Corpolinguagem e Movimento Psicanálise

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    CORPOLINGUAGEM E MOVIMENTO: UMA PROPOSTA DE TRABALHOCORPORAL PARA CRIANAS LUZ DA PSICANLISE

    Nathal ia Leite Gatto

    Nota-se que as disciplinas ligadas ao movimento na educao infantil, tanto

    curriculares quanto complementares, como por exemplo, a educao fsica, a

    psicomotricidade, a dana e o teatro, utilizam-se de metodologias que se fundamentam

    em perspectivas desenvolvimentistas. Como professora de educao fsica e de ballet

    para crianas, minhas aulas vm tomando uma nova forma a partir de uma

    fundamentao terica embasada na psicanlise. Penso em propor, em minha

    dissertao de mestrado, um trabalho corporal com crianas que possa ser utilizado nas

    disciplinas que trabalham o corpo e o movimento.

    Trabalho corporal entende-se, aqui, como propostas de atividades que podem ser

    utilizadas em diferentes tipos de aulas nas quais o corpo e o movimento so foco, como

    por exemplo, a dana, o teatro, a educao fsica e a psicomotricidade. De modo a

    investigar de que forma o corpo e o movimento so enxergados e trabalhados na

    Educao infantil, independente do currculo adotado, utilizou-se como referncia os

    Parmetros Curriculares Nacionais - PCN - da Educao Infantil (1998). Os PCN so

    referncias que foram criadas pelo Ministrio de Educao e Cultura ao longo do

    perodo de 1995 a 1998 para cada ciclo de escolarizao, incluindo a educao infantil,

    que referente a creches, entidades equivalentes e pr-escolas.

    Nota-se que o PCN coloca em questo a importncia do movimento para a

    aprendizagem nos primeiros anos de escolaridade, entretanto, tendo como base teorias

    da psicologia cognitivista/desenvolvimentista que tm uma viso biologizante da

    criana. Estas concepes nos mostram que a aprendizagem e a constituio psico-

    biolgica da criana podem ser divididas em etapas pelo tempo cronolgico, pela

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    maturao biolgica, e tambm por caractersticas inatas comuns s crianas em cada

    uma dessas etapas. Como exemplo de autor cognitivista/desenvolvimentista fortemente

    adotado pelos PCN, tem-se Piaget (1970; 1978), bilogo suo cujo interesse foi o

    aprofundamento dos conhecimentos sobre epistemologia. A abordagem piagetiana diz

    respeito aquisio da aprendizagem como produto da interao da criana com o

    ambiente. Para Piaget, a criana um ser dinmico, que a todo o momento interage com

    a realidade, operando ativamente, com suas estruturas lgicas j adquiridas, com os

    objetos do mundo, incluindo-se a pessoas, idias e seu prprio corpo. Dessa interao,

    resulta o que Piaget definiu como tomada de conscincia de tais objetos, seja de uma

    operao matemtica, das formas de se relacionar, ou de seu prprio corpo. A educao,

    o ensino/aprendizagem fundamentados no cognitivismo de Piaget, tm estas idias

    como norteadoras tanto quando se trata da aquisio de contedos, quanto do trabalho

    corporal com crianas, no qual o que importa a aquisio da conscincia corporal.

    Outro representante importante da abordagem cognitivista do desenvolvimento

    das crianas o autor russo Lev Vygotsky (1991), que tambm considera, nestes

    processos, a funo da interao com o meio. Entretanto, fundamentado no marxismo,

    Vygotsky acentua a funo da linguagem tanto no desenvolvimento da criana, quanto

    de seus conhecimentos.

    Um terceiro autor desenvolvimentista utilizado como referncia no PCN o

    psiclogo Henri Wallon (1966). Para ele, o desenvolvimento da criana se constitui

    atravs de suas condies cotidianas numa dada sociedade, cultura e poca. Wallon

    mostra de indito a introjeo das emoes e a importncia do ato motor no

    desenvolvimento infantil. Segundo ele, o conjunto afetivo oferece para a constituio da

    pessoa as funes responsveis pelas emoes que so sinalizadores de como o ser

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    humano afetado. Tal condio de ser afetado estimula os movimentos do corpo, assim

    como a atividade mental.

    Percebe-se, portanto, que as concepes que fundamentam o PCN, apesar de no

    darem ateno especial ao trabalho corporal, destacam que sua finalidade a tomada

    de conscincia do corpo, enfatizando, neste processo, o papel das funes cognitivas e

    lgicas, ainda que se busque este objetivo por meio de atividades ldicas. O professor

    tem o papel de incentivador, aquele que interpreta os movimentos expressos pela

    criana e cria atividades e trabalhos adequados ao perodo de desenvolvimento no qual a

    criana se encontra. A boa atividade seria aquela que favorece o desenvolvimento das

    estruturas e esquemas j virtualmente presentes de forma inata e universal na criana.

    A proposta de trabalho corporal com crianas que se pretende construir, luz da

    psicanlise, vem para subverter esta idia de criana universal com caractersticas inatas

    a serem desenvolvidas. Ao invs de visar o desenvolvimento de algo j pr-

    estabelecido, porque determinado por estruturas inatas, o objetivo aqui priorizar o

    corpo/linguagem, ou o corpo pulsional. Freud (1915/2006) define pulso como sendo

    um conceito situado na fronteira entre o mental e o somtico (FREUD, 1915/2006, p.

    127). A pulso tem caractersticas especficas como: presso, que sempre constante;

    objetivo ou finalidade que, no caso, sempre a satisfao; o objeto, que a

    caracterstica mais varivel na pulso, podendo ser qualquer um (at mesmo o prprio

    corpo) e a fonte que vem do prprio corpo (FREUD, 1915/2006). Nota-se, portanto,

    quo prximos esto os conceitos de pulso e corpo. O corpo pulsional aquele que se

    expressa de modo imprevisvel. Expressa, inclusive pelos gestos, quilo que no pode

    ser dito em palavras. Gesto movido pelas pulses, e no movimentos intencionais,

    conscientes, com padres pr-fixados, delimitados por padres universais e ideais a

    serem atingidos, conforme preconiza a didtica sugerida pelo PCN.

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    O corpo da psicanlise tambm corpo/linguagem, constitudo pelo significante,

    organismo feito corpo pelo Outro que o investiu atravs da linguagem. A criana,

    mesmo antes de nascer, j est imersa na linguagem. Para Elia:

    O corpo , ento, objeto de investimento do Outro, e dever ser assumido

    pelo sujeito, j que, entre ambos, nenhuma relao de co-naturalidade existe:

    no vieram juntos (sujeito e corpo) ao mundo, no se articulam por nenhuma

    espcie de afinidade natural(ELIA, 1995, p. 103).

    O corpo est imerso no registro do simblico, j que feito de linguagem,

    intimamente ligado fala do Outro. E tambm est ligado ao real e ao imaginrio. O

    corpo no real um corpo no-ligado, no investido, que no marcado pelo

    significante, no tendo realidade para o sujeito, j que esta realidade supe o registro do

    simblico e do imaginrio. O corpo, no registro do real, quele impossvel de

    simbolizar, aquilo que sempre volta ao mesmo lugar, ao lugar de onde o sujeito,

    enquanto cogita (...), no o encontra (LACAN, 1949/1998, p.67). J o corpo no registro

    do imaginrio quele que se refere s imagens. Efeito de identificao a uma imagem,

    imagem imaginria de unidade ilusria e virtual constituinte do eu-ideal, ideal a ser

    alcanado inconscientemente. Vale elucidar que apesar da criana no ter ainda acesso

    sua prpria fala, falada pelos outros, logo, ela marcada simbolicamente pelo Outro.

    Sendo assim, conclui-se que o registro do imaginrio no autnomo, ele subordinado

    ordem simblica e do real.

    Nossa proposta de trabalho corporal com crianas substitui os exerccios

    embutidos em brincadeiras propostas pelo professor com objetivos de aprimoramento

    e desenvolvimento de valncias fsicas e conscincia corporal, como, por exemplo,

    equilbrio e coordenao motora, por um agir livre no espao. Este livre, pautado

    em propostas feitas pelo professor, com regras para que haja segurana na aula. Esta

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    proposta permite que o pulsional da criana venha tona. O papel do professor de

    proporcionar situaes facilitadoras para que isto ocorra.

    De que forma? Atravs de seus objetivos, o professor prope uma situao ou

    um cenrio para as crianas, convidando-as a brincar ou desafiando-as, pontuando ou

    sugerindo quando achar necessrio, jamais pedindo que reproduzam algum movimento.

    Este deve ser gerado pela necessidade pulsional, que emerge quando a criana se

    prope algum objetivo, por exemplo, ao contar uma histria, ou melhor, ao represent-

    la. Atravs desta proposta de brincadeira, as crianas tero oportunidade de criar,

    construir, expor e negociar, o que culminar na criao de movimentos, gestos ou

    palavras, ou uma combinao dos trs. Assim, se abrir a possibilidade de manifestao

    do pulsional, a partir da emergncia da subjetividade. O corpo pulsional ser veculo de

    expresso de sentimentos, sensaes, evidenciando singularidades de cada criana,

    singularidades que vm de suas histrias, num processo que, por sua vez, colabora em

    sua constituio enquanto sujeitos.

    Cada movimento nas atividades propostas, cada gesto, no exclui uma

    elaborao consciente, mas, visa-se que sejam transcendidos pulsionalmente. No se

    trata, por exemplo, de aprender a se equilibrar atravs de tcnicas e mtodos, e sim,

    desequilibrar-se, subjetivando o se equilibrar atravs do corpo pulsional e simblico.

    Simblico, porque o desequilibrar-se, por exemplo, pode remeter a diversos

    significantes relativos a cada criana.

    Percebe-se que esta proposta diferente daquela que privilegia etapas de

    desenvolvimento e valoriza a aprendizagem de habilidades motoras. As atividades no

    se pautam nos objetivos de alcanar determinados padres de movimentos esperados

    para a faixa etria. O trabalho corporal com crianas, luz da psicanlise, resgata o

    corpo pulsional, o corpo no registro do real, do simblico e do imaginrio descritos por

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    Freud e por Lacan. Padres pr-fixados de movimento e habilidades motoras deixam

    lugar para a livre expresso que, certamente, inclui estes movimentos atravs da

    vivncia de fantasias, brincadeiras, criaes e desafios. A partir dessa energia (palavra

    a qual Freud utilizou pela primeira vez para se referir s pulses), a criana se

    movimenta por pura emoo, prazer e dor e, por consequncia, aprende novas

    habilidades e novas possibilidades de se movimentar. Esta proposta de trabalho, ento,

    no se preocupa com um desenvolver cognitivo-corporal, mas sim como um mergulho

    da criana nas intensidades pulsionais que podem ter seus movimentos.

    BIBLIOGRAFIA

    ELIA, L. Corpo e sexualidade em Freud e Lacan.Rio de Janeiro: Uap, 1996.

    FREUD, S.As pulses e suas vicissitudes In: Edio Standard Brasileira das obraspsicolgicas completas de Sigmund Freud, v. 14. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

    LACAN, J. O estdio do espelho como formador da funo do eu tal como nos

    revelada na experincia psicanaltica (1949) In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1998.

    Parmetros Curriculares da Educao Brasileira.Educao Infantil. Braslia, 1998.

    PIAGET, J. Psicologia e pedagogia.Rio de Janeiro: Forense, 1970.

    _________. A epistemologia gentica.So Paulo: Pensadores, 1978.

    VYGTOSKY, L. A formao social da mente.So Paulo: Martins Fontes, 1991

    WALLON, H. Do ato ao pensamento. Lisboa: Portuglia, 1966

    SOBRE O AUTOR

    Nathalia Leite Gatto. Licenciada em Educao Fsica (UFRJ), Professora de Ballet,Especialista em Psicomotricidade (IBMR) e Mestranda em Psicanlise, Sade e

    Sociedade (UVARJ).