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Coração, cabeça e estômago

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VIDA E OBRACAMILO CASTELO BRANCO(Lisboa, 1825 – São Miguel de Seide, 1890)

1. VIDA

A acidentada vida passional de Camilo CasteloBranco foi a mais importante fonte da própria novelacamiliana, a tal ponto que um dos seus biógrafos, AlbertoPimentel, pôde escrever O romance do romancista poruma simples montagem de textos da sua autoria. Filhonatural, órfão de mãe quando tinha um ano e de pai desdeos dez anos, recebe a partir daí uma educaçãoprovinciana e irregular, entre parentes transmontanos,primeiro junto de uma tia de Vila Real, depois na casa deuma irmã mais velha, em Vilarinho da Samardã, e na deoutro parente em Friúme (Ribeira de Pena). É a doispadres de aldeia que deve os princípios da instruçãoliterária, de modo que, tirante algum estudo de Francês,pode dizer-se que a sua adolescência se formouculturalmente ao contato dos clássicos portugueses elatinos, da literatura eclesiástica e do viver aldeão no arlivre e na aventura. Com efeito, a experiência duma fuga,de muitas jornadas pelas regiões mais sertanejas de Trás-os-Montes, de várias viagens (por vezesacidentadas) a Lisboa, de caça montês, de amoresbravios, o conhecimento íntimo da gente serrana obtidona companhia de padres e de um cunhado médico —tudo isso se filtra na sua obra, por meio de um estilo e deuma concepção de vida que, sobretudo até cerca de 1875,parecem prolongar muito o Pré-romantismo setecentis ta.Em 1841, celebra-se o seu casamento, que em breveesquecerá, com Joaquina Pereira, de quem teve uma filhaque morreu com cinco anos. Entre 1843-46 intenta,primeiro no Porto e depois em Coimbra, tirar um cursode Medicina, que não levará a cabo, mas lhe deixará umaerudição superficial em drogas e descrições patológicas.Sobre-excitado e aventureiro em matéria de amores,conta-nos, entre outras coisas estranhas, que foi buscarum esqueleto para estudos médicos aos despojos mortais

inumados de Maria do Adro, umas das suas amadas.Pouco antes de enviuvar, rapta de Vila Real para o Portoa jovem e órfã Patrícia Emília, de quem teve outra filha;mas também dela em breve se enfastiou. Esse rapto lhevaleu alguns dias de prisão. Sobrevêm as lutas patuleias,em que, segundo consta, episodicamente participa naguerrilha miguelista de MacDonnell.

A partir de 1848 desenrola-se a fase das suasprimícias literárias, com a sua vida fixada, em geral, noPorto. Camilo pertence então à roda dos “leões” do CaféGuichard. Escreve sátiras anticabralistas e antieclesiás -ticas, folhetos de cordel, publica as primeiras poesias, eas suas primeiras novelas surgem no folhetim do Ecopopular e de O nacional. Estreara-se pouco antes comoautor num palco de Vila Real com o drama Agostinho deCeuta. Além das intrigas e aventuras de redaçãojornalística, de camarim de ópera, de sociabilidadeliterária, continuam os enredos amorosos: os outeirospoéticos dão-lhe acesso à intimidade de uma freira; vivealgum tempo com uma costureira dos arrabaldes; bate-seem duelo com um dos filhos de Maria Felicidade Brown,que dele se enamorara; finalmente, apaixona-se por AnaAugusta Plácido, que vem a casar-se com o brasileiroPinheiro Alves, desencadeando-se-lhe uma crisereligiosa que o leva a matricular-se no Seminário doPorto (1850-52), para, como vários dos seus heróis,buscar na ordenação sacerdotal o bálsamo do inferno naalma. Em 1852-53, colabora em órgãos da imprensaabsolutista e clerical, com os quais rompe a partir desseano. Em 1859, finalmente, estando já Camilo bemlançado na carreira de novelista, com bastantes volumespublicados, a sanção dos críticos literários mais autoriza -dos, e acompanhando a evolução geral no sentido daatualidade e do Realismo, dão-se os acontecimentosque mais o celebrizam: Ana Plácido abandona o marido,vai viver com Camilo em Lisboa; o escândalo, asdificulda des monetárias e, depois, a perseguiçãojudiciária forçam os dois apaixonados a fugir de terra emterra, a tomar as mais desencontradas decisões, até que,primeiro ela, e depois ele, dão entrada na cadeia daRelação do Porto. A prisão e o julgamento, de que resulta

CORAÇÃO, CABEÇA E ESTÔMAGO

AULAS ESPECIAISOBRAS DA UNICAMP

PORTUGUÊS

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uma memorável absolvição (1861), encerram a fase deamadurecimento pessoal e literário, e a publicação de Oamor de perdição em 1862, como fruto principal da suaúltima aventura, transposta para a biografia de um seupa rente, assinala o apogeu da sua popularidade denovelista.

A partir de 1864, com várias intermitências, a suavida decorre na casa de S. Miguel de Seide, que o filhode D. Ana Plácido e do seu primeiro marido recebeu emherança. Obrigado a viver do que escreve, Camilo passaa última fase da sua vida num crescendo de tragédia;afligem-no as dificuldades de dinheiro (em 1883 a suabiblioteca é leiloada) e o avanço implacável da cegueira,que, além de outros males físicos, contraíra nos meses deprisão; dos dois filhos que tem de Ana Plácido, o maisvelho, Jorge, é louco, e o segundo, um inútil cuja soluçãode vida consistiu em casar rico, mediante um namoroepistolar e um rapto que o próprio Camilo agenciou.Alguns dos seus amigos mais íntimos, como Vieira deCastro, findam tragicamente. O escritor está na plenitudenos seus recursos literários: as suas novelas, emboraimprovisadas sempre, colhem com flagrante realismotipos populares, burgueses, resto da desagregação dosmorgadios de Entre-Douro-e-Minho, num estilo vivo queincorpora a linguagem oral minhota e processos da novatécnica realista, mas ele se sente por vezes ultrapassadocomo romancista propriamente dito, quando surgemprimeiro Júlio Dinis, depois Eça de Queirós. Depen -dendo quase exclusivamente do seu trabalho literário,não pôde nunca dar-se ao gosto de construir um romancede fôlego, torneado de caracteres e ambientes, que eli -minasse os atrativos folhetinescos e a retórica sen -timental. Teófilo Braga revela até que ponto chegava aproletarização literária do gênio de Camilo, quando nosindica as exigências de vários editores que teve: um deleslhe encomendava livros de moralismo convencional -mente religioso; outro queria enredos históricos; outro sóeditava obras de escândalo, quer pela polêmica, quer peloconteúdo “apimentado”. É certo que não lhe faltaramhomenagens honrosas: D. Pedro visitara-o na prisão;Castilho e outros ergueram-no às nuvens; foi feitovisconde, como Garrett e Castilho. Em 1888, legitima-sea sua ligação com Ana Plácido. Mas os sofrimentosfísicos, morais, pecuniários, o tédio de todas asaventuras, sobretudo da última, prepararam nele maisuma vítima da psicose romântica do suicídio, acabandopor se matar com um tiro de pistola em 1890, depois deter perdido a esperança de recuperar a vista.

A obra que vamos analisar, Coração, cabeça eestômago, é de 1861, contemporânea da obra-prima da

novela passional Amor de perdição (1862), ambasescritas em plena maturidade artística do autor e na faseatribulada da relação com Ana Plácido, das fugas, daprisão e do julgamento.

1.1. Obra

Camilo foi o mais fecundo escritor português e omaior polígrafo da língua. Deixou centenas de obras,entre poesia, teatro, novela, romance, conto, ensaio,tradução, epistolografia e polêmica. Mencionamosapenas alguns títulos mais conhecidos:

a) FICÇÃO Anátema, 1851Mistérios de Lisboa, 1854O livro negro do padre Dinis, 1855A filha do arcediago, 1855/1856Onde está a felicidade?, 1856Um homem de brios, 1856Vingança, 1858Carlota Ângela, 1858A beneficência, 1859A morta, 1860Doze casamentos felizes, 1861Coração, cabeça e estômago, 1861O romance dum homem rico, 1861Amor de perdição, 1862Estrelas funestas, 1862Estrelas propícias, 1863Memórias de Guilherme do Amaral, 1863O bem e o mal, 1863Aventuras de Basílio Fernandes enxertado, 1863 Amor de salvação, 1864 A filha do doutor negro, 1864 Luta de gigantes, 1865O judeu, 1866O santo da montanha, 1866A queda dum anjo, 1866A doida do Candal, 1867A bruxa do Monte Córdova, 1867O senhor do Paço de Ninães, 1868O retrato de Ricardina, 1868O sangue, 1868Os brilhantes do brasileiro, 1869A mulher fatal, 1870O demônio do ouro, 1873/1874O regicida, 1874Novelas do Minho, 1875/1877A caveira da mártir, 1878

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Eusébio Macário, 1879A corja, 1881A brasileira de Prazins, 1882Vulcões de Luna, 1886.

b) POESIAOs pundonores desagravados, 1845O juízo final e o sonho do inferno, 1845A murraça, 1848Inspirações, 1851Duas épocas da vida, 1854Folhas caídas, apanhadas na lama, 1854 Um livro, 1854Ao anoitecer da vida, 1874 Nostalgia, 1888 Nas trevas, 1890.

c) TEATROAgostinho de Ceuta, 1847O marquês de Torres Novas, 1849Espinhos e flores, 1857Poesia ou dinheiro?, 1862O morgado de Fafe, 1863Amoroso, 1865 Morgadinha de Val-d’Amores, 1871Entre a flauta e a viola, 1871

1.2. Características gerais da novela camiliana

a) A biografia de Camilo ajuda a explicar oscaracteres fundamentais de sua obra:

– a sua geografia, centrada nas regiões deTrás-os-Montes e Entre-Douro-e-Minho ena cidade do Porto;

– a pintura de tipos sociais com os quaisconviveu: os camponeses, rudes e francos;os fidalgotes de província, prepotentes,moralmente ambíguos, presos aos seuspreconceitos de casta, sem exigênciassuperiores; a classe média promovida pelodinheiro, os novos-ricos sem qualquerformação cultural; a burguesia portuense eespecialmente os “brasileiros” estúpidos egulosamente românticos e sensuais; o clerocorrupto e moralmente relaxado.

É dessa sociedade vazia de conteúdo espiritual queCamilo vai extrair seus sedutores, os hipócritas, oscriminosos e as vítimas inocentes ou culpadas dessagaleria de verdadeiros tarados sociais. Nos desmandos do

amor é que Camilo encontra o esquema ideológico deseus romances, geralmente vividos em clima de tragédia,movendo-se os protagonistas sob os impulsos daspaixões e os tormentos do “eu” camiliano.

Os temas da bastardia a da orfandade; o tema dosdireitos do coração em face das convenções e dos baixosinteresses; a busca de um sentido metafísico de raizcristã; o anticlericalismo; a pressa de redação, com vistaao lucro imediato (daí a repetição de temas, oesquematismo folhetinesco, as deficiências de estrutura eaté a sujeição ao gosto e às normas éticas de seu públicoou de seus editores) – todas essas característicasprojetam, em maior ou menor grau, os percalços daprópria vida do autor.

b) O estilo camiliano é tão variável quanto a vastagama de temas e intenções que permeiam seus romances,abrigando: do ultrarromantismo desbragado à contençãorigorosa; da poetização romântica ao descritivismominucioso e realista; dos descuidos formais, decorrentesda pressa com que tinha que encaminhar os originais àseditoras para recebimento dos direitos autorais, àelaboração paciente e revisão criteriosa de algumasnovelas.

Autodidata, mas dotado de vasta cultura geral(história, medicina etc.) e literária (Balzac, Eugène Sue,Alexandre Dumas, Victor Hugo, Ann Radcliffe, osclássicos todos, os românticos portugueses – Garrett eHerculano – e até os realistas e naturalistas – Zola e Eçade Queirós), Camilo é dono de um estilo poderosíssimo,dos mais ricos e variados da língua portuguesa.

Seu vocabulário é inesgotável, quer quanto àslocuções vernáculas e eruditas, quer quanto às expressõespopulares, utilizadas com justeza. Tudo se adapta aos seusromances com perfeição. Vale-se de uma linguagemcastiça, rica e concisa que, mesmo quando navega noverbalismo ultrarromântico, é um instrumento adequado àexpressão do mundo camiliano, tão entranhadamenteportuguês nos sentimentos, nos temas e nas personagens.

Há dois níveis que se podem identificar claramente:um inferior, preso às expectativas do público leitor,melodramático, folhetinesco; e um superior, em que afraseologia emocional é substituída por um estilo bruscoe breve, que deixa a leitor suspenso e crispado.

A noção de que Camilo tenha sido um intuitivo, umespontaneísta, é frequentemente desmentida pelapreocupação com a própria escritura, expressa inúmerasvezes. É o próprio autor que, procurando contrabalançara vertente classicizante, reconhecia (em Vinte horas deliteira):

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Quando quero retemperar a imaginação gasta, voucaldeá-la à incude do viver campesino. Avoco lembran -ças da minha infância e adolescência, passadas naaldeia, e até a linguagem me sai de outro feitio, singelasem afetação, casquilha sem os requebrados volteios,que lhe dão os invesados estilistas bucólicos. Assim queme descaio em dispor as cenas da vida culta, aí vem averbosidade estrondosa, o tom declamatório, as infladasobjurgatórias ao vício, ou panegíricos, tirados à forçada violentada consciência, a umas inocências e virtudes,que me têm granjeado descréditos de romancista da lua.

Reconhecia também as vantagens de uma prosaenxuta, além do sentimentalismo vulgar, como a em quelavrou Amor de perdição (conforme se lê no Prefácio daobra):

…a rapidez das peripécias, a derivação concisa dodiálogo para as partes essenciais do enredo, a ausênciade divagações filosóficas, a lhaneza da linguagem e odesartifício das locuções.

E uma linguagem fortemente pessoal, rica em quan -tidade e qualidade, mergulhando quer nos clássicos, querno povo, empregando a termo próprio ou criando aqueleque mais convém. Eça de Queirós reconhecia em Camilomais que um grande dicionarista, como expressou emcarta a ele endereçada:

Porque eu, falando de V. Ex.ª, considero sempre asua imaginação, a sua maneira de ver o mundo, o seusen timento vivo ou confuso da realidade, o seu gosto, asua arte de composição, a fraqueza ou a força do seutraço; e, pelo menos, admiro sem reserva em V. Ex.ª oardente satírico, neto de Quevedo, que põe ao serviço dasua apaixonada misantropia o mais quente e o mais ricosarcasmo peninsular. E os seus amigos, esses, admiramapenas em V. Ex.ª, secamente e pecamente, o homem queem Portugal conhece mais termos do Dicionário!

2. A EVOLUÇÃO DA NOVELA CAMILIANA

As tensões da obra de Camilo Castelo Branco, comojá vimos, têm relação estreita com circunstâncias obser -vadas ou vivenciadas pelo escritor. Sua escrita, entre -tan to, é contraditória: ao registrar esse polo concretoda realidade cotidiana, ele o equaciona ideologica -mente, de acordo com o idealismo sentimental quemotivou a estética romântica.

A técnica de Camilo é folhetinesca e está relacio -nada com a expansão do jornalismo. As narrativas erampublicadas em capítulos, que precisavam motivar o leitora adquirir o capítulo seguinte. A escrita deveria, então,ser bastante simples, para facilitar o entendimento. A tra -ma deveria enredar emocionalmente esse leitor, jogandocom suas expectativas.

Honoré de Balzac e Eugène Sue são os modelosdessa escrita. É possível inovar, mesmo atendendo anecessidades comerciais. E ainda aqui é necessáriotalento para associar a esquemas narrativos, já vistos eincorporados ao gosto do público-leitor, formasnarrativas inovadoras. Foi o que fez Camilo em seustextos literários mais significativos; em outros, menoselaborados artisticamente, predominam clichês eexpedientes melodramáticos.

No conjunto, sua obra renova a escrita literáriaportuguesa. Atualiza, nas condições específicas dopaís, técnicas que tinham grande público, dentro docontexto europeu. Seu trabalho artístico, além disso,renovou a linguagem literária, afastando ouprocurando afastar o empolamento retórico.Renovou o vernáculo castiço e comunicou-se com ogrande público, sem deixar de fazer obra de arte.

Camilo escrevia com facilidade, mas faltou-lhemuitas vezes maior contenção artística. Esta ele obteveem parte em suas últimas produções, quando adquiriu osentido de rigor artístico perseguido pelo Realismo.

Há correlação entre o passionalismo das novelascamilianas e a vida de seu autor, na qual se acumulampaixões e desgraças. Órfão aos dez anos, o futuro escritorvoltou-se apaixonadamente para o mundanismo afim doultrarromantismo. Fazia parte desse comportamentosocial procurar não conter o sentimento ou o instinto:acumula, então, casos amorosos, com mulheres de todasas condições sociais, após afastar-se de sua primeiraesposa. Com Ana Plácido, estabiliza-se emocionalmente,mas o casal foi processado por adultério: ela era casada.Absolvidos, casaram-se mais tarde, após o falecimentodo primeiro marido.

Essa exacerbação sentimental foi correlata igual -mente de uma existência trágica, com contínuos proble -mas econômicos.

Escrevia sem parar, pela necessidade de sustentar afamília. Foi ainda envolvido pela morte da primeiraesposa e da filha que tivera com ela e pelos problemasdos filhos de seu segundo casamento. Para culminar, osefeitos da sífilis, contraída na juventude, intensificaram-sena velhice, quando já estava praticamente cego. Aoverificar que a cegueira não teria cura, suicidou-se.

A produção novelesca de Camilo é muito irregular:alternam-se narrativas bem construídas com outras me -dío cres. Apesar do romanesco e do repetitivo que encon -tramos em boa parte de sua obra, ela possui um valor deordem social: a denúncia dos setores oligár quicos. Elenão aceita os preconceitos da nobreza fossilizada, osnovos-ricos (os “brasileiros”), os burgueses obcecadospelo dinheiro e o clero venal.

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Podemos discernir uma linha de desenvolvimento danovela camiliana, apesar de sua irregularidade e de seusavanços e recuos estéticos. Presa ao gosto popular, elaoscila do Romantismo de Herculano para as formasrealistas de representação, passando pelo ultrarroman -tismo que permeia, mais ou menos, todas as suasproduções. Este é o seu traço distintivo: sua forçaartística está na novela passional, onde se situam asproduções mais típicas desse escritor.

2.1. As novelas de mistério e horror

Ao lado de sátiras políticas e paródias, Camilo, aindaestudante, estreia escrevendo folhetins romanescos emque, no fundo, se debatem os conflitos sociais e moraisde juventude romântica. O herói é quase sempre um galãdescabelado e macilento, que, embora de boa índole, sedeixa corromper pela podridão social urbana (influênciado idealismo de Rousseau: o homem naturalmente ébom, a sociedade é que o corrompe).

Os esquemas são sempre os mesmos: o herói seduzuma mulher e a abandona, enfastiado; ou amadesvairadamente outra mulher, mas tem de ceder perantea imposição de um pai tirano que a pretende casar comum rival rico e mau-caráter, tudo isso resultando emenlouquecimentos, mortes por tuberculose, suicídios,assassinatos etc. Camilo jamais abandonara, de todo esteesquema, o que se relaciona com sua prolongadaadolescência erótica e com a consequente idealização deuma “religião do amor”, em que as aspirações ideais sópodem recortar-se contra um fundo trágico deimpossibilidades sociais, ou de crimes e sacrilégios; emque, por outro lado, a posse física nunca deixa de gerar ofastio da mulher antes angelizada (e por isso mesmo sempossibilidades de companheirismo cotidiano), do queresulta o asco, o tédio, ou a responsabilização vaga dasociedade ou do destino por todas as desgraças. Coração,cabeça e estômago, especialmente na sua primeira parte,o Coração, é uma síntese e uma sátira de todas essasnarrativas sentimentais e melodramáticas.

Anátema, Mistérios de Lisboa e O livro negro dopadre Dinis configuram essa primeira inclinação danovela camiliana para a ação intencionalmente com -plicada, com enredos de terror macabro, perseguições,expiações, crimes, raptos, prisões, enjeitados e bastardosde toda espécie e amaldiçoados através de sucessivasgerações de uma mesma família. Visavam a satisfazer ogosto do grande público pelo romance negro deaventuras, a que não faltava nem mesmo o expediente de

atribuir a paternidade de obra a uma origem misteriosa, oque excita a curiosidade e evita a suspeição de coisainventada pelo autor.

O amor, o ódio, a remorso, a caridade e, sobretudo, avingança (o crime dos antepassados é vingado pelosinocentes) centralizam esses romances negros,tenebrosos, macabros, terroríficos, à maneira dosfeuilletons que a imprensa francesa popularizou entre1830 e 1848.

2.2. As novelas históricas

Paralelamente às histórias de mistério e horror, desdeo romance de estreia – Anátema (1851) – Camiloinclinou-se para o historicismo e para o moralismograndiloquente, inspirado em Victor Hugo e AlexandreHerculano. Nessa linha, situam-se os dramas Agostinhode Ceuta, O judeu, O morgado de Fafe, O santo damontanha, A filha do regicida. Mas a verdadesentimental acabou por sobrepujar o historicismo.

2.3. A maturidade – As novelas passionais

Por meados da década de 1860, pode-se considerardefinido o caráter literário de Camilo, com as sériesconstituídas por Cenas contemporâneas, Onde estáfelicidade?, Um homem de brios e Memórias deGuilherme Amaral. Desde então, até cerca de 1875,Camilo apura o esquema da novela passional, dando-lheo máximo de intensidade dramática, avivando-lhe oritmo narrativo, circunstanciando-a, em geral, com notassóbrias, mas precisas, das condições históricas entre asinvasões francesas e a extinção dos morgadios, bemcomo do meio social da burguesia portuense ou das maisdiversas camadas rurais minhotas.

Paralelamente, numa constante oscilação pendular,Camilo desenvolve o gênero da novela satírica decostumes, na vertente oposta ao idealismo passional. Énessa categoria que se inclui Coração, cabeça eestômago, de que trataremos a seguir.

Amor de perdição (paradigmática), Carlota Ângela,Amor de salvação e A doida de candal são algumasnovelas passionais que incluem, em doses variáveis,alguns expedientes folhetinescos. Ao lado das diferençasprofundas quanto ao estilo, ao ritmo, à atitude deintroversão e à sutileza psicológica, há uma “religião doamor” comum a Camilo e a Bernardim Ribeiro; noentanto, em Bernardim a mulher é sujeito, e não só objetodo amor, e, por outro lado, o amor jamais passa da fasedo enamoramento, da transfiguração lírica do real.

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Em Camilo, o homem tem uma atitude combativaperante os obstáculos sociais que o separam do objeto dodesejo e vai além da aspiração lírica das “recônditasalegrias” e “dulcíssimos júbilos”. A posse da amadadesdobra-se na dialética sentimental do tédio e doremorso, ou do equívoco e do reconhecimento tardio, ouda eternidade do amor perante a morte.

O sentimento moral do crime e o sentimentoreligioso de pecado andam sempre ligados a todatentativa de consumação do amor, como se as relaçõesafetivas entre o homem e a mulher nunca devessem sairdo plano suprarreal do sagrado, do intocável, e a mulher,sentida na carne, tivesse necessariamente de ser umavítima angélica, ou uma aniquiladora mulher fatal – aMulher-anjo e a Mulher-demônio.

A novela camiliana típica é a novela de grandespenitentes do amor. A mulher reveste-se de um papel damais nobre dignidade (angélica ou demoníaca), masesvaziada de sentido e complexidade psicológica,reduzindo-se a um símbolo poético do misterioso eternofeminino.

Camilo retoma a fórmula “mártires do amor”,promovendo a amor à categoria do sagrado, doincomensurável, além da razão ou das normas morais,amor fatal, obsessivo, tão grandioso que não se contémno plano terreno e humano. Os desenlaces, sempretrágicos, implicam a expiração transcendental das culpasdos amantes, por meio da morte, do suicídio, da loucuraou do convento. O desenvolvimento do enredo atravésdos “elos de uma cadeia fatal” segue o trilhoprofetizado por presságios terríficos e confirmados porcoincidências estranhas, coloridas de sobrenaturalidade.A própria natureza assiste emocionada à consumação do“sacrifício” dos amantes.

O que para Camilo assinala e resgata as almas eleitasé a glória de um amor ultraterreno (mesmo que ilegal esacrílego), “santificado e abençoado pelo anjo de Deuse de ambos”, ainda que condenado pelas leis dos homens.

Amor de perdição é o modelo acabado da novelapassional camiliana. O entrecho é bastante simples:

Dois jovens, Simão Botelho e Teresa de Albuque -rque, estão enamorados. As respectivas famílias,separadas por velhas questões, não veem com bons olhostal afeição. E tentam de vários modos afastá-los,inclusive enviando Simão para Coimbra e obrigandoTeresa a ingressar num convento para não ser obrigadaa se casar com seu primo Baltasar Coutinho. Diantedisso, os jovens planejam uma fuga e, quando Simão sedirige ao convento, encontra às portas deste o pai e oprimo de Teresa. Trava-se, então, uma luta entre o último

e Simão, sendo que Baltasar acaba morto. Simão é presoe condenado ao exílio. Faz-lhe companhia a pobreMariana, moça simples, que o ama sem sercorrespondida e que lhe tem sido um anjo de guarda.Enquanto Teresa definha no convento, atacada por ummal incurável, o moço aguarda a hora de partir. O barcolarga. Ainda Simão avista, ao longe, o convento deMonchique e o lenço branco de Teresa a acenardebilmente. Sobrevém-lhe repentina febre, que o prostraà morte. É sepultado no mar. Mariana lança-se ao mar emorre abraçada ao cadáver de Simão.

2.4. As novelas de aproximação realistae as satíricas

A partir das pequenas novelas e cantos das Novelasdo Minho, Camilo opera uma acentuada transformaçãona maneira de construir sua ficção romanesca. Mesmoque nunca tenha pactuado integralmente com oRealismo, que via como simples pintura de quadros dadegradação humana, o êxito de Eça de Queirós e deÉmile Zola forçaram Camilo a um reajustamento, queprocurou disfarçar sob a forma de pretensa paródiaaportuguesada da série Rougon-Macquart, de Zola, e doestilo “afrancesado” de Eça.

A observação dos tipos e da linguagem da populaçãorural e da burguesia torna-se mais consciente, o que nãose pode considerar uma renovação radical, pois Camilojá se utilizara desses mecanismos em livros anteriorescom muita intuição. Permanecem também os ingredien -tes de sempre: enredamentos genealógicos (de váriasgerações); casos de enjeitados e de mulheres desonradas,mais tarde reabilitadas pelos mais miraculosos expe -dientes; pais tiranos, casamentos forçados com ricaçospançudos, violências passionais; alternância de idea -lismo sentimental com o materialismo grotesco. Oelemento novo é a inclusão da descrição minuciosa, àmoda realista.

Para Antônio José Saraiva (em sua História daLiteratura Portuguesa),

trata-se, na verdade, de um arranjo da novela satí -rica de costumes da fase anterior: tudo se reduz, comoenredo, a um jogo grotesco de adultério e outras formasde infidelidade amorosa que envolvem vários tipos daburguesia minhota, enrique cidos com o casamento de“brasileiros” recém-vindos e descambando nasrelaxações morais ainda mais des bragadas do meiocitadino. Os apetites digestivos, sexuais e pecuniáriosdominam todas as principais personagens. (...)

A narração é lenta, cheia de continuidade descritiva,com o estilo apoiado não na vernaculidade, ou na riqueza

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lexical, rítmica e sintática, mas na riqueza de notaçõessensoriais (sinestesias), à maneira de Eça e dos naturalistas.

Eusébio Macário, A corja, A brasileira de Prazins eVulcões de lama são os livros que melhor configuram aassimilação da técnica realista.

Observe a plena consciência com que Camilo defineo Naturalismo, no prefácio de Eusébio Macário:

O tímido autor esperava que os artistas nãorefugassem a obra tracejada, e afirmassem que eu, nestadecrepidez em que faço ao estilo o que os meus coevos dejuventude fazem ao bigode, não podia penetrar com olhomoderno os processos do naturalismo no romance. Oraa coisa em si era tão fácil que até eu a fiz, e tão vaidosofiquei do Eusébio Macário que o reputo o mais banal,mais oco e mais insignificante romance que aindaalinhavei para as fancarias da literatura de pacotilha.(...) Cumpre-me declarar que eu não intentei ridicula -rizar a escola realista. Quando apareceram O crime dopadre Amaro, O primo Basílio e os romances de Teixeirade Queirós, admirei-os, e escrevi ingenuamente otestemunho da minha admiração. Creio que, hoje em dia,novela escrita de outro feitio não vinga. Eu não conheciaZola e ainda agora apenas e escassamente o conheço deo ouvir apreciar a uma pessoa de minha família que mefez compreender a escola com duas palavras: “É a tuavelha escola com uma adjetivação de casta estrangeirae uma profusão de ciência compreendida naIntrodução aos três reinos”. Além disso, tens de pôr afisiologia onde os românticos punham asentimentalidade: derivar a moral das bossas, esubordinar à fatalidade o que, pelos velhos processos, seimputava à educação e à responsabilidade. Compreendie achei que eu, há vinte e cinco anos, já assim pensava,quando Balzac tinha em mim o mais inábil e ordináriodos seus discípulos. (...)

E, a seguir, falando de Eusébio Macário, disseca osprocedimentos naturalistas:

Os processos do autor são, já se vê, os científicos, oestudo dos meios, a orientação das ideias pela fatalidadegeográfica, as incoercíveis leis fisiológicas e crimaté -ricas do temperamento e da temperatura, o despotismodo sangue, a tirania dos nervos, a questão das raças, aetologia, a hereditariedade inconsciente dos aleijões defamília, tudo, o diabo!

Observe, na primeira página de Eusébio Macário, adescrição do relógio da farmácia, com tal profusão deadjetivos e comparações que fazem do relógio, em vez deobjeto artístico, um verdadeiro aborto. É evidente aintenção caricatural:

Havia na botica um relógio de parede, nacional,datado em 1781, feito de grandes toras de carvalho e muitaferraria. Os pesos, quando subiam, rangiam o estridor deum picar de amarras das velhas naus. Dava-se-lhe cordacomo quem tira um balde da cisterna. Por debaixo datriplicada cornija do mostrador havia uma medalha comuma dama cor de laranja, vestida de vermelhão, decotada,com uma romeira e uma pescoceira crassa e grossa devaca barrosã, penteada à Pompadour, com uma réstia depedras brancas a enastrar-lhe as tranças.

Agora, a descrição “realista/naturalista” do farma -cêutico:

O farmacêutico Eusébio Macário sentara-se espa pa -do, com as carnes desfalecidas, à porta, um largo mochode cerdeira com assento de junco roto, espipado, com unsesbeiçamentos de palhiça muito amarelada do atrito.Havia grande calor enervante. O sol punha nas paredesclareiras faiscantes, cruas. Moscas zumbiam com asaslampejantes em giros idiotas; gatos agachados comovelhos sicários pinchavam com muitas perfídias à caçados pássaros nas densas verduras desbotadas dos arvore -dos; carros chiavam nas terras baixas, barrentas, comgrandes gretas das calcinações do grande Sol; os lentosbois nostálgicos vergastavam com as caudas ásperas osmoscardos que os atacavam de entre os tapumes comgrandes sedes impetuosas de frescores de sangue. Haviamolezas e estonteamentos abafadiços no ar cheio desensualidades mordentes. Lavandiscas esvoaçavam nasourelas úmidas dos regatos muito garbosas, com pipila -ções joviais; besouros azuis de tons metálicos luzentesrodopiavam em volteios curtos e muito sonoros; pardaisaban dados infestavam as painçadas, dando pios hila -riantes de bandidos canalhas; cerejas bicais verme lha -vam as suas provocações sorridentes como beiços rubrosde mulheres vitalizadas de lascívias aquecidas de bomsangue; pêssegos abeberados de sucos doces penujavam;varas de porcos com grunhidos regalados esfoçavam nasesterqueiras, banhando-se com grandes espalhafatos comodaliscas epiléticas de volú pias escandecidas; raparigasesguedelhadas, de narizes arrebitados, com as caras fuli -gi nosas de suor e poeira, muito escaneladas, com olhosespantadiços, de secreções amarelas, saias de estopasuja, frangalhona, a trapejar nos canelos esburgados,guar davam bácoros, e davam gritos de um timbre muitoagudo que punham ecos nas colinas batidas do largo sol;galinhas cacarejavam; galos de cristas escarlates erecortadas, arrastavam a asa com arremetidas parla -patonas de sultões. A natureza estava cheia de mistériosamorosos e de uma grande espiritualização sensual.

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3. CORAÇÃO, CABEÇA E ESTÔMAGO

Em Coração, cabeça e estômago, publicado em1862, a personagem principal, Silvestre da Silva, que seapresenta como uma pessoa que “tinha muita lição demaus livros”, narra as suas experiências pessoais e suavisão da sociedade portuguesa do século XIX,ironizando os romances tradicionalmente românticos eridicularizando os efeitos do amor e do engodosentimental, revelando que a única razão de ter seenvolvido amorosamente com diversas mulheres foranão ter nada melhor para fazer.

A crítica de Camilo Castelo Branco na obra nãoenvolve apenas a questão literária romântica, mastambém se arremessa ao leitor, que é frequentementebanalizado pela sua preferência de amar incessante -mente, ironizando de maneira mordaz comportamentoromântico convencional, que se estabelece como padrãode conduta ao ser humano apaixonado.

Logo no início do romance, encontra-se uma“Advertência do autor”, em primeira pessoa, na qual seimpõe a voz desse pretenso autor, a qual dividirá espaçocom outras vozes, como no “Preâmbulo”, que apresentaum diálogo entre o narrador e Faustino Xavier deNovais. Já na primeira parte, Coração, outra voz surge ese apresenta como o protagonista do romance, Silvestreda Silva, que tem suas aventuras entremeadas a algumasnotas, em primeira pessoa, que seriam de um narradorexterno ao romance, auxiliado por diversas notas derodapé em terceira pessoa, um narrador onisciente.

O desfile de diversas vozes narradoras remete ao queo teórico Mikhail Bakthin denomina “polifonia” e quepossibilita ao leitor de Coração, cabeça e estômagodiversas reflexões e conclusões a respeito do que ali énarrado, principalmente sobre os efeitos irônicos queCamilo Castelo Branco tão bem tece em sua obra.

Rompendo com o dogma romântico, há também emCoração, Cabeça e estômago o adultério feminino,relatado como quase uma necessidade da mulher quecasa por algum tipo de interesse ou por dote. É o caso deLeontina, o primeiro amor do narrador póstumoSilvestre, casada com o seu padrinho de 50 anos, pordinheiro, a qual, em pouco tempo, trai o marido e oabandona, no entanto acaba enriquecendo após a mortedele, que havia perdoado o deslize da esposa.

Já as mulheres desprestigiadas economica men te nãotêm um destino tão feliz, como é o caso de Marga rida,segundo amor de Silvestre, que morre abandonada peloconde. Marcolina, “a mulher que o mundo despreza”,também não tem sorte e acaba se prostituindo; no

entanto, há uma diferença entre essas duas personagensfemininas, pois uma é respeitada pela sociedade, e aoutra é uma vítima dela. Desse modo, Camilo CasteloBranco parodia o contexto sociopolítico, cultural eliterário oitocentista, ridicularizando o falso moralismoportuguês da época.

Camilo Castelo Branco expõe toda a sua capacidadede criação literária em Coração, Cabeça e Estômago, umsuposto romance autobiográfico, ao elaborar estilosnarrativos diferentes, reunindo os relatos de Silvestrecomentados pela figura do editor, também ficcional, queinterrompe frequentemente a ação do romance para fazercomentários irônicos, ridicularizando os fatos narradospelo amigo.

Na segunda parte do romance, dedicada à Cabeça,Silvestre é o motivo declarado da ironia camiliana, sendoignorado e ridicularizado por não ter conseguido serministro da Coroa, em decorrência de desejar serreconhecido como um reformador da sociedade.

Silvestre desforra-se de seus zombadores,procurando um envolvimento com uma mulher que oenriquecesse, encontrando a solução numa mulher quedeveria ser velha e feia, mas acaba se envolvendo emuma polêmica de maior gravidade por causa de um artigojornalístico que escrevera, denigrindo a imagem de umimportante intelectual, o que resulta na condenação deSilvestre à prisão.

Após o tempo recluso, Silvestre decide satisfazer oEstômago, terceira parte da obra, afirmando que ocasamento não é movido pelo amor, mas pelo estômago,não se diferenciando mais, ao terceiro ano de casado, opeito do estômago. Ao morrer, deixa dívidas, supondoque a publicação de suas memórias fosse o suficientepara saldá-las.

3.1. O coração

Pelo coração advêm a Silvestre os mais diversosdissabores. Apaixonado e arrastado para casossentimentais com sete mulheres (número cabalístico?),aproveita Camilo os sete devaneios do personagem paranos apresentar outras tantas figuras de mulher, dondesempre ressaltam os condimentos de enredo tão queridosao autor, a saber: as bastardias, os casamentos deconveniência, as desonradas, os enjeitados etc.

Dentre todas elas, destacam-se duas histórias demulheres que merecem que nelas se detenha o leitor maisatentamente e que são “A mulher que o mundo res -peita” e “A mulher que o mundo despreza”. Trata-sede dois retratos bem cruéis, pela veracidade, duma

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sociedade que, absurdamente, e por apenas respeitar odinheiro e o poder, permite que os maiores desaforosmorais sejam aceitos quando provêm do estrato social eeconomicamente dominante e que as virtudes, apanágionormalmente dos pobres e dos deserdados da sorte,sejam olhadas como torpeza.

Transcrevemos o “Preâmbulo” da novela, no qual seexplica como sobreviveram os manuscritos de Silvestreda Silva, conforme o relato de Faustino Xavier deNovais, que os resgatou. Observe aqui o expediente deinvocar alfarrábios e manuscritos antigos e misteriosospara revestir a narrativa de uma “aura” de verdade, típicoda narrativa romântica. Mas a forma pela qual, nestecaso, os originais vieram ter à mão do autor é bastanteprosaica, bem como as intenções que presidiram a suapublicação.

PREÂMBULO

— O meu amigo Faustino Xavier de Novaisconheceu perfeitamente aquele nosso amigo Silvestre daSilva...

— Ora, se conheci!... Como está ele?— Está bem: está enterrado há seis meses.— Morreu?!— Não morreu, meu caro Novais. Um filósofo não

deve aceitar no seu vocabulário a palavra morte, senãoconvencionalmente. Não há morte. O que há émetamorfose, transformação, mudança de feitio.Pergunta tu ao doutíssimo poeta José Feliciano deCastilho o destino que tem a matéria. Dir-te-á a teurespeito o que disse de Ovídio, sujeito que não era maismaterial que tu e que o nosso amigo Silvestre da Silva.“Ovídio cadáver”, pergunta o sábio, “onde é que para?Tudo isso corre fados misteriosos, como Adão, comoNoé, como Rômulo, como nossos pais, como nós, comonossos filhos, rolando pelos oceanos, flutuando nos ares,manando nas fontes, correndo nos rios, agregado naspedras, sumido nas minas, misturado nos solos, viçandonas ervas, rindo nas flores, rescendendo nos frutos,cantando nos bosques, rugindo nas matas, raiando dosvulcões etc.”. Isto, a meu ver, é exato e, sobretudo,consolador. O nosso amigo Silvestre da Silva, a estahora, anda repartido em partículas. Aqui faz parte dagarganta dum rouxinol; além, é pétala duma tulipa;acolá, está consubstanciado num olho de alface; podeser até que eu o esteja bebendo neste copo de água quetenho à minha beira e que tu o encontres nos sertões daAmérica, alguma vez, transfigurado em cobra-cascavel,disposto a comer-te, meu Faustino.

O que te eu assevero é que ele deixou de ser Silvestreda Silva, há seis meses, posto que os parentes teimam emlhe ter uma lousa sobre o chão, onde o estiraram, comesta mentira: “Aqui jaz Silvestre da Silva”.

Pois é verdade.O nosso amigo começou a queixar-se, há de haver

um ano, de falta de apetite, e frialdade de estômago,efeito das indigestões. Foi a banhos de mar à Póvoa deVarzim, e só tomou três, porque perdeu o dinheiro em duascartas da sua paixão, e voltou para casa a castigar-se dovício, tomando banhos de chuva e leites quinados. Foi demal a pior. Desconfiou que passava a outrametamorfose, e deu ordem aos seus negócios da almacom a eternidade. Dos bens terrenos não fez deixação,porque lá estavam os credores, seus presuntivosherdeiros, ainda que alguns deles declinaram a herançaa benefício de inventário, lamentando que em Portugalnão fosse lei a prisão por dívidas: parece que os irritoua certeza de que o cadáver insolvente não podia serpreso. Em outro ponto, te darei mais detida notícia destacatástrofe.

Eu fui o herdeiro dos seus “papéis”. Alguns credoresquiseram disputar-mos, cuidando que eram papéis decrédito. Fiz-lhes entender que eram pedaços dumromance; e eles, renunciando à posse, disseram que taispataratices deviam chamar-se papelada, e não papéis.

Aceitei a distinção como necessária e retirei com apapelada, resolvido a dá-la à estampa, e com o produtodela ir resgatando a palavra do nosso defunto amigo,embolsando os credores. Fiz um cálculo aproximado,que me anima a asseverar aos credores de Silvestre daSilva que hão de ser plenamente pagos, feita a décimaedição deste romance.

Aqui tens tu uma ação que deve ser extremamenteagradável às moléculas circunfusas do nosso amigo.Espero que Silvestre ainda venha agradecer-me o cultoque assim dou à memória dele, convertido em aroma deflor, em linfa de cristalina fonte, ou em ambrósia devinho do Porto, metamorfose mais que muito honrosa,mas pouco admirativa nele, que foi deste mundo jásaturado em bom vinho. É opinião minha que o nossoamigo, a esta hora, é uma folhuda parreira.

Vamos à papelada, como dizem os outros.Tenho debaixo dos olhos, mal enxutos da saudade,

três volumes escritos da mão de Silvestre.O primeiro, na lauda, que serve de capa, tem a

seguinte inscrição em letras maiúsculas: CORAÇÃO.O segundo, menos volumoso, diz: CABEÇA.O título do terceiro, e maior volume, é:

ESTÔMAGO.

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Nenhum deles designa época; mas quem tiver, comoeu, particular conhecimento do indivíduo, pode, semgrande erro cronológico, datar os três manuscritos.

O Coração reina desde 1844 até 1854. São aquelesdez anos em que nós vimos Silvestre fazer tolice brava.

Em 1855 notamos a transfiguração do nosso amigo,que durou até 1860, época em que tu já tinhas trocado opatrimônio da estima dos teus conterrâneos pelaslentilhas do Novo Mundo. Não viste, pois, a transiçãoque o homem fez para o estômago, sepultura indigna dassantas quimeras, que o entonteceram na mocidade, econsequência funesta da má direção que ele deu aosprojetos, raciocínios e sistemas da cabeça. Podemosassinar tempo ao terceiro volume, desde 1860 até fim de1861, em que a autobiógrafo se desmanchou do que erapara se arranjar doutro feitio.

Silvestre, como sabes, tinha muita lição de mauslivros. Olha se te lembras que os seus folhetins eram umviveiro de imoralidades vestidas, ou nuas, à francesa.Jornal em que ele escrevesse morria ao fim do primeirotrimestre, depois de ter matado muitas ilusões. Quemhoje desembrulha um queijo flamengo, e lê no invólucroum folhetim de Silvestre, mal pensará que tem entre asmãos o passaporte de muita gente para o Inferno.

Seguem as narrativas das mirabolantes aventuras doautobiografado com sete mulheres, sucessivamente:

A primeira, Leontina, era órfã e vivia da caridade deum ourives, amigo de seu falecido pai. Foi casopassageiro, e o narrador acrescenta, no final, algumasinformações que Silvestre da Silva não tinha, sobre suaascensão social por meio do casamento com o padrinhocinquentão e, mais tarde, com um antigo admirador,agora enriquecido.

A segunda, Margarida, também era sua vizinha –relação fugaz e malsucedida.

A terceira, D. Catarina, era uma quarentona decomportamento duvidoso, que tentou enredar oprotagonista.

A quarta, Clotilde, era casada, e enredou Silvestreem enorme ridículo.

A quinta, Dona Martinha, viúva de trinta e cincoanos, dona do hotel, e a sexta, a mulata Tupinoyoyo,foram casos tão fortuitos quanto escandalosos.

A sétima, a francesa Mademoiselle Elise de laSalette, enganou o afoito amante Silvestre da Silva numarede de mentiras sobre seu passado, que, quandorevelado, expôs o ridículo de suas aspirações.

Paula, “a mulher que o mundo respeita”, eMarcolina, “a mulher que o mundo despreza”,

arrematam as desventuras que o Coração impôs ao cautodesfrutador Silvestre da Silva, arrematando a galeria detipos e situações que configuram o ridículo e patético, ahipocrisia e a perversidade que se escondem sob arubrica do amor ultrarromântico.

Transcrevemos o início de “A mulher que o mundorespeita”, que apresenta parcialmente os poemasultrarromânticos que o autobiografado pretendia publicarsob o título de Gritos da alma. Observe o tomparodístico, de intencional mau gosto:

A minha alma olhou para o que foi e viu que os seteamores que a tinham derrancado passageiramente eramridículos e indignos de serem dados como explicação deum cinismo sobremaneira satânico em que eu me andavaensaiando.

Antes, porém, que eu tornasse em mim, estive seismeses a dizer ao mundo, em prosas chamadasMeditações e em versos denominados Gritos da alma,que estava cético, e cínico, e que havia de engolfar nolodo em que me atascaram o coração as virgens lourascom o seu amor ingênuo, e quantas virgens de diversascores a minha libertinagem atraísse às aras de sedentavingança. Aqui vão as cópias dos principais poemas queentão fiz...

Nota

Defendo a paciência do leitor dos duros golpes quelhe estão iminentes. Ainda assim, há de levar-me a bemque eu lhe dê, à prova, uns relanços das poesias céticasdo meu amigo Silvestre. Entro pela mais filosófica:

Ontem me riu o céu; milhões de estrelas Me falaram d’amor.

Ontem flores a mil, e todas elasMe davam, dos seus dons, das urnas belas,

Aroma à alma em flor!Hoje, ai!, hoje um céu de negro, e a terra

De crepe funeral!Hoje um peito que em si peçonha encerra;E a alma em fogo, que precita erra

Num regiro infernal.

As seguintes coisas são menos inocentes:

Mulher!, em ânsias me esforço, Punge-me dentro o remorsoDe te não calcar aos pés!Tinha uma crença... mataste-a!

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Tinha uma luz... apagaste-a!... Mulher!, que monstro tu és!

Esta quadra da poesia LXIX é mais raivosa:

Hei de essa alma perversa estrinçar-te! Hei de à fronte cuspir-te a peçonha Que verteste em meu peito, e ferrete Hei de pôr-to de eterna vergonha!

Basta isto para terror das almas e amostra da poesiacontemporânea de Silvestre.

3.2. A cabeça

Quanto à cabeça, Silvestre a utilizará quase sempreem seu prejuízo, ao serviço do jornalismo, discorrendosobre quanto lhe parecia errado na sociedade do seutempo, em artigos que saíam em um jornal do Portodenominado Periódico dos pobres. É na qualidade dejornalista que se trava de razões, por questões mais oumenos particulares, com o Dr. Sanches, benquistoadvogado portuense que, vendo posta em causa a suamais que duvidosa honestidade, consegue a Silvestre,além da fama de caluniador, uma bela pena (que eleremirá a dinheiro), a cumprir-se na Relação do Porto,ficando mais uma vez claramente provado que “há umasociedade que não tem obrigação de ser outra coisa, logoque é elegante”.

No início da segunda parte, as reflexões de Silvestreda Silva:

JORNALISTAI

O homem não se deve somente à sua felicidade –primeira máxima.

O principal egoísta é aquele que se desvela emexplorar o coração alheio para opulentar o próprio comas deleitações do amor – segunda máxima.

Como a felicidade do egoísta é um paradoxo, afelicidade pelo amor é impossível – terceira máxima.

Quarta – o bem particular é resultado do bem geral.Quem quiser ser feliz há de convencer-se de que

sacrificou ao bem geral uma parte dos seus prazeresindividuais – quinta máxima.

O amor, considerado fonte de contentamentos ideais,é o sonho dum doido sublime – sexta.

Sétima – a mulher é uma contingência: quem quiserconstituí-la essência de sua vida, aleija-se na alma, e

cairá setenta vezes sete vezes das muletas a que seampare do chão malgradado e barrancoso do seu falsocaminho.

Estas sete máximas fui eu que as compus, depois deler a antiguidade, e alguns almanaques, que tratavam doamor.

Entrei a cogitar no modo de ser útil à humanidadecom a minha experiência e inteligência do coraçãohumano. Ofereceu-se-me logo azo de exercitar as minhasbenévolas disposições. Escrevi para o Periódico dospobres, do Porto, uma correspondência contra o regedorda minha freguesia, acusando-o de me prender umcriado para recruta. Nesta correspondência, discorrilargamente acerca dos direitos do homem. Examinei oque foi a liberdade em Grécia e Roma. Procurei-a noberço do cristianismo, e vim com ela, através dosséculos, até a Revolução Francesa, que eu denominei oúltimo verbo da sociabilidade humana: tudo isto porcausa do recruta, e contra o regedor da minha freguesia,que eu cobri de epítetos tais como ominoso e paxá de trêscaudas.

O regedor respondeu-me, e eu repliquei. Seguiu-seuma série de correspondências, que podiam formar umlivro importante para a história dos costumes dosregedores em Portugal no século XIX.

O prurido de escrever correspondências, a respeitodoutras muitas coisas, e mormente da dotação do clero –matéria que veio a ponto, quando eu tive uma questãocom o meu pároco por causa da côngrua e pé de altar –,insinuou-me a persuasão de que havia em mimpronunciadas tendências para escritor político.Discutia-se naquele tempo o Sr. Conde de Tomar, a quemuns chamavam Barba-Roxa, e outros marquês dePombal. Decidi-me a favor dos segundos, que tinhamincontestável razão. Escrevi uma série de artigos, commuito suco, em grande parte copiados do DicionárioPolítico de Garnier-Pagés; e, na parte de minha lavra,havia ali uma verdura de ideias que ninguém lhe metiadente. Por essa ocasião, recebi de vários pontos do paísdiferentes cartas, umas insultadoras, capitulando-me debesta; outras, no mais moderado de seus encômios,profetizavam em mim o Girardin português.

3.3. O estômago

Assim chegamos à terceira parte, dedicada aoestômago, que, ao contrário do coração e da cabeça, traráa Silvestre as poucas horas de paz e satisfação da suavida. Com Tomásia, filha do sargento-mor de Soutelo,cuja casa rendia quinhentas medidas de centeio, oretratado encontrará as delícias de um casamento rico,

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com uma mulher que o conquista com as pantagruélicasrefeições e lhe garantirá uma prole robusta, com poucocoração e pouca cabeça, já que esses provam ser ospontos fracos de Silvestre, do autor e, afinal, de todos nós.

Obra duma ironia mordaz, quase contundente, quenos faz pensar muito seriamente, entre dois sorrisos, nainversão de valores que em todos os tempos tãoamargamente sentem os que prezam demasiado ocoração e a cabeça, e por isso falam e escrevem deestômago vazio.

O desdobramento da vida de Silvestre da Silva éparalelo ao de Afonso de Teive, protagonista de Amor desalvação. Depois da descabelada paixão por Teodora (amulher-demônio), a plácida relação matrimonial comMalvina, os filhos saudáveis, o abdômen volumoso, aaurea mediocritas e o otium cum dignitate dos clássicos,resgatados pelo racionalismo burguês. Não é outrotambém o destino do cosmopolita Jacinto de Tormes, no

final de A cidade e as serras. Seduzido pela vidabucólica, pela paz do campo, abandona Paris e se casacom Joaninha, camponesa rústica e saudável.

Em Coração, cabeça e estômago, a tranquilidade davida rural acaba por estupidificar o protagonista, e matá-lo, doente do estômago de tanto comer.

Há em Camilo um realismo que se exprime pelainsistente reivindicação pícara dos direitos do dinheiro edo estômago e que tem larga tradição peninsular e nadadeve às teorias de Flaubert e Zola. Na ótica camiliana,mesmo a sublime Mariana, de Amor e perdição,transformar-se-ia numa mocetona sadia, numa mulher dopovo, como Tomásia, amesquinhada pelo contato com oreal, com a mediocridade do cotidiano, com o inevitáveltédio do herói e com sua efetiva incapacidade de seentregar a um objetivo duradouro, longa ouinesgotavelmente apaixonante (como para Camiloapenas poderia ser o de escrever novelas...).

1. Sobre o romance Coração, cabeça e estômago, deCamilo Castelo Branco, é correto afirmar quanto aoautor das memórias:a) Silvestre da Silva repete, em seus casos amorosos,

um comportamento idealista, até conhecerMarcolina e usá-la sexualmente.

b) A figura do “homem fatal” encontra correspon -dência em Silvestre da Silva, que, para seaproximar do aspecto sedutor, usa roupas pretas epinta olheiras, o que atrai o interesse de Paula.

c) O narrador escreve poemas apaixonados, em quereveste as mulheres de inocência e idealização,considerados pelo Editor exemplos do melhor quehá na literatura portuguesa.

d) Ao viver em Lisboa, Silvestre conheceu trêsmulheres, sendo uma delas Tomásia, por quem seapaixonou e abandonou a vida de sedutor.

e) Silvestre, ao assumir a voz narrativa do romance,reflete sobre si mesmo, critica a sociedadeportuguesa da época e avalia os comportamentosdas mulheres com que se envolveu.

2. O romance Coração, cabeça e estômago apresentauma pretensa biografia de Silvestre da Silva, na qualele descreve sua vida, dividida nas três fases quetitulam o livro. Caracterize cada uma das partes do romance.

Exercícios

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3. Camilo Castelo Branco foi um leitor dedicado degrandes obras da literatura universal, o que se podecomprovar pelas frequentes referências a autorescomo Luís de Camões, Victor Hugo, Aristóteles,Goethe, dentre outros. No entanto, pode-se afirmarque o autor português, para compor Coração, cabeçae estômago, não se apoiou ema) Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de

Machado de Assis.b) Viagens na minha terra (1846), de Almeida

Garrett.c) A dama das Camélias (1858), de Alexandre

Dumas.d) Don Juan (1818-1823), de Lord Byron.e) A divina comédia (século XIV), de Dante

Alighieri.

4. Associe algumas das mulheres com as quaisSilvestre se envolveu às partes do romance Coração,cabeça e estômago e, depois, assinale a alternativaque apresenta a sequência correta.I. Cabeça.II. Coração.III. Estômago.( ) Paula.( ) Tomásia.( ) Mariana.( ) Elise.a) I, II, III, I.b) III, I, II, III.c) II, III, II, I.d) II, III, I, II.e) I, II, III, II.

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1. Em Coração, cabeça e estômago, Camilo CasteloBranco desfila várias reflexões e avaliações sobreas mulheres e a sociedade portuguesa por meio davoz do narrador Silvestre da Silva e, também, doEditor. Os erros das demais alternativas são: ema, Silvestre não explorou Marcolina sexual mente,mas auxiliou-a no fim da vida; em b, Paula não seinteressa por Silvestre amorosamente, mas zombadele; em c, o Editor critica negativamente as aven -turas poéticas de Silvestre; e, em d, o relaciona -mento de Tomásia e Silvestre se inicia em Souteloe ele afirma não saber se ama a futura esposa.Resposta: E

2. Na parte intitulada Coração, Silvestre da Silvaapresenta a história dos amores desastrosos desua vida, envolvendo-se com Leontina,Margarida, Catarina, Clotilde, Martinha,Tupinoyoyo e Elise, além de Paula, “a mulher queo mundo respeita”, e Marcolina, “a mulher que omundo despreza”.Na segunda parte, Cabeça, o protagonista relatasuas aventuras intelectuais e jornalísticas, além

de decidir casar-se por dinheiro, o que não ocorrecom nenhuma das três mulheres que tem emmira. E, na última parte, Estômago, Silvestre vaiviver no campo, alça carreira política, casa-secom Tomásia e morre de caquexia.

3. Certamente, Camilo Castelo Branco não se valeudo romance Memórias póstumas de Brás Cubaspara escrever Coração, cabeça e estômago, umavez que a referida obra de Machado de Assis foipublicada após o romance camiliano citado.Resposta: A

4. Paula e Elise são dois amores que Silvestrevivenciou quando se dedicava a atender oschamados do Coração; Mariana surgiu na vida donarrador no momento em que ele se desilude ebusca um casamento rico, na segunda parte doromance, intitulada Cabeça; e Tomásia será aesposa de Silvestre na fase dedicada a saciar asvontades de Estômago.Resposta: D

CORAÇÃO, CABEÇA E ESTÔMAGO

GABARITOOBRAS DA UNICAMP

PORTUGUÊS

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