CRAS - Convivência e Fortalecimento de Vínculos

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  • EXPEDIENTE

    PRESIDENTA DA REPBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DILMA ROUSSEFF VICE-PRESIDENTE DA REPBLICA FEDERATIVA DO BRASIL MICHEL TEMER MINISTRA DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE FOME TEREZA CAMPELLO SECRETRIO EXECUTIVO MARCELO CARDONA ROCHASECRETRIA NACIONAL DE ASSISTNCIA SOCIAL DENISE RATMANN ARRUDA COLIN SECRETRIO NACIONAL DE SEGURANA ALIMENTAR E NUTRICIONAL ARNOLDO ANACLETO DE SANTOSSECRETRIO NACIONAL DE RENDA DE CIDADANIA LUS HENRIQUE DA SILVA DE PAIVASECRETRIO NACIONAL DE AVALIAO E GESTO DA INFORMAO PAULO DE MARTINO JANNUZZI SECRETRIO EXTRAORDINRIO DE SUPERAO DA EXTREMA POBREZA TIAGO FALCO SILVA

    SECRETARIA NACIONAL DE ASSISTNCIA SOCIAL SECRETRIA ADJUNTA VALRIA MARIA DE MASSARANI GONELLIGONELLI DIRETORA DE GESTO DO SISTEMA NICO DE ASSISTNCIA SOCIAL SIMONE APARECIDA ALBUQUERQUE DIRETORA DE PROTEO SOCIAL BSICA La LUcia Ceclio BragaDIRETORA DE PROTEO SOCIAL ESPECIAL TELMA MARANHO GOMES DIRETORA DE BENEFCIOS ASSISTENCIAIS MARIA JOS DE FREITAS DIRETORA DA REDE SOCIOASSISTENCIAL PRIVADA DO SUAS CAROLINA GABAS STUCHI

    DIRETOR EXECUTIVO DO FUNDO NACIONAL DE ASSISTNCIA SOCIAL ANTONIO JOS GONALVES HENRIQUES

  • CRDITOS

    COORDENAO Coordenao-Geral de Servios de Convivncia e Fortalecimento de Vnculos

    ELABORAO

    PESQUISA, ELABORAO E REDAO

    Abigail Silvestre TorresMaria Julia Azevedo Gouveia

    SUPERVISO Adriana Pereira Silva

    COLABORAO TCNICA Ediane Pereira Dias Emanuella de Carvalho LuzJuliana Garcia Peres Murad Lucia Helena Nilson (She Nilson) Maria Carolina Pereira AlvesRita de Cssia Alves de AbreuSara Espindola EletoStela da Silva Ferreira

    CONTRIBUIES

    Essa publicao foi elaborada a partir da colaborao de muitas pessoas que se colocaram disposio para o encontro e para o dilogo sobre a convivncia e fortalecimento de vnculos na poltica de assistncia social. Profissionais com fortes vnculos orgnicos e de cidadania com essa poltica social que afetaram de forma determinante os resultados aqui apresentados; a todas eles o agradecimento da equipe diretamente responsvel pela sistematizao das contribuies:

    GABINETE DA SECRETARIA NACIONAL DE ASSISTNCIA SOCIAL DEPARTAMENTO DE PROTEO SOCIAL ESPECIAL DEPARTAMENTO DE GESTO DO SISTEMA NICO DE ASSISTNCIA SOCIAL DEPARTAMENTO DA REDE SOCIOASSISTENCIAL PRIVADA DO SUAS DEPARTAMENTO DE BENEFCIOS ASSISTENCIAIS

    Especialistas Entrevistadas:Aldaza SposatiAna Lgia GomesCarla BronzoDenise ColinDirce KogaMrcia LopesSimone Albuquerque

    O material aqui sistematizado fruto de pesquisa exploratria realizada no primeiro trimestre de 2012 que utilizou fontes distintas: entrevista com especialistas, grupos focais, anlise de material de referncia e orientao produzido no mbito do MDS, levantamento de teses e dissertaes vinculadas ao tema e visitas tcnicas ao Centro Intergeracional Zo Gueiros Prefeitura de Belm PA, ao CRAS Alterosa e CRAS Vila Recreio Prefeitura de Betim MG e ao Centro de convivnciaRiacho Fundo I Governo do Distrito Federal - DF.

    IlustraoIvo Minkovicius

    Projeto Grfico e EditoraoRafael Lampert Zart

  • Sumrio

  • Apresentao

    com grande sati sfao que disponibilizamos ao pas o Caderno Concepo de Convivncia e Fortalecimento de Vnculos. Fruto de uma pesquisa exploratria apoiada em diferentes fontes, a presente publicao desti nada a gestores e trabalhadores do Sistema nico de Assistncia Social SUAS e s redes de arti culao da proteo social bsica nos territrios, alm de rgos de controle.

    A proviso das seguranas socioassistenciais pressupem que as ofertas disponibilizadas pelo SUAS contribuam para o desenvolvimento das capacidades e autonomia dos usurios, o fortalecimento das relaes no mbito da famlia e da comunidade e a ampliao do acesso a direitos socioassistenciais e das redes de relacionamento no territrio onde vivem e convivem.

    Por essa razo, este material aborda a concepo de convivncia e fortalecimento de vnculos, temas to caros Assistncia Social. A expectati va que seu contedo possa provocar a refl exo e apoiar profi ssionais e gestores no desenvolvimento de prti cas mais qualifi cadas e parti cipati vas nas mais diversas localidades deste pas to diverso de dimenso conti nental.

    Que as prti cas no SUAS sejam sempre combati vas aos processos de isolamento, de excluso e de discriminao e sejam sempre pautadas pela conduta ti ca, pela perspecti va da incluso, da parti cipao social e da promoo do acesso a direitos de cidadania da populao brasileira!

    Boa Leitura!

    Denise Colin

    Secretria Nacional de Assistncia Social

    Apresentao

  • 9Segurana de Convvio na Proteo Social

    [...] hoje se v que o movimento se de ne cada vez menos a parti r de um ponto de alavanca. [...] O fundamental como se fazer aceitar pelo movimento de uma grande vaga, de uma coluna de ar ascendente, chegar entre em vez de ser origem de um esforo.

    Gilles Deleuze

    Este texto pretende confi gurar uma concepo de convivncia e fortalecimento de vnculos que possa ser fonte de dilogo para as diversas aes no campo da proteo social de assistncia social e orientadora para o servio de convivncia e fortalecimento de vnculos do Sistema nico de Assistncia Social - SUAS.

    Para tanto, o leitor convidado a fazer um pequeno recuo e retomar a compreenso afi rmada na Polti ca Nacional de Assistncia Social: A proteo social bsica tem como objeti vos prevenir situaes de risco [...]. (PNAS, 2004, p.32). Sendo assim, abre-se uma questo para a atuao profi ssional e de gesto: Quais as situaes de risco, perigo, incertezas que precisam ser prevenidas, impedidas de acontecer? Ou seja, quais situaes precisam ser antecipadas em suas consequncias negati vas, exigindo que os envolvidos possam preparar-se para enfrent-las?t

    Ao confi gurar a concepo de convivncia, o contedo deste texto pretende contribuir para uma defi nio mais clara dessas situaes, tomando por referncia o entendimento do que se pde alcanar coleti vamente at o momento. Desse modo, poder orientar a atuao profi ssional e de gesto no mbito do Sistema nico de Assistncia Social - SUAS, uma vez que a Polti ca Nacional de Assistncia Social - PNAS defi ne que se pode prevenir vulnerabilidades e riscos sociais:[...] por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisies, e o fortalecimento de vnculos familiares e comunitrios. (Idem, p.38)

    Tal defi nio supe que a gesto da polti ca de assistncia social precisa realizar aes que permitam ao usurio apropriar-se, ou por em prti ca, uma capacidade de realizao pessoal e social; e tambm torne mais fortes suas relaes no mbito da famlia, da vizinhana e das associaes coleti vas de representao de

    seus interesses, o que o torna conhecido e (re)conhecido nos seus lugares de vivncia, circulao e atuao pblica. Assim, a delimitao do pblico a que se desti na a Proteo Social Bsica caracteriza dois grupos que estariam em situao de vulnerabilidade social: aqueles que esto em condies precrias ou privados de renda e sem acesso aos servios pblicos (dimenso material da vulnerabilidade) e aqueles cujas caractersti cas sociais e culturais (diferenas) so desvalorizadas ou discriminadas negati vamente(dimenso relacional da vulnerabilidade).

    A Poltica Nacional de Assistncia Social assim configura o pblico a quem se destina a Proteo Social Bsica:

    A Polti ca Nacional de Assistncia Social - PNASreconhece que a Proteo Social Bsica desti na-se queles que esto em situao de vulnerabilidade social.

    Segurana de Convvio na Proteo Social

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    Destina-se populao que vive em situao de vulnerabilidade social decorrente da pobreza, privao (ausncia de renda, precrio ou nulo acesso aos servios pblicos, dentre outros) e, ou, fragilizao de vnculos afetivos - relacionais e de pertencimento social (discriminaes etrias, tnicas, de gnero ou por deficincias, dentre outras). (PNAS, 2004, p.33).

    No Sistema nico de Assistncia Social SUAS a Proteo Social Bsica opera garantindo seguranas de convvio, acolhida e sobrevivncia, ou seja, evitando, prevenindo riscos sociais, perigos eincertezas para grupos vulnerveis tanto do ponto de vista material, quanto do ponto de vista relacional.

    O contedo desenvolvido neste texto tem como foco a segurana de convvio:

    A segurana da vivncia familiar ou a segurana do convvio (...) supe a no aceitao de situaes de recluso, de situaes de perda das relaes. (...) A dimenso societria da vida desenvolve potencialidades, subjetividades coletivas, construes culturais, polticas e, sobretudo, os processos civilizatrios. As barreiras relacionais criadas por questes individuais, grupais, sociais por discriminao ou mltiplas inaceitaes ou intolerncias esto no campo do convvio humano. A dimenso multicultural, intergeracional, interterritoriais, intersubjetivas, entre outras, devem ser ressaltadas na perspectiva do direito ao convvio. (PNAS, 2004, p. 26).

    A dimenso relacional posta no direito ao convvio assegurada ao longo do ciclo de vida por meio de um conjunto de servios locais que visam convivncia, a socializao e o acolhimento em famlias cujos vnculos familiares e comunitrios no foram rompidos.(Idem, p.30).

    H, portanto, um elemento inovador na proteo social de assistncia social trazido pelo reconhecimento de situaes de desproteo social, cujo impacto maior entre pessoas ou grupos familiares que apresentam caractersticas socialmente desvalorizadas e discriminadas de forma negativa (deficincia, etnia, religio, orientao sexual, situao civil, etc.), agravadas por condies precrias de vida, pela privao de renda ou de acesso aos servios pblicos. Portanto, eliminar/minimizar situaes de privao material e discriminao negativa requer servios continuados, capazes de desenvolver potencialidades e assegurar aquisies, alm de fortalecer vnculos familiares e vnculos sociais mais amplos necessrios ao exerccio de cidadania. Tais servios so concretizados por uma rede de atores pblicos (integrantes da rede socioassistencial) que materializam ofertas socioeducativas, ldicas e socioculturais, que atendam as diferentes necessidades de convivncia prprias a cada momento do ciclo de vida. Assim, recorta-se a especificidade da proteo social de assistncia social no que diz respeito sua responsabilidade em relao a: 1) compreender os processos sociais e os mecanismos institucionais que produzem riscos sociais que tornam cidados e suas famlias desprotegidos e 2) em assegurar servios que garantam convivncia e fortalecimento de vnculos. Desse modo, explicita-se que a assistncia social est no campo societrio e, como tal, so os riscos sociais, advindos dos processos de convvio, de insustentabilidade de vnculos sociais que se colocam dentre suas responsabilidades.Em

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    outras palavras, sempre que as precariedades do lugar e da situao vivida afetar pessoas, famlias ou grupos sociais produzindo sofrimento tico poltico1, caber uma ao da poltica no sentido de possibilitar que a situao seja enfrentada num campo de responsabilidade pblica e coletiva, porque estar protegido significa ter foras prprias ou de terceiros, que impeam que alguma agresso/precarizao/privao venha a ocorrer, deteriorando uma dada condio. (SPOSATI, 2007, p. 42).

    1 Sofrimento tico-poltico a denominao que os estudos da Dra. BaderSawaia atribuem aquele provocado pelo reconhecimento negativo/desvalorizado que se faz de uma pessoa, ou seja, as diferenas so vividas como desigualdades.

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    Heranas e Legados

    A arte de viver simplesmente a arte de conviver... simplesmente, disse eu? Mas como difcil!

    Mario Quintana

    O compromisso assumido no combate a situaes que tornam as pessoas e grupos sociais mais vulnerveis do ponto de vista relacional, uma importante inovao no campo da Assistncia Social, sobretudo numa perspecti va antecipatria ao agravamento de tais situaes.

    Para compreender esse trao inovador necessrio reconhecer uma tradio no trabalho social com famlias onde predominaram palestras educati vas de orientao, associadas a ati vidades manuais com vistas produo de mercadorias2que, uma vez comercializadas, poderiam gerar renda3 s famlias. Assim, o trabalho social assumia mais uma caractersti ca de integrao social tanto pela via do disciplinamento de comportamentos, quanto pela frgil e precria insero no mundo produti vo. Conhecida como uma matriz de polcia das famlias, tal concepo herdada pela polti ca de assistncia social das prti cas tutelares e de benemerncia, expressam uma educao enquadradora e controladora, que buscava incuti r nas classes trabalhadoras os valores e modos de vida das elites. Um exemplo ilustrati vo dessas prti cas foram os grupos de mes:

    Os grupos de mes intensamente desenvolvidos no trabalho das enti dades sociais consti tuam-se sob ssa ti ca, do ensinar a ser me, habilitar no tric e no croch como forma de sobrevivncia e emancipao, exigir presena, porque ali se encontrava a possibilidade de superao da situao de excluso e pobreza experimentadas. (MDS, 2009, p.42).

    E no caso de crianas, adolescentes e idosos, esse trabalho era caracterizado pela oferta de ati vidades culturais, esporti vas e recreati vas desconectadas e desarti culadas, justi fi cadas como necessidade de ocupao do tempo.

    Para alm dessa tradio, identi fi ca-se mais recentemente a oferta de benef cios frequentemente desarti culados em relao aos servios socioassistenciais. Mostra-se, portanto, uma polti ca que possui pouca tradio em aes preventi vas e antecipatrias a situaes de risco social que produzem vulnerabilidades. Confronta-se a perspecti va de alargar essa concepo com uma tendncia a entender a proteo social como algo que possa ser comprada no mercado, o que por consequncia restringe as desprotees a ter ou no poder de compra, renda. Essatendncia, conformou uma imagem externa da polti ca de assistncia social quase que sinnimo

    2 Essas ati vidades podem ser uti lizadas como uma estratgia do trabalho social para o fortalecimento de vnculos e da convivncia3 Esta no a funo da assistncia social. As aes de gerao de renda para as famlias devem ser encaminhado a outras polti cas pblicas, associati vismo, etc.

    Grupos familiares que apresentam caractersticas socialmente desvalo-rizadas e discriminadas de forma ne-gativa so agravadas por condies precrias de vida.

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    de transferncia financeira (Programa Bolsa Famlia, Benefcio de Prestao Continuada, dentre outros). Tal imagem est presente na populao, nos meios de comunicao, em alguns centros de pesquisa e at mesmo na concepo de alguns profissionais da rea.

    Da a importncia de se destacar o carter inovador da Proteo Social Bsica no mbito da Assistncia Social. Esta perspectiva de proteo social

    (...) exige forte mudana na organizao das atenes, pois implica em superar a concepo de que se atua nas situaes s depois de instaladas, isto , depois que ocorre uma desproteo. O termo desproteo destaca o usual sentido de aes emergenciais, historicamente atribudo e operado no campo da assistncia social. A proteo exige que se desenvolvam aes preventivas. (SPOSATI, 2009, p. 21).

    Segundo a Poltica Nacional de Assistncia Social/2004, a Assistncia Social uma poltica de proteo social e

    (...) deve garantir trs tipos de segurana: i) segurana de sobrevivncia4; ii) segurana de acolhida; e iii) segurana de convvio. A segurana de sobrevivncia refere-se garantia de uma renda monetria mnima que assegure a sobrevivncia de populaes que encontrem limitaes de rendimento ou de autonomia. o caso de pessoas com deficincia, idosos, desempregados e famlias numerosas ou sem garantia de condies bsicas de vida. A segurana de acolhida diz respeito garantia de provises bsicas, em especial aquelas que se referem aos direitos de alimentao, vesturio e abrigo. Alguns indivduos, em razo de idade, deficincia, situaes de violncia familiar ou social, abandono, alcoolismo, entre outras situaes, podem demandar acolhida. A terceira segurana est relacionada vivncia ou ao convvio familiar.(IPEA, 2005, p. 32).

    A discusso sobre as provises de renda e acolhida foram mais facilmente compreendidas pelos profissionais, gestores, usurios e especialistas. Contudo, a segurana de convivncia tem tido maior dificuldade de entendimento e apropriao por se tratar de um contedo novo no escopo da proteo social de assistncia social. As formulaes existentes nos documentos normativos e de orientao tcnica ainda no foram totalmente compreendidas e incorporados nas intervenes dos agentes do SUASe exigem inclusive maior dilogo para explicitao coletiva sobre a direo que se quer assegurar. Em outras palavras, o que antes parecia consenso, hoje so questes cujo entendimento no foi plenamente partilhado.

    Cabe ressaltar que a segurana de convvio direito reconhecido no Estatuto da Criana e do Adolescente, no Estatuto do Idoso e mais recentemente na Lei 12.435/2011, que atualizou a redao da LOAS, Lei 8.742/1993, luz das regulamentaes do SUAS. Essa garantia legal tem uma relevncia histrica singular, visto que refora a perspectiva de no institucionalizao. Indica a superao, ainda que de natureza normativa, da concepo de confinamento e isolamento como resposta s situaes de anormalidade referidas pobreza de famlias e indivduos (crianas e adolescentes abandonados, autores de ato infracional, idosos, pessoas com deficincia, doentes fsicos e mentais), muito frequente como a face mais autoritria da polcia de famlias no Brasil.

    4 Na segurana de sobrevivncia assegurado sustento aos idosos e pessoas com deficincia na poltica de assistncia social por meio do Benefcio de Prestao Continuada (BPC) e s pessoas e famlias em situao de emergncia e vitimas de calamidade por meio dos benefcios eventuais.

    O carter inovador da Proteo Social Bsica no mbito da Assistncia Social.

    Heranas e Legados

    A arte de viver simplesmente a arte de conviver... simplesmente, disse eu?Mas como difcil!

    Mario Quintana

    O compromisso assumido no combate a situaes que tornam as pessoas e grupos sociais mais vulnerveis do ponto de vista relacional, uma importante inovao no campo da Assistncia Social, sobretudo numa perspectiva antecipatria ao agravamento de tais situaes.

    Para compreender esse trao inovador necessrio reconhecer uma tradio no trabalho social com famlias onde predominaram palestras educativas de orientao, associadas a atividades manuais com vistas produo de mercadorias2que, uma vez comercializadas, poderiam gerar renda3 s famlias. Assim, o trabalho social assumia mais uma caracterstica de integrao social tanto pela via do disciplinamento de comportamentos, quanto pela frgil e precria insero no mundo produtivo. Conhecida como uma matriz de polcia das famlias, tal concepo herdada pela poltica de assistncia social das prticas tutelares e de benemerncia, expressam uma educao enquadradora e controladora, que buscava incutir nas classes trabalhadoras os valores e modos de vida das elites. Um exemplo ilustrativo dessas prticas foram os grupos de mes:

    Os grupos de mes intensamente desenvolvidos no trabalho das entidades sociais constituam-se sob ssa tica, do ensinar a ser me, habilitar no tric e no croch como formade sobrevivncia e emancipao, exigir presena, porque ali se encontrava a possibilidade desuperao da situao de excluso e pobreza experimentadas. (MDS, 2009, p.42).

    E no caso de crianas, adolescentes e idosos, esse trabalho era caracterizado pela oferta deatividades culturais, esportivas e recreativas desconectadas e desarticuladas, justificadascomo necessidade de ocupao do tempo.

    Para alm dessa tradio, identifica-se mais recentemente a oferta de benefcios frequentemente desarticulados em relao aos servios socioassistenciais. Mostra-se, portanto, uma poltica que possui pouca tradio em aes preventivas e antecipatrias a situaes de risco social que produzem vulnerabilidades. Confronta-se a perspectiva de alargar essa concepo com uma tendncia a entender a proteo social como algo que possa ser comprada no mercado, o que por consequncia restringe as desprotees a ter ou no poder de compra, renda. Essa tendncia, conformou uma imagem externa da poltica de assistncia social quase que sinnimo

    2 Essas atividades podem ser utilizadas como uma estratgia do trabalho social para o fortalecimento de vnculos e da convivncia3 Esta no a funo da assistncia social. As aes de gerao de renda para as famlias devem ser encaminhado a outras polticas pblicas, associativismo, etc.

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    Ressalte-se ainda que a declarao do direito, especialmente no mbito do direito social, insuficiente para assegurar sua efetividade, pois isso exige medidas que garantam a vivncia do direito.

    A luta por direitos est longe de se ter esgotado ou de ter encontrado um ritmo regular. Paralelamente reiterao jurdico-formal dos direitos, continuam a se multiplicar as situaes de desrespeito, preconceito, excluso e indiferena, assim como continuam a se prolongar as situaes de marginalidade, desproteo e arbtrio. (NOGUEIRA, 2005, p.3).

    Por isso, necessrio aprofundar o debate para alm da discusso sobre a no institucionalizao, posto que as respostas a serem providas pela segurana de convvio se estendem em diferentes mbitos: nos territrios vividos, no interior das famlias, nos servios pblicos, enfim em distintos lugares em que as relaes sociais se fortalecem ou se fragilizam. Nesses diferentes espaos, que Dirce Koga (KOGA, 2012) denominou como territrios vividos, necessrio conhecer as diferentes formas de vivncia que l ocorrem. Ao ampliar o foco, trazendo a perspectiva do territrio, possvel observar como as relaes se do e como se expressam, pois por vezes trata-se de convivncias que desprotegem e tornam as pessoas mais vulnerveis.

    H convergncias nas reflexes de especialistas consultados5 para esta produo, especialmente ao considerar a pertinncia da discusso sobre convivncia e fortalecimento de vnculos e a oportunidade de faz-la, visto o momento de consolidao do sistema.

    Um dos pontos identificados como relevante a necessidade de deslocamento do entendimento do trabalho social do campo temtico para o campo conceitual-metodolgico. Os conceitos

    servem para entender o trabalho, e tambm para fazer funcionar a ao. Nessesentido compem a abordagem e a atitudeinstitucional. Fala-se, portanto, de um deslocamento de prticas que passam de:

    Uma situao em que o trabalho social se caracteriza pela definio de tema comuma todos os usurios (esporte, cultura, lazer, artesanato, reciclagem) com abordagem e estilo pessoal (de quem faz) orientado por processos de formao, focado no desempenho individual.

    Para uma situao em que:

    O tema identificado no contexto com o usurio, a abordagem tem uma refernciaterico-metodolgica e o estilo orientado por uma tica definida no campo de responsabilidade da produo coletiva de uma equipe. A finalidade o engajamento do usurio na gesto dos servios como experincia de construo conjunta. Prticas democrticas, participativas e inclusivas potencializam esta premissa, alm de induzir prticas interdisciplinares na execuo dos servios.

    A dimenso de autonomia dos sujeitos aqui entendida como uma capacidade de lidar com sua rede de dependncias, de eleger objetivos e crenas, atribuir-lhes valor com discernimento e coloc-los em prtica com a participao e apoio de outros. Assim, autonomia sempre uma

    5 Foram entrevistadas para essa produo: Aldaza Sposati, Ana Lgia Gomes, Carla Bronzo, Denise Collin, Dirce Koga, Lcia Helena Nilson, Mrcia Lopes, Rosemary Ferreira, Simone Albuquerque, Stela Ferreira, e Tarcsia de Gois Vieira.

    A Proteo Social Bsica no mbito da Assistncia Social afirma uma inovao.

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    dimenso relativa e depende do acesso dos sujeitos informao, de sua capacidade de utilizar esse conhecimento em exerccio crtico de interpretao. Dito de outra forma, autonomia pode ser expressa pela maior capacidade dos sujeitos de compreenderem e agirem sobre si mesmos e sobre o contexto conforme objetivos democraticamente estabelecidos. (CAMPOS & CAMPOS, 2006, p.670)

    Assim, o legado do trabalho social a experincia da produo coletiva sinnimo de autonomia interdependente. nesse ambiente que a discusso e formulao de uma concepo de convivncia e fortalecimento de vnculos se anuncia e ganha sentido de pertinncia, indicando desafios no atual momento de consolidao do SUAS. Esse desafio, por sua vez, contribui com a sedimentao do entendimento de que lidar com vulnerabilidades do campo relacional uma responsabilidade pblica, que ainda enfrenta tenses com a mediao do favor e da benemerncia (do primeiro damismo) que historicamente lhe antecederam.

    A perspectiva de proteo que pretende minimizar ou eliminar as situaes de vulnerabilidade social vivenciadas pelas pessoas, famlias e grupos sociais traz a centralidade da proteo e desenvolvimento da vida humana. Esta afirmao, sem dvida, divergente das teorias de mercado que avaliam toda e qualquer forma de proteo como incentivo acomodao, dependncia, num suposto de que o mero acesso renda sinnimo de autonomia, ou que automaticamente institui uma condio de igualdade diante do mercado. Este entendimento indica a distncia que esta concepo quer configurar em relao a uma posioconservadora. Nas palavras de Sposati:

    Sob o entendimento da hegemonia econmica neoliberal, os programas sociais so geridos pelo princpio da alta rotatividade, deslocando-se para o indivduo a responsabilidade em superar riscos sociais. Sob este princpio, no so geradas garantias sociais, mas permanncias de acesso como se fossem vistos temporrios para o mundo da proteo social. Quando no temporrios, a condio da garantia social to rebaixada em seu alcance e padro de qualidade que no consegue afianar autonomia ou segurana aos cidados que so seus usurios. (SPOSATI, 2002, p.3).

    Por outro lado, indica a proximidade com o reconhecimento do outro como sujeito de direitos, capaz de manifestar interesse e participar de decises e suas consequncias para a interveno da poltica. Reconhecer a demanda de proteo, da pessoa reconhecida como sujeito de direito, implica um movimento complexo, construdo em longos anos de histria, pelo qual situaes dantes pouco visveis passam a ocupar um lugar na cena pblica e a exigir respostas coletivas.

    A convocao do direito proteo social como condio de cidadania central na Poltica Nacional de Assistncia Social (PNAS/2004), segundo a qual a proteo social no contributiva implica na oferta de um conjunto de servios, programas, projetos e benefcios capazes de prover meios e

    situaes a partir de uma viso social capaz de entender que a populao tem necessidades, mas tambm possibilidades ou capacidades que devem e podem ser desenvolvidas. Assim, uma anlise de situao no pode ser s das ausncias, mas tambm das presenas at mesmo como desejos em superar a situao atual(PNAS, 2004, p.45). As consequncias desta afirmao para alm da sua fora declaratria exigem o uso de categorias analticas prprias ao seu carter pblico, o que incide num ponto nevrlgico da sociedade brasileira, a saber, a possibilidade de igualdade afirmada pela lgica dos direitos:

    A Poltica Nacional de Assistncia Social e suas Normas Operacionais orientam um deslocamento de paradigma em re-lao tradio do trabalho social.

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    No horizonte da cidadania, a questo social se redefine e o pobre, a rigor, deixa de existir. Sob o risco do exagero, diria que a pobreza e a cidadania so categorias antinmicas. Radicalizando o argumento, diria que, na tica da cidadania, pobre e pobreza no existem. O que existe, isso sim, so indivduos e grupos sociais em situaes particulares de denegao de direitos. uma outra figurao da questo social, que pe em cena a ordem das causalidades identificveis e que armam, ao menos virtualmente, arenas distintas de representao e reivindicao, de interlocuo pblica e negociao entre atores sociais e entre a sociedade e Estado. (TELLES, 2001, p. 51).

    Telles (2003) entende que o reconhecimento do direito reposiciona as relaes na sociedade. A pesquisadora Stela Ferreira (FERREIRA, 2012) explicita este impacto no trabalho social, considerando que a cultura da ddiva e da ateno como um favor produz o imobilismo do outro, visto que ao que dado no cabe reclamao. No entanto, quando publicamente se reconhece um direito, h um reposicionamento nas relaes e na ateno quela dada questo, que agora adquire outra visibilidade. Ressalta que o direito se expressa por meio da prtica cotidiana dos profissionais, pois o discurso do direito ganha concretude nessa ateno.Logo, a alterao das prticas que consolida os direitos em sua garantia e exigibilidade.

    Esse reposicionamento estabelece medidas de igualdade entre os trabalhadores e a populao, pois necessrio que os trabalhadores reconheam que esto a servio do direito do outro e que os conhecimentos que dispem no so hierarquicamente mais importantes que os conhecimentos de vida trazidos pelos usurios. Assim, h uma medida de igualdade entre esses saberes, portanto o discurso do usurio to legtimo quanto o do profissional.

    (...) A est tambm o lado mais importante dos direitos, quando vistos pelo prisma dos sujeitos falantes que se apresentam na cena pblica. Essa presena desestabiliza consensos estabelecidos e permite alargar o mundo comum, fazendo circular na cena pblica outras referncias, outros valores, outras realidades, que antes ficavam ocultados ou ento eram considerados irrelevantes e desimportantes para a vida em sociedade. (TELLES, 2003, p.69)

    As vulnerabilidades relacionais so-matria de interveno para garantir a segurana de convvio, um aspecto da proteo social.

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    Convivncia e Fortalecimento de Vnculos

    Uns quinhentos anos antes da era crist aconteceu, na Magna Grcia, a melhor coisa registrada na histria universal: a descoberta do dilogo. Alguns gregos contraram, nunca saberemos como, o singular costume de conversar... Duvidaram, persuadiram, discordaram, mudaram de opinio, adiaram... Sem esses poucos gregos conversadores, a cultura ocidental inconcebvel.

    Jorge Luis Borges

    A confi gurao do tema deste texto parte da premissa de que a orientao das polti cas pblicas pauta-se no conhecimento acadmico-cient fi co e, dado o enfoque programti co aqui posto, interessa tambm reconhecer as experincias concretas dos municpios nos quais o SUAS vem se consolidando nos lti mos anos. Essas experincias, especialmente de implementao de servios socioassistenciais, tm procurado efeti var a direo do SUAS, construindo respostas de coleti vos de profi ssionais, e tambm de gestores para lidar com os desafi os que se pem em realidades to diversas como se tem no Brasil. Por isso, combina-se aqui um conjunto de elementos, tanto de formulaes tericas quanto de estudos empricos.

    Como ponto de parti da prope-se o entendimento de convivncia e vnculos como um atributo da condio humana e da vida moderna, que se d entre sujeitos de direito que se consti tuem a medida que se relacionam. Essa uma questo que mereceu estudos em vrias reas do conhecimento, como antropologia, sociologia, servio social, fi losofi a e psicologia6.

    Convivncia, vnculo e poder: experimentar a igualdade

    Tomando a produo de Vigostsky7 como uma referncia, pode-se afi rmar que entender o mundo e atuar sobre ele possvel somente por meio de relaes sociais. Ou seja, o sujeito se consti tui na relao com o outro e passa a dispor, por meio dessa relao, das

    conexes estabelecidas por outras pessoas tendo-as tambm como referncia e contribuio para o coleti vo. Assim, so relevantes as formas de interveno que promovem encontros que afetam as pessoas, mobilizando-as e provocando transformaes. No mesmo senti do, importante destacar a relevncia do contexto histrico nessa construo, pois as condies

    6 Pode-se indicar que a ampla bibliografi a pesquisada para esta consultoria seja sempre referida aos documentos que acompanham a publicao deste produto.7 Esse grande terico (1896-1934) um crtico de arte e advogado que, insatisfeito com as teorias formalistas e sociolgicas, buscou a Psicologia para compreender a criatividade artstica e sua permanncia na histria da humanidade, apesar das poderosas determinaes sociais bloqueadoras. Encontra uma Psicologia em crise, que no lhe fornece respostas, afogada em falsos confrontos entre teorias que reduzem a questo psicolgica a apenas uma das dimenses que a constitui o inconsciente, a conscincia, o comportamento ou a cognio , como se o homem de cada uma dessas teorias fosse diferente daquele estudado pelas demais. Inconformado, vai buscar na dialtica de Marx e na fi losofi a monista de Espinosa orientao para esses antagonismos retalhadores do homem. (SAWAIA, 2009, p. 365).

    O combate a desigualdades e a pro-moo do desenvolvimento humano so aes que configuram a defesa da vida na dimenso social e tica.

    Convivncia e Fortalecimento de Vnculos

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    objetivas da vida interferem diretamente na forma como as pessoas se constituiro como sujeitos sociais, ou seja, nas escolhas que faro ao produzir e reproduzir a vida social.

    Nesta perspectiva, o educador Paulo Freire agregou o entendimento de que no processo coletivo, em mutualidade, que se aprendem diferentes saberes igualmente importantes. Fazendo uma transposio do campo educativo para o trabalho social, a contribuio de Paulo Freire permite sustentar a possibilidade de reconhecer o mesmo valor para os conhecimentos acadmicos e para a experincia vivida, quando ambos so colocados diante da finalidade do aprendizado e da proteo do cidado. Desse modo preciso reconhecer que nas relaes educativas e de proteo social, usurios e profissionais so sujeitos de conhecimentos e de direitos.

    Uma das tarefas mais importantes da prtica educativa-crtica propiciar as condies em que os educandos em suas relaes uns com os outros e todos com o professor ou professora ensaiam a experincia profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histrico como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. [...] A assuno de ns mesmos no significa a excluso dos outros. a outredade do no eu, do tu, que me faz assumir a radicalidade de meu eu. (FREIRE, 2002,p. 41)

    Assumir-se tem a fora de mobilizar atributos para a construo coletiva de suas prprias identidades e singularidades. Pressupe o reconhecimento da capacidade e do direito do outro de fazer escolhas. Ser capaz de fazer escolhas pessoais, polticas, afetivas, requer um campo relacional protegido, que confirme as pessoas no leme de sua prpria vida, pessoas que pensam, desejam e projetam horizontes para si e para aqueles que esto prximos. Em sntese, pode-se dizer que este um trao eminentemente poltico da convivncia: poder experimentar uma condio de igualdade para poder projetar com o outro, mudanas para si e para a coletividade.

    Convivncia, vnculo e afeto: experimentar a sensibilidade e a criatividade

    At aqui se delineou uma convivncia entre sujeitos de direitos que se constituem medida em que se relacionam, capazes de escolha e de autonomia e de aprenderem entre si. Neste percurso de entendimento, outros elementos a serem destacados so: estes sujeitos se constituem na diferena e so capazes de afetarem-se mutuamente.

    A capacidade de afetar e ser afetado pode ser dita analogamente como poder deixar marcas no outro e ter marcas do outro em si. Trata-se de uma formulao da filosofia de Espinosa, apropriada pela psicologia social na produo da pesquisadora BaderSawaia (2003, 2004, 2009). Afetar e ser afetado so efeitos inerentes aos encontros entre as pessoas. Esses encontros podem favorecer a expanso da vida, o sentimento de valorizao, estimular a ao para mudanas; ou podem gerar subordinao, desqualificao, reduo de vida, desumanizao. Assim, sentimento e capacidade para agir so, nessa matriz de pensamento, inseparveis. Poder-se-ia dizer que sentimentos de valorizao e de potncia esto para fortalecimento

    As vulnerabilidades relacionais po-dem ser de diversas naturezas. So descritas como vulnerabilidades por reduzirem capacidades humanas e colocarem os sujeitos na condio de demandantes de proteo social.

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    de vnculos, assim como os sentimentos de subordinao e impotncia esto para o isolamento social e fragilizao de vnculos.

    Nos encontros que expandem e fortalecem as pessoas, estabelecem-se paixes alegres, que ampliam a potencia de agir, fortalecendo a vontade de estar com os outros, de compartilhar e de se afirmar como pessoa. Mas se os encontros desvalorizam e reduzem a vitalidade nas pessoas estabelecem-se paixes tristes, que imobilizam, deprimem ou geram revoltas. Assim, as emoes no esto dadas, no so passivas, no esto pr-definidas pela caracterstica pessoal, elas so produzidas nos encontros e so fora motriz das aes.

    Esses estudos reposicionam a questo das emoes tanto nos estudos acadmicos quanto na orientao programtica de polticas sociais, visto que estabelece outros nexos entre ao e razo, bem como buscam superar os modismos nos quais a emoo entendida como uma fora interior que a partir do auto-esforo, da autoajuda o indivduo modifica ou supera. H uma supervalorizao do prefixo auto, que no limite torna-se uma ao disciplinadora e que responsabiliza o indivduo e o convoca a ser feliz, bem humorado e conformado (SAWAIA, 2003).

    Essa compreenso convoca um ponto de vista que reconhece que as emoes so desencadeadas a partir da forma de tratamento recebido, do modo como se visto pelos demais, do modo como se acolhido e ouvido ou do estatuto que se da fala de um sujeito e s decises que ele toma. Dessa forma, os modos de convivncia afetam as pessoas e fazem um efeito na razo e no entendimento que elas tm de si e do mundo em que vive, podendo mobiliz-la ou no, para enfrentar as condies de existncia. Investir nos encontros que geram afetos que potencializam a ao contrapor-se, no plano da convivncia, s relaes sociais cristalizadas que geram dependncia, subordinao ou submisso.

    Soa bvio mencionar a importncia de se perguntar como a prpria famlia define seus problemas, suas necessidades, seus anseios e quais so os recursos de que ela mesma dispe. Menos bvio pensar como ouvimos suas respostas e o estatuto que atribumos ao que se diz. (SARTI, 2010, p.34, grifo nosso).

    No entanto, os encontros tambm geram paixes tristes, que despotencializam a ao. As diferenas entre os sujeitos um dos elementos que compe a convivncia geradora de submisso e subordinao. Num encontro em que um jovem:

    no aceito para uma vaga de trabalho porque mora na periferia,

    apelidado na escola como o LA porque cometeu um ato infracional,

    abordado pela polcia por ser negro e estar caminhando muito rpido,

    no aceito em um grupo por ser homossexual,

    no pode acompanhar a famlia num lugar pblico porque usa uma cadeira de rodas es existem escadas,

    barrado na entrada de um shopping porque suas roupas esto pudas;

    Essas vivncias produzem emoes tristes, constrangimentos, sofrimento e reduzem a capacidade de agir desse jovem. Assim, eles aprendem a se embotar em convivncias discriminadoras, que reduzem sua capacidade de expandir a vida e formular projetos pessoais e coletivos.

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    [...] preciso realizar pesquisas com aqueles que esto sendo institudos sujeitos desqualificado socialmente (deixando-se ser ou resistindo), isto com aqueles que esto includos socialmente pela excluso dos direitos humanos, para ouvir e compreender os seus brados de sofrimento. [...] No basta definir as emoes que as pessoas sentem, preciso conhecer o motivo que as originaram e as direcionaram, para conhecer a implicao do sujeito com a situao que os emociona. (SAWAIA, 2004, p. 109-110)

    Destaca-se dessa forma, a importncia das emoes/afetos na atividade humana, permitindo que seja considerada uma ferramenta no trabalho das polticas sociais, pois a necessidade de reconhecimento e de expanso da vida manifesta na felicidade e na liberdade so to relevantes e concretas quanto a sobrevivncia fsica e material.

    Para que situaes de conflitos sejam modificadas, no suficiente pensar sobre elas, pois isso no altera as emoes. Somente quando se entra em contato com o que h de mais singular da vida social e coletiva (os afetos) que se promove uma transformao social. Estudar a afetividade se justifica porque ela revela como o sujeito afetado nas relaes sociais e se isso aumenta ou diminui sua potncia de agir. (ZOZZOLI, 2011, p.03).

    Vale lembrar que nessa perspectiva as emoes/afetos no so propriedades ou caractersticas individuais, mas decorrentes das relaes sociais, polticas e econmicas estabelecidas num dado momento histrico, conforme j se afirmou anteriormente.

    No entanto, numa perspectiva de incluir um entendimento alargado do conceito de vnculo para que seja possvel precisar o que se quer fortalecer, vale considerar o que a psicologia com referncia psicanaltica e seus estudiosos tm a dizer sobre os vnculos. Os tericos, Melanie Klein, Bowlby e Winnicott, estudaram o processo de vinculao (relao de objeto) entre o recm-nascido e a me (adulto que realiza os cuidados e a amamentao). Estes estudos mostram que a precocidade e intensidade desta comunicao corporal, no s alimentar, da criana com a me uma primeira expresso da capacidade de se relacionar e vincular. (OLIVEIRA, 2000, p. 159). Assim, o comportamento de vinculao [ entendido] como qualquer ao de um indivduo para procurar ou manter a proximidade para com um outro percebido como mais capaz de lidar com as situaes em geral. (Idem, p.158). Este entendimento chama a ateno para o fato de que o processo de vinculao tem incio nos primeiros dias de vida como j dito anteriormente, e agrega a perspectiva de ser uma produo transgeracional e imanente produo de sujeitos.

    Retomando as contribuies da psicologia social, a produo de Pichon-Riviere e Moreno pode colaborar para ampliar o entendimento de alguns aspectos.

    Na produo de Pichon-Riviere destaca-se a compreenso de que vnculo uma estrutura complexa que inclui um sujeito, um objeto, e sua mtua inter-relao com processos de comunicao e aprendizagem (PICHON-RIVIERE, 2007). Parte do que ele denomina estrutura complexa diz respeito aos conceitos j tratados neste texto e parte refere-se a uma dimenso psquica/interna que informa que os modos de se vincular, se ligar a um objeto (outra pessoa) podem sofrer cristalizaes, fazendo com que o sujeito repita um jeito de se relacionar, quase que independente dos outros que participam do jogo relacional. Estas cristalizaes foram construdas em relaes difceis de serem vividas, muito provavelmente, na primeira infncia. De qualquer modo, a relevncia reside em reconhecer que na convivncia se constituem ligaes/vnculos entre as pessoas e que estas vivncias determinam modos de se relacionar, e tambm, que algo se passa nestes momentos, da natureza do intangvel, que no se pode

    Vivncias em que as diferenas so vividas como desigualdades produ-zem sofrimento tico-poltico.

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    controlar, mas que incide na aprendizagem dos sujeitos que participam deste encontro. Portanto, as cristalizaes tambm podem ser desarticuladas nas situaes de convivncia resultando no estabelecimento de vnculos mais flexveis. No apenas repetio, mas tambm criao de novos modos de agir e de se relacionar. Poderia aqui acentuar a dimenso esttica, da ordem do sensvel e do criativo.

    J, a produo de Moreno8permite compreender que vnculo o resultado das relaes e que a vivncia humana est marcada por papis, desde o nascimento e ao longo de toda a vida do indivduo, enquanto experincia pessoal e modalidade de participao social.

    Papel a forma de funcionamento que assume um indivduo, no momento em que reage frente a uma situao tambm especfica na qual esto envolvidos outras pessoas e outros objetos. Logo, podemos dizer que o que determina o sentido da ao. Pode-se definir papel como uma unidade de experincia sinttica na qual se fundiram elementos

    privados, sociais e culturais (MORENO, 1984, p.11).

    O conceito de papel, que pressupe interrelao e ao, central para a teoria psicodramtica. Neste escopo, afirma-se que no comeo existia o grupo, no fim existia o indivduo. (Moreno, 1983, p.21, 22). Ou seja, o eu emerge dos papis, antes mesmo de ter a noo de eu, da personalidade, ou de construir a linguagem falada, a criana desempenha papis. Dessa forma, no h possibilidade de exercer o papel de pais sem filhos, com o nascimento de uma criana comeam a nascer simultaneamente pai e filho(a) ou me e filho (a). A famlia de origem determina certos papis, e o que o beb faz modifica estes papis. A entrada de novos relacionamentos oferece a oportunidade de desenvolver outros. O movimento de cada um em seus relacionamentos, suas escolhas desenvolve novos papis e desenvolve este sujeito pelo exerccio de seus papis sociais. Neste processo elegemos novas relaes que passam a fazer parte de nosso tomo social, alterando a estrutura anterior. A ao, a capacidade de agir, composta dos papis e dos vnculos estabelecidos por meio das complementaes dos papis.

    O repertrio sociocultural de um grupo familiar/comunitrio tem particularidades por ter sido produzido por meio de co-ao, co-vivncia e co-experincia desde o momento de nascimento de cada membro. Esta configurao d a possibilidade de cada um desenvolver papis determinados pela cultura na qual ser inserido.

    possvel compreender que os sujeitos se constituem nas relaes e lhes apresentada uma pauta social de expectativas e que no exerccio mesmo destes papis cada um pode transformar estes papis e imprimir

    mudanas no repertrio sociocultural de um grupo. Nas palavras de Moreno: Para fazer frente s vrias situaes traumticas da vida e do nosso dia a dia, quanto mais pudermos dar respostas novas a situaes antigas, mais saudveis e criativos seremos. (1992, p.148).

    Considerando as formulaes dos dois autores, Pichon-Riviere e Moreno, configura-se um entendimento de que o campo relacional traz consigo uma determinada potencia que em decorrncia de vivncias traumticas pode ser aprisionado, ou melhor, no efetivar-se em aes,

    8 Jacob Levy Moreno (1889-1974) psiquiatra judaico romeno, conhecido como o pai do Teatro Espontneo, Psicoterapia de Grupo, Psicodrama e Sociodrama e Sociometria. O Psicodrama nasceu do teatro e dele retirou os principais conceitos que o fundamentam prtica e teoricamente. Um dos conceitos centrais doarcabouo terico construdo por Moreno o conceito de papel, por ser trata de como se do os relacionamentos.

    O fortalecimento de vnculos to-mado como finalidade do trabalho social com indicadores de resultado.

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    permanecer em cristalizaes. No entanto, a possibilidade de por em funcionamento esta potncia experimentando relacionar-se de forma criativa, agindo nas relaes e por causa delas.

    A nica finalidade aceitvel das atividades humanas a produo de uma subjetividade auto-enriquecedora de maneira contnua na sua relao com o mundo. [...] Para apreender os recursos ntimos desta produo - estas rupturas de sentido autofundadoras de existncia - a poesia, hoje, tem talvez mais a nos ensinar que as cincias econmicas e as cincias humanas juntas. (GUATTARI, 1990, p.17)

    Convivncia, vnculo e tica: experimentar a solidariedade

    Promover bons encontros, que fortaleam a potncia de agir pode impulsionar a ao para enfrentar situaes conflituosas, alterar condies de subordinao, estabelecer dilogos, desejar e atuar por um mundo mais digno e mais justo. Enfim, promover mudanas em que haja corresponsabilidade entre a ao das polticas sociais e os sujeitos usurios.

    Esta corresponsabilidade, que valoriza e investe na potncia de agir esta implicada com o ponto de vista coletivo, que demanda participao, aqui entendida como sinnimo de tomada de deciso (Bobbio, 2000), ou seja, corresponsabilidade com deciso coletiva.

    Participar no se restringe a aderir, pressupe o compartilhar, o pr-se em movimento, o que exige a motivao para um objetivo. Assim, participao pode ser um qualificativo da convivncia, uma viso ampliada que inclui estar, posicionar-se nas decises que lhe diz respeito. (MDS, 2009).

    Outra dimenso a ser considerada ao se tratar de participao o fato de ser um importante instrumento de educao poltica: ao responsvel, individual, social e poltica resultante do processo participativo,no sentido de que quanto mais o cidado participa, mais ele se torna capacitado para faz-lo (Pateman,1992, p.38). Essa experincia de participar diz respeito no s diferenciao entre os interesses privados e pblicos, individuais e coletivos, mas tambm aos efeitos subjetivos, alterando significativamente a inter-relao e compreenso das pessoas quanto s instituies das quais participam (1992, p.35).

    Inserir a participao como um elemento no debate sobre fortalecimento de vnculos associa-se ideia de ampliao de relaes na perspectiva da vivncia da cidadania, pressupe compreender que a participao exige que condies sejam criadas para favorec-la e essas condies tem relao com acesso a informao e com formao para participar. Para Muoz (2004) participao no se improvisa e no se aprende de imediato, requer reconhecer que no se est no lugar do outro, mas que possvel fazer perguntas inteligentes e respeitosas que permitam que o outro expresse suas caractersticas, o que e como pensa, o que e como sente e deseja. Para esse autor participao sinnimo de compartilhamento de poder s pessoas e s aquele(a) que participa pode ser e sentir-se cidado(), sentir a cidade como sua, sentir-se orgulhoso/a de viver em sua cidade. (MUOZ, 2004, p. 57).

    Na formulao feita por orientadores sociais, a participao constri reciprocidade, coloca os profissionais na vida cotidiana das famlias:

    As mes sempre colocam pra gente que seja servios pblicos, seja polcia, sade, eles procuram os equipamentos, e aqui o movimento contrrio dos equipamentos, ns

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    procuramos estar junto delas, portanto de alguma forma a gente t dentro da casa delas, [...] eles entendem que o equipamento pblico t l dentro, por isso esse tanto de mes acaba recorrendo gente para orientar, dar uma palavra amiga, uma orientao mesmo, do que eles podem fazer, quais so as possibilidades, o que ele pode fazer dentro da comunidade, o que ele pode evitar; Ento isso eu entendo como uma aproximao muito grande, tenho dificuldade de identificar qual outro equipamento pblico que tem essa ao, essa capilaridade. (Cristiane pedagoga coordenadora tcnica - GDF).

    Alm da educao do cidado e da garantia de legitimidade das decises, a participao tem ainda uma terceira funo que a de conferir s pessoas o sentimento de pertencimento quela instituio da qual participa com poder decisrio. Assim, estimular o fortalecimento de vnculos significa tambm garantir espaos participativos na tomada de deciso e foment-los como estratgia scio-educativa. Significa experimentar a solidariedade e partilhar um mundo comum.

    Os tcnicos apontam o valor dos laos afetivos, esta uma condio para incluso dos usurios em dispositivos de deciso:

    Para que essa me possa contar comigo, eu preciso ter um vnculo afetivo com ela, de proximidade para que ela possa confiar em mim e tenhamos uma relao legal que v para alm do grupo, porque o trabalho no s o grupo a famlia como um todo. (Arlete psicloga CRAS Alterosa Prefeitura de Betim)

    Neste sentido, Stela Ferreira (FERREIRA, 2012), considerando a participao nos servios socioassistenciais aponta que por vezes participar est restrito a escolher um tema de interesse a ser debatido ou inserido como palestra ou oficina a ser realizada. H que se considerar o que esse interesse mobiliza nas relaes com os outros, nos espaos, nos territrios, na cidade e ainda, como essa manifestao de interesse compe os processos de deciso.

    Intensifica-se, pela via da participao, a forte sinergia entre o trao poltico e tico dos vnculos sociais, pois tais manifestaes, embora aparentemente menores, podem ser catalizadoras de processos mobilizadores de aes mais amplas, pois rompem fronteiras e limites simblicos e de poder ao motivar uma ao responsvel consigo e com a coletividade. Uma motivao para agir que envolve o interesse, mas tambm uma dimenso afetiva expressa no sentimento que motiva a querer conhecer ou alcanar uma dada condio.

    Por fim, h uma tenso e disputa para que o objeto de interesse e desejo do cidado usurio seja includo nas decises que orientaro o trabalho social.

    Participar supe modos de se expor, de ver e ser visto, de criticar e ser criticado, ser capaz de argumentar, colocando em circulao diferentes saberes e modos de produo de conhecimento. Tomados em sua igualdade, estes conhecimentos podem circular sem reafirmar hierarquias, podem ser questionados sem ser desqualificados. (MDS, 2009, p. 44).

    Essa conjugao conceitual que delineia a convivncia numa medida que permita traar seus limites no escopo da Poltica de Assistncia Social sintetizada por Sposati (SPOSATI, 2012) quando afirma: convivncia forma e vnculo resultado. Assim, possvel reconhecer que o conjunto de elementos combinados nesta narrativa tambm fala da produo de ligaes entre sujeitos de direito, capazes de afetar e ser afetados nos encontros, produtores e produzidos pelo contexto em que vivem, capazes de escolha e decises coletivas pelas quais se corresponsabilizam, que participam e combinam objetivos comuns e assim aprendem a participar sentindo-se pertencentes a um lugar, ou seja, capazes de identificar/reconhecer e afirmar o valor/qualidade dos vnculos constitudos em sua trajetria.

    O conjunto de vnculos produz um efeito de pertencimento.

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    Para compor o entendimento de vnculos destaca-se a contribuio do socilogo francs Serge Paugam9 (PAUGAM, 2008) que define uma tipologia de vnculos. Sua produo se faz no debate em torno da crise dos vnculos sociais, que ele associa ao reconhecimento das transformaes contemporneas dos homens e de suas relaes.

    Ressalta que

    [...] a expresso vnculo social atualmente empregada para designar todas as formas de viver em conjunto, a vontade de religar os indivduos dispersos, a ambio de uma coeso mais profunda da sociedade no seu conjunto. (PAUGAM, 2008, p. 4)

    Paugam desenvolve uma tipologia de vnculos sociais que se expressam, em sntese, a partir da formulao de que os vnculos caracterizam um movimento que se estabelece em duas direes contar com, expresso que traduz o que o individuo pode esperar das relaes por ele estabelecidas e contar para que expressa a expectativa e reconhecimento ao materializar o que as pessoas esperam daquele indivduo. Assim, afirma:

    Os socilogos sabem que a vida em sociedade coloca todo ser humano desde o nascimento numa relao de interdependncia com os outros e que a solidariedade constitui a todos os estados de socializao a base do que se poderia denominar homo sociologicus, o homem ligado aos outros e sociedade, no somente para assegurar sua proteo face aos males da vida, mas tambm para satisfazer suas necessidades vitais de reconhecimento, fonte de sua identidade e de sua existncia enquanto homem. (PAUGAM, 2008, p. 4).

    Definem-se quatro tipologias de vnculos, de acordo com modos de filiao:

    A primeira delas o Filiao/Parentesco/ ou a relao pai-filho, dividida em duas formas: a natural, pela qual cada pessoa nasce numa famlia e a filiao social, exemplificada na filiao adotiva. Nessa relao, segundo psiclogos sociais, existe uma funo socializadora e de identidade que contribui para o desenvolvimento infantil e que pode afetar relacionamentos ntimos futuros, conforme dito anteriormente.

    Uma segunda tipologia estabelecida a filiao de natureza eletiva10 que est ligada socializao fora da famlia na qual o individuo tem contato com outras pessoas, grupos e instituies. Ela pode ocorrer em: grupos de amigos, comunidades locais, instituies religiosas, esportivas, culturais, gangues de bairro, etc. Nesse processo o individuo interage e tem tambm um papel autnomo, pois ele pode construir sua prpria rede de pertencimento para alm das relaes domsticas ou de consanguinidade.

    A relao de filiao orgnica, o terceiro tipo de vinculo, est relacionado ao trabalho e oportunidade de exercer atividade produtiva e ter a segurana para o futuro com proteo social que deriva dessa condio de trabalhador.

    9 O Professor Serge Paugam socilogo, Diretor de Estudos da coledesHautestudesenSciencesSociales (EHESS) e responsvel da quipe de RecherchessurlesIngalitsSociales (ERIS) do Centre Maurice Halbwachs, Paris, Frana. A produo de Paugam elaborada a partir das leituras de Durkheim, Simmon e Elias.10 Ao identificar redes e relaes fora da famlia o Plano Nacional de Convivncia Familiar e Comunitria, usa a expresso de TAKASHIMA (2004) rede social de apoio e a define da seguinte forma: a famlia recebe apoio em situaes de crise como morte, incndio ou doenas; prticas informais organizadas: a comunidade compartilha com os pais ou responsveis a funo de cuidado com a criana e com o adolescente, bem como denuncia situaes de violao de direitos, dentre outras; e prticas formalmente organizadas: a comunidade organiza projetos e cooperativas para a gerao de emprego e renda, por exemplo. (MDS, 2006, p.32).

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    Por fim, se estabelece o quarto tipo, vnculo de cidadania, que se expressa no sentimento de pertencimento a uma nao, logo, um membro reconhecido pelo pas por meio de direitos e deveres.

    Para o autor, essas quatro tipificaes apresentadas so complementares e interligadas, elas constituem um tecido social que envolve e implica cada pessoa. A intensidade dos laos varia entre as pessoas e depende do tipo de socializao vivenciada nas diferentes esferas da vida.

    Estudos sobre sociabilidade apontam a importncia de se considerar as relaes e os vnculos estabelecidos entre e pelas pessoas e grupos sociais, pois eles informam suas condies de vida em sentido multidimensional. Afirmam que os processos de sociabilidade se estabelecem em diferentes circunstncias e desencadeadas por distintas motivaes:

    Na produo [de processos de sociabilidade], combinam-se estratgias norteadas por vrias racionalidades, acaso, decises de outros indivduos e constrangimentos relacionais provocados por processos mais amplos como a migrao, a mudana de endereo, a frequncia a certos locais e determinadas prticas, entre outros. (MARQUES, 2010, p.188).

    Neste sentido, o que importa de fato investigar/compreender como so os padres de relao das pessoas e de que maneira as redes derivadas dessas relaes so mobilizadas por elas e o quanto influenciam suas aes.

    Em sntese - com que as pessoas contam e para o que conta-se com elas eis uma bssola para mapear relaes de proteo ou de ausncia de proteo desde a esfera privada (intrafamiliar), passando pela sociabilidade mais ampla (vnculos por escolhas afetivas ou de identidade social), at a esfera de reconhecimento pblico que pauta as atenes e servios pblicos (relaes de cidadania pautada em responsabilidades do Estado e direitos do cidado). Este quadro desloca a perspectiva de considerar os vnculos de uma pessoa fracos ou fortes em relao a outras pessoas, passa a ser necessrio qualificar/caracterizar os vnculos para dimensionar a proteo socioassistencial.

    Na mesma direo, a construo de laos afetivos e de referncia, dito de outra forma, contar com pessoas ou servios para diferentes momentos e situaes na vida, um aspecto muito importante para compreender a convivncia familiar e a capacidade protetiva de famlias, logo trata-se de discutir convvio e convivncia no campo da proteo socioassistencial ou proteo social na assistncia social. Todavia, discutir essa vivncia do contar com como instrumento de proteo no suficiente para discutir uma poltica de convvio, pois ela mais do que uma questo de proteo, pois supe um reconhecimento social e tem um potencial maior para discutir e alargar padres de civilidade e cidadania. (SPOSATI, 2012)

    Depreende-se, portanto que esses diferentes autores ao definir conceitualmente vnculos esto trabalhando com duas dimenses: apoios que as pessoas contam em situaes difceis e reconhecimento social derivado da representao que essa pessoa tem para seus pares. Essa uma discusso a ser aprofundada, especialmente a partir das prticas profissionais e dos conhecimentos produzidos, pois os profissionais usam frequentemente a expresso vnculos fragilizados sem explicitar seus sentidos e para quais situaes esta classificao est sendo utilizada.

    Nessa direo, os especialistas entrevistados trazem tambm contribuies para o debate sobre vnculos (TORRES, 2012). o caso de Aldaza Sposati (SPOSATI, 2012) ao destacar que desconhece gradientes de vnculo que se pautem pela tica da proteo social. Assim vnculos fortes ou fracos precisam ser avaliados tanto nas relaes intrafamiliares quanto nas suas redes de apoio, o que significa tambm considerar o elemento agressor, ou seja, o quanto aquela situao demanda proteo e quais vnculos suportaro enfrentar a agresso.

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    Para a pesquisadora Carla Bronzo (BRONZO, 2012) necessrio fazer uma distino e analisar com mais cuidado o que vnculo. Quando se pensa na atuao orientada para vnculos familiares e comunitrios, necessrio reconhecer que so coisas diferentes e indicam eixos programticos distintos. O primeiro pressupe uma dimenso psicossocial, que pode tambm incluir uma interveno teraputica. J para os vnculos sociais e comunitrios a metodologia mais coletiva e menos intrafamiliar. Assim, a conotao e os objetivos do trabalho seriam distintos.

    Afirma ainda que preciso saber o que olhar para saber que efeito se pretende criar e como o trabalho est funcionando. Assim necessrio identificar as situaes de fragilizao devnculos e como so motivadas. Tem a ver com ausncia de autoridade, com ausncia de afetividade? Em que medida os vnculos esto sendo fortalecidos? Nesse caso, vale a pena padronizar por instrumentais e criar indicadores de fortalecimento de vnculos, definindo que situaes precisam ser observadas e permitem afirmar que houve fortalecimento de vnculos.

    Na observao das prticas desenvolvidas e nos debates estabelecidos com especialistas e profissionais que atuam diretamente no servio, uma concepo predominante aquela que identifica que construir e sustentar vnculos so contedo na poltica de assistncia social, pressupe, portanto a aproximao de contedo e mtodo, pois na medida em que os profissionais, no prprio servio e por meio da sua interveno, tornam-se referncia e constroem vnculos - do profissional com o sujeito e dele no grupo e do grupo entre si (grupo convivente) ele tambm fomenta a ampliao e diversificao dos vnculos e das relaes desse sujeito.

    Ana Lgia Gomes (GOMES, 2012) ao refletir sobre as particularidades desse trabalho na assistncia social aponta que deve haver uma direo, uma intencionalidade para a construo de vnculo e esse vnculo uma traduo de afeto. Entende como uma condio essencial para o desenvolvimento do trabalho o estabelecimento do vnculo com os profissionais e a construo de uma referncia, especialmente para crianas e adolescentes. Destaca ainda que o vnculo a ser estimulado pelo trabalho no se reduz aos profissionais, mas tambm dos usurios entre si.

    A gente tem vrias reas, mas a gente usa esse meio pra chegar num fim, que o fortalecimento de vnculos (...) s vezes uma criana dessas, um adolescente temmuito mais liberdade pra falar com a gente que t convivendo todos os dias, que t prestando ateno nos mnimos detalhes, do que de repente com um professor, com um profissional da sade, ou mesmo com seu pai, sua me, seu irmo, ento isso eu acho que importante, fundamental e insubstituvel no processo. (Cleyton educador social meio ambiente - GDF).

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    Vulnerabilidades

    ...que a importncia de uma coisa no se mede com ta mtrica nem com balanas nem barmetros etc. Que a importncia de uma coisa h que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em ns.

    Manoel de Barros

    Em primeiro lugar, destaca-se que o enfoque da vulnerabilidade demanda a combinao e o agenciamento entre vrias reas do conhecimento: cincias polti cas e sociais (geografi a,demografi a), passando pela rea da sade (psicologia, medicina), urbanismo entre outros. Vale lembrar que o desenvolvimento de conceitos apropriados ocorre a parti r de noes adotadas de um vocabulrio no-cient fi co, s quais so atribudos signifi cados mais densos, ao mesmo tempo em que se busca sua vinculao a quadros tericos abrangentes. Vulnerabilidade e risco so conceitos desse ti po. (CUNHA, 2004, p.344).

    No se encontra uma defi nio que vocalize as diversas reas do conhecimento atribuindo um senti do unvoco vulnerabilidade, apesar de existi r um relati vo consenso, em termos genricos, de que ela o resultado da confl uncia da exposio aos riscos, da incapacidade de resposta e da inabilidade de adaptao. (VIGNOLI, 2002, p.95). Nesta acepo, a vulnerabilidade pode ser uma condio dos atores frente a acontecimentos adversos de variadas naturezas: ambientais, econmicas,fi siolgicas, psicolgicas, legais e sociais, ao mesmo tempo em que pode ser uma abordagem para a anlise de diferentes ti pos de riscos e de respostas, de ofertas de assistncia, ocorridas em sua materializao.

    Vignoli (2002, p. 96) chama ateno para alguns aspectos que so destacados para informar o determinante da vulnerabilidade social:

    Ciclo de vida (algumas etapas do ciclo de vida so mais vulnerveis);

    Crise econmica e desastres ambientais;

    Incerteza, insegurana e rupturas da complexidade da vida social da modernidadeavanada;

    Desproteo em decorrncia da eroso do estado e da famlia;

    Carncia pela desatualizao ou imobilidade de capital f sico, humano e social,associado incapacidade de infl uenciar decises que distribuem recursos;

    Dinamismo das condies de pobreza (os fatores que determinam uma receita pequena epersistente).

    A leitura de Marandola (2009) permite acrescentar outros aspectos ligados vida urbana e sua confi gurao socioespacial:

    Vulnerabilidades

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    Segregao socioespacial da populao de baixa renda (condies precrias da moradia, em termos de infraestrutura, ambiental e de propriedade);

    Capacidade de resposta diante de situaes de risco ou constrangimentos gerados pelo local de moradia.

    O conceito de vulnerabilidade est sendo discutido e aprimorado por diversos autores latino-americanos, entre eles destacam-se: Kaztman (1999, 2000 e 2001); Rodriguez (2000 e 2001); Pizarro (2001) e Bustamante (2000). Em distintas abordagens, vinculam a vulnerabilidade pobreza, em decorrncia da grande quantidade de movimentos de entrada e sada dessa condio; e como componente relevante no complexo de desvantagens sociais e demogrficas que se delineiam na modernidade tardia. Ou seja, vulnerabilidade

    [...] a manifestao mais clara da carncia de poder que experimentam grupos especficos, mas numerosos, da humanidade.

    Na linguagem corrente, vulnerabilidade qualidade de vulnervel, ou seja, o lado fraco de um assunto ou questo, ou o ponto por onde algum pode ser atacado, ferido ou lesionado, fsica ou moralmente, por isso mesmo vulnerabilidade implica risco, fragilidade ou dano. Para que se produza um dano, devem ocorrer trs situaes: um evento potencialmente adverso11, ou seja, um risco, que pode ser exgeno ou endgeno; uma incapacidade de responder positivamente diante de tal contingncia; e uma inabilidade para adaptar-se ao novo cenrio gerado pela materializao do risco. (OBSERVATRIO DAS METRPOLES, 2009, p.8).

    Em sntese, vulnerabilidade pode ser definida como exposio a contingncias e tenses, e as dificuldades em lidar com elas. Por um lado, os riscos, choques e tenses para que um indivduo, grupo familiar, comunidade, objeto e, por outro lado, desproteo, significando falta de meios para responder, semperda prejudicial. necessrio destacar que a noo de vulnerabilidade precede a identificao dos grupos mais vulnerveis, posto que exija especificar riscos e determinar tanto a capacidade de resposta dos grupos, como

    sua habilidade para adaptar-se ativamente. Nesse sentido, a fragilidade institucional, a falta de equidade socioeconmica e as precrias condies socioambientais do territrio so consideradas riscos, pois obstruem o desenvolvimento socioeconmico e impedem a coeso social.

    11 Os eventos potencialmente danosos so distintos fome, queda abrupta no comrcio ou finanas, psicopatologias, inundaes - mas, em geral, possuem um aspecto comum: so relativamente limitados e especficos.

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    As pessoas e grupos no conhecem a geografia da cidade nem a estudam na escola. O territrio considerado contingncia de percurso e no condio efetiva de como se distribui os acessos, as riquezas e as condies de vida de uma populao, principalmente nos modelos das cidades brasileiras pautadas no urbanismo de risco12.O lugar , portanto, centro da afetividade e da razo sensvel, constituindo-se no foco da experincia humana. (Marandola, 2009, p.167).

    Uma das ideias que conta com consenso a de que a Proteo Social resposta para situaes de vulnerabilidade e que as vulnerabilidades relacionais podem ser de diversas naturezas como citadas a seguir. So descritas como vulnerabilidades por reduzirem as capacidades humanas e colocarem os sujeitos na condio de demandantes de proteo social. As situaes citadas desvelam vivncias em que as diferenas so vividas como desigualdades produzindo o que BaderSawaia vem denominando em seus estudos como sofrimento tico-poltico, como dito anteriormente neste texto, aquele provocado pelo reconhecimento negativo/desvalorizado que se faz de uma pessoa.

    Assim, a condio de vulnerabilidade deveria considerar a situao das pessoas a partir dos seguintes elementos: a insero e estabilidade no mercado de trabalho; a debilidade de suas relaes sociais e, por fim, o grau de regularidade e de qualidade de acesso aos servios pblicos. A insero relacional caracteriza-se pelos vnculos que os sujeitos estabelecem com os grupos familiar e social, mais prximos, que configuram a percepo de pertencer a uma determinada comunidade13.

    Adiante, apresenta-se a caracterizao de sete vulnerabilidades relacionais, sem a pretenso de abarcar a totalidade, mas com o objetivo de indicar a contribuio da caracterizao das situaes de vulnerabilidade para a atuao profissional. Identificam-se algumas situaes que caracterizam vulnerabilidades relacionais que no se restringem ao ambiente familiar, para qual culturalmente se olha numa perspectiva de identificar a causa dos males dos sujeitos.

    Conflitos: pontos de vistas e interesses diferentes, prticas cotidianas divergentes, necessidade de compartilhamento de decises etc.

    Conflitos so questes do cotidiano em que se confrontam valores, interesses, autoridade e de certa maneira pode-se criar solues de compromisso. A configurao de uma situao de conflito se d num campo relacional, de interao entre pessoas e grupos, mas tambm entre instituies. Quantas situaes de conflito vivem-se cotidianamente e se resolve, porque se desiste da relao, ou porque no dilogo possvel produzir pontos de convergncia e negociar os divergentes, ou ainda porque

    12 Os estudos da pesquisadora Raquel Rolnik discutem com preciso este urbanismo de risco.13 Daniela Tavares Gontijo; Marcelo Medeiros. Crianas e adolescentes em situao de rua: contribuies para a compreenso dos processos de vulnerabilidade e desfiliao social. Cinc. sade coletiva vol.14 n 2. Rio de Janeiro Mar./Apr. 2009. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232009000200015

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    um novo acontecimento muda a situao ou os interesses em jogo. Muito provavelmente, os leitores deste texto conhecem diversas narrativas sobre situaes de conflito que se resolveram com certa facilidade, a partir de sua participao, algum com autoridade afetiva, intelectual ou moral, que ouviu e atentou-se ao conjunto de elementos imbricados, convocou os envolvidos no conflito a considerar outros pontos de vista, props acordos e alteraes de atitudes e que por parecerem razoveis e aceitveis para todos dissipou o conflito.

    Alm disso, as situaes de conflito aparecem quando h uma demanda de deciso coletiva, momento em que necessrio construir consenso.

    Pois bem, porque um conflito, considerando seu carter prosaico, considerado uma vulnerabilidade relacional? Configura-se como vulnerabilidade sempre que produza sofrimento tico/poltico por denotar que as diferenas so vividas como desigualdade e que a vontade daqueles em condies de maior poder prevalece, o que torna impeditivo a coletivizao.

    Preconceito/ discriminao: modos de vida e caractersticas pessoais e/ou tnicas desvalorizadas, origem e local de moradia para os quais se atribui menor valor etc.

    As situaes de preconceito e discriminao negativa so marcadas por uma vivncia relacional em que um atributo ou condio concreta de uma pessoa ou grupo tomada como um qualificador desvalorizante, ou seja, no s tem menos valor, mas tambm podem menos.

    Estas situaes so marcadas por questes da cultura dominante que justificam e desresponsabilizam os autores da discriminao negativa, embora j se tenha na legislao o reconhecimento destas situaes como crime.

    As pessoas e/ou grupos vtimas de preconceitos vivenciam limites e restries concretas a realizao de seus interesses, escolhas e oportunidades de desenvolvimento pessoal, alm de prejuzo subjetivo para seu autoconceito. Considerando que o autoconceito se constitui por elementos dos conceitos que os outros nos atribuem combinado com nossas realizaes, esta vivncia produz um duplo prejuzo, pois o outro nos desvaloriza e no realizamos algo que desejvamos.

    Assim, constitui-se uma vulnerabilidade relacional que demanda ateno, tambm redobrada.

    Abandono: indivduos ou grupos demandantes de cuidados so descuidados por familiares e/ou responsveis etc.

    As situaes de abandono so vividas de forma grave, pois implicam relaes de proximidade e responsabilidade negligenciada, restringindo as capacidades vitais das pessoas ou grupos que sofrem esta ao.

    Muitos estudos j foram realizados sobre o abandono e suas consequncias objetivas e subjetivas, nos quais possvel encontrar argumentos para entender os processos afetivos complexos que envolvem condutas de abandono em grupos familiares, em servios de

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    um novo acontecimento muda a situao ou os interesses em jogo. Muito provavelmente, os leitores deste texto conhecem diversas narrativas sobre situaes de conflito que se resolveram com certa facilidade, a partir de sua participao, algum com autoridade afetiva, intelectual ou moral, que ouviu e atentou-se ao conjunto de elementos imbricados, convocou os envolvidos no conflito a considerar outros pontos de vista, props acordos e alteraes de atitudes e que por parecerem razoveis e aceitveis para todos dissipou o conflito.

    Alm disso, as situaes de conflito aparecem quando h uma demanda de deciso coletiva, momento em que necessrio construir consenso.

    Pois bem, porque um conflito, considerando seu carter prosaico, considerado umavulnerabilidade relacional? Configura-se como vulnerabilidade sempre que produza sofrimentotico/poltico por denotar que as diferenas so vividas como desigualdade e que a vontadedaqueles em condies de maior poder prevalece, o que torna impeditivo a coletivizao.

    Preconceito/ discriminao: modos de vida e caractersticaspessoais e/ou tnicas desvalorizadas, origem e local demoradia para os quais se atribui menor valor etc.

    As situaes de preconceito e discriminao negativa so marcadas por uma vivncia relacional em que um atributo ou condio concreta de uma pessoa ou grupo tomada como um qualificadordesvalorizante, ou seja, no s tem menos valor, mas tambm podem menos.

    Estas situaes so marcadas por questes da cultura dominante que justificam edesresponsabilizam os autores da discriminao negativa, embora j se tenha na legislaoo reconhecimento destas situaes como crime.

    As pessoas e/ou grupos vtimas de preconceitos vivenciam limites e restries concretasa realizao de seus interesses, escolhas e oportunidades de desenvolvimento pessoal,alm de prejuzo subjetivo para seu autoconceito. Considerando que o autoconceito seconstitui por elementos dos conceitos que os outros nos atribuem combinado com nossasrealizaes, esta vivncia produz um duplo prejuzo, pois o outro nos desvaloriza e norealizamos algo que desejvamos.

    Assim, constitui-se uma vulnerabilidade relacional que demanda ateno, tambm redobrada.

    Abandono: indivduos ou grupos demandantes de cuidadosso descuidados por familiares e/ou responsveis etc.

    As situaes de abandono so vividas de forma grave, pois implicam relaes deproximidade e responsabilidade negligenciada, restringindo as capacidades vitais daspessoas ou grupos que sofrem esta ao.

    Muitos estudos j foram realizados sobre o abandono e suas consequncias objetivas e subjetivas, nos quais possvel encontrar argumentos para entender os processos afetivos complexos que envolvem condutas de abandono em grupos familiares, em servios de

    interesse pblico, em grupos de cultura tradicional. Sem dvida, a leitura destes trabalhos pode colaborar com o aprofundamento da questo por parte do leitor.

    Mas pode se dar tambm em decorrncia de outras situaes como a incapacidade de lidar com conflitos ou quando h preconceito em relao a membros que compem o grupo.

    Tanto numa situao como em outra, estudos indicam que uma caracterstica que marca estas situaes o fato, em muitos dos casos, de que a atitude de abandono entendida como sendo uma opo em face de uma suposta situao pior. Outro aspecto encontrado nos estudos so as intensas marcas naqueles que vivenciam o abandono, uma intensa desconfiana nas relaes.

    Como foi possvel notar, a situao de abandono se delineia numa alta vulnerabilidade relacional.

    Apartao: indivduos ou grupos so impedidos, por barreiras fsicas e/ou virtuais de conviverem com outros etc.

    Os impedimentos da convivncia pela distncia fsica ou pela cultura e/ou religiosidade produzem sofrimento medida que membros de grupos so premidos pelas condies materiais a migrar por sua conta e risco, ou grupos so afastados de outros porque suas crenas e/ou origens e modos de vida so divergentes. As apartaes tambm aparecem nas grandes cidades nas prticas juvenis, quando gangues e/ou tribos no podem circular por territrios delimitados por outros e reciprocamente, outros no podem circular em seu territrio.

    Outras modalidades de apartao so decorrentes da distribuio imobiliria e de mobilidade que se imputa a regies perifricas das grandes cidades, ou de processos migratrios de regies com presena muito precria do Estado.No primeiro caso, impede/fragiliza o sentimento de pertencimento a um lugar e no segundo expulsa por inviabilizar uma vida digna.

    Estas situaes so redutoras das capacidades humanas, pois por um lado so vnculos em sua face negativa (religies, origens, modos de vida) e por outro, quando positivos, a distncia fsica vivida como tristeza (na migrao).

    Desse modo, a apartao um corte/ruptura nas oportunidades relacionais.

    Confinamento: indivduos ou grupos tm seus relacionamentos e circulao restrita por barreiras fsicas e/ou virtuais etc.

    As situaes de restrio/impedimento enfrentam barreiras fsicas motivadas pela perspectiva do perigo que uma pessoa representa para si ou para os outros. Assim, a priso, o hospital/clnica psiquitrica e a prpria moradia so as barreiras. Esta restrio pode produzir ampliao

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    do perigo que pretende evitar, at porque decorre muitas vezes de preconceito ou de falta de informao sobre o real perigo que essa pessoa pode causar, isso afeta negativamente as pessoas que so o centro dessas situaes.

    Diversos estudos, sobre os efeitos dessas restries para retirar as pessoas de uma suposta condio perigosa, tem indicado ser necessrio promover outras oportunidades de relacionamento,estratgia que apresenta maiores possibilidades e melhores resultados para que a finalidade positiva atribuda ao confinamento possa se realizar e possa ser motivadora da recuperao.

    Mais que isso, o grupo afetivo ligado s pessoas em confinamento tambm tem suas capacidades fragilizadas, pois esta privado de usufruir um relacionamento ao mesmo tempo em que, por vezes, consideram e so considerados responsveis/implicados com a situao de confinamento imputada a um membro do grupo.

    Desse modo, o confinamento torna vulnervel todas as pessoas nele envolvidas, as que esto diretamente confinadas e as responsveis pelo confinamento.

    Isolamento: situaes de ausncia de relacionamentos regulares e cotidianos, reduo de capacidades de comunicao.

    Situaes de adoecimento (depresso) ou de longos tratamentos, sequelas de acidentes, pessoas com deficincias com esttica muito diferente, envelhecimento com restries de deslocamento tendem a isolar as pessoas em decorrncia da dependncia, de discriminaes e da intensa restrio de ao que elas vivenciam.

    Estas situaes (exceto o envelhecimento) demandam que as pessoas estejam dedicadas a cuidar de si e em decorrncia, com pouca disponibilidade de compartilhamento da vida: seus problemas tornam-se a nica questo sobre a qual tem algo a dizer. Esta situao reduz a presena de pessoas interessadas em conviver, cuidar e dedicar afeto, pois no sentem reciprocidade. Esta vivncia instala um ciclo vicioso de difcil interrupo e transformao.

    No caso do idoso, as limitaes e restries causadas pelo envelhecimento muitas vezes leva os familiares a limitar e restringir ainda mais os relacionamentos e a comunicao destas pessoas.

    Assim, do isolamento decorre vrias restries dentre as quais a prpria compreenso do mundo em que se vive e a experincia de ser reconhecido como importante para as pessoas. Viver essa situao torna a pessoa mais insegura e vulnervel.

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    Violncia: indivduos ou grupos so impedidos ou compelidos a aes em desacordo com sua vontade e interesse, por vezes tendo a vida ameaada etc.

    A violncia o ponto extremo do exerccio de poder de uma pessoa ou grupo sobre outra pessoa ou grupo, em que o uso de fora fsica e/ou psicolgica induz e/ou obriga a realizao de atos e condutas em que aquele que realiza no quer ou no sabe por que faz.

    As crianas, adolescentes, mulheres, homossexuais e negros tm um histrico social de ser alvo de violncia. As situaes de maus tratos, abuso sexual, seviciamento para prticas delituosas e uso de drogas vivenciadas por esses segmentos ganharam estatuto de crime

    h algumas dcadas, apenas colocando em evidncia que deixava de ser uma questo de mbito privado.

    Do ponto de vista relacional esta uma questo complexa, pois muitas das situaes de violncia ocorrem entre pessoas e grupos que tem fortes laos relacionais, muitas vezes relaes de responsabilidade formal, como no caso de adultos (pais, tios, padrasto, madrasta, professores, guias religiosos) com crianas e adolescentes de suas famlias (filhos, enteados, sobrinhos, afilhados,

    alunos). Tambm, no caso de casais onde a mulher maltratada pelo marido/companheiro e tem uma situao de dependncia econmica. A estas se somam outras situaes, como trabalho infantil, prostituio de menores de idade, maus-tratos em decorrncia da orientao homossexual de meninos e meninas, etc.

    Estas situaes demandam muita sensibilidade, delicadeza e preciso na interveno, pois necessrio produzir o engajamento dos envolvidos na mudana/transformao da situao e considerar nessa interveno o que j est demonstrando em vrios estudos, que h probabilidade de repetio dessa situao em outras relaes tanto por quem violentou como quem foi violentado14.

    O impacto da vivncia de situaes de violncia na trajetria dos indivduos precisa ser considerado na interveno tendo como direo a perspectiva de que essa e as demais situaes de vulnerabilidade descritas podem ser enfrentadas e alteradas, mais ainda, que a vinculao a outros grupos, a vivncia de outras experincias ou mesmo o restabelecimento de vnculos distintos com grupos e pessoas com quem se relaciona uma oportunidade para esse enfrentamento.

    14 Intervir nestas situaes requer do profissional competncias tcnicas, tica e poltica, ou seja, expertises para uma atuao com xito, na perspectiva de (re)construo de projetos de vida.

    do perigo que pretende evitar, at porque decorre muitas vezes de preconceito ou de falta de informao sobre o real perigo que essa pessoa pode causar, isso afeta negativamente as pessoas que so o centro dessas situaes.

    Diversos estudos, sobre os efeitos dessas restries para retirar as pessoas de uma suposta condio perigosa, tem indicado ser necessrio promover outras oportunidades de relacionamento,estratgia que apresenta maiores possibilidades e melhores resultados para que a finalidade positiva atribuda ao confinamento possa se realizar e possa ser motivadora da recuperao.

    Mais que isso, o grupo afetivo ligado s pessoas em confinamento tambm tem suas capacidades fragilizadas, pois esta privado de usufruir um relacionamento ao mesmo tempo em que, por vezes, consideram e so considerados responsveis/implicados com a situao de confinamento imputada a um membro do grupo.

    Desse modo, o confinamento torna vulnervel todas as pessoas nele envolvidas, as que esto diretamente confinadas e as responsveis pelo confinamento.

    Isolamento: situaes de ausncia de relacionamentos regulares e cotidianos, reduo de capacidades de comunicao.

    Situaes de adoecimento (depresso) ou de longos tratamentos, sequelas de acidentes, pessoas com deficincias com esttica muito diferente, envelhecimento com restries de deslocamento tendem a isolar as pessoas em decorrncia da dependncia, de discriminaes e da intensa restrio de ao que elas vivenciam.

    Estas situaes (exceto o envelhecimento) demandam que as pessoas estejam dedicadas a cuidar de si e em decorrncia, com pouca disponibilidade de compartilhamento da vida: seus problemas tornam-se a nica questo sobre a qual tem algo a dizer. Esta situao reduz a presena de pessoas interessadas em conviver, cuidar e dedicar afeto, pois no sentem reciprocidade. Esta vivncia instala um ciclo vicioso de difcil interrupo e transformao.

    No caso do idoso, as limitaes e restries causadas pelo envelhecimento muitas vezes leva os familiares a limitar e restringir ainda mais os relacionamentos e a comunicao destas pessoas.

    Assim, do isolamento decorre vrias restries dentre as quais a prpria compreenso do mundo em que se vive e a experincia de ser reconhecido como importante para as pessoas. Viver essa situao torna a pessoa mais insegura e vulnervel.

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    Fortalecimento de Vnculos como Finalidade

    [...] uma vida no mais vivenciada a partir da necessidade, em funo dos meios e dos fins, mas a partir de uma produo, de uma produtividade, de uma potncia, em funo das causas e dos efeitos.

    Gilles Deleuze

    A construo de uma concepo de fortalecimento de vnculos no mbito da proteo bsica de assistncia social se anuncia e se confi gura como um desafi o de extrema relevncia porque contribui com a sedimentao do entendimento de que lidar com vulnerabilidades do campo relacional uma responsabilidade pblica e que, uma polti ca que busca combater desigualdades e promover o desenvolvimento humano tem um papel central nesse dilogo, pois o trnsito do ambiente individual para o social a raiz fundante da polti ca pblica que exige seu distanciamento da mediao da benemerncia ou da caridade. (SPOSATI, 2009, p. 27).

    Considerando as diversas interlocues estabelecidas e as contribuies realizadas, confi gura-se preciso ao conceito de fortalecimento de vnculos ao tom-lo como resultado do trabalho social, fazendo uma ligao efeti va com a perspecti va da vulnerabilidade relacional. Ou seja, vnculos fortalecidos o resultado do trabalho social que intervm nas situaes de vulnerabilidades relacionais produzindo proteo socioassistencial.

    No senti do de concreti zar esta perspecti va elaborou-se um conjunto de indicadores que precisa ser tomado como orientador das estratgias de investi gao/pesquisa dos profi ssionais da Polti ca de Assistncia, ao mesmo tempo em que compem os planos individuais e coleti vos com os usurios no senti do de ampliao e diversifi cao do campo relacional. Dessa forma, permitem a identi fi cao e qualifi cao dos resultados obti dos no exerccio profi ssional e nos desafi os da polti ca.

    Estes indicadores trazem um aspecto intrnseco que a parcialidade e esto associados entre si, criando no conjunto, um efeito de pertencimento. A parcialidade se expressa no uso do pronomealguns. Estes indicadores foram formulados a parti r da pesquisa, entrevistas e visitas realizadas, ou seja, identi fi cados nos discursos e nas prti cas dos profi ssionais e pesquisadores.

    Algumas relaes de parentesco so fonte de afeto e apoio ordinrio

    Parte das relaes de parentesco traz uma dimenso afeti va e apoiadora no coti diano capaz de proteger os indivduos e/ou grupos. H aqui o reconhecimento de que no so

    Fortalecimento de Vnculos como Finalidade

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    todas as relaes familiares que so capazes de proteger, e que aquelas que apresentam laos positivos e presena afetiva e ordinria precisam ser identificadas e valorizadas. Evidencia-se que