CRIAÇÃO E SUBLIMAÇÃO -...

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TALITHA FERRAZ DE SOUZA CRIAÇÃO E SUBLIMAÇÃO: UMA LEITURA INSPIRADA EM FREUD E RICOEUR DA OBRA DE PROUST EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO DOUTORADO : FILOSOFIA PUC/SP 2007

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TALITHA FERRAZ DE SOUZA

CRIAÇÃO E SUBLIMAÇÃO:UMA LEITURA INSPIRADA EM FREUD E RICOEUR

DA OBRA DE PROUST EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO

DOUTORADO : FILOSOFIA

PUC/SP

2007

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TALITHA FERRAZ DE SOUZA

CRIAÇÃO E SUBLIMAÇÃO:UMA LEITURA INSPIRADA EM FREUD E RICOEUR

DA OBRA DE PROUST EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO

Tese apresentada à banca examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia, sob

a orientação da Profª Drª Jeanne-Marie Gagnebin.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

2007

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Banca Examinadora

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RESUMO

Pensada como uma reflexão sobre a criação na arte, especialmente na

literatura, a partir do conceito psicanalítico de sublimação, esta tese propõe-se

a uma leitura da obra de Proust Em Busca do Tempo Perdido, visando a

elucidação deste processo de criação.

O conceito de sublimação, embora passível de múltiplas leituras, permite

a compreensão da criação na arte como um processo de “flexibilização” em

relação a fixações originárias compulsivas, o que pode ser compreendido na

obra proustiana como uma “busca do tempo perdido” que possibilita, através de

um “tempo reencontrado”, a escrita literária.

Palavras-chave:

criação, sublimação, Psicanálise, Ricoeur, Proust.

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ABSTRACT

As a reflection on the creation in art, especially in literature, starting from

the psychoanalitic concept of sublimation, this thesis presents for consideration

the reading of Proust's work: In Search of Lost Time, aiming on the elucidation

of this process of creation.

The concept of sublimation, although subject to multiple readings, allows

the comprehension of the creation in art as a process of "flexibilization" in

relation to compulsive originary fixations, that can be understood in Proust's

work as a "search of lost time" making possible through a "re-encountered

time” its literary writing.

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Aos meus pais,

José Onofre de Souza (in

memoriam),

pelo amor aos livros e à

leitura.

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Daisy Lagatta de Souza,

por tudo,

mas hoje, por estar tão

viva.

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AGRADECIMENTOS

À Comissão de Pesquisa do CEPE da PUCSP, pelo auxílio concedido de

março de 2004 a março de 2005.

À Profª Drª Jeanne-Marie Gagnebin, minha orientadora, pelo estímulo a uma

orientanda por vezes desanimada, pela sua acolhida pessoal e intelectual, e

principalmente pelas suas observações sempre sensíveis e instigantes.

À Profª Drª Glória Carneiro do Amaral e ao Profº Drº Peter Pál Pelbart pela

leitura, comentários e sugestões feitos no Exame de Qualificação.

À Sybil Safdié Douek, minha querida amiga, principalmente pela sua presença

constante, mas também pela ajuda inestimável no cotejamento do texto original em

francês com a tradução, inclusive por seus comentários, que foram apenas

parcialmente transcritos neste trabalho.

À Julia de Souza Delibero Angelo, minha filha queri

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Índice

Introdução......................................... ................................................................ 1

Capítulo IA Sublimação....................................... ............................................................. 8

Capítulo IIPsicanálise e Literatura ........................... ...................................................... 27

Capítulo IIIO Início da Obra - Numa Xícara de Chá.............. .......................................... 38

Capítulo IVA História Invisível de Uma Vocação................ ............................................ 47

I – Do Quarto à Biblioteca......................... .................................................. 48

II – Ainda na Biblioteca – “Um Romance Familiar” ... ............................... 60

III – No Salão (e na cozinha!) – A Natalidade ...... ...................................... 71

Capítulo V“Frente à Obra” - Um Sujeito Modesto............... .......................................... 79

Capítulo VICriação e Sublimação ............................... ..................................................... 88

Considerações Finais ............................... ................................................... 107

Referências Bibliográficas ......................... ................................................. 118

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Introdução

“Outra técnica para afastar o sofrimento reside no emprego dos

deslocamentos de libido que nosso aparelho mental possibilita e

através dos quais sua função ganha tanta flexibilidade. (...) Obtém-se o

máximo quando se consegue intensificar suficientemente a produção de

prazer a partir das fontes do trabalho psíquico e intelectual. Quando

isso acontece, o destino pouco pode fazer contra nós. Uma satisfação

desse tipo, como, por exemplo, a alegria do artista em criar, em dar

corpo às suas fantasias, ou a do cientista em solucionar problemas ou

descobrir verdades, possui uma qualidade especial que, sem dúvida,

um dia poderemos caracterizar em termos metapsicológicos.”1

Pensada como uma reflexão sobre a criação na arte, nos propusemos

nesta tese a empreender uma leitura do texto de Proust, Em Busca do Tempo

Perdido, a partir do conceito psicanalítico de sublimação.

Uma primeira questão diz respeito à escolha da obra de Proust como

objeto da leitura proposta neste trabalho, leitura esta, enfatizamos, orientada

para a questão da criação.

Em Busca2 constitui-se na verdade, como um exemplo privilegiado, para

esta reflexão, por ser o processo de criação exatamente seu tema, como

comenta Leda Tenório da Motta:

“Sherazade abrindo nas Mil e uma noites a página do conto em

que vira contista, esta (Em Busca do Tempo Perdido) é igualmente a

história de um texto.”3

1 FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora

Imago, vol. XXI, 1987, p. 98.

2 A partir deste ponto, utilizaremos a abreviatura Em Busca para a obra de Proust.

3 MOTTA, Leda Tenório da. A História de Um Texto. In: Marcel Proust. O Tempo Redescoberto(Posfácio). São Paulo: Ed. Globo, 2005, p. 297.

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2

O processo de criação tematizado na obra, permite, e este é outro

motivo para a escolha, uma aproximação com o conceito de sublimação, já que

este pressupõe, como veremos, uma via regressiva, uma “busca do tempo

perdido” também, pela importância que o “retorno do recalcado” representa no

processo de sublimação.

Em relação ao conceito de sublimação, nos interessa apontar o

horizonte no qual se inscreve, na tentativa de justificar nossa escolha.

Como fica claro na obra O Mal-Estar na Civilização, é a questão da

busca da felicidade, propósito e intenção da vida, do ponto de vista humano4, a

questão de fundo sobre a qual o conceito de sublimação será pensado:

“Voltar-nos-emos, portanto, para uma questão menos ambiciosa,

a que se refere àquilo que os próprios homens, por seu comportamento,

mostram ser o propósito e a intenção de suas vidas. O que pedem eles

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foi o famoso episódio de Em Busca, no qual Proust nomeia explicitamente o

termo “felicidade”, em relação à sensação de saborear a madeleine

mergulhada na taça de chá fumegante (“E recomeço a me perguntar qual

poderia ser esse estado desconhecido, que não trazia nenhuma prova lógica,

mas a evidência de sua felicidade”11).

Nos pareceu vislumbrar, neste momento, uma relação entre arte e

felicidade (intitulamos nosso Projeto inicial “A Arte Como Possibilidade de

Felicidade”), que continuamos a considerar como existente, mas que não era

tão direta como pensamos a partir desta primeira leitura.

O episódio da madeleine em si, concluímos por fim, quase nada nos diz

sobre o processo de criação pela arte, e seu narrador também não se contenta

com ela, o que indica o famoso parênteses ressaltado por Ricoeur em um texto

que comentaremos adiante: “embora ainda não soubesse, e tivesse de deixar

para muito mais tarde tal averiguação, por que motivo aquela lembrança me

tornava tão feliz.”12

Esta averiguação, que nos parece constitutiva do processo de criação,

não por acaso, só acontece tardiamente em Em Busca, ao seu final, quando os

temas da morte e do esquecimento se impõem, e é este enfrentamento que

transforma a narração, segundo observação de Jeanne-Marie Gagnebin, em

obra de arte:

“Só se tornou uma obra de arte, isto é uma criação que tem a ver

com a verdade, porque se confronta com as dificuldades dessas

revivências felizes, porque toma a sério a presença da resistência e do

esquecimento, em última instância a presença do tempo e da morte. A

elaboração estética e reflexiva, descrita nos parágrafos anteriores no

seu duplo movimento de concentração e de distração, é imprescindível

11 PROUST, Marcel. Du côte de chez Swann. Volume I de: À la recherche du temps perdu.

Paris: Flammarion, 1987. Tradução de Mário Quintana: No Caminho de Swann. São Paulo,Editora Globo, 2001 (14ª edição), p. 49. (Du côte de chez Swann: “Et je recommence à medemander quel pouvait être cet état inconnu, qui n’apportait aucune preuve logique, maisl’évidence de sa félicité”, op. cit., p. 143).

12 Idem, p. 51. (Du côte de chez Swann: “ (quoique je ne susse pas encore et dusse remettre àbien plus tard de découvrir pourquoi ce souvenir me rendait si heureux)”, op. cit., p. 145).

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justamente porque não há reencontro imediato com o passado, mas sim

sua lenta procura, cheia de desvios, de meandros, de perdas que as

frases proustianas mimetizam, atravessando as numerosas, diversas,

irregulares e heterogêneas camadas do lembrar e do esquecer.”13

Ficou evidenciado que a questão da criação nos impunha uma leitura

mais abrangente da obra de Proust, para a qual foram fundamentais dois textos

de Paul Ricoeur.

O primeiro deles, a que já nos referimos (sem nomeá-lo), “Em Busca do

Tempo Perdido – O Tempo Travessado”14 determinou uma mudança na

compreensão da obra, como também já comentamos. Além disto, inspirou um

longo capítulo intitulado “A História Invisível de Uma Vocação”, em que

tentamos explorar algumas possibilidades de interpretação de certas

passagens de Em Busca, que a leitura do texto de Ricoeur nos suscitou.

O segundo texto de Ricoeur que nos influenciou, “A Identidade

Narrativa”15, sugere que o processo de busca de um tempo perdido, na obra

de Proust, constitui um sujeito narrativo (no capítulo “Frente à Obra – Um

Sujeito Modesto”, abordamos algumas questões ligadas a esta noção) que

consegue ao final, para usar uma expressão machadiana16: “atar as duas

pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência”. Marcel, o herói de Em

Busca, não é nem mesmo velho, mas doente e frágil, convivendo com

presságios de morte, o que o coloca numa situação semelhante ao do narrador

de Dom Casmurro. Mas se este inicia sua narração por esta motivação (“atar

13 GAGNEBIN, Jeanne-Marie. O rumor das distâncias atravessadas. Revista do Departamento

de Teoria Literária. nº 22, Campinas: UNICAMP, p. 9.

14 RICOEUR, Paul. A la Recherche du temps perdu: le temps traversé. In: Temps et récit II – Laconfiguration dans le récit de fiction. Paris: Seuil, 1984. Tradução de Marina Appenzeller: Embusca do tempo perdido: o tempo travessado. In: Tempo e narrativa – Tomo II. Campinas:Papirus, 1995. Não podemos deixar de mencionar a impropriedade da tradução daexpressão distance traversée por “distância travessada”, em vez de “distância atravessada”(“travessada” simplesmente não existe em português ou pelo menos não é dicionarizada).

15 RICOEUR, Paul. A Identidade Narrativa. [L’Identité Narrative, In: Revista Esprit nº 7-8 (juillet-août)], tradução de Maria da Glória S. Silveira (manuscrito).

16 ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Ed. Scipion, 1996, p. 2.

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“Não sei se da parte dos senhores considerarão como

presunção minha a admoestação com que concluo. Atrevo-me apenas

a representar indiretamente a convicção que tenho, narrando-lhes uma

anedota já antiga, cuja moralidade os senhores mesmo apreciarão. A

literatura alemã conhece um vilarejo chamado Schilda, de cujos

habitantes se contam todas as espertezas possíveis. Dizem que

possuíam êles um cavalo com cuja fôrça e trabalho estavam

satisfeitíssimos. Uma só coisa lamentavam: consumia aveia demais e

esta era cara. Resolveram tirá-lo pouco a pouco dêsse mau costume,

diminuindo a ração de alguns grãos diàriamente, até acostumá-lo à

abstinência completa. Durante certo tempo tudo correu magnìficamente;

o cavalo já estava comendo apenas um grãozinho e no dia seguinte

devia finalmente trabalhar sem alimento algum. No outro dia

amanheceu morto o pérfido animal; e os cidadãos de Schilda não

sabiam explicar por quê.

Nós nos inclinaremos a crer que o cavalo morreu de fome e que

sem certa ração de aveia não podemos esperar em geral trabalho de

animal algum.”19

Esta tão pouco presunçosa “admoestação” com que Freud conclui seu

texto, podemos dizer que se coloca na verdade a favor da vida, e não contra a

sublimação.

Com a nossa escolha do conceito, para a compreensão do processo de

criação, não pretendemos glorificá-lo: a sublimação não deve (e não pode)

sobrepor-se à vida. Questão importante tematizada na obra de Proust, quando

o narrador descobre que a vida (“minha vida passada”), é a “matéria da obra

literária”20

19 Idem, p. 50-51.

20 PROUST, Marcel. Le temps retrouvé. Volume VIII de À la recherche du temps perdu. Paris:Gallimard, Livre de Poche, 1954. Tradução de Lúcia Miguel Pereira: O Tempo Redescoberto,São Paulo: Editora Globo, 2001, (14ª edição), p. 175: “a matéria da obra literária era, afinal,minha vida passada” (Le temps retrouvé: “Tous ces matériaux de l’oeuvre littéraire, c’était mavie passée.”, p. 260-261).

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Capítulo I

A Sublimação

“A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós;

proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A

fim de suportá-la, não podemos dispensar as medidas paliativas. ‘Não

podemos passar sem contruções auxiliares’, diz-nos Theodor Fontane.

Existem talvez três medidas desse tipo: derivativos poderosos, que nos

fazem extrair luz de nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a

diminuem; e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela. Algo

desse tipo é indispensável. Voltaire tinha os derivativos em mente

quando terminou Candide com o conselho para cultivarmos nosso

próprio jardim, e a atividade científica constitui também um derivativo

dessa espécie. As satisfações substitutivas, tal como as oferecidas pela

arte, são ilusões, em contraste com a realidade; nem por isso, contudo,

se revelam menos eficazes psiquicamente, graças ao papel que a

fantasia assumiu na vida mental.”21

Nesta citação de O Mal-Estar, Freud afirma que, a fim de suportar a

vida, existem medidas paliativas “que não podemos dispensar”, entre elas

“derivativos poderosos que nos fazem extrair luz de nossa desgraça”22 Freud

21 FREUD, Sigmund. Op. cit., p. 93.

22 No texto original não existe esta expressão (“extrair luz”). A frase em questão poderia sertraduzida (tradução proposta por Rafael Ventura, a quem agradeço) mais própriamente por“distrações poderosas que fazem com que não demos tanto valor a nossa miséria.” O trechocitado como epígrafe em alemão é o que se segue:Das Leben, wie es uns auferlegt ist, ist zu schwer für uns, es bringt uns zuviel Schmerzen,Enttäuschungen, unlösbare Aufgaben. Um es zu ertragen, Können wir Linderungsmittel nichtentbehren. (Es geht nicht ohne Hilfskonstruktionen, hat uns Theodor Fontane gesagt.)Solcher Mittel gibt es vielleicht dreierlei: mächtige Ablenkungen, die uns unser Elendgeringschätzen lassen, Ersatzbefriedigungen, die es verringern, Rauschstoffe, die uns fürdasselbe unempfindlich machen. Irgend etwas dieser Art ist unerlässlich. Auf dieAblenkungen zielt Voltaire, wenn er seinen “Candide” in den Rat ausklingen lässt, seinenGarten bearbeiten; solche eine Ablenkung ist auch die wissenschafltiche Tätigkeit. DieErsatzbefriedigungen, wie die Kunst sie bietet, sind gegen die Realität Illusionen, darumnicht minder psychisch wirksam dank der Rolle, die die Phantasie im Seelenleben behauptethat. In: Das Unbehagen in der Kultur – und andere kulturtheoretische Schriften. EditoraFischer Taschenbuch Verlag, Edição neunte, unveränderte Auflage: März 2004, Capítulo II,p. 40-41.

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cita Voltaire para ilustrar este ponto, concluindo que a ciência é um derivativo

desta espécie.

A seguir, na citação, Freud fala explicitamente da arte, exemplo do que

categoriza como “satisfações substitutivas”, que “são ilusões”, mas eficazes

psiquicamente, nesta tarefa de suportar a vida, “graças ao papel que a fantasia

assumiu na vida mental”.

Comumente, considera-se que nestes exemplos de sublimação – pois,

como veremos, é deste processo que se trata –, haveria uma valoração em

favor da ciência, exemplo privilegiado em detrimento da arte, ilusão

consoladora e valiosa, mas ilusão (e sem dúvida, em vários textos de Freud,

pode ser percebida esta apreciação).

No entanto, algo parece não se encaixar nesta categorização. Por que

cargas d’água Freud citaria Voltaire, um filósofo, em relação a uma obra

literária que costuma ser assimilada a um gênero específico, “o conto

filosófico”, e cujo conteúdo nos exorta a “cultivar o próprio jardim”, para afinal

ilustrar o que chama de “derivativos poderosos”, cujo maior exemplo seria a

ciência?

Ou seja, por que Freud não usa, para ilustrar este ponto, um dos

inúmeros exemplos gloriosos da própria ciência de que sua época era pródiga,

e ao invés cita uma obra literária de um filósofo?

Uma leitura atenta do texto dissipa estas questões, pois Freud delimita

claramente o âmbito do processo de sublimação:

“Obtêm-se o máximo quando se consegue intensificar suficientemente a

produção de prazer a partir das fontes do trabalho psíquico e intelectual.

Quando isso acontece, o destino pouco pode fazer contra nós. Uma

satisfação desse tipo, como, por exemplo, a alegria do artista em criar,

em dar corpo às suas fantasias, ou a do cientista em solucionar

problemas ou descobrir verdades, possui uma qualidade especial que,

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sem dúvida, um dia poderemos caracterizar em termos

metapsicológicos.”23

Ou seja, a sublimação corresponde à criação, em qualquer âmbito

artístico ou científico, e que se diferencia das anteriormente denominadas

“satisfações substitutivas”, e que a seguir revelam-se como um processo

passivo, de “fruição”:

“Enquanto esse procedimento já mostra claramente uma

intenção de nos tornar independentes do mundo externo pela busca da

satisfação em processos psíquicos internos, o procedimento seguinte

apresenta esses aspectos de modo ainda intenso. Nele, a distensão do

vínculo com a realidade vai mais longe; a satisfação é obtida através de

ilusões, reconhecidas como tais, sem que se verifique permissão para

que a discrepância entre elas e a realidade interfira na sua fruição. A

região onde essas ilusões se originam é a vida da imaginação; na

época em que o desenvolvimento do senso de realidade se efetuou,

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realidade quanto a ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo

menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na

comunidade humana. A possibilidade que essa técnica oferece de

deslocar uma grande quantidade de componentes libidinais, sejam eles

narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional,

e para os relacionamentos humanos a ele vinculados, empresta-lhe um

valor que de maneira alguma está em segundo plano quanto ao de que

goza como algo indispensável à preservação e justificação da existência

em sociedade. A atividade profissional constitui fonte de satisfação

especial, se for livremente escolhida, isto é, se, por meio de sublimação,

tornar possível o uso de inclinações existentes, de impulsos instintivos

persistentes ou constitucionalmente reforçados. No entanto, como

caminho para a felicidade, o trabalho não é altamente prezado pelos

homens. Não se esforçam em relação a ele como o fazem em relação a

outras possibilidades de satisfação. A grande maioria das pessoas só

trabalha sob a pressão da necessidade, e essa natural aversão humana

ao trabalho suscita problemas sociais extremamente difíceis.”25

Freud hesita em considerar o trabalho como possibilidade de

sublimação, já que em sua época (e também na nossa) o que prevalece é o

trabalho alienado26. Mas, se na sublimação “se consegue intensificar

suficientemente a produção de prazer a partir das fontes do trabalho psíquico e

intelectual”, por que, afinal, mesmo em relação ao “livremente escolhido”, “não

se costuma fazer referência ao prazer que porventura ele proporcione?”.27

Mesmo o trabalho “intelectual” ou “mental”, muitas vezes também acaba,

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publish or perish, que preside o trabalho intelectual nas academias

americanas?

Trabalho sem prazer. E prazer (ou “lazer”) como ausência de trabalho.

Questão crucial, que, no entanto, escapa ao escopo deste ... trabalho.

No entanto, mesmo não aprofundando esta questão, em relação ao

processo de “sublimação”, gostaríamos de salientar que nos interessa não

apenas o que pode proporcionar em termos de felicidade pessoal, mas

principalmente sua importância para a Cultura:

“Uma das grandes revelações de Freud foi a de que a civilização

não se baseia apenas no recalque dos impulsos libidinosos, mas

também, e de forma não menos importante, na sua canalização, em

volume significativo, para finalidades criadoras – processo a que deu o

nome de sublimação. Quando a necessidade de repressão e o

mecanismo de repressão se rompem, parece claro que a civilização só

pode florescer se os canais de sublimação forem constantemente

ampliados e aprofundados, somente se as pessoas puderem encontrar

escoadouros sempre novos para as suas energias latentes, e que

também constituam fontes autênticas de satisfação.”28

Em relação à importância do processo de sublimação para a Cultura, se

é pertinente neste contexto uma questão mais propriamente política, alguns

autores têm apontado os perigos do declínio deste processo nas sociedades

industriais (e pós-industriais), como podemos depreender deste comentário,

que relaciona este declínio com o capitalismo:

“Mas, no capitalismo monopolista, é exatamente o contrário que ocorre:

a totalidade do processo vital de sublimação está em perigo de colapso.

Como interpretar de outro modo a perda de significação do trabalho, a

insipidez estultificante do lazer, a degeneração do que recebe o nome

de cultura, o fenecimento da atividade política como luta sobre o

caminho a ser percorrido pela sociedade?”29

28 Idem, p. 350.

29 Idem, p. 350-351.

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Até este momento, falamos do conceito de sublimação como evidente. É

chegada a hora de tentarmos estabelecer uma compreensão deste conceito,

que possibilite a reflexão sobre o processo de criação na arte, tal como a

encontramos em Em Busca do Tempo Perdido, de Proust.

É um conceito polêmico (a sublimação) sobre o qual é necessário nos

posicionarmos; é o que faremos aqui, desde já deixando claro que não se trata

da formulação de uma nova leitura deste conceito.

Ao invés, enfocaremos as formulações de alguns autores, que julgamos

possibilitar uma compreensão abrangente, e ao mesmo tempo sintética da

questão da sublimação.

Iniciaremos com uma crítica bastante contundente (e também, como

veremos, exemplar de uma certa leitura do conceito), formulada por Adorno30,

que dirige um duro comentário ao conceito de sublimação:

“Os artistas não sublimam. Crer que eles não satisfazem nem reprimem

seus desejos, mas transformam-nos em realizações socialmente

desejáveis, suas obras, é uma ilusão psicanalítica; aliás, nos dias de

hoje, obras de arte legítimas são, sem exceção, socialmente

indesejadas. Antes, manifestam os artistas instintos violentos, de tipo

neurótico, que eclodem livremente e, ao mesmo tempo, colidem com a

realidade. Mesmo o filisteu, que imagina o ator ou o violinista como uma

síntese entre um feixe de nervos e um destruidor de corações, está

mais certo do que a não menos filistéia economia pulsional, segundo a

qual os privilegiados filhos da renúncia se liberam criando sinfonias ou

romances.”

Adorno termina estas considerações do seguinte modo, visando

diretamente a figura de Freud:

30 ADORNO, Theodor Wiesegrund. Minima Moralia. Verbete 136 (“o exibicionista”). São Paulo:

Editora Ática, p. 186-187.

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“A arte é tão hostil à arte quanto o são os artistas. Na renúncia ao

objetivo pulsional a arte continua fiel a este, com uma fidelidade que

desmascara o que é socialmente desejado, ingenuamente glorificado

por Freud como a sublimação que, provavelmente, não existe.”

Talvez poucos adjetivos pudessem atingir Freud do modo como o fez

Adorno, ao supô-lo “ingênuo”, e à psicanálise “criadora de ilusões”, quando

aquele tantas vezes assinalou a Psicanálise como um saber que objetiva, nas

palavras de Hélio Pellegrino, “curar o ser humano de suas ilusões”31.

Se esta fosse mesmo, a única forma de compreendermos o sentido do

conceito de “sublimação”, nada nos restaria a não ser concordar com Adorno, e

nos afastarmos de uma formulação tão ingênua, ilusória, e acima de tudo,

conformista.

Na verdade, as dificuldades postas para a elaboração do conceito de

sublimação, estão dadas desde o seu início, com o próprio Freud insatisfeito

com sua formulação, como assinala Laplanche, ademais nos proporcionando

um primeiro histórico do conceito:

“A sublimação é certamente uma das cruzes (em todos os

sentidos do termo: ao mesmo tempo um ponto de convergência, de

cruzamento mas também o que põe na cruz) da psicanálise e uma das

cruzes de Freud. (...) o conceito de sublimação apresenta-se desde o

início em Freud, desde 1895, com as cartas a Fliess. Mas, do começo

ao fim, a sublimação será mais citada do que desenvolvida e analisada:

não aparece tanto como um conceito, mas como indicador de um

questionamento que era preciso fazer, tarefa a realizar, noção

indispensável mas jamais “apreendida” no Begriff *. Dois momentos,

entre outros, são testemunho disso: em 1915, Freud começa a elaborar

um tratado de metapsicologia que deverá compreender uma dúzia de

capítulos, entre os quais um texto, precisamente, sobre a sublimação.

Esse texto, como alguns outros, aliás, nunca foi publicado, pois ele o

destruiu; restaram apenas, escapando à vindita ou à insatisfação de

31 PELLEGRINO, Hélio. Ainda É A Cabeça Que Liberta O Corpo. [transcrição de conferência

(apostila da disciplina de Psicologia do Cíclo Básico da PUCSP, 1987)], p. 1.

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Freud, aqueles que estão atualmente publicados na coletânea intitulada

Metapsicologia, coletânea truncada pelo próprio Freud. Muito mais

tarde, em 1930, em O mal-estar na civilização, é ainda diante da mesma

tarefa inacabada que Freud se encontra. A satisfação sublimada, diz

ele, possui “uma qualidade particular que um dia chegaremos a

caracterizar do ponto de vista metapsicológico”. A compreensão da

sublimação é remetida para o futuro, se bem que Freud dê prova de um

grande otimismo com o seu “certamente”.”32 [(*) Begriff – conceito, idéia

básica]

Mas o que podemos considerar, mesmo provisoriamente, como sendo

“sublimação”? Partiremos de uma definição elaborada por Laplanche e

Pontalis:

“Processo postulado por Freud para explicar atividades humanas

aparentemente sem relação com a sexualidade mas que encontrariam

sua origem na força da pulsão sexual. Freud descreveu como atividade

de sublimação principalmente a atividade artística e a investigação

intelectual. Diz-se que a pulsão foi sublimada na medida em que ela é

desviada para uma nova meta não-sexual e visa a objetos socialmente

valorizados.”

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“(...) se pressupõe nesta matriz de pensamento que a sublimação

implica uma dessexualização da pulsão. Vale dizer, para que se realize

uma efetiva experiência de criação, necessário seria que o sujeito

pudesse suspender qualquer veleidade erótica. Dito de outra maneira, o

ato criativo pressuporia a suspensão do erótico, de maneira a conduzir

a subjetividade para o horizonte da “espiritualização”. (...) Assim,

existiria nesta suposição teórica a oposição radical entre criar e erotizar,

de forma que para que a primeira experiência acontecesse necessário

seria colocar a segunda entre parênteses. Portanto, a criação seria,

rigorosamente falando, um ato de espiritualização, na medida em que o

corpo erógeno seria colocado provisoriamente de lado e impedido de se

manifestar.”37

É importante também mencionar, que esta primeira formulação do

conceito, já é marcada pela insatisfação de Freud em relação a ela:

“Porém, desde que a enunciou formalmente o discurso freudiano

mostrou-se já francamente insatisfeito com a solução apontada,

indicando prontamente desde então os seus impasses e contradições

que acabaram por conduzi-lo inequivocamente para uma segunda teoria

da sublimação nos anos trinta.”38

Birman destaca o ano de 1915, referente ao qual é importante assinalar

uma falta (a de um texto), mas que é também o ano no qual Freud (em outro

texto) faz uma alusão ao conceito de sublimação, que é importante ser

mencionada:

“O instinto sexual – ou, mais corretamente, os instintos sexuais, pois a investigação analíticanos ensina que o instinto sexual é formado por muitos constituintes ou instintoscomponentes – apresenta-se provavelmente mais vigorosamente desenvolvido no homemdo que na maioria dos animais superiores, sendo sem dúvida mais constante, desde quesuperou completamente a periodicidade à qual é sujeito nos animais. Esse instinto coloca àdisposição da atividade civilizada uma extraordinária quantidade de energia, em virtude deuma singular e marcante característica: sua capacidade de deslocar seus objetivos semrestringir consideravelmente a sua intensidade. A essa capacidade de trocar seu objetivosexual original por outro, não mais sexual, mas psiquicamente relacionado com o primeiro,chama-se capacidade de sublimação.” (FREUD, Sigmund. Moral Sexual “Civilizada” eDoença Nervosa Moderna. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora Imago, vol. IX,1987, p. 193).

37 BIRMAN, Joel. Op. cit., p. 98.

38 Idem, p. 99.

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se fundaria na erotização da pulsão, pelo viés precisamente do retorno

do recalcado como sua materialidade.”41

O “retorno do recalcado” é um processo que pode ser aproximado das

reminiscências descritas em Em Busca (abordaremos esta questão no capítulo

VI), ficando desde já assinalada a importância deste retorno para o processo

de sublimação.

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Busca representa, e que, como veremos, se resolve quando a “noção de

tempo” – a possibilidade da morte e do esquecimento –, se impõe.

Enfim, é em 193245 que Freud formula explicitamente uma modificação

no conceito:

“Nas ‘Novas conferências introdutórias à psicanálise’ de 1932, o

discurso freudiano afirmou que existiria na sublimação a criação de

novos objetos de investimento e de ligação da força pulsional. O que

implica dizer que, pela sublimação, existiria a criação de outros objetos

para o circuito pulsional e não mais apenas a manutenção do mesmo

objeto, como no ensaio de 1908.”46

Nesta nova leitura do processo de sublimação, é ressaltada sua

“ruptura” com as fixações eróticas originárias (iniciado embora, como vimos,

pelo “retorno do recalcado”):

“A hipótese de trabalho que proponho aqui é que a sublimação

seria agora uma “ruptura” com as “fixações” eróticas originárias, pela

mediação das quais o psiquismo teria se constituído “contra” o

movimento primário para a morte, pela promoção e criação de novas

ligações e objetos possíveis de satisfação. Por isso mesmo, a

sublimação não seria uma forma de idealização, precisamente porque

possibilitava o “triunfo” da vida contra a morte. Contudo, a erotização

continuaria a ser a matéria-prima do processo sublimatório, mas uma

erotização sem qualquer marca de idealização, presente no objeto de

fixação originário.”47

45 Na Conferência em questão, denominada “Ansiedade e Vida Instintual”, Freud afirma que:

“As relações de um instinto com a sua finalidade e com o seu objeto também são passíveisde modificações; ambos podem ser trocados por outros embora sua relação com seu objetoseja, não obstante, a que cede mais facilmente. Um determinado tipo de modificação dafinalidade e de mudança do objeto, na qual se levam em conta nossos valores sociais, édescrito por nós como ‘sublimação’. (FREUD, Sigmund. Novas Conferências Introdutórias àPsicanálise. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora Imago, vol. XXII, p. 121).Na verdade, a mudança é tão sutil, que possibilitou a seus tradutores ingleses afirmar que:“O conteúdo desse parágrafo é, na sua grande maioria, repetição da primeira parte de ‘OsInstintos e suas Vicissitudes’.” (Idem, p. 122). Sutil, mas poderíamos dizer com Birman,decisiva, já que se trata da inclusão da possibilidade de novos objetos de investimento.

46 Joel Birman, op. cit., p. 114.

47 Idem, p. 115.

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Mas, este rompimento se daria com as fixações originárias, e não com

Eros, representando então, diferentemente da interpretação de Adorno, uma

“renovação do erotismo”:

“A sublimação seria agora, então, uma renovação do erotismo, pela

reabertura que possibilita de novos campos de investimento objetal e de

outras modalidades possíveis de ligação da força pulsional. A

sublimação permitiria, pois, a “flexibilização” do circuito pulsional

originário, retificando a “compulsividade” presente nas fixações

originárias. Seria isso justamente que estaria presente na possibilidade

de criação para a subjetividade, pois mediante aquela o psiquismo

poderia se contrapor à “fixação” e à “repetição”. Estas estariam sempre

presentes nas formas originárias de gozo, mas a sublimação indicaria

“novas” possibilidades de gozar. Pelo movimento sublimatório, de

ruptura com as fixações originárias, a “diferença” seria a marca por

excelência do psiquismo que retificaria os traços do “mesmo” presentes

nas fixações primordiais.”48

Podemos começar a compreender as objeções de Adorno ao conceito

de sublimação, a partir de uma observação de Birman, feita anteriormente em

seu texto, que aponta um desconhecimento, ou mesmo um recalcamento, em

relação a sua segunda formulação (de 1932):

“É bem curioso constatar como o discurso psicanalítico pós-

freudiano reteve a primeira formulação de Freud e recalcou a segunda,

quando não a ignorou pura e simplesmente. Com a única exceção de

poucos intérpretes de Freud, como Jacques Lacan e Jean Laplanche,

que assumiram a versão freudiana final, a tradição psicanalítica focou a

versão inicial e construiu a matriz de pensamento que sintetizei acima

em linhas gerais. Nesta adesão ao enunciado inicial de Freud algo de

fundamental se excluiu do discurso freudiano, que implicou uma

concepção problemática do que seja a experiência psicanalítica.”49

48 Idem, p. 115.

49 Idem, p. 99.

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Se podemos compreender a primeira questão levantada por Adorno em

seu comentário, como compatível com a primeira formulação freudiana sobre o

conceito de sublimação, não podemos no entanto negar que esta é a mais

conhecida e explícita. Uma outra leitura do conceito – que acreditamos

absolutamente legítima –, foi proposta a partir de alusões diretas e indiretas,

em textos não dedicados explicitamente à sublimação, já que um suposto texto

sobre o tema (de 1915), como já foi comentado, teria se perdido (segundo

Birman), ou sido destruído (Laplanche).

Retomemos agora a segunda questão levantada por Adorno, a da

“valorização social”, que Laplanche observa estar “praticamente presente em

todas as elaborações freudianas concernentes à sublimação”, e que Adorno

coloca em termos de “realizações socialmente desejáveis”.

Quando Adorno observa que “nos dias de hoje, obras de arte legítimas

são, sem exceção, socialmente indesejadas”, tem em vista a arte moderna

(mas também inúmeros outros momentos da história da arte, em que as

realizações artísticas não foram “socialmente desejadas”), que ainda

escandalizava os salões de arte, na época em que o texto foi escrito (1951).

De fato, em relação à arte, Freud sempre deu mostras de um profundo

conservadorismo, e mesmo de uma franca antipatia com relação à arte

moderna, como podemos depreender deste comentário de Tânia Rivera, que

no entanto aproxima os dois termos – arte moderna e Psicanálise:

“Esta aproximação entre a arte moderna e a psicanálise vem do

fato de serem ambas produtos culturais que compartilham um mesmo

“espírito da época”, ainda que suas ligações nem sempre sejam

visíveis, mas permaneçam freqüentemente latentes, à espera de que se

venha atualizá-las. E apesar de o próprio fundador da psicanálise, em

vez de convocar os artistas de seu tempo, preferir fazer referência, em

sua obra, a obras clássicas de Michelângelo ou Leonardo da Vinci.

Freud não escondia, inclusive, sua antipatia em relação à arte moderna.

A respeito de uma obra que pertencia a seu discípulo Karl Abraham,

escreveu-lhe certa vez, com ironia, que o gosto de Abraham em relação

ao modernismo devia ser cruelmente punido, e utilizou aspas para

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qualificar a “arte” dita moderna. Ao pastor e psicanalista Oskar Pfister

ele demonstra uma franca intolerância em relação aos expressionistas e

afirma que estas pessoas não têm o direito de ser designadas como

artistas.”50

Aliás, o inverso não é verdadeiro, pois os movimentos de arte moderna,

freqüentemente fizeram referências à Psicanálise:

“Principalmente a partir da Primeira Guerra Mundial, contudo,

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O que Adorno visa criticar aqui, é uma compreensão da sublimação

como um processo capaz de transformar desejos em “realizações socialmente

desejáveis”, ou seja, naquilo que o social – nossos pais, as instituições –,

desejam. Como “bons meninos” então, devemos abrir mão de nossos desejos

– muitas vezes transgressivos –, “sublimá-los”, transformando-os em “boas

ações” socialmente aprovadas.

Esta crítica de Adorno, nos parece, é extremamente relevante, no

sentido de alertar-nos sobre o perigo que ronda o conceito de sublimação, de

transformar-se um apelo ao conformismo.52

A segunda questão levantada por Adorno, como podemos depreender

deste comentário de Birman, também se ligaria ao texto de 1908, em que

Freud pela primeira vez descreve o processo de sublimação:

“(...) tal suspensão erótica, que materializaria o tal ato de

espiritualização, seria um esforço da ordem da “civilização”. Pressupõe-

se, pois, que o processo civilizatório se daria na direção da

espiritualização e contra a erotização. Com efeito, a dita civilidade

espiritualizante seria, enfim, inscrita no registro da “ordem” que se

contraporia à “desordem” do sexual.”53

Ou seja, haveria uma ligação íntima entre uma “espiritualização” que o

processo de sublimação supostamente permitiria, e a existência de uma

“ordem” avessa ao sexual no processo civilizatório.54

52 Seria fácil simplesmente invertermos a crítica de Adorno a Freud, chamando-o ingênuo, e

declararmos que neste ponto Adorno é que o é, ao desconhecer as formulações freudianasposteriores a 1908 sobre o conceito de sublimação, que possibilitam uma outra leitura doconceito. Mas não é isto que importa, e sim o alerta inestimável de Adorno sobre o perigode uma certa leitura do conceito, que nos incentivou a buscar esta outra leitura.

53 BIRMAN, Joel. Op. cit., p. 99.

54 É no texto “Moral Sexual ‘Civilizada’ e Doença Nervosa Moderna”, de 1908, que Freudexplicita uma primeira formulação do conceito de sublimação, muito sintética, mas quepermite a primeira leitura assinalada. Este texto, no entanto, pode ser lido como umaprimeira formulação de idéias que Freud retomaria em “O Mal-Estar na Civilização” que nosparece, aliás, fornecer uma visão mais abrangente do próprio conceito de sublimação, tendoem vista a Cultura. Foi com uma citação deste último texto que iniciamos este capítulo.

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Mas também em relação a esta segunda questão levantada por Adorno,

é possível uma outra leitura, que privilegie o reconhecimento social, não de um

ponto de vista exclusivamente narcísico (para o qual a simples adequação ao

“socialmente desejado” seria a meta), mas sim do da busca do reconhecimento

“pelo outro ou pelos outros”, como sugere Laplanche nestas considerações que

faz em forma de questões:

“Essa noção de uma valorização social desemboca num duplo

questionamento: primeiro, saber se essa valorização social é capital na

própria definição de atividades sublimadas, o que leva principalmente a

interrogar sobre o campo da sublimação e seus limites: uma atividade

não-valorizada – supondo-se que isso exista –, um hobby, uma idéia

fixa, um colecionismo aberrante, será uma sublimação da mesma

categoria de uma atividade culturalmente reconhecida? E, se não são

sublimações, será necessário um outro conceito para dar conta delas?

Por outro lado, supondo que se deva reter essa dimensão de

valorização social, como compreendê-la, como compreender que ela

seja suscetível de marcar o próprio processo psíquico? O que está em

questão será a utilidade para a sociedade, será, de modo mais

profundo, o “reconhecimento” pelo outro ou pelos outros, será o valor de

comunicação e até mesmo o valor de linguagem?”55

Não pretendemos, é claro, responder neste capítulo a estas questões

tão complexas, que nos parecem todavia tão ricas, e que sugerem que até

mesmo a comunicação e a linguagem talvez tenham algo a ver com a

sublimação.

Mas nos parece importante assinalar como fundamental, na sublimação,

a busca de uma “valorização social”, mesmo que neste processo, esteja

envolvida uma atividade “desvalorizada” (supondo, como diz argutamente

Laplanche, que exista “uma atividade não-valorizada” – por quem?): a própria

arte, a ciência, muitas vezes o ensino, não são atividades assim, em

determinadas sociedades, ou épocas?

55 LAPLANCHE, Jean. Op. cit., p. 11-12.

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Neste sentido, a busca da valorização social pode implicar, na melhor

das hipóteses, num questionamento dos valores sociais vigentes numa

determinada cultura. Busca esta, inegavelmente ligada ao narcisismo, mas que

neste caso opõe-se à mera reprodução dos valores estabelecidos. Busca de

reconhecimento social, mas não a qualquer preço.

Retornando ao início desta reflexão, podemos concordar com o conselho

ao final de Candide, lembrado por Freud, no sentido (agora metafórico) de

“cultivarmos nosso próprio jardim”.

Sim, mas com Adorno, não para transformar nossos desejos recalcados

em obras “socialmente desejadas”. Mas “cultivar o próprio jardim”, mesmo se o

que for produzido for o indesejado, o que incomoda, o que (ainda) não tem

lugar; como talvez o fosse Em Busca, que por seus temas, e principalmente

sua forma, subverteu as convenções literárias de seu tempo, inaugurando um

novo modo de se conceber o romance.

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Capítulo II

Psicanálise e Literatura

“Nem sempre fui psicoterapeuta. Como outros neuropatologistas,

fui preparado para empregar diagnósticos locais e eletroprognósticos, e

ainda me causa estranheza que os relatos de caso que escrevo

pareçam contos e que, como se poderia dizer, falte-lhes a marca da

seriedade da ciência. Tenho de consolar-me com a reflexão de que a

natureza do assunto é evidentemente a responsável por isso, e não

qualquer preferência minha.”56

Freud foi um amante das artes, e especialmente da Literatura. Mais do

que isto: sua obra está impregnada de referências literárias. Este é um ponto

sobre o qual não existe polêmica: biógrafos, críticos, leitores, são unânimes em

constatar sua importância para a Psicanálise, e pessoalmente para seu criador.

Sua obra, que passa por vários gêneros literários: ensaios (alguns sobre

artistas ou obras de arte), autobiografia, esboços, conferências, lições e até

mesmo uma obra que ele próprio considerava como “romance histórico”:

Moisés e o Monoteísmo. Além é claro, de seus escritos sobre casos clínicos.

Seriam estes últimos – os casos clínicos – literatura? É exatamente esta

a questão que instiga Freud na citação escolhida como epígrafe deste capítulo,

que estranha (ao discorrer, em 1895, sobre a paciente Elisabeth Von R.) “que

os relatos de casos que escrevo pareçam contos e que, como se poderia dizer,

falte-lhes a marca da seriedade da ciência.”

Freud definia-se como um cientista, não um artista, e por isto seu pesar

em relação a seus relatos de casos, que parecem contos, afastando-se do que

ele considerava “seriedade da Ciência”.

56 FREUD, Sigmund. Estudos sobre a Histeria. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora

Imago, vol. II, 1987, p. 172.

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Em relação às artes (que admirava) e à filosofia (que temia, já que

reconhecia seu pendor ao que chamava de “especulação”57), a atitude de

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considerava-se um cientista), deu-lhe muito prazer, e do qual sempre orgulhou-

se.

Enfim, Freud também podia considerar-se um escritor, um artista

portanto, e não somente o autor de uma obra que pretendia científica.61

Evidentemente, se os textos de Freud possuem qualidades literárias, isto

não significa que não sejam textos científicos. Mas seriam mesmo, estes textos

científicos?

É interessante lembrar, e isto é raramente mencionado, que seus textos

anteriores à Psicanálise foram reconhecidos e considerados até hoje pela

Neurologia: seus artigos sobre a “afasia”, e a denominada “paralisia cerebral

infantil” por si já garantiriam a Freud um lugar entre os cientistas.62

Mas, com relação à Psicanálise, poderíamos dizer que os textos de

Freud, que a fundamentam, seriam científicos?

Não pretendemos responder a esta difícil questão63, que nos parece

extrapolar os objetivos deste trabalho. Hoje, muitos psicanalistas não

consideram problema “renunciar” ao estatuto de ciência para a Psicanálise.

Como podemos exemplificar por este comentário de Fábio Herrmann:

61 Os próprios termos da escolha do nome de Freud para o prêmio evidenciam também o

reconhecimento do caráter científico da sua obra, o que deve tê-lo agradado bastante: Amenção vinha cerimoniosamente assinada pelo prefeito de Frankfurt. “Com o rigoroso métododa ciência natural”, iniciava ela, no tom um tanto exagerado desses documentos, “ao mesmotempo interpretando audaciosamente os símiles cunhados por escritores de ficção, SigmundFreud abriu caminho até as forças motrizes da alma, e assim criou a possibilidade de sereconhecer o surgimento e a construção das formas culturais e de se curar algumas de suasenfermidades.” (GAY, Peter. Op. cit., p. 517).

62 O neurologista suíço Randolf Brun observou em 1936 que “a monografia de Freud é aexposição mais cabal e completa que jamais foi escrita sobre as paralisias cerebrais infantis(...) Foi uma realização magnífica e, sozinha, bastaria para garantir ao nome de Freud umlugar proeminente na neurologia clínica.” (GAY, Peter. Idem, p. 95).

63 A Psicanálise tem sido questionada principalmente a partir de uma visão empirista ouempiricista da ciência. Questão complicada ainda mais por Freud considera-se ele próprio umempirista.

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“Outro impasse é querer disfarçar a psicanálise em ciência. Isso sim,

todos sabem que é bobagem, a ciência é que tem que “agüentar" a

psicanálise.”64

Esta citação é interessante, pois aponta, através de uma “provocação”

(“a ciência é que tem que ‘agüentar’ a psicanálise”), para o desafio que a

Psicanálise representou (e ainda representa) para o

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32

permite, com o emprego de algumas fórmulas psicológicas, obter pelo

menos alguma espécie de compreensão sobre o curso dessa

afecção.”65

Aquilo que é tido como “ficção” (a obra de Shakespeare, Sófocles,

Goethe, por exemplo, para citar só alguns autores caros a Freud), passa a ter o

mesmo “peso” do discurso do paciente (que parece “ficção”, mas inicialmente

tido como “não-ficção”, através da acepção original de “trauma”) na clínica

psicanalítica.

Mas mesmo esta nova abordagem dos limites entre os dois termos é

colocado à prova num segundo momento, quando Freud renuncia à chamada

“teoria da sedução” (e resignifica o conceito de “trauma”66 através da admissão

da denominada “fantasia psíquica”67). Os pacientes produzem não apenas

relatos que parecem “contos”, mas também produzem propriamente “ficção”:

contam histórias improváveis, absurdas, inventadas, que não se baseiam

totalmente ou que distorcem a realidade empírica (que poderíamos assimilar

aqui, ao conceito de “não-ficção”). E a Psicanálise, por fim, acaba por acolher

esta “ficção” peculiar, produzida não por artistas, mas por pacientes que

puderam assim – escapando do juízo de “mentirosos” ou “simuladores” que

pesava sobre eles – contar suas histórias e serem “escutados”, ou seja, estas

serem reconhecidas como possuindo significado.

Inicialmente proposta em relação à histeria, a idéia da “fantasia” como

realidade subjetiva, opondo-se à realidade empírica, passou a ser reconhecida

também em relação às outras patologias (e mais tarde também à chamada

“normalidade”), constituindo-se como a “pedra fundamental” do método

psicanalítico: o ser humano é um ser que fantasia, e a Psicanálise faz deste

65 FREUD, Sigmund. Estudo sobre a Histeria. Op. cit., p. 172.

66 Veremos adiante o significado de “trauma”.

67 “[(...) Freud, que tinha começado por admitir a realidade das cenas infantis patogénicasencontradas no decorrer da análise, teria abandonado definitivamente esta convicção inicial,denunciando o seu «erro»: a realidade aparentemente material dessas cenas não passava de«realidade psíquica»]” (LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J.B., verbete “fantasia”, op. cit., p.229).

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“falsear a realidade”, que é sua verdade mais profunda, a própria matéria prima

com que trabalha:

“Pois se é preciso que o paciente conte tudo e ainda que fale ao acaso

e sem propósito definido, não é para encontrar um fato empírico que

não tenha sido registrado em nenhuma parte a não ser na memória do

paciente: é que os acontecimentos empíricos não têm realidade para o

analista mais que no e pelo “discurso” que confere a eles a

autenticidade da experiência, sem importar sua realidade histórica, e

ainda (mais valeria dizer: sobretudo) se o discurso elude, transpõe ou

inventa a biografia que o sujeito se atribui.”68

Este movimento, que constituiu o pensamento psicanalítico (propiciado

pelo caráter “subversivo” do recurso ao discurso do paciente), permitiu uma

aproximação entre Ciência (esta “não-ficção” por excelência, tendo em vista a

compreensão positivista de Freud da Ciência) e Literatura, questionando seus

limites: num primeiro momento, levando em conta este discurso (que parecia

“literário”, “romanceado”, “novelesco”) – mas tido como não-ficcional, e num

segundo momento, reconhecendo seu caráter ficcional – poderíamos dizer,

poético –, mas não por isto desautorizando-o.

O caráter “ficcional” do discurso do paciente para a Psicanálise, ao invés

de ser estigmatizado como “simulação” ou “fingimento”, é indício – tal como na

poesia, como indicam estes famosos versos de Fernando Pessoa –, de um

sofrimento muito real:

“O poeta é um fingidor

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente”

(“Autopsicografia”)69

68 BENVENISTE, Emile. Problemas da Lingüística General. Buenos Aires: Siglo XXI, 1974, p.

76-77 (tradução caseira).

69 PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1974, p. 164.

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Não podemos deixar de assinalar que, se no momento inaugural da

Psicanálise “ficção” e “não-ficção” foram aproximadas, em prol da

compreensão das patologias, posteriormente esta aproximação aprofundou-se,

deixando evidentes, não apenas as semelhanças, mas as íntimas conexões

entre Literatura e a própria estruturação do psiquismo.

As conexões íntimas entre clínica e Literatura evidenciaram-se quando o

pensamento psicanalítico debruçou-se sobre a chamada “normalidade” (ou, na

exata acepção de Freud, “vida cotidiana” – pois nem os psicóticos o são o

tempo todo), extrapolando assim os limites da Psicopatologia – ou melhor,

estendendo seus limites à “vida cotidiana” –, neste movimento incluindo o

sonho, e em menor grau o ato falho, numa Psicologia na qual o caráter

“poético” da psique pode ser reconhecido.

O sonho, para a Psicanálise, tem na vida pessoal, o mesmo papel que a

arte – especialmente a poesia –, tem na cultura:

“Octavio Paz considera que todos os povos fazem poesia, muitos não

tiveram novela, muitos não tiveram teatro, mas não há povo primitivo

que não tivesse canto, que não tivesse uma poética (...) O papel que a

poesia tem na vida dos povos, o sonho tem na vida de cada um de nós:

preservar o passado em nossa vida atual permitindo que ele aponte

para o futuro.”70

Reconhecendo de modo radical, o caráter poético do psiquismo,

colocando em questão os limites entre “ficção” e “não-ficção” das produções

psíquicas, a Psicanálise desafia os próprios pressupostos científicos, que

opõem – neste movimento excluindo um dos termos –, as noções de

objetivo/subjetivo, verdadeiro/falso, enfim “ficção” e “não-ficção” (assim como

foi anteriormente desafiada por estas mesmas oposições).

70 NOSEK, Leopoldo. Palavra do Presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São

Paulo. In: Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. (Freud e Jung – 90 anosde Encontros e Desencontros, nº 14), p. 11 e 13.

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Estas oposições/exclusões, na verdade, não são novas na história do

conhecimento – não podemos deixar de mencionar que a própria Filosofia

nasceu contra os sofistas, numa tentativa de salvaguardar o logos da sedução

da retórica sofística (e também assim da Poesia):

“A operação fundadora da filosofia confunde-se, assim, com as

estratégias de captura dos discursos com os quais Platão, e

posteriormente Aristóteles, rivalizavam no mundo grego. É a partir do

solo de oposições engendrado pela metafísica – essência/aparência;

verdadeiro/falso – que a radical alteridade de outros discursos, tais

como a retórica, a sofística e a poesia, será tragada para o campo da

filosofia, tornando-se então prisioneira de conceitos que não lhe diziam

necessariamente respeito. (...) Como conseqüência de todo esse

processo, passou-se a julgar outras práticas discursivas a partir de

pressupostos que lhe eram alheios, garantindo-se assim sua

condenação e atribuindo-se simultaneamente à filosofia o papel de

único logos legitimado. Esse procedimento marcou definitivamente o

pensamento ocidental, constituindo as balizas que fundam, em geral,

nosso pensamento e nossas práticas discursivas, bem como a

separação, até hoje vigente, entre os campos da ficção e da não-

ficção.”71

Em suas origens, a Psicanálise almejava não opor-se à ciência, mas sim

provocar nesta uma transformação. Freud nunca renunciou ao estatuto de

ciência para a Psicanálise, e acreditava que seu reconhecimento dependeria

dos progressos científicos.72

Mas, talvez possamos dizer hoje, apesar de persistir, a Psicanálise não

conseguiu efetuar a transformação almejada. Persiste no entanto, resistindo

(não no sentido psicanalítico, mas no sentido político), continuando a desafiar

os pressupostos científicos.

71 FERRAZ, Maria Cristina F. Platão – As Artimanhas do Fingimento. Rio de Janeiro: Relume

Dumará, 1999, p. 28-29.

72 Freud sempre considerou como “resistência” a rejeição à Psicanálise. Como podemos notarneste seu comentário à acolhida da “Interpretação dos Sonhos”: “O novo sempre despertouperplexidade e resistência”. (GAY, Peter. Op. cit., p. 234).

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É por isso que a expressão de Fábio Herrmann: “A ciência é que tem

que agüentar a Psicanálise”, talvez faça sentido: “agüentar” como tem-se que

“agüentar” um filho não-reconhecido, ou como um filho que “dá muito trabalho”.

É muitas vezes o que sugere as relações da Psicanálise (e psicanalistas) com

a Psiquiatria (e psiquiatras).

No entanto, no interior da Psicanálise, talvez possamos falar de um

afastamento do paradigma científico, em direção ao que Birman denomina

“paradigma estético”:

“(...) a sublimação e a criação passaram a ser paulatinamente

concebidas pelo “paradigma estético” e não mais pelo “paradigma

científico”, sendo aquele o modelo preferencial a partir do qual pode-se

melhor pensar a sublimação e a criação em psicanálise.”73

Podemos considerar que há uma clara preponderância do “paradigma

estético”74 a partir da segunda formulação freudiana do conceito de

sublimação, que possibilitaria pensar inclusive a criação científica:

“(...) poder-se-ia dizer ainda que o paradigma estético poderia explicitar

melhor o que seria a criação científica, existindo, pois, uma estética da

criação que estaria igualmente presente nos registros da ciência e da

arte. E por que não, nos registros da religião e da filosofia?”75

Estas considerações de Birman estão em consonância com as

observações feitas sobre a citação de O Mal-Estar, que serviu como epígrafe

73 BIRMAN, Joel. Op. cit., p. 118.

74 Este conceito refere-se ao próprio termo “sublime”, que Laplanche comenta:“O que é que a sublimação põe em jogo, no próprio termo, em sua

metáfora? Recordo, com outros autores, que sua metáfora incide sobre otermo sublime, com duas referências nas quais não me deterei por agora: porum lado, a referência filosófica, sendo o sublime uma das categorias daestética filosófica; por outro, a metáfora química, sendo a sublimação emquímica definida como uma passagem direta de um corpo, sem intermediáriolíquido, do estado sólido ao estado gasoso.” (LAPLANCHE, Jean. Op. cit., p.11).

75 BIRMAN, Joel. Op. cit., p. 119.

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do capítulo anterior, no qual Freud utiliza o recurso a uma obra literária

(Candide), escrita por um filósofo, para exemplificar a ciência (ou melhor, o

“fazer científico”) como exemplo de sublimação. Ou seja, para falar da criação

na ciência, Freud utiliza um exemplo da Literatura, obra ademais criada por um

filósofo.76

76 Dada a ambivalência de Freud em relação à Filosofia, talvez o recurso a uma obra filosófica

(um “conto filosófico”) nesta citação, deva-se à veia satírica de Voltaire, que ridiculariza,através do personagem Pangloss, a figura do filósofo (mas principalmente a religião).(VOLTAIRE. Candido, ou O Otimismo. São Paulo: Ed. Nova Alexandria, 1995, p. 132-133).

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Capítulo III

O Início da Obra - Numa Xícara de Chá

“Chegará até a superfície de minha clara consciência essa

recordação, esse instante antigo que a atração de um instante idêntico

veio de tão longe solicitar, remover, levantar no mais profundo de mim

mesmo? Não sei. Agora não sinto mais nada, parou, tornou a descer

talvez; quem sabe jamais voltará a subir do fundo da sua noite? Dez

vezes tenho de recomeçar, inclinar-me em sua busca. E, de cada vez,

a covardia que nos afasta de toda tarefa difícil, de toda obra importante,

aconselhou-me a deixar daquilo, a tomar meu chá pensando

simplesmente em meus aborrecimentos de hoje, em meus desejos de

amanhã, que se deixam ruminar sem esforço.”77

Iniciaremos nossa leitura do texto apontando o caráter espacial desta

imagem evocada por Proust para discorrer sobre a memória: uma xícara de

chá. As referências ao espaço parecem continuar sempre presentes, mesmo

após Santo Agostinho tornar possível pensar o tempo sem uma relação direta

com o espaço do cosmos:

“(...) ela (a reflexão agostiniana) marca um corte fundamental com as

tentativas da filosofia antiga (em particular Platão e Aristóteles) que

definiam o tempo em relação ao movimento de corpos externos, em

particular ao movimento dos astros.”78

77 PROUST, Marcel. No Caminho de Swann. Op. cit., p. 50. (Du côté de chez Swann: “Arrivera-

t-il jusqu’à la surface de ma claire conscience, ce souvenir, l’instant ancien que l’attractiond’um instant identique est venue de si loin solliciter, émouvoir, soulever tout au fond de moi?Je ne sais. Maintenant je ne sens plus rien, il est arrêté, redescendu peut-être; qui sait s’ilremontera jamais de sa nuit? Dix fois il me faut recommencer, me pencher vers lui. Etchaque fois la lâcheté qui nous détourne de toute tâche difficile, de toute oeuvre importante,m’a conseillé de laisser cela, de boire mon thé en pensant simplement à mes ennuisd’aujourd’hui, à mes désirs de demain qui se laissent remâcher sans peine.”, op. cit., p.144). Em relação ao termo émouvoir, uma tradução literal seria “comover”.

78 GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Dizer o Tempo. In: Sete Aulas sobre Linguagem, Memória eHistória. Rio de Janeiro: Ed. Imago, p. 70.

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Há inúmeros indícios que aproximam Proust da Psicanálise: sua ênfase

na memória involuntária, seu apego aos detalhes como significativos, sua

descrição daquilo que “quem sabe jamais voltará a subir do fundo da sua noite”

– aquilo que a Psicanálise denominará o recalcado.

O que é intrigante no fragmento citado, e que à primeira vista parece

afastá-lo da compreensão psicanalítica, é o conteúdo banal, mas recalcado, da

recordação buscada, em contraste com a descrição marcada pelo sofrimento,

no início do romance, em que Marcel detalhadamente relembra o suplício do

afastamento cotidiano da mãe ao deitar-se, memória poderíamos dizer

“traumática”, no entanto já de início consciente, suscitando então algumas

perguntas: Por que o recalque dos momentos banais? Por que o “trauma”80

permanece absolutamente consciente?81

A cidade de Combray inteira, surgindo de uma xícara de chá, suscitada

por frágeis vestígios deixados por um sabor e uma fragrância (“o odor e o sabor

permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando,

esperando ...”)82 reencontrados na madeleine mergulhada em seu líquido

fumegante, inicia um movimento de ampliação efetuado pela memória,

ampliação esta representada pela extensão da cidade e das lembranças que

emergem (e que serão narradas no capítulo seguinte da obra83), mas que neste

80 “Acontecimento da vida do Indivíduo que se define pela sua intensidade, pela incapacidade

em que se acha o Indivíduo de lhe responder de forma adequada, pelo transtorno e pelosefeitos patogénicos duradouros que provoca na organização psíquica.Em termos económicos, o traumatismo caracteriza-se por um afluxo de excitações que éexcessivo, relativamente à tolerância do Indivíduo e à sua capacidade de dominar e deelaborar psiquicamente estas excitações.” (LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J.B. Op. cit.,verbete “trauma”, p. 678).

81 “(...) o acontecimento traumático desencadeia por parte do ego, em lugar das defesasnormais habitualmente utilizadas contra um acontecimento penoso (desvio da atenção, porexemplo), uma «defesa patológica» – cujo modelo é então para Freud o recalcamento – queopera segundo o processo primário.” (Idem, p. 681).

82 PROUST, Marcel. No Caminho de Swann. Op. cit., p. 51. (Du côté de chez Swann: “l’odeur etla saveur restent encore longtemps, comme des âmes, à se rappeler, à attendre, à espérer...”, op. cit., p. 144).

83 Lembranças, nos lembra Ricoeur, nem sempre felizes: “Combray é, também, ao contráriodos momentos felizes, a lembrança de alguns acontecimentos anunciadores de desilusões(...) (Tempo e Narrativa - Tomo III. Op. cit. p. 235).

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momento do romance referem-se a uma imagem específica: a da retomada de

uma casa, até então restrita a uma sala de jantar (em que estão os adultos) e a

um quarto, no qual eternamente um menino espera o beijo de “boa noite” que a

mãe lhe prometeu: “(...) eis que a velha casa cinzenta, de fachada para a rua,

onde estava seu quarto [observação: o da tia do personagem, que costumava

lhe oferecer os mesmos bolinhos com chá], veio aplicar-se, como um cenário

de teatro, ao pequeno pavilhão que dava para o jardim e que fora construído

para meus pais aos fundos da mesma (esse truncado trecho da casa que era

só o que eu recordava até então).”84

Vemos então que, da metáfora inicial da xícara de chá, que sugerimos

representar a psique, surge uma outra, esta bastante assinalada pela literatura

psicanalítica como correspondendo ao corpo85: a imagem da casa. Mais

precisamente, da retomada de uma casa, na qual antes estava-se encerrado.

E então, a partir da expansão de um espaço – ou melhor, da saída de

um espaço em que estava-se confinado –, “Combray inteira” levanta-se da

xícara de chá, “e com a casa, a cidade toda, desde a manhã até a noite, por

qualquer tempo, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas

por onde eu passava e as estradas que seguíamos quando fazia bom tempo.”86

É a uma expansão do espaço que Proust alude, e também a uma

expansão do tempo: “desde a manhã até a noite, por qualquer tempo”, e não

mais apenas à fatídica hora de ‘ir dormir’”.

84 PROUST, Marcel. No Caminho de Swann. Op. cit., p. 51. (Du côté de chez Swann: “(...)

aussitôt la vieille maison grise sur la rue, où était sa chambre, vint comme un décor dethéâtre s’appliquer au petit pavillon, donnant sur le jardin, qu’on avait construit pour mesparents sur ses derrières (ce pan tronqué que seul j’avais revu jusque-là.”, op. cit., p. 145).

85 Em “A Interpretação de Sonhos”, Freud assinala este simbolismo: “O corpo humano comoum todo é retratado pela imaginação onírica como uma casa, e os diferentes órgãos docorpo, como partes de uma casa”. (FREUD, Sigmund. A Interpretação de Sonhos. In: ObrasCompletas. Rio de Janeiro: Editora Imago, vol. IV, p. 227).

86 PROUST, Marcel. No Caminho de Swann. Op. cit., p. 51. (Du côté de chez Swann: “et avecla maison, la ville depuis le matin jusqu’au soir et par tous les temps, la Place où onm’envoyait avant déjeuner, les rues où j’allais faire des courses, les chemins qu’on prenait sile temps était beau.”, op. cit., p. 145).

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Podemos entender o sentimento de felicidade que Marcel assinala

expressamente (“E recomeço a me perguntar qual poderia ser esse estado

desconhecido, que não trazia nenhuma prova lógica, mas a evidência de sua

felicidade.”)87 como dizendo respeito à liberdade: liberdade de espaço,

liberdade de tempo, mas principalmente liberdade de espírito (não mais

encerrado numa cena que se repete invariavelmente, compulsivamente),

colocando então no passado suas recordações “truncadas”, e longamente

retomadas nos vários quartos nos quais dormiu, e nos quais acordou

assombrado pelos fantasmas de sua mãe e de seu pai, restando a ele, Marcel,

nada mais do que continuar desempenhando o papel de menino sugestionável,

sensível, ao mesmo tempo vítima e senhor da situação.

É à libertação de uma “cena traumática” que assistimos então. Mas o

“trauma” aqui, é o que é consciente, e a recordação buscada, que traz consigo

a “evidência de sua felicidade”, revela-se afinal banal.

A felicidade mencionada não se refere à recordação em si, já que seu

conteúdo é bastante prosaico: o chá que a tia do menino lhe oferecia aos

domingos, em Combray, junto com as pequenas madeleines.

No entanto, ao emergir, a lembrança traz consigo o cotidiano da infância,

e a felicidade experimentada deve-se à retomada no presente, deste passado

esquecido.

A compulsão à repetição, que podemos notar nos devaneios do narrador

ao acordar num quarto estranho – e que sempre referem-se ao quarto do

menino em Combray –, pode ser comparada à repetição de cenas traumáticas,

nos sonhos dos “neuróticos de guerra”, que levou Freud (entre outros indícios)

87 Idem, p. 49. (Du côté de chez Swann: “Et je recommence à me demander quel pouvait être

cet état inconnu, qui n’apportait aucune preuve logique, mais l’évidence de sa félicité.”, p.143).

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a escrever Além do Princípio do Prazer88, no qual propõe o conceito, ao lado

das pulsões de vida, de pulsão de morte. Ou seja, a partir deste artigo, Freud

abre a possibilidade de compreendermos o trauma como não necessariamente

recalcado, mas como presente (com seu conteúdo intacto) nos sonhos, nos

devaneios (e nos jogos).

Mas tomemos distância da psicopatologia. Nossa intenção foi a de

apenas apontar que este episódio não parece afastar-se tanto assim da clínica

psicanalítica (e não a de tentar diagnosticar o herói de Em Busca).

No entanto, esta aproximação com os “neuróticos de guerra” talvez

permaneça instigante se, como acreditamos, o fragmento de Em Busca que

estamos enfocando, se revele também como característico de uma questão

mais abrangente: a da relação do homem com a Cultura, necessariamente

conflituosa, do ponto de vista psicanalítico.

Um comentário de Hélio Pellegrino, psicanalista brasileiro que não teve

ainda sua obra publicada, pode indicar um pouco melhor esta idéia:

“O ser humano é uma ruptura com a natureza e com o Cosmo. É

o salto da natureza para a cultura, a linguagem e a Lei, pelas quais

tenta assumir o rombo da indeterminação e de liberdade que o constitui.

A psicanálise é a ciência desse processo, dessa cam

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desejos infantis para olhar adiante – na direção da realidade e do

Outro.”89

O que o fragmento de Em Busca em questão nos sugere é que embora

alicerçado num drama pessoal do personagem, e portanto passível de ser

compreendido de um modo individual (clínico portanto), trata-se de uma

questão muito mais abrangente: a da perda, imposta pela Cultura, de uma

liberdade primeira a que tivemos que renunciar.

Não é somente o pequeno Marcel que está enclausurado em seu

quarto – e também condenado a mesma hora fatídica. Esta imagem é

emblemática da relação que estabelece-se sempre entre o ser humano e a

Cultura.

No registro individual, o evento traumático é muitas vezes recalcado,

outras vezes atuado compulsivamente, mas muito mais fundo é o recalque de

tudo a que se renunciou: de um “tempo” perdido, mas também de um “espaço”

perdido, metáforas do sentimento infantil de pertencer ao mundo, com tudo que

de liberdade, mas também de risco que isto acarreta.

Mas o “tempo perdido” pode ser reencontrado (retrouvé), é o que nos

indica Proust. De fato, sabemos que este primeiro momento de Em Busca que

estamos enfocando, foi escrito concomitantemente ao último da obra, que

enfatiza o processo de criação pela arte como possibilidade do reencontro com

um tempo que acredita-se perdido.

É sobre o poder da arte de referir-se ao mundo com o mesmo

sentimento de “pertencimento” de que a criança foi capaz, ameaçando as

noções que diferenciam sujeito/objeto ou eu/outro (e ao qual renunciou), que

nos fala Paul Ricouer:

“(...) O discurso poético também está no registro do mundo, mas

não dos objetos manipulados de nosso ambiente cotidiano. Ele se

89 PELLEGRINO, Hélio. Op. cit., transcrição de conferência.

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também exemplar: nele, cada um de nós pode identificar-se com as sucessivas

renúncias, que o embate com a Cultura nos impõe. Nas palavras de Ricoeur:

“Eis porque a instituição é necessariamente constrangedora: o

homem só se educa ‘renunciando’ a um exercício arcaico,

‘abandonando’ objetos e objetivos ultrapassados. A instituição é a

contrapartida dessa estrutura ‘perversa polimorfa’. Porque o adulto

permanece a presa da criança que ele foi, porque pode se atrasar e

regredir, porque é capaz de arcaísmo, o conflito não é um acidente que

uma melhor organização social ou uma melhor pedagogia poderia

poupar-lhe. O ser humano só pode viver seu ingresso na cultura de um

modo conflitual. Há um sofrimento que adere à tarefa da cultura como

um destino, como esse destino ilustrado pela tragédia de Édipo.”91

A questão edípica, insinuada por Ricoeur quando fala de um “destino

ilustrado pela tragédia de Édipo”, será discutida a seguir, quando prosseguimos

a nossa leitura (não linear) da obra de Proust.

91 RICOEUR, Paul. Da Interpretação: Ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977,

p. 165.

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Capítulo IV

A História Invisível de Uma Vocação

“[(...) o enigma a ser resolvido é o da “relação” entre os

momentos bem-aventurados, oferecidos pelo acaso e pela memória

involuntária, e a “história invisível de uma vocação”.]”92

Este capítulo nasceu da leitura do texto de Paul Ricoeur sobre Em

Busca 93, que faz parte de uma reflexão mais ampla sobre o tempo na ficção,

na qual a obra é tomada como “uma fábula sobre o tempo”94.

Esta leitura nos suscitou algumas questões, que serão explicitadas no

decorrer do capítulo, e às quais buscamos responder.

Ricoeur assinala a existência de uma “simetria entre o começo e o final”,

de Em Busca:

“O que o narrador entende por tempo redescoberto? Para tentar

responder a essa questão, aproveitaremos a simetria entre o começo

e o final da grande narrativa. Da mesma forma que a experiência da

madalena delimita em No caminho de Swann um antes e um depois,

o antes do semidespertar e o após do tempo redescoberto de

Combray, também a grande cena da biblioteca da mansão de

Guermantes delimita um antes ao qual o narrador conferiu uma

amplidão significativa e um depois onde se descobre a significação

última do Tempo redescoberto”.95

92 RICOEUR, Paulo. Tempo e Narrativa - Tomo II. Op. cit., p. 242.

93 Citado na nota anterior.

94 “A decisão de escrever tem, então, a virtude de transpor o extratemporal da visão originalpara a temporalidade da ressurreição do tempo perdido. Nesse sentido, pode-se dizer que,na realidade, Em busca... conta a transição de uma significação para outra do temporedescoberto: é nisso que é uma fábula sobre o tempo.” (Idem, p. 245).

95 Idem, p. 240

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É esta simetria que nos inspira considerar três momentos do romance.

I – Do Quarto à Biblioteca

O começo, “o semidespertar”, de que fala Ricoeur, é seguido na obra,

pela narração de lembranças de infância do narrador, centradas na obsessiva

cena que o atormenta em inúmeros quartos nos quais dormiu: o episódio do

“beijo de boa noite”, beijo este negado ao menino quando da visita do Sr.

Swann. A narração deste episódio antecede o da madeleine, a partir do qual

Ricoeur propõe que as lembranças devam ser compreendidas:

“Essas lembranças articulam-se em torno de um episódio

singular, a experiência da madalena; esse episódio tem seu antes e

seu depois. Antes, há apenas arquipélagos de lembranças sem

vínculo; só emerge a lembrança de um certo beijo da noite, ele próprio

situado sobre o fundo de um ritual costumeiro: beijo materno recusado

quando da chegada do senhor Swann; beijo esperado na angústia;

beijo ainda mendigado ao final da vigília noturna; beijo finalmente

obtido, mas logo despojado da qualidade da felicidade almejada. Pela

primeira vez, a voz do narrador torna-se distinta; evocando a

lembrança de seu pai, o narrador observa: “Faz muitos anos isso. A

parede da escada, onde vi subir o reflexo da sua vela, já não existe

há muito... Faz também muito tempo que meu pai já deixou de poder

dizer a mamãe: ‘Vai com o pequeno’. Jamais renascerá para mim a

possibilidade de tais horas”.96

Já nos referimos em capítulo anterior ao episódio da madeleine, e

voltaremos a ele adiante. Nos deteremos no do “beijo de boa noite”, lembrança

marcante da infância vivida pelo narrador em Combray, que culmina com a

decisão do menino de obter o beijo de qualquer maneira (ficando acordado e

aguardando que seus pais se recolhessem, quando poderia tentar obtê-lo

96 Idem, p. 232

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furtivamente), mas sendo surpreendido pelo pai, que trava com a mãe o

seguinte diálogo:

“Olhou-me um momento, com um ar atônito e agastado, e, depois que

mamãe, com algumas palavras embaraçadas, explicou-lhe o que

acontecera, retrucou-lhe:

- Pois então vai com o menino, já que dizias que não tinhas

sono; fica um pouco no quarto dele, eu não tenho necessidade de

nada.

- Mas, meu caro – respondeu timidamente minha mãe –, que eu

tenha ou não vontade de dormir, isso não altera em nada as coisas. O

que não se pode é habituar esse menino...

- Mas não se trata de habituar – disse meu pai, dando de ombros

–, bem vês que esse pequeno está aflito, tem um ar desolado essa

criança; vejamos, afinal de contas nós não somos carrascos! Muito

terás adiantado, depois que o fizeres adoecer! Como há duas camas

no seu quarto, manda Françoise preparar-te a grande e deita esta

noite perto dele. Bem, boa-noite, eu que não sou tão nervoso como

vocês, vou deitar-me.

Não se podia agradecer a meu pai, seria irritá-lo com o que ele

chamava de pieguices. Não me atrevia a fazer um movimento (...).”97

Tal como evocado por Ricoeur (em citação anterior), teria havido no

episódio um “beijo finalmente obtido”, o que provoca perplexidade no leitor

atento, pois não há menção a este beijo, e sim desdobramentos inesperados a

partir da decisão do menino em obtê-lo.98

97 PROUST, Marcel. No Caminho de Swann. Op. cit., p. 41. (Du côté de chez Swann: “Il me

regarda un instant d’un air étonné et fâché, puis dès que maman lui eut expliqué enquelques mots embarrassés ce qui était arrivé, il lui dit : « Mais va donc avec lui, puisque tudisais justement que tu n’as pas envie de dormir, reste un peu dans sa chambre, moi je n’aibesoin de rien. – Mais, mon ami, répondit timidement ma mère, que j’aie envie ou non dedormir, ne change rien à la chose, on ne peut pas habituer cet enfant... – Mais il ne s’agitpas d’habituer, dit mon père en haussant les épaules, tu vois bien que ce petit a du chagrin,il a l’air désolé, cet enfant; voyons, nous ne sommes pas des bourreaux! Quand tu l’aurasrendu malade, tu seras bien avancée! Puisqu’il y a deux lits dans sa chambre, dis donc àFrançoise de te préparer le grand lit et couche pour cette nuit auprès de lui. Allons, bonsoir,moi qui ne suis pas si nerveux que vous, je vais me coucher. »

On ne pouvait pas remercier mon père; on l’eût agacé par ce qu’il appelait dessensibleries. Je restai sans oser faire un mouvement.”, op. cit., p. 132-133).

98 Em relação a este episódio, parece vigorar uma série de mal-entendidos (que talvez aPsicanálise pudesse ajudar a explicar), por parte de comentadores importantes da obra,

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O que torna o episódio inquietante para o menino (e também para o

leitor!), é que o que foi obtido, foi “mais do que um beijo”, o jamais esperado, a

permissão dada pelo pai à mãe, para que passasse a noite no quarto do filho, o

que o torna nas palavras do narrador, a “noite talvez mais doce e triste de

minha vida”.99

Sobre a tristeza desta noite, nos deteremos adiante. Sobre a doçura

desta noite, basta por enquanto assinalar sua relação com a literatura: de fato,

é a leitura que faz a mãe de um romance de George Sand (François le Champi)

que acalma o menino de seus temores.

Aceitando a sugestão de Ricoeur, da existência de uma “simetria entre o

começo e o final da grande narrativa”, também nos reportaremos ao trajeto do

quarto nunca esquecido da infância do narrador à biblioteca onde se dá a

descoberta da “história invisível de uma vocação”: a parte final da obra,

referente por sua vez, ao início do projeto de “ser escritor”.

Mas antes da recepção dos Guermantes, em que o narrador é

convidado a esperar na biblioteca – episódio que denomina “visita”100 –,

Ricoeur ressalta uma mudança de “tom da narrativa”:

“Com efeito, o tom da narrativa inverte-se no momento em que o herói

se deixa seduzir, como outrora em Combray, pelo nome de

Guermantes, lido no convite para o almoço oferecido pelo príncipe.”101

como por exemplo, o contido neste comentário de Roger Shattuck, em que é mencionado umpretenso arrependimento da mãe do personagem, inexistente no texto:

Numa noite da infância do narrador (chamaremos o menino de Marcel), a visita deMonsieur Swann para o jantar levou a mãe de Marcel a recusar-se a subir e a dar-lhe um beijo de boa-noite. Em protesto, ele permaneceu acordado até que Swannfosse embora. Então, arrependida, a mãe leu para ele e passou a noite em seuquarto. (SHATTUCK, Roger. As Idéias de Proust. São Paulo: Cultrix, 1985, p. 48).

99 PROUST, Marcel. O Tempo Redescoberto. Op. cit., p. 165. (Le temps retrouvé: “(...) pendantla nuit peut-être la plus douce et la plus triste de ma vie (...), op. cit., p. 245).

100 Em francês “visitation”, segundo observação de Jeanne-Marie Gagnebin, é uma alusão aoepisódio bíblico da visita de Maria (grávida de Jesus) à Isabel (grávida de João Batista).

101 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa – Tomo II. Op. cit., p. 242

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A partir do momento em que deixe-se novamente seduzir pelo nome de

Guermantes, é aparentemente “por acaso” que o herói passa a vivenciar

algumas experiências que mantêm, por correspondência com a idéia de

“felicidade”, uma afinidade com a experiência da madeleine, segundo Ricoeur:

“É então que o herói acolhe como um “aviso” portador de salvação

uma série de experiências em tudo semelhantes, pela felicidade que

dispensam, às de Combray, “e me pareciam sintetizar-se nas últimas

obras de Vinteuil”: a topada nos degraus desiguais, o tilintar de uma

colher em um prato, a rigidez pesada de um guardanapo dobrado.

Mas, enquanto outrora o narrador tivera de adiar a elucidação das

razões dessa felicidade, dessa vez, está bem decidido a elucidar seu

enigma. Não que o narrador não tivesse percebido, desde a época de

Combray, que a alegria intensa que sentia resultava da conjunção

fortuita entre duas impressões semelhantes a despeito de sua

distância no tempo; aliás, ainda dessa vez, o herói não tarda em

reconhecer Veneza e as duas lajotas desiguais do batistério de São

Marcos sob a impressão da pavimentação desigual de Paris. O

enigma a ser resolvido não é, portanto, que a distância temporal

possa ser anulada desse modo “por acaso”, “como por encanto”, na

identidade de um mesmo instante: é que a alegria recebida seja “uma

alegria semelhante à da certeza, e suficiente para, sem mais provas,

tornar-me indiferente a idéia da morte?”. Em outras palavras; o

enigma a ser resolvido é o da relação entre os momentos bem-

aventurados, oferecidos pelo acaso e pela memória involuntária, e a

‘história invisível de uma vocação’”.102

Os dois últimos eventos citados por Ricoeur (“o tilintar de uma colher em

um prato, a rigidez pesada de um guardanapo dobrado”), já se passam na

pequena sala-biblioteca, em que o narrador aguarda a abertura das portas do

salão onde se dá a recepção.

O evento culminante do episódio da biblioteca é a descoberta de

François le Champi entre os livros, que no entanto não tem merecido dos

102 Idem, p. 242-243

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comentadores a mesma valoração dos eventos que Roger Shattuck103

denomina como “as três ressurreições clássicas: a torrada mergulhada no chá;

as lajes desiguais do calçamento; o retinir da colher num prato”.

De fato, apesar de aparentada com os três eventos citados –

especialmente pelo papel do acaso –, a descoberta do volume entre inúmeros

outros da biblioteca, guarda uma importante diferença em relação àqueles, que

prontamente o narrador assinala:

“E, sem parar de refletir, ia tirando um a um, sem maior atenção, os

preciosos volumes, quando, ao abrir distraidamente um deles,

“François le Champi”, de George Sand, assaltou-me uma impressão

de início desagradável, como se contrariasse o rumo atual de meu

pensamento, mas que depois, comovido até as lágrimas, reconheci

estar bem de acordo com ele. Tal como numa câmara ardente,

quando os empregados da empresa funerária se preparam para levar

o caixão, o filho do morto que prestara grandes serviços à pátria, ao

ouvir, enquanto aperta a mão dos últimos amigos em desfile, explodir

de súbito sob suas janelas uma fanfarra, revolta-se imaginando tratar-

se de pilhéria insultuosa a sua dor, e, em seguida, ele que até então

se dominara, não contém mais o pranto, pois compreende ser a

banda de um regimento que vem associar-se a sua dor e prestar

homenagem aos restos de seu pai. Assim acabava eu de reconhecer

a impressão dolorosa experimentada ao ler na biblioteca do príncipe

de Guermantes o título de um livro, título do qual me viera a noção da

realidade do mundo misterioso que já agora não encontrava mais na

literatura.”104

103 SHATTUCK, Roger. Op. cit., p. 128.

104 PROUST, Marcel. O Tempo Redescoberto. Op. cit., p. 162 (Le temps retrouvé: “Et tout enpoursuivant mon raisonnement, je tirais un à un, sans trop y faire attention du reste, lesprécieux volumes, quand, au moment où j’ouvrais distraitement l’un d’eux : François leChampi de George Sand, je me sentis désagréablement frappé comme par quelqueimpression trop en désaccord avec mes pensées actuelles, jusqu’au moment où, avec uneémotion qui allait jusqu’à me faire pleurer, je reconnus combien cette impression étaitd’accord avec elles. Tandis que dans la chambre mortuaire les employés des pompesfunèbres se préparent à descendre la bière, et que le fils d’un homme qui a rendu desservices à la patrie serre la main aux derniers amis qui défilent, si tout à coup retentit sousles fenêtres une fanfare, il se révolte, croyant à quelque moquerie dont on insulte sonchagrin; mais lui, qui est resté maître de soi jusque-là, ne peut plus retenir ses larmes, car ilvient de comprendre que ce qu’il entend c’est la musique d’un régiment qui s’associe à sondeuil et rend honneur à la dépouille de son père. Tel, je venais de reconnaître combien

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De fato o episódio parece representar, não o contrário, mas o outro lado

do da madeleine. A face, entrevista inicialmente com raiva “do estranho”

(l’étranger) “que me vinha perturbar”, e na qual o narrador reconhece “eu

mesmo, a criança que fora”, agora apropriada, faz com que a lembrança seja

retomada com um prazer evidente, ligado diretamente ao encanto do menino

com a literatura, agora reencontrado através do encontro fortuito com o

romance:

“Não era entretanto um livro extraordinário, era François le Champi,

mas este nome, como o de Guermantes, não se confundia para mim

com os que depois aprendi. A lembrança de tudo quanto, ao ouvir

mamãe lê-lo, me parecera inexplicável no enredo de François le

Champi acudia invocada pelo título, do mesmo modo por que o nome

dos Guermantes (quando passava muito tempo sem vê-los) resumia

para mim o feudalismo – como François le Champi a essência do

romance. (...) Era uma remota impressão, onde se misturavam suaves

reminiscências de infância e de família, e que eu não reconhecera de

pronto.”108

Entrega-se então, à rememoração destas lembranças (na verdade, não

tão suaves assim), utilizando na sua descrição, um termo surpreendente, à

primeira vista:

“como no caso deste François le Champi, contemplado pela primeira

vez em meu quarto de Combray, na noite talvez mais doce e triste de

minha vida – quando, ai de mim (numa época em que me pareciam

inacessíveis os misteriosos Guermantes), obtive de meus pais a

en moi, car, de moi ne connaissant que cet enfant, c’est cet enfant que le livre avait appelétout de suite, ne voulant être regardé que par ses yeux, aimé que par son coeur, et ne parlerqu’à lui. Aussi ce livre que ma mère m’avait lu haut à Combray presque jusqu’au matin,avait-il gardé pour moi tout le charme de cette nuit-là.”, op. cit., p. 242).

108 Idem, p. 162 (Le temps retrouvé: “Et pourtant ce n’était pas un livre bien extraordinaire,c’était François le Champi. Mais ce nom-là, comme le nom de Guermantes, n’était pas pourmoi comme ceux que j’avais connu depuis. Le souvenir de ce qui m’avait sembléinexplicable dans le sujet de François le Champi tandis que maman me lisait le livre deGeorge Sand, était réveillé par ce titre (aussi bien que le nom de Guermantes, quand jen’avais pas vu les Guermantes depuis longtemps, contenait pour moi tant de féodalité –comme François le Champi l’essence du roman -). (...) C’était une impression bien ancienne,où mes souvenirs d’enfance et de famille étaient tendrement mêlés et que je n’avais pasreconnue tout de suite.”, p. 241-242).

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abdicação inicial, da qual data o declínio de minha saúde, e de minha

vontade, minha sempre crescente renúncia a qualquer tarefa difícil – e

revisto hoje na biblioteca dos Guermantes, precisamente no dia mais

belo, o que me iluminava subitamente não somente as antigas

hesitações intelectuais, mas a própria razão de ser de minha

existência e quiçá da arte.”109

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A sentença tão forte, “vai com o menino”, que o pai profere, não pode

deixar de suscitar questões, por parte do leitor moderno, que tem presente no

seu horizonte a Psicanálise (e este é o leitor de Proust, sendo este

contemporâneo a Freud)112, que se não contempladas, colocam em risco a

própria compreensão do episódio, que permanecerá em grande medida, opaco.

Julia Kristeva, a propósito de François le Champi113, comenta:

“Menos “campestre” que os outros, François le Champi (1850)

relata a história de uma criança achada (champi significa “criança

achada” em dialeto da região de Berry) que, recolhida pela moleira

Madeleine Blanchet, e seu objeto de amor inconsciente, torna-se

efetivamente o amante e em seguida o esposo de sua mãe adotiva,

quando, retornando, adulto, a seu vilarejo, ele reencontra Madeleine

enviuvada.

Proust, que mais tarde criticou freqüentemente George Sand,

guardou entretanto referência central a François le Champi, afirmando

assim o papel estruturante da leitura deste texto na edificação da

Recherche: no fim do Tempo Reencontrado, na biblioteca do príncipe

de Guermantes, o volume “campestre” provoca a quarta reminiscência

e a revelação estética do escritor. Tem-se portanto motivos para pensar

que é precisamente o tema incestuoso, o da mãe pecadora, que reteve

e manteve a atenção de Proust sobre François le Champi, para além de

suas reticências em relação ao estilo de George Sand. A moleira

chagrin, d’émancipation des larmes. J’aurais dû être heureux : je ne l’étais pas.”, op. cit., p.134).

112 A questão da possível influência de Freud na obra de Proust, tem sido considerada porvários comentadores, mas não tem recebido uma resposta conclusiva:

“Quando Proust escrevia Jean Santeuil entre 1895 e 1900, a psicanálise dava seusprimeiros passos em Viena. (...) Poderíamos acreditar, que Proust tenha lido AInterpretação dos Sonhos de Freud publicada em alemão em 1900 e traduzida, em1926, por Meyerson. Sabemos que o jovem Proust tinha preferido o curso dealemão no liceu Condorcet ao curso de inglês dado por Mallarmé na época, masdizer que por isso lia Freud em sua língua seria extrapolar sem provas. Teria eletido acesso à teoria psicanalítica lendo outros escritos de Freud ou de seusdiscípulos?” (WILLERMART, Philippe. Proust, Poeta e Psicanalista. São Paulo:Ateliê Editorial, 2000, p. 106.

113 KRISTEVA, Julia. Les Temps Sensible – Proust et l´expérience littéraire. Paris: Gallimard,1994 p. 19-20 (tradução proposta por Sybil Douek).

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Madeleine Blanchet transmitirá assim, com a brancura de sua farinha, o

gosto de um amor proibido que se insinuará no credo estético maior do

narrador, transformado em objeto aparentemente anódino: as pequenas

madeleines.”

Apesar de caminhar no mesmo sentido da análise que proporemos,

Kristeva não se refere, em relação a François le Champi, ao episódio do “beijo

de boa noite” que enfocamos aqui.

Mas, o que mais nos afasta da interpretação de Kristeva, é que esta visa

sobretudo o autor de Em Busca, e tem como objeto de análise as várias

versões produzidas anteriormente, tentando demonstrar que a referência à

personagem Madeleine Blanchet teria sido suprimida por Proust no episódio

que relata a leitura de François le Champi, feita pela mãe do narrador;

supressão que por sua vez tornaria enigmático o episódio da “madeleine”.

Não se trata aqui, de analisar Proust. Não que isto não seja possível (o

próprio Freud não relutou em aceitar por vezes este desafio: analisar o artista

através de sua obra, mas trata-se de uma empreitada extremamente arriscada

e desnecessária para os nossos propósitos). Mas sim, de que para o leitor de

Freud convencido por ele de que as descobertas psicanalíticas podem ser

exemplificadas não só na clínica, mas também na vida cotidiana e na ficção

literária, este episódio quase “clama” por uma análise. Análise aliás, que o

próprio narrador empreende (discutiremos esta questão no capítulo VI).

Ricoeur, no texto que estamos considerando, não comenta, e nem

sequer menciona a frase que destacamos. Talvez isto em parte se deva ao

risco que menciona em Da Interpretação – Ensaio Sobre Freud114, e que, por

não ser “analista nem analisado”, poderia tê-lo inibido numa possível

interpretação do texto proustiano, que a sua leitura acurada de Freud mais do

que o habilitaria.

114 RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 11 – Prefácio. “(...) sem dúvida é um risco escrever sobre Freud

sem ser analista nem analisado e tratar sua obra como um monumento de nossa cultura,como um texto em que esta se exprime e se compreende.”

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Pode-se lamentar especialmente que não tenha empreendido esta

leitura de inspiração psicanalítica, pois o texto em questão115 como já foi

mencionado, faz parte de uma reflexão mais ampla sobre o tempo na ficção

(em que são considerados ainda outros textos literários), e na qual ficção e

realidade são aproximadas através do conceito de “experiência fictícia” (o

nome deste capítulo chama-se exatamente “A Experiência Temporal Fictícia”),

aproximação esta também importante para o pensamento psicanalítico (por

exemplo, quando Freud, em 1903, escreve “Gradiva”, em que demonstra a

analogia existente entre o sonho efetivamente sonhado, e o sonho na ficção).

Num ato de ousadia, mas estritamente como leitura de Freud, tentemos

escutar esta sentença que o pai do menino, neste início do romance, profere, e

com cujas conseqüências o narrador “vai ter de se haver” durante as três mil

páginas que compõem a obra: “Vai com o menino”.

Podemos compreender, por esta frase – se admitirmos as descobertas

psicanalíticas –, porque o narrador fala em “abdicação” em relação ao episódio

inteiro: trata-se de uma renúncia, de uma desistência, do que seria próprio do

desempenho da função paterna, que visa assegurar a entrada da criança na

cultura, através da aceitação da lei da proibição ao incesto. Nas palavras de

Hélio Pellegrino:

“Nascemos uma vez, quando somos expulsos do útero materno. E pela

Lei do pai, que interdita o incesto, nascemos uma segunda vez, na

medida em que a figura materna nos é proibida, enquanto objeto sexual

genital. (...) Somos incompletos. Somos, enquanto seres humanos,

uma ruptura com a natureza. Somos expulsos do paraíso. Tudo isso vai

nos surgir, na evolução psíquica de cada um de nós, através das

vicissitudes do drama edipiano. O complexo de Édipo é o crivo pelo

qual cada um de nós tem que passar, para tornar-se, verdadeiramente,

sócio da sociedade humana.”116

115 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa II.

116 PELLEGRINO, Hélio. Op. cit., p. 3.

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Na noite da “abdicação”, o menino é, para seu prazer e desespero,

levado simbolicamente a transgredir o que Pellegrino chama de Lei do pai, que

interdita o incesto, e é significativo que tenha clareza desta interdição, que “seu

maior desejo” também fosse “contrário às necessidades da vida e ao sentir de

todos”, o que explica os remorsos que sentiu, agora acalmados pelo prazer da

leitura:

“Meus remorsos estavam agora acalmados, eu me abandonava

à doçura daquela noite em que tinha mamãe junto de mim. Sabia que

uma noite daquela não poderia repetir-se: que o meu maior desejo no

mundo, ter mamãe comigo no quarto durante aquelas tristes horas

noturnas, era por demais contrário às necessidades da vida e ao

sentir de todos, para que a realização que lhe fora concedida aquela

noite não pudesse ser mais que uma coisa fictícia e excepcional.

Amanhã recomeçariam as minhas angústias e mamãe não estaria ali

comigo.117

Anteriormente, o narrador comenta um aspecto da personalidade do pai,

na tentativa de compreender sua atitude, mas no entanto acaba por lançar

dúvidas sobre seu amor pelo menino:

“Talvez até aquilo a que eu chamava sua severidade, quando me

mandava deitar, merecesse menos esse nome do que a severidade

de minha mãe ou de minha avó, pois a natureza de meu pai, (...)

provavelmente não havia adivinhado até então o quanto eu sofria

todas as noites, coisa que minha mãe e minha avó muito bem sabiam:

mas as duas me amavam o bastante para não consentir que me fosse

poupado o sofrimento, pois queriam ensinar-me a dominá-lo, a fim de

diminuir minha sensibilidade nervosa e fortalecer minha vontade.

Quanto a meu pai, cuja afeição por mim era de outra

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se teria ele tal coragem: logo que compreendeu que eu sofria, dissera

a minha mãe: “Vai consolá-lo”.”118

É o drama (que se passa no quarto de dormir) do menino assoberbado

pelas questões edípicas, que é reencontrado no episódio da Biblioteca, a partir

da descoberta de François le Champi entre os livros.

Mas o que significa este reencontro? Como teria afinal, o herói de Em

Busca, elaborado seu dilema edípico?

É o que tentaremos abordar a seguir.

II – Ainda na Biblioteca – “Um Romance Familiar”

Ainda mais uma vez, nas páginas finais de Em Busca, o narrador volta a

referir-se ao episódio do beijo de “boa noite” (mencionando novamente

François le Champi), agora nomeado como “abdicação de minha mãe”. Para

compreendermos melhor o termo “abdicação de minha mãe”, que no contexto

desta tentativa de interpretação deve ser diferenciado do de “abdicação de

meus pais” já mencionado, o seguinte fragmento é esclarecedor:

“Parecia-me que minha mãe acabava de me fazer uma primeira concessão

que lhe deveria ser dolorosa, que era uma primeira abdicação de sua parte

ao ideal que concebera para mim, e que pela primeira vez, ela, tão

corajosa, se confessava vencida. Que, se eu havia alcançado uma vitória,

era contra ela, que lhe conseguira quebrantar o ânimo e dominar a razão

como o teriam feito a doença, o sofrimento ou a velhice, e que aquela noite

118 Idem, p. 42 (Du côté de chez Swann: “Peut-être même que ce que j’appelais sa sévérité,

quand il m’envoyait me coucher, méritait moins ce nom que celle de ma mère ou ma grand-mère, car sa nature, plus différente en certains points de la mienne que n’était la leur, n’avaitprobablement pas deviné jusqu’ici combien j’étais malheureux tous les soirs, ce que mamère et ma grand-mère savaient bien; mais elles m’aimaient assez pour ne pas consentir àm’épargner de la souffrance, elles voulaient m’apprendre à la dominer afin de diminuer masensibilité nerveuse et fortifier ma volonté. Pour mon père, dont l’affection pour moi étaitd’une autre sorte, je ne sais pas s’il aurait eu ce courage : pour une fois où il venait decomprendre que j’avais du chagrin, il avait dit à ma mère : « Va donc le consoler. »”, p. 134).

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encetava uma nova era e ficaria como uma triste data. (...) Por certo, o belo

rosto de minha mãe ainda brilhava de juventude naquela noite em que me

prendia tão docemente as mãos e procurava estancar o pranto; mas

parecia-me que não deveria ser assim, que sua cólera me deveria ser

menos triste do que aquela recente brandura que minha infância

desconhecera; e que, com mão sacrílega e furtiva, eu acabava de traçar-

lhe na alma a primeira ruga e de ali fazer surgir o primeiro fio de cabelo

branco.”119

Ou seja, “a abdicação de minha mãe” é uma abdicação “ao ideal que

concebera para mim”, que é vivenciado como uma derrota por parte dela (é

comum – em termos psicanalíticos –, mas também fonte de neurose, que a

mãe projete no filho seu ideal, e sinta-se fracassada quando este ideal não se

confirma).

Este episódio é narrado agora, incluindo nesta lembrança a figura de

Swann, cuja importância comentaremos:

“Ah! se ainda possuísse as forças intactas da noite que então

evoquei, sugerida por François le Champi! Daquela noite, a da

abdicação de minha mãe, datava, com a lenta morte de minha avó, o

declínio de minha vontade, de minha saúde. Tudo se decidiu no

momento em que, incapaz de esperar o dia seguinte para pousar os

lábios no rosto de minha mãe, eu me resolvi, saltei da cama e fui, de

camisa de dormir, instalar-me na janela por onde entrava o luar, até a

saída de Swann. Meus pais o haviam acompanhado, ouvi o portão

abrir-se, fazer soar o badalo, fechar-se.”120

119 Idem, p. 43 (Du côté de chez Swann: “Il me semblait que ma mère venait de me faire une

première concession qui devait lui être douloureuse, que c’était une première abdication desa part devant l’idéal qu’elle avait conçu pour moi, et que pour la première fois elle, sicourageuse, s’avouait vaincue. Il me semblait que si je venais de remporter une victoirec’était contre elle, que j’avais réussi comme auraient pu faire la maladie, des chagrins, oul’âge, à détendre sa volonté, à faire fléchir sa raison et que cette soirée commençait une ère,resterait comme une triste date. (...) Certes, le beau visage de ma mère brillait encore dejeunesse ce soir-là où elle me tenait si doucement les mains et cherchait à arrêter meslarmes; mais justement il me semblait que cela n’aurait pas dû être, sa colère eût été moinstriste pour moi que cette douceur nouvelle que n’avait pas connue mon enfance; il mesemblait que je venais d’une main impie et secrète de tracer dans son âme une premièreride et d’y faire apparaître un premier cheveu blanc.”, p. 134-135).

120 PROUST, Marcel. O Tempo Redescoberto. Op. cit., p. 290 (Le temps retrouvé: “Ah! sij’avais encore les forces que étaient intactes encore dans la soirée que j’avais alors évoquée

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E ainda:

“Neste momento, na casa do príncipe de Guermantes, o ruído dos

passos de meus pais reconduzindo Swann, o tilintar álacre,

ferruginoso, interminável, agudo e claro da sineta, anunciando que

afinal a visita se fora e mamãe ia subir, eu os ouvia ainda,

distintamente, apesar de já tão remotos. E, refletindo sobre todos os

sucessos necessariamente situados entre o instante em que os ouvira

e a matinée dos Guermantes, pasmou-me verificar ser bem a mesma

sineta que ainda repercutia em mim, sem me ser sequer possível

atenuar-lhe os sons gritantes do badalo, (...)”121

O beijo de boa noite, ritual cotidianamente encenado e que simboliza o

vínculo do menino à mãe, só era suspenso por ocasião das visitas recebidas, e

quase que o único visitante era Swann: “Em geral, o visitante era o Sr. Swann,

o qual, além de alguns forasteiros de passagem, era quase a única pessoa que

vinha a nossa casa em Combray...”122

A importância desse personagem não pode ser subestimada, entre

outros motivos, por seu nome aparecer no próprio título do primeiro livro de Em

Busca. Aliás, aparece também num relato desse mesmo livro (“Um Amor de

en apercevant François le Champi! C’était de cette soirée, où ma mère avait abdiqué, quedatait, avec la mort lente de ma grand’mère, le déclin de ma volonté, de ma santé. Touts’était décidé au moment où, ne pouvant plus supporter d’attendre au lendemain pour posermes lèvres sur le visage de ma mère, j’avais pris ma résolution, j’avais sauté du lit et étaisallé, en chemise de nuit, m’installer à la fenêtre par où entrait le clair de lune jusqu’à ce quej’eusse entendu partir M. Swann. Mes parents l’avaient accompagné, j’avais entendu laporte du jardins s’ouvrir, sonner, se refermer...”, op. cit., p. 438-439).

121 Idem, p. 290 (Le temps retrouvé: “(...) c’est qu’à ce moment même, dans l’hôtel du prince deGuermantes, ce bruit des pas de mes parents reconduisant M. Swann, ce tintementrebondissant, ferrugineux, intarissable, criard et frais de la petite sonnette que m’annonçaitqu’enfin M. Swann était parti et que maman allait monter, je les entendis encore, je lesentendis eux-mêmes, eux situés pourtant si loin dans le passé. Alors, en pensant à tous lesévénements qui se plaçaient forcément entre l’instant où je les avais entendus et la matinéeGuermantes, je fus effrayé de penser que c’était bien cette sonnette qui tintait encore enmoi, sans que je pusse rien changer aux criaillements de son grelot (...)”, p. 441).

122 PROUST, Marcel. No Caminho de Swann. Op. cit., p. 19 (Du côté de chez Swann: “Lemonde se bornait habituellement à M. Swann, qui, en dehors de quelques étrangers depassage, était à peu près la seule personne qui vînt chez nous à Combray, quelquefois (...)”,op. cit., p. 107).

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Swann”), relato este construído em 3ª pessoa, o que já se constitui indício do

que será sugerido adiante.

Quem é, afinal, Swann? Esta questão principal comporta ainda outras

mais específicas: Por que a recorrência do personagem na obra (ampliada

ainda nas figuras de Gilberte e da Srtª de St. Loup)? De onde vem sua

capacidade de nomear (“o caminho”, o primeiro tomo da obra, e o relato “Um

Amor de Swann”?).

Não se trata aqui, de buscar fora da obra as pistas que nos conduziriam

a solucioná-las (não se trata certamente, de interrogar Proust, o autor), mas

sim, de buscar respostas no próprio texto.

Não é fácil responder a esta questão “quem é Swann”, pois o

personagem, para o narrador, se desdobra em “pessoas diferentes”:

“e eu tenho a impressão de deixar alguém para ir ter com outra

pessoa diferente, quando, em minha memória, retrocedo do Swann

que mais tarde conheci deveras para este primeiro Swann – este

primeiro Swann que descubro entre os encantadores equívocos de

minha juventude, e que aliás se parece menos com o outro do que

com as pessoas a quem conheci na mesma época, como se em

nossa vida sucedesse como em um museu, onde todos os retratos de

um mesmo tempo têm um ar de família, uma mesma tonalidade –

para este primeiro Swann cheio de lazeres, perfumado pelo odor do

grande castanheiro, do cesto de framboesas e de um quase nada de

estragão.123

123 Idem, p. 25 (Du côté de chez Swann: “(...) et que j’ai l’impression de quitter une personne

pour aller vers une autre qui en est distincte, quand, dans ma mémoire, du Swann que j’aiconnu plus tard avec exactitude je passe à ce premier Swann – à ce premier Swann danslequel je retrouve les erreurs charmantes de ma jeunesse, et qui d’ailleurs ressemble moinsà l’autre qu’aux personnes que j’ai connues à la même époque, comme s’il en était de notrevie ainsi que d’un musée où tous les portraits d’un même temps ont un air de famille, unemême tonalité – à ce premier Swann rempli de loisir, parfumé par l’odeur du grandmarronnier, des paniers de framboises et d’un brin d’estragon.”. op. cit., p. 113-114).

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Este Swann (tão perfumado!) conhecido na infância pelo narrador, mais

que isto, tem um “ar de família”, liga-se, como foi comentado, ao episódio do

“beijo” lembrado pelo narrador na cena da biblioteca.

O papel de Swann, involuntariamente (especialmente no episódio do

“beijo de boa noite”), é o de perturbar124, o de frustrar a criança.

É por sua causa que o ritual do “beijo da noite” é suspenso, causando a

angústia relatada, que por sua vez precipita o desafio do menino ao pai

(resolve obter de qualquer forma o beijo recusado) e seu surpreendente

desfecho, a frase “vai com o menino”, proferida pelo pai à mãe do narrador.

Seria “fantasioso” dizer que o desempenho da função paterna, renegado

pelo pai do narrador, é, neste episódio, simbolicamente (embora de modo

frágil), desempenhado pela figura de Swann, a única que tem como função

colocar um limite no vínculo do menino com sua mãe?

Não nos parece que o seja, se levarmos em conta os desdobramentos

da figura de Swann na obra, o primeiro destes, o relato Um Amor de Swann,

que se segue às rememorações de Combray após o episódio de madeleine, e

que introduz a personagem Odette, também tão presente na obra toda.

Trata-se de uma hipótese interpretativa, discutível como toda

interpretação, mas também necessária, no sentido de que sem ela (ou talvez

outra – mas esta é a que nos ocorre), o texto proustiano em grande medida

permanece enigmático.

Esta interpretação também possibilita abordarmos a questão já

anunciada da “3ª pessoa”, em Um Amor de Swann.

124 Swann, um rico vizinho judeu de maneiras modestas e com acesso à mais elegante

sociedade parisiense, é a primeira pessoa que perturba o mundo seguro de Marcel.(SHATTUCK, Roger. Op. cit., p. 42)

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A inclusão do capítulo, no primeiro volume de Em Busca, sempre foi

motivo de perplexidade. No entanto, tendo em vista a temática edípica que

supomos presente em No Caminho de Swann (principalmente em “Combray”,

onde é narrado pela primeira vez o episódio do “beijo de boa noite”), não é

difícil associar a 3ª pessoa em que é redigido, com (nas palavras mais uma

vez, de Hélio Pellegrino)125 “o advento do terceiro, do pai, cuja entrada em

cena, através da estrutura triádica, ajuda a criança a construir sua própria

liberdade e autonomia.”126

Para situarmos Um Amor de Swann no contexto da obra, uma

observação do narrador, ao final de Combray, é, deste ponto de vista,

sugestiva:

“E assim ficava eu muitas vezes até de madrugada, pensando

nos tempos de Combray, em minhas tristes noites de insônia, e em

tantos dias também, cuja imagem me fora mais recentemente

evocada pelo sabor – “o perfume”, como diriam em Combray – de

uma taça de chá e pela ligação estabelecida entre recordações

minhas e certas coisas relativas a um amor que tivera Swann antes

de meu nascimento e que só vim a saber muitos anos depois de

deixar a cidade (...)127

125 Pellegrino, influenciado certamente por Lacan, concebe o Édipo de um modo estrutural (se

bem que Freud muitas vezes assinalou o “triângulo amoroso” formado pela criança, o pai ea mãe, o que tornou possível a “releitura” empreendida por Lacan):

“A Lei existe, não para humilhar e degradar o desejo, mas para estruturá-lo,integrando-o no circuito de intercâmbio social. A estrutura edípica representa agramática elementar do desejo, a partir de cujas regras vai ser possível aarticulação do discurso desejante. Assim como, na língua, as contraintes lógico-sintáticas são a condição da invenção dos discursos – a langue, a partir de cujaestrutura emerge a parole –, assim também o Édipo deve representar a contriçãoessencial que vai permitir ao desejo desferir o seu vôo.” (PELLEGRINO, Hélio.Pacto Edípico e Pacto Social. In: Folhetim, Suplemento da Folha de São Paulo.Setembro de 1983, (transcrição de Conferência), p. 5).

126 Idem, p. 5.

127 PROUST, Marcel. No Caminho de Swann. Op. cit., p. 182 (Du côté de chez Swann: “C’estainsi que je restais souvent jusqu’au matin à songer au temps de Combray, à mes tristessoirées sans sommeil, à tant de jours aussi dont l’image m’avait été plus récemment renduepar la saveur – ce qu’on aurait appelé à Combray le « parfum » – d’une tasse de thé et parassociation de souvenirs à ce que, bien des années après avoir quitté cette petite ville,j’avais appris, au sujet d’un amour que Swann avait eu avant ma naissance, (...)”, op. cit., p.300-301.

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Esta citação é interessante, pois refere-se a um “antes” do nascimento

do narrador, personificado na figura de Swann, que já sugerimos simbolizar de

modo frágil a “função paterna”, que o personagem do pai, no episódio que

enfocamos, se furta a desempenhar. Ou mesmo, desempenha de uma forma

invertida (ou aparentemente invertida)128, como uma das passagens mais

enigmáticas do episódio do “beijo de boa noite” deixa entrever:

“(...) estava ainda ali diante de nós, alto, com seu branco roupão

de dormir e a manta roxa e cor-de-rosa de casimira da Índia que

costumava enrolar à cabeça desde que sofria de nevralgias, na mesma

atitude com que Abraão, na gravura segundo Benozzo Gozzoli que me

dera o senhor Swann, dizia a Sara que se separasse de Isaac. Faz

muitos anos isso.”129

Se Em Busca constitui o relato de uma história (“a história de uma

vocação”), “Um Amor de Swann”, - este relato situado para o narrador “antes

do meu nascimento” -, representa sua pré-história.

128 Nesta comparação da figura do pai com Abraão (note-se: a partir de uma gravura

presenteada por Swann), há uma aparente inversão, pois este diz a Sara “que seseparasse de Isaac”, o contrário do que o pai do personagem diz à mãe: “vai com omenino”.Devo a Sybil S. Douek a percepção de que esta inversão talvez seja apenas aparente:afinal, trata-se do sacrifício do filho, no caso de Abraão, e da abdicação, por parte do pai domenino (ou seja, de renúncia ao poder paterno, o que implica num abandono do filho).Devo a ela também, ter encontrado a seguinte nota, sobre este episódio:

“Benozzo Gozzoli (1420-1497), pintor florentino, colaborador de Angélico,pintou no Campo Santo de Pisa afrescos inspirados no Antigo Testamento,hoje em grande parte destruído, que incluíam uma gesta de Abraão. Mas nãoparece que a cena evocada por Proust (ausente aliás da Bíblia) tivesse sido aírepresentada. Ver a esse respeito: Marcel Gutwirth “La bible de Combray”,Revue des Sciences humaines, juil.-sept. 1971, p. 424-426.” [In: PROUST,Marcel. Du côté de chez Swann. Volume I de: À la recherche du temps perdu.Édition établie sous la direction de Jean Milly. Préface par Jean Milly. ParBernard Brun et Anne Herschberg-Pierrot. Notes de Anne Herschberg-Pierrot.Paris: Flammarion, 1987, p. 581, note 35] (tradução proposta por Sybil S.Douek).

Sobre esta nota, transcrevo seu esclarecedor comentário:“Na nota, Proust não só inventou o episódio bíblico, como também a própria gravura deGozzoli: ela também parece não ter existido! Não é o máximo? Esse Proust...”

129 PROUST, Marcel. No Caminho de Swann. Op. cit., p. 41 (Du côté de chez Swann: “(...) ilétait encore devant nous, grand, dans sa robe de nuit blanche sous le cachemire de l’Indeviolet et rose qu’il nouait autour de sa tête depuis qu’il avait des névralgies, avec le gested’Abraham dans la gravure d’après Benozzo Gozzoli que m’avait donnée M. Swann, disantà Sarah qu’elle a à se départir du côté d’Isaac. Il y a bien des années de cela.”, op. cit., p.133).

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História e pré-história, no sentido psicanalítico, corresponderiam no

âmbito da subjetividade, às relações entre “realidade” e “fantasia”, que a

criança no afã de libertar-se da influência parental130 transforma no que Freud

chamou de “romance familiar”, em que dados da realidade (“história”), se

mesclam com fantasias sobre a sua origem – a “pré-história” (que aliás, mesmo

referido ao sentido forte de História, sempre se refere a um mito de origem):

“(...) a imaginação da criança entrega-se à tarefa de libertar-se dos

pais que desceram em sua estima, e de substituí-los por outros, em

geral de uma posição social mais elevada. Nessa conexão ela lançará

mão de quaisquer coincidências oportunas de sua experiência real, tal

como quando trava conhecimento com o senhor da Casa Grande ou

com o dono de alguma grande propriedade, se mora no campo, ou

com algum membro da aristocracia, se mora na cidade. Esses

acontecimentos fortuitos despertam a inveja da criança, que encontra

expressão numa fantasia em que seus pais são substituídos por

outros de melhor linhagem. A técnica utilizada no desenvolvimento

dessas fantasias (que, naturalmente, são conscientes nesse período)

depende da inventividade e do material à disposição da criança. Há

também a questão de as fantasias serem desenvolvidas com maior ou

menor esforço para se obter verossimilhança. Esse estádio é

alcançado numa época em que a criança ainda ignora os

determinantes sexuais da procriação.”131

Esta citação se coaduna melhor com as fantasias do narrador de Em

Busca, quando narra sua fascinação pelos Guermantes132

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permanecerá importante até o final da obra de Proust, inclusive como

personagem que é mãe de Gilberte, e avó da Srtª de Saint-Loup, sobre cujo

significado falaremos adiante. Na descrição de Roger Shattuck:

“Voltando quase uma geração, o narrador relata, na terceira

pessoa, o caso de amor entre o cavalheiro judeu, Swann, e a cocotte,

Odette. Ela, na verdade, não é absolutamente o seu tipo de mulher,

embora sua imaginação estética o impulsione lentamente para um

poderoso ciclo de atração em direção a essa mulher comum e

enigmática. (...) Seu ciúme por Odette alcança proporções patológicas

antes que ele inicie um lento restabelecimento. Chega-se a supor que

eles acabarão por separar-se. Mas quando reaparecem na narrativa,

estão casados e têm uma filha.136

A partir da hipótese sugerida acima, Odette (contrastando com as figuras

imaculadas da mãe e da avó do narrador)137, seria uma personagem

degradada, mas substituta da figura materna, depositária dos ciúmes do

menino preso a uma armadilha edípica, ao qual só resta, através da construção

de um “romance familiar”, simbolizar o exercício da função paterna através da

figura de Swann, e o desejo pela mãe, tingido pelos ciúmes, na figura de

Odette.

Esta interpretação tem a vantagem de oferecer uma leitura plausível

para as relações entre o rapaz e seu primeiro amor, Gilberte, a filha de Swann

e Odette138, a partir de uma observação de Freud em outro texto (“Escritores

Criativos e Devaneios”), mas que também configura um exemplo de “romance

familiar”:

136 SHATTUCK, Roger. Op. cit., p. 49.

137 Nas palavras de Shattuck: “O amor apaixonado mas nunca maculado entre Marcel e suamãe e avó é inteiramente apresentado antes da longa curva em arabesque do caso entreSwann e Odette.” (Idem, p. 43-45).

138 Na descrição de Roger Shattuck:“Como um garoto que brinca nos jardins dos Champs-Elysées, Marcel se apaixonapor Gilberte, a filha de Swann e Odette. Ele também sente uma grande fascinaçãopela amizade do pai e da mãe de Gilberte. Seu amor passa por uma revoluçãosemelhante à do amor de Swann por Odette e, finalmente, esmorece.” (Idem, p.50).

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“Um exemplo bastante comum pode servir para tornar claro o

que eu disse. Tomemos o caso de um pobre órfão que se dirige a

uma firma onde talvez encontre trabalho. A caminho, permite-se um

devaneio adequado à situação da qual este surge. O conteúdo de sua

fantasia talvez seja, mais ou menos, o que se segue. Ele consegue o

emprego, conquista as boas graças do novo patrão, torna-se

indispensável, é recebido pela família do patrão, casa-se com sua

encantadora filha, é promovido a diretor da firma, primeiro na posição

de sócio do seu chefe, e depois como seu sucessor. Nessa fantasia, o

sonhador reconquista o que possui em sua feliz infância: o lar

protetor, os pais amantíssimos e os primeiros objetos do seu afeto.

Esse exemplo mostra como o desejo utiliza uma ocasião do presente

para construir, segundo moldes do passado, um quadro do futuro.”139

As relações entre o rapaz e Gilberte, podem ser compreendidas então,

como um desdobramento das relações entre Swann e Odette. Nas palavras de

Roger Shattuck: “Assim, como um eco juvenil de Um Amor de Swann, ficamos

imersos no amor adolescente de Marcel por Gilberte.”140 Alias, na narração

das relações entre os dois jovens, as figuras de Swann e de Odette

permanecem como absolutamente centrais: “Ele também sente uma grande

fascinação pela amizade do pai e da mãe de Gilberte.”

Enfim, o que estamos sugerindo, é que “Um Amor de Swann” seja

tomado como um exemplo de romance familiar, tal como Freud descreveu este

recurso que a criança freqüentemente utiliza para elaborar seus conflitos

edípicos. Exemplo, é claro, que o romancista desenvolve, lapida poderiamos

dizer, a partir da experiência bruta que é o devaneio infantil.

139 FREUD, Sigmund. Escritores Criativos e Devaneios. In: Obras Completas. Rio de Janeiro:

Editora Imago, vol. IX, p. 153.

140 SHATTUCK, Roger. Op. cit., p. 43.

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III – No Salão (e na cozinha!) – A Natalidade

A seguir, na narrativa, passa-se da biblioteca ao salão, último cenário da

obra, onde se dá a recepção.

Os temas da deterioração e da morte, enfim, do tempo, serão os que

estarão presentes, finalmente, na recepção do príncipe de Guermantes, na

última “prova”, segundo observação de Ricoeur, pela qual o narrador terá que

passar antes de efetivar sua vocação:

“Resta dizer como o caráter narrativo do nascimento de uma

vocação é garantido pela prova que se segue à revelação da verdade

da arte e pelo engajamento do herói na obra a ser feita. Essa prova

passa pelo desfiladeiro da morte.141

Neste cenário, em que se defrontam personagens transformados (e

deformados) pelo tempo, o narrador percebe que por mais difícil que seja a

identificação de pessoas “tão conhecidas”,

“para o artista capaz de preservar a relação do tempo ressuscitado

com o extratemporal, o Tempo revela sua outra face mítica: a

profunda identidade que os seres conservam, não obstante sua

degradação.”142

Nesta recepção, é o encontro com a Srtª de Saint-Loup, filha de Gilberte

e Robert (amigo do narrador), não nomeada na obra (ou talvez sobre-

nomeada, pois carrega os sobrenomes dos personagens principais), que

precipita através da “noção de tempo” (pois “assemelhava-se a minha

mocidade”), a possibilidade da obra:

“Achei-a bonita, ainda cheia de esperanças. Risonha, formada

pelos anos que eu perdera, assemelhava-se a minha mocidade.

141 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa – Tomo II. Op. cit., p. 246.

142 Idem, p. 247.

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Enfim, a noção do Tempo trazia-me uma última vantagem, era

um aguilhão, convencia-me da urgência de começar, (...)”143

Segundo observação de Paul Ricoeur, a Srtª de Saint-Loup “simboliza a

reconciliação entre os dois ‘lados’, o de Swann, por sua mãe, o de

Guermantes, por seu pai”.144 :

“E, antes de tudo, a ela conduziam os dois grandes “caminhos” de

meus passeios e dos sonhos – por seu pai Robert, o de Guermantes,

por Gilberte, sua mãe, o de Méséglise, que era o de Swann. Este,

através da mãe da jovem e os Campos Elísios, me levava a Swann,

às noites de Combray, no rumo de Méséglise; aquele, através de seu

pai, às tardes de Balbec, onde eu o revia junto ao mar ensolarado.”145

Em outro comentário sobre o aparecimento da personagem da Srtª de

Saint-Loup, Paul Ricoeur lança mão de um conceito precioso para a

compreensão do papel da criação na arte:

“O narrador viu um sinal de que esse pacto entre as duas

representações do “Tempo redescoberto” poderia ser concluído e

preservado no encontro que nada do que precede permitiria esperar:

o aparecimento da filha de Gilberta Swann e de Robert de Saint-Loup.

(...) Esse aparecimento que concretiza uma reconciliação, muitas

vezes anunciada ou antecipada na obra, visa a sugerir que a criação

tem um pacto com a juventude – com a “natalidade”, diria Hannah

Arendt – que torna a arte, diferentemente do amor, mais forte do que

a morte?”146

143 PROUST, Marcel. O Tempo Redescoberto. Op. cit., p. 279 (Le temps retrouvé: “Je la

trouvais bien belle: pleine encore d’espérances, riante, formée des années mêmes quej’avais perdues, elle ressemblait à ma Jeunesse.

Enfin cette idée du Temps avait un dernier prix pour moi, elle était un aiguillon, elle medisait qu’il était temps de commencer.”, op. cit., p. 423).

144 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa – Tomo II. Op. cit., p. 247.

145 PROUST, Marcel. O Tempo Redescoberto. Op. cit., p. 276-277 (Le temps retrouvé: “Etavant tout venaient aboutir à elle les deux grands ‘côtés’ où j’avais fait tant de promenadeset de rêves – par son père Robert de Saint-Loup le côté de Guermantes, par Gilberte samère le côté de Méséglise qui était le ‘côté de chez Swann’. L’une, par la mère de la jeunefille et les Champs-Elysées, me menait jusqu’à Swann, à mes soirs de Combray, au côté deMéséglise; l’autre, par son père, à mes après-midi de Balbec où je le revoyais près de la merensoleillée.”, op. cit., p. 420).

146 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa – Tomo II. Op. cit., p. 247-248.

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Ricoeur ressalta a diferença entre este “sinal” que o narrador reconhece,

e os outros que o precederam, e que o fará enfim, iniciar sua obra:

“Esse signo não é mais, como os precedentes, anunciador ou

premonitório, é um “aguilhão”: “Enfim, a noção do tempo trazia-me

uma última vantagem, era um aguilhão, convencia-me da urgência de

começar, se quisesse captar o que algumas vezes, no curso da

existência, eu sentira em fugazes e fulgurantes intuições, no caminho

de Guermantes, nos passeios de carro com a Sra. de Villeparisis, e

me fizera julgar a vida digna de ser vivida. Assim a considerava, agora

mais do que nunca, pois parecia-me possível iluminá-la, ela que

passamos nas trevas, fazê-la voltar à verdade original, ela (que)

continuamente falseamos, em suma, realizá-la num livro.”147

Após imaginar o livro, que por fim vislumbra como possível realizar,

mesmo que em parte apenas esboçado, mesmo que inacabado, e assinalar

sua relativa importância para a posteridade (que protege o túmulo “contra os

rumores e algum tempo contra o esquecimento”), significativamente (se

levarmos em conta o que Hannah Arendt denomina “natalidade”148), o narrador

volta-se para pensar sobre os que leriam sua obra, os quais apressa-se a

declarar que seria inexato denominar “meus leitores”, (neste fragmento

147 Idem, p. 248.

148 Este conceito que inspirou Ricoeur encontra-se na obra de Hanna Arendt em um capítulointitulado “A Crise na Educação” In: Entre o Passado e o Futuro. São Paulo, Ed.Perspectiva, 2005, p. 223: “a essência da educação é a natalidade, o fato de que seresnascem para o mundo”.O conceito de “natalidade”, se compreendemos bem o texto de Hanna Arendt, extrapola osentido meramente biológico do termo, enfatizando sua importância para a renovação domundo (da cultura), como podemos notar neste parágrafo com que conclui o capítulo:

“O que nos diz respeito, e que não podemos portanto delegar à ciência específica dapedagogia, é a relação entre adultos e crianças em geral, ou, para colocá-lo em termosainda mais gerais e exatos, nossa atitude face ao fato da natalidade: o fato de todos nósvirmos ao mundo ao nascermos e de ser o mundo constantemente renovado mediante onascimento. A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante paraassumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seriainevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também,onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nossomundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos aoportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as emvez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum.” (In: Entre oPassado e o Futuro. Op. cit., p. 249).

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analisado por Paul Ricoeur em um instigante texto, que enfocaremos no

próximo capítulo deste trabalho):

“(...) E naqueles grandes livros há partes que só tiveram tempo de ser

esboçadas e que, sem dúvida, nunca serão terminadas por causa da

amplidão da planta do arquiteto. Quantas grandes catedrais

permanecem inacabadas! Longamente nutrimos um livro assim,

fortalecemos-lhe os trechos fracos, preservamo-lo, mas depois é ele

que cresce, que designa nosso túmulo, o protege contra os rumores e

algum tempo contra o esquecimento. Mas, para voltar a mim mesmo,

pensava mais modestamente em meu livro, e seria inexato dizer,

pensando naqueles que o leriam, nos meus leitores. Porque segundo

minha opinião, não seriam leitores de mim, mas os próprios leitores

de si mesmos, meu livro só sendo uma espécie de lentes de aumento,

como as que oferecia a um freguês o dono da ótica de Combray; meu

livro, graças ao qual eu lhes forneceria o meio de lerem em si

mesmos.”149

É como se, para o escritor prestes a iniciar sua obra, o leitor nascesse

antes desta: é colocando-se dentro do espírito de “natalidade” (de que fala

Hannah Arendt), é fazendo um “pacto com a juventude”, diz Ricoeur, que a

criação (a escritura) torna-se possibilidade.

E é o olhar deste futuro leitor que o guia afinal até o olhar presente de

Françoise, sob o qual poderá concretizá-la (“à medida que melhor, mais

concretamente, antevia a tarefa em que me empenharia”), utilizando-se agora

149 PROUST, Marcel. O Tempo Redescoberto. Op. cit., p. 279-280, tradução consideravelmente

modificada por Jeanne-Marie Gagnebin. (Le temps retrouvé: “Et dans ces grands livres-là, ily a des parties qui n’ont eu le temps que d’être esquissées, et qui ne seront sans doutejamais finies, à cause de l’ampleur même du plan de l’architecte. Combien de grandescathédrales restent inachevées! On le nourrit, on fortifie ses parties faibles, on le préserve,mais ensuite c’est lui qui grandit, qui désigne notre tombe, la protège contre les rumeurs etquelque temps contre l’oubli. Mais pour en revenir à moi-même, je pensais plusmodestement à mon livre, et ce serait même inexact que de dire en pensant à ceux qui leliraient, à mes lecteurs. Car ils ne seraient pas, selon moi, mes lecteurs, mais les propreslecteurs d’eux-mêmes, mon livre n’étant qu’une sorte de ces verres grossissants commeceux que tendait à un acheteur l’opticien de Combray; mon livre, grâce auquel je leurfournirais le moyen de lire en eux-mêmes.”, op. cit., p. 424-425).

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de metáforas surpreendentes pela sua simplicidade – como um vestido (e não

mais como uma catedral), e mais adiante como um prato culinário:

“Por isso não esperaria deles (nota: os futuros leitores) nem elogios

nem ataques, mas apenas que me dissessem se estava certo, se as

palavras em si lidas eram mesmo as que eu empregara (as possíveis

divergências não provindo, aliás, sempre de erros meus, mas,

algumas vezes, de não serem os olhos do leitor daqueles aos quais

meu livro conviria para a leitura interior). Mudando de comparações à

medida que melhor, mais concretamente, antevia a tarefa em que me

empenharia, pensei que, sentado à grande mesa de pinho, eu

escreveria minha obra sob o olhar de Françoise. Os seres simples

que conosco convivem possuindo certa intuição de nossas

ocupações, (...) pois, pregando aqui e ali uma folha suplementar, eu

construiria meu livro, não ouso dizer ambiciosamente como uma

catedral, mas modestamente como um vestido.”150

Destas imagens, ou melhor, desta passagem de imagens “mais

elevadas” (como a da catedral) para outras “mais rústicas” comenta Leda

Tenório da Motta:

“(...) muitas imagens possíveis, e ao mesmo tempo: a da catedral,

repetidamente, o que não impede a do boeuf-à-la-mode preparado

por Françoise, este mais apreciado pelo juiz Norpois, quando não,

mais banal ainda, a de um vestido bem cortado. Escrever é tarefa que

se coaduna com as Belas-Artes, com o estilo elevado, mas que não

descarta, em sua busca eterna e inquieta, expedientes menores,

rudemente artesanais. Pelo contrário, há toda uma cozinha

150 Idem, p. 280 (Le temps retrouvé: “De sorte que je ne leur demanderais pas de me louer ou

de me dénigrer, mais seulement de me dire si c’est bien cela, si les mots qu’ils lisent en eux-mêmes sont bien ceux que j’ai écrits (les divergences possibles à cet égard ne devant pas,du reste, provenir toujours de ce que je me serais trompé, mais quelquefois de ce que lesyeux du lecteur ne seraient pas de ceux à qui mon livre conviendrait pour bien lire en soi-même). Et, changeant à chaque instant de comparaison selon que je me représentaismieux, et plus matériellement, la besogne à laquelle je me livrerais, je pensais que sur magrande table de bois blanc, regardé par Françoise, comme tous les êtres sans prétention quivivent à côté de nous ont une certaine intuition de nos tâches (...) car, épinglant ici un feuilletsupplémentaire, je bâtirais mon livre, je n’ose pas dire ambitieusement comme unecathédrale, mais tout simplement comme une robe.”, p. 425).

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proustiana, chamada a ocupar na obra, pela primeira vez, seu

lugar.”151

De fato, mais adiante no texto, as imagens afastam-se cada vez mais da

biblioteca e acercam-se da cozinha: é com o boeuf-à-la-mode que Françoise

preparava que se dá a comparação com a obra a ser realizada:

“Aliás, como as individualidades (humanas ou não) se

comporiam neste livro de impressões múltiplas, as quais, provocadas

por muitas moças, muitas igrejas, muitas sonatas, serviriam para

constituir uma única sonata, uma única igreja, uma única moça, eu

poderia fazê-lo como Françoise o boeuf-à-la-mode, tão apreciado por

Norpois, onde tantos pedaços de carne, escolhidos e acrescentados,

enriqueciam a geléia.”152

Esta imagem de uma impressionante crueza (“tantos pedaços de

carne”), suscita por parte de Leda Tenório da Motta outro comentário que

ressalta os aspectos sociológicos envolvidos, mas principalmente – “a cozinha

proustiana” –, a relação íntima entre o processo de criação literária e a

literalidade:

“A cozinha: subterrâneo profundo onde se desenvolvem dramas

particularmente secretos, particularmente sádicos, como o da

ajudante apelidada A caridade, de Giotto, a esconder ali sua gravidez

malvinda, numa primeira lição de sexo. Os baixos da cozinha, por

onde o livro começa, são abismos em que o escritor vai conhecer o

mundo, sem dúvida. Porém mais que isso, em que vão se cruzar com

perfeição Giotto e caçarolas, matança de aves e instinto de morte de

Françoise, perfazendo o espaço dúbio onde se lê, deslocada da

biblioteca, onde se dá apenas o estalo, uma receita da literatura.

Receita em que se misturam os gêneros, se aproveitam partes, se

unem os contrários, tudo fermenta, cresce, se transforma. O livro

151 MOTTA, Leda Tenório da. Op. cit., (Posfácio) p. 302.

152 PROUST, Marcel. O Tempo Redescoberto. Op. cit., p. 281 (Le temps retrouvé: “D’ailleurs,comme les individualités (humaines ou non) sont dans un livre faites d’impressionsnombreuses que, prises de bien des jeunes filles, de bien des églises, de bien des sonates,servent à faire une seule sonate, une seule église, une seule jeune fille, ne ferais-je pas monlivre de la façon que Françoise faisait ce boeuf mode, apprécié par M. de Norpois, et donttant de morceaux de viande ajoutés et choisis enrichissaient la gelée?”, op. cit., p. 426-427).

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proustiano, deste ponto de vista, é antes de tudo um intrincado ‘modo

de fazer’”.153

Enfim, o trajeto, “do quarto à biblioteca” (com esta breve passagem pela

“cozinha proustiana”), que culmina com a recepção dos Guermantes,

corresponde à averiguação deixada em suspenso desde o episódio de

madeleine154, e que enfim se dá, quando os temas do tempo e da morte se

impõem.

Esta longa busca, por parte do narrador/herói, transformado em escritor

de uma obra a ser iniciada, corresponde assim ao do leitor que é convidado à

tarefa (e ao prazer) da releitura de uma obra na qual se dissimulava até o final

(como um bom romance policial), não só a solução, mas também o problema a

ser averiguado:

“... é preciso que se represente o ciclo de Em busca... como uma

elipse da qual um dos focos é a busca e o outro, a visita. A fábula

sobre o tempo é então a que cria a relação entre os dois focos de Em

busca... A originalidade de Em busca... é ter dissimulado o problema e

sua solução até o final do percurso do herói, reservando desse modo

a uma segunda leitura a inteligência da obra toda.155

O processo de transformação do narrador/herói em escritor, como já

comentamos, culmina com o aparecimento da figura do “leitor”, que possibilita

um vislumbre da obra a ser iniciada (e ao mesmo tempo, ressalte-se que, a

153 MOTTA, Leda Tenório da. Op. cit., (Posfácio), p. 302.

154 Segundo observação de Paul Ricoeur, que nota que:“a experiência da madalena poderia conduzir por uma pista falsa um leitor que nãoconservasse, no centro de suas próprias expectativas, todas as reticências queacompanham a evocação desse momento bem-aventurado.” (Tempo e Narrativa II, p. 233),ressaltando o modesto parêntese que Proust coloca no último parágrafo da descrição doepisódio da madeleine: “(embora ainda não soubesse, e tivesse de deixar para muito maistarde tal averiguação, por que motivo aquela lembrança me tornava tão feliz.)” (MarcelProust. No Caminho de Swann, pg. 51) (Original em francês: “ (quoique je ne susse pasencore et dusse remettre à bien plus tard de découvrir pourquoi ce souvenir me rendait siheureux)”, p. 145).

155 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa – Tomo II. Op. cit., p. 227-228.

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obra que estamos lendo está sendo concluída). O próximo capítulo visa a

reflexão sobre este momento.

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Capítulo V

“Frente à Obra” - Um Sujeito Modesto

“(...) longamente nutrimos um livro assim, fortalecemos-lhe os

trechos fracos, preservamo-lo, mas depois é ele que cresce, que

designa nosso túmulo, o protege contra os rumores e algum tempo

contra o esquecimento. Mas para voltar a mim mesmo, pensava mais

modestamente em meu livro, e seria inexato dizer, pensando naqueles

que o leriam, nos meus leitores. Porque segundo minha opinião, não

seriam leitores de mim, mas os próprios leitores de si mesmos, meu

livro só sendo uma espécie de lentes de aumento, como as que oferecia

a um freguês o dono da ótica de Combray; meu livro, graças ao qual eu

lhes forneceria o meio de lerem em si mesmos.”156

Para a discussão das relações entre o autor e a obra, inspiramo-nos em

um artigo de Paul Ricoeur, onde ele analisa a epígrafe deste capítulo.

“A Identidade Narrativa”, este instigante texto de Paul Ricoeur, também

foi escrito a partir da experiência do autor frente à obra:

“Deparei-me com este problema no final de Temps et récit II,

quando me perguntei, depois de uma longa viagem através da narrativa

histórica e da narrativa de ficção, sobre a existência de uma experiência

fundamental capaz de integrar as duas grandes classes de narrativa.”157

156 PROUST, Marcel. O Tempo Redescoberto. Op. cit., p. 279-280, tradução consideravelmente

modificada por Jeanne-Marie Gagnebin. (Le temps retrouvé: “On le nourrit, on fortifie sesparties faibles, on le préserve, mais ensuite c’est lui qui grandit, qui désigne notre tombe, laprotège contre les rumeurs et quelque temps contre l’oubli. Mais pour en revenir à moi-même, je pensais plus modestement à mon livre, et ce serait même inexact que de dire enpensant à ceux qui le liraient, à mes lecteurs. Car ils ne seraient pas, selon moi, meslecteurs, mais les propres lecteurs d’eux-mêmes, mon livre n’étant qu’une sorte de cesverres grossissants comme ceux que tendait à un acheteur l’opticien de Combray; mon livre,grâce auquel je leur fournirais le moyen de lire en eux-mêmes.”, op. cit., p. 424-425).

157 RICOEUR, Paul. A Identidade Narrativa. Op. cit., p. 1.

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Desde o início do texto, através da expressão “histórias de vida”, há uma

aproximação entre os dois tipos de narração, a histórica e a literária. Este

capítulo não enfocará esta questão, possivelmente o conteúdo do texto, mas

pretende, a partir do fragmento de Proust, citado por Ricoeur, refletir sobre a

questão do nascimento de um sujeito – o autor –, frente à obra (no caso do

narrador de Em Busca, uma obra apenas vislumbrada, mas que imagina

concretizada em livro)158.

É quando nasce a obra que nasce também o autor, enquanto sujeito da

obra. Neste sentido, parece-nos imprescindível a discussão da questão do

sujeito.

A partir do final do Século XIX, e mais intensamente durante o Século

XX, no pensamento filosófico, e de um modo radical, com o surgimento de uma

nova disciplina, a Psicanálise, deu-se o questionamento do cogito cartesiano,

que é freqüentemente assimilado ao próprio surgimento do conceito de sujeito

moderno:

“A primeira intuição evidente, verdade indubitável de onde partirá

toda a filosofia moderna, concentra-se na célebre formulação de

Descartes: ‘Penso, logo existo’”159

A crise do sujeito sugere que, no momento seguinte ao qual nos

proclamamos como seres livres e soberanos, ironicamente nos descobrimos

assolados por sobredeterminações (econômicas, políticas, e sobretudo pelas

vicissitudes do desejo), e com isto retornando ao sentido primeiro de sujeito (do

latim subjectu, “posto debaixo”).160 Sentimo-nos então, muitas vezes

158 No entanto, há um paradoxo em Em Busca, pois se o final da obra remete ao início da

criação, podemos também entendê-la como uma obra concluída sobre este processo. LedaTenório da Motta, frente a este paradoxo, sugere a idéia de circularidade, apontando que osentido do livro “vai ser então circular, o começo sendo o fim, e vice-versa”. (MOTTA, LedaTenório da. Op. cit., (Posfácio) p. 299).

159 CHAUÍ, Marilena. Primeira Filosofia. São Paulo: Ed. Brasiliense, p. 81.

160 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. verbete“sujeito”.

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impotentes frente à multiplicidade de determinações que presidem nossa

existência (os gregos falariam em “destino”).

No entanto – lembrando dois pensadores fundamentais neste processo

de questionamento da noção moderna de sujeito – , para Marx e Freud, o

conhecimento dos limites do sujeito pode ser transformador: reconhecer a

alienação é um primeiro passo para distanciar-se dela; reconhecer os efeitos

do inconsciente pode representar novas possibilidades para a consciência ou

mesmo abrir novas perspectivas para a Cultura.161

A noção de sujeito cartesiana, também é colocada em cheque na

modernidade tardia, pelas artes, e especialmente pela literatura, notadamente

no romance moderno, entre outros indícios, pela crise de identidade do

personagem:

“O romance moderno está repleto de situações em que se fala

correntemente da perda de identidade do personagem. Exatamente o

inverso do tipo de fixidez do herói que caracterizava o folclore, o conto

de fadas, etc.”162

Ricoeur, no entanto, mesmo admitindo que “o sujeito não é o centro de

tudo, (que) ele não é o senhor do sentido”163, inscrevendo-se portanto nesta

tradição de questionamento da noção de sujeito como soberano, alerta ao

perigo de “jogar a criança com a água do banho”, não propõe sua

desconstrução ou anulação, como tantas vezes podemos perceber na

161 “Porém, é sempre necessário que se especifique precisamente que a psicanálise está para

o Iluminismo, assim como a obra de Marx está para o Capitalismo. Costumo dizer queassim como O Capital é a última flor do Capitalismo, porque se dedica a pensar os limitesdessa formação social, assim também a psicanálise é a última flor do Iluminismo na medidaem que concebe o inconsciente e uma subjetividade que, sendo próprias do ser humano,resistem à razão e deveria nos lançar a um interminável processo de simbolização, isto é,de construção criadora que nos representaria no interior do mundo da cultura.” (BERLINCK,Manoel Tosta. A Mania de Saber. In: Boletim de Novidades. São Paulo: Ed. Escuta, p. 34).

162 RICOEUR, Paul. A Identidade Narrativa. Op. cit., p. 5.

163 In: Temps et récit de Paul Ricoeur en débat, Christian Bouchindhomme e Rainer Rochlitz(orgs.), Paris: Seuil, 1990, p. 35; citado a partir de “Uma Filosofia do cogito ferido: PaulRicoeur”, Jeanne-Marie Gagnebin, in Lembrar, Escrever, Esquecer. Op. cit., p. 177.

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formulação de muitos pensadores em voga, constituindo o que Jeanne-Marie

Gagnebin denomina como “relativismo pós-moderno”.164

No pensamento de Ricoeur, ao lado de um cuidado ao circunscrever

seus limites, podemos perceber um respeito ao sujeito, mesmo que assujeitado

por suas determinações, mesmo que reduzido, mesmo que, e sobretudo, em

crise.

Talvez mais do que isto, Ricoeur admite a possibilidade de uma

reconciliação com as determinações do sujeito: se fere nosso narcisismo (o

“cogito ferido”), se temos de abrir mão (graças a Deus!) de nossas pretensões

totalizadoras, por outro lado, (além de nos poupar dos desvarios da razão – “a

mania de saber” na expressão já citada de Manoel Berlink), a sugestão de que

somos parte de uma teia – ou enredo – de significações que nos precedeu e

que sucederá a nós é instigante: há um sujeito, um sujeito “modesto” (para já

utilizar um termo sugerido pelo fragmento da obra de Proust que enfocaremos),

mas um sujeito.

Antes de abordar a instigante questão texto-leitor, enfatizada por

Ricoeur, gostariamos de nos deter um pouco na questão da relação do autor-

personagem “consigo mesmo”: “Mas para voltar a mim mesmo, pensava mais

modestamente em meu livro, e seria inexato dizer, pensando naqueles que o

leriam, nos meus leitores.”

Neste fragmento, o encontro consigo mesmo é um retorno, e um retorno

propiciado por uma obra (assumida, mesmo modestamente como sua), e mais

importante, pelos que a leriam. Sobre estes, o autor-personagem observa que

não seria exato dizer, serem seus leitores, mas sim “os próprios leitores de si

mesmos”. Inexato, mas não despropositado, isto é, suficiente para que fosse

usada a expressão “meus leitores”, mesmo com a ressalva que dá início ao

lúcido trecho (“Porque segundo minha opinião, não seriam leitores de mim,

164 Idem, p. 178.

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si mesmos, meu livro só sendo uma espécie de lentes de aumento”, capaz de

ajudar os leitores a “lerem em si mesmos.”

Ricoeur aponta, segundo Jeanne-Marie Gagnebin, para a possibilidade

de criação/transformação abarcar a leitura e não somente a autoria:

“O conceito de refiguração, de transformação da experiência

temporal do leitor, apela para um conceito enfático de leitura como

atividade específica de recepção e de reapropriação transformadora.”166

Seria certamente indevido dizer que o autor, ao retornar a si mesmo, é

mais sujeito que o leitor ao “ler em si mesmo”. Mas a autoria (e aqui

poderíamos estender este conceito a situações outras: um jardineiro ao plantar

um canteiro, um cozinheiro ao realizar um prato, etc.) talvez pudesse ser

concebida como um modo peculiar do sujeito? Aquele que abre-se para a

multiplicidade dos sujeitos, para o outro?

Mas não seria este modo, antes de designar o autor, uma característica

básica que circunscreve o sujeito humano? Ao comentar sobre o que separa a

ficção científica da narrativa167, Ricoeur chega a um limite quanto à noção de

sujeito:

“Em todos os experimentos de ficção científica evocados acima,

o sujeito encontra-se isolado, sem o outro no sentido de outrem.”168

Então, não há a priori uma diferenciação entre autor/leitor, na busca de

“si mesmo” (“Mas para voltar a mim mesmo”), ou na leitura do “si mesmo”

(“meu livro, graças ao qual eu lhes forneceria o meio de leram em si mesmos”).

Isto porque o sujeito nunca está isolado, é sempre mediado pela Cultura:

166 GAGNEBIN, Jeanne-Marie. “Uma Filosofia do cogito ferido: Paul Ricoeur”, op. cit., pg. 268.

167 Apesar de, neste texto, Ricoeur aproximar a ficção – a narrativa literária – , da História,parece-nos que ele exclui deste movimento a “ficção científica”, inclusive negando-lhe oestatuto de narrativa. Mas a chamada “ficção científica” segue sendo interessante (e semdúvida, não é por outro motivo que Ricoeur se ocupa dela) para se pensar os limites danarrativa.

168 RICOEUR, Paul. A Identidade Narrativa. Op. cit., p. 7.

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“o si não se conhece imediatamente, mas somente indiretamente pelo

desvio de signos culturais de todos os tipos que se articulam nas

mediações simbólicas que desde sempre articulam a ação.”169

Se não há um a priori que distingue a posição do autor/leitor nesta

busca/leitura de “si mesmo”, no entanto é a uma situação específica que o

fragmento de Proust alude: a do autor frente à obra (ou ao filho crescido, ou ao

canteiro florido, ou ao prato servido). E é então que surgem pensamentos como

os que o narrador de Em Busca enuncia:

“E naqueles grandes livros há partes que só tiveram tempo de

ser esboçadas e que, sem dúvida, nunca serão terminadas por causa

da amplidão da planta do arquiteto. Quantas grandes catedrais

permanecem inacabadas!”170

Ao invés de “triunfante”, como poderíamos supor, a situação do autor

frente à obra (e que poderia ser “tão mais!”) parece-se, muitas vezes, com o

que Ricoeur denomina de “noites da identidade pessoal” e que se traduz

freqüentemente pela expressão: “eu não sou nada”. Isto não significa, no

entanto, a anulação da posição de sujeito:

“Um não-sujeito não é um nada quanto à categoria do sujeito.

Com efeito, nós não nos interessaríamos por esse drama da dissolução

e não seríamos mergulhados por ele na perplexidade, se o não-sujeito

não fosse ainda uma figura do sujeito, ainda que sob o modo

negativo.”171

Ao alertar, ao final do texto, que “só não pode ser abolida a pergunta,

quem sou eu?”172, Ricoeur sugere uma possibilidade de abertura do “solipsista”

169 Idem, p. 7.

170 PROUST, Marcel. O Tempo Redescoberto. Op. cit., p. 279 (Le temps retrouvé: “Et dans cesgrands livres-là, il y a des parties qui n’ont eu le temps que d’être esquissées, et qui neseront sans doute jamais finies, à cause de l’ampleur même du plan de l’architecte.Combien de grandes cathédrales restent inachevées!”, op. cit., p. 424.)

171 RICOEUR, Paul. A Identidade Narrativa. Op. cit., p. 6.

172 Idem, p. 8.

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cogito cartesiano: Eu sou aquele, não que duvido173, mas que pergunto por

mim.174

Nas palavras de Ricoeur:

“Alguém coloca a questão: quem sou eu? Nada ou quase nada

é a resposta. Mas é ainda uma resposta à questão quem, simplesmente

conduzida à nudez da questão mesma.”175

Importa a pergunta, a “questão quem”, a partir da qual a resposta é por

vezes “nada ou quase nada”. Mas ainda proferida por um sujeito, um sujeito

modesto como já dissemos, mas um sujeito.

Na obra de Proust, a noção de sujeito se desdobra em vários “eus”.

Ricoeur distingue, (mas esta distinção, na leitura do texto, nem sempre é fácil

de ser estabelecida) duas vozes narrativas, primeiramente a do herói:

O herói conta suas aventuras mundanas, amorosas, sensoriais,

estéticas, à medida que elas acontecem; aqui, a enunciação adota a

forma de um avanço orientado para o futuro, mesmo quando o herói se

lembra; daí a forma do “futuro no passado” que projeta Em busca...

rumo a seu desenlace; é ainda o herói que recebe a revelação do

sentido de sua vida anterior como história invisível de uma vocação: a

esse respeito, é da maior importância distinguir a voz do herói da do

narrador, não apenas para tornar a situar suas próprias reminiscências

na corrente de uma busca que progride, mas para preservar o caráter

factual da visitação.176

Em seguida, a do narrador:

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Porém, é preciso também ouvir a voz do narrador: este está adiantado

em relação à progressão do herói porque a sobrevoa; é ele que, mais

de cem vezes na obra, diz: “Como veremos adiante”. Mas, sobretudo, é

ele quem imprime na experiência narrada pelo herói a significação:

tempo redescoberto, tempo perdido. Antes de chegar a revelação final,

sua voz é tão baixa que mal é discernível da voz do herói (o que

autoriza a falar de narrador-herói).177

Os dois modos do sujeito (as duas vozes narrativas) só coincidem na

transformação final do narrador/herói em escritor.

No próximo capítulo, refletiremos sobre este momento, em que a criação

está em questão.

177 Idem, p. 230-231.

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Capítulo VI

Criação e Sublimação

“Deponho a taça e volto-me para meu espírito. É a ele que

compete achar a verdade. Mas como? Grave incerteza, todas as vezes

em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o

explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde todo o

seu equipamento de nada lhe servirá. Explorar? Não apenas explorar:

criar. Está diante de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele

pode dar realidade e fazer entrar em sua luz.”178

Este último capítulo retoma a questão deixada em suspenso no capítulo

anterior: o que designa o autor? E por extensão, o que designa o artista e a

criação?

Partiremos de uma afirmação de Franklin Leopoldo e Silva, contida no

artigo “Bergson, Proust – Tensões do Tempo”:

“O artista percebe o que de direito é perceptível, isto é, tudo. E desse

todo, pelo qual passeia o foco indeterminado de sua atenção

descontraída, retira os aspectos em que a verdade mais nítida e mais

inteiramente se apresenta: são os aspectos que, para a percepção

comum, aparecem como inesperados e insuspeitados, mas que ela

mesma, percepção comum, reconhece como portadores de verdade,

porque reconhece neles aquilo que de direito poderia perceber, não

fossem os critérios pragmáticos da visão simplesmente humana do

mundo.”179

178 PROUST, Marcel. No Caminho de .3918(S)3.9425 cm BT/32233(i)4.47682(s)500.669

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Esta enfática colocação, que define o artista como aquele que “percebe

tudo”, alude a uma insuficiência da percepção no cotidiano, na ciência, ou

mesmo no discurso filosófico, baseada na crítica bergsoniana:

“Segundo Bergson, o erro das teorias filosóficas foi o de ter

abandonado a percepção. Não se tratava de dar as costas à percepção,

diz ele, mas de alargá-la e aprofundá-la. Como fazê-lo, poder-se-ia

perguntar, se a percepção é estruturalmente voltada para a articulação

pragmática da realidade? Podemos modificar a nossa constituição

natural? Evidentemente não, mas há uma evidência de que se pode

perceber a realidade tal como não o fazemos habitualmente. Trata-se

de dar à percepção o caráter que ela não tem no nosso trato costumeiro

com o mundo. Que isso é possível, prova-o a arte.”180

A arte aparece então, como prova da possibilidade da ampliação da

percepção. Mas como compreender esta possibilidade? Por que ela é apenas

possibilidade, e a percepção comum, tão restrita?

Continuaremos citando o texto de Franklin Leopoldo e Silva, que debate

esta questão nos seguintes termos:

“Por que nossa consciência, que de direito deveria perceber tudo,

percebe o mundo apenas parcialmente? Por que a nossa consciência

se apresenta o mundo em vez de apresentá-lo simplesmente a si, tal

como ele é nele mesmo? Por que, enfim, as coisas que não interessam

à nossa ação sobre o mundo não estão presentes no horizonte de

nossa consciência empírica? A resposta bergsoniana é, em princípio,

de uma simplicidade desconcertante. Não percebemos os aspectos do

real que não interessam à nossa prática porque não prestamos atenção

neles.181

Realmente é surpreendente a resposta de Bergson182 à questão da

parcialidade da percepção, que se restringiria exatamente porque não

180 Idem, p. 145.

181 Idem, p. 145.

182 Apesar de não termos enfocado a filosofia de Bergson, nos sentimos à vontade emestabelecer aproximações com algumas de suas idéias, não só pelo fato de serem Bergson,

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prestamos atenção aos aspectos (no cotidiano, mas também na ciência e na

filosofia) que não nos interessam. Adiante em seu texto, Franklin Leopoldo e

Silva detalha este processo:

“A atenção mantém nossa consciência perceptiva e intelectual ligada

aos aspectos instrumentais do real. Trata-se de uma tensão e de um

esforço continuamente desenvolvido para que o homem se mantenha

na condição de senhor das coisas e de usuário da natureza. Aquilo que

de direito perceberíamos, se nosso espírito se pusesse diante da

realidade desarmado de qualquer critério pragmático, se obnubila:

nosso espírito se concentra, tensionando, estreitando-se como um cone

para que só a ponta deste cone toque o real, o adentre e o domine

naquilo em que ele nos pode ser útil.”183

E a seguir, volta-se para a arte como um contra-exemplo da tensão

envolvida no processo de restrição da percepção:

“A condição da arte é o relaxamento desta tensão. Nunca

saberemos por que ele ocorre: é esta a parte enigmática da gênese da

obra, a partir da percepção do artista. O que para nós aparece como

criação é fruto dessa descontração, dessa distração pela qual o espírito

se distende e, por desatenção, percebe mais e mais profundamente. A

percepção alargada e aprofundada (...) consiste nesta indeterminação

do foco de atenção, graças à qual o artista percebe e revela os

aspectos insuspeitados e inesperados do real. O senso comum sempre

se espantou com esse aspecto misterioso que é o próprio centro da

criação artística: como o desligamento da realidade, a desatenção às

coisas pode ser a condição de uma percepção mais aguda, mais

profunda e mais ampla? Esse espanto do senso comum com o

aparente paradoxo que crê encontrar é índice da verdade que,

insuspeitada e inesperadamente, nos é dada a ver na obra.”184

Freud e Proust praticamente contemporâneos, mas muito mais porque têm em comum,abordar o processo de lembrar não mais a partir do processo consciente (em gregoanamnésis), mas sim a partir das imagens inconscientes ou involuntárias que afetam osujeito (mnéme) (RICOEUR, Paul. La Mémoire, L’Histoire, L’Oubli. Paris: Editores du Seuil,2000, especialmente as p. 30, 34, 38 e 62 sobre Bergson).

183 Idem, p. 146.

184 Idem, p. 146.

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Nesta citação, o autor menciona a “gênese da obra” como um processo

enigmático. Mas neste mesmo texto, numa passagem anterior, Franklin

Leopoldo e Silva vislumbra uma possibilidade de elucidação do enigma:

“A originalidade do artista e aquilo que vimos ser o caráter inesperado e

insuspeitado da arte derivam da peculiar percepção do artista. Aí está

pois a percepção alargada e aprofundada: nós temos acesso não a ela

mesma, mas àquilo que ela produz. A arte enquanto produto é uma

realidade; a arte enquanto gênese desse produto é um enigma. Mas

mediante a realidade da obra podemos lançar um olhar para a região

enigmática em que ela se produz. A elucidação do procedimento

artístico tateará, portanto, essa imensa e obscura distância que se situa

entre a arte e a filosofia da arte, distância que separa e aproxima.”185

É portanto “mediante a realidade da obra” que “podemos lançar um olhar

para a região enigmática em que ela se produz”.186 Adiante, ao refletir sobre o

processo de criação, utilizaremos o conceito psicanalítico de sublimação

aproximando-o da obra de Proust187, que por suas características (constituir-

se, nas palavras já citadas de Ricoeur, na “história de uma vocação”) permite

“um olhar para a região enigmática em que ela se produz”. Um olhar a partir da

Psicanálise, que ao lado da filosofia da arte, são disciplinas que são instigadas

pela investigação do enigma que o processo de criação representa.

Mas neste momento já podemos observar que a condição da arte,

assinalada anteriormente por Franklin Leopoldo e Silva (“o relaxamento desta

tensão”), não tão surpreendentemente assim, se levarmos em conta os

paralelos entre Psicanálise e Literatura sugeridos no capítulo II, é aproximável

185 Idem, p. 145.

186 Na verdade, esta colocação corrobora o que temos intentado desde o início deste trabalho:abordar o enigma da arte a partir da obra, e não da biografia do autor, ou do contexto daobra.

187 E não da gênese da obra. Neste sentido, é muito clara nossa intenção de não colocarProust no divã, o que é válido também para o herói-narrador do romance, que no entanto,empreende uma espécie de auto-análise, como será sugerido adiante, e sobre a qual apenaspretendemos seguir os passos e traçar alguns paralelos com a Psicanálise.

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da prática psicanalítica, através da noção de “atenção flutuante”, uma

prescrição metodológica que orienta a escuta analítica do discurso do paciente.

Um artigo filosófico, “O Discurso Precário: Notas Sobre A Noção De

Atenção Flutuante na Psicanálise”, define bem esta prescrição:

“Consiste a “atenção flutuante” no abandono voluntário ou na

suspensão completa, se possível, de todos os móveis que

ordinariamente orientam a faculdade de atenção. Assim, o analista

afasta de si, na escuta do discurso do analisado, as suas inclinações e

interesses pessoais, os seus preconceitos e até, surpreendentemente,

os pressupostos teóricos, mesmo os mais bens fundamentados...”188

O exercício da “atenção flutuante” por parte do analista, voltado à escuta

dos conteúdos nascidos da “livre associação” por parte do analisando, pode

parecer a primeira vista aleatório, arbitrário ou mesmo delirante, mas é o que

permite a fala do paciente:

“(...) com Freud o paciente fala e o faz livremente, e sobre a matéria

bruta desse discurso, cujas articulações motivadoras são mascaradas,

assenta-se a possibilidade de cura e a possibilidade da constituição da

teoria. Mas, para o desvendamento dos eixos de articulação desse

discurso ou dos pontos de cosimento do discurso manifesto – mesmo

sendo possível explicar-lhes o funcionamento no repouso posterior da

teoria acabada – não é menos necessário que primeiro se trave a

relação, sem dúvida inquietante e instável, de cintilações punctuais e

esporádicas de inconsciente a inconsciente.”189

Não nos interessa aqui, aprofundar a noção de “atenção flutuante”, mas

sim assinalar que, de modo similar a esta prescrição psicanalítica, o artista

“suspende” sua atenção à realidade empírica – Franklin Leopoldo e Silva fala

188 GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo e ARANTES, Regina Maria de Souza. Cadernos PUC –

Filosofia nº 13. São Paulo, Cortez Editora, [s/d] p. 6.

189 Idem, p. 11.

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mesmo de uma “desatenção”190 –, para que seja possível abarcar “o que de

direito é perceptível, isto é, tudo.”191

Retomando agora nosso trabalho de leitura do texto proustiano,

podemos encontrar, na sempre citada passagem de No Caminho de Swann,

um exemplo explícito da busca, por parte do narrador, da assinalada

suspensão da atenção ao corriqueiro:

“E recomeço a me perguntar qual poderia ser esse estado

desconhecido, que não trazia nenhuma prova lógica, mas a evidência

de sua felicidade, de sua realidade ante a qual as outras se

desvaneciam. Quero tentar fazê-lo reaparecer. Retrocedo pelo

pensamento ao instante em que tomei a primeira colherada de chá.

Encontro o mesmo estado, sem nenhuma luz nova. Peço a meu espírito

um esforço mais, que me traga outra vez a sensação fugitiva. E para

que nada quebre o impulso com que ele vai procurar captá-la, afasto

todo obstáculo, toda idéia estranha, abrigo meus ouvidos e minha

atenção contra os rumores da peça vizinha. Mas sentindo que meu

espírito se fatiga sem resultado, forço-o, pelo contrário, a aceitar essa

distração que eu lhe recusava, a pensar em outra coisa, a refazer-se

antes de uma tentativa suprema. Depois, por segunda vez, faço o

vácuo diante dele, torno a apresentar-lhe o sabor ainda recente daquele

primeiro gole e sinto estremecer em mim qualquer coisa que se

desloca, que desejaria elevar-se, qualquer coisa que teriam

desancorado, a uma grande profundeza; não sei o que seja, mas aquilo

sobe lentamente; sinto a resistência e ouço o rumor das distâncias

atravessadas.”192

190 SILVA, Franklin Leopoldo e. Op. cit., p. 146.

191 Idem, p. 146.

192 PROUST, Marcel. No Caminho de Swann. Op. cit., p. 49-50. (Du côté de chez Swann: “Et jerecommence à me demander quel pouvait être cet état inconnu, qui n’apportait aucunepreuve logique, mais l’évidence de sa réalité devant laquelle les autres s’évanouissaient. Jeveux essayer de le faire réapparaître. Je rétrograde par la pensée au moment où je pris lapremiére cuillerée de thé. Je retrouve le même état, sans une clarté nouvelle. Je demande àmon esprit un effort de plus, de ramener encore une fois la sensation qui s’enfuit. Et pour querien ne brise l’élan dont il va tâcher de la ressaisir, j’écarte tout obstacle, toute idée étrangère,j’abrite mes oreilles et mon attention contre les bruits de la chambre voisine. Mais sentantmon esprit qui se fatigue sans réussir, je le force au contraire à prendre cette distraction queje lui refusais, à penser à autre chose, à se refaire avant une tentative suprême. Puis unedeuxième fois, je fais le vide devant lui, je remets en face de lui la saveur encore récente de

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Fica evidenciado aqui, na tentativa do narrador de tentar captar uma

“sensação fugitiva”, a necessidade do que ele chama de “distração”, para que a

reminiscência possa surgir, já que tentar manter a atenção focada na

recordação buscada parece não ter surtido efeito.

Processo que corresponde ao da “desatenção” por parte do artista

assinalado por Franklin Leopoldo e Silva a partir de Bergson, e também ao de

“atenção flutuante” por parte do analista (assim como o de “livre associação”

por parte do analisando) em busca dos conteúdos inconscientes.

Mas é importante estabelecer uma distinção. Para o narrador de Em

Busca, (já no último volume da obra), agora preocupado com a literatura,

“perceber tudo” não implica em “descrever tudo”, até mesmo opõe-se a este

último processo:

“A literatura que se limita a “descrever as coisas”, a fornecer-lhe um

esquema das linhas e superfície, é, a despeito de suas pretensões

realistas, a mais fora da realidade, pois corta bruscamente toda

comunicação de nosso eu presente com o passado, do qual as coisas

guardavam a essência, e como o futuro, onde nos convidam a gozá-lo

de novo.”193

Importa então na literatura, a comunicação do “eu presente” com o

passado e o futuro. Idéia que a seguinte observação de Freud sobre o fantasiar

e a criação literária, esclarece e aprofunda (observação esta bastante próxima

da de Proust na citação acima), ao apontar o papel e a importância do desejo

neste processo:

cette premiére gorgée et je sens tressaillir en moi quelque chose qui se déplace, voudraits’élever, quelque chose qu’on aurait désancré, à une grande profondeur; je ne sais ce quec’est, mais cela monte lentement; j’éprouve la résistance et j’entends la rumeur des distancestraversées.”, op. cit., p. 143).

193 PROUST, Marcel. O Tempo Redescoberto. Op. cit., p. 167. (Le temps retrouvé: “De sorteque la littérature qui se contente de ‘décrire les choses’, d’en donner seulement un misérablerelevé de lignes et de surfaces, est celle qui, tout en s’appelant réaliste, est la plus éloignéede la réalité, celle qui nous appauvrit et nous attriste le plus, car elle coupe brusquementtoute communication de notre moi présent avec le passé, dont les choses gardaientl’essence, et l’avenir, où elles nous incitent à la goûter de nouveau.”, op. cit., p. 243).

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“A relação entre a fantasia e o tempo é, em geral, muito importante. É

como se ela flutuasse entre três tempos – os três momentos abrangidos

pela nossa ideação. O trabalho mental vincula-se a uma impressão

atual, a alguma ocasião motivadora no presente que foi capaz de

despertar um dos desejos principais do sujeito. Dali, retrocede à

lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na qual

esse desejo foi realizado, criando uma situação referente ao futuro que

representa a realização do desejo. O que se cria então é um devaneio

ou fantasia, que encerra traços de sua origem a partir da ocasião que o

provocou e a partir da lembrança. Dessa forma o passado, o presente e

o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une.”194

A relação entre os tempos, em Em Busca, dá-se em torno das

reminiscências. São elas que permitem vislumbrar o “fio do desejo” que une

passado, presente e futuro, entrelaçando-os.

Pela importância das reminiscências na “história de uma vocação” que

Em Busca representa, talvez não seja indevido aproximar seu herói-narrador

dos pacientes iniciais da Psicanálise, os histéricos. Nesta passagem, Freud se

utiliza de uma bela metáfora – a dos monumentos comemorativos –, para a

compreensão do sofrimento na histeria:

“(...) podemos sintetizar os conhecimentos até agora adquiridos na

seguinte fórmula: os histéricos sofrem de reminiscências. Seus

sintomas são resíduos e símbolos mnêmicos de experiências especiais

(traumáticas). Uma comparação com outros símbolos mnêmicos de

gênero diferente talvez nos permita compreender melhor êsse

simbolismo. Os monumentos com que ornamos nossas cidades são

também símbolos dessa ordem. (...) Mas que diriam do londrino que

ainda hoje se detivesse compungido ante o monumento erigido em

memória do entêrro da rainha Eleanor, em vez de tratar de seus

negócios com a pressa exigida pelas modernas condições de trabalho,

ou de pensar satisfeito na jovem rainha de seu coração? Ou de outro

que, em face do ‘Monument’ chorasse a incineração da cidade querida,

194 FREUD, Sigmund. Escritores Criativos e Devaneios. Op. cit., p. 153.

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reconstruída depois com tanto brilho? Como êsses londrinos poucos

práticos, procedem, entretanto, os histéricos e neuróticos: não só

recordam acontecimentos dolorosos que se deram há muito tempo,

como ainda se prendem a êles emocionalmente; não se desembaraçam

do passado e alheiam-se por isso da realidade e do presente.”195

Com esta aproximação, não queremos certamente insinuar que Marcel é

histérico: não se trata de diagnosticar o herói-narrador de Em Busca, mas sim

de apontar o aparecimento de uma mesma idéia – a da importância das

reminiscências –, na obra de Proust e na Psicanálise freudiana.

Mesmo porque, na história da Psicanálise, a própria descoberta do papel

das reminiscências na histeria, representa uma primeira formulação do

conceito de inconsciente, que pôde ser aplicada também em relação a outras

patologias e em seguida à chamada normalidade, especialmente na

abordagem dos sonhos e dos atos falhos. Para a Psicanálise, num sentido

amplo196, poderíamos dizer que todos os homens “sofrem de

reminiscências”197.

Mas o herói-narrador de Em Busca sofre de um modo peculiar. Suas

reminiscências não são “traumáticas”, como as dos pacientes a que Freud se

refere na citação acima, mas reportam-se a acontecimentos banais, ou mesmo

195 FREUD, Sigmund. Cinco Lições de Psicanálise. In: Obras Completas. Rio de Janeiro:

Editora Imago, vol. XI, 1987, p. 18 e 19.

196 Ou seja, resguardada a questão da especificidade das diferentes psicopatologias (no casoda histeria, as reminiscências encontram-se inscritas nos corpos dos pacientes, sob a formade sintomas físicos).

197 Não podemos deixar de mencionar Nietzsche sobre esta doença da memória (a “desmedidada história”) que a histeria representa em alto grau, mas que concerne a todos os homens:“A história na medida em que está a serviço da vida, está a serviço de uma potência a-histórica e por isso nunca, nessa subordinação, poderá e deverá tornar-se ciência pura,como, digamos, a matemática. Mas a questão: até que grau a vida precisa em geral doserviço da história, é uma das questões e cuidados mais altos no tocante à saúde de umhomem, de um povo, de uma civilização. Pois, no caso de uma certa desmedida de história,a vida desmorona e degenera, e por fim, com essa degeneração, degenera também a própriahistória.” (NIETZSCHE, Friedrich. Considerações Extemporâneas. In: Obras Incompletas, dasérie: Os Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 60).

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não mencionados anteriormente na narração, como nota Shattuck nesta

observação:

“Entretanto, é significativo o fato de que Marcel não registra como

eventos importantes – e freqüentemente omite – as impressões iniciais

que voltam mais tarde nas reminiscências principais. Ele estava

levemente consciente do guardanapo engomado em Balbec, dos apitos

dos barcos de passeio e do romance de Georges Sand, Françoise le

Champi, mas nada disso o atingiu, já que se tratava apenas de uma

parte incidental do momento. Ele quase nem registrou o gosto ou o

cheiro da Madeleine mergulhada no chá quando sua tia Léonie lhe

ofereceu um pedaço. Isso formou um mero fragmento do mundo dela.

Ele aparentemente reparou tão mal nas pedras desiguais do

calçamento, no Batistério de São Marcos em Veneza, que sequer

mencionou-as naquela época. Quando, do trem, ele viu a fila de

árvores, não teve consciência de ter ouvido o martelo do guarda-trem

batendo nas rodas. Mais tarde, contudo, precisamente esse som é que

irá fornecer o “Abre-te, Sésamo” para a lembrança total da cena.”198

O episódio da madeleine, paradigmático em relação às reminiscências

posteriores, refere-se, é verdade, ao surgimento de uma lembrança referente a

um cotidiano bastante banal:

“E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do

pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray (pois

nos domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tia Léonie me

oferecia, depois de o ter mergulhado em seu chá da Índia ou de tília,

quando ia cumprimentá-la em seu quarto.”199

No entanto, vale notar que este episódio é narrado em seguida, e

mesmo em oposição, ao do episódio do “beijo de boa noite”. Mesmo banal, e

198 SHATTUCK, Roger. Op. cit., p. 118.

199 PROUST, Marcel. No Caminho de Swann. Op. cit., p. 50. (Du côté de chez Swann: “Et toutd’un coup le souvenir m’est apparu. Ce goût c’était celui du petit morceau de madeleine quele dimanche martin à Combray (parce que ce jour-là je ne sortais pas avant l’heure de lamesse), quand j’allais lui dire bonjour dans sa chambre, ma tante Léonie m’offrait aprèsl’avoir trempé dans son infusion de thé ou de tilleul.”, op. cit., p. 144).

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talvez por isso mesmo200, o episódio da madeleine encontra-se em oposição ao

anterior, pois representa uma libertação em relação à cena obsessivamente

lembrada, que limitava Combray a um determinado espaço e a um determinado

tempo:

“Muitos anos fazia que, de Combray, tudo quanto não fosse o

teatro e o drama do meu deitar não mais existia para mim, quando, por

um dia de inverno, ao voltar para casa, vendo minha mãe que eu tinha

frio, ofereceu-me chá, (...)”201

Mas antes de comentarmos a importância desta libertação para a

criação em Em Busca, vale notar que metáforas relativas ao teatro estão

presentes em todo o episódio da madeleine, inicialmente nesta expressão: “o

teatro e o drama do meu deitar”.

Aliás, em sua obra, Proust não se limita a tratar do processo de criação

na literatura. A música, através do personagem Vinteuil, e da importância da

sua sonata para o narrador (mas também para Swann); a pintura, por meio do

personagem Elstir, são formas da arte que merecem extensas reflexões no

romance – e participam ativamente da sua trama.

Mas é no episódio da madeleine, como já notamos202, que surgem

metáforas referentes ao teatro, forma de arte mais tarde personificada nas

figuras das atrizes (La Berma e Rachel) presentes na obra. Já em seu início, a

narração faz menção ao “cenário” e “antigas peças”, além da já citada

expressão “drama do meu deitar”:

“Assim, por muito tempo, quando despertava de noite e me vinha

a recordação de Combray, nunca pude ver mais que aquela espécie de

200 A banalidade do episódio representa a retomada de uma infância banal, mas mais livre do

que a infância recordada pela memória voluntária.

201 PROUST, Marcel. No Caminho de Swann. Op. cit., p. 48. (Du côté de chez Swann: “Il y avaitdéjà bien des années que, de Combray, tout ce qui n’était pas le théâtre et le drame de moncoucher, n’existait plus pour moi, quand un jour d’hiver, comme je rentrais à la maison, mamère, voyant que j’avais froid, me proposa de me faire prendre, contre mon habitude, un peude thé.”, op. cit., p. 142).

202 Pedimos desculpas ao leitor por citar, a seguir, trechos da obra que já foram citadosfragmentariamente, mas que nos interessa, neste momento, citar integralmente.

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lanço luminoso, recortado no meio de trevas indistintas, semelhante aos

que o acender de um fogo de artifício ou alguma projeção elétrica

alumiam e secionam em um edifício cujas partes restantes

permanecem mergulhadas dentro da noite: na base, bastante larga, o

pequeno salão, a sala de jantar, o trilho da alameda escura por onde

chegaria o sr. Swann, inconsciente autor de minhas tristezas, o

vestíbulo de onde me encaminhava para o primeiro degrau da escada,

tão cruel de subir, que constituía por si só o tronco, muito estreito,

daquela pirâmide irregular; e, no cimo, meu quarto, com o pequeno

corredor de porta envidraçada por onde entrava mamãe; em suma,

sempre visto à mesma hora, isolado de tudo o que pudesse haver em

torno, destacando-se sozinho na escuridão, o cenário estritamente

necessário (como esses que se vêem indicados no princípio das

antigas peças, para as representações na província) ao drama do meu

deitar; como se Combray consistisse apenas em dois andares ligados

por uma estreita escada, e como se fosse sempre sete horas da

noite.”203

Estas metáforas constroem a imagem de uma infância em que o sujeito

encontra-se confinado a um mesmo fragmento do espaço e a um mesmo

tempo (o “drama do meu deitar” é uma referência ao episódio anterior, o do

“beijo de boa noite”, em que o narrador conta suas angústias ao se deitar,

quando menino, e que se prolongam em suas noites de adulto).

Mas esta infância, até então marcada pela restrição a um mesmo

espaço/tempo que compulsivamente e obsessivamente retornam, é retomada e

203 Idem, p. 47-48. (Du côté de chez Swann: “C’est ainsi que, pendant longtemps, quand,

réveillé la nuit, je me ressouvenais de Combray, je n’en revis jamais que cette sorte de panlumineux, découpé au milieu d’indistinctes ténèbres, pareil à ceux que l’embrasement d’unfeu de Bengale ou quelque projection électrique éclairent et sectionnent dans un édifice dontles autres parties restent plongées dans la nuit : à la base assez large, le petit salon, la salleà manger, l’amorce de l’allée obscure par où arriverait M. Swann, l’auteur inconscient de mestristesses, le vestibule où je m’acheminais vers la première marche de l’escalier, si cruel àmonter, qui constituait à lui seul le tronc fort étroit de cette pyramide irrégulière; et, au faîte,ma chambre à coucher avec le petit couloir à porte vitrée pour l’entrée de maman; en un mot,toujours vu à la même heure, isolé de tout ce qu’il pouvait y avoir autour, se détachant seulsur l’obscurité, le décor strictement nécessaire (comme celui qu’on voit indiqué en tête desvieilles pièces pour les représentations en province) au drame de mon déshabillage; commesi Combray n’avait consisté qu’en deux étages reliés par un mince escalier, et comme s’il n’yavait jamais été que sept heures du soir.”, p. 140-141).

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ampliada pelas mudanças efetuadas na memória do narrador, a partir da

experiência da madeleine, também narrada utilizando-se uma metáfora relativa

ao teatro (o cenário):

“E mal reconheci o gosto do pedaço de madalena molhado em

chá que minha tia me dava (embora ainda não soubesse, e tivesse de

deixar para muito mais tarde tal averiguação, por que motivo aquela

lembrança me tornava tão feliz), eis que a velha casa cinzenta, de

fachada para a rua, onde estava seu quarto, veio aplicar-se, como um

cenário de teatro, ao pequeno pavilhão que dava para o jardim e que

fora construído para meus pais aos fundos da mesma (esse truncado

trecho da casa que era só o que eu recordava até então); e, com a

casa, a cidade toda, desde a manhã à noite, por qualquer tempo, a

praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas por onde eu

passava e as estradas que seguíamos quando fazia bom tempo.”204

O cenário muda, transforma-se, amplia-se então. Como no teatro, é

possível um novo “ato”.

A libertação em relação a uma situação obsessiva/compulsiva, como a

narrada no episódio da madeleine, pode ser, de um ponto de vista

psicanalítico, considerada como indício do processo de sublimação, já que a

“flexibilização” do processo pulsional, como vimos anteriormente, acontece de

modo explícito neste episódio: suas marcas são a ampliação do espaço

“parental” para toda uma cidade, e a expansão do tempo antes restrito à hora

de “ir dormir”.

204 Idem, p. 51.(Du côté de chez Swann: “Et dès que j’eus reconnu le gout du morceau de

madeleine trempé dans le tilleul que me donnait ma tante (quoique je ne susse pas encore etdusse remettre à bien plus tard de découvrir pourquoi ce souvenir me rendait si heureux),aussitôt la vieille maison grise sur la rue, où était sa chambre, vint comme un décor dethéâtre s’appliquer au petit pavillon, donnant sur le jardin, qu’on avait construit pour mesparents sur ses derrières (ce pan tronqué que seul j’avais revu jusque-là); et avec la maison,la ville, depuis le matin jusqu’au soir et par tous les temps, la Place où on m’envoyait avantdéjeuner, les rues où j’allais faire des courses, les chemins qu’on prenait si le temps étaitbeau.”, p. 145).

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É com o conceito de sublimação que Freud tentou abordar o enigma da

criação, que como vimos (Capítulo I), permanece em grande parte insolúvel, e

que pode ser inquirido a partir de múltiplas leituras.

O processo de sublimação é entendido por Birman como um processo

que basicamente permitiria uma flexibilização pulsional em relação às fixações

originárias compulsivas:

“A sublimação seria agora, então, uma renovação do erotismo, pela

reabertura que possibilita de novos campos de investigação objetal e de

outras modalidades possíveis de ligação da força pulsional. A

sublimação permitiria, pois, a ‘flexibilização’ do circuito pulsional

originário, retificando a ‘compulsividade’ presente nas fixações

originárias. Seria isso justamente que estaria presente na possibilidade

de criação para a subjetividade, pois mediante aquela o psiquismo

poderia se contrapor à ‘fixação’ e à ‘repetição’.”205

Birman assinala expressamente que seria esta “flexibilização” que liga-

se à possibilidade de criação, contrapondo-se à “fixação” e à “repetição”. Seria

difícil encontrar uma melhor descrição desta característica do processo de

sublimação do que o episódio da madeleine, que relata a saída de um espaço

e de um tempo compulsivamente presentes, ou seja, os únicos a que a atenção

do narrador se voltava, tornada possível pelo emergir de uma reminiscência.

Em termos psicológicos, podemos falar apenas – nas palavras de

Birman –, “na possibilidade de criação”, ou seja, a “flexibilização” própria da

sublimação, que permite ao sujeito contrapor-se à “fixação” e à “repetição”,

pode ou não redundar no processo de criação.

Na obra de Proust, o episódio da madeleine significa apenas o início de

um processo, pois a sua compreensão, como nos alerta Ricoeur ao comentar

uma questão colocada pelo narrador do episódio, se dará muito mais tarde:

“(...) ‘De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que

estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava

205 BIRMAN, Joel. Op. cit., p. 115.

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infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que

significava? Onde apreendê-la?’ Ora, a questão colocada desse modo

comporta a cilada de uma resposta demasiado curta, que seria

simplesmente a da memória involuntária. Se a resposta colocada por

‘esse estado desconhecido’ estivesse saturada pelo retorno repentino

da lembrança da primeira pequena madalena oferecida outrora pela tia

Léonie, Em busca..., logo de início, já teria atingido sua meta: limitar-se-

ia à busca de tais revivescências, das quais o mínimo que se pode dizer

é que não requerem o labor de nenhuma arte. Um único indício mostra

ao leitor sutil que não é bem assim; é um parênteses que diz: ‘(embora

ainda não soubesse, e tivesse de deixar para muito mais tarde tal

averiguação, por que motivo aquela lembrança me tornava tão

feliz),...’”206

Este processo que se inicia com a experiência da madeleine, é retomado

no final da obra, de um modo simétrico207, no episódio da biblioteca (que

enfocamos no capítulo IV):

“(...) o êxtase da madalena abre o tempo redescoberto da infância,

como a meditação na biblioteca abrirá o do tempo da comprovação da

vocação finalmente reconhecida.”208

O processo iniciado no episódio da madeleine culmina então, com o

reconhecimento de uma vocação, por parte do narrador de Em Busca:

“E compreendi que a matéria da obra literária era, afinal, minha vida

passada; que tudo me viera nos divertimentos frívolos, na indolência, na

ternura, na dor, e eu acumulara como a semente os alimentos de que

se nutrirá a planta, sem adivinhar-lhe o destino nem a sobrevivência.

Como a semente, poderia morrer uma vez desenvolvida a planta, para

qual vivera sem o saber, sem nunca imaginar que minha vida devesse

entrar em contato com os livros que sonhara escrever e cujo assunto,

quando outrora me sentava à mesa de trabalho, buscara em vão. Assim

206 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa I., Op.cit., p. 233.

207 Segundo Ricoeur: “(...) aproveitaremos a simetria entre o começo e o final da grandenarrativa.” (Idem, p. 240).

208 Idem, p. 234.

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em conta as produções mentais inconscientes dos analisandos – suas

associações livres –, ou prescreve a “atenção flutuante” ao analista.

É neste sentido que talvez o herói/narrador de Em Busca, para o

romance moderno, tenha um papel comparável ao dos histéricos na

Psicanálise, que permitiram um primeiro vislumbre do inconsciente: Marcel, não

um histérico, mas como os histéricos, só é compreensível a partir das

reminiscências que corajosamente (mas é uma coragem-moderna? – cheia de

hesitações, preguiça e adiamentos) quer fazer surgir em sua consciência. Se é

verdade que a obra de Proust, conforme sugerido por Shattuck, “registra a

auto-análise dolorosamente prolongada de uma personagem fictícia projetada

na dupla função de Marcel e de narrador”, esta última aproximação com a

Psicanálise não só é possível, como necessária.

Comparável à Psicanálise por sua ênfase nas reminiscências,

deslocando o que seria central num romance de formação216 – ou seja, sua

ênfase no aprendizado consciente –, para um segundo plano (no entanto

também extensamente abordado na obra) mas não mais suficiente (e muitas

vezes inibidor) para o salto que o reconhecimento da “história de uma vocação”

representa, e para o qual o surgimento das reminiscências é fundamental, a

obra de Proust provoca a mesma estranheza (pelo descentramento que

provocam na consciência do narrador) que a proposição do conceito de

inconsciente significou para a Psicologia.

Também em relação à estrutura, Em Busca representa uma inovação

em relação ao gênero. Não é intenção deste trabalho discutir esta importante

questão, mas talvez seja esclarecedor para nossos propósitos, assinalar um

aspecto relativo à estrutura de Em Busca, a partir deste comentário de Graciela

Codina:

216 Segundo Ricoeur,

“Marcel Proust subverte de uma maneira diferente da de Thomas Mann a lei doromance de iniciação; rompe com a visão otimista de um desenvolvimentocontínuo e ascendente do herói em busca de si mesmo.” (RICOEUR, Paul.Tempo e Narrativa II. Op. cit., p. 267/nota 63).

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“(...) Os episódios mais importantes podem até ter a aparência de um

desfecho clássico, mas são superados pelo ‘movimento dialético da

obra’, o que, segundo Tadié, conduz a um fim aberto, pela primeira vez

na história do gênero.”217

Quando comparamos a obra de Proust com a análise psicanalítica (ou

mais precisamente com uma auto-análise, segundo Shattuck), insinua-se a

questão do fim da análise, que não é questão fácil de ser respondida, e sobre a

qual Freud reflete, em um texto significativamente intitulado “Análise

Terminável e Interminável”, do qual destacaremos essas considerações:

“(...) Não estou pretendendo afirmar que a análise é, inteiramente, um

assunto sem fim. Qualquer que seja nossa atitude teórica para com a

questão, a terminação de uma análise é, penso eu, uma questão

prática. Todo analista experimentado será capaz de recordar uma série

de casos em que deu a seu paciente um adeus definitivo (...). Nosso

objetivo não será dissipar todas as peculiaridade do caráter humano em

benefício de uma ‘normalidade’ esquemática, nem tampouco exigir que

a pessoa que foi ‘completamente analisada’ não sinta paixões nem

desenvolva conflitos internos. A missão da análise é garantir as

melhores condições psicológicas possíveis para as funções do ego;

com isso, ela se desincumbiu de sua tarefa.”218

Comparável ao término da análise, sobre a qual Freud admite ser

finalizada por “uma questão prática”, mas na verdade interminável, se

atentarmos para as aspas colocadas na expressão ”completamente analisada”,

já que certos aspectos do sujeito talvez nunca sejam totalmente analisáveis,

também Em Busca termina. E também seu término não é fácil de ser definido,

já que ao seu final vislumbra-se uma possibilidade: um romance a ser iniciado.

Final e início, obra que se conclui e que no entanto permanece em aberto.

217 CODINA, Graciela Deri de. As Aporias do Eu na Recherche de Proust: Desilusão e Sentido.

Tese de Doutorado, Deptº de Filosofia, UNICAMP, agosto/2005, p. 185.

218 FREUD, Sigmund. Análise Terminável e Interminável. In: Obras Completas. Rio de Janeiro:Editora Imago, vol. XXIII, 1987, p. 284.

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Considerações Finais

“Num sentido ao mesmo tempo paradoxal e trivial, gostaria de

dizer que os homens não são animais tão específicos porque possuem

uma memória: mas somente porque se esforçam em não esquecer. A

escrita da história é sim atravessada pela morte, como afirma o deus

solar do Fedro; mas se o historiador luta contra o esquecimento

(Heródoto) e trabalha para cavar um túmulo, seu gesto recorda

simultaneamente aos vivos que nenhuma memória poderia torná-los

inesquecíveis, isto é, eternos. Assim, a história luta igualmente contra

este esquecimento primevo que nos é tão caro: o esquecimento de

nossa própria morte.”219

Nestas considerações, nos voltamos para as passagens finais de Em

Busca, na tentativa, não de concluir, o que seria impossível, e sim (para usar

um termo inspirado nas observações que faremos adiante) “arrematar” nossa

leitura do texto proustiano.

Nos voltamos também, para a observação de Paul Ricoeur (já citada no

capítulo IV), suscitada pelo episódio do aparecimento da Srtª de Saint-Loup no

final da obra220, e que sugere a existência de “um pacto com a juventude” na

criação.

Gostaríamos de voltar a esta observação, através de um outro exemplo

que também traz a voz do narrador de Em Busca prestes a escrever sua obra:

“(...) a felicidade que experimentava não provinha da tensão puramente

subjetiva dos nervos, que nos isola do passado, mas, ao contrário, de

219 GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Os Prelúdios de Paul Ricoeur. In: Lembrar, Escrever, Esquecer.

Rio de Janeiro, Ed. 34, 2006, p. 192.

220 “(...) Esse aparecimento que concretiza uma reconciliação, muitas vezes anunciada ouantecipada na obra, visa a sugerir que a criação tem um pacto com a juventude – com a“natalidade”, diria Hannah Arendt – que torna a arte, diferentemente do amor, mais forte doque a morte?” (RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa II. Op. cit. p. 247-248).

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um alargamento de meu espírito, no qual renascia, atualizava-se o

passado e que me permitia apreender – mas, ai de mim!, fugazmente –

o valor da eternidade. Desejaria legá-lo àqueles a quem poderia

enriquecer meu tesouro. Certamente, o que sentira na biblioteca e

buscava proteger era ainda o prazer, porém não mais egoísta, ou, pelo

menos (já que todos os altruísmos fecundos da natureza se

desenvolvem de maneira egoísta, sendo estéril o altruísmo humano não

egoísta, o do escritor que interrompe seu trabalho para receber um

amigo infeliz, exercer função pública, escrever artigos de propaganda)

por outrem utilizável.

Já não era despreocupado como ao regressar de Rivebelle,

sentia-me responsável pela obra que em mim trazia (como por algo

precioso e frágil que me houvesse sido confiado e quisesse depor

intacto nas mãos de terceiros aos quais se destinava).”221

Estes pensamentos, próprios do escritor prestes a escrever a obra, são

matizados pela preocupação em relação ao tempo que resta, pela urgência.

O desejo do narrador, ao final, é legar uma experiência, “o valor da

eternidade”, que poderia ser “por outrem utilizável”. O ato da criação é

atravessado pois, poderíamos dizer por este “pacto com a juventude” de que

fala Ricoeur, a partir do conceito de “natalidade”.

O último parágrafo citado [e que numa tradução literal seria “(...), eu me

sentia acrescido desta obra que eu trazia em mim (como por algo de precioso e

221 PROUST, Marcel. O Tempo Redescoberto. Op. cit., p. 282. (Le temps retrouvé: “(...) que le

bonheur que j’éprouvais ne venait pas d’une tension purement subjective des nerfs qui nousisole du passé, mais au contraire d’un élargissement de mon esprit en qui se reformait,s’actualisait ce passé, et me donnait, mais hélas! momentanément, une valeur d’éternité.J’aurais voulu léguer celle-ci à ceux que j’aurais pu enrichir de mon trésor. Certes, ce quej’avais éprouvé dans la bibliothèque et que je cherchais à protéger, c’était plaisir encore, maisnon plus égoïste, ou du moins d’un égoïsme (car tous les altruismes féconds de la nature sedéveloppent selon un mode égoïste, l’altruisme humain qui n’est pas égoïste est stérile, c’estcelui de l’écrivain qui s’interrompt de travailler pour recevoir un ami malheureux, pouraccepter une fonction publique, pour écrire des articles de propagande) d’un égoïsmeutilisable pour autrui. Je n’avais plus mon indifférence des retours de Rivebelle, je me sentaisaccru de cette ceuvre que je portais en moi (comme par quelque chose de précieux et defragile qui m’eût été confié et que j’aurais voulu remettre intact aux mains auxquelles il étaitdestiné et qui n’étaient pas les miennes)”, op. cit., p. 428-429). (Note-se que o tradutor“pulou” a expressão d’un egoïsme duas vezes).

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de frágil que me teria sido confiado e que eu gostaria de remeter intacto às

mão às quais ele estava destinado e que não eram as minhas)”.], no original,

nos remete diretamente ao conceito de “natalidade”, pois nele, a criação como

transmissão fica evidente (“remeter intacto às mãos as quais ele estava

destinado e que não eram as minhas”), o que corresponde à idéia de

paternidade, ou até mesmo à de maternidade, insinuada em “oeuvre que je

portais en moi” (que também pode ser traduzida por “obra que eu carregava em

mim”), ou mais exatamente à “gravidez” do narrador com relação a uma obra

que esta sendo gestada.

Mas se a natalidade é “o fato de que seres nascem para o mundo”222,

sua contraparte é o fato de que os seres morrem para o mundo, e não é

possível a admissão da natalidade, sem seu correspondente que diz respeito à

mortalidade223 – talvez por isto tão difícil a criação. O narrador de Em Busca se

dá conta disto de um modo pungente:

“Victor Hugo disse: ‘Il faut que l’herbe pousse et les enfants meurent’. E

eu afirmo que a lei cruel da arte exige que os seres pereçam, que nós

mesmos morramos padecendo todos os tormentos, a fim de que cresça

a relva, não do olvido, mas da vida eterna, a dura relva das obras

fecundas, sobre a qual as gerações futuras virão alegremente, sem

cogitar dos que sob ela dormem, fazer seus piqueniques.”224

222 ARENDT, Hannah. Op. cit., p. 223.

223 Sobre a questão da mortalidade, esta citação de um outro texto de Hanna Arendt pode seresclarecedora:“A preocupação dos gregos com a imortalidade resultou de sua experiência de umanatureza imortal e de deuses imortais que, juntos, circundavam as vidas individuais dehomens mortais. Inserida num cosmo onde tudo era imortal, a mortalidade tornou-se oemblema da existência humana. Os homens são «os mortais», as únicas coisas mortais queexistem porque, ao contrário dos animais, não existem apenas como membros de umaespécie cuja vida imortal é garantida pela procriação. A mortalidade dos homens reside nofato de que a vida individual, com uma história vital identificável desde o nascimento até amorte, advém da vida biológica. Essa vida individual difere de todas as outras coisas pelocurso retilíneo do seu movimento que, por assim dizer, intercepta o movimento circular davida biológica. É isto a mortalidade: mover-se ao longo de uma linha reta num universo emque tudo o que se move o faz num sentido cíclico.” (ARENDT, Hanna. A Condição Humana.Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1991, p. 27).

224 PROUST, Marcel. O Tempo Redescoberto. Op. cit., p. 284. (Le temps retrouvé: “Victor Hugodit: Il faut que l’herbe pousse et que les enfants meurent. Moi je dis que la loi cruelle de l’artest que les êtres meurent et que nous-mêmes mourions en épuisant toutes les souffrances,pour que pousse l’herbe non de l’oubli mais de la vie éternelle, l’herbe drue des oeuvresfécondes, sur laquelle les générations viendront faire gaîment, sans souci de ceux qui

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A obra de Proust pode ser compreendida como a narração de um

processo que culmina com a descoberta da vocação do escritor, acompanhada

pela admissão da morte e do tempo destruidor:

“Sim, a esta obra, a noção do Tempo, que acabava de adquirir, me dizia

chegada a hora de consagrar-me. Essa urgência justificava a ansiedade

que de mim se apoderara ao entrar no salão, onde as fisionomias

retocadas me deram a sensação do tempo perdido; mas já não seria

tarde? Eu vivera como o pintor galga a encosta que penetra um lago,

cuja vista lhe é vedada por uma cortina de rochedos e árvores. Por uma

brecha, divisa-o afinal, tem-no todo sob os olhos, toma dos pincéis. Mas

já a noite chega e o impede de pintar, a noite após a qual não haverá

mais dia!”225

Um outro exemplo em que a questão da morte é tematizada, é esta

passagem em que o narrador lamenta não apenas a possível perda da posição

de sujeito, mas muito mais as experiências cuja narração é ameaçada pela

morte:

“Eu tinha a certeza de que meu cérebro constituía uma rica zona

de mineração, com jazidas preciosas, extensas e várias. Mas teria

tempo de explorá-las? Era a única pessoa capaz de fazê-lo. Por dois

motivos: com minha morte, não desapareceria só o mineiro conhecedor

exclusivo dos minérios, mas também as próprias minas.”226

dorment en dessous, leur ‘déjeuner sur l’herbe’.”, op. cit., p. 431), [“déjeuner sur l’herbe” é,segundo Jeanne-Marie Gagnebin, uma alusão ao quadro de Manet, que não consta datradução].

225 Idem, p. 281.(Le temps retrouvé: “Oui, à cette oeuvre, cette idée du Temps que je venais deformer disait qu’il était temps de me mettre. Il était grand temps; mais, et cela justifiaitl’anxiété que s’était emparée de moi dès mon entrée dans le salon, quand les visages grimésm’avaient donné la notion du temps perdu, était-il temps encore et même étais-je encore enétat? (...) J’avais vécu comme un peintre montant un chemin qui surplombe un lac dont unrideau de rochers et d’arbres lui cache la vue. Par une brèche il l’aperçoit, il l’a tout entierdevant lui, il prend ses pinceaux. Mais déjà vient la nuit où l’on ne peut plus peindre, et surlaquelle le jour ne se relève pas.”, p. 427). [O tradutor “pulou” uma frase (“L’esprit a sespaysages dont la contemplation ne lui est laissée qu’un temps.”) cuja tradução possível seria:“O espírito tem suas paisagens cuja contemplação só lhe é permitida por um certo tempo.”(Sugerida por Sybil Safdié Douek)].

226 Idem, p. 283. (Le temps retrouvé: “Je savais très bien que mon cerveau était un riche bassinminier, où il y avait une étendue immense et fort diverse de gisements précieux. Mais aurais-je le temps de les exploiter? J’étais la seule personne capable de le faire. Pour deux raisons :

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Na verdade a questão do tempo não é uma questão restrita ao último

volume da obra, nela esta preocupação é onipresente. Nas palavras de

Shattuck: “A primeira frase de toda a obra, assim como seu título, indicam uma

coexistência constante com o tempo”227.

E poderíamos acrescentar: também o título do último volume (O Tempo

Reencontrado) e as últimas passagens (assim como a última palavra) da obra,

também indicam a persistência desta “coexistência constante com o tempo”.

No último volume – e isto é novo numa obra que se demora

minuciosamente em cada acontecimento –, é que surge o sentimento de

urgência assinalado: natalidade e mortalidade poderíamos dizer, são os temas

das derradeiras páginas de Em Busca, após a vocação finalmente assumida.

Na tentativa de caracterizarmos estas questões que são próprias do final

da obra, talvez ainda seja tempo (!) de examinarmos mais uma imagem, já que

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idéias. Como se diz em Combray, ninguém conhece as peles tão bem

como as traças. Estragam sempre as melhores fazendas’.”228

“Papeluchos” que são afinal, as anotações do futuro escritor, e que neste

momento só são valorizados pela criada (e pelas traças!).

Nesta imagem, presente no final da obra, há uma profunda consciência

da fragilidade da palavra escrita, ironizada na figura das traças – metáfora clara

do tempo destruidor –, que contrasta com a imagem do início do romance, a da

xícara de chá na qual “pedacinhos de papel” mergulhados n’água tomam

“forma e solidez”, revelando Combray em seu cotidiano banal, mas no entanto

subtraído da experiência229 do narrador.

Nesta que é uma das passagens mais famosas de Em Busca – e uma

das mais felizes (nos dois sentidos: o da felicidade do momento e o do achado

literário) –, os “pedacinhos de papel” que na água desabrocham como flores

ressuscitam230 Combray, que “toma forma e solidez”, saída de uma taça de

chá:

228 PROUST, Marcel. O Tempo Redescoberto. Op. cit., p. 281. (Le temps retrouvé: “A force de

coller les uns aux autres ces papiers que Françoise appelait mes paperoles, ils se déchiraientçà et là. Au besoin Françoise ne pourrait-elle pas m’aider à les consolider, de la même façonqu’elle mettait des pièces aux parties usées de ses robes, ou qu’à la fenêtre de la cuisine, enattendant le vitrier comme moi l’imprimeur, elle collait un morceau de journal à la place d’uncarreau cassé*?* Françoise me dirait, en me montrant mes cahiers rongés comme le bois où l’insecte s’est mis : ‘C´est

tout mité, regardez, c’est malheureux, voilà un bout de page qui n’est plus qu’une dentelle’ etl’examinant comme un tailleur : ‘je ne crois pas que je pourrai la refaire, c’est perdu. C’est dommage,c’est peut-être vos plus belles idées. Comme on dit à Combray, il n’y a pas de fourreurs qui s’yconnaissent aussi bien comme les mites. Ils se mettent toujours dans les meilleures étoffes.’”, op.cit., p. 426). (Em francês o 2º parágrafo da tradução citada é uma nota).

229 Pelo menos da memória voluntária: “Na verdade, poderia responder, a quem meperguntasse, que Combray compreendia outras coisas mais e existia em outras horas. Mascomo o que eu então recordasse me seria fornecido unicamente pela memória voluntária, amemória da inteligência, e como as informações que ela nos dá sobre o passado nãoconservam nada deste, nunca me teria lembrado de pensar no restante de Combray. Naverdade, tudo isso estava morto para mim.” (PROUST, Marcel. No Caminho de Swann. Op.cit., p. 48). (Du côté de chez Swann: “A vrai dire, j’aurais pu répondre à qui m’eût interrogéque Combray comprenait encore autre chose et existait à d’autres heures. Mais comme ceque je m’en serais rappelé m’eût été fourni seulement par la mémoire volontaire, la mémoirede l’intelligence, et comme les renseignements qu’elle donne sur le passé ne conservent riende lui, je n’aurais jamais eu envie de songer à ce reste de Combray. Tout cela était en réalitémort pour moi.”, op. cit., p. 141).

230 A idéia de ressurreição, como ressalta Shattuck, não é estranha ao texto de Proust:“Embora continuem a provocar nele uma profunda reação pessoal, Marcel dá as costas às

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“(...) E, como nesse divertimento japonês de mergulhar numa bacia de

porcelana cheia d’água pedacinhos de papel, até então indistintos e

que, depois de molhados, se estiram, se delineiam, se colorem, se

diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens consistentes e

reconhecíveis, assim agora todas as flores de nosso jardim e as do

parque do sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia

e suas pequenas moradias e a igreja e toda a Combray e seus

arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de

minha taça de chá.”231

A obra não “se resolve” no episódio da madeleine, como sabemos, mas

a experiência narrada neste episódio atravessa os vários volumes da obra,

experiência que será ampliada pelas posteriores reminiscências, representando

ao menos, nas palavras de Ricoeur, um “sinal premonitório”, além de um

“primeiro esboço” da revelação final:

“Se o êxtase da madalena não passa de um sinal premonitório

da revelação final, já possui, pelo menos, a virtude de abrir a porta da

lembrança e permitir o primeiro esboço do Tempo redescoberto: as

narrativas de Combray.”232

É a cena que “se passa” numa xícara de chá que poderíamos dizer

pressagia toda a obra. Os “pedacinhos de papel” que se materializam numa

cidade esquecida representam a fragilidade, mas ao mesmo tempo a solidez

das reminiscências.

suas impressões. Só mais tarde ele irá compreender que elas são o próprio material darealidade e que o prepararam para os dois estágios posteriores da memória:ressurreição/reminiscência (Proust utiliza os termos cristão e grego indistintamente; assim,agirei da mesma maneira) e arte.” (SHATTUCK, Roger. Op. cit., p. 133).

231 PROUST, Marcel. No Caminho de Swann. Op. cit., p. 51. (Du côté de chez Swann: “Etcomme dans ce jeu où les Japonais s’amusent à tremper dans un bol de porcelaine remplid’eau, de petits morceaux de papier jusque-là indistincts qui, à peine y sont-ils plongéss’étirent, se contournent, se colorent, se différencient, deviennent des fleurs, des maisons,des personnages consistants et reconnaissables, de même maintenant toutes les fleurs denotre jardin et celles du parc de M. Swann, et les nymphéas de la Vivonne, et les bonnesgens du village et leurs petits logis et l’église et tout Combray et ses environs, tout cela quiprend forme et solidité, est sorti, ville et jardins, de ma tasse de thé.”, op. cit., p. 145).

232 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa II. Op. cit., p. 234.

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Contrastando com esta imagem, os “papeluchos” de Françoise são

fragmentos da obra a ser escrita, compreensíveis muito mais do ponto de vista

do costureiro (questão esta já insinuada no capítulo IV), do que da posição do

arquiteto que idealiza uma catedral:

“(...) (eu) trabalharia a seu lado, e quase à sua imitação (ao menos à

imitação do que outrora fazia: agora, muito velha, já não tinha vista para

nada), pois, pregando aqui e ali uma folha suplementar, eu construiria

meu livro, não ouso dizer ambiciosamente como uma catedral, mas

modestamente como um vestido. Quando não encontrasse todos os

meus papéis, meus papeluchos, como dizia Françoise, e faltasse

justamente o mais necessário no momento, ela compreenderia que me

enervasse, pois repetia sempre ser-lhe impossível coser sem a linha e

os botões mais adequados, (...)”233

Se os “pedacinhos de papel”, no caso do episódio da madeleine,

transformam-se na Combray esquecida, a imagem que aparece no final da

obra não é mais a destes papeizinhos que se abrem quase magicamente como

pétalas, mas a de “papeluchos” que se abrem como sanfonas234, e que se

parecem mais a remendos; imagem esta, poderíamos dizer, desconfiada dos

destinos da escrita.

Se o episódio da madeleine representa o momento de inspiração do

artista, momento de totalidade, a costura dos fragmentos representa o outro

233 PROUST, Marcel. O Tempo Redescoberto. Op. cit., p. 280. (Le temps retrouvé: “(...) je

travaillerais auprès d’elle, et presque comme elle (du moins comme elle faisait autrefois : sivieille maintenant, elle n’y voyait plus goutte); car, épinglant ici un feuillet supplémentaire, jebâtirais mon livre, je n’ose pas dire ambitieusement comme une cathédrale, mais toutsimplement comme une robe. Quand je n’aurais pas auprès de moi toutes mes paperoles,comme disait Françoise, et que me manquerait juste celle dont j’aurais besoin, Françoisecomprendrait bien mon énervement, elle qui disait toujours qu’elle ne pouvait pas coudre sielle n’avait pas le numéro de fil et les boutons qu’il fallait.”, op. cit., p. 425).

234 A expressão nos foi sugerida por Leda Tenório da Motta, que comenta aqui não só anarração, mas o contexto biográfico da obra; que nos abstivemos de mencionar até aqui,mas que todavia se impõe: “Treze volumes ao cabo da aventura, que coincidemilimetricamente com a morte de Proust, em 1922. Uma pequena biblioteca para conter àproliferação impressionante de carnês, cadernos, margens escritas, rodapés, tirasintercaladas e as célebres sanfonas de papel destinadas a aumentar as páginas manuscritas,sempre insuficientes, e colocadas no fim pela empregada Françoise, ser biográfico e ficcionalcujos préstimos a tornam a única permanência na obra fora seu sonâmbulo Narrador.”[MOTTA, Leda Tenório da. Op. cit., (posfácio) p. 297].

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momento da criação literária: o da escritura propriamente dita (que alguns

chamam, e com razão, de transpiração), necessariamente fragmentária.

Momento de humildade, que se dá logo após o momento culminante da obra, a

“revelação final” segundo Ricoeur, que como sabemos acontece numa

biblioteca:

“(...) A simetria entre o começo e o fim revela, desse modo, ser o

princípio diretor da composição: se Combray sai de uma xícara de chá,

como a narrativa da madalena sai dos semidespertares de um quarto

de dormir, é da maneira como a meditação na biblioteca vai comandar o

encadeamento das provas ulteriores.”235

Na biblioteca enfim, é que se dá a descoberta de uma vocação: a de

autor de uma obra a ser empreendida, que no entanto já se esboça na

descoberta de que “a matéria da obra literária era, afinal, minha vida

passada”236.

Esta valorização do passado, ou melhor, da relação entre o passado

narrado e o presente do narrador, coloca em evidência as figuras do sujeito (o

herói e o narrador) presentes na obra, que podem se encontrar enfim, na

almejada transformação final do narrador em escritor. Nas palavras de Jeanne-

Marie Gagnebin:

“Esses ‘jogos com o tempo’ (segundo a expressão de Ricoeur)

são bem conhecidos na obra de Marcel Proust. São também jogos com

as duas figuras de sujeito que podem ser diferenciadas na Busca do

tempo perdido: o herói, aquele ‘eu’ incerto que nem sabe se dorme ou

está acordado, que conta suas aventuras e suas desilusões, e o

narrador, aquele outro ‘eu’ que já sabe de coisas futuras, aquele que

antecipa, mas que também lembra, que vai deduzir da experiência da

memória involuntária tanto os motivos quanto as leis da obra a realizar,

o narrador que se transformará, no fim, em escritor. O herói se

manifesta no tempo narrado, o narrador no da narração, mas esses

dois tempos em Proust somente são distinguíveis em teoria, porque, na

235 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa II. Op. cit., p. 234.

236 PROUST, Marcel. O Tempo Redescoberto. Op. cit., p. 175. (Le temps retrouvé: “Tous cesmatériaux de l’oeuvre littéraire, c’était ma vie passée.”, op. cit., p. 260-261).

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prática da escrita proustiana, eles se entremesclam, se confundem e

nos confundem, confundem o leitor que não sabe mais, muitas vezes,

quem fala, quando e de onde esse ‘eu’ incansável toma a palavra.”237

É importante notar que, o tempo reencontrado, no presente do narrador,

refere-se ao passado, no entanto ampliado nesta longa busca, pelas

reminiscências que revolucionam a própria noção de “vida passada”. O futuro

escritor deve proceder então, a uma espécie de arqueologia da própria vida,

lutando contra o esquecimento.

Na epígrafe escolhida para estas considerações, Jeanne-Marie

Gagnebin, mencionando Heródoto, afirma que “o historiador luta contra o

esquecimento”. No entanto, esta não é tarefa apenas do historiador, mas

também a do romancista que, tratando embora de uma “experiência temporal

fictícia”238, empreende uma luta comparável no interior da obra.

Não é fácil traçar (se é que é necessário), uma linha divisória entre o

trabalho do historiador e o do romancista. No caso da obra de Proust, isto

torna-se ainda mais complicado, por ser a luta contra o esquecimento

tematizada pela própria obra, luta que não objetiva lembrar os grandes feitos,

mas a não esquecer os pequenos gestos do cotidiano, que por vezes são

subtraídos da memória pela força das lembranças obsessivas que restringem a

consciência do narrador.

Como última palavra, não podemos esquecer (!), no entanto, que se Em

Busca narra as vicissitudes do herói solitário, narra também (e ao mesmo

tempo) uma época, e o faz, segundo a preciosa observação de Walter

Benjamin, a partir de sua intimidade:

“Nem sempre proclamamos em voz alta o que temos de mais

importante a dizer. E, mesmo em voz baixa, não o confiamos sempre à

237 O Tempo Pela Janela, O Tempo Pela Escritura. In: II Seminário do Museu Vale do Rio

Doce: Sentidos Na/Da Arte Contemporânea, p. 6.

238 A expressão é de Paul Ricoeur (denomina um dos capítulos de Tempo Narrativa II, Op. cit.,p. 181).

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pessoa mais familiar, mais próxima e mais disposta a ouvir a

confidência. Não somente as pessoas, mas também as épocas, têm

essa maneira inocente, ou antes, astuciosa e frívola, de comunicar seu

segredo mais íntimo ao primeiro desconhecido. No que diz respeito ao

século XIX, não foram nem Zola nem Anatole France, mas o jovem

Proust, o esnobe sem importância, o trêfego freqüentador de salões,

quem ouviu, de passagem, do século envelhecido, como de um outro

Swann, quase agonizante, as mais extraordinárias confidências.

Somente Proust fez do século XIX um século para memorialistas. O que

era antes dele uma simples época, desprovida de tensões, converteu-

se num campo de forças, no qual surgiram as mais variadas correntes,

representadas por autores subseqüentes.”239

239 BENJAMIN, Walter. Zum Bilde Prousts, Ges. Schr. II-1. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974.

Tradução brasileira de Sérgio Paulo Rouanet: A imagem de Proust. In: Obras Escolhidas,Volume I – Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 40.

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