Cérebro: um imbróglio terminológico

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ARTIGO DE REVISÃO J Bras Neurocirurg 14(1): 19-20, 2003 DIAS FILHO LC – Cérebro: um imbróglio terminológico JORNAL BRASILEIRO DE NEUROCIRURGIA Cérebro: um imbróglio terminológico Luiz Coutinho Dias Filho* “Se quiser conversar comigo, defina seus termos.” (Voltaire) * Neurocirurgião da Disciplina de Neurologia e Neurocirurgia da Universidade Federal de Pernambuco. Professor Auxiliar da Disciplina de Anatomia da Universidade Federal de Pernambuco. Sinopse É comum a neurologistas e neurocirurgiões considerarem erroneamente o cérebro como sendo formado pelo diencéfalo e o telencéfalo. Tal erro está consignado em vários livros- textos de Neuroanatomia utilizados nas universidades brasileiras. O correto é incluir entre os componentes do cérebro apenas as estruturas telencefálicas, como estabe- lecido na Terminologia Anatômica Internacional e em renomados dicionários médicos. Palavras-chave Cérebro, diencéfalo, nomenclatura anatômica, telencéfalo. Abstract Cerebrum: an “imbroglio” in terminology It is common for neurologists and neurosurgeons to erroneously consider the cerebrum as being constituted by diencephalon and telencephalon. This error is consigned in many textbooks of Neuroanatomy used in brazilian univer- sities. The correct way is to include among the components of the cerebrum only the telencephalic structures, as established in the International Anatomical Terminology and renowned medical dictionaries. Keywords Anatomic nomenclature, cerebrum, diencephalon, telen- cephalon. Introdução No caso de, como já realizado em outros idiomas 15 , ser feito em língua portuguesa um levantamento das palavras que são mais freqüentemente utilizadas para denominar partes do corpo, decerto o nome cérebro ocupará o topo da lista dos termos relacionados ao sistema nervoso. É desconcertante que a mais corriqueira das palavras utilizadas em um “colóquio neurológico” seja repetidamente proferida com um significado diverso daquele que a nomenclatura anatômica oficial recomenda. Esse tropeço semântico consiste em fazer uso da palavra cérebro para designar o telencéfalo junto com o diencéfalo. A etimologia nos remete ao latim cerebrum, palavra utilizada pelos antigos romanos para designar o conteúdo da cavidade craniana, o próprio crânio ou a cabeça como um todo 9 . Com o passar do tempo, a abrangência do termo foi se restringindo e, há décadas, a nomenclatura anatômica oficial vem apresentando como cérebro apenas a porção do sistema nervoso que provém da mais cranial das vesículas encefálicas embrionárias, o telencéfalo. Rigorosamente, a palavra telencéfalo deveria ser reser- vada para o embrião, contudo tornou-se usual utilizá-la com respeito ao sistema nervoso plenamente desenvol- vido, circunstância em que surge como sinônimo de cérebro. Assim está na nomenclatura referendada pela Federação Internacional de Associações de Anatomistas (FIAA), vigente desde 1998; tal Terminologia Anatômica (TA) apresenta cérebro e telencéfalo como sinônimos, ambas as palavras sendo associadas a um único número de referência: A14.1.09.001 13 . A TA deixa claro que o diencéfalo (número de referência A14.1.08.001) não é parte do cérebro 13 , assim, é incon-

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ARTIGO DE REVISÃO

J Bras Neurocirurg 14(1): 19-20, 2003DIAS FILHO LC – Cérebro: um imbróglio terminológico

JORNALBRASILEIRO DENEUROCIRURGIA

Cérebro: um imbróglio terminológicoLuiz Coutinho Dias Filho*

“Se quiser conversar comigo, defina seus termos.”(Voltaire)

* Neurocirurgião da Disciplina de Neurologia e Neurocirurgia da UniversidadeFederal de Pernambuco.Professor Auxiliar da Disciplina de Anatomia da Universidade Federal dePernambuco.

SinopseÉ comum a neurologistas e neurocirurgiões considerarem

erroneamente o cérebro como sendo formado pelo diencéfaloe o telencéfalo. Tal erro está consignado em vários livros-textos de Neuroanatomia utilizados nas universidadesbrasileiras. O correto é incluir entre os componentes docérebro apenas as estruturas telencefálicas, como estabe-lecido na Terminologia Anatômica Internacional e emrenomados dicionários médicos.

Palavras-chaveCérebro, diencéfalo, nomenclatura anatômica, telencéfalo.

AbstractCerebrum: an “imbroglio” in terminologyIt is common for neurologists and neurosurgeons to

erroneously consider the cerebrum as being constituted bydiencephalon and telencephalon. This error is consigned inmany textbooks of Neuroanatomy used in brazilian univer-sities. The correct way is to include among the components ofthe cerebrum only the telencephalic structures, as establishedin the International Anatomical Terminology and renownedmedical dictionaries.

KeywordsAnatomic nomenclature, cerebrum, diencephalon, telen-

cephalon.

Introdução

No caso de, como já realizado em outros idiomas15, serfeito em língua portuguesa um levantamento das palavrasque são mais freqüentemente utilizadas para denominarpartes do corpo, decerto o nome cérebro ocupará o topoda lista dos termos relacionados ao sistema nervoso. Édesconcertante que a mais corriqueira das palavras utilizadasem um “colóquio neurológico” seja repetidamente proferidacom um significado diverso daquele que a nomenclaturaanatômica oficial recomenda. Esse tropeço semânticoconsiste em fazer uso da palavra cérebro para designar otelencéfalo junto com o diencéfalo.

A etimologia nos remete ao latim cerebrum, palavrautilizada pelos antigos romanos para designar o conteúdoda cavidade craniana, o próprio crânio ou a cabeça comoum todo9. Com o passar do tempo, a abrangência do termofoi se restringindo e, há décadas, a nomenclatura anatômicaoficial vem apresentando como cérebro apenas a porçãodo sistema nervoso que provém da mais cranial dasvesículas encefálicas embrionárias, o telencéfalo.

Rigorosamente, a palavra telencéfalo deveria ser reser-vada para o embrião, contudo tornou-se usual utilizá-lacom respeito ao sistema nervoso plenamente desenvol-vido, circunstância em que surge como sinônimo decérebro. Assim está na nomenclatura referendada pelaFederação Internacional de Associações de Anatomistas(FIAA), vigente desde 1998; tal Terminologia Anatômica(TA) apresenta cérebro e telencéfalo como sinônimos,ambas as palavras sendo associadas a um único númerode referência: A14.1.09.00113.

A TA deixa claro que o diencéfalo (número de referênciaA14.1.08.001) não é parte do cérebro13, assim, é incon-

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cebível o hábito, arraigado entre neurologistas e neuroci-rurgiões brasileiros, de considerar o cérebro como sendoformado por estruturas telencefálicas e diencefálicas. EmAnatomia, a TA tem autoridade bíblica e isso por si só sebasta; contudo, não custa buscar apoio no dicionário:

“Cérebro S.m. 1. Anatom.: O órgão mais largo evolumoso do encéfalo, correspondendo a sete oitavos deseu peso. Resulta do desenvolvimento do telencéfalo ecompõe-se de dois hemisférios cerebrais, separados poruma fissura longitudinal e unidos pelo corpo caloso...” 5;

“Cérebro – (NA, BNA) – A porção maior do encéfalo,que ocupa toda a parte superior do crânio, consistindo doshemisférios direito e esquerdo; telencéfalo”6;

“Cerebrum: 1. [NA] A porção principal do encéfalo,que ocupa a parte superior da cavidade craniana; seus doishemisférios (ver cerebral hemisphere, em hemisphere),unidos pelo corpus callosum, formam a maior parte dosistema nervoso central no homem. Ele é derivado(desenvolvido) do telencéfalo do embrião”7;

“Cerebrum, pl. ce.re.bra, cer.e.brums [TA]. Cérebro;originalmente se referia à maior parte do encéfalo, incluindopraticamente todas as partes dentro do crânio, exceto o bulbo(medula oblonga), a ponte e o cerebelo; agora, geralmenterefere apenas as partes derivadas do telencéfalo e incluiprincipalmente os hemisférios cerebrais”12.

A raiz do erro está na sala de aula. Qualquer um quetenha o destemor de afirmar que uma lesão talâmica nãoestá no cérebro corre o risco de ser torpedeado pelos livros-textos de Neuroanatomia adotados em muitas dasuniversidades brasileiras. Abaixo foram relacionados trechosde alguns desses livros:

“O diencéfalo e o telencéfalo formam o cérebro, quecorresponde, pois, ao prosencéfalo”10;

“O termo cérebro designa o par de hemisférios cerebraise o diencéfalo”11;

“Das três divisões básicas do encéfalo, o prosencéfalo,ou cérebro anterior, é de longe o maior. Também é chamadode cérebro”3;

“O termo diencéfalo refere-se à parte do sistema nervosocentral que, em conjunto com o telencéfalo, constitui océrebro”2;

“O diencéfalo, junto com o telencéfalo, forma o cérebro”8;“Quando se considera o cérebro (diencéfalo + telencéfalo)

e se examina a base da peça, observa-se a presença deformações macroscópicas, como o quiasma óptico...”14;

“O cérebro (cérebro anterior ou prosencéfalo) consisteem telencéfalo e diencéfalo”4.

Época houve em que cerca de 5 mil estruturas anatô-micas eram conhecidas e, para denominá-las, havia maisde 50 mil termos1. O esforço para dirimir essa confusão“babelesca” resultou na TA, uma nomenclatura que primapela simplificação e deve ser adotada em todo o mundo.Quanto às partes do encéfalo, deve-se considerar o cérebrocomo sendo formado apenas por estruturas telencefálicase ponto final.

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9. HAUBRICH WS: Medical Meanings – A Glossary of WordOrigins. New York, Harcourt Brace Jovanovich, 1984.

10. MACHADO ABM: Neuroanatomia Funcional. 2a edição, Riode Janeiro, Livraria Ateneu, 2003. Cap. 7, p 55.

11. NOBACK CR, STROMINGER NL,DEMAREST RJ:Neuroanatomia – Estrutura e Função do Sistema NervosoHumano. São Paulo, Editorial Premier, 1999. Cap. 1, p 1.

12. Stedman – Dicionário Médico. 27a edição. Rio de Janeiro, EditoraGuanabara Koogan S.A., 2003.

13. Terminologia Anatômica Internacional. São Paulo, EditoraManole Ltda., 2001.

14. WANDERLEY SS, PEREIRA TCA, FERNANDES PRB:Princípios de Neuroanatomia. Rio de Janeiro, 2002. Cap. 8,p 77.

15. WRIGHT GH: The names of the parts of the body – A linguisticapproach to the study of the body-image. Brain, 79: 188-209,1956.

Endereço para correspondência:Dr. Luiz Coutinho Dias FilhoRua Manuel de Arruda Câmara, 120, ap. 404CEP 50720-140 – Prado, Recife, PETel.: (81) 3227-6546E-mail: [email protected]

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RELATO DE CASO

J Bras Neurocirurg 14(1): 21-24, 2003AGUIAR LR, MAEDA AK, FRANCISCO AN, MATTOZO CA, MARQUES R – Angiomacavernoso: ressecção microcirúrgica guiada por imagem – Relato de caso

JORNALBRASILEIRO DENEUROCIRURGIA

Angioma cavernoso: ressecção microcirúrgicaguiada por imagem – Relato de casoLuiz Roberto Aguiar*Adriano K. Maeda**Alexandre N. Francisco***Carlos A. Mattozo***Robinson Marques***

Sinopse

É relatado um caso de hemangioma cavernoso localizadono núcleo caudado. A lesão foi completamente ressecadautilizando-se um procedimento guiado por imagem, sem quehouvesse alguma deterioração neurológica. A literatura mostrauma morbi-mortalidade de cerca de 20% para tais lesões. Autilização da nova tecnologia de assimilação de imagemneurodiagnóstica no procedimento cirúrgico é documentada.

Palavras-chaveAngioma cavernoso, neuronavegação, cirurgia guiada

por imagem.

AbstractCaudate nucleus cavernous angioma. Image-guided

microsurgical resection. Report of a caseA case of a deep-seated caudate nucleus cavernous

hemangioma completely removed through an image-guidedprocedure is reported. No postoperative neurological deficitwas observed, although literature reports show a morbi-mortality rate of 20% for such location. The incorporation ofthis new technology of neurodiagnostic imaging assimilationinto neurosurgical practice is documented.

KeywordsCavernous angioma, neuronavigation, image-guided

operation.

Introdução

Angioma ou hemangioma cavernoso ou cavernoma sãohamartomas vasculares que se caracterizam por serem lesõescircunscritas, localizadas dentro do parênquima nervoso. Sãolesões descritas como benignas, mas podem ocorrer sangra-mentos, localizando-se algumas vezes em situações ana-tômicas desfavoráveis a uma abordagem cirúrgica.

Apresentamos um caso de cavernoma localizado emestrutura cerebral profunda (núcleo caudado) que foi satis-fatoriamente abordado com uma pequena craniotomia, comressecção completa da lesão, por meio de procedimentomicroneurocirúrgico guiado por imagem. As imagens doplanejamento cirúrgico e transoperatórias ilustram apresente descrição de caso.

Caso clínico

Z.L.D., sexo feminino, 47 anos de idade, casada, destra,apresentou em outubro de 2002 um quadro de “derrame”cerebral. Houve perda súbita da consciência e hemiplegiaesquerda. Na ocasião foi realizado estudo com tomografiacomputadorizada cerebral (TC), que evidenciou um

* Professor Adjunto de Neurocirurgia da PUC-PR, Chefe do Serviço deNeurocirurgia do Hospital Universitário Cajuru (HUC) da PontifíciaUniversidade Católica do Paraná (PUC-PR).

** Preceptor da Residência Médica em Neurocirurgia – HUC – PUC-PR.*** Neurocirurgiões do Serviço de Neurocirurgia do HUC – PUC-PR.

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hematoma intraparenquimatoso localizado em região denúcleos da base, acometendo a cabeça do núcleo caudado,com extensão intraventricular (Figura 1). Na época foidiagnosticada hipertensão arterial sistêmica moderada, e ahemorragia foi interpretada como intracerebral espontânea.Outros exames de investigação não foram realizados, tendosido submetida a tratamento conservador com controle dapressão arterial sistêmica. Houve adequada melhora clínica,retornando às suas atividades prévias, sem seqüelasneurológicas graves.

Cerca de 4 meses após, apresentou novo ictus, comnovo quadro de hemorragia, na mesma localização eacentuação do déficit neurológico. Apresentou-se paratratamento com um déficit neurológico motor depredomínio no MIE, sem distúrbio de fala. Nessa situaçãoum estudo com ressonância magnética do encéfalo (RM)foi indicado, e revelou a presença de uma lesão intra-axial, heterogênea, contendo focos de hipersinal em T1e T2, halo de acentuado hipossinal em todas as se-qüências, que sofre impregnação intensa heterogênea comcontraste paramagnético, medindo aproximadamente 2x 2 x 2 cm, localizada na substância branca do lobofrontal, joelho do corpo caloso e cabeça do núcleocaudado à direita. Essa lesão promove compressão edesvio do corno anterior do ventrículo lateral adjacente.A primeira possibilidade diagnóstica considerada foi deangioma cavernoso (Figura 2).

Pela existência de hemorragias de repetição foi indicadotratamento cirúrgico para ressecção completa da lesão. Acirurgia foi realizada no dia 31.01.2003, com a paciente emdecúbito dorsal, com a cabeça em posição neutra, elevada30 graus, fixada no suporte de Mayfield. Foi realizada umaincisão bicoronariana e uma craniotomia com 3 cm dediâmetro, na região frontal direita. Utilizou-se o sistema deneuronavegação VectorVision (BrainLab, Munique) acopladoao microscópio cirúrgico Zeiss NC4 Multivision, permitindo

FIGURA 1Tomografia axial computadorizada pré-operatória. Lesão com

altos valores de atenuação na substância branca da regiãoparaventricular direita, correspondendo à

topografia de núcleo caudado.

FIGURA 2 RMN do encéfalo: A: Axial T1; B: Coronal T1; C: Sagital T2.

Evidencia-se lesão intra-axial heterogênea, com focos de hipersinalem T1 e T2, halo de hipossinal, que sofre impregnação intensa,

heterogênea de contraste paramagnético, localizada na substânciabranca do lobo frontal, joelho do corpo caloso e cabeça do núcleocaudado à direita, caracterizando angioma cavernoso do tipo II.

J Bras Neurocirurg 14(1): 21-24, 2003AGUIAR LR, MAEDA AK, FRANCISCO AN, MATTOZO CA, MARQUES R – Angiomacavernoso: ressecção microcirúrgica guiada por imagem – Relato de caso

A

B

C

a injeção das imagens de navegação na binocular do cirurgiãoe a precisa localização das estruturas a serem abordadas. Alesão foi ressecada mediante um acesso transsulcal,utilizando-se o sulco frontal superior, na sua porção média,e uma corticotomia entre o giro frontal superior e o médio,com aproximadamente 1,5 cm de diâmetro, e dissecçãoatravés da substância branca até a lesão, que se encontravana cabeça do núcleo caudado, envolvendo a parede ântero-lateral do corno frontal do ventrículo lateral direito. Alocalização precisa do ponto de entrada foi estabelecida noplanejamento pré-operatório, realizado através daworkstation do VectorVision (BrainLAB, Munique), bemcomo o alvo (target point), definido como o ponto maisdistal da lesão, na sua porção inferior. A lesão media x cmno sentido AP, y cm no sentido lateral e z cm no sentidosúpero-inferior. A projeção tridimensional da lesão, bemcomo o volume e os contornos dos ventrículos cerebrais,

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e os pontos referenciais evidenciando a distância ao targetpoint, visíveis na binocular do cirurgião, possibilitaram quea lesão fosse facilmente abordada e completamenteressecada. O tempo total de cirurgia foi de 2,5 horas,incluindo o período de indução anestésica e o setup dosistema de neuronavegação (Figuras 3, 4, e 5).

A paciente apresentou recuperação muito satisfatória,sem déficit neurológico adicional, recebendo alta hospitalar48 horas após o procedimento cirúrgico, para controleambulatorial (Figura 6).

FIGURA 3Imagens do planejamento pré-operatório realizado com o

sistema VectorVision (BrainLAB, Munique), em que estãorepresentados o sistema ventricular, em A, e o angioma

cavernoso, em B. Observa-se que, nas imagens utilizadas para anavegação, o lado direito fica à direita do paciente, ao contrário

das imagens pré-operatórias.

FIGURA 5Imagem digital do VectorVision (BrainLAB) representando alesão e o sistema ventricular projetados por superposição na

imagem captada do vídeo do microscópio cirúrgico Zeiss NC4.

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FIGURA 4Imagem da tela do VectorVision, com o ponto de entrada, alvo e

trajeto delimitados. Foi realizado um acesso transcortical,utilizando-se o sulco frontal superior.

FIGURA 6Tomografia pós-operatória evidenciando a lesão completamenteressecada. A parede ântero-lateral do corno frontal do ventrículo

lateral direito foi aberta, pois a lesão projetava-separa essa localização.

Discussão

Angiomas cavernosos representam 5% a 13% dasmalformações vasculares do sistema nervoso central(SNC). Grandes séries de autópsias revelam a presença delesões em 0,02% a 0,13% da população1. A maioria daslesões localiza-se no espaço supratentorial, mas lesões nafossa posterior podem ser observadas, correspondendo de10% a 20% dos casos, existindo uma predileção pela ponte2.

Do ponto de vista da origem embriológica existem doistipos: esporádico ou hereditário. No caso de manifestaçãoesporádica, como era o caso dessa paciente, não se detectaacometimento familiar semelhante. A forma hereditáriaobedece a um padrão de transmissão mendeliano autos-sômico dominante com variável expressividade3.

Podem se manifestar clinicamente com crises epilépticas(60%), déficit neurológico progressivo (50%), hemorragia(20%), hidrocefalia ou achado incidental em exame neuror-radiológico4.

O exame neurorradiológico mais sensível para o diag-nóstico de angiomas cavernosos é a RM, e os critériospara diagnóstico estão bem estabelecidos5. A classificaçãoque utilizamos foi proposta por Zabranski6, em 1994, e incluiquatro tipos. As lesões do tipo I são caracterizadas porhemorragia subaguda e exibem uma porção centralhiperintensa em T1 (meta-hemoglobina), enquanto em T2o sinal, inicialmente hiperintenso, torna-se hipointenso, oualgumas vezes com um anel fraco de hipointensidade. Aslesões do tipo II apresentam áreas loculadas de hemorragiasde idades variadas e trombos, circundados por gliose ehemossiderina. Em T1 e T2 um centro reticulado com sinaisde hiper e hipointensidades são circundados por um anelde hipointensidade. Clinicamente essas lesões são ativas esignificam que hemorragias estão ocorrendo num processorepetitivo. As lesões de tipo III representam predominan-temente lesões crônicas, a maioria delas inativa, comhemossiderina residual dentro e fora da lesão, determinandohipointensidade tanto em T1 quanto em T2. Lesões do tipo

AB

B

A

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IV são mais bem visualizadas com seqüências de gradiente-echo como focos múltiplos de hipointensidade de sinal,sendo pouco visualizadas em T1 e T2.

A RM é o método de escolha para acompanhamento depacientes com cavernomas e para avaliação de membrosde famílias com suspeita de cavernoma familiar. No entantoo exame não parece ser de muita utilidade para previsão defuturos sangramentos7.

As opções terapêuticas variam desde um acompanha-mento expectante até cirurgias para ressecção radical daslesões. Pacientes assintomáticos com lesões únicas oumúltiplas, na ausência de déficit neurológico, apresentam umrisco baixo de ocorrência de uma primeira hemorragia debi-litante. Não existem evidências suficientes que suportem umtratamento agressivo neste grupo, quer seja em caso de lesãoesporádica ou familiar. Em algumas situações especiais, porexemplo, em pacientes muito jovens, com lesões facilmenteacessíveis, existe a opção do tratamento cirúrgico prima-riamente, uma vez que o risco cumulativo é grande8.

O tratamento cirúrgico deve ser considerado para todasas lesões com déficit focal ou hemorragias. Mesmo algumaslesões de difícil acesso, mas com deterioração neurológicaprogressiva ou hemorragias de repetição, devem seroperadas, mesmo que localizadas em situações anatômicasdesfavoráveis, como os núcleos da base ou tronco cerebral.

O prognóstico geral dos cavernomas não é conhecido,mas o risco de hemorragia com significativa repercussãoclínica é menor que o de malformações arteriovenosas. Aressecção completa de lesões únicas representa na maioriadas vezes a cura completa.

O risco de morbi-mortalidade com a cirurgia é clara-mente determinado pela acessibilidade cirúrgica da lesão9.A mortalidade é maior nos casos de lesões acometendo otronco cerebral, variando de 0% nas lesões mais superficiaisa 20% em lesões localizadas profundamente no SNC.Alguma deterioração neurológica pós-operatória ocorre em20% a 40%, sendo na maioria das vezes transitória. A mor-bidade total final gira em torno de 20%10.

A utilização da tecnologia de cirurgia guiada por imageme a possibilidade de realização da neuronavegação com injeçãode imagem na binocular do microscópio cirúrgico repre-sentam os mais modernos recursos disponíveis para arealização de tais procedimentos, e podem ser consideradoso state of the art na neurocirurgia neste início do séculoXXI. A assimilação de dados dos exames neurorradiológicose sua utilização na prática neurocirúrgica permitem não sóuma maior precisão na localização de lesões intraparen-quimatosas, como também a realização de acessos cirúrgicosmenores, perfeita escolha do ponto de entrada e trajeto, comisso reduzindo o tempo total de realização do procedimento.Esse novo paradigma neurocirúrgico, que faz parte doconjunto denominado cirurgia minimamente invasiva,representa expansão dos objetivos e capacidades da neuro-

cirurgia de incorporar avanços tecnológicos, minimizandocom isso riscos e morbidade de cirurgias11.

Conclusões

Angiomas cavernosos são lesões benignas, mas comrisco de produzirem seqüelas neurológicas por hemorragiaintraparenquimatosa.

A excisão cirúrgica completa de lesões que evoluem comdéficit neurológico ou hemorragias de repetição é recomen-dada, mesmo em localizações anatômicas pouco favoráveis.

A utilização de recursos de neuronavegação facilita otratamento dessas lesões, especialmente nas localizaçõesmais profundas.

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Endereço para correspondência:Luiz Roberto AguiarServiço de NeurocirurgiaAv. São José, 300CEP 80050-350 – Curitiba, PR

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