criança conta sua história, seus pensa- mentos, suas fantasias, seus medos, suas alegrias, suas tristezas. No ato de desenhar, a criança age e interage com o meio, seu corpo inteiro se envolve na ação, traduzida em marcas que a mes- ma produz, se transportando para o desenho, modificando e se modificando. Através do desenho, conta o que de melhor lhe aconteceu, demonstrando, relembrando e dominando a situação. Por alguns instantes, tem momentos muito agradáveis e proveito- sos, expressando sua percepção de mundo. Cada desenho tem uma história, um significado pessoal que, muitas vezes, o adulto interpreta de modo diferente. Deve- mos lembrar que a visão da criança é diferente da visão do adulto. O adulto, quando conduz ou interpreta uma produção infantil de forma errônea, a vai inibindo até que perca sua capacidade de criação. Mas se o valor do desenho é tão perceptível, se está liga- do às necessidades e potencialidades da criança, se há uma inter- relação nos vários aspectos do seu desenvolvimento - o motor, o afetivo e cognitivo - então, por que o educador está sempre ten- tando decodificar o desenho infantil? O que pensa o educador ao ver a produção artística de uma criança? Como entender o dese- nho infantil, se o educador não possui informações teóricas? Como preparar esses educadores para que se tornem mais sensíveis e curiosos em relação ao desenho infantil? Este trabalho pretende trazer alguns subsídios que permi- tam ao educador tornar-se mais sensível e curioso perante uma produção artística infantil, evitando, assim, “diagnosticar” a cri- anças através do seu desenho. A CRIANÇA E O DESENHO INFANTIL A sensibilidade do educador mediante uma produção artística infantil Ema Roseli de Novaes Lygia Helena Roussenq Neves Curso de Especialização em Educação Infantil Resumo É primordial, para quem atua na área da Educação Infantil, a compreensão e o conhecimento das fases do desenho infantil e sua relação com a evolução do desenvolvimento humano. Da mesma forma, é importante saber que o desenho é a manifestação de necessidades vitais pelas quais a criança terá que passar, ou seja, conhecer e agir sobre o mundo e comunicar-se com este mundo. O objetivo deste trabalho é refletir sobre a importância do educador nessas etapas de desenvolvimento da criança. É compreender, ainda, que a observação é um dos meios que o educador poderá utilizar na construção desse aprendizado para fazer desabrochar na criança um olhar sensível e pensante. Para isso, ele não poderá agir apenas como facilitador desse processo. Permeando informações de natureza mais teórica, o educador poderá estar desafiando e incentivando, ampliando as experiências, o conheci- mento e aprimorando a capacidade de criação e de expressão artística da criança. Refletindo sobre as informações acima questionadas, par- tiremos para uma análise da evolução do desenho infantil, através de pesquisas bibliográficas e de comparações da visão de vários estudiosos sobre o assunto. Pretendemos, assim, conscientizar o professor de Educação Infantil sobre a importância de estar fun- damentado para entender como se dá o processo do desenvolvi- mento infantil, na faixa etária de 0 a 06 anos de idade, fase que acreditamos ser uma das mais importantes do desenvolvimento humano. 2. O DESENHO INFANTIL O desenho, para a criança, é uma continuidade entre o objeto e a representação gráfica. A criança representa o objeto em si, ou seja, a sua criação é diferente da criação do adulto. Ela liberta-se das aparências e, ao mesmo tempo, pode representar o objeto como ele é realmente, enquanto o adulto só o representa por um único ponto de vista. Segundo Luquet, (apud MERLEAU- PONTY, 1990, p.130), “ o desenho é uma íntima ligação do psíqui- co e do moral. A intenção de desenhar tal objeto não é senão o prolongamento e a manifestação da sua representação mental; o objeto representado é o que, neste momento, ocupará no espírito do desenhador um lugar exclusivo ou preponderante.” Para a criança, o desenho é uma expressão de mundo e nunca uma simples imitação ou cópia fiel porque a criança dese- nha conforme o modelo interior, a representação mental que pos- sui do objeto a ser desenhado. O desenvolvimento infantil é como um jogo, visto que a criança se desenvolve e se modifica confor- me a faixa etária. O mesmo acontece com o desenho: vai evoluin- do e se modificando com o desenvolvimento da criança. Em seus estudos, Merleau-Ponty (1990) nos apresenta os vários estágios do desenho infantil:

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105Revista de divulgaçãotécnico-científica do ICPG

Vol. 2 n. 5 - abr.-jun./2004ISSN 1807-2836

1. INTRODUÇÃO

O nosso planeta Terra passou e vem passando por trans-formações. A história do ser humano é feita de desenvolvimentose evoluções. Tudo no mundo tem seu tempo e sua hora. O dese-nho também passa por fases e evoluções.

Ao desenhar, a criança conta sua história, seus pensa-mentos, suas fantasias, seus medos, suas alegrias, suas tristezas.No ato de desenhar, a criança age e interage com o meio, seucorpo inteiro se envolve na ação, traduzida em marcas que a mes-ma produz, se transportando para o desenho, modificando e semodificando. Através do desenho, conta o que de melhor lheaconteceu, demonstrando, relembrando e dominando a situação.Por alguns instantes, tem momentos muito agradáveis e proveito-sos, expressando sua percepção de mundo.

Cada desenho tem uma história, um significado pessoalque, muitas vezes, o adulto interpreta de modo diferente. Deve-mos lembrar que a visão da criança é diferente da visão do adulto.O adulto, quando conduz ou interpreta uma produção infantil deforma errônea, a vai inibindo até que perca sua capacidade decriação.

Mas se o valor do desenho é tão perceptível, se está liga-do às necessidades e potencialidades da criança, se há uma inter-relação nos vários aspectos do seu desenvolvimento - o motor, oafetivo e cognitivo - então, por que o educador está sempre ten-tando decodificar o desenho infantil? O que pensa o educador aover a produção artística de uma criança? Como entender o dese-nho infantil, se o educador não possui informações teóricas? Comopreparar esses educadores para que se tornem mais sensíveis ecuriosos em relação ao desenho infantil?

Este trabalho pretende trazer alguns subsídios que permi-tam ao educador tornar-se mais sensível e curioso perante umaprodução artística infantil, evitando, assim, “diagnosticar” a cri-anças através do seu desenho.

A CRIANÇA E O DESENHO INFANTILA sensibilidade do educador

mediante uma produção artística infantil

Ema Roseli de NovaesLygia Helena Roussenq Neves

Curso de Especialização em Educação Infantil

Resumo

É primordial, para quem atua na área da Educação Infantil, a compreensão e o conhecimento das fases do desenho infantil e suarelação com a evolução do desenvolvimento humano. Da mesma forma, é importante saber que o desenho é a manifestação denecessidades vitais pelas quais a criança terá que passar, ou seja, conhecer e agir sobre o mundo e comunicar-se com este mundo.O objetivo deste trabalho é refletir sobre a importância do educador nessas etapas de desenvolvimento da criança. É compreender,ainda, que a observação é um dos meios que o educador poderá utilizar na construção desse aprendizado para fazer desabrocharna criança um olhar sensível e pensante. Para isso, ele não poderá agir apenas como facilitador desse processo. Permeandoinformações de natureza mais teórica, o educador poderá estar desafiando e incentivando, ampliando as experiências, o conheci-mento e aprimorando a capacidade de criação e de expressão artística da criança.

Refletindo sobre as informações acima questionadas, par-tiremos para uma análise da evolução do desenho infantil, atravésde pesquisas bibliográficas e de comparações da visão de váriosestudiosos sobre o assunto. Pretendemos, assim, conscientizar oprofessor de Educação Infantil sobre a importância de estar fun-damentado para entender como se dá o processo do desenvolvi-mento infantil, na faixa etária de 0 a 06 anos de idade, fase queacreditamos ser uma das mais importantes do desenvolvimentohumano.

2. O DESENHO INFANTIL

O desenho, para a criança, é uma continuidade entre oobjeto e a representação gráfica. A criança representa o objeto emsi, ou seja, a sua criação é diferente da criação do adulto. Elaliberta-se das aparências e, ao mesmo tempo, pode representar oobjeto como ele é realmente, enquanto o adulto só o representapor um único ponto de vista. Segundo Luquet, (apud MERLEAU-PONTY, 1990, p.130), “ o desenho é uma íntima ligação do psíqui-co e do moral. A intenção de desenhar tal objeto não é senão oprolongamento e a manifestação da sua representação mental; oobjeto representado é o que, neste momento, ocupará no espíritodo desenhador um lugar exclusivo ou preponderante.”

Para a criança, o desenho é uma expressão de mundo enunca uma simples imitação ou cópia fiel porque a criança dese-nha conforme o modelo interior, a representação mental que pos-sui do objeto a ser desenhado. O desenvolvimento infantil é comoum jogo, visto que a criança se desenvolve e se modifica confor-me a faixa etária. O mesmo acontece com o desenho: vai evoluin-do e se modificando com o desenvolvimento da criança.

Em seus estudos, Merleau-Ponty (1990) nos apresenta osvários estágios do desenho infantil:

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• Realismo fortuito – a criança procura representar o obje-to como uma totalidade.

Subdivide-se em:a) Desenho involuntário – a criança desenha só para fa-

zer linhas, sendo que, nesse estágio, repete o movi-mento pelo simples prazer e

b) Desenho voluntário –a criança percebe certa semelhan-ça entre os traços e o objeto real. Ela enuncia a inter-pretação que o desenho lhe dá. Mais tarde, diz o quepretende desenhar, mas o resultado a faz interpretarseu desenho de forma diferente. Em outra situação, odesenho, afinal, corresponde com a sua interpretaçãoinicial. Então, percebe que pode representar, atravésdo desenho, tudo o que deseja.

• Incapacidade sintética – a criança desenha cada objetode forma diferente, considerando seu ponto de vista paradiferenciá-los. Pode desenhar uma figura humana, masdesenhar os olhos, a boca e os cabelos ao lado do corpocomo se não fizessem parte dele.

• Realismo intelectual – a criança procura desenhar nãosó o que pode ver no objeto, mas todas as suas fases.Desenha de acordo com sua noção momentânea dosobjetos.

• Realismo visual – a criança representa apenas os aspec-tos visíveis do objeto. Há um aprimoramento de sistemade desenho construído no estágio anterior.

A criança, ao desenhar, tem uma intenção realista. O realis-mo evolui nas diferentes fases do desenho infantil até chegar aorealismo visual, que é o realismo do adulto. Para o adulto, o dese-nho tem que ser idêntico ao objeto. Já para a criança, o desenho,para ser parecido com o objeto, deve conter todos os elementosreais do objeto, mesmo invisíveis para os outros. Assim, a criançadesenha de acordo com um modelo interno: a imagem que sabe doobjeto que vê.

2.1. O DESENHO INFANTIL SEGUNDO LOWENFELD

Quanto mais auto-confiante a criança, mais ela se arrisca acriar e a se envolver com o que faz. A criança segura se concentracom mais facilidade nas atividades. Consegue se soltar e acreditarno que faz. De acordo com Streinberg ( apud LOWENFELD, 1977,p.128),

Aprender a desenhar, desenhando. Embora essa afirmação possaparecer destituída de significado, ela é muito verdadeira: a ação dedesenhar é que é a escola do desenho. O mesmo vale para as outrasatividades artísticas: aprende-se a pintar, pintando; aprende-se aesculpir, esculpindo: aprende-se a escrever, escrevendo, e assim pordiante.

Nenhum treino ou exercício de coordenação motora farácom que a criança expresse sua criatividade. Uma criança seguratem maior capacidade de envolvimento, de concentração e deprazer em criar. É importante a ela sentir-se livre para poder expres-sar-se em seus desenhos. Assim, a criança se desenvolve emharmonia e se organiza no contexto espaço/temporal, se

posicionando frente à vida, descobrindo o significado que a vidatem para si e percebendo-se como criadora de sua própria histó-ria. Lowenfld (1977) estabelece três fases para o desenho infantil.

2.1.1. PRIMEIRA FASE

A primeira fase divide-se em três etapas: etapa da garatujadesordenada, etapa da garatuja ordenada e etapa da garatuja no-meada.

Na fase da garatuja desordenada, a criança não tem cons-ciência da relação traço-gesto; muitas vezes, nem olha para o quefaz. Seu prazer é explorar o material, riscando tudo o que vê pelafrente. Segura o lápis de várias formas, com as duas mãos oualternando. Não usa o dedo ou o pulso para controlar o lápis. Fazmovimentos de vaivém, vertical ou horizontal; muitas vezes, ocorpo acompanha o movimento.

Na fase da garatuja ordenada, a criança descobre a relaçãodo gesto-traço. Passa a olhar o que faz, começa a controlar otamanho, a forma e a localização do desenho no papel. Descobreque pode variar as cores. Começa a fechar suas figuras em formascirculares ou espiraladas. Perto dos três anos, começa a segurar olápis como o adulto. Copia intencionalmente um círculo, mas nãoum quadrado.

Na etapa da garatuja nomeada, a criança faz passagem domovimento sinestésico, motor, ao imaginário, ou seja, representao objeto concreto através de uma imagem gráfica. Distribui me-lhor os traços no papel. Anuncia o que vai fazer, descreve o quefez, relaciona o desenho com o que vê ou viu, sendo que o signifi-cado do seu desenho só é inteligível para ela mesma. Começa adar forma à figura humana.

2.1.2. SEGUNDA FASE

Na segunda fase - a pré-esquemática -, os movimentoscirculares e longitudinais da etapa anterior evoluem para formasreconhecíveis, passando de conjunto indefinido de linhas parauma configuração representativa definida. A criança desenha oque sabe do objeto e não uma representação visual absoluta;seus desenhos apresentam características, não porque possuamuma forma de representação inata, mas sim porque está no come-ço de um processo mental ordenado.

2.1.3. TERCEIRA FASE

Na terceira fase, chamada esquemática, a consciência daanalogia entre a forma desenhada e o objeto representado se afir-ma. Nessa fase, a representação gráfica é muito mais tardia que alúdica verbal, enquanto a brincadeira simbólica e a linguagem jáestão bem formadas. A criança já constrói grandes cenas dramá-ticas brincando, mas só nessa fase começa a organizar seus dese-nhos. A representação das figuras humanas evolui emcomplexibilidade e organização.

De acordo com a abordagem construtivista, o conhecimento nãoestá pré-formado no sujeito, nem está totalmente pronto, acabado,determinado pelo meio exterior, independente da organização doindivíduo. A aquisição de conhecimento processa-se na troca, na

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interação da criança com o objeto a conhecer. Em outras palavras,o ato de conhecer parte da ação do sujeito sobre o objeto, só seefetua com a estruturação que ele faz dessa experiência. Isso signi-fica que o conhecimento é adquirido não pelo simples contado dacriança com o objeto cognoscente, mas pela atividade do sujeitosobre esse objeto, a partir do que ele aprende, do que ele retira, doque organiza da experiência (PIAGET, 1976, p.47).

2.2. O DESENVOLVIMENTO DO DESENHO INFANTIL SEGUNDO MIRIAN C. MARTINS,GISA PICOSQUE E MARIA T.T. GUERRA

As autoras estão fundamentadas na teoria das múltiplasinteligências formulada pelo pesquisador norte-americano HowardGardner, psicólogo da universidade de Harward. Na visão deMartins; Picosque; Guerra (1998), o desenvolvimento do dese-nho infantil, divide-se em quatro movimentos. Para as autorasmencionadas, esses movimentos não são estágios, não delimitamterritório de maneira precisa, definida. São movimentos que man-têm sua essência, sendo maleáveis e modificando-se mediante asintervenções externas, ou seja, pelo meio sócio-cultural, pela fa-mília e pelo educador.

Há necessidade de que haja uma compreensão dessesquatro movimentos e de tudo que os envolvem porque cada umtem sua beleza e significação. Estudá-los é estar se fundamentan-do para poder fazer uma boa leitura da expressão artística da cri-ança.

2.2.1. O PRIMEIRO MOVIMENTO

Ação = Pesquisa = Exercício

A criança olha, cheira, toca, se move, experimenta, sente,pensa. Desenha, canta, sorri, chora; faz tudo usando todo o cor-po. O corpo é a ação, é o movimento. Seu movimento se dá naação, na percepção, envolvido sempre pelo sentimento. A criançasente, reconhece e cria, mas ainda não é um criador intencional;essa criação focaliza a própria ação, o exercício, a repetição. Ela searrisca porque não tem medo, está aberta a todas as experiências,vive intensamente. Com a influência dos objetos e das pessoas,ela fará sua leitura e constituirá sua compreensão de mundo.

O rabiscar se estende além do lápis, do giz e do pincel. Na areia elarabisca estradas com os carrinhos de brinquedo. O rabisco não temnenhuma finalidade estética, enquanto produto: a criança não rabis-ca com intenção de fazer bonito ou expressivo, mas pelo simplesprazer de rabiscar. O rabisco é, de fato, o registro de um movimento,que serve de ‘feedback’ para a criança aprender a controlar seusmovimentos. Portanto, os rabiscos da criança não são artes abstra-tas ( ZILBERMENN, 1990, p.156).

Seu pensamento em ação, sua pesquisa, é exercitada atra-vés do exercício gestual que se manifesta em garatujas que, nessemomento, não têm significado simbólico. Esses rabiscos, de iní-cio, são incontrolados e, geralmente, longitudinais. Dos rabiscosnascem formas circulares, triangulares, quadrangulares, irregula-res. Esses diagramas vão combinando, se agregando, compondo-se. As formas vão se tornando cada vez mais complexas.

Gardner (apud MARTINS; PICOSQUE; GUERRA, 1998), o

autor da teoria das inteligências múltiplas, vê, no primeiro movi-mento, uma forma de conhecimento intuitivo, construída a partirda interação com o objeto físico e com outras pessoas, adquiridoatravés do sistema de percepções sensoriais e interações motoras,estimuladas pelo mundo externo, mesmo em crianças com dificul-dades ou limitações físicas.

2.2.2. SEGUNDO MOVIMENTO

Ação = Pesquisa = Exercício = Interação = Símbolo =Esse segundo movimento vai se estruturando enquanto

se descola de aspectos do primeiro. As mudanças vão ocorrendo,na descoberta cada vez mais confirmada de que tudo que está nomundo tem nome, tem significado, tem um porquê.

A criança dá nome aos seus rabiscos, ao perceber que eles se pere-cem com alguma coisa. Esta é uma etapa intermediária, para umafase posterior, a criança começa a representar. A representação“representa” algo para a criança, mas não tem intenções naturalis-tas. Isso dá muitas vezes, aos adultos a impressão que não ficouparecido. Muitas vezes aparecem no papel coisas que, aparente-mente, não tem nada a ver entre si, ou as partes das mesmas coisaspodem aparecer separadas, soltas no espaço. Organizar as coisas noespaço é um processo demorado, que depende do próprio desenvol-vimento da criança e não pode ser imposto de fora para dentro(ZILBERMANN, 1990, p.157).

O ser humano tem por natureza buscar significações daprópria vida, e isso nasce dessas primeiras descobertas. Não ape-nas registramos os estímulos externos, mas pensamos para agirsobre eles.

O segundo movimento expressivo é denominado simbóli-co. A função simbólica é o centro do processo de aprendizagem,representa os objetos, as ações sobre eles; também representaseus conceitos.

São representações sobre representações. Fingir beber emuma xícara vazia, por exemplo, representa um significado e temuma função lúdica e comunicativa, implicando uma conversa in-terna, tornada possível pela interiorização da ação expressada,pelas representações verbais, visuais, gestuais, sonoras.

No desenho, essa passagem se dá lentamente. Dos rabis-cos e das pesquisas de formas nascem as primeiras tentativas deletras – diferenciando escrita de desenho – e as primeiras figurashumanas. A representação centra-se no manejar e construir sím-bolos em si. Não há preocupação com a organização das cenas nopapel; seus desenhos parecem soltos no espaço.

Os símbolos construídos pelas crianças através do ver,pensar e sentir o mundo, são pautados nas suas referências pes-soais e culturais, nos registros de suas preferências e prioridades,nas características estruturais globais que enfatizam ou excluem.

2.2.3. O TERCEIRO MOVIMENTO

Ação = Pesquisa = Exercício = Interação = Símbolo = Or-ganização = Regra =

Chamada a idade de ouro do desenho, a fase em que acriança vive e elabora soluções criativas para expressar o espaço,a sobreposição, o que tem por baixo ou por trás das coisas, crian-

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do uma lógica e uma coerência perfeitamente adequadas aos seusintentos. A criança tem a intenção de buscar semelhanças emsuas representações, procurando convenções e regras com certaexigência. A criança vive intensamente a leitura e a produção sig-nificativa do mundo. Há uma realidade que está presente no pró-prio desenho, que ganha uma vida interna, reflexos de percep-ções, sentimentos e pensamentos.

Organizar as coisas no espaço significa localizar em cima, ao lado decá e ao lado de lá (que depois a criança vai nomear de esquerdo edireito). A criança mostra que é capaz de organização, representan-do a linha da terra, o chão (...) Outro limite de espaço que ascrianças costumam representar é o céu, que aparece como se fosseum teto e não uma massa de ar. Nesta fase em que as criançascomeçam a representar, ela vai também começar suas primeirasconstruções: uma madeira e um prego formam um rádio (...)(ZILBERMANN, 1990, p.157)

O aparecimento do chão representa um avanço considerá-vel na compreensão desse conceito, tendo concreta e profundarelação em suas interações com o mundo, as pessoas e os obje-tos. A busca pela representação mais realista muitas vezes traz omedo, a preocupação em fazer bem feito, levando a criança a usara borracha. A escolha da cor também obedece à regra e à organi-zação. As escolhas devem ter a cor da realidade, e as convençõesditam essas regras. As copas das árvores são sempre verdes ouo céu sempre azul.

O terceiro movimento expressivo nos mostra a invençãode relações e regras que geram critérios próprios, na busca desoluções criativas que vão alimentando um pensamento criadocom maior autonomia. Quem não produz e inventa idéias, dificil-mente consegue encontrar soluções criativas para resolver asdificuldades do cotidiano.

2.2.4. O QUARTO MOVIMENTO

Ação = Pesquisa = Exercício = Interação = Símbolo = Or-ganização = Regra = Poética = Pessoal

Duas marcas são representativas na adolescência: o pro-blema de identidade e a gênese do pensamento formal. Quem soueu? Para onde vou? Que profissional quero ser? São as questõesbásicas do adolescente que vive a construção de sua própriaidentidade.

Na produção artística–estética, contracenam, em oposi-ção ou em alternância, o prazer de manejar e explorar, a ótica pes-soal de ver – pensar – sentir o mundo, a procura de um estilopessoal, mesclando estratégias pessoais com gramáticas cultu-rais, construindo sua poética; ou o medo de se expor, a preferên-cia pela repetição de formas conquistadas, a busca de modelos, osentimento de incompetência, a obediência ou abandono de tare-fas sem significado.

2.3. DESENVOLVIMENTO INFANTIL EETAPAS EVOLUTIVAS DO DESENHO

Partindo da pesquisa bibliográfica sobre o desenho infan-til, podemos observar que, embora a abordagem e a nomenclaturausada variem, não existem divergências profundas entre os auto-

res mencionados anteriormente no que diz respeito à expressãográfica da criança.

O desenho infantil é composto por fases, etapas, estágios,movimentos, qualquer que seja a nomenclatura usada para definirque o desenho evolui conforme o próprio crescimento da criança,dentro do seu processo de desenvolvimento como ser humano.Ou seja, as garatujas ou os rabiscos aparecem na fase sensório-motora, etapa da teoria do desenvolvimento humano desenvolvi-da pelo estudioso Jean Piaget, onde a criança explora materiais emovimentos, não na fase pré-operatória, onde a criança começa aconstruir e a representar. Segundo Fischer, (2003,p.15),

A cada novo mundo criado, também são criados obstáculos especí-ficos que precisam ser resolvidos e vivenciados, e a diversão dessesmundos está exatamente em resolvê-los superando as expectativase as ansiedades criadas. Nestes mundos as crianças podem se dar aoluxo de errar para avaliar o resultado, sem medo de punição queagregue sofrimento.

Essas etapas do desenvolvimento infantil devem servivenciadas pelas crianças, fase a fase, senão pode haver umalacuna no desenvolvimento que, mais tarde, precisará ser traba-lhada. Devemos sempre lembrar que a criança é um ser em desen-volvimento como nós, adultos, também o somos, e viver é estar setransformando.

2.4. A IMPORTÂNCIA DO PROFESSOR NESSE PROCESSO

O conhecimento das etapas evolutivas do desenho infan-til fornece ao educador mais um instrumento para compreender ascrianças. Somando esse conhecimento à análise constante dosseus trabalhos e considerando sempre o significado mais profun-do do ato de desenhar como expressão de idéias e sentimentos, oeducador poderá orientar suas ações pedagógicas relacionadasàs atividades de desenho elaborando propostas de trabalho queincorporem as atividades artísticas, as quais não precisam serespontâneas das crianças. O fato de ser escolhida pelo educadornão tornará essa atividade expressiva. O desenho infantil poderáser colocado para a criança através de uma história bem contada,de um passeio, de algo ocorrido em sala, de brincadeira, de faz-de-conta, de jogos, de cantigas, etc.

A relação inusitada olho/cérebro/mão/instrumento/gesto/traçoredimensiona o ato de desenhar e o jogo é acrescido de novas regras.O olho conquista novos espaços, tentando por vezes dominar osgestos. Os olhos comandantes traz do trunfo do campo. A criançapassa a perceber os limites especiais do papel: o dentro e o fora, o eue o outro, o campo da representação e o campo da realidade. Odiscernimento do campo retangular do papel, onde tudo pode acon-tecer, inaugura a era do faz-de-conta. Inaugura-se o jogo. Desenharé atividade lúdica, reunindo como em todo o jogo, o aspectooperacional e o imaginário. Todo o ato de brincar reúne esses doisaspectos que sadiamente se correspondem. A operacionalidade en-volve o funcionamento físico, temporal, espacial, as regras; o ima-ginário envolve o projetar, o pensar, o idealizar, o imaginar situa-ções. Ao desenhar, o espaço de papel se altera. (DERDYK, 1989,p.71).

O que faz com que a criança se expresse criativamente é aliberdade física e mental. Por esse motivo, é muito importante queo conteúdo seja acessível e significativo, que seja proposto deforma que a criança expresse seus pensamentos livremente, ten-

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do a autonomia necessária para criar.Segundo Pillar (1996), ao observar o desenho de uma cri-

ança, podemos aprender muito sobre o seu modo de pensar esobre as habilidades que possui. Quando, em um desenho, osbraços de uma figura humana saem da cabeça e não do tronco,por exemplo, significa que a criança ainda não tem construídointeriormente, em seu pensamento, o esquema corporal de umafigura humana. Isso nada tem a ver com o fato de ela não estarenxergando direito, de estar com problemas de motricidade fina,ou ainda, de não estar apta a desenhar com destreza. Desenharfiguras humanas possibilita à criança estruturar suas idéias sobrea figura humana.

No mesmo sentido, quando as crianças escrevem letras ealgarismos espalhados, representa o que têm construído sobre asrelações espaciais, se direita/esquerda ou em cima/embaixo. Nãoexiste “o todo” integrado em seu pensamento; o desenho ou aescrita refletirá a forma que ela tem de ver o mundo, e não aquelaque a maioria dos adultos considera correta.

O papel do educador é muito importante nesse processo.Ele não é apenas um facilitador. É alguém que deverá desafiar,incentivar, procurar ampliar as experiências e os conhecimentosda criança. Com a criança pequena, o educador não necessitaráutilizar-se de técnicas muito elaboradas.

É importante que a criança tenha oportunidade de dese-nhar livremente, em papéis e em tamanhos e texturas diferentes,em posições variadas, com materiais diversos. Quando a criançavai dominando seus movimentos e gestos, as propostas devemser diferentes: desenhar em vários tempos e ritmos, fazer passeiose expressar o que observou no papel, incentivar o desenho cole-tivo, desenhar as etapas percorridas após uma brincadeira oujogo e muitas outras podem ser feitas com a criança para ajudá-laa aprimorar suas capacidades de desenhar. Os educadores quevivem diariamente com essas crianças vão sendo também incenti-vados por elas a criar, sempre e cada vez mais, novas atividades.Segundo Neves (2003),

Criar brincando – esse o duplo verbo que traduz o dia-a-dia da infân-cia. A maturação de si em borboleta, o pousar no sol, o estar além deestrelas. Em um único gole, sorve a água de todos os mares, maistrês cachoeiras, mais nove riachos. Em seu íntimo cessa toda equalquer guerra. Fala em idiomas incríveis, num linguajar que flui doespírito. A criança se guia pelo Deus que lhe habita, dentro. Podetudo o que adulto não pode (ou não se permite): ser criança, porexemplo.

O educador deve entender que o desenho da criança de-penderá também do meio em que vive, se tem oportunidade de teracesso a materiais e atividades que permitam e incentivem a suaexpressão artística. Deve, também, respeitar o ritmo de cada crian-ça, a maneira como sua obra está evoluindo, porque cada criançatem um tempo e uma maneira de internalizar suas experiências evivências.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Levantadas questões nesta pesquisa, percebemos queexiste uma estreita relação entre as fases do desenho infantil e asetapas evolutivas do desenvolvimento humano.

Buscando respostas ao analisar os vários autores citados,tomamos conhecimento de que há uma relação nas abordagens

das pesquisas realizadas, não existindo divergências profundasentre esses pensadores.

Dessa forma, é importante mencionar que o conhecimentodas fases do desenho infantil deve contribuir para a construçãodo imaginário das crianças, sendo mais um recurso que o educa-dor poderá utilizar para melhor compreendê-las. Somando conhe-cimento, análise e compreensão da produção infantil, o educadorperceberá o significado mais profundo do ato de criar, expressãodas idéias e dos sentimentos da criança.

Considerando o prazer que a criança possa sentir com oseu gesto, além de estar construindo sua noção espacial e desen-volvendo em suas ações, habilidades motoras, através de todoesse processo, o educador poderá orientar suas ações pedagógi-cas com relevância, mérito e qualidade.

4. REFERÊNCIAS

FISCHER, Julianne. O lúdico e a abstração. Curso de especializa-ção em Educação Infantil. 15p. Apostila. Indaial: ICGP, 2003.LOWENFELD, Viktor. A criança e sua arte. 2 ed. São Paulo: Mes-tre Jou, 1977.MARTINS, Mirian Celeste. PICOSQUE, Gisa; GUERRA, Maria T.Telles. A língua do mundo: Poetizar, fluir e conhecer arte. SãoPaulo: FTD, 1998.MERLEAU-PONTY, Maurice. Merleau-Ponty na Sorbone. Resu-mo de cursos filosofia e linguagem. Campinas: Papirus, 1990.NEVES, Lygia Helena Roussenq. O impulso criativo da infância.Curso de especialização em Educação Infantil. Apostila. Indaial:ICGP, 2003.PIAGET, Jean. A equilibração das estruturas cognitivas. Rio deJaneiro: Zahar, 1976.PILLAR, Analise Dutra. Desenho & escrita como sistema de re-presentação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.PILLAR, Analise Dutra. Desenho e construção do conhecimentona criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.ZILBERMANN, Regina (org.). A produção cultural para a crian-ça. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990.