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copyright © 2014 Carlos Augusto Baptista de Andrade, Guaraciba Micheletti, organização

Todos os direitos autorais dos textos publicados neste livro estão reservados aos autores e foram cedidos para uso da Editora Terracota Ltda., exclusivamente para a publicação desta obra. E o conteúdo desses textos é de inteira responsabilidade de seus autores.

CapaSonia Sueli Berti-Santos

DiagramaçãoRicardo Silva

Revisão Metodológica

Editor responsávelClaudio Brites

Conselho EditorialAna Lúcia Tinoco Cabral (UNICSUL-Br)Anna Christina Bentes (UNICAMP-Br)Armando Jorge Lopes – Univ. Eduardo Mondlane – MoçambiqueBenjamim Corte-Real – Univ. Nacional de Timor-Leste – Timor-LesteCláudia Maria de Vasconcellos (USP-Br)Guaraciaba Micheletti (UNICSUL/USP-Br)Maria da Graça Lisboa Castro Pinto (Univ. do Porto-Pt)Maria João Marçalo (Univ. de Évora-Pt)Maria Valiria Aderson de M. Vargas (USP e UNICSUL-Br)Moisés de Lemos Martins (Univ. do Minho – Portugal)Sueli Cristina Marquesi (PUC/SP e UNICSUL-Br)Regima Helena Pires Brito (Univ. Mackenzie)Vanda Maria da Silva Elias (PUC/SP-Br)

Todos os direitos desta edição reservados àTerracoTa ediToraAvenida Lins de Vasconcelos, 1886 - CEP 01538-001 - São Paulo - SP - Tel. (11) 2645-0549www.terracotaeditora.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP

Roberta Amaral Sertório Gravina, CRB-8/9167

C129 Cadernos de linguística: pesquisa em movimento: discurso, texto e ensino / Carlos Augusto B. Andrade, Guaraciaba Micheletti (Orgs.). – Volume 1 – São Paulo: Universidade Cruzeiro do Sul; Terracota Editora, 2014.

198 p. ; 14x21 cm.

ISBN: 978-85-8380-024-8

1. Linguística 2. Análise do discurso I. Micheletti, Guaraciaba II. Andrade, Carlos Augusto B.

CDD 410CDU 81

Cadernos de Linguística: pesquisa em movimento

Discurso, Texto e Ensino

volume 1

São Paulo - 2014

Terracota

Carlos Augusto Baptista de AndradeGuaraciba Micheletti(Orgs.)

Sumário

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Parte 1Ensino de cultura nas aulas de inglês na Educação Básica: um paralelo entre os parâmetros curriculares nacionais e o currículo do Estado de São Paulo 11Andréia Maria Moura de Gouveia (Universidade Presbiteriana Mackenzie)

Prática de Leitura e escrita em língua inglesa: o conto The happy prince didatizado 37Flávio Augusto Balbin (Universidade Cruzeiro do Sul)

Polidez nas interações virtuais: um fórum educacional 56 Maria Verônica da Fonseca Teixeira e Sonia Sueli Berti-Santos (Universidade Cruzeiro do Sul)

O lugar do texto no ensino de Português: do conceito às propostas de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 79Nathália Rodrighero Salinas Polachini (Universidade de São Paulo)

Parte 2Bolsa Família: a construção da cena genérica na propaganda institucional 105Claudia Pereira de Souza e Patrícia Leite Di Iório (Universidade Cruzeiro do Sul)

Breve análise da música Bananas, do grupo Titãs: um olhar sobre os aspectos positivos e negativos da imagem cultural no Brasil 129Giselda Fernanda Pereira (Universidade de São Paulo)

A língua e a reconstrução da identidade cultural em Guiné-Bissau 153 Katia Melchiades (Universidade Presbiteriana Mackenzie)

Análise discursiva do enunciado das autoridades no contexto do conflito árabe-israelense 169Karen Dantas de Lima (Universidade Cruzeiro do Sul)

Sobre os organizadores 193Sobre os autores 194

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Apresentação

CADERNOS DE LINGUÍSTICA: PESQUISA EM MOVI-MENTO é uma publicação semestral em e-book do Programa de Linguística da Universidade Cruzeiro do Sul. A publicação foi criada em 2014 em parceria com a Terracota Editora com o objetivo de promover e divulgar pesquisas da área de Letras e Linguística, reunindo artigos de alunos e pesquisadores de cursos de pós-graduação do Brasil e do Exterior, vinculados a Instituições de Ensino Superior, ou de profissionais de reconhe-cido saber de áreas equivalentes.

Este primeiro volume, cuja temática é “Discurso, texto e ensino” volta-se para reflexões relacionadas a questões do ensi-no, na parte 1, e outras questões do discurso, na parte 2.

A coleção nasce assim, procurando de forma orgânica apresentar trabalhos, neste primeiro momento, aprovados pe-los orientadores dos alunos de pós-graduação, alguns deles assinados em conjunto. Os organizadores pretendem incluir a cada número um maior número de instituições brasileiras e es-trangeiras para apresentar à comunidade acadêmica as pesqui-sas desenvolvidas na área.

Em “Ensino de cultura nas aulas de inglês na Educação Bá-sica: um paralelo entre os Parâmetros Curriculares Nacionais e o Currículo do Estado de São Paulo”, Andréia Maria de Moura de Gouveia procura demonstrar como o ensino de cultura é re-levante para melhorar a qualidade de ensino de língua ingle-sa na Educação Básica, procurando apresentar como pode ser

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levada à sala de aula de maneira prática, observando os PCN e CESP.

Na sequência, Práticas de leitura e escrita em Língua Inglesa: o conto The Happy Prince didatizado, desevolve uma análise de como o discurso literário coopera com as práticas de leitura e escrita em língua estrangeira. O autor aborda a importância de se trabalhar significativamente com o gênero literário, demons-trando a importância da relação língua-literatura.

Polidez nas interações virtuais: um fórum educacional, texto de Maria Verônica da Fonseca Texeira e Sonia Sueli Berti-San-tos, aponta para importância do estudo da polidez em ambien-tes virtuais de aprendizagem, mais especificamente em fóruns educacionais. Ser polido nas interações virtuais, segundo as au-toras, é uma forma eficaz de se conduzir as interações em EaD.

Para se discutir a produção escrita, observando-se as ques-tões relativas ao ENEM, Nathalia Rodrighero Salinas Polachini em O lugar do texto no ensino de Português: do conceito às pro-postas de redação do ENEM reflete e discute sobre a concepção de texto, numa perspectiva dialógica, e investiga como de 1998 a 2012 as propostas de redação no ENEM foram constituídas, observando, inclusive, a crescente presença de gêneros verbo-visuais, tais como charges, tirinhas e infográficos.

Na segunda parte da presente obra, Claudia Pereira de Souza e Patrícia Leite Di Iório, com o trabalho Bolsa família: a construção da cena genérica na propaganda institucional in-troduzem questões de análise do discurso, com o objetivo de perceber como o Governo Federal, a partir de um programa es-pecífico, constrói sua imagem. As autoras delimitam o presente estudo na análise da cena genérica, presente em propagandas institucionais.

Breve análise da música Bananas, do Grupo Titãs: um olhar

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sobre os aspectos positivos e negativos da imagem cultural no Brasil de Giselda Fernanda Pereira propõe uma investigação so-bre as imagens culturais que podem ser observadas na letra da música, por meio das ocorrências intertextuais e dos recursos usados pelos autores que resultam em imagens acerca da iden-tidade cultural dos brasileiros e, consequentemente, do Brasil.

Katia Melchiades em A língua e a reconstrução da identi-dade cultural em Guiné-Bissau reflete sobre o papel social que a língua tem no âmbito da nação, mesmo passando pelas frag-mentações culturais que a atingem em um mundo pós moder-no, para tanto, procura fazer uma análise do poema Em que língua escrever, de Maria Odete da Costa Soares Semedo, de Guiné-Bissau, no qual o eu lírico apresenta o impasse da deci-são de ter de escolher entre o crioulo e o português.

Finalmente, Karen Dantas de Lima, em Uma análise do enun-ciado das autoridades no contexto do conflito árabe israelense pro-põe uma análise do discurso político, observando a organização sintática, as escolhas lexicais e a interação verbal nos discursos de Mahmoude Abbas e Bejamin Netanyahu que apontam para evidenciar visões subjetivas das representações da realidade, norteadas pela ideologia, fundamento o trabalho em postula-dos de Bakhtin e seu círculo.

Dessa maneira, esse primeiro volume da série de Cadernos que serão produzidos, procura oferecer à comunidade acadê-mica textos que possam contribuir com a reflexão e discussão de temas pertinentes para a área de Letras e Linguística, bem como ser um espaço para a divulgação da produção de alunos e professores de programas de pós-graduação. Especialmen-te, neste ano, temos dois volumes, um de novembro de 2014 e outro que logo estará à disposição em dezembro de 2014. A partir de 2015, é objetivo dos Programa de Pós-graduação em

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Linguística da Universidade Cruzeiro do Sul, ajustar a periodi-cidade para os meses de junho e dezembro, lançando dois livros por ano. A presente publicação estará à disposição de todos, de forma gratuita, na versão e-book e pdf na página do Programa.

Carlos AndradeGuaraciaba Micheletti

nov. 2014

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Ensino de cultura nas aulas de inglês na Educação Básica: um paralelo entre os parâmetros curriculares nacionais e

o currículo do Estado de São Paulo

Andréia Maria Moura De Gouveia

Introdução

A disciplina Língua Inglesa na rede pública de ensino da Educação Básica brasileira é vista pelos alunos em geral e por parte da sociedade contemporânea, como não muito atrativa, sem razões concretas para estudá-la. Tal quadro se dá por não haver compreensão sobre sua importância e necessidade efeti-va de aprendizagem. Diversos motivos são apontados para esse insucesso, entre os quais estão a infraestrutura inadequada das escolas e a desmotivação dos alunos decorrente de anos “perdi-dos” para aprender “o verbo to be”.

O presente capítulo tem como principal objetivo de-monstrar como o ensino de cultura é de primordial relevância para reverter o cenário negativo que constitui o ensino do Inglês na Educação Básica. Apoiar-nos-emos em documentos oficiais emitidos pelo Ministério da Educação brasileira: os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e o Currículo do Estado de São Paulo (Cesp), para traçar um caminho no que se refere à cultu-ra. Apresentaremos conceitos de língua e cultura, abordaremos uma questão-chave: como a cultura pode ser levada às salas de

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aula de maneira prática. Começaremos por contextualizar o processo de ensino do

Inglês no Brasil a partir da década de 1970, uma vez que esse período é expressivo no cenário educacional brasileiro. Sequen-cialmente, abordaremos os conceitos mais relevantes acerca de língua e cultura para, finalmente, enquadrar o ensino de cultura por meio dos PCN e do Cesp.

Breve histórico do ensino de Língua Estrangeira no Brasil: contextualização

Os professores sempre estiveram em busca de metodolo-gias que melhor se adequassem aos contextos, no Brasil não foi diferente: tivemos – e ainda temos – vários métodos; alguns mais duradouros que outros.

A década de 1970 é marcada por um grande desenvolvi-mento de metodologias, principalmente voltadas para a aqui-sição da Língua Inglesa, que ganham espaço no mundo globa-lizado. Começa-se a pensar em comunicação, língua e cultura como componentes para o ensino-aprendizagem de um idioma estrangeiro. Assim, abordagens humanísticas, centradas nos alunos, nascem. Tomemos as palavras de Celani (2012, p. 42) como norte:

Primeiro, tivemos aquela baseada em gramática e tradução. Depois, caminhamos para o método audiolingual, embasado na repetição oral e com orientação behaviorista. Daí em diante, apareceram iniciativas soltas: método funcional (conteúdo determinado por funções, como pedir desculpas e cumprimentar), método situacional (conteúdo pautado por eventos como “no aeroporto”, “na loja” etc.). Todos, no fundo, se tratavam de audiolinguais disfarçados, já que a condução

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em sala também se dava pela repetição. Mais tarde, surgiu a abordagem comunicativa, por meio da qual não se pode usar a primeira língua, só a estrangeira. Essa foi a grande revolução do fim do século 19.

Atualmente vivenciamos um período conhecido por “pós-método”, que tem como princípio a comunicação em seu sen-tido mais amplo. Podemos afirmar, no entanto, que ainda hoje há resquícios de metodologias muito antigas, como o método de tradução e gramática, mas que há evidências, por parte de ainda poucos professores atuantes na Educação Básica brasi-leira, de atualização e de busca de melhores metodologias no ensino, nem que essa seja realizada por meio de várias misturas de abordagens.

Ensino de língua e cultura

A aquisição de línguas estrangeiras deve ser realizada por meio do conhecimento de sua cultura. Afinal, de acordo com Franz Boas, a língua é parte integrante da cultura; logo, é inegável que língua e cultura sejam indissociáveis. É por meio dessa que dizemos quem somos, o que sentimos, o que quere-mos, ou seja, o que nos constitui, mesmo porque a língua pode ser entendida como um produto cultural por excelência.

Sabemos que no processo ensino-aprendizagem de língua inglesa estamos lidando com a cultura estrangeira o tempo todo. Se língua é cultura, a cultura local de um povo nos é dada automaticamente ao aprendermos um idioma diferente do nos-so. Para efetivamente dominarmos esse idioma, é necessário, portanto, agirmos adequadamente frente às mais diversas cir-cunstâncias. Silva (2011, p. 20) adiciona que:

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Todos necessitam saber como agir em determinadas situações e, também, como prever o comportamento dos outros. A coerência de um hábito cultural somente pode ser analisada a partir do sistema a que pertence. Cada sistema cultural está em permanente mudança.

A problemática jaz, precisamente, em qual representação de cultura ensinar aos alunos nas escolas brasileiras. Qual men-cionar ao trabalharmos com língua inglesa quando há diversas dessas em um cenário híbrido cultural? As culturas britânica e americana são as mais citadas devido ao seu amplo campo de atuação e são facilmente apreendidas pelas tecnologias midiá-ticas; isso significa que não precisamos nos esforçar muito para ter ao alcance filmes, músicas, sites, moda, alimentos, produ-tos de consumo em geral. A globalização, inquestionavelmente, atingiu a todos, em todas as áreas.

Conceituar cultura é um processo complexo devido à sua magnitude e variação com o decorrer dos tempos. Contudo, Silva (2011) esclarece que: “O conceito de cultura inclui a lín-gua, a História, a Geografia, os modos de formular ideias, de fa-zer, de ser e de estar comuns aos membros de um mesmo grupo social; inclui um espaço compartilhado; uma visão do mundo e uma simbologia veiculada.” E ainda que:

Tomando como base o conceito antropológico, podemos considerar que tratar de língua significa, entre outras coisas, tratar de um produto da cultura de cada povo. Através da língua são identificados os hábitos, crenças, profissões, manifestações culturais, características geográficas etc. de cada comunidade linguística (SILVA, 2011, p. 20).

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Aprender uma língua estrangeira significa compor um mundo novo. Esse é fundado na cultura de um povo, onde tudo é diferente do sujeito que a estuda. Consequentemente, o papel de todo professor de língua é o de criar condições de uso dessa. Mais uma vez, demonstramos a importância de repensarmos nossa prática frente às diversas culturas com as quais podemos lidar em sala de aula. Essa tarefa não é das mais simples devido à pluralidade cultural que vivenciamos na atualidade. Acrescen-tando os dizeres de Silva (2011, p. 21), temos: “O aprendizado de uma língua consiste não apenas no entendimento e domínio de sua estrutura gramatical, mas também na coerência entre o que ela descreve e o conhecimento de mundo que seu falante possui.”

Destarte, tomamos por norte dois documentos oficiais bra-sileiros que podem direcionar as escolhas dos caminhos a se-guir, a saber: os parâmetros curriculares nacionais, que apresen-tam uma dimensão generalista, uma vez que se aplica a todas as regiões brasileiras, e o currículo do Estado de São Paulo, que nos apresenta os conteúdos que devem ser seguidos durante o ano letivo e somente no Estado de São Paulo. Nesses analisaremos as coordenadas relacionadas especificamente aos valores cultu-rais que devemos apresentar aos alunos.

A cultura por meio dos parâmetros curriculares nacionais

Os PCN são um referencial para a Educação Básica brasileira. Tanto a rede pública quanto a privada utilizam esse documento como norte em seus processos de ensino-apren-dizagem devido a sua qualidade na construção de objetivos e conteúdos, tornando-o um trabalho ímpar presente no cenário educacional brasileiro.

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O ponto chave para esse trabalho é descobrir o papel da cultura no ensino de língua estrangeira, além de refletirmos qual cultura seria a mais apropriada para a abordagem em sala de aula. Assim, iniciemos nossa análise com um olhar para três de seus objetivos gerais, presentes logo no início do documento:

• Conhecer características fundamentais do Brasil nas di-mensões sociais, materiais e culturais como meio para construir progressivamente a noção de identidade nacio-nal e pessoal e o sentimento de pertinência ao país;

• Conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio socio-cultural brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou outras característi-cas individuais e sociais;

• Utilizar as diferentes linguagens – verbal, musical, ma-temática, gráfica, plástica e corporal – como meio para produzir, expressar e comunicar suas ideias, interpretar e usufruir das produções culturais, em contextos públicos e privados, atendendo a diferentes intenções de comunica-ção (BRASIL, 1998, p. 7-8, grifos nossos).

Como podemos ver, os objetivos dos PCN deixam claro que a cultura é parte essencial no processo ensino-aprendizagem de idioma estrangeiro. Fazer com que nossos alunos conheçam as características culturais, que valorizem a pluralidade do patri-mônio sociocultural brasileiro e os aspectos socioculturais de outros povos e nações e, ainda, interpretar e usufruir das pro-duções culturais são ações que tornam os estudantes seres críti-cos e atuantes em nossa sociedade contemporânea. Outrossim, no que se refere à cultura, os PCN apontam que

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há a posição dos que olham a cultura como um processo em constante negociação, neste momento realizado em condições político-culturais de inter-relacionamento global. [...] Há de se evitar teorias totalizantes de reprodução social e cultural (por exemplo, visões de uma sociedade consumista global veiculadas por uma língua hegemônica como o inglês) para se chegar a um paradigma crítico que reconheça o papel do ser humano na transformação da vida social. [...] Assim, os indivíduos passam de meros consumidores passivos de cultura e de conhecimento a criadores ativos: o uso de uma Língua Estrangeira é uma forma de agir no mundo para transformá-lo. A ausência dessa consciência crítica no processo de ensino e aprendizagem de inglês, no entanto, influi na manutenção do status quo ao invés de cooperar para sua transformação (BRASIL, 1998 p. 39-40).

Desse modo, tal documento revela uma visão mais ampla

do que imaginávamos em um primeiro plano. Partir de nossa própria cultura e, não obstante, descobrir que possuímos uma cultura, valorizá-la, para então pensarmos na do outro. É as-sim que construímos uma educação de qualidade com poder de transformação.

O que ainda nos intriga, todavia, está relacionado à existên-cia de variadas culturas que têm a língua inglesa como idioma materno ou a utilizam como segunda língua oficial. O que fazer frente a tal quadro? De posse dos PCN, encontramos um capí-tulo que discorre somente sobre a pluralidade cultural. A fim de encaminhar resposta para nosso questionamento:

Esse tema [pluralidade cultural] pode ser focalizado a fim de desmistificar compreensões homogeneizadoras de culturas específicas, que envolvem generalizações típicas de aulas de Língua Estrangeira do tipo, por exemplo, os ingleses ou os franceses são assim ou assado. [...] também é essencial que se traga para a sala de aula o fato de que, pelos processos de

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colonização, muitas línguas estrangeiras, tradicionalmente equacionadas com as línguas faladas pelos nativos dos países colonizadores [...], são hoje usadas em várias partes do mundo como línguas oficiais e até mesmo como línguas maternas. Não faz sentido, por exemplo, considerar o espanhol somente como a língua da Espanha, como também considerar o inglês somente como a língua da Inglaterra ou dos Estados Unidos, ou o francês como a língua da França. [...] No que se refere a uma língua hegemônica como o inglês por ter uma grande penetração internacional, [...] é essencial que se focalize a questão da pluralidade cultural representada pelos países que usam o inglês como língua oficial. [...] Cabe ressaltar ainda o papel do inglês na sociedade atual. Essa língua, que se tornou uma espécie de língua franca, invade todos os meios de comunicação, o comércio, a Ciência, a tecnologia no mundo todo. É, em geral, percebida no Brasil como a língua de um único país, os Estados Unidos, devido ao seu papel atual na economia internacional. Todavia, o inglês é usado tão amplamente como língua estrangeira e língua oficial em tantas partes do mundo, que não faz sentido atualmente compreendê-lo como a língua de um único país. As pessoas podem fazer uso dessa língua estrangeira para seu benefício, apropriando-se dela de modo crítico. É esta concepção que se deve ter da aprendizagem de uma língua estrangeira, notadamente do inglês: usá-lo para se ter acesso ao conhecimento [...]. O acesso a essa língua, tendo em vista sua posição no mercado internacional das línguas estrangeiras, por assim dizer, representa para o aluno a possibilidade de se transformar em cidadão ligado à comunidade global, ao mesmo tempo que pode compreender, com mais clareza, seu vínculo como cidadão em seu espaço social mais imediato (BRASIL, 1998, p. 48-49).

Nesses trechos, observamos ricos pontos que valem a dis-cussão. O primeiro refere-se à pluralidade cultural de um povo. Não faz mais sentido expor em nossas aulas como o povo nor-te-americano, por exemplo, comporta-se em determinadas si-tuações. Temos de ter em mente que nos dias atuais é muito

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complicado generalizarmos costumes, modos de agir, de pen-sar, de ser de todo um povo. Os alunos devem ter consciência de que a convivência com tantas culturas diferentes faz com que os povos e, consequentemente, seus costumes, variem de forma inimaginável, fazendo com que seja praticamente impossível darmos conta, de forma generalista, de seus modos de agir e ser.

Não podemos, igualmente, deixar que os estudantes pen-sem que o espanhol só é falado na Espanha, para citar apenas um exemplo. A língua inglesa, principalmente, deve deixar de ser considerada a língua dos ingleses, ou dos norte-america-nos. Nasce, assim, uma ótima oportunidade para retomarmos a questão de cultura, a história das línguas, os processos de colo-nização e descolonização, da constituição das nações, da globa-lização, seus efeitos, para chegarmos à contemporaneidade com uma visão ampla do cenário global atual, sobretudo no que se relaciona à pluralidade cultural.

O terceiro ponto, talvez o mais importante, é o de usarmos o inglês para a obtenção de conhecimento. A partir do momen-to que nossos alunos tomarem consciência do poder que está embutido no domínio de um segundo idioma, seguramente o processo de ensino-aprendizagem será mais aproveitado. Tere-mos, portanto, atuação por parte dos jovens em seus espaços sociais imediatos e, inclusive, no mundo em geral. Certificamo-nos, assim, de que não podemos focar em apenas uma, ou duas abordagens culturais em nossas aulas, mas sim nas várias que compõem o cenário contemporâneo. Vejamos adiante como o currículo do Estado de São Paulo aborda esta questão.

A cultura segundo o currículo do Estado de São Paulo

O currículo do Estado de São Paulo: linguagens có-

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digos e suas tecnologias é o documento oficial emitido pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, em 2010, que subsidia os professores da rede pública de ensino a planejar e repensar sua prática pedagógica.

Oprincipalobjetivoaoseoferecerumdocumentoúni-coparatodasasescolasestaduaispaulistasfoiodegarantiriguais oportunidades aos estudantes, além de “estabelecer unidade e direção coordenadas nos respectivos sistemas”(SÃO PAULO, 2010). O ponto que nos interessa para este capí-tulo é o que se refere à cultura, que também merece destaque no documento. Vejamos trechos que trazem essa questão:

Nesse sentido, o atual Currículo da SEE/SP1 pressupõe alteração significativa no conceito de conteúdo em LEM2. Não se trata mais de privilegiar a gramática ou as funções comunicativas; trata-se, sim, de promover, no estudo da língua estrangeira, o engajamento discursivo por meio de textos e práticas sociais autênticos que possibilitem ao estudante o conhecimento e o reconhecimento de si e do outro, em diferentes formas de interpretação do mundo. [...] a disciplina Língua Estrangeira Moderna (LEM) contribui decisivamente para a formação mais ampla do indivíduo, visto que possibilita o contato do educando com outros modos de sentir, viver e expressar-se. Assim, é fundamental que o ensino da língua estrangeira contribua para a construção da competência discursiva do estudante, o que é possível se optarmos por uma perspectiva pluricêntrica que considere a diversidade linguística dos falantes do idioma objeto de estudo, sejam eles nativos ou não nativos, assim como os conhecimentos e experiências do educando em língua materna. Vale lembrar que cada indivíduo, ao longo de sua vida, torna-se membro

1 Abreviação para Secretaria da Educação do Estado de São Paulo.2 Abreviação para Língua Estrangeira Moderna.

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de diferentes comunidades discursivas, ou seja, estabelece relações mediadas pela linguagem com diferentes grupos sociais. São essas experiências, em língua materna e em línguas estrangeiras, que definem a sua identidade linguística e cultural. Promover, no ambiente educacional, a reflexão sobre essas experiências pode constituir-se fecundo instrumento para a formação humana e cidadã dos estudantes (SÃO PAULO, 2010, p. 106-107, grifo nosso).

Observamos que o texto contido no Cesp é sucinto no que diz respeito à problemática deste capítulo. Ao compararmos as bibliografias3 utilizadas em ambos os documentos percebemos que os PCN foram utilizados como fomento para a constitui-ção do Cesp, fato que justifica o objetivo comum. É de extrema importância que as secretarias conversem para que o trabalho docente seja focado e que resultados sejam colhidos.

Do currículo destacamos o engajamento discursivo do alu-no, além da consideração da diversidade linguística, tanto local quanto global, partindo da língua materna para a estrangeira, ressaltando experiências com a identidade linguística e cultu-ral de um povo. Aqui é o ponto chave para a compreensão do estrangeiro, do cultural e da língua como forma de entender o outro e de atuar no mundo.

Um tema interessante apontado no Cesp é o de se poder trabalhar com a diversidade linguística, de nativos ou não. Isso nos leva a considerar que toda a linguagem produzida por sujeitos falantes de um idioma deve ser ressaltada. Sendo a língua a própria cultura, aqui temos demonstrações de estudos culturais abrangendo uma ampla demonstração de campo de atuação, isso significa, mais uma vez, que podemos abordar toda e qualquer cultura referente ao idioma em questão.

Todo professor deve se esforçar para estar a par dos usos 3 Anexos A e B.

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da língua, dos costumes de um determinado povo, da história que envolve essa cultura. Sabemos que não podemos dominar absolutamente tudo, entretanto, isso não nos exime de pesqui-sar, de estar em contato ao máximo com as culturas que nos são diferentes. Podemos acessar sites nigerianos, ouvir programas australianos de rádio, ler jornais (online) russos, como o The Moscow Times, que é totalmente produzido em inglês. Isso deve fazer parte do cotidiano de todo professor engajado com seu trabalho. Essas são maneiras de se notar como o estrangeiro atua no mundo; é a forma mais simples de observar e adquirir a cultura estrangeira.

Considerações finais

O ensino de cultura nas aulas de Língua Estrangeira e tam-bém na de Língua Materna, mostra-se essencial no cenário con-temporâneo no qual vivemos. Toda língua carrega em si manei-ras próprias de expressar pensamentos, vontades, sentimentos e conhecimentos de um determinado povo, constituindo, pois, a cultura que fundamenta sua existência. Desse modo, não pode-mos nos abster de prover aos alunos essa existência cultural que faz com que o ensino se torne motivador e significativo para todo e qualquer aprendiz.

Pensamos, em um primeiro momento, em qual cultura transmitir aos estudantes, uma vez que há tanta diversidade da língua inglesa no mundo atual. Por isso, consultamos os docu-mentos oficiais brasileiros, os PCN e o Cesp, pontos de partida para esta pesquisa. Verificamos que os PCN tratam de forma bem abrangente a questão da cultura, não nos permitindo uma visão generalista que diz que tal povo tem tal costume e nada mais. Temos que pensar em alternativas de permanecermos

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atualizados e “antenados” com os acontecimentos para poder-mos, de forma realística, repassar o que observamos. A simples maneira de se dizer algo, de se comentar sobre algum assunto, as expressões utilizadas no dia a dia de um povo constituem efetivamente sua língua e cultura.

Ao compararmos os PCN com o Cesp, observamos que há coerência no que diz respeito aos seus objetivos. Vimos tam-bém que o currículo teve como base justamente os PCN em sua construção, sendo esse o motivo de ambos terem seus objetivos igualados. Isso é um facilitador para o trabalho do professor, fazendo com que esse tenha apenas um foco: o de transformar a aquisição de uma língua estrangeira em uma maneira de o estudante adquirir conhecimento e poder agir no mundo em que vive. Por conseguinte, devemos conscientizar e situar esse aluno no mundo, com o intuito de torná-lo um sujeito atuante na sociedade.

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Práticas de leitura e escrita em língua inglesa: o conto The happy prince

didatizado

Flávio Augusto Balbin

Introdução

Proporcionar efetivas práticas de leitura e escrita de uma língua estrangeira não é uma tarefa tão simples quanto inicial-mente possa parecer, pois há um vasto universo em relação ao posto e o pressuposto rumo ao vértice semântico originalmen-te idealizado. Assim, a pretensão deste capítulo é apresentar possíveis contribuições que um texto literário, por meio de seu discurso, pode oferecer tanto para o trabalho com leitura quanto para o aprendizado de uma língua estrangeira.

Nosso corpus se constituirá de uma sequência didática elaborada a partir do conto The happy prince, de Oscar Wilde, presente no livro didático de língua inglesa Keep in mind – 6º ano. Ao longo das análises apresentadas, alguns textos são ex-plorados no que se refere a uma leitura genericamente espe-cífica, partindo do discurso literário proposto pelo conto em pauta. Logicamente, há a operacionalização da língua inglesa ao longo de todas as atividades propostas pelo livro didático. Isso se faz justamente com o intuito do trato da língua materna em paralelo à língua alvo. Desta forma, o coenunciador estrará, teoricamente, apto a construir sua compreensão em relação ao

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enunciado posto. O que se espera, portanto, ao final deste tra-balho é demonstrar que, independentemente da língua em que se apresentem, práticas de leitura e escrita quando elaboradas e conduzidas objetivamente, com significação ao discente, pro-porcionam sentido ao objeto de estudo.

Gênero discursivo: uma breve conceituação teórica rumo à prática da leitura

O conceito de gênero discursivo, revestido de sua carga só-cio-histórico-ideológica, surgiu em 1929 com as proposições de Mikhail Bakhtin, pois até então os estudos dos gêneros dis-tinguiam-se apenas entre poesia e prosa; entre lírico, épico e dramático, entre tragédia e comédia, ou seja, o termo gênero, a princípio, era inerente ao conceito de gêneros literários. Em ratificação a este fato, vejamos Marcuschi (2008, p. 147, grifos do autor):

A expressão “gênero” esteve, na tradição ocidental, especialmente ligada aos gêneros literários, cuja análise se inicia com Platão para se firmar com Aristóteles, passando por Horácio e Quintiliano, pela Idade Média, o Renascimento e a Modernidade, até os primórdios do século XX. Atualmente, a noção de gênero já não mais se vincula apenas à literatura, como lembra Swales (1990: 33), ao dizer que “hoje, gênero é facilmente usado para referir uma categoria distintiva de discurso de qualquer tipo, falado ou escrito, com ou sem aspirações literárias”.

Notamos, portanto, que a conceituação inicial de gênero não contemplava a concepção essencialmente sociocomunica-tiva postulada por Bakhtin (2003, p. 289, grifos do autor):

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A vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de um certo gênero de discurso. Essa escolha é determinada pela especificidade de um dado campo da comunicação discursiva, por considerações semântico-objetais (temáticas), pela situação concreta da comunicação discursiva, pela composição pessoal de seus participantes etc. A intenção discursiva do falante, com toda a sua individualidade e subjetividade, é em seguida aplicada e adaptada ao gênero escolhido, constitui-se e desenvolve-se em uma determinada forma de gênero.

Nota-se que o querer dizer do sujeito depende inteiramente

de sua intencionalidade. Assim, de acordo com o que se queira falar/escrever e com quem se queira comunicar (de forma oral ou escrita), o enunciador escolhe uma determinada estrutura com delimitações comunicativas ao momento (sincrônico ou diacrônico) e à sua intenção. Segundo Marcuschi (2005, p. 22-23, grifos do autor), em consonância a essa concepção bakhti-niana de gênero:

Usamos a expressão gênero textual como uma noção propositalmente vaga para referir os textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica.

Ora, é fato que não há interlocução sem um gênero qual-quer. Até as mais triviais conversas do dia a dia sustentam-se por um gênero discursivo, segundo Bakhtin (2003), essas conversas corriqueiras são denominadas gêneros primários.

É nessa concepção que se baseiam as postulações de estudiosos do ato de comunicação entre os homens, ou seja, a

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concepção de que para se socializar o ser humano, obviamente, tem de interagir com seu semelhante, e essa interação apenas se efetiva quando do instante da fala (inteligivelmente estruturada em um enunciado) no intuito de uma ação responsiva.

O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional (BAKHTIN, 2003, p. 261).

Partindo da definição de língua como convenção estrutural de um código para a interação verbal entre sujeitos, pode-se dizer que a língua é o canal pelo qual a linguagem se efetiva. E a linguagem, por sua vez, é a concretização da expressão co-municativa, inerente ao homem, que se manifesta produzindo enunciados que se organizam em discursos.

A linguagem enquanto discurso não constitui um universo de signos que serve apenas como instrumento de comunicação ou suporte de pensamento; a linguagem enquanto discurso e interação, e um modo de produção social; ela não e neutra, inocente e nem natural, por isso o lugar privilegiado de manifestação da ideologia (BRANDÃO, 2004, p. 11).

Mister, portanto, é ressaltar que os enunciados são produ-ções concretas, intencionalmente proferidas, resultantes do só-cio-interacionismo (interação social) em determinados âmbitos das atividades dos sujeitos.

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O discurso sempre está fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso, e fora dessa forma não pode existir. Por mais diferentes que sejam as enunciações pelo seu volume, pelo conteúdo, pela construção composicional, elas possuem como unidades da comunicação discursiva peculiaridades estruturais comuns, e antes de tudo limites absolutamente precisos (BAKHTIN, 2003, p. 274-275, grifo do autor).

Esses “limites absolutamente precisos” constituem-se pal-páveis nos gêneros do discurso, pois se materializam em textos que, por sua vez, podem apresentar-se nas formas oral ou escri-ta. Neste ponto é importante delimitarmos que para a corrente da Análise do Discurso (AD) um enunciado tem por meio de propagação um gênero discursivo, enquanto que para a Linguís-tica Textual esse meio é denominado gênero textual. Nomen-claturas diferentes, porém mesma conceituação: instrumental para o interacionismo. Neste ponto, faz-se importante uma bre-ve visualização desse conceito interacionista que os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Língua Estrangeira expõem:

A aprendizagem de uma língua estrangeira deve garantir ao aluno seu engajamento discursivo, ou seja, a capacidade de se envolver e envolver outros no discurso. Isso pode ser viabilizado em sala de aula por meio de atividades pedagógicas centradas na constituição do aluno como ser discursivo, ou seja, sua construção como sujeito do discurso via língua estrangeira. Essa construção passa pelo envolvimento do aluno com os processos sociais de criar significados por intermédio da utilização de uma língua estrangeira (BRASIL, 1998, p. 19).

Vemos, então, que, independentemente do idioma, a análi-

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se dos gêneros encontra-se arraigada na visão sociocomunica-cional.

Partimos do pressuposto básico de que é impossível se comunicar verbalmente a não ser por meio de algum gênero, assim como é impossível se comunicar verbalmente a não ser por algum texto. Em outros termos, partimos da ideia de que a comunicação verbal só é possível por algum gênero textual (MARCUSCHI, 2005, p. 22, grifos do autor).

Discurso literário e uma sequência didática: leitura e escrita em uma língua estrangeira

Antes de iniciarmos propriamente com a análise da se-quência didática que compõe nosso corpus, faz-se importante a conceituação do que é, segundo Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 97, grifo dos autores), uma sequência didática:

Uma “sequência didática” é um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito [...] tem, precisamente a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor um gênero de texto, permitindo-lhe assim, escrever ou falar de uma maneira mais adequada numa dada situação comunicativa.

Convergente a essa adequação a uma situação comunicati-va, tanto no que se refere à leitura de um gênero quanto à sua escrita, Beth Brait (2000, p. 15) propõe-nos que:

Na medida em que o conceito de linguagem e de ensino privilegiados envolvem indivíduo, história, cultura e sociedade, em uma relação dinâmica entre produção,

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circulação e recepção de textos, os conceitos de gêneros discursivos e tipologias textuais, feitas as devidas diferenças e observado o diálogo constitutivo que os une, contribuem para um trabalho efetivo de língua e literatura, tanto no que diz respeito às suas estabilidades quanto instabilidades, provocadas pelas coerções do uso nas diversas atividades humanas em diferentes momentos históricos.

Formuladas as breves, porém suficientes, conceituações, partiremos à análise do corpus constituinte deste trabalho. Para tanto, utilizaremos uma sequência didática do livro de língua inglesa Keep in mind – 6º ano, de Elizabeth Young Chin e Ma-ria Lucia Zaorob. Trata-se do primeiro volume de uma coleção para os quatro anos do Ensino Fundamental II. Apresentare-mos uma sequência didática que se utiliza do conto The happy prince, de Oscar Wilde, como parte integrante de uma prática de leitura e escrita que se desenvolve por meio de uma obra literária.

Capa

À página 175 temos o que pode ser considerado como uma capa para a sequência didática. Ao que se percebe há a tentativa de se criar, por meio da ilustração, um ambiente de leitura. Há a identificação da obra a ser explorada e seu autor.

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Figura 1 – Página de abertura da sequência didática.

Parte 1 – procurando por referências

Este primeiro contato com a proposta de leitura do conto The happy prince se baseia em um breve texto, do gênero biográfico, sobre seu autor, Oscar Wilde, cujas informações foram subtraídas para que o leitor infira e construa o enunciado e, consequentemente, a devida compreensão discursiva em questão, utilizando-se das palavras elencadas como possibilidades em a, b, c, d e e. Nesta atividade temos também a exploração do conhecimento prévio, enciclopédico do coenunciador, no intuito de situar sua leitura de forma crítica, não apenas em relação a esse texto, mas também aos demais subsequentes.

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Figura 2 – Gênero biográfico para a construção da compreensão discursiva do enunciado.

Parte 2 – previsão

A proposta seguinte é a leitura de um resumo da obra para o trabalho com alguns questionamentos. Entretanto, antes da leitura, pede-se a utilização de dicionário para a tradução dos vocábulos abaixo elencados. O ponto interessante dessa ativi-dade é o trato com dois gêneros, o resumo e o verbete de di-cionário, ambos pertencentes ao aspecto tipológico expositivo (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004).

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Figura 3 – Exploração de verbetes de dicionário para a compreensão de um resumo.

Definamos, seguindo a proposta expositiva da utilização de dicionário, o vocábulo resumo:

Substantivo masculino.

• Ato ou efeito de resumir(-se); sumário, síntese, sinopse.

1 Exposição sintetizada de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos, das características básicas de alguma coi-sa, com a finalidade de transmitir uma ideia geral sobre seu sentido (HOUAISS, 2009).

Assim, ao se ler um resumo, espera-se que uma síntese da

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história seja apresentada de forma abrangente, mesmo consi-derando as delimitações estruturais desse gênero, fazendo com que o leitor se interesse em ler o texto na íntegra.

Figura 4 – Resumo do conto The happy prince.

Logo após o resumo, há três questões que o exploram, ou melhor, contam com o entendimento da história por esse pro-porcionado, pois na primeira questão, letra a, são apresenta-das três possíveis morais, a fim de que se assinale a que mais se adequa ao conto. Pensando em estruturação de um gênero, ve-mos que essa primeira questão trata de moral da história. Ora, o gênero fábula tem por peculiaridade apresentar uma moral ao seu final, portanto, poderíamos considerar The happy prince como uma fábula. Entretanto, após a terceira questão, letra c, há uma caixa de texto que traz a seguinte informação: “After reading the fairy tale, come back to check if you still agree with your ideas!” (Depois de ler o conto de fada, volte para checar se você ainda concorda com suas ideias). Assim, uma indagação nos incomoda: The happy prince é fábula, conto ou conto de fada? Pensemos:

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• Fábula: narrativa com caráter moralizante, geral-mente os personagens são animais. O texto é pre-dominado pela narrativa-descritiva;

• Conto: narrativa breve e concisa, contendo um só conflito, uma única ação, unidade de tempo e nú-mero restrito de personagens;

• Conto de fada: narrativa curta em que o herói ou heroína tem de enfrentar grandes obstáculos antes de triunfar contra o mal. Caracteristicamente en-volve algum tipo de magia, metamorfose ou encan-tamento.

Consecutivamente, trataremos The happy prince como um conto, pois tal discussão de caracterização genérica não seria possível neste trabalho, além, também, de não ser o seu intuito.

A questão b indaga qual seria, entre três, o melhor provér-bio que expressaria a moral da história em português. Algumas considerações sobre essa questão:

• Mais uma vez trata-se da moral da história;

• Pergunta-se sobre o provérbio que melhor explica-ria a moral da história. Supõem-se, portanto, que o leitor tenha o conhecimento do que se trata um provérbio, que mais especificamente é um enuncia-do com uma forte carga sócio-histórico-ideológica, que se adapta ao momento sincrônico da enuncia-ção.

A última questão, letra c, de certa forma, é um exercício de escrita que se utiliza da memória discursiva do coenunciador. Há aqui um forte processo polifônico tangente à adaptação de alguns provérbios a esse momento enunciativo.

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Figura 5 – Questões para trabalho após a leitura do resumo.

Parte 3 – preparando-se para ler e aprender

Ao início desta parte, há uma caixa de texto mencionando duas estratégias de leitura, as quais:

• Inferência, pela contextualização, dos sentidos dos vocábulos desconhecidos;

• Utilização de dicionário ao longo da leitura do texto na íntegra. A ideia proposta é a de que dicio-nários podem ser úteis no auxílio de uma leitura proficiente, independentemente de seu propósito: prazer, trabalho, escola etc.

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Interessante pensarmos em leitura proficiente quando con-sideramos ler por prazer, pois aparentemente a carga semânti-ca de leitura proficiente impele a uma leitura oficial referente a trabalho ou escola. Entretanto, se analisarmos a definição de proficiente veremos que independe realmente do propósito da leitura:

Proficiente

1 Competente e eficiente no que faz; capaz, prepara-do, conhecedor;

2 Que tem bom aproveitamento (HOUAISS, 2009).

Figura 6 – Estratégias para leitura proficiente.

Na sequência de trabalho com o discurso literário por meio do conto The happy prince, há a proposta de utilização paralela da língua portuguesa com a língua inglesa: “Sometimes using Portuguese to discuss a text can help us understand it! Let’s do it to learn about Oscar Wilde, his writing and his time!” O que se pretende, então, é a compreensão de um enunciado em por-tuguês (letra a) para a justificação da escolha de um dos dois seguintes enunciados em inglês.

Encontramos no enunciado letra a um gênero expositivo, cujo enunciador afirma que os “críticos dizem”, ou seja, esse – o

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enunciador – se exime da autoria do discurso, não é ele, mas sim os críticos que comentam sobre as histórias de Oscar Wil-de. Para o coenunciador esse fato confere certa autoridade, uma vez que críticos são especialistas no que fazem.

Retomando a atividade em questão, sua proposta é a de que, após a escolha de uma das duas opções, justifique-se essa escolha. O ato de se justificar requer do sujeito a capacidade de concatenar seus conhecimentos prévios com as informações recém-adquiridas.

Figura 7 – Atividade para justificar escolha da resposta conforme conceito proposto sobre as histórias de Oscar Wilde.

Até o momento, as atividades dessa sequência didática ana-

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lisada são propostas anteriormente à leitura do conto na ínte-gra. Já as duas próximas atividades se localizam posteriormente ao texto The happy prince.

Parte 4 (pós-leitura do conto) – lidando com conceitos dentro da história

Os itens a e b, por se posicionarem após o conto The happy prince, exploram a compreensão do discurso literário da obra, tanto que ao final desses dois itens pede-se uma justificativa de escolha entre as duas opções que se apresentam em cada um desses. Portanto, o discurso proposto, em nossa análise o literá-rio, dependendo do conhecimento prévio do leitor, pode trazer diferentes interpretações. Assim, podemos dizer que a enuncia-ção é um ato que depende tanto do querer dizer do enunciador e da sua habilidade dissertativa, quanto da capacidade de per-cepção do coenunciador de que um discurso é produzido com intenções sócio-histórico-ideológicas inerentes ao momento enunciativo.

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Figura 8 – Interpretações posteriores à leitura do conto.

Considerações finais

O presente trabalho apresentou algumas análises de prá-ticas de leitura e escrita baseadas no discurso literário da obra The happy prince, de Oscar Wilde. A sequência didática apre-sentada encontra-se no livro de língua inglesa Keep in mind – 6º ano, cujas autoras são Elizabeth Young Chin e Maria Lucia Zao-rob. Sabemos que as análises aqui propostas são, de certa for-

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ma, sucintas, pois as delimitações estruturais deste trabalho não permitem exames mais minuciosos. Mesmo assim, o que foi analisado é suficiente para demonstrar que práticas de leitura e escrita, independentemente da língua em que se apresentem, quando elaboradas e conduzidas objetivamente, com significa-ção ao discente, proporcionam sentido ao objeto de estudo.

Referências

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BRAIT, B. PCNs, gêneros e ensino de língua: faces discursivas da textualidade. In: ROJO, R. (Org.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2000.

BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise do discurso. 2. ed. rev. Campinas, SP: Unicamp, 2004.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fun-damental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quar-to ciclos do Ensino Fundamental: língua estrangeira. Brasília, DF, 1998.

DOLZ, J.; NOVERRAZ, M.; SCHNEUWLY, B. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedi-mento. Trad. Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. In: ROJO, R.; CORDEIRO, G. S. (Org.). Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2004.

DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B. Gêneros e progressão em expres-são oral e escrita – elementos para reflexões sobre uma expe-riência suíça (francófona). Trad. Roxane Rojo e Glaís Sales Cor-

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deiro. In: ROJO, R.; CORDEIRO, G. S. (Org.). Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2004

HOUAISS. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portugue-sa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

______. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIO-NISIO, A. P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (Org.). Gê-neros textuais & ensino. 4. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.

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Polidez nas interações virtuais: um fórum educacional

Maria Veronica da Fonseca Teixeira

Sonia Sueli Berti-Santos

Introdução

A procura por uma educação de qualidade é cada vez maior entre as pessoas que necessitam se aperfeiçoar profissionalmen-te. Percebemos que a Educação a Distância, também conheci-da por EAD, torna-se maior a cada ano. As universidades que oferecem cursos virtuais são cada vez mais procuradas. Per-cebemos o quanto a comunicação deve ser bem cuidada para que professor e aluno possam interagir de forma cada vez mais produtiva. O estudo da polidez nas interações online é assunto recente nos meios acadêmicos. Porém, as relações pessoais têm sofrido mudanças devido às inúmeras possibilidades de inte-ração que o ambiente virtual tem proporcionado. Socialmen-te procuramos tratar as pessoas com gentileza, demonstramos afeto, somos gentis, escolhemos palavras adequadas para não ofendermos o nosso interlocutor. Sermos polidos é a forma mais eficaz de nos comunicarmos durante as interações vir-tuais. A necessidade de conhecer algumas definições de polidez nos ajudou a direcionar a nossa pesquisa.

Iniciamos com a definição de Brown e Levinson (1987), que discutem o fenômeno da polidez segundo o qual qualquer

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mensagem deve ser uma mistura cuidadosa de deferência e so-lidariedade. Assim, pudemos entender que cada vez que nos di-rigimos ao nosso interlocutor durante uma determinada inte-ração, devemos ter cuidado com expressões que possam passar a sensação de ofensa ou de irritação. Por estarmos distante de nosso interlocutor não temos condições de nos explicar ou mi-nimizar a situação criada por uma fala mal colocada.

Com essa nova forma de comunicação, conseguimos nos comunicar com muita rapidez, gerando a sensação de proximi-dade, instituindo uma nova forma de linguagem, especialmente a linguagem escrita (CABRAL; CAVALCANTE, 2010, p. 53).

Este capítulo trata da utilização da linguagem verbal escri-ta no ensino a distância e da polidez necessária para que essas interações aconteçam. Dissertaremos sobre polidez para reco-nhecer quais os melhores passos na direção da melhor forma de realizar esse tipo de comunicação.

No campo do estudo da língua, segundo Koch e Bentes (2008, p. 25), a polidez é forjada em meio a práticas sociais, por-tanto, é preciso entender que o contexto de comportamento dos usuários é fundamental para se buscar construção de polidez. As normas de polidez são universais uma vez que em toda so-ciedade existem regras a serem seguidas. A polidez existe para salvar a face, a imagem construída por nós e que não queremos que invadam.

O Dicionário Houaiss (2009, p. 1516) assim define a poli-dez:

Polidez. \ê\sf. (c1539) 1 – Caráter ou qualidade do que é polido. 2 – Atitude gentil; cortesia, civilidade. 3 – LING. Característica do discurso, que indica cortesia, gentileza, civilidade etc., do locutor (autêntica ou não), e que se expressa

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especialmente nas formas de tratamento, em expressões que atenuam o tom autoritário do imperativo (como por gentileza, por favor, se me permite etc.) e outras fórmulas de etiqueta linguística. ETIM polido + ez. SIN/VAR ver sinonímia da delicadeza. ANT impolidez, grosseria, secura; ver também antonímia de delicadeza.

As formas de interação pela escrita são desafiadoras e ofe-recem maior chance para mal-entendidos. Para o docente vir-tual os desafios são: promover e gerenciar os diferentes tipos de interação dentro dos fóruns e chats sem ignorar os objetivos pretendidos em cada interação, garantir as relações de cordiali-dade e fazer com que os alunos sintam-se à vontade no ambien-te virtual. Assim, a importância de se estudar a polidez surge para garantir uma interação de qualidade. Sem esquecer que a interação acontece em uma troca entre, pelo menos, dois inter-locutores, precisamos nos incluir nas mensagens.

a melhor forma de mostrar aos alunos que participamos juntamente com eles da interação nas práticas educativas à distância é por meio do uso da primeira pessoa do plural (nós) para as ações que envolvem os alunos, alternando com a primeira pessoa do singular (eu) quando nos referimos a nós individualmente (CABRAL; CAVALCANTE, 2010, p. 63).

Os alunos acessam o ambiente virtual, se não compreen-dem o conteúdo precisam enviar uma mensagem solicitando esclarecimentos ficam aguardando o contato com a resposta. Por isso as mensagens devem ser claras, de forma que o estu-dante compreenda que a realização da atividade é importante e obrigatória para que se concluam as etapas da disciplina, assim como nas aulas presenciais. Cabral e Cavalcante (2010, p. 64)

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assim afirmam: “como vimos até aqui, é importante deixar claro para os alunos que, nas práticas educativas a distância, precisa-mos assumir uma atitude de agentes do processo, que, sem a participação efetiva de todos, fica comprometido”.

Nos fóruns educacionais digitais, segundo as necessidades da turma, discutem-se temas específicos. Situações tensas que possam comprometer a interação podem acontecer mesmo que professor e alunos interajam de forma assíncrona, sem partilhar do mesmo espaço físico e temporal.

Uma das finalidades a que se propõe o fórum é a socialização, pois por meio dessa ferramenta a troca deve ser intensa e constante. Por conta de suas características, o fórum é apresentado como uma ferramenta assíncrona, pois os locutores não precisam estar todos “conectados” no mesmo momento.

O objetivo dessa ferramenta deve centrar-se na troca de experiências, saberes e perspectivas. Também é necessário que o professor a utilize para estimular a troca entre os locutores, a comunicação, a reflexão e um posicionamento sobre o assunto em discussão (CABRAL; CAVALCANTE, 2010, p. 72).

Participar constantemente das discussões nos fóruns edu-cacionais fará com que o aluno perceba que, por meio dessa fer-ramenta, o conhecimento se constrói coletivamente, que suas ideias poderão ser partilhadas com os outros colegas e que há a necessidade de dialogar com todos, inclusive com o professor (CABRAL; CAVALCANTE, 2010, p. 73).

Escolhemos o fórum como objeto de nossa pesquisa por ser uma ferramenta muito utilizada na EAD. Sabemos da necessi-dade de se utilizar uma linguagem adequada para atingir os ob-jetivos da disciplina fazendo uso do diálogo, emitindo opiniões

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e respeitando a opinião dos participantes, de forma polida. Du-rante a análise, observamos a materialidade linguística do texto, traços de mal-entendidos e possibilidades viáveis para facilitar a comunicação, oferecendo sugestões de atenuantes para ajudar a melhorar o nível da interação.

Um fórum educacional

Extraímos do trabalho final a análise do fórum escolhido como corpus para ilustrar esse capítulo. Nessa análise, obser-vamos claramente como uma simples expressão utilizada pode se tornar objeto de mal-entendidos e como a falta de contato imediato torna difícil o esclarecimento da situação.

O fórum educacional é um ambiente para discussão de te-mas específicos, por meio de comunicação assíncrona, permi-tindo a interação por troca de mensagens. Segundo Cabral e Cavalcante (2010, p. 72), é uma excelente ferramenta para fa-vorecer a interação entre um grupo de estudantes e o profes-sor, que pode promover um debate entre todos os membros do processo.

Segundo Moore (2007, p. 162), um fórum de discussão educacional deve ser configurado da seguinte forma:

Mensagem inicial – O docente prepara uma pergunta que exige uma resposta [...] Resposta a mensagem – O professor ou os alunos devem responder a questões propostas [...] Mensagem de acompanhamento – O docente ou o aprendiz “respondem às colocações anteriores com uma explicação de como a segunda mensagem foi útil para aumentar a compreensão do tópico e, se possível, acrescentam um comentário [...]” Resumo da mensagem – O professor “resume as mensagens dos membros do grupo para incluir aspectos importantes, similaridades e diferenças na compreensão do grupo”

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(MOORE, 2007, p. 162).

No fórum escolhido como corpus desta pesquisa, a men-sagem inicial é claramente percebida no momento em que o professor pergunta: “Em que situação você se encontra?”

Na sequência da interação, a resposta à mensagem, ou seja, a mensagem de acompanhamento virá para ajudar na comunica-ção. Nesse momento, ambos – docente e aprendiz – respondem e acrescentam comentários, enriquecendo a interação.

De acordo com Marcuschi e Xavier (2010, p. 32), as rela-ções são continuadas e movidas por interesses comuns. É um ambiente que envolve vários gêneros. O professor tutor abre um fórum e os alunos podem manifestar suas opiniões. Para construir o conhecimento, em uma relação dialógico-social, di-ferentes interlocutores vão se posicionando.

O fórum tem como finalidade a socialização e a maioria das atividades desenvolvidas, gira em torno de discussão e construção de conteúdo. Cabral e Cavalcante (2010, p. 72) afirmam que o fórum constitui um recurso coletivo de aprendizagem que exige a presença contínua de um mediador para redirecionar e orientar comentários que não estejam de acordo com os objetivos do trabalho a ser desenvolvido.

A seguir apresentaremos uma conversa em um fórum edu-cacional iniciada em: 31 mar. 2014, às 18h25:

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Figura 1 – Mensagem genérica passada via ferramenta fórum – aluno recebe como se fosse apenas para si e enviada por e-mail.

Fonte: uma instituição de ensino superior da cidade de São Paulo.

O professor inicia a interação com uma saudação: “Olá”. Conforme já estudamos, entendemos que a escolha de deter-minadas estratégias pode provocar reações colaborativas no discurso discente. E a saudação é a melhor forma para trazer o aluno à interação. Como já vimos, a saudação minimiza a distância causada pela modalidade EAD, tornando a interação importante para abrir o canal comunicativo e estimular o aluno a participar do fórum.

Na frase inicial: “Olá... Gostaria de chamá-lo à reflexão!” O professor inicia a mensagem com uma saudação genérica, su-gerindo maior proximidade entre os interlocutores, conforme mostramos na Figura 1. Saudar uma pessoa quando a encon-tramos é um ato diário em nossas vidas. Em todos os lugares por onde passamos e temos que interagir, saudamos e nos des-pedimos por educação, para tornar nossa vida em sociedade mais agradável. Trata-se também da forma de iniciar diálogos ou encerrá-los de forma pacífica nas interações virtuais.

A saudação cumpre a importante função de iniciar a interação. Ela é tão importante que todas as culturas têm fórmulas de

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saudação. Abre o canal comunicativo, incitando o interlocutor a participar da interação verbal. Além disso, pode impedir que se produza uma tensão (CABRAL; CAVALCANTE, 2010, p. 60).

Dizendo: “Olá”, o professor indica uma interação mais in-formal. O que não se pode é criar uma relação entre professor e aluno íntima demais ao ponto de prejudicar a confiança que o discente deve ter no docente. Um professor muito íntimo pode passar uma impressão errônea de que não fará as exigências ne-cessárias na sua disciplina por ser amigo de todos. Porém, ser muito formal provoca distanciamento, o que não é interessante nas práticas educativas a distância.

Nos fóruns e nas devolutivas de aprendizagem, por exemplo, podemos utilizar simplesmente “Olá”, pois, com essa fórmula, indicamos nossa intenção de proximidade, de apagamento de hierarquia e nossa disposição para uma interação mais frequente, mais igualitária, mais informal, mais próxima do aluno [...] Podemos também associar duas fórmulas, como “Olá, caro aluno”. O que não caberia de forma alguma seria a fórmula “Queridos alunos”, pois a situação institucional da relação professor-aluno não permitiria esse tipo de intimidade (CABRAL, CAVALCANTE, 2010, p. 61).

O texto inicial do fórum é curto, fácil de ler. O professor tenta ser o mais genérico possível. Porém, na sequência, focali-za uma troca de mensagens entre professor e aluno que, apesar da tentativa de aproximação, podemos observar que há frases que podem ser interpretadas diferentemente do desejado.

As mensagens podem ser positivas ou negativas, polidas ou não, dependendo da interpretação de ambas as partes, nesse caso, entre professor e alunos.

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O primeiro cuidado diz respeito à polidez: devemos “utilizar expressões de polidez”, que incluem uma saudação e uma despedida. Essa prática é válida especialmente para os recursos de interação como e-mail e fóruns. [...] A saudação cumpre a importante função de iniciar a interação. [...] Abre o canal comunicativo, incitando o interlocutor a participar da interação verbal (CABRAL; CAVALCANTE, 2010, p. 59).

Ao ler as frases iniciais: “Olá... Gostaria de chamá-lo à refle-xão! Em que situação você se encontra?” Possivelmente o aluno sinta-se convidado a pensar em sua situação de participação e presença nos debates propostos no fórum. A intenção docente é ativar nos estudantes uma atitude responsiva.

As palavras, nas situações discursivas, são enunciações valorativas, uma vez que adquirem, em determinadas condições político-sociais valores específicos. Nesse caso não são unidades da língua, mas unidades discursivas com valor e sentido concretos, dentro de enunciados concretos. Não mais palavras isoladas ou um “estado de dicionário”. Nessas circunstâncias, podemos compreender seu significado e, mais, ocupamos frente a ela uma ativa posição responsiva (BERTI-SANTOS, 2011, p. 103).

O professor também utiliza frases de incentivo como: “Pa-rabéns! Continue assim e aprenderá muito mais do que já sabe”. “Parabéns! É de profunda sabedoria despojar-se de qualquer orgulho bobo e perguntar”.

Essas frases podem estimular o interesse dos alunos em participar, mesmo sendo um texto genérico. Apenas quando um aluno interage é que o professor o chama pelo nome, tor-nando a sua resposta personalizada.

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O professor se coloca a todo o momento na interação, mos-trando claramente sua preocupação com o desempenho de seus alunos. A entoação avaliativa e a responsividade ativa são, as-sim, atitudes vitais presentes em todo ato e em toda enunciação vinculados com todo o processo de apropriação social e históri-ca do mundo pelos sujeitos (SOBRAL, 2009, p. 88).

Nas frases: “Já postou algo nos fóruns que ajudou os cole-gas! Parabéns! Continue assim e aprenderá mais do que já sabe.” Os verbos postar e ajudar aparecem no pretérito perfeito, expri-mindo uma ação ou atividade acabada, formando predicados verbais dinâmicos. O pronome de tratamento você é o sujei-to agente ou causativo. Nesse momento, quem lê a mensagem sente que o professor está se referindo diretamente com ele. A conversa torna-se mais pessoal apesar de o texto ter sentido ge-nérico. Observemos as frases escritas ao final da mensagem do fórum:

O que? Você não está participando dos fóruns?

Não lê o que seus colegas postam? Não acredito!

Você deve estar passando por algum problema muito sério!

Afinal, deixou de pensar em seu crescimento pessoal e profissional.

Se eu fosse você, estaria desesperado, não vendo a hora de encontrar um computador na frente só para colocar minhas atividades em dia e participar desse mundo de possibilidades que só a Universidade pode me oferecer!

A forma que o professor encontra para se comunicar com

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seus alunos é utilizando o pronome você, o que gera a sensação de aproximação do interlocutor. Ao expor suas considerações a respeito do estudo utiliza a primeira pessoa do singular (eu). Essa é a melhor forma de mostrarmos aos estudantes que parti-cipamos junto com desses da interação.

O aluno, ao se deparar com intercalações iniciativas com você, sente-se individualmente invocado no texto, como que participando de um diálogo. Essa estratégia, cabe-nos destacar, é a mesma utilizada por diversos autores da literatura para invocar seus leitores e fazê-los participar mais ativamente do texto (MARQUESI; CABRAL, 2010, p. 251).

Ao final do texto do fórum, quando o professor utiliza caixa alta – letras maiúsculas – para se expressar nas frases: “VEJO MUITOS COLEGAS COMPARTILHANDO suas experiências e deixando as discussões dos fóruns cada vez mais rica.” Na lin-guagem da Internet o texto em caixa alta indica aumento na altura da voz e o aluno pode interpretar como uma ordem e não como um estímulo para o estudo. É possível que a intenção docente seja apenas destacar a ação de compartilhar conheci-mentos e a de participação. Porém, fica difícil perceber isso, já que os participantes da interação não acessam ao mesmo tempo a plataforma e o fórum.

As hierarquias devem ser respeitadas, mas durante as práti-cas educativas online não é interessante empregá-la, pois como já dissemos, gera a sensação de distanciamento, segundo Cabral e Cavalcante (2010, p. 61).

Nas interações entre professores e alunos, com frequên-cia, as críticas e as ordens acontecem pelo grau de hierarquia já existente. São situações delicadas na interação e que devem ser contornadas com atenuantes ou sugestões que tornem a cir-

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cunstância menos ameaçadora.

Essas situações costumam gerar desconforto na interação, especialmente porque as ordens e as críticas representam uma ameaça para o interlocutor. Nas práticas educativas a distância não é interessante submeter os alunos a desconforto por causa de uma crítica mais severa, pois eles podem sentir-se rejeitados e abandonar o ambiente. Por isso o professor “deve evitar julgamentos categóricos, procurando enunciar avaliações por meio de sugestões” (CABRAL; CAVALCANTE, 2010, p. 65).

Ao final da mensagem do fórum o professor diz: “SÓ PER-DE QUEM NÃO PARTICIPA!” Seria mais adequado que usas-se uma fórmula de sugestão como: “Pense na possibilidade de participar”. O tom mudaria para a ideia de convite, não deixan-do margem para mal-entendido. Mudar o tamanho da fonte também ajudaria a evitar situações de conflito.

Como a mensagem é genérica, a frase soa como um con-vite: “Espero você lá no AVA!!!” O professor torna a se apro-ximar dos alunos, incentivando-os a participarem dos fóruns e das atividades nas aulas virtuais de uma forma mais amena, atenuando o modo como se dirigiu aos estudantes na frase an-terior, preservando então a face do interlocutor, evitando que os alunos possam interpretar mal suas palavras. Deve-se lembrar que o professor não está presente para explicar aos estudantes que sua intenção não é a de desqualificar o trabalho discente (CABRAL; CAVALCANTE, 2010, p. 65).

Gostaríamos de lembrar que o fórum é uma interação as-síncrona, onde os interlocutores lerão cada mensagem em um momento diverso daquele em que a escrevemos (CABRAL; CAVALCANTE, 2010, p. 59). Na sequência, apresentaremos a

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continuação da interação desse fórum, que aconteceu entre: 29 mar. 2014, às 18h05 e 2 abr. 2014, às 19h34.

 

Por Aluno A – Postado em 29/03/2014 às 18:05:06

Esqueci de postar o nome do site de hospedagem gratuita:

http://www.1apps.com

Por Aluno B - Postado em 31/03/2014 às 11:11:32

Obrigado, de grande ajuda posto que instalei o IIS em quatro computadores e todos eles travam quando busco rodar algo em ASP.

Por Prof. – Postado em 31/03/2014 às 17:51:18

Ola Aluno B!

Será que com a dica de provedor do Aluno A, a “coisa” vai? rs..

E se não for, temos que descobrir o que está acontecendo... ou arrumar outra alternativa para que consiga desenvolver as atividades!

Por Aluno B – Postado em 01/04/2014 às 12:43:46

Professor li seu e-mail, mas resolvi lhe responder pelo fórum, pois no e-mail há o relato de que eu não leio ou participo de fóruns, quase me vi entristecido com o comentário, não fosse ele postado para meu auxílio, tenho participado de fóruns constantemente como se pode ver pelos postagens que faço, não tenho tempo de fazê-lo todos os dias, mas o faço sempre que possível..

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Quanto a Instalação do IIS, bem tenho dois computadores com o Windows 8, e um com Windows 7, todos versão Pró, nos três, aparentemente após a instalação ele roda as páginas padrões do IIS (localhost), porém quando se trata das páginas que crio, o Internet Explorer ‘trava’, não exibindo nada. Busquei instalar em máquinas virtuais com o Windows XP, mas aí quando vou criar um novo diretório na pasta Inetpub, ele solicita senhas, busquei em fóruns na internet solução, e nada, todas as dicas dadas não resolveram.

Tenho um amigo pessoal que paga hospedagem de uma página web simplória que fiz a ele tempos atrás, mas ele se encontra na Austrália e só volta depois da páscoa.

Os sites de hospedagem gratuitas que os colegas postaram, rodam normalmente os exercícios quando gerencio os códigos dentro da interface do site, mas quando desenvolvo em um editor e faço update, eles não rodam.

O computador de meu trabalho tem bloqueios, portanto não tenho como desenvolver nada nele, busco argumentar sobre questão do estágio para que me liberem, mas encontro resistência por parte deles.

Tenho me esforçado, dentro do pouco tempo que tenho a desenvolver as atividades, busco ajuda em fóruns tanto no AVA, como em sites, e foi exatamente nessa pesquisa que vi que não sou o único a ter tais problemas.

Sei que meu problema parece ser ‘engraçado’, porém não consigo rir com tudo isso.

Por Prof. – Postado em 02/04/2014 às 19:34:52

Não sei a que e-mail a que se refere. Talvez seja aquele e-mail em que coloquei várias situações. De quem participa e de quem ainda não teve a oportunidade. É um e-mail genérico, embora pareça ter sido enviado apenas para uma pessoa.

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Quanto ao provedor, se tiver problemas com o gratuito, posso conseguir criar um sub-dominio em meu domínio na locaweb e fornecer temporariamente, para os testes da disciplina.

Quanto a achar graça da situação, jamais! Apenas quiz ser simpático. Nossa obrigação é tentar resolver o problema.

O IIS para ASP geralmente ocasiona alguns conflitos com alguma outra ferramenta instalada. Talvez uma maneira de ainda tentar resolver o problema, seria você novamente fazer um print de telas sequencial da instalação do seu IIS e nos relatasse exatamente o que acontece. Talvez utilizar até aqueles programas que gravam em vídeo a sequência realizada no computador, para tentarmos identificar o problema.

No entanto, temos alternativas! Provedores gratuitos, servidor que roda até em pen-drive como o http://www.pablosoftwaresolutions.com/html/baby_web_server.html, etc.

EU JAMAIS ZOMBARIA DE QUALQUER SITUAÇÃO.

ESSE É UM ESPAÇO SUPER DEMOCRÁTICO E O APRENDIZADO SÓ ACONTECE SE TODOS EXPOREM SUAS DÚVIDAS E OS DEMAIS TENTAREM AJUDAR.

QUERIDOS AMIGOS... O IMPORTANTE É O APRENDIZADO. ADMIRO CADA UM DE VOCÊS PELO ESFORÇO E DEDICAÇÃO...

BONS ESTUDOS! (Fonte: uma instituição de ensino superior da cidade de São Paulo).

Temos, no exemplo acima, uma interação entre um pro-fessor e dois alunos, em um fórum na disciplina de Comércio Eletrônico (e-commerce). O professor que interage no fórum

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escolhido como corpus para este trabalho tem uma experiên-cia de 26 anos em Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC); atua há cinco anos no Magistério Superior; há três tam-bém como professor tutor na EAD e desde 2003 vem se aper-feiçoando: possui Master of Business Administration (MBA) em Gestão de Tecnologia da Informação e Internet; é docente para o Ensino Superior e mestrando em Engenharia Biomédica, na área de desenvolvimento de sistemas no âmbito médico com prontuário eletrônico para dispositivos móveis, tal qual citamos nos passos metodológicos deste capítulo. Trata-se de um pro-fessor com uma certa experiência no magistério, acostumado a situações de conflito em sala de aula, porém, acabou se envol-vendo em um embate ao escolher equivocadamente as palavras durante a interação acima reproduzida.

A interação começou com um estudante, que doravante denominaremos de aluno A, postando o nome de um site de hospedagem gratuita para os colegas. Um segundo estudante, doravante aluno B, entrou no fórum e agradeceu a ajuda do alu-no A. Horas depois, o professor entrou no fórum e, percebendo que o aluno B estava com dificuldades, dirigiu-se a esse, dizen-do:

Olá, aluno B!

Será que com a dica de provedor do aluno A, a coisa “vai?” rs...

E se não for, temos que descobrir o que está acontecendo... ou arrumar outra alternativa para que consiga desenvolver as atividades!

Diante de um comentário docente, o aluno B sentiu-se ofendido e enviou uma longa resposta, explicando toda a si-

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tuação. Em sua resposta o aluno B é polido ao dirigir-se ao professor, tendo por intuito se explicar por não ter acessado as atividades da EAD:

Professor li seu e-mail, mas resolvi lhe responder pelo fórum, pois no e-mail há o relato de que eu não leio ou participo de fóruns, quase me vi entristecido com o comentário, não fosse ele postado para meu auxílio, tenho participado de fóruns constantemente como se pode ver pelas postagens que faço, não tenho tempo de fazê-lo todos os dias, mas o faço sempre que possível.

Quanto a Instalação do IIS, bem tenho dois computadores com o Windows 8, e um com Windows 7, todos versão Pró, nos três, aparentemente após a instalação ele roda as páginas padrões do IIS (localhost), porém quando se trata das páginas que crio, o Internet Explorer ‘trava’, não exibindo nada. Busquei instalar em máquinas virtuais com o Windows XP, mas aí quando vou criar um novo diretório na pasta Inetpub, ele solicita senhas, busquei em fóruns na internet solução, e nada, todas as dicas dadas não resolveram.

No momento em que o aluno responde ao professor pelo fórum, esse passa a partilhar com os colegas o seu problema, uma vez que um dos objetivos dessa ferramenta é a troca de experiências.

O aluno B segue se justificando, sempre de forma polida e muito detalhada sobre tudo o que vem acontecendo que o impede de interagir, demonstrando ter conhecimentos que não podem ser ignorados:

Tenho um amigo pessoal que paga hospedagem de uma página web simplória que fiz a ele tempos atrás, mas ele se encontra na Austrália e só volta depois da páscoa.

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Os sites de hospedagem gratuitas que os colegas postaram, rodam normalmente os exercícios quando gerencio os códigos dentro da interface do site, mas quando desenvolvo em um editor e faço update, eles não rodam.

Não podemos esquecer que a grande maioria dos indiví-duos que escolhe a EAD estuda e trabalha. O aluno B deixa clara a dificuldade que encontra para se conectar na empresa com a intenção de utilizar o computador corporativo para seus estudos, como mostramos a seguir:

O computador de meu trabalho tem bloqueios, portanto não tenho como desenvolver nada nele, busco argumentar sobre questão do estágio para que me liberem, mas encontro resistência por parte deles.

Tenho me esforçado, dentro do pouco tempo que tenho a desenvolver as atividades, busco ajuda em fóruns tanto no AVA, como em sites.

O aluno B demonstra que há um rigor em seu ambiente profissional que não o permite acessar a rede virtual no mo-mento que lhe convém. A polidez aqui aparece na sua ética como profissional, que o impede de transgredir regras impostas pela empresa em benefício próprio.

Ao procurar ajuda com seus colegas, ou mesmo em sites, estabelece-se uma relação dialógica: “e foi exatamente nessa pesquisa que vi que não sou o único a ter tais problemas”.

O fórum é um recurso que possibilita o diálogo entre os participantes, segundo Cabral e Cavalcante (2010, p. 74). O diá-logo está no momento em que o aluno troca informações com seu grupo de estudo, quando responde aos exercícios, ao tirar

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dúvidas com seu professor etc.Em uma atividade assíncrona como o fórum, não foi pos-

sível para o professor minimizar o mal-entendido. Nesse caso, especificamente, a resposta ocorreu horas depois, tornando a situação também delicada ao docente, esse que passou a utilizar letras maiúsculas para se explicar.

O objetivo dessa ferramenta deve centrar-se na troca de experiências [...] A ferramenta também pode ser utilizada para solucionar dúvidas, para que posteriormente o aluno possa expressar opiniões mais elaboradas [...] o fórum constitui um recurso coletivo de aprendizagem que exige a presença constante de um mediador para redirecionar e orientar comentários e/ou situações que não estejam de acordo com os objetivos do trabalho a ser desenvolvido (CABRAL; CAVALCANTE, 2010, p. 72).

Nesse momento surgiu um mal-entendido entre o aluno B e o professor. A resposta do aluno B foi emitida horas depois do envio da mensagem docente. O aluno B, sentindo-se ofendi-do, respondeu que não tem tempo de participar diariamente das aulas, mas o faz sempre que possível, participa constantemente dos fóruns e, ao final, acrescenta: “Sei que meu problema parece ‘engraçado’, porém não consigo rir com tudo isso.”

A polidez entra como um atenuante a mais na comunica-ção entre docente e discentes. Quem não gosta de ser pronta-mente atendido em suas necessidades com atenção e gentileza? Principalmente se essas necessidades significam o seu futuro, o que acaba gerando certa ansiedade naquele que precisa da res-posta para prosseguir seu desenvolvimento intelectual. Mostrar ao aluno que há alguém além do virtual e que pode acessar a qualquer momento a plataforma, ou seja, que receberá um su-

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porte para continuar a realizar os exercícios é uma atitude que gera confiança e facilita a interação.

Quando o professor escreve:

EU JAMAIS ZOMBARIA DE QUALQUER SITUAÇÃO.

ESSE É UM ESPAÇO SUPER DEMOCRÁTICO E O APRENDIZADO SÓ ACONTECE SE TODOS EXPOREM SUAS DÚVIDAS E OS DEMAIS TENTAREM AJUDAR.

QUERIDOS AMIGOS... O IMPORTANTE É O APRENDIZADO. ADMIRO CADA UM DE VOCÊS PELO ESFORÇO E DEDICAÇÃO...

BONS ESTUDOS!

Fica claro que esse deseja se explicar e, de alguma forma, ser ouvido, pois sua intenção não era a de ofender um aluno. Ao utilizar a caixa alta – letra maiúscula – confere ao texto a impressão que está usando sua autoridade docente para se co-municar. Ao final diminui a letra para sugerir um endereço ele-trônico para que os estudantes possam enviar conteúdo com tamanho de arquivo em grande formato como, por exemplo, vídeos.

Nessa parte da comunicação o professor parece estar mais sereno por ter conseguido se explicar. A polidez ao utilizar a frase BONS ESTUDOS mostra o cuidado docente ao, após uma situação delicada, interagir com os estudantes.

Em diálogos orais, constantemente pela necessidade de aprovação ou atenção do outro, o interlocutor procura uma resposta.

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nos diálogos orais é comum o interlocutor interpelar o outro constantemente, explicitando a simetria e indicando a necessidade de resposta, atenção ou aprovação do outro. Essa mesma situação deve ser garantida no diálogo via Internet e, por isso, o produtor de materiais para o ambiente virtual, também quando se trata de texto de caráter teórico, deve fazer o mesmo, incluindo o aluno no processo, o que pode gerar uma sensação de aproximação. Essa estratégia confere ao texto escrito veiculado pela Internet um caráter participativo, cujo leitor é chamado a agir, a participar, a responder ao texto, de forma imediata, o que gera uma sensação de interação em grau maior (MARQUESI; CABRAL, 2010, p. 251).

Durante as aulas virtuais é comum o aluno sentir-se um pouco solitário quando surgem dúvidas. Segundo Cabral e Ca-valcante (2010, p. 62), em diálogos no ambiente virtual o aluno deve sentir-se incluído, a fim de gerar maior proximidade com o professor, com os colegas e ter garantido seu direito de res-posta. Isso vale também para o professor, quem sempre espera uma resposta aos questionamentos de suas disciplinas.

O modo como a aula virtual é elaborada, o dialogismo con-tido nessa interação e as formas de tratamento utilizadas são elementos importantes para a EAD. Porém, a polidez constitui um elemento primordial para que essas relações aconteçam. O posicionamento docente ao convocar os alunos para interagi-rem na aula virtual ou no fórum dará força ou não para se avan-çar na interação.

Considerações finais

Considerando que o fórum educacional é muito utilizado na EAD e que professor e alunos têm à disposição uma ferra-menta eficaz durante a interação, é necessário que a linguagem

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escrita utilizada seja bem cuidada. Essa preocupação deve es-tar presente a todo o momento durante o processo de ensino e aprendizagem.

Nosso objetivo com este trabalho foi apresentar a análise de um fórum com suas implicações para, a partir daí, discor-rer sobre algumas sugestões de atenuantes que consideramos pertinentes para minimizar os efeitos negativos causados pela enunciação mal interpretada.

Como mediador do processo e responsável pela interação, o professor passa a ser interventor e interlocutor ao mesmo tempo. Para tanto, sua linguagem precisa ser clara, objetiva e polida. Deve dar sugestões, orientar e estimular os estudos, mostrando que faz parte da interação, a fim de que a comunica-ção seja instrumento da eficácia na interação.

Por sua vez, o estudante precisa compreender a importân-cia dessa comunicação com os colegas e professor, utilizando-se também da polidez para que, uma vez enviada a mensagem ao interventor, essa não seja mal interpretada. Para tanto, necessita fazer uso de uma linguagem adequada à situação da EAD.

Mais uma vez afirmamos que nosso estudo não se esgota aqui, mas oferece condições para que novas pesquisas sejam realizadas, tornando a EAD cada vez mais atraente para alunos e professores do Ensino Superior.

Referências

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TEIXEIRA, M. V. da F. Dialogismo e polidez: aspectos discur-sivos nas comunicações virtuais em EAD. 2014. 93 f. Disser-tação (Mestrado em Linguística) - Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2014.

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O lugar do texto no ensino de Português: do conceito às propostas

de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)

Nathália Rodrighero Salinas Polachini

O texto é dado (realidade) primário e o ponto de partida de qualquer disciplina nas Ciências Humanas (M. Bakhtin).

Introdução

São inegáveis os avanços embasados por teorias linguísti-cas e gramaticais que chegaram às universidades brasileiras nas últimas décadas do século XX, como a Sociolinguística, a Aná-lise da Conversação, a Psicolinguística, a Linguística Textual, a Linguística Aplicada, a Análise do Discurso etc., trazendo dife-rentes perspectivas para o campo da pesquisa e, com isso, novos paradigmas para o ensino de Português.

Embora as “novas” teorias tenham impulsionado impor-tantes mudanças nas reflexões sobre a linguagem, a escola ainda sofre com o que podemos chamar de uma abordagem limita-dora dos textos – escritos e orais –, que, restrita à análise de suas construções composicionais, não é capaz de mobilizar os fios dialógicos pressupostos pelas relações entre os planos de

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expressão e as esferas de produção, circulação e recepção. A isso se soma o descompasso em relação à exigência das práticas de leitura e escrita na contemporaneidade, assim como reivindica a Pedagogia dos Multiletramentos (ROJO, 2012).

Neste capítulo, inscrito no eixo do projeto de pesquisa Le-tramentos, Ensino, Memória: a Análise Dialógica do Discurso, que integra o subgrupo de pesquisa Redes Bakhtinianas da Uni-versidade de São Paulo (USP), há dois objetivos complemen-tares: i) discutir o lugar do texto no ensino/aprendizagem de Português; e ii) analisar a presença dos textos verbais e verbo-visuais nas propostas de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) no período que compreende sua primeira edi-ção (1998) e a décima quinta (2012).

Este trabalho integra parte da pesquisa de Mestrado de Po-lachini (2014) sobre as redações do Enem, orientada pela pro-fessora doutora Maria Inês Batista Campos – do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (DLCV/USP) – e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Para a discussão pretendida, apoiar-nos-emos na concep-ção de texto de Bakhtin e o Círculo, buscando expor a contri-buição dessa perspectiva para o campo do ensino.

Na perspectiva histórica: o ensino de Português e a avaliação do Enem

A inclusão da língua portuguesa como disciplina escolar foi tardia no País, remontando às últimas décadas do século XIX. Desde o fim do Império, contudo, sua história registra diferen-tes transformações referentes a programas de ensino, organiza-

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ção, nomenclaturas, objetivos e conteúdos.Se o modelo padrão para o ensino que vigorou até o final da

década de 1960 incluía a retórica e a poética e, posteriormen-te, a gramática nacional como objetos de estudos da disciplina, com o texto sendo usado muitas vezes para o ensinamento de valores morais, nos anos 1970 o debate em torno da língua ma-terna centrou-se nos currículos, em defesa da inserção de novos conteúdos para as aulas de língua, até então, calcadas restritiva-mente sob a perspectiva gramatical.

Magda Soares (2002, p. 171) ressalta que, nessa época, em decorrência da edição da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (BRASIL, 1971) e das intervenções do gover-no militar instaurado no País, o ensino de Português passou a se valer da função instrumental da língua, apoiando-se em sua concepção, não mais como sistema, mas como comunica-ção. Em decorrência disso, a escola passou a admitir o trabalho didático com textos para além dos modelos do cânone literário.

Foi, contudo, a partir da chegada das Ciências Linguísticas na escola, na década de 1980, que a disciplina língua portugue-sa começou a ganhar novos rumos.

Nos anos de 1990, com a redemocratização política, os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998b), elabora-dos pela Secretaria da Educação Básica, trouxeram uma pro-posta educacional para todo o País. Em especial para o Ensino Médio, a reorganização curricular foi introduzida pelas Dire-trizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM) (BRASIL, 1998a), que ofereceram uma revisão epistemológica do currículo, passando a delinear – pelo menos na teoria – os novos eixos estruturantes para os processos de ensino-aprendi-zagem: a interdisciplinaridade e a contextualização.

O ensino médio também ganhou seus próprios parâme-

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tros: Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM) (BRASIL, 1999), seguido das Orientações Educacio-nais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais, (PCN+) (BRASIL, 2002) e das Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM) (BRASIL, 2006). No que tange ao en-sino de Português, a mudança de paradigma trazida motivou práticas de reflexão linguísticas não limitadas ao trabalho siste-mático com a gramática, dentro de uma perspectiva de lingua-gem entendida como atividade discursiva.

Entretanto, embora esses documentos previssem possíveis inovações no ensino da língua, a crítica aos quais se perfez pelo tratamento concedido aos gêneros, que ao serem mesclados com as tipologias textuais, impediram o trabalho efetivo com os textos de circulação social tomados pela perspectiva sócio-histórica (BRAIT, 2000).

Ainda caracterizada por Rojo e Moita-Lopes (2004) como um “desencontro de vozes”, a área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias foi desqualificada pela linguagem demasiadamente teórica e hermética que pouco operacionalizou à efetivação do currículo flexível e interdisciplinar, principalmente pela falta de rigor teórico dos PCN+, que ao tentarem sistematizar alguns conceitos não contemplados pelos PCNEM acabaram “recor-rendo a uma diversidade eclética de teorias, já impregnadas na cultura de senso comum das escolas” (ROJO; MOITA-LOPES, 2004, p. 35).

Ampliando a visão dos parâmetros curriculares publica-dos, em 2006 as OCEM trouxeram à discussão os múltiplos letramentos pelas diferentes esferas das atividades sociais. A orientação da escola promotora de um trabalho transdisciplinar propôs o contato com diferentes manifestações da linguagem, por meio de diversos universos semióticos (BRASIL, 2006, p.

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18), passando a inserir o texto dentro do quadro das práticas socioculturais.

Como podemos constatar, no âmbito prescritivo, o reco-nhecendo das várias interações língua/linguagem parece ter conseguido ultrapassar os limites do texto entendido exclusi-vamente como uma unidade derivada de um código verbal, muitas vezes sem autor ou fonte. No entanto, para além das conquistas no papel, devemos nos perguntar até que ponto, efe-tivamente, no âmbito da prática escolar, a abordagem do texto continua a fazer perpetuar tal concepção.

Não podemos esquecer que é também a partir da década de 1990 que as mudanças legais decorridas da LDB/1996 via-bilizaram a criação de instrumentos de avaliação em nível na-cional, culminado, assim, no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

O Enem, aplicado anualmente pelo Ministério da Educa-ção (MEC), por meio do Instituto Nacional de Estudos e Pes-quisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), surgiu em 1998 como um primeiro modelo nacional de avaliação da Educação Básica. Como resultado de sua abrangência nacional, tornou-se o maior processo seletivo para ingresso no Ensino Superior do País, passando a ser visto como porta de entrada à universida-de, em substituição ao vestibular tradicional.

Desde sua reestruturação, em 2009, tem como principais objetivos possibilitar a mobilidade acadêmica e propor a rees-truturação dos currículos. Ainda que baseado nos princípios da reforma do Ensino Médio, esse último propósito reacende a antiga discussão em torno dos currículos, por forçar um alinha-mento de programas de ensino e livros didáticos aos moldes de um exame seletivo.

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Ao considerarmos que o Enem, dentro do contexto polí-tico-educacional do País, insere-se no conjunto de ações que propõem mudanças para o currículo nacional, torna-se válido investigar a concepção de texto subjacente às propostas de re-dação. Antes, porém, cabe explicar, ainda que sinteticamente, a concepção bakhtiniana de texto.

Na esteira do discurso: o texto na perspectiva dialógica

As concepções de língua, linguagem e discurso desenvolvi-das por Mikhail Bakhtin (1895-1975), Valentin N. Volochínov (1985-1936), Pavel Medvedev (1981-1938) e outros integrantes do Círculo, no contexto soviético do início do século XX, bus-caram compreender a linguagem a partir de sua natureza só-cio-histórica e ideológica, o que permitiu a elaboração de uma visão concreta do enunciado. Em vários momentos e em obras distintas do Círculo, é evidente a crítica à visão de linguagem abstrata da linguística estrutural e à visão subjetiva da estilísti-ca, ambas vigentes naquela época.

À luz dessa concepção, a língua não pode ser separada de seu conteúdo ideológico, pois não é neutra, é um produto da vida social e sua evolução é ininterrupta. De modo análogo, a linguagem é um fenômeno dinâmico, em contínuo desenvolvimento. Dessa maneira, o projeto teórico bakhtiniano está acoplado a uma visão de mundo dialógica que não encontrou identidade nos estudos linguísticos que partem do princípio da enunciação monológica.

Ao introduzirem uma perspectiva sociológica da teoria da expressão que se volta para a linguagem em suas relações com a história, a cultura e a sociedade, Bakhtin e o Círculo estabelece-ram a interação verbal como a realidade fundamental da língua.

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No quadro teórico bakhtiniano, a noção de texto coincide com a ideia de enunciado, ou seja, é uma unidade constituída de signos diversos, entendidos como um elo na cadeia da co-municação discursiva. Desse modo, deve ser reconhecido tam-bém por suas especificidades materiais, esferas de circulação, autoria.

A concepção de “texto” está presente no conjunto dos vá-rios trabalhos de Bakhtin e do Círculo, dos quais destacamos dois ensaios: i) O problema do texto na Linguística, na Filologia e em outras Ciências Humanas: uma experiência de análise filosó-fica (BAKHTIN, 2010); ii) Palavra na vida e a palavra na poesia. Introdução ao problema da poética sociológica (VOLOCHÍNOV, 2013).

No primeiro, Bakhtin assume a noção de texto em seu sen-tido amplo, “como qualquer conjunto coerente de signos” (BA-KHTIN, 2010, p. 310). Nessa perspectiva, todo texto é dialógico à medida que é constituído a partir de outros textos e discursos.

A unicidade do texto, isto é, seu valor irrepetível, é vista como uma característica intrínseca a cada enunciado, na qual reside sua singularidade histórica. No entanto, Bakhtin (2010, p. 311) observa que

a reprodução do texto pelo sujeito (a retomada dele, a repetição da leitura, uma nova execução, uma citação) é um acontecimento novo e singular na vida do texto, o novo elo na cadeia histórica da comunicação discursiva.

Entendendo que a verdadeira essência do texto “sempre se

desenvolve na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos” (BAKHTIN, 2010, p. 311), sua função responsiva não é reduzi-

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da às relações lógicas ou meramente objetais, pois, como uma unidade da comunicação discursiva, abrange um conjunto de sentidos ligados por relações dialógicas.

Já em Palavra na vida e a palavra na poesia, Volochínov concebe o enunciado e suas particularidades na configuração do processo interativo, na integração entre o texto e o contexto extraverbal. Na abordagem sociológica proposta pelo linguista, a situação extraverbal está longe de ser um elemento externo ao enunciado. Ao contrário, é parte integrante e essencial para sua significação.

Volochínov (2013) explica que a comunicação discursiva se dá por meio dos enunciados concretos compreendidos por suas duas partes: i) a parte realizada verbalmente; e ii) a par-te subentendida, que se constitui no horizonte espacial e idea-cional compartilhado pelos falantes. Assim, a parte presumida compreende as avaliações sociais que organizam o enunciado e sua entonação para além das fronteiras do verbal, expondo o ponto de contato com o exterior, com os julgamentos de valores de cada grupo social e campos discursivos.

Nesse ensaio, a questão valorativa (apreciativa) da lingua-gem é particularizada pela noção de “entonação”:

A entonação sempre se encontra no limite entre o verbal e o extraverbal, entre o dito e o não dito. Mediante a entonação, a palavra se relaciona diretamente com a vida. E antes de tudo, justamente na entonação o falante se relaciona com os ouvintes: a entonação é social por excelência. É, sobretudo, sensível para com qualquer oscilação da atmosfera social em torno do falante (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 82).

Na comunicação discursiva as diferentes entonações reve-lam uma posição ativa dos sujeitos, expressando um modo de

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responder aos textos, adquirindo tons variados, de concordân-cia, discordância, polêmica, ironia, provocação etc.

É válido ressaltar que a noção de gênero discursivo emana do acabamento do texto/enunciado. Nessa perspectiva, os gê-neros, sendo tipos de enunciados concretos, correspondem às condições e finalidades específicas de cada esfera e, portanto, apresentam extrema heterogeneidade, sendo criados e recria-dos no cotidiano, nos diálogos sociais, nas esferas jornalísticas, políticas, filosóficas, artísticas.

Ampliando essa noção, Brait (2010, p. 194) assinala o le-tramento verbo-visual como necessário para formar leitores proficientes em textos. A autora afirma que “a articulação en-tre os elementos verbais e visuais forma um todo indissolúvel [...] impossibilitando o tratamento excludente do verbal ou do visual”. É dentro dessa visão que os textos se apresentam como enunciados concretos, articulados por um projeto discursivo.

Nessa direção, parte da pesquisa de Campos (2011a, 2011b, 2012) também está voltada para os estudos sobre a verbo-vi-sualidade. Revela-se, em seus trabalhos, que em função de uma melhor compreensão das formas de produção do sentido em manifestações discursivas verbo-visuais, o texto deve ser pen-sado dentro da tensão entre o leitor, forma e conteúdo, sem a fragmentação de suas esferas.

Como orientação teórico-metodológica para a abordagem em sala de aula, os trabalhos de Rojo (2012, 2013) defendem uma Pedagogia dos Multiletramentos para o ensino com tex-tos de circulação social, interpondo a necessidade de abarcar a pluralidade cultural e a diversidade de linguagens em uma aprendizagem colaborativa e crítica. Dentro dessa perspectiva, destacamos a proposta em relação ao reconhecimento da práti-ca crítica e analítica dos alunos:

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Trabalhar com multiletramentos pode ou não envolver [...] o uso de tecnologias de comunicação e informação [...], mas caracteriza-se como um trabalho que parte das culturas de referência do alunado (popular, local, de massa) e de gêneros, mídias e linguagens por eles conhecidos, para buscar um enfoque crítico, pluralista, ético e democrático – que envolva agência – de textos/discursos que ampliem o repertório cultural, na direção de outros letramentos valorizados (como é o caso com hiper e nanocontos) ou desvalorizados (como é o caso com o picho) (ROJO, 2012, p. 8).

Desse modo, o estudo do texto torna-se inseparável das interações discursivas pelas quais o homem se relaciona e se posiciona, integrando valorações e comportando diversas vo-zes sociais. Passamos, a seguir, à análise, enfrentando a seguinte questão: como os textos se configuram dentro das propostas de redação do Enem?

Nas propostas de redação do Enem: os textos que com-põem as coletâneas

A redação é uma das cinco áreas avaliadas no Enem. Nessa prova os participantes devem redigir uma dissertação argu-mentativa a partir de um tema e de uma coletânea de textos. Com isso, espera-se que os candidatos apresentem argumentos de forma coesa e coerente em defesa de um ponto de vista.

No período compreendido entre 1998 a 2012, a área da re-dação foi a que menos sofreu alterações substanciais, se com-parada com as outras áreas de conhecimento do exame. Com poucas variações estruturais, a proposta de redação foi conti-nuamente apresentada no limite de uma página, composta por: i) apresentação do tema; ii) textos motivadores; e iii) instru-ções. No topo da página encontramos os comandos, nesses o

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candidato lê o tema proposto e as orientações para redigir um texto dissertativo-argumentativo em norma padrão, baseado na leitura dos textos de apoio e nos conhecimentos adquiridos ao longo de sua formação. A solicitação é recorrente: “selecione, organize e relacione de forma coerente e coesa argumentos e fatos para a defesa de seu ponto de vista”.

Até 2009, a exigência da produção escrita nos comandos das propostas oscilou entre “texto dissertativo”, “texto em prosa do tipo dissertativo-argumentativo” e “dissertação”. Após a re-formulação do Enem, de 2009 a 2012, as propostas passaram a usar apenas a terminologia “texto dissertativo-argumentativo”. De modo análogo, podemos constatar alterações na exigência do uso da “norma padrão da língua portuguesa”. De 1998 a 2012, as instruções indicaram ora a elaboração do texto em “norma culta”, ora em “modalidade padrão” da língua. Nas edições de 2011 e 2012, os comandos passaram a assinalar “norma padrão da língua portuguesa4. Tais alterações nos fazem indagar se es-sas são divergências terminológicas ou diferenças conceituais.

Além do tema, uma coletânea composta por uma média de três textos e/ou fragmentos de textos é apresentada após os comandos. Por último, na parte inferior, podemos ler as ins-truções; as quais exigem a redação a tinta, o máximo de trinta linhas, o mínimo de sete e a elaboração do rascunho no espaço apropriado. Os temas propostos de 1998 a 2012 foram:

4 Na edição de 2013, outra importante alteração ocorreu com a mudança para “modalidade escrita formal da língua portuguesa”.

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Quadro 1. Os temas de redação das edições do Enem (1998-2012).

Fonte: MEC/Inep, 2012.

O Quadro acima mostra que as propostas apresentaram di-ferentes temas. Nos anos 2000, 2001, 2002, 2003 e 2004, esses foram oferecidos em forma de pergunta direta, enquanto que nos demais anos, como questões-temáticas.

Dividimos os temas em três eixos: cultural, sócio-políti-

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co e ambiental. Classificamos como eixo cultural aqueles que apresentaram como reflexão assuntos relacionados a costumes, hábitos, crenças e manifestações artísticas do homem em so-ciedade. No eixo sócio-político incluímos as questões ligadas a fenômenos e problemas sociais. E no último, temas sobre o meio ambiente.

Desse modo, contabilizamos quinze provas de redação5, que podem assim ser classificadas pela recorrência dos eixos temáticos:

Gráfico 1. Eixos temáticos das propostas de redações do Enem (1998-2012).

Podemos observar no Gráfico acima que os temas sócio-políticos são os que mais estiveram presentes nas propostas, o que nos faz pensar que há um grande espaço concedido para questões polêmicas relacionadas à cidadania. A escolha dos te-

5 Nos quinze anos que compreendem o período entre 1998 a 2012, dezesseteprovasforamelaboradas–duasamaisqueoprevisto,devidoàsuspeitade fraude em 2009 e à falha de impressão em 2010, gerando uma segunda reaplicação.Paraaconstruçãodosgráficos1,2e3,utilizamosapenasasquinzeprovasoficiais:naediçãode2009nãoconsideramosaprovacancelada,enquantonaediçãode2010consideramosapenasaprovadaprimeiraaplicação.

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mas ligada à opção pelo texto dissertativo-argumentativo não é fortuita, baseia-se no pressuposto de que, ao final do Ensino Médio, o aluno seja capaz de defender uma questão de interesse comum por meio de argumentos consistentes.

Nos documentos do Enem, podemos verificar que a “edu-cação para cidadania” aparece como um dos eixos norteadores das propostas de redação, que lançam para a discussão temas como imigração, direito ao voto, ética nacional etc. Contudo, para que o aluno possa se posicionar frente a esses assuntos, sua opinião deve ser formulada a partir da leitura dos textos da coletânea.

Por meio de um levantamento realizado em torno das co-letâneas que compõem as propostas de redação (1998-2012), constatamos que essas reúnem textos de diferentes gêneros. Como muitos são adaptados, comumente não se constituem como textos completos, sendo apenas excertos.

Identificamos que todas as edições apresentaram textos verbo-visuais, com exceção da primeira, que apenas ofereceu um texto verbal. No entanto, a partir de 1999, a coletânea pas-sou a abrigar infográficos, charges, tirinhas e/ou fotografia. De 1998 a 2012, dezesseis textos verbo-visuais foram utilizados nas coletâneas, como podemos visualizar abaixo:

Gráfico 2. Presença dos textos verbo-visuais nas propostas de redação do Enem (1998-2012).

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O Gráfico 2 indica que o gênero infográfico foi o mais recorrente, seguido de charge e tirinha. Ao observarmos as fontes de onde tais textos foram retirados, constatamos que a maioria é procedente de jornais/revistas e páginas da Internet – especializadas, portais de notícias, sites do governo etc.

Se contabilizarmos todos os 51 textos/excertos utilizados nas coletâneas desde a primeira edição, entre 1998 e 2012 – conforme Anexo deste capítulo –, é possível verificar que não apenas os textos verbo-visuais foram retirados de jornais/revis-tas e páginas da Internet, mas também os demais. A preferência por textos que circulam na esfera jornalística está marcada em mais da metade das fontes:

Gráfico 3. Fonte dos textos verbais e verbo-visuais das propostas de redação do Enem (1998-2012).

Esse dado faz pressupor que a exigência de letramento im-plícito nas propostas de redação recai sobre textos informativos e opinativos, de diferentes gêneros, subtendendo assim um alu-no leitor de jornais e revistas sobre temas da atualidade, usuário de páginas e portais de notícias da Internet.

Considerando que a leitura e a escrita são atividades in-

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terdependentes, a presença marcada de textos verbais e verbo-visuais de diversos gêneros nas coletâneas sugere que a com-preensão do tema da redação também é resultado das relações dialógicas que podem ser estabelecidas, a partir da leitura dos textos, com o repertório de saberes dos candidatos. A exigência da proficiência em leitura é, portanto, o primeiro fator que nos leva a relacionar a capacidade de produção de uma boa disser-tação com o histórico de letramento discente.

Considerações finais

A presença progressiva de charges, tirinhas, fotografias e infográficos que passaram a constituir de modo muito signifi-cativo as questões do Enem nas propostas de redação dialoga com as orientações dos documentos oficiais prescritos para a educação média, em especial, com a ideia dos múltiplos letra-mentos, confirmando a orientação do trabalho na escola com textos de diversos gêneros, que circulam em jornais, revistas e meios digitais.

Se historicamente, como confirmamos na primeira parte deste capítulo, as orientações oficiais para o ensino de Língua Portuguesa conseguiram superar a abordagem do texto emba-sada pela análise estrutural, que priorizava a gramática norma-tiva e o eixo da leitura literária, outros desafios para o século XXI se confirmam como necessários.

Quando analisado mecanicamente, como um objeto fecha-do em si, o texto oferece poucos caminhos para explorar sua di-mensão estético-ideológica, dificultando uma leitura que exija a capacidade de relacioná-lo com outros textos e discursos para a construção da argumentação e da defesa de um ponto de vista, como exige o Enem.

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Ressaltamos que a fragmentação dos textos das coletâneas do Enem, dada pela supressão de suas partes e pela adaptação que muitos textos sofrem, não colabora para a reconstituição de suas características autorais, estilísticas e composicionais, o que interfere diretamente na produção de sentido.

Na leitura do texto verbo-visual, a articulação entre as par-tes que compõem o todo, assim como a capacidade de analisar como essas se articulam construindo sentidos é a chave para compreender as relações dialógicas entre as múltiplas lingua-gens. Acreditamos que tal encaminhamento teórico-metodo-lógico seja uma maneira de abordar o texto em sua dimensão plural, atendendo a exigência dos objetivos estabelecidos para o Ensino Médio de buscar novas práticas de leitura que deem conta da natureza dialógica e multissemiótica da linguagem.

Como pudemos constatar, o conceito de texto na pers-pectiva dialógica não esconde o autor como um produtor ativo de textos e, por isso, não apaga as marcas e as circunstâncias históricas da interlocução, possibilitando uma compreensão profícua para o trabalho na esfera didática, uma vez que per-mite o investimento nas condições de produção e recepção e nas materialidades verbais e verbo-visuais, propondo o envolvi-mento com as diversas linguagens proliferadas no mundo con-temporâneo.

Por essa razão, para além das conquistas históricas, é neces-sário que o rigor teórico e metodológico dos estudos linguísti-cos esteja a serviço do ensino de Língua Portuguesa, seja pelas atividades didáticas ou pelas avaliações que podem resultar na reestruturação dos currículos.

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Referências

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Anexo – coletânea de textos das propostas de redação do Enem (1998-2012)

1998 - Letra de músicaTrecho de O que é o que é, de Luiz Gonzaga. Fonte: não especificada.

1999 - TiraFradim, de Henfil.Fonte: HELFIL. Fradim. n. 20, 1997.

ReportagemTrecho de Para quem se revolta e quer agir. Fonte: adaptado de Folha de S.Paulo, 16 nov. 1998.

DepoimentoTrês depoimentos de jovens participantes do encontro Vem ser cidadão: E.M.O.S., 18 anos, Minas Gerais;C.S.Jr., 16 anos, Paraná; H.A., 19 anos, Amazonas.Fonte: Folha de S.Paulo, 16 nov. 1998.

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2000 - ChargeDe Angeli.Fonte: Folha de S.Paulo, 14 maio 2000.

Artigo de leiArtigo n.º 227 da Constituição da República Federativa do Bra-sil de 1988.

DepoimentoTrecho de depoimento de reportagem.Fonte: A Gazeta, Vitória, ES, 9 jun. 2000.

LivroTrecho do livro de Gilberto Dimenstein.Fonte: O cidadão de papel. 19. ed. São Paulo: Ática, 2000.

2001- TiraDe Caulos.Fonte: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1978.

Artigo de opiniãoTrecho do texto de Paulo Adário, Coordenador da campanha da Amazônia do Greenpeace.Fonte: http://greenpeace.terra.com.br

Artigo de opiniãoTrecho de O Planeta é um problema pessoas- desenvolvimento sustentável da organização não governamental WWFFonte: http://www.wwf.org.br

CartaTrecho das cartas do chefe Seatle, da tribo Suquamish. Fonte: PINSKY, Jaime et al. (Org.). História da América através de textos. 3. ed. São Paulo: Contexto, 1991.

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Carta de leitorCarta de R. K, de Ourinhos, SP, enviada à seção de jornal Cor-reio da revista Galileu, v. 10, jun. 2001.

2002- Fotografia Foto do comício pelas Diretas Já, em São Paulo, 1984.

Artigo de opiniãoTrecho de opinião (sem autor), em 1 mar. 2002.Fonte: http://www.iarabernardi.gov.br

LivroTrecho do livro de Marilena Chauí, Convite à Filosofia, São Paulo: Ática, 1994.

Livro Trecho adaptado do livro de Norberto Bobbio,Qual socialismo. Discussão de uma alternativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

Artigo de opiniãoTrecho adaptado do texto de André Forastieri, Muito além do voto.Fonte: Época, 6 maio 2002.

2003 - InfográficoNúmeros do pânico.Fonte: Época, 2 jun. 2003.

Artigo de opiniãoTrecho do texto de Maria Rita Kehl.Fonte: Folha de S.Paulo.

Artigo de opiniãoTexto adaptado de Jurandir Costa, O medo social.

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2004 - Charge De Caco Galhardo, em 2001.

LivroTrecho do texto de Eugênio Bucci, Sobre a ética na imprensa. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Artigo de opiniãoTrecho de texto sem título.Fonte: http://www.eticanatv.org.br

Artigo de opiniãoTrecho adaptado de texto sem título.Fonte: http://www.observatorio.ultimosegundo.ig.com.br

Artigo de leiIncisos do Artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Artigo de leiIncisos do Artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

2005 Infográfico Trabalho infantil no Brasil.Fonte: O Globo, 11 maio 2004.

Artigo de opiniãoTrecho do texto de Xisto T. de Medeiros Neto, A crueldade do trabalho infantil.Diário de Natal, 21 out. 2000.

Artigo de opiniãoTrecho do texto de Joel B. Marin, O trabalho infantil na agricul-tura moderna. Fonte: http://www.proec.ufg.br

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Artigo de leiArtigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente.Fonte: Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990.2006 DepoimentoTexto adaptado de Inajá Martins de Almeida, O ato de ler.Fonte: http://www.amigosdolivro.com.br

Ilustração Livro antigo [sem menção a autor ou fonte].

DepoimentoTrecho adaptado de depoimento de Moacyr Scliar, O poder das letras.Fonte: Tam Magazine, p. 70, jul. 2006.

DepoimentoTrecho adaptado de texto sem indicação de autoria.Fonte: http://www.amigosdolivro.com.br

2007 - Ilustração Imagem de pessoas de diferentes culturas e grupos sociais [sem menção a autor ou fonte].

Letra de música Ninguém = ninguém, de Engenheiros do Hawaii.

Letra de música Uns iguais aos outros, dos Titãs.

DeclaraçãoDeclaração Universal sobre a Diversidade Cultural, da Unesco.

2008 - ReportagemTexto adaptado de T. Lovejoy e G. Rodrigues, A máquina de chuva da Amazônia.Fonte: Folha de S.Paulo, 25 jul. 2007.

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2009 - ChargeDe Millôr Fernandes.Fonte: http://www2.uol.com.br/millor

Artigo de opiniãoTexto adaptado de L. Luft, Ponto de vista. Fonte: Veja, n. 1988, 27 dez. 2006.

Artigo de opiniãoTexto adaptado de Contardo Calligaris, A armadilha da cor-rupção. Fonte: http://www1.folha.uol.com.br

2010 - ReportagemFragmento do texto O que é trabalho escravo.Fonte: http://www.reporterbrasil.org.br

ReportagemFragmento do texto O futuro do trabalhoFonte: http://www.revistagalileu.globo.com

2011 - Artigo de opiniãoFragmento do texto de G. Rosa e P. Santos, Liberdade sem fio.Fonte: Galileu, n. 240, jul. 2011.

Notícia Texto adaptado A Internet tem ouvidos e memória.Fonte: http://www.terra.com.br

TiraDe A. Dahmer, Quadrinhos dos anos 10.Fonte: http://malvados.wordpress.com

2012 - Apresentação para siteTrecho de Quem somos, da página web do Museu da Imigração do Estado de São Paulo.

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Fonte: http://www.museudaimigracao.org.br

Infográfico Novo lar.Fonte: http://www.mg1.com.br

NotíciaTexto adaptado Acre sofre com invasão de imigrantes do Haiti.Fonte: http://www.dpf.gov.br

Artigo acadêmicoTexto adaptado de R. T. Oliveira, Trilha da costura.Fonte: http://www.pea.gov.br

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Bolsa Família: a construção da cena genérica na propaganda institucional

Claudia Pereira de Souza

Patrícia Leite Di Iório

Introdução

Para compreender o Programa Bolsa Família (PBF), é pre-ciso retomar às recentes mudanças no âmbito das políticas so-ciais, entre as quais, a questão da centralidade da família. Se, a partir da Constituição de 1988, todos têm direito à Saúde, Previdência e Assistência Social, o avanço do neoliberalismo provocou mudanças nas relações entre o Estado e sociedade civil. Iamamoto (2003) e Codato (1997) apontam que a ques-tão social tornou-se problema do mercado de organizações não governamentais, enquanto o Estado passou a descentralizar re-cursos e a focalizar as ações de combate à pobreza.

Nesse processo, a família ganha importância na política so-cial como instância capaz de assegurar proteção, pertencimento e inclusão social. Seguindo essa tendência, o governo federal propôs o Programa Bolsa Família para amenizar o problema da má distribuição de renda no País.

Criado em outubro de 2003, pelo governo federal, o Bolsa Família integra o Programa Fome Zero e prevê a unificação de vários programas menores. Trata-se de um dos maiores pro-gramas de transferência direta de renda do Brasil, que mensal-

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mente repassa valores em dinheiro para as famílias em situação de pobreza.

Como esse programa tem como principal objetivo a esti-mulação da autonomia das famílias em situação de pobreza, logo se tornou fundamental fazer campanhas de publicidade do PBF, desde seu lançamento, veiculadas como utilidade pública. Segundo o governo, era preciso “informar milhões de pessoas em todo o País sobre seus direitos, além de mobilizar gestores e sociedade para o controle do programa” (BRASIL, 2013). Em decorrência dessa necessidade anunciada, foram produzidas propagandas institucionais do Programa Bolsa Família.

A propaganda institucional é utilizada para constituir uma imagem sólida de como a empresa se posiciona no mercado: suas estratégias, aspirações, objetivo, missão e até sobre sua responsabilidade social e ambiental. Pinho (1990, p. 23) define a propaganda institucional como tendo o “propósito de preen-cher as necessidades legítimas da empresa, aquelas diferentes de vender um produto ou serviço”. É possível entender que a propaganda institucional está intrinsecamente associada às ati-vidades de relações públicas. Isso porque, ao compreendermos as relações públicas com o objetivo macro de intermediar e oti-mizar o relacionamento da organização – pública, privada ou do terceiro setor – com seus diversos públicos-alvo, por meio dos mecanismos de comunicação; relacionamos a propaganda institucional como um dos instrumentos estratégicos para a otimização do relacionamento entre a organização e o público.

É comum termos atualmente propagandas com imagens em jornais, revistas, outdoors e sons musicais, principalmente na televisão, assim as propagandas do Bolsa Família também saíram em jornais, revistas, outdoors e na televisão, porém nossa análise se restringirá a produtos impressos. Sandmann (2012)

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afirma que, muitas vezes, o texto escrito ou falado é apenas par-te deste todo que compõe a propaganda, pois a textualidade ou o texto complexo é formado por sons, imagens – estáticas ou em movimento –, texto linguístico, ideologia e aspectos éticos.

Este trabalho busca estudar como o governo federal do Brasil constrói em propagandas institucionais do PBF sua ima-gem a partir da cena genérica. Para tanto, conforme já dito, va-ler-nos-emos da análise desse tipo de cena da enunciação para a depreensão dos recursos linguísticos discursivos utilizados, visando à intenção de aceitação dos coenunciadores, bem como da aproximação do enunciador e coenunciador à adesão da ideia do PBF.

A Análise do Discurso (AD) concebe a linguagem como uma forma de ação atuante em espaços institucionais. Apoian-do-se na metáfora teatral, a AD considera a sociedade um tea-tro no qual são atribuídos papéis a cada sujeito. Essa visão é ampliada com a noção de cena enunciativa, pois o discurso também constrói sua representação na qual a fala é encenada. Maingueneau (2005) divide essa cena em outras três, denomi-nando-as de cena englobante, cena genérica e cenografia.

A cena genérica compreende o gênero do discurso no qual cada um define o seu papel. Essa, juntamente com a cena englo-bante – que refere-se ao tipo de discurso e sua existência está relacionada ao tempo e ao espaço, porque surge da necessidade do grupo –, compõem o quadro cênico do texto, constituindo um espaço estável no interior do enunciado.

Assim, analisaremos a cena genérica, tendo como corpora três propagandas institucionais que comporão nossa amostra para a análise. Essas foram publicadas em diferentes anos, as-sim poderemos observar, ainda, a transformação das perspecti-vas governamentais:

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• Propaganda A – retirada da revista Veja, lançada após a aprovaçãodoProgramaBolsaFamília,emoutubrode2003,iníciodogovernoLuizInácioLuladaSilva;

• Propaganda B – retiradadosite oficialdoBolsaFamília–disponívelem:http:www.mds.gov.br–,de2009,mostraosanosfinaisdogovernoLulaeaintensificaçãoàmanutençãodo partido para a eleição da, então candidata, DilmaRousseff;

• Propaganda C –retiradadojornalO Estado de São Paulo, publicadanoCadernoNacional,em19defevereirode2013,mostraosdezanosiniciaisdoProgramaBolsaFamília.

Propaganda institucional – questões do gênero

O gênero propaganda institucional, segundo Charaudeau (2010), impõe uma verdade pela ilusão por meio de seu discur-so de manipulação, que apresenta como objetivo influenciar o comportamento de seu coenunciador, maquiando sua intenção pelo anúncio de uma informação, apoiando-se sobre uma posi-ção de autoridade do saber.

Verificamos que há muita especificidade na sua construção, pois tem como característica a organização em frases curtas, dando margem à imaginação do coenunciador, como apare-ce na Propaganda A, intitulada Bolsa Família. A evolução dos programas de complementação de renda no Brasil, levando o coenunciador a deduzir que o Bolsa Família faz parte de uma política pública de melhoria da qualidade de vida dos brasilei-ros; na Propaganda B, sob o título Bolsa Família: milhões de bra-sileiros já melhoraram de vida, podemos inferir que o programa está em plena expansão, ou seja, um país de terceiro mundo que

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está em desenvolvimento; já a Propaganda C, intitulada O fim da miséria é só um começo, propõe um slogan que causa impac-to no coenunciador, pois sua linguagem é padronizada e serve para convencê-lo ou persuadi-lo de sua eficácia, já que financia tal recurso, chamando a atenção para uma percepção favorá-vel do serviço e da marca “Bolsa Família”, ou seja, promovendo uma imagem positiva desses.

Tanto Charaudeau (2012) como Sandmann (2012) concor-dam que a primeira tarefa da propaganda deve ser a de prender a atenção de seu coenunciador, pois esse vive em um universo saturado de estímulos, e que mesmo quando se disponha a isso, não consegue dar atenção e assimilar todas as mensagens que lhe chegam via rádio, televisão, jornal, revistas, outdoors.

Por isso, percebemos nas propagandas uma criatividade na busca incessante de meios estilísticos que façam com que o coenunciador ou ouvinte preste atenção ao seu texto, até cho-cando-o, se for necessário, como por exemplo, no seguinte tre-cho, retirado da Propaganda C: “A partir de março, mais 2,5 milhões de brasileiros vão deixar a extrema pobreza”, ou seja, o coenunciador fica espantado ao se deparar com um marco temporal para a solução de um problema que persiste por anos e em nível nacional.

Outro aspecto de destaque é como as propagandas se va-lem basicamente da linguagem padrão. Tais exemplos utiliza-ram essa variedade linguística da língua portuguesa, ou seja, não empregaram gírias ou estruturas gramaticais mal elabora-das, por ser tratar de propagandas institucionais, que têm como foco uma credibilidade favorável que seus coenunciadores es-peram encontrar nesse gênero. Podemos verificar nos exemplos a seguir tal recurso:

• Na Propaganda A – “Evolução porque vai aumentar

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e muito os benefícios pago”; “Evolução porque nos próximos anos vai incluir milhões de famílias que antes não faziam parte de nenhum programa”;

• Na Propaganda B – “Para atingir quem realmente precisa, é importante que as famílias mantenham sempre os dados atualizados”; e

• Na Propaganda C – “A partir de março, mais 2,5 milhões de brasileiros vão deixar a extrema pobreza”.

Contudo, percebemos que o enunciador utilizou “vão dei-xar”, uma locução verbal com o objetivo de aproximar o seu coenunciador, utilizando uma linguagem coloquial.

Na linguagem da propaganda, o discurso que manipula está muito presente, pois a constante dessa linguagem é evi-denciar um serviço. Dessa maneira, podemos verificar que as propagandas tentam persuadir o coenunciador, ou seja, levá-lo a um comportamento. Podemos ver tal recurso quando o enun-ciador na Propaganda A afirma: “Evolução significa fazer mais e melhor. Evolução significa fazer para todos”, ou seja, um recur-so impositivo se faz presente por meio do pronome indefinido todos, que se refere à terceira pessoa do discurso, designando-a de um modo vago, impreciso; isso nos faz inferir que o prono-me indefinido todos pode ser qualquer pessoa que terá direito a tal evolução, e não se restringirá a apenas uma parcela da po-pulação. Também os advérbios mais e melhor tornaram a frase extremamente impositiva; na Propaganda B – “Bolsa Família: a vida vai melhorar” – e na Propaganda C – “Com eles, vai para 22 milhões o número de brasileiros que cruzaram esta linha” – a utilização do verbo ir, na forma do presente do indicativo para indicar também o futuro, incute uma ideia de que, com o PBF, a vida será melhor e que cada ano aumentará o número de bra-

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sileiros que deixarão a miséria.A expressão Bolsa Família tambémaparecevárias vezes

naspropagandas,poisquerfixara“marca”emseuscoenun-ciadores, persuadindo o leitor a acreditar no programa. Na composição Bolsa Famíliaoselementosprimitivosperdemasignificaçãoprópriaembenefíciodeumúnicoconceito,novo,global;seantestínhamossubstantivoscomunsbolsa e família, agora,comtaljunção,temosumsubstantivopróprio–comopodemosveremosnocorpus deste capítulo –, que se transfor-mouemumamarca,repetidaporváriasvezesemtodaapro-paganda, conforme já citamos. Nesse caso, pudemos perceber que a estrutura do nome composto Bolsa Família é formada pordoissubstantivosqueseunemporcoordenação,osele-mentos se unem por uma relação de complemento, que tra-zem a ideia de auxíliofinanceirofamiliar.

Ao perceber a abdicação de nomes técnicos dos programas sociais por expressões retóricas, uma das primeiras possibilida-des de interpretação é verificar que Bolsa Família é um nome curto e, por isso, digerível, fácil de ser compreendido pela po-pulação.

Outra característica presente e, talvez, nesse caso, apenas uma coincidência, é que os programas sociais são apresentados sempre em duas palavras, que se complementam, como, por exemplo, Fome Zero e Bolsa Família. Tratam-se de nomes cur-tos que têm como função a fixação na mente de seus coenuncia-dores, utilizando-se de palavras cotidianas.

É possível, ainda, fazer uma análise individual do nome Bolsa Família, dado que o termo bolsa está mais relacionado à educação. Uma bolsa de estudos, de caráter integral ou parcial, concedida, geralmente, a estudantes, para fins de aprendiza-gem, ou seja, já é uma expressão conhecida e consagrada por

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grande parte das pessoas. Bolsa, portanto, seria a informação, enquanto o termo família tem uma função de complementação. Nesse caso específico, o termo família tem a função de exprimir um benefício, já que o programa se destina àquelas famílias de baixa renda, que mantêm seus filhos na escola.

Já na junção dos nomes, Bolsa Família, por se tratar de uma composição, ocorre um processo de formação lexical que consiste na criação de uma palavra nova pela combinação de vocábulos já existentes. Logo, temos uma formação ideológica específica, que faz parte do povo brasileiro: o apego e a valori-zação da família como base na herança judaico-cristã, a visão do governo como uma espécie de “pai dos pobres”, decorrente de questões muito mais políticas do que solidárias, por isso a marca Bolsa Família é de grande importância nesse gênero.

De acordo com Charaudeau (2010), o discurso propagan-dista é um tipo de enunciado definido de maneira ideal e que se concretiza por diferentes gêneros, esses que variam de acor-do com: o tipo de legitimidade do qual goza o sujeito falante: a natureza do objeto de fala – ou objeto de busca – que constitui o “fazer crer” e o “dever crer”; e o lugar atribuído ao sujeito influenciado. Percebemos nos corpora a presença da argumen-tação com a função de persuadir o interlocutor, impondo-se a esse. O enunciador impõe um modo de raciocínio e de argu-mentos para o coenunciador não manifestar possíveis objeções em relação ao esquema narrativo, como, por exemplo, na Pro-paganda C, em que o enunciador dá uma data para acabar com a miséria: “A partir de março, mais de 2,5 milhões de brasileiros vão deixar a extrema pobreza”; ou na Propaganda B, ao anun-ciar: “Dessa forma, o Bolsa Família ajuda a garantir um direito: a conquista da cidadania para as famílias brasileiras”, no dis-curso à objeção em relação ao objeto de busca, o coenunciador

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pode julgar que a procura em si não lhe diz respeito, porém, o enunciador trata de impor a ideia de que esse pertence, mesmo não querendo, a essa busca.

Ainda em relação ao discurso propagandista, segundo Charaudeau (2010), há dois tipos de propaganda, conforme a natureza de sua finalidade, que são o “tático” e o “profetizado”.

O tático consiste em lançar intencionalmente uma falsa informação ou em denunciar como falsa uma informação que circula na sociedade, para que a opinião pública julgue os acon-tecimentos de uma determinada maneira ou que aja em uma determinada direção. Como exemplificado na Propaganda A, ao explicar que:

Os programas de complementação de renda são um recurso em dinheiro que o Governo Federal entrega mensalmente para as famílias mais pobres. Exemplos desses programas são o Auxílio Gás, o Bolsa Escola, o Bolsa Alimentação e o Cartão Alimentação. O problema é que, além de oferecer benefícios que isoladamente são baixos, cada programa funciona inteiramente separado dos outros, com diferentes cadastros de beneficiários, e parte significativa das famílias está inscrita em apenas um programa. Algumas famílias recebem mais de um benefício, e famílias vizinhas, em condições iguais, nada recebem (BRASIL, 2003).

Os programas eram de outra administração, à época do presidente Fernando Henrique Cardoso, e não conseguirampreencherasnecessidadesde reversãodapobreza,ouseja,nãocumpriramcomametadedeixarum“Brasilsemmiséria”.Assim,essemododepropagandadesmoralizaogovernoante-rior,deformaadissuadiroscoenunciadoresqueonovogover-noéjusto,imparcialeresolveosproblemasdapobrezaedamiséria. Trata-se, aqui, de um discurso de manipulação, com

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uma intenção de iludir, fazendo-se passar por interesse geral aquiloqueédeinteresseparticular,apoiando-seemumapo-siçãodelegitimidade.

Também encontramos a propaganda profetizante, poisparaCharaudeau(2010),essaconsisteemlevarasmassasaaderirem a um projeto de idealização social ou humana. Para isso, podem referir-se a um discursode revelação,porqueaverdade reside nessa alocução; tal enunciado de revelaçãodeveprometer,deumamaneiraoudeoutra,“diasmelhores”,comovimosnoexemplodaPropaganda C, emqueestipulaumadata para acabar comamiséria; a instância propagan-distadeveterumestatutode representante simbólico auto-rizado como portador desse enunciado, quem diz é o governofederal;deveentãodisporde grandes meios de comunicação, ouseja,aspropagandasforamveiculadasemrevistas,jornaise site. 

A enunciação tem como função chamar a atenção para o texto escrito, pois, se considerarmos o excesso de estímulos e mensagens propagandísticas, chamar a atenção do coenun-ciador, fazê-lo memorizar a mensagem é aspecto essencial da mensagem publicitária. Ao colocar na mesma frase palavras que rimam, como evolução e complementação, como vemos no exemplo da Propaganda A – “A evolução dos programas de complementação de renda no Brasil”, o eco chama a atenção de seu coenunciador, despertando nesse sensações de agrado ou estética, ajudando no processo de memorização. Podemos ver também esse enunciador fazendo um jogo com as palavras, quando coloca vários tópicos iniciados com o substantivo evo-lução, podemos inferir que, com essa repetição, o enunciador entretém o coenunciador, desafiando-o a entender a mensagem escrita, além de objetivar prender a sua atenção e fixar a ideia de

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que o programa evoluiu.Na Propaganda B: “Bolsa Família. A vida vai melhorar”, tra-

ta-se de uma frase curta de simples memorização, utilizando-se de frase nominal e verbal com o objetivo de facilitar a leitura e a compreensão do coenunciador. Já na Propaganda C: “O fim/ Da/ Miséria/ É só/ Um/ Começo” trata-se de uma frase feita que trabalha com signos que se assemelham por seu corpo fônico, trabalhando com rimas que chamam a atenção do coenuncia-dor, com o objetivo de despertar sensações de agrado e estéti-ca, ajudando no processo de memorização. Nessa propaganda o enunciador trabalha com a figura de linguagem antítese ao utilizar as palavras fim e começo, com o objetivo de aproximar expressões de sentidos opostos. As letras na propaganda apre-sentam-se em grande dimensão, com cores claras em um fundo escuro, em papel esticado sobreposto às figuras dos brasileiros, tais recursos ajudam chamar a atenção do coenunciador e am-pliar a ideia inicial que o programa evoluiu.

Um dos aspectos que, possivelmente, mais distingue os tex-tos de propagandas, de acordo com Sandmann (2012) e Pinho (1990), é a simplicidade estrutural. Podemos verificar essa ca-racterística nas seguintes frases:

Em “Bolsa Família. A evolução dos programas de comple-mentação de renda no Brasil” (Propaganda A), por exemplo, não temos verbos, nem conectivos para indicar que o Programa Bolsa Família é a evolução dos programas de complementação de renda no Brasil. É comum o nome comercial ou o nome do produto, em nosso caso o nome do Programa, estar no começo do texto publicitário sem elementos linguísticos coesivos. Isso é também notado na Propaganda B: “Bolsa Família: Milhões de brasileiros já melhoraram de vida”, em que o Bolsa Família está separado por dois pontos, em seguida segue uma afirmação que

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será retomada no decorrer do texto. Já na Propaganda C: “O fim da miséria é só um começo”, o nome do programa não está no começo do texto publicitário, de modo que também temos a presença de elementos linguísticos coesivos.

Em relação aos aspectos organizacionais, Sandmann (2012) e Orlandi (2012) apontam que o texto publicitário se compõe, basicamente, de título, texto e assinatura. Nas três propagandas verificamos tais itens.

Na Propaganda A:• Título – “Bolsa Família. A evolução dos programas de

complementação de renda no Brasil”. Em regra é umafrase que nem sempre está completa, mas dirige-se ao coenunciador, apresentando-lhe um fato ou situação, usando,naturalmente,debrevidade;

• Texto–“OsprogramasdecomplementaçãoderendasãoumrecursoemdinheiroqueoGovernoFederalentregamensalmente para as famílias mais pobres. Exemplos desses programas são o Auxilio Gás (também conhecido comoValeGás),oBolsaEscola,oBolsaAlimentaçãoeoCartão Alimentação. O problema é que, além de oferecer benefícios que isoladamente são baixos, cada programafunciona inteiramente separados dos outros, com diferentescadastrosdebeneficiários,epartesignificativadasfamíliasestáinscritaemapenasumprograma”.Otextoentra em mais detalhes a respeito do assunto apresentado notítulo, descrevendoa situaçãoemque seencontramos brasileiros; faz considerações diversas, explicando osmotivos da unificação de todos os benefícios que antesos brasileiros recebiam separadamente e os motivos

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que fizeram o governo federal unificar tais programas,de modo que, em suas considerações generalizadas, oenunciadorexpõeacorreçãodoproblemaqueacontecia–unificaçãodosbenefícios–apresentandooPBF,oqualtraráevoluçõesnavidadosbrasileiros;

• Assinatura – “O bolsa família fortalece o Fome Zero.Brasilumpaísdetodos–GovernoFederal”,apresenta-seo nome da instituição responsável pelo programa BolsaFamíliaecolocaemevidênciaoBolsa Família em relação ao programa anterior, Fome Zero, essequevinhadeoutrogoverno,entãopresididoporFernandoHenriqueCardoso.Outro detalhe que chama a atenção é que a palavragoverno federal está escrita em tamanho reduzido, nãotendocomoobjetivotiraraatençãodaexpressãoBrasil um país de todos. Além disso, percebemos que as cores das assinaturasvariarãodependendodoanodaspropagandas,ou seja, estão ligadas a uma nova perspectiva de vidapropostapelogoverno.

Na Propaganda B verificamos: • Título – “Bolsa Família: Milhões de brasileiros já

melhoraramdevida”,situaocoenunciadoremrelaçãoàsituaçãovivenciadanoBrasil.Àépocadapropaganda,em2009, o programa já tinha seis anos de existência, logo,paraoenunciador,muitosbrasileirosjátinhammelhoradodevidasaindodamiséria;

• Texto – “OBolsa Família é umdos principais programasde transferência de renda do Brasil. Tão grande quantooprogramaéodesafiodecontribuirparaa reduçãoda

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pobreza, da fome e da desigualdade em nosso país. Para atingir quem realmente precisa, é importante que asfamílias mantenham sempre os dados atualizados junto aos responsáveispeloBolsaFamílianosmunicípios. Issocontribui para que o gerenciamento do programa se torne cadavezmelhor”.Oenunciadormostracommaisdetalheede formaexplicativa sobreoPBF,emseguida fazumacomparação da extensão do programa, exaltando com o desafiodeeliminaramisérianoBrasil–“tãograndequantooprogramaéodesafio”–,transferindoaresponsabilidadeàsfamílias,essasquedevemsecadastrar,pois,sóassim,oprogramaconseguiráatingir todaapopulaçãocarentequenecessitadoBolsaFamília.Dessemodo,oenunciadordivide a sua responsabilidade com as famílias quenecessitamdeajudafinanceira;

• Assinatura – “Ministério do Desenvolvimento Social eCombate à Fome – Brasil Um País De Todos – GovernoFederal”apresentaonomedainstituiçãoresponsávelpeloprogramaBolsaFamília.Jánessaassinatura,entraonomedoMinistérioeonomegovernofederal,escritocomletrasmaiores,evidenciandoaimportânciaearesponsabilidadequeogovernofederalpossuinessainiciativa.

Finalmente, na Propaganda C:• Título – “O fim da miséria é só o começo”, a frase

apresenta-se de forma incompleta, apenas ao tomarmos o texto como um todo é que o coenunciador conseguirá completarasuasignificação.Assim,apropagandadirige-seaocoenunciador,colocando-odiantedeumfato;

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• Texto – “A partir de março, mais 2,5 milhões debrasileiros vão deixar a extrema pobreza. Mas há umdetalhe importante: eles são os últimos dos brasileirosextremamentepobres,docadastrodoBolsaFamília,quefaltavamtranspora linhadamiséria”.O textoapresentamaisdetalhesarespeitodoassuntoapresentadonotítulo,fazendoconsideraçõesdiversas,comdetalhessobreoPBF,inclusive,apresentandoumadataparaterminarapobreza;

• Assinatura – “Ministério Do Desenvolvimento SocialE Combate à Fome–Governo Federal Brasil – País Ricoé País sem Pobreza” apresenta o nome da instituiçãoresponsável pelo programa Bolsa Família; a expressãogoverno federalapresentamaisdestaque,vindoantesdoBrasil, assim como nessa propaganda o enunciador nãoutilizaBrasil um país de todos, mas sim, Brasil país rico é um país sem pobreza,acentuandoqueoBrasilestásetornando um país rico e que a pobreza já está com data para acabar.

Analisada a cena genérica, passaremos às considerações fi-nais.

Considerações finais

A finalidade deste capítulo foi a de apresentar a construção da cena genérica na propaganda institucional, especificamen-te do Programa Bolsa Família. Para tanto, valer-nos-emos dos recursos linguísticos discursivos utilizados, visando à intenção de aceitação dos coenunciadores, bem como aproximação do enunciador e coenunciador à adesão da ideia do PBF; tam-

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bém importando os procedimentos de organização do gênero propaganda institucional, relacionando-o a fatores externos, de ordem social, histórica e cultural. Por meio desses estudos, chegamos à imagem institucional apresentada nas propagandas que trabalham com a ideia de negação da pobreza, por meio do discurso de igualdade social.

Identificamos, ainda, que as propagandas utilizam uma linguagem persuasiva, principalmente relacionada à imagina-ção de uma sociedade melhor e a emoção de que essa imagem construída pelo locutor pode causar sobre os seus interlocu-tores para ganhar confiança. Assim, notamos que nessas pro-pagandas não é a imagem do Bolsa Família que é colocada em evidência, mas a imagem do governo federal, ou seja, a projeção de “instituição do bem”, a favor da população.

Nas propagandas institucionais aqui analisadas, as lingua-gens verbal e não verbal, bem como a associação dessas a um contexto histórico e/ou a uma situação determinada, coopera-ram para a criação de uma imagem positiva do Bolsa Família. Os rostos sempre sorridentes que figuram no anúncio mostram uma propaganda que utiliza pessoas estereotipadas da popula-ção brasileira como as que mais sofrem discriminação – pardos, nordestinos etc. Dessa forma, as pessoas utilizadas na constru-ção do discurso contribuem para que a impressão deixada seja a de que há inclusão, proteção, criando a imagem de que haverá uma transformação social e que o enunciador se voltará justa-mente para os que mais precisam dessa mudança.

Por meio da divulgação das propagandas, em vários supor-tes, o enunciador tentou cativar todos os tipos de coenunciado-res, porém, seu discurso mostra a continuidade do programa com a diminuição dos recursos com o passar do tempo, como se fosse uma explicação à classe média, mas, ao mesmo tempo,

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para as pessoas carentes, o discurso mostra uma continuidade do programa, ou seja, evidencia um enunciado agregador e am-bíguo. Assim, percebe-se que o tom do enunciador está voltado à classe média. Pode-se também verificar que essas propagan-das são sociais, pois se tratam de campanhas voltadas às causas dessa natureza. Dessa maneira, procuram aumentar a aceitação de uma ideia ou prática social por seu público-alvo: a classe média que financia grande parte dos recursos utilizados.

Como sabemos, o discurso publicitário é um lugar privile-giado para a manifestação de ideologias, porque é representa-tivo do conjunto de ideias que norteiam uma sociedade, ideias essas capazes de gerar conflitos ou consensos. Tais noções criam nos homens uma visão ilusória da realidade, ou seja, essas in-terpelam os indivíduos, escondem e modificam a realidade por estarem a serviço das instituições, na forma de formações ideo-lógicas que orientam o mundo. Ademais, as propagandas ana-lisadas esconderam seus reais interesses: mostrar uma imagem positiva do governo atual e prestar contas à classe média, públi-co-alvo dos suportes utilizados.

Cabe ainda apresentar que, segundo Charaudeau (2010), há dois tipos de propaganda, conforme a natureza de sua fina-lidade, que são o tático e o profetizado. Nas propagandas aqui analisadas, percebemos a finalidade tática quando o enuncia-dor tenta desmoralizar o governo anterior de forma a dissuadir os coenunciadores que este novo governo é justo e imparcial. Trata-se, aqui, de um discurso de manipulação, com uma inten-ção de iludir, fazendo-se passar por interesse geral aquilo que é visado como interesse particular, apoiando-se em uma posição de legitimidade.

Encontra-se também nessas peças uma finalidade profeti-zante nos corpora, pois, segundo Charaudeau (2010), esse tipo

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de propaganda consiste em levar as massas a aderirem a um projeto de idealização social ou humana. Para isso, podem re-ferir-se a um enunciado de revelação, porque a verdade resi-de nessa alocução; esse discurso de revelação deve prometer, de uma maneira ou de outra, “dias melhores”, como vimos no exemplo da Propaganda C, em que o governo federal estipula uma data para acabar com a miséria.

Dessa forma, nota-se que os meios de comunicação torna-ram-se um espaço em que se desenvolve uma complexa disputa simbólica. A opinião pública torna-se, cada vez mais, depen-dente de um novo campo de legitimidade: o da máquina dis-cursiva da mídia; transformando o cidadão em consumidor de produtos discursivos. Com o PBF, o governo empenhou-se em seduzir e convencer o eleitorado, em áreas sociais tão impor-tantes para o desenvolvimento da Nação: porém, não utilizando números demonstrativos de crescimento ou de desempenho de seus programas, mas por meio das melhores técnicas argumen-tativas possíveis, pois dar nomes a programas sociais, como Bolsa Família é uma forma de acelerar a compreensão das men-sagens veiculadas.

Além disso, o programa mostra como problema a descen-tralização, a pulverização e a injustiça, de modo que para solu-cionar tais condições as propagandas tentam mostrar a otimi-zação dos recursos para fazê-los render mais. Percebe-se isso quando o enunciador usa a palavra evolução, ou seja, junta for-ças com outras instâncias de poder para aplicar o PBF, deixando claro que, a partir desse momento enunciado, o Brasil evolui, negando os programas dos governos anteriores.

Mesmo em assuntos de grande interesse público, o discurso serve como técnica de persuasão, que visa à adesão, tanto inte-lectual quanto emotiva. É um jogo de linguagem, que conse-

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gue incorporar as legítimas expectativas de um futuro melhor, para cada um e para a comunidade em geral. O governo, por meio das propagandas, em seu discurso afirma que a miséria tem data para acabar, mas a sociedade em seu discurso mostra que a miséria está longe de findar, pois podemos perceber que o enunciador tenta, de todas as maneiras, convencer o coenun-ciador de que se antes havia pobreza, agora essa acabou. Perce-bemos que as propagandas do PBF não são para quem recebe o recurso financeiro, mas sim aos coenunciadores que ainda não têm simpatia pelo governo.

Embora ainda haja muito a ser dito sobre as questões aqui tratadas, este trabalho teve como objetivo contribuir com a aná-lise de como o enunciador dessas propagandas se apresenta pe-rante seus coenunciadores.

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CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2012.

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Hoje. Trad. Ida Lucia Machado; Renato Mello. v. 3. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010. p. 57-78.CODATO,A.N.Sistema estatal e política econômica no Brasil pós-64.SãoPaulo:Hucitec,1997.

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ORLANDI, E. P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 10. ed. Campinas, SP: Pontes, 2012.

PINHO, J. B. Propaganda institucional: usos e funções da propaganda em relações públicas. São Paulo: Summus, 1990.

SANDMANN, A. J. A linguagem da propaganda. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2012.

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Anexo 1 – Propaganda A

Fonte. Veja, 29 out. 2003.

Anexo 2 – Propaganda B

Fonte. http://www.mds.gov.br/saladeimprensa/pecaspublicitarias/bolsa-familia. Acesso em: 21 maio 2013.

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Anexo 3 – Propaganda C

Fonte. O Estado de S. Paulo: Caderno Nacional, 19 fev. 2013.

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Breve análise da música Bananas, do grupo Titãs – um olhar sobre os aspectos positivos e negativos da

imagem cultural do Brasil

Giselda Fernanda Pereira

Introdução

A linguagem é uma característica da atividade social hu-mana, cujo objetivo maior é de ordem comunicativa. Para Bronckart (1999) cada pessoa procura utilizar o sistema idiomá-tico da forma que melhor lhe exprime o gosto e o pensamento. Toda mensagem vem carregada de sentido e intencionalidade e, sendo o texto o tecido no qual se entrelaçam inúmeros fatores para a construção do sentido – como conhecimento partilhado, inferência e intertextualidade –, buscaremos algumas das vozes reveladas na canção Bananas.

O fenômeno da intertextualidade é vastamente investigado. Em uma rápida averiguação, veremos – de forma recorrente – análises da intertextualidade centradas na paródia e na paráfra-se, cujos exemplos mais comuns se relacionam ao poema Can-ção do exílio, de Gonçalves Dias. No entanto, trataremos desse e de outros aspectos da intertextualidade.

Primeiramente, apresentaremos o conceito de intertextua-lidade. Os estudos sobre processos intertextuais têm que passar, obrigatoriamente, por Michail Bakhtin. Para esse, a palavra tem

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duas faces: é determinada por quem diz e para quem se diz, depende desses dois indivíduos; a enunciação está também de-pendente da sua própria situação. Essa situação enunciativa é condicionada, por um lado, pela atividade mental do indivíduo enquanto portador de necessidades e desejos e, por outro lado, por sua inserção em uma comunidade ou meio social atribui-dor de padrões culturais e sociais.

Vendo a língua como uma constante interação – não como um sistema abstrato, mas como uma criação coletiva, parte de um diálogo cumulativo entre o “eu” e o “outro” – o pensador russo afirma que: “A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. [...] A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor” (BAKHTIN, 1992, p. 113). Com isso, Bakhtin assegura a linguagem em uma “zona fronteiriça” entre o locutor e o interlocutor. Mesmo não usando o termo “inter-textualidade”, as considerações de Bakhtin apontam para esse sentido, uma vez que a situação social mais imediata e o hori-zonte social mais amplo determina a estrutura da enunciação e o emprego das palavras. A francesa Julia Kristeva foi a criadora do termo “intertextualidade”, na década de 1960 – mais especi-ficamente em 1969.

Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin introdu-ziu o termo polifonia para caracterizar a multiplicidade de vozes e consciências que perpassam o texto ou o discurso no romance de Dostoievski. A partir do momento em que um “eu” institui um “tu”, cria-se uma estrutura dialógica, ou seja, uma troca co-municativa. Em seus estudos sobre a obra de Dostoievsky, na qual várias vozes se fazem ouvir, Bakhtin concluiu que todo o romance é o resultado de várias vozes enunciativas.

Esse pensador compôs uma crítica bem fundamentada, mostrando que o homem é um animal social e a língua interage

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com a sociedade onde está inserida. Contudo, reportando-se à linguista brasileira Ingidore Villaça Koch (2000, p. 57), a poli-fonia não pode ser confundida com a intertextualidade, uma vez que “o conceito de polifonia recobre o de intertextualidade, isto é, todo caso de intertextualidade é um caso de polifonia, não sendo, porém, verdadeira a recíproca”. O mesmo é dito por Diana Barros (1994, p. 5), ao afirmar que dialogismo ou he-terogeneidade é o princípio constitutivo geral da linguagem, enquanto polifonia se refere às manifestações específicas da he-terogeneidade. É polifônico o texto “em que se deixam entrever muitas vozes”.

Ingidore Koch (2008, p. 86) considera a intertextualidade como “um elemento constituinte e construtivo do processo de escrita e leitura e compreende as diversas maneiras pelas quais a produção/recepção de um dado texto depende de conhecimen-to de outros textos por parte dos interlocutores”. A intertextua-lidade em sentido amplo – condição de existência do próprio discurso – pode ser o que se denomina por interdiscursividade, segundo a Análise do Discurso (KOCH, 2001, p. 47-48). Em sentido restrito – relação de um texto com outros textos pre-viamente existentes –, essa divide a intertextualidade em tipos. Focaremos nos quatro seguintes:

1) Intertextualidade temática (de conteúdo): ocorre entre textos científicos de uma mesma área ou corrente do co-nhecimento; 2 )Intertextualidade estilística (de forma/conteúdo): quando o autor de um texto imita ou parodia; frequen-te em textos que reproduzem a linguagem bíblica, jargão profissional ou estilo de um determinado gênero;3) Intertextualidade explícita: quando um fragmento de

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outro enunciador é citado no texto. Acontece em casos de citações, resumos, referências, resenhas, traduções, menções e/ou textos argumentativos para se empregar o recurso de autoridade;4) Intertextualidade implícita: acontece sem citação ex-pressa da fonte, cabendo ao interlocutor recuperá-la, como ocorre com as alusões, as paródias e certos tipos de paráfrase e de ironia, onde o produtor do texto espera que o leitor ouvinte reconheça o intertexto ao ativar o texto fonte em sua memória discursiva.

Do ponto de vista da teoria literária, alguns teóricos cos-tumam identificar a intertextualidade pelas seguintes classifi-cações:

1) Bricolagem: são alguns procedimentos de intertextua-lidade das artes plásticas e da música que também apa-recem retomados na literatura. Quando o processo da citação é extremo, ou seja, um texto é montado a partir de fragmentos de outros textos, tem-se um caso de bri-colagem;2) Citação: do tipo explícita, é um fragmento transcrito de outro autor, inserido no texto entre aspas;3) Epígrafe: do tipo explícita, é um pequeno trecho de ou-tra obra, ou mesmo um título, que apresenta outra cria-ção, guardando com essa alguma relação mais ou menos oculta;4) Paráfrase: o autor recria um texto já existente, “relem-brando” a mensagem original ao interlocutor;5) Paródia: é uma forma de apropriação que, muitas ve-zes, perverte o texto anterior, visando a crítica de forma

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irônica;6) Pastiche: é definido como obra literária ou artística em que se imita abertamente o estilo de outros escritores, pintores, músicos – mas não apresenta algo humorístico ou crítico –, é uma forma neutra;7) Plágio: apropriação indevida de um texto na qual o plagiário assume a autoria de uma produção alheia, ou ainda trechos “roubados” de outros textos; 8) Tradução: adequação de um texto em outra língua para o idioma nativo do país;9) Referência e alusão: se do tipo explícita, na alusão não se aponta diretamente o fato em questão, esse apenas é sugerido através de características secundárias ou meta-fóricas.

Em Bananas há um jogo de intertextualidade e perspecti-vas que podem ser analisadas de diversas formas e serem ex-primidas em imagens culturais, cuja multiplicidade de sentidos nem sempre é tão evidente. Tomaremos apenas alguns versos das três estrofes e o título, com os quais apontaremos as vozes intertextuais presentes que traçarão a identidade e a história do Brasil. Antes de prosseguirmos com a análise da canção, essa será contextualizada para melhor entendermos as imagens pre-sentes.

Os Titãs e a década de 2000

Não poderíamos continuar este capítulo sem uma breve apresentação do grupo Titãs, uma vez que nosso objeto de es-tudo – a canção Bananas – fora escrita e musicada por Charles Gavin, Paulo Miklos e Sérgio Dias, formadores da banda.

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O grupo nasceu do encontro de seus integrantes, então es-tudantes do Colégio Equipe, em São Paulo, durante a ditadura militar, ao final da década de 1970. Em uma apresentação, na Biblioteca Mário de Andrade, em 1981, durante o evento Idade da Pedra Jovem, Sérgio Britto, Arnaldo Antunes, Paulo Miklos, Marcelo Fromer, Nando Reis, Ciro Pessoa e Tony Bellotto reu-niram-se para a apresentação de sua banda, cujo nome inicial era Titãs do Iê-Iê.

A estreia oficial veio no ano seguinte, no Sesc Pompeia, em São Paulo, e o primeiro álbum, Titãs, foi lançado em 1984. Exa-tamente nesse ano, a banda tornou-se um sucesso radiofônico, com a música Sonífera ilha, emplacando inúmeros sucessos nos anos seguintes. Outro estrondoso marco vem com o álbum Ca-beça de dinossauro, de 1986, com mais de trezentas mil cópias vendidas.

O álbum A melhor banda de todos os tempos da última semana é o 13º da banda e precede um importante fato: a morte por atropelamento de seu guitarrista, Marcelo Fromer. O CD se tornou um desafio, uma homenagem e, mais uma vez, um gran-de sucesso no rádio e na TV. A turnê homônima ao CD durou cerca de dois anos, acompanhando a saída de um dos membros do grupo, Nando Reis, que deu lugar a um dos maiores baixis-tas do Brasil, Lee Marcucci .

A música Bananas, com 4min22 de duração, é a 14ª em uma lista de dezesseis faixas e aparece no CD intitulado A me-lhor banda de todos os tempos da última semana, da gravado-ra Abril Music, em 2001. Exatamente na década marcada pela consolidação da tecnologia como veículo de comunicação em massa e armazenagem de informações. Bons exemplos vêm das criações das redes sociais, as quais revelam a intensa evolução tecnológica mundial.

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A primeira rede social nasceu em 1995, Classmates, nos Estados Unidos e Canadá, cujo objetivo era apenas conectar estudantes. Nesse mesmo ano nasceu a Google, empresa priva-da fundada por dois doutorandos da Universidade de Stanford, Larry Page e Sergey Brin, cuja oferta pública seria realizada ape-nas em 2004. O LinkedIn, rede usada no mundo empresarial, fora criada por Dan Nye em 2002. No ano seguinte, em 2003, Tom Anderson e Christopher DeWolfe criam a rede MySpace; na sequência, em 2004, surgiu o Orkut, rede desenvolvida por um engenheiro turco da empresa Google. A mais conhecida rede social da atualidade, o Facebook, fora criada em 2004 pe-los estudantes de Harvard, Mark Zuckerberg, Eduardo Saverin, Chris Hughes e Dustin Moskovitz e possui mais de setecentos e cinquenta milhões de usuários no mundo inteiro.

É preciso também lembrar do nascimento da Wikipedia como projeto da Nupedia, enciclopédia online gratuita, inicial-mente de língua inglesa, formalmente lançada em janeiro de 2001, por suas principais figuras, Jimmy Wales e Larry Sange.

No terreno da economia, a década de 2000 foi marcada pela prosperidade e estabilidade, até o final do ano de 2007, quando foi desencadeada uma crise do crédito hipotecário de alto risco. O cenário mundial foi marcado por ações militares dos Esta-dos Unidos em países do Oriente Médio, na então denominada, “Guerra ao Terrorismo”.

Conflitos anteriores entre os Estados Unidos e o Oriente Médio resultaram no atentado terrorista ao World Trade Cen-ter, em Nova Iorque, em setembro de 2001. No mesmo período, os países membros da União Europeia adotaram o “euro” como moeda comum; e na América Latina, partidos de esquerda che-garam ao poder através das eleições. Surgiu então uma onda de antiamericanismo, com destaque ao presidente venezuelano

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Hugo Chavez e ao primeiro presidente indígena da Bolívia, Evo Morales. Ao mesmo tempo, a Rússia experimentava uma gran-de mudança política e econômica com o ingresso de Vladimir Putin à presidência.

Em uma de suas matérias , a popular revista Veja apontava que 2000 fora o ano em que os brasileiros deram “bons exem-plos”, lembrando-nos das eleições brasileiras marcadas pelo uso eficiente das urnas eletrônicas. Em 2002 aconteceu em todo país as eleições municipais e também a eleição presidencial.

Logo após as eleições de 1998, segundo mandado do pre-sidente Fernando Henrique Cardoso, o Brasil entrara em uma crise cambial, resultando em queda na taxa de crescimento, de-semprego e aumento da dívida pública. Luís Inácio Lula da Sil-va, então candidato, tentava combater o termo pejorativo “risco Lula” em face suas opções político-partidárias com a Carta aos brasileiros, comprometendo-se a não tomar medidas drásticas em relação à política econômica brasileira, para decepção dos setores da esquerda, caso fosse eleito. O resultado das eleições fora favorável ao candidato que, durante o segundo turno, obti-vera um alto índice de votação em principalmente dois Estados, Ceará e Rio de Janeiro.

Foi em 2000 que “festejamos” os quinhentos anos de Des-cobrimento do Brasil, diante de festejos e desastres comemo-rativos. Mesmo ano em que o Papa João Paulo II pediu perdão pelos erros cometidos pela Igreja Católica, quando aconteceu o sequestro do ônibus 174, no Rio de Janeiro, apontando as mar-cas da violência no País. O sociólogo e coordenador do estudo Mapa da violência mostrou que o Brasil apresentara, entre 2000 e 2010, uma interiorização e uma descentralização da violência por armas de fogo. Os dados do mapa mostraram o Estado de Alagoas, em 2000, com a nona pior taxa de óbitos por armas de

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fogo no País – 17,5 mortes por cem mil habitantes –, enquanto em 2010 ocupava o topo desse ranking. Já os Estados do Pará, Bahia e Paraíba, que em 2000 ocupavam 24ª, 15ª e 16ª posição, respectivamente, apareceram dez anos depois nas respectivas terceira, quarta e quinta colocação.

A violência motivou a criação do primeiro Grupo de Poli-ciamento em Áreas Especiais (Gpae), em 2000, no morro Pavão-Pavãozinho, no Rio de Janeiro, nos anos seguintes seguido pe-las unidades nos morros Babilônia e Chapéu Mangueira. Con-flitos violentos levavam a instalação de novos Gpae em função de episódios como, por exemplo, o assassinato do jornalista Tim Lopes, na Zona Norte do Rio de Janeiro, na Vila Cruzeiro, Penha. Somente em 2008 surgiram as atuais Unidades de Po-lícia Pacificadora (UPP), uma releitura realizada pelo governo de Sérgio Cabral aos antigos grupos de policiamento. A exem-plo do Rio, várias outras cidades desenvolveram projetos seme-lhantes com a criação de bases comunitárias de segurança em áreas marginalizadas.

Yes, nós temos bananas

Nesse cenário, vemos o surgimento de Bananas. Segue abaixo a letra da música, com a divisão para a análise.

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Quadro 1. Música Bananas, do grupo Titãs.

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O título

A começar pelo título da música, podemos fazer inúmeras relações. Por que Bananas? Qual imagem nos é passada apenas pelo título? Banana é uma fruta bastante conhecida e fartamen-te presente no Brasil; é a segunda fruta mais produzida no País; em 2004, a produção nacional fora de 6,5 milhões de toneladas, colocando o Brasil em terceiro lugar entre os maiores produto-res do mundo .

Muito antes disso, quando o viajante português Pero de Magalhães Gândavo esteve no Brasil, provavelmente entre 1558 e 1572, em seu relato História da Província de Santa Cruz, a ter-ra, a flora e a fauna já eram descritas. O autor, entre a narrativa do descobrimento e as menções a vários ocorridos – como a expulsão dos franceses de São Sebastião (hoje, cidade do Rio de Janeiro) e a morte do filho de Mem de Sá –, faz uma interessante observação sobre a banana, indicando que a fruta é abundante e representa ganho comercial aos habitantes da terra:

Uma planta se dá também nesta Província, que foi da ilha de São Thomé, com a fruta da qual se ajudam muitas pessoas a sustentar na terra. Esta planta é mui tenra e não muito alta, não tem ramos senão umas folhas que serão seis ou sete palmos de comprido. A fruta dela se chama bananas. Parecem-se na feição com pepinos, e criam-se em cachos: alguns deles há tão grandes que tem de cento e cinquenta bananas para cima, e muitas vezes é tamanho o peso dela que acontece quebrar a planta pelo meio. Como são de vez colhem estes cachos, e dali a alguns dias amadurecem. Depois de colhidos cortam esta planta porque não frutifica mais que a primeira vez: mas tornam logo a nascer dela uns filhos que brotam do mesmo pé, de se fazem outros semelhantes. Esta fruta é mui saborosa, e das boas, que há na terra: tem uma pele como de figo (ainda que mais dura) a qual lhe lançam fora quando a querem comer: mas faz dano à saúde e causa febre a quem se

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desmanda nela (GÂNDAVO, [20--], p. 14).

Ainda sobre a banana, na década de 1940 foram produzidos vários filmes comerciais para incentivar o consumo da fruta. O cartunista norte-americano Dik Browne criou uma persona-gem para os comerciais, Miss Chiquita, inspirada na “Brazilian Bombshell”, a “Bomba Brasileira”, como era conhecida Carmen Miranda com seus chapéus extravagantemente decorados com frutas.

Banana é ainda uma forte referência na expressão “Repú-blica das bananas”, que talvez fora instaurada com a tragédia, conhecida por “Massacre das bananeiras”, envolvendo a empre-sa United Fruit Company – alvo das propagandas de Miss Chi-quita – em solo colombiano (CARO, 2011). A companhia havia se instalado em Aracataca, trazendo uma tecnologia desconhe-cida na região – a primeira grande tecnologia expoente era o trem. O Estado colombiano empreendera muitos esforços para a construção da estrada de ferro com mão de obra contratada pela intermediação de empreiteiras locais, desresponsabilizan-do a empresa estrangeira dos encargos sociais.

Em 1928, mais de 32.000 trabalhadores nativos, organiza-dos pelos sindicatos, iniciaram uma greve de 28 dias que pro-vocara prejuízos à empresa. Então, o governo conservador de Miguel Abadia Méndez declarou “estado de alteração da ordem pública” e “toque de recolher” na véspera da tragédia. Disse-ram aos trabalhadores que o governador e o gerente da United Fruit viriam no trem propor um acordo e, na manhã do dia 6 de dezembro de 1928, os grevistas concentraram-se na estação à espera das autoridades. Foram surpreendidos pela chegada do general Carlos Cortés Vargas, chefe civil e militar da zona, e cerca de trezentos soldados. O general leu para a multidão

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quatro decretos, ordenando que se dispersasse sob ameaça de abrir fogo. Como a multidão não se retirara, Cortés Vargas deu mais um minuto. Então, conta-se que uma voz na multidão lhe dissera para ficar com o minuto que faltava, e os militares abri-ram fogo.

Em seu livro, La zona bananera del Magdalena, o historia-dor Herrera Soto afirma que houvera treze mortos e dezenove feridos naquele episódio. O jornal La Prensa de Barranquilla apresenta cem mortos e o general conservador Pompíllio Gu-tíérrez, cinco meses depois do massacre, em entrevista ao jornal El Espectador, afirmara que haveria mais de mil mortos, todos ocultados pelo governo.

No século XX, vários países da América Central ficaram conhecidos como parte integrante da chamada “República das bananas” – não por seu sistema organizacional, mas prova-velmente pela colaboração do governo dos Estados Unidos à queda dos governos democráticos e implantação de ditaduras repressoras que não hostilizassem sua atuação comercial. De fato, o termo pejorativo fora utilizado para indicar países poli-ticamente instáveis e submissos.

O termo fora cunhado por O. Henry, um humorista nor-te-americano, ao referir-se a Honduras, conforme apresentado no livro de contos Cabbages and kings, de 1904, ambientado na América Central, um ano antes da chegada da United Fruit Company à Colômbia. Em um dos trechos desse livro, pode-se ler:

In the constitution of this small, maritime banana republic was a forgotten section that provided for the maintenance of a navy. This provision – with many other wiser ones – had lain inert since the establishment of the republic. Anchuria had no navy and had no use for one (HENRY, 2008).

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Muitas expressões circulam o universo de sentidos para o título. Podemos ainda citar a expressão “a preço de banana”, in-dicativo de baixo preço, incitado pela facilidade em encontrar o produto.

Sem dúvida, é também possível relacionar o título à músi-ca Yes, nós temos bananas, de 1938, do carioca Carlos Alberto Ferreira Braga, conhecido por Braguinha, cujo verso “bananas pra dar e vender” também revelam quão comum e abundante é o produto. Em 1949, Braguinha fizera a marchinha Chiquita Bacana, citando a ilha paradisíaca no Caribe e o produto nacio-nal brasileiro, em interessantes versos: “Chiquita bacana lá da Martinica se veste com uma casca de banana nanica. Não usa vestido, não usa calção. Inverno pra ela é pleno verão. Existen-cialista com toda razão só faz o que manda o seu coração”.

O título da canção provoca imagens nem tão positivas acer-ca do Brasil; imagens de um país que não rompeu com os gri-lhões do patrimonialismo e está longe do conceito latino de res publica, coisa pública.

A primeira estrofe

Para o “Yes, nós temos bananas”, os autores colocam “Yes, nós temos pierrôs”. Podemos averiguar dois pontos acerca dessa frase. Em primeiro, a alusão ao Carnaval – a maior festa popu-lar brasileira internacionalmente conhecida. E finalmente, a fi-gura de Pierrot – ou Pierrô, na forma aportuguesada –, variação francesa para Petrolino, personagem da Commedia dell’Arte, nascida na Itália do século XVI.

Apesar de um enredo predefinido, as peças italianas tinham a improvisação, e sempre havia, no meio do espetáculo, um in-

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tervalo chamado lazzo, que podia ter mais comédia, apresentar acrobacias ou sátiras políticas sem qualquer relação com o en-redo. Terminado o lazzo, a história era retomada.

Pierrô, na Commedia dell’Arte, usa roupas largas e brancas – por vezes, metade preta –, rosto branco, uma lágrima dese-nhada abaixo dos olhos e, ao contrário de Colombina e Arle-quim – Arlecchino –, não usa máscara. Caracterizado por um palhaço triste, Pierrô é apaixonado por Colombina, que o deixa por amar Arlequim. Pierrô também é apresentado como ingê-nuo, apaixonado, forte, confiável e honesto.

Arlequim veste-se com roupa com estampa em forma de diamantes. Sua máscara possui uma testa baixa com uma ver-ruga. Nas apresentações, geralmente é servo de Pantaleão – Pantalone, um velho fidalgo, avarento e eternamente enganado –, outras do Doutor – Dottore, o mais velho e rico dos perso-nagens, transmitindo a falsa impressão de homem intelectual; geralmente é interpretado como pedante, avarento e sem suces-so com as mulheres. Colombina é a contrapartida feminina de Arlequim; sempre retratada como inteligente e habilidosa.

A história tem ainda outros importantes personagens que constroem uma sátira social. Citando apenas alguns, temos Briguela, um empregado correto e fiel, porém cínico e astuto – retratado como agressivo, dissimulado e egoísta. O Capitão – Capitano – é um covarde que conta suas proezas de amor e batalhas, acabando sempre por ser desmentido. Há ainda Pul-cinella, também conhecido como Punch, é esquisito, inspira-dor de pena, vulnerável e geralmente desfigurado, muitas vezes, com uma corcunda e um nariz grande e curvo. Scaramuccia – ou Scaramouche – é um pilantra, um bufão, retratado como contador de mentiras e covarde. E Polichinelo, um bufão, ridí-culo, sem traquejo e ingênuo.

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Na história, Pierrô e Colombina cresceram juntos, torna-ram-se grandes amigos. Foram trabalhar para o rico Pantaleão. Pierrô se tornou padeiro, e fazia pães e doces para alegrar a vida dos habitantes da cidade e o coração de sua amada. Sua timidez não permitia que se declarasse; então, escrevia longas cartas de amor, sem coragem de enviá-las. Um dia aparece na cidade um alegre trovador chamado Arlequim, esperto, ágil e malandro, que encanta a todos com suas histórias e canções. Colombina é seduzida e se apaixona por esse, e o segue deixando sua cidade e seu amigo chorando, triste e deprimido. No inverno, Arle-quim e Colombina têm dificuldades para sobreviver. Em uma noite, ao contemplar a lua, a moça relembra seu amigo Pierrô e encontra uma carta de amor e despedida. Emocionada, foge para sua pequena cidade, encontrando Pierrô. Arlequim, com saudades da Colombina também retorna, torna-se amigo de Pierrô. Assim, os três vivem felizes.

Não sabemos qual escolha os autores fazem na caracteriza-ção do Pierrô, mas a imagem mais marcante desse personagem é a figura melancólica. Atentemos ao fato de que na letra da música a referência é feita com o nome em letra minúscula, no plural, parecendo adjetivar uma série de cidadãos brasileiros na condição de Pierrô.

A figura triste e quase leve do Pierrô se contrapõe à imagem de Oxóssi, citado no segundo verso da primeira estrofe – “O arco de Oxóssi nas mãos do Cristo Redentor”. Oxóssi é filho de Oxalá e Iemanjá; na África Antiga era considerado o guardião dos caçadores, os quais deveriam trazer o sustento para a tribo. No sincretismo brasileiro, os ritos africanos se misturaram aos dos índios brasileiros, comuns no Norte do País para chegar à igreja católica como São Sebastião, o santo cultuado no Brasil como o padroeiro do Rio de Janeiro, e como São Jorge, na Bah-

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ia. É possível estabelecer uma associação entre Oxóssi e Mer-

cúrio – o deus romano –, ou mesmo com Hermes – o deus gre-go. Todos simbolizam a luta e têm como símbolo o arco que, na música, é colocado nas mãos do Cristo Redentor. Uma imagem que talvez simbolize luta e proteção.

No terceiro verso da primeira estrofe, lemos o fragmento “temos ioiô e iaiá”, que se relaciona à música de Antonio Can-deia Filho, sambista carioca, autor de Alegria perdida, de 1974, popularmente conhecida como Ioiô de Iaiá.

A intertextualidade mais evidente, sem dúvida, é a que se-gue no quarto verso, e que, de certa forma, estrutura todo o texto de Bananas – “Minha terra tem palmares onde gorjeia o mar” dialoga com o poema Canção do exílio, escrito por Gon-çalves Dias em 1843. A paráfrase percorre o texto bananas em um jogo com o verbo ter; no poema de Gonçalves Dias o verbo ter, fundamentalmente um verbo de posse, aparece na terceira pessoa do singular do presente do indicativo. Na música, po-rém, os autores optam por utilizar na maioria das vezes o verbo na primeira pessoa do plural do presente do indicativo, em que o valor etimológico do verbo, cujo sentido concreto é o de pos-suir, recebe outros valores semânticos, de modo que pelo con-texto social da música opera como veículo para uma extensão metafórica de novos sentidos: existir, conseguir, mostrar etc.

Outro fato interessante: no poema de Gonçalves Dias há a declaração, nas três quadras e nos dois sextetos, dos elementos presentes nas terras – a do exílio e a natal –, além de uma descri-ção. Na música a repetição sonora é ainda mais reforçada pela repetição de palavras, ao passo que a marca do nós remete mais às questões de identidade que propriamente de posse. Em um quadro de noções possessivas, o verbo ter de Canção do exílio

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expressa posse permanente – “tem palmeis”, “tem mais estrelas”, “têm mais flores”, etc. – e na música Bananas há um constante domínio abstrato – “temos pierrôs”, “temos o corpo blindado”, “temos a Carmen Miranda”, “temos o amanhã”, “temos a lua” –, por duas vezes contrapostos a um somos – “somos o Carnaval”, “somos mulatas” –, que aparecem somente no quinto verso, na primeira e segunda estrofe.

A segunda estrofe

A presença de alusões aparece em dois versos marcados pela história. O primeiro verso a ser, por nós, assinalado, é: “A Virgem Maria sem culpa, e sem sutiã”, que nos remete ao epi-sódio conhecido como Bra-burning, ou A queima dos sutiãs. Trata-se de um protesto com cerca de quatrocentas ativistas do Women’s Liberation Movement contra a realização do concurso de Miss America, em 7 de setembro de 1968, em Atlantic City. As ativistas colocaram no chão vários objetos – sutiãs, sapatos de salto alto, maquiagens, espartilhos, cílios postiços, entre ou-tros – aos quais denominaram de “instrumentos de tortura” e ameaçaram queimá-los como protesto à escolha da uma miss que reforçava a visão arbitrária da beleza e opressão às mulhe-res pela exploração comercial.

A figura das ativistas é dada na presença da Virgem Ma-ria, que acompanha uma seleção vocabular que expressa mais a força e ousadia da mulher que a suposta graça divina da Santa, sem a preocupação entre os cruzamentos dos traços político e religioso.

A outra alusão – esta, de cunho político – está em: “Aqui sempre dá o que quer que se plante”. Em 26 de abril de 1500, realizou-se a primeira missa no Brasil. Em primeiro de maio

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de 1500 foi a vez da primeira ação de “marketing” do Brasil. Pero Vaz de Caminha escreveu ao rei Dom Manuel o relato da viagem, com o seguinte trecho:

Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem pra-ta, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados [...] Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.

“Dar-se-á nela tudo” – muitas vezes divulgado por um erro de citação como “em se plantando, tudo dá” –, o trecho traduz o fato de não terem encontrado imediatamente o que estavam interessados, o ouro, que seria descoberto somente em 1698, por Antônio Dias de Oliveira, em Ouro Preto. No entanto, o termo acima ficou famoso e foi um recurso propagandístico usado pelo próprio governo brasileiro e por empresas na dé-cada de 1970.

A seguir, vemos a propaganda da Usina São Martinho – cujos primeiros proprietários hospedaram o imperador Dom Pedro II e Dona Tereza Cristina, em outubro de 1886, quando os monarcas estiveram em Ribeirão Preto, SP, para inaugurar a estação da Companhia Mogiana –, veiculada pela revista Veja, em junho de 1978, em destaque o trecho “em se plantando tudo dá”.

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Figura 1. Propaganda da Usina São Martinho.

Fonte: http://www.propagandaemrevista.com.br/produtos/403/Corporativa. Acesso em: 10 abr. 2014.

Em um exemplo mais recente da força poderosa da fra-se atribuída ao escrivão Pero Vaz, há a propaganda oficial do governo – acusado pelo jornal Folha de S.Paulo em função de uso de imagem enganosa – para divulgar ações e investimentos destinados à agricultura familiar e agricultores de baixa renda, em uma série de comerciais produzidos sob coordenação da agência de Duda Mendonça com o slogan “O trabalho sério já

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começa a dar resultados”. Logo no seu início, o comercial cita Pero Vaz de Caminha: “Nesta terra, em se plantando, tudo dá”.

A seguinte frase: “Aqui sempre dá o que quer que se plante” reforça a imagem de paraíso tropical e terra frutífera. Não obs-tante, sua riqueza, a estrofe acusa – com certa ironia – um certo desdém pela riqueza talvez mal aproveitada e mal distribuída,

A terceira estrofe

Temos nessa estrofe a única intertextualidade explícita, pois trata-se de um fragmento inserido entre aspas: “A minha esperança é um Sol que brilha mais/ Este Sol iluminará nossos passos/ Pela harmonia universal dos infernos/ Chegaremos a uma civilização”. O trecho corresponde à fala do personagem Dom Porfírio Diaz, do filme Terra em transe, de 1967, do ci-neasta baiano Glauber Rocha.

Terra em transe é um drama que se passa na fictícia Re-pública de Eldorado. O filme pode ser lido como uma grande parábola da história do Brasil no período entre 1960 e 1966, no qual o autor faz uma crítica de todos aqueles que participaram nesse momento histórico das tensões políticas entre as orienta-ções de esquerda e direita, além de haver uma alusão ao quadro político do pré-golpe militar, que se deu com a tomada do go-verno por João Goulart, em 1961.

Com o filme, Glauber está interessado em desmitificar a política populista que levou ao golpe. A história, como disse-mos, é situada na fictícia República de Eldorado, um pequeno país localizado no Continente americano, próximo ao oceano Atlântico. O país está em um contexto de efervescência política, pois a província de Alecrim elege o governador populista Vieira que terá um embate político com o senador Porfírio Diaz, que

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é uma caricatura do político tecnocrata anticomunista e favo-rável ao domínio imperialista do capital norte-americano e do progressismo. Em meio a esse embate, encontra-se o poeta e jornalista Paulo Martins, que traduz o intelectual e o artista di-vidido entre a sua arte e o engajamento político.

No início do filme há uma panorâmica sobre o oceano, sob o som de uma música modal africana com tambores, sugerin-do o transe iminente. Pensando o transe como uma alteração dos estados de consciência, de mudança de comportamento, é fácil entender o título e o contexto do filme, no qual o processo político entra em uma quase demência, à beira de uma eleição.

A presença de Glauber na música vem reforçar o título “Re-pública das Bananas” e manifestar uma crítica de cunho polí-tico-social ao país em que samba e carnaval se misturam em uma dicotomia paraíso e inferno. Em meio à festa e à alegria, o Sol vem para “rasgar nossas retinas” e mostrar a “nossa ruína”. A manipulação – existente no filme de Glauber – aparece em Bananas, mostrando que as mesmas questões relatadas no filme – e presentes em nosso processo histórico – são repetidas em nossa atual situação política e social.

Considerações finais

Ao analisar a música em busca das ocorrências intertex-tuais, percebemos que a intertextualidade implícita é a mais frequente, exigindo que o leitor/ouvinte busque muitas referên-cias históricas para melhor compreender o texto. A intertextua-lidade implícita possui um valor subversivo de détournement, palavra francesa que significa uma espécie de apropriação in-devida de algo. Para Ingidore Koch (2004) existe um détour-nement lúdico, um simples jogo entre texto e intertexto, e um

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détournement militante – o qual principalmente encontramos na canção analisada. Este último, segundo Koch (2004, p. 148), tem como objetivo “levar o interlocutor a ativar o texto original, para argumentar a partir dele, ou então, ironizá-lo, ridiculari-zá-lo, contraditá-lo, adaptá-lo a novas situações ou orientá-lo para um outro sentido, diferente do original”. Esse tipo de in-tertextualidade fornece – além das referências histórico-polí-tico-sociais – o sentido humorístico da música. Não podemos esquecer que toda a crítica que aparece em Bananas é pontuada por um toque de irreverência e de humor. O sentido humorís-tico aparece no jogo de vozes e de imagens que emergem da intertextualidade do texto.

Evidentemente, muitas ocorrências podem não ter sido investigadas neste capítulo. No entanto, foi possível com esta pequena análise comprovar que a intertextualidade é uma mar-ca estilística na canção, e ilumina questões de cunho político e social, muitas vezes esquecidas ou apagadas se tomarmos Bana-nas apenas como um elemento de prazer estético e de entrete-nimento. A canção emite críticas políticas e nos faz traçar uma imagem simbólica do Brasil, terra das bananas na qual “temos um amanhã” a ser construído.

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A língua e a reconstrução da identidade cultural em Guiné-Bissau

Katia Melchiades

Introdução

O objetivo do presente estudo é refletir sobre o papel social que uma determinada língua tem em sua nação, ao longo das inevitáveis mudanças e fragmentações culturais a que todos os povos estão sujeitos no mundo pós-moderno.

Como corpus de trabalho, temos o poema Em que língua escrever, de Maria Odete da Costa Soares Semedo, de Guiné-Bissau, cujo eu lírico aborda o impasse de ter que decidir entre o crioulo ou o português para narrar as histórias e a cultura de seu povo às futuras gerações.

Veremos, pela análise do poema, como as culturas estão cada vez mais fragmentáveis, por seus constantes contatos com novos pensamentos e experiências em um mundo globalizado. Todas essas trocas locais ou globais trazem-nos inevitavelmente “um processo sem fim de rupturas e fragmentações” (HALL, 2006, p. 16).

Urge ainda ressaltar que o fator que influenciou a escolha do poema Em que língua escrever é a rica oportunidade de ou-vir um pouco da história da cultura africana por meio das vozes de escritores africanos, militantes e comprometidos com o de-senvolvimento sociocultural da África.

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Antes de analisarmos o poema Em que língua escrever, ve-remos resumidamente o panorama do contexto linguístico de Guiné-Bissau. É importante ressaltar que a língua crioula sur-giu como resultado do contato da língua do colonizador eu-ropeu com a dos povos nativos e constitui-se em uma mescla do vocabulário europeu com a base e estruturas gramaticais de línguas africanas. É uma língua já desenvolvida e concretiza-da, geralmente oriunda do provisório pidgin (LOPES, 2004). Como afirma João Adalberto Campato Júnior (2012, p. 29):

O crioulo guineense é um crioulo de base portuguesa. Sendo, por essência, língua oral, há algum tempo o crioulo está ganhando espaço como língua escrita, embora não tenha ele ainda norma ortográfica unificada. Essa evolução resultou no fato de que existem algumas escolas, ainda que poucas, nas quais a alfabetização é realizada em crioulo.

Em consonância com o trecho acima, Hildo Honório do Couto (apud VOGT, 2001) também afirma que o crioulo

é um pidgin que passou a ser a língua principal de uma comunidade. Se o pidgin só servia para uma comunicação precária, o crioulo serve para todas as necessidades expressivas e comunicacionais de seus usuários. [...] as línguas crioulas são interessantes não por serem “exóticas” ou “anormais”, uma vez que são línguas naturais como as demais, mas devido ao processo de sua formação.

Atualmente a variedade linguística de Guiné-Bissau está em torno de trinta línguas , que são faladas por um pouco mais de um milhão de habitantes. Nesse contexto de coexistência de

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diferentes línguas, o português destaca-se politicamente como idioma oficial, embora estima-se que seja falado por pouco mais de dez por cento da população (CAMPATO JÚNIOR, 2012). O crioulo destaca-se como língua de identidade e cul-tura, pois é falado por uma média de oitenta por cento da po-pulação (FREIRE, 2003) e, automaticamente, torna-se a língua veicular, geradora da unidade nacional.

Como afirma Campato Júnior (2012, p. 32), a literatura na Guiné-Bissau desempenha uma função moral, um papel crítico de que se vale o poeta na sociedade para transformar a visão de mundo de seus leitores, “usando de versos, eles denunciaram a opressão colonial, conclamando o povo à luta”. Isso explica o porquê de os poetas guineenses não se aterem muito à estética dos poemas, suas poesias não se limitam à arte pela arte. Em vez disso, “privilegiam-se, portanto, os efeitos perlocutivos de ordem didático, moralista, político [...] se exagerada, [a literatu-ra] produz mais panfletos políticos, por exemplo, do que obras de arte” (CAMPATO JÚNIOR, 2012, p. 31).

Pelo título do poema Em que língua escrever, nota-se que o eu lírico encontra-se diante do dilema sobre a língua em que deve se expressar. Traz à tona a discussão sobre o conflito ge-rado pela imposição da língua do colonizador, em detrimento das línguas nativas e do crioulo guineense; a maioria dos do-cumentos oficiais estão escritos em português. Contudo, já é expressivo o número de poetas que compõem em português e em crioulo, pois sabem que

recolhidos, analisados, recontextualizados e transmitidos pela escrita, assim como pela imagem e pelo som, [...] os conhecimentos ancestrais dos africanos permitirão as gerações futuras voltarem as suas fontes e manterem os indispensáveis laços íntimos com o seu passado (MAZRUI, 2010, p. 662).

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A literatura escrita de Guiné-Bissau é uma manifestação bastante recente; o conhecimento e tradições desse povo sem-pre foram passados oralmente de geração para geração. Isso fica evidenciado no quarto verso da primeira estrofe do poema, quando o eu lírico declara como conheceu as histórias de seu povo: “que ouvi contar?” e nos versos três e quatro da mesma estrofe vemos como multiplica esse conhecimento entre as pes-soas de sua comunidade: “Em que língua cantar”. Mais adiante, nos versos oito e nove da terceira estrofe aquilo que as pessoas ouvirem “de boca em boca/ fará sua viagem”. É a tradição da oralidade presente de forma enraizada no âmbito de se contar histórias na África.

Vale salientar ainda que a tradição oral nunca será substi-tuída pela tradição escrita. Essa se torna apenas uma conser-vação daquela. Passa-se a haver, portanto, uma cumplicidade, uma complementação em que o contar e o cantar preservam-se no escrever.

Quanto ao contexto histórico do momento em que o poe-ma em análise foi composto, houve “nas cidades africanas dos anos 1990, as greves de estudantes secundários e universitá-rios, aquelas dos sindicatos livres, a mobilização das mulheres” (MAZRUI, 2010, p. 1.137). E fazendo jus ao papel social de quem conclama o povo a erigir uma nação mais justa, vemos na segunda estrofe que o eu lírico, em meio a esse contexto de lutas, valora em igualdade o papel do homem, da mulher, dos anciãos e dos jovens, tratando esses últimos por netos, men-cionando os seus feitos a altura de um heroísmo: “Contando os feitos das mulheres/ E dos homens do meu chão?/ Como falar dos velhos [...] Mas que sinais deixar/ Aos netos deste século?” Provavelmente, o eu lírico decidiu-se pela palavra chão, com o

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intuito de trazer a ideia de algo do qual não nos desprendemos nem em vida nem em morte; chão traz a conotação de muito trabalho, suor e profundo enraizamento e pertencimento.

Em consonância com as declarações acima, embora Guiné-Bissau seja um país que viva em condições econômicas bastan-te precárias, haja vista que em “2001 a expectativa de vida era de 45 anos e a taxa de alfabetização de adultos era de 39,6%” (CAMPATO JÚNIOR, 2012, p. 23), a opressão social, impos-ta ora pela exploração colonial, ora pela segregação interna de seus líderes no período pós-colonial, não tem logrado imobi-lizar seus habitantes. Em um mundo globalizado, não há mais como excluir comunidades inteiras da participação social em escala global sem que essas reajam a essa opressão, “os políticos sabem que os pobres não serão excluídos dessa ‘modernidade’ ou definidos fora dela” (HALL, 2013, p. 49).

Nos versos seis e sete da segunda estrofe: “Falarei em criou-lo?/ Falarei em crioulo!”, o eu lírico hesita se em crioulo falará. Pelo uso da exclamação, notamos que sua resposta é enfática, falará na língua com a qual se identifica, o crioulo. Porém, ao se perguntar, nos versos oito e nove sobre “que sinais deixar/ aos netos deste século?”, discernimos que está ciente de que a lín-gua portuguesa, imposta pelo colonizador, não se mostra capaz de ir ao âmago das questões e reflexões socioculturais do povo guineense a ponto de retratar toda sua expressividade artística, histórica e cultural através de canções, contos e provérbios, seja pela escrita ou pela própria oralidade. Lembremo-nos de que “os modelos sociais e culturais refletem-se nas estruturas das línguas” (MALMBERG, 1976, p. 22).

Amílcar Cabral (apud MONTEIRO, 2012) traz-nos tam-bém essas profundas reflexões ao afirmar que “a língua depende do ambiente em que se vive [...]. Se repararmos, por exemplo,

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na gente que vive perto do mar, a sua língua tem muita coisa relacionada com o mar”.

Logo, a estrutura linguística do crioulo está muito mais pró-xima à tradição da oralidade das mais diversas línguas do povo de Guiné-Bissau do que o português, que reflete em sua estru-tura toda uma realidade social, científica e religiosa do mundo europeu. Como já afirmava Sérgio Guimarães (apud FREIRE, 2003, p. 174) em contextos de alfabetização das comunidades da Guiné-Bissau, “a língua portuguesa não corresponde à rea-lidade cotidiana do aluno”. Contudo, por mais paradoxal que pareça ser, o português é a língua que garantirá a perenidade das histórias que o eu lírico ouviu cantar e deseja repassar às futuras gerações.

A insegurança que o eu lírico sente, quanto ao crioulo, ao querer deixar sinais aos “netos deste século” ocorre, ainda que em menor grau, em decorrência da escassez de professores para ensinar essa língua que ainda está em vias de adaptação à es-crita (FREIRE, 2003). Outro fator determinante é que para os jovens de Guiné-Bissau, dedicar-se a aprender bem o português parece ser muito mais atrativo, dado que é “uma língua que per-mite maior abertura para o mundo, ela permitirá que quem a domine ultrapasse as fronteiras” (FREIRE, 2003, p. 180).

Por outro lado, sobre a questão do português, é preciso le-var em consideração o que nos declara o poeta guineense, Rui Jorge Semedo :

Sobre o ensino do português, ainda há muita dificuldade visto que não é a língua materna dos guineenses e o seu uso nas salas de aulas acaba atrapalhando a assimilação do conteúdo por parte do aluno. Obviamente, aprender em sua língua materna é sempre mais acessível em

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termos pedagógicos do que recorrer a uma língua que embora é oficial no nosso país, vimo-la como estrangeira. A adoção do Crioulo no sistema de ensino pode(rá) contribuir para o bom desempenho dos alunos na sala de aula.

Guiné-Bissau ainda está solitária nessa luta pela preserva-ção de suas línguas, que correm um sério risco de desapareci-mento por falta de recursos financeiros e administrativos. Pou-cos são os investimentos voltados à alfabetização em português e em crioulo em Guiné-Bissau, e pouquíssimo ou nada restaria para uma alfabetização eficaz nas inúmeras línguas nativas, que ainda são ágrafas e cujo ensino institucionalizado é defendido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciên-cia e a Cultura (Unesco) (MAZRUI, 2010).

Por estar compromissado com o processo de preservação e reconstrução da identidade de sua pátria, no verso três da ter-ceira estrofe: “E eu sem arte nem musa”, o eu lírico expõe a falta de expressividade (arte) e inspiração (musa) em que se encontra quando precisa escrever na língua lusa, algo em consonância ao exposto anteriormente pelo poeta Rui Jorge Semedo.

Além da riqueza da expressividade e fidelidade da língua crioula para a identidade dos guineenses, outro fator que con-tribui para o impasse do eu lírico sobre em que língua escrever deve-se ao fato de que “a outra língua de maior prestígio social e perenidade (português), [...] pode trazer consigo conotação neocolonialista” (CAMPATO JÚNIOR, 2012, p. 30).

Muitas manifestações poéticas guineenses, mesmo as com propósitos políticos e moralistas, podem apresentar riqueza quanto à sonoridade e autonomia estética. Ao longo do tempo, a partir de 1990, lentamente as poesias de caráter mais intros-

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pectivo vem tornando-se mais comuns (CAMPATO JÚNIOR, 2012) em Guiné-Bissau, e passam a ser exploradas com maior liberdade artística. Notamos isso na musicalidade do poema em exame, quando o eu lírico “brinca” livremente com o dina-mismo da estética, para trazer-nos um ar de mistério e hesita-ção entre o contar e o não contar e em que língua contar: “can-tar/contar” – primeira estrofe, versos três e quatro –, “crioulo?/crioulo!” – segunda estrofe, versos seis e sete –, “lusa/musa” – terceira estrofe, versos dois e três – e “mensagem/viagem” – ter-ceira estrofe, versos sete e nove.

Ao declarar, do verso seis ao nove da terceira estrofe: “Em crioulo gritarei/ A minha mensagem/ Que de boca em boca/ Fará sua viagem”, notamos que o eu lírico coloca-se no lugar do povo, falando por esse, com esse e sobre esse, denunciando a imposição da língua portuguesa em uma cultura alicerçada no crioulo. Isso não deve passar despercebido quando, no primeiro verso da última estrofe, o eu lírico diz em recado – e não mais em declarações de amor – feitos, passadas e cantigas. É como se para si houvesse um retrocesso, decréscimo ou amputação da rica narratividade guineense quando precisa se expressar na língua portuguesa. O que recebeu de seu povo e quer passar aos herdeiros deste século são declarações e feitos, algo preponde-rante e elevado. Porém, as riquezas da narrativa, mesmo que escritas, perdem-se significativamente na passagem da língua da terra para a língua por muitos considerada estrangeira.

O poema Em que língua escrever abre igualmente espaço para as novas questões mundiais como as demandas de um mundo globalizado. Muitos jovens guineenses sentem-se atraí-dos pelas oportunidades de estudo e trabalho em países finan-ceiramente mais prósperos, em busca de melhores condições de vida. Ocorre, ainda que de forma sutil, um rompimento de suas

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tradições culturais e o surgimento de novas ambições de consu-mo desencadeadas pelo mercado financeiro internacional. Esse tipo de mudança de visão de mundo é o que Stuart Hall (2013, p. 64) chama de globalização contemporânea. Estudiosos sobre a história da África afirmam que:

A necessidade de formação superior explica, igualmente, boa parte das emigrações africanas, quase todas as potências coloniais desinteressaram se pelo ensino universitário na África. O número de estudantes africanos inscritos nas universidades europeias e americanas cresce de modo intenso, entre 1935 e 1960, e muitos dentre eles não mais retornam ao seu país de origem. [...] Após as independências, a partir dos anos 1960, a emigração prosseguiu, porém, a sua natureza, as suas motivações e o destino dos emigrantes foram, novamente, modificados. Não é mais os estudantes que se expatriam, mas, igualmente, técnicos e especialistas altamente qualificados: médicos, engenheiros, homens de negócios, músicos e outros artistas, professores universitários etc. (MAZRUI, 2010, p. 851).

Não somente em Guiné-Bissau, como em muitas outras ex-colônias europeias na África, o hábito de ler e escrever fluente-mente na língua do ex-colonizador passou a desempenhar um papel importantíssimo para se ultrapassar as fronteiras e se en-caixar economicamente em um mundo globalizado, marcado pelo poder de consumo.

Lúcio Lara, ex-deputado do Parlamento angolano e ex-in-tegrante do MPLA , discute sobre a diáspora no contexto ango-lano, algo que, como visto, atinge também Guiné-Bissau:

nós temos muitos jovens fora do país. Muitos! O que não está certo, porque deveriam ser formados aqui, no seu país! Temos muitos pais que mandam os filhos para a África do Sul,

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para Portugal, para a América até, para os Estados Unidos! Não deveria ser, mas os pais também no fundo sentem que é necessário dar educação aos filhos, e mandam-nos, e têm razão! Eu não posso condenar um pai que deseja o bem do seu filho! (FREIRE, 2003, p. 127).

Nos dois primeiros versos da terceira estrofe: “Ou terei que falar/ Nesta língua lusa”, o eu lírico mostra-se crítico ante a influência do português para a diáspora africana moderna. Coloca-se como porta-voz dos jovens guineenses, esses que procuram, através da língua portuguesa, um caminho, ainda que incerto, que os leve a melhores condições de vida longe de sua terra natal. Jovens que se preparam para a experiência da diáspora e, obtendo o êxito almejado, dificilmente voltarão ou educarão seus filhos em crioulo.

Contudo, o português é a língua lusa que o eu lírico mal entende – versos três e quatro da última estrofe –, mesmo sen-do a língua oficial do país. Essa incompreensibilidade da língua oficial de sua própria nação traz aqui uma nova denúncia quan-to às injustiças sociais: a imposição da língua portuguesa, pelo colonizador, em suas ex-colônias, foi paradoxalmente desvin-culada de um programa de alfabetização acessível à maioria da população desses países e, como afirma Mário Cabral :

a escola, no período colonial, era uma escola extremamente seletiva. Pouca gente tinha acesso à escola. [...] a grande maioria dos meus contemporâneos, das crianças com quem brincávamos, ou não tinham acesso à escola ou tinham-no em circunstâncias extremamente difíceis (FREIRE, 2006, p. 171).

Isso ocorreu por ser oportuno para o colonizador que a

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língua portuguesa fosse utilizada propositalmente nas ex-colô-nias de Portugal na África, para a formação de uma minoria, uma elite de pessoas negras que serviriam à colônia em troca de alguns privilégios socioeconômicos; eram os assimilados, ou a chamada “classe acima dos indígenas” (NAMBURETE, 2006, p. 66).

Devido à indiferença do colonizador quanto à implantação de um sistema educacional eficiente em Guiné-Bissau, discer-nimos que “a difusão que o idioma português alcançou deveu-se muito à presença de mercadores, marinheiros, navegadores, aventureiros, deportados e missionários, os quais, por motivos e circunstâncias dos mais diversos, chegaram às novas terras” (BRITO, 2013, p. 71).

O eu lírico reconhece que o português é uma língua que pode garantir perenidade ao que anseia por passar às futuras gerações. Daí advêm o conflito e a tensão entre a fidelidade e a perenidade, que lemos nos versos quatro e cinco da terceira estrofe: “Mas assim terei palavras para deixar/ Aos herdeiros do nosso século”.

É de extrema importância termos em mente que os gui-neenses não podem e nem devem estar isolados em suas lín-guas nativas. O conhecimento da língua portuguesa – e até mesmo de outros idiomas internacionais – pode garantir-lhes não somente a perenidade de seus feitos históricos, como tam-bém uma oportunidade de crescimento social, local e global, se conhecerem com proficiência sua língua oficial, um idioma his-toricamente mais bem adaptado à linguagem das Ciências, das relações internacionais, do Direito, da Engenharia, entre outros do que as línguas nativas e o crioulo. Amílcar Cabral exemplifi-ca essas verdades na seguinte indagação:

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Satélite natural, digam isso em balanta, digam em mancanha. É preciso falar muito para o dizer [...] Enquanto que em português, basta uma palavra [...] Como é que se diz aceleração da gravidade em nossa língua? Em crioulo não há, temos que dizer em português. Mas para a nossa terra avançar, todo o filho da nossa terra, daqui a alguns anos tem que saber o que é aceleração da gravidade (MONTEIRO, 2012).

Assim, não somente os jovens, mas os cidadãos de todas as idades, incluindo os que migram e os que permanecem, têm a oportunidade de crescimento proporcionado pela abertura das fronteiras através da força da língua portuguesa.

O unilinguismo impede ver o que há de valor nos outros, e cria, facilmente, uma fé cega na própria superioridade, perigo que pode ser mortal, ao longo do tempo, para toda a forma de atividade científica, artística ou intelectual em geral. [...] Am-pliar o vocabulário é ampliar os conhecimentos acerca do mun-do que nos rodeia (NALMBERG, 1976, p. 86-87).

Considerações finais

Odete Semedo, como muitos outros escritores modernos de Guiné-Bissau, faz suas publicações em edições bilíngues, com o intuito de alcançar um maior número de leitores, de to-das as classes sociais.

Portanto, a essência do poema Em que língua escrever não trata do impasse sobre a língua em que o eu lírico deseja ou pode escrever. A indagação vai além, trata sobre sua inquie-tude relacionada ao desconhecimento que as futuras gerações terão da língua crioula devido à mencionada diáspora e aos insuficientes investimentos na Educação Básica em crioulo em

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Guiné-Bissau. Notemos que o eu lírico não se posiciona contrá-rio ao uso da língua portuguesa, mas encontra-se em conflito em relação à necessidade de fazer muitos de seus registros de cunho identitário em português.

Os povos das ex-colônias portuguesas na África não devem estar aprisionados à obrigatoriedade de escrever em português, tampouco devem se fechar em suas línguas nacionais a ponto de não participarem das transformações do mundo pós-mo-derno. Existe a necessidade de harmonizar o convívio das lín-guas nativas e do crioulo com o português, garantindo o acesso ao aprendizado dessas línguas a todos os cidadãos, por razões já aqui discutidas. Essa é a questão primordial sobre a qual o poema Em que língua escrever nos convida a refletir.

Referências

BRITO, R. P. de. Língua e identidade no universo da lusofonia: aspectos de Timor-Leste e Moçambique. São Paulo: Terracota, 2013. (Col. Lusofonia).

CAMPATO JÚNIOR, J. A. A poesia da Guiné-Bissau: história e crítica. São Paulo: Arte & Ciência, 2012. (Col. Literaturas de língua portuguesa: marcos e marcas).

FREIRE, P. A África ensinando a gente: Angola, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

HALL, S. Da diáspora: identidade e mediações culturais. Belo Horizonte, MG: UFMG, 2013.

______. A identidade cultural na Pós-Modernidade. Rio de Ja-neiro: DP&A, 2006.

LOPES, N. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São

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Paulo: Selo Negro, 2004.

MALMBERG, Bertil. A língua e o homem: introdução aos pro-blemas gerais da lingüística. Tradução M. Lopes. Rio de Janeiro: Nórdica, 1976.

MAZRUI, A. A.; WONDJI, C. (Org.). História geral da África. 8 v. Brasília, DF: Unesco, 2010.

MONTEIRO, A. Expresso das Ilhas. Cabo Verde: Praia, 2012. Disponível em: http://www.expressodasilhas.sapo.cv/socieda-de/item/42398-amilcar-cabral-a-lingua-portuguesa-e-uma-das-melhores-coisas-que-os-portugueses-nos-deixaram. Aces-so em: 28 out. 2014.

NALMBERG, B. A língua e o homem. Rio de Janeiro: Editorial Nórdica, 1976.

NAMBURETE, E. Língua e lusofonia: a identidade dos que não falam português. In: BASTOS, N. M. (Org.). Língua portugue-sa: reflexões lusófonas. São Paulo: PUC; Educ, 2006. p. 63-74.

VOGT, C. Com Ciência. 2001. Disponível em: http://www.comciencia.br/ reportagens/linguagem/ling11.htm. Acesso em: 28 mar. 2014.

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Análise discursiva do enunciado das autoridades no contexto do conflito

árabe-israelense

Karen Dantas de Lima

Introdução

Os discursos de Mahmoud Abbas (nascido em 1935) e Benjamin Netanyahu (nascido em 1949) na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 23 de setembro de 2011 foram considerados históricos.

Há muito tempo em posições antagônicas os representan-tes da Palestina e de Israel compõem um quadro político confli-tuoso em torno do reconhecimento da Palestina como Estado por Israel.

Na ocasião foi entregue ao secretário-geral da ONU, Ban-ki-Moon, a carta na qual o representante palestino pede o reco-nhecimento por parte da Instituição, assim como da comunida-de internacional, do status de Estado Membro Pleno.

Por trás das especificidades dos atos dos sujeitos atuantes nesse contexto sócio-histórico, evidenciam-se visões subjetivas de uma representação da realidade norteada pela ideologia, im-pedindo que uma nova ordem se estabeleça na região de modo consensual.

Os discursos dos referidos líderes políticos constituem ma-terial linguístico apropriado para explicitar que um problema

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permite posicionamentos diversos de acordo com o ponto de vista do sujeito situado que é perpassado por suas experiências discursivas, logo ideológicas. Estão imbricadas questões de or-dem sócio-histórica, convicções que se não justificam o agir hu-mano, permite ao menos compreendê-las.

Na perspectiva de Bakhtin e do Círculo os sujeitos são constituídos sócio-historicamente por meio de interações dia-lógicas que se entrecruzam, pois todo enunciado está recupe-rando outros enunciados ditos anteriormente.

Os atos pelos quais os sujeitos se responsabilizam é uma postura responsiva ativa e axiológica que remete a eventos mar-cados cronotopicamente que determinaram a posição geopolí-tica da região, além de questões de ordem religiosa.

Arquitetonicamente consideram-se os elementos transgre-dientes presentes no momento da enunciação para se chegar ao todo de sentido discursivo.

A configuração atual de toda região do Oriente Médio foi uma criação da política hegemônica europeia. A divergência entre árabes e judeus ocorre desde que a Grã-Bretanha assumiu militarmente, entre 1917 e 1918, a administração da Palestina.

Naquela época, discutia-se a criação de um Estado judai-co na região. A Declaração de Balfour – de 2 de novembro de 1917 – propunha a instalação de uma comunidade judaica em território palestino, o que nunca foi bem recebido pelos árabes. Assim, em 1948 iniciou-se o conflito árabe-israelense por mo-tivo da fundação do Estado de Israel na Palestina. Em 1967, no evento conhecido como A Guerra dos Seis Dias, árabes lutaram pelo território da Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Orien-tal, esses que foram ocupados por judeus.

Atualmente os palestinos ainda reivindicam esse espaço territorial, assim como os judeus continuam avançando na prá-

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tica de delimitação com os assentamentos.Os sujeitos na posição de autoridades governamentais re-

presentam cada um a sua ideologia oficial, a hegemonicamente aceita pelos estratos sociais das comunidades em questão, e ex-põem os interesses de ordem socioeconômica.

Nesse sentido, a ideologia oficial apresentada no dizer dos governantes, insere-se em um campo propício para a disputa de poder, com a intenção de mostrar à comunidade internacional presente na Assembleia uma refração da ordem sociopolítica regional, mas que não necessariamente encontra respaldo na ideologia do cotidiano presente nas esferas da organização so-cial.

A concepção socioideológica do sujeito e da linguagem

Segundo Bakhtin (2011), as unidades lexicográficas pos-suem significado linguístico que é de conhecimento de todos os falantes da língua e expressam juízo de valor na medida em que são retomadas de enunciados anteriores, perdendo a neutrali-dade na realidade concreta da comunicação discursiva.

Nas relações dialógicas marcadas pela alternância dos su-jeitos do discurso, consideram-se equivalente em importân-cia para instituição de sentido, as unidades reais da língua e o contexto com os elementos extraverbais na enunciação de um enunciado concreto.

Na dimensão sociodialógica da linguagem é a conclusibi-lidade do enunciado que possibilita a postura responsiva ativa do sujeito na constituição de sentido no todo acabado, pois so-mente no nível linguístico não daria conta.

Nessa concepção, a compreensão responsiva das autorida-des está inserida em um campo oficial de disputa de poder polí-

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tico em que a exauribilidade semântico-objetal é plena. A especificidade do gênero padronizado sofre coerção da

esfera de comunicação discursiva em que é apresentado o con-teúdo temático dos enunciados.

Intrínseca à exauribilidade está a intenção discursiva e o modo como interpretamos o que o sujeito quis dizer.

Na esfera política e no campo da Assembleia Geral da ONU se refratam as sociedades em questão. Ocorre uma regulariza-ção determinada pelas condições de produção de uma situação concreta em que os sujeitos envolvidos na interação conseguem alcançar a conclusibilidade específica do enunciado do outro.

Nessa abordagem, “a vontade discursiva do falante se rea-liza antes de tudo na escolha de um certo gênero de discurso” (BAKHTIN, 2011, grifo nosso).

Sob essa perspectiva, os discursos proferidos na ONU se configuram em um gênero que possui estabilidade e elevado grau de formalidade da língua, considerando os papéis sociais dos sujeitos da interação.

Seguindo o protocolo exigido, os enunciados evidenciam a alteridade e a intencionalidade, por meio da entonação expres-siva e do tom valorativo na materialidade dos discursos.

São posicionamentos pertencentes a uma comunicação discursiva no campo de produção ideológica em que a cons-ciência individual do sujeito expõe sua postura axiológica e o intersubjetivismo procedente da inserção social.

No que concerne à ideologia, Bakhtin (2012) a insere no universo dos signos e vê na palavra um fenômeno ideológico por natureza. Os signos sedimentados no social podem ser ma-terializados no sentido físico em que objetos passam dentro de um determinado grupo a designar uma função. E, quando ver-balizados, a forma linguística possui dinamicidade e está im-

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buída de mediar as relações nas diversas esferas.Para o Círculo “a palavra não é somente o signo mais puro,

mais indicativo, é também um signo neutro. Cada um dos de-mais sistemas de signos é específico de algum campo particular da criação ideológica.”

Por conseguinte, os índices de valor ideológico do signo linguístico conferem a legitimação aos campos e esferas da ati-vidade humana. Entendidos aqui como refração de um modelo da organização social e as ramificações de seu funcionamento.

Assim, nos discursos oficiais, segundo os papéis que de-sempenharam na ONU, a palavra proferida se desvincula do nível da significação social para inserção em um tema, um enunciado único e concreto.

Nessa inter-relação, sujeitos, esferas e discursos ideológicos instituem sentido e efeito de sentido ao enunciado interpretado como acabamento. Há uma apreensão ativa dos sujeitos da in-teração por conhecerem o contexto sócio-histórico inerente ao conflito entre palestinos e judeus.

Aspectos gramático-discursivos

Comparar como cada líder político iniciou seu discurso permite distinguir o tom que permeia todo o enunciado na in-teração dialógica.

Assim, o líder palestino expõe uma longa fala introdutória. Apresenta-se com uma postura amistosa, um tom mais mode-rado e cortês, visando à adesão do auditório à causa defendida:

Senhor presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, senhor secretário-geral das Nações Unidas, excelências, senhoras e senhores,

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Quero começar dando os parabéns ao senhor Nassir Abdulaziz al-Nasser, que assume a presidência da Assembleia nesta sessão, e desejando-lhe sucesso.

Estendo hoje as minhas sinceras congratulações, em nome da Organização para a Libertação da Palestina e do povo palestino, ao governo e ao povo do Sudão do Sul por sua merecida admissão enquanto membro pleno das Nações Unidas. Desejamos a eles progresso e prosperidade.

Também parabenizo o secretário-geral, Sua Excelência, o senhor Ban Ki-moon, por sua reeleição para um novo mandato no comando das Nações Unidas. A renovação da confiança nele reflete o reconhecimento mundial por seus esforços, que fortaleceram o papel das Nações Unidas.

Excelências, senhoras e senhores (LEIA A ÍNTEGRA..., 2011b).

No primeiro parágrafo a forma de tratamento dirigida às autoridades – “Senhor presidente da Assembleia Geral das Na-ções Unidas, senhor secretário-geral das Nações Unidas, exce-lências, senhoras e senhores” – supõe-se suficiente e adequada para indicar a intenção de cordialidade com os interlocutores na saudação.

No entanto, em uma fala polida, o líder palestino reitera seus cumprimentos aos responsáveis pela Assembleia e pela ONU, citando os nomes e congratulando-os.

Quero começar dando os parabéns ao senhor Nassir Abdulaziz al-Nasser, que assume a presidência da Assembleia nesta sessão, e desejando-lhe sucesso.

Também parabenizo o secretário-geral, Sua Excelência,

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o senhor Ban Ki-moon, por sua reeleição para um novo mandato no comando das Nações Unidas. A renovação da confiança nele reflete o reconhecimento mundial por seus esforços, que fortaleceram o papel das Nações Unidas (LEIA A ÍNTEGRA..., 2011b, grifos nossos).

Diferentemente do líder palestino, o representante is-raelense Netanyahu é sintético em relação aos cumprimentos. Desconsidera o secretário-geral da ONU, não se dirige a esse, e inicia seu discurso com um simples: “Obrigado, senhor presi-dente, senhoras e senhores”.

Evidentemente que há também em sua alocução a intenção de persuadir o público presente. Mas o político o faz com uma postura defensiva e mais crítica à atuação da ONU.

A diferença também se estabelece na interdiscursividade que se institui na escolha que ambos fazem ao trazer para seus discursos vozes enunciativas de outras nações que possam legi-timar as argumentações.

O presidente da Autoridade Palestina parabeniza o gover-no e o povo do Sudão do Sul pelo reconhecimento por parte da ONU, assim como pela comunidade internacional, por sua condição de Estado Membro Pleno:

Estendo hoje as minhas sinceras congratulações, em nome da Organização para Libertação da Palestina e do povo palestino, ao governo e ao povo do Sudão do Sul por sua merecida admissão enquanto membro pleno das Nações Unidas. Desejamos a eles progresso e prosperidade (LEIA A ÍNTEGRA..., 2011b).

Na congratulação marcada linguisticamente na expressão merecida admissão, o adjetivo merecida, anteposto ao substan-

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tivo admissão, possui caráter mais subjetivo e corresponde a uma postura valorativa do enunciador.

Ao se referir à condição do Sudão do Sul, intencionou mos-trar equivalência entre a condição da Palestina e a do país afri-cano. Desse modo, fica inferido que almeja alcançar o mesmo status para sua região.

Citá-lo no enunciado evidencia uma recepção ativa do dis-curso de outrem, a forma pela qual o sujeito enunciador toma consciência de outras vozes e as apreende no discurso, expondo o alcance das forças sociais.

Busca-se com a alteridade apresentada pelo sujeito na inter-relação Organização em prol da Palestina e Organização mul-tigovernamental que o ato reverbere sobre o assunto.

Em comum, Palestina e Sudão do Sul possuem histórico de conflitos internos. O Sudão do Sul diverge do lado Norte, por questões geopolíticas – territorialista, petrolífera e religiosa. O povo do Norte é muçulmano e no Sul a maioria é cristã. Nesse sentido, a condição é análoga a da Palestina que, como vimos, traz também a questão territorialista e do povo como o mais atingido pelos conflitos.

A despeito das referências de Netanyahu, veremos que op-tou por direcionar o seu discurso somente ao povo e não aos governos, de países nos quais existem grandes problemas na conjuntura política interna e reivindicações populares para se instaurar uma democracia. Com isso, buscou consolidar a ima-gem de Israel como a única democracia do Oriente Médio:

Dirijo-a ao povo da Líbia e da Tunísia, com admiração por aqueles que tentam construir um futuro democrático. Dirijo-a aos outros povos do Norte da África e da Península Arábica, com quem queremos criar um novo começo. Dirijo-a ao povo da Síria, Líbano e Irã, com admiração à coragem daqueles que

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lutam contra a repressão brutal. Mas sobretudo eu estendo minha mão para o povo palestino, com quem buscamos uma paz justa e duradoura (LEIA A ÍNTEGRA..., 2011a).

Em uma dimensão axiológica dá-se o desvelamento de que o discurso apresentado enfoca por meio do substantivo abstra-to de conotação amistosa admiração, que designa o ato de ad-mirar algo ou alguém e acrescenta valor apreciativo positivo, demonstrar um estado do sujeito que reflete sua consideração e respeito para com os povos dos países selecionados. Subjaz com o ato, angariar apoio para as suas proposições.

No que tange aos povos da Líbia e da Tunísia, a entonação avaliativa é dispensada com uma locução verbal “aqueles que tentam construir um futuro democrático”. Assim, um verbo au-xiliar flexionado aliado a um principal no infinitivo é uma cons-trução que contribui para um sentido amenizado do discurso. O uso do verbo tentar na terceira pessoa do plural no presente do indicativo possibilita destacar os esforços desses povos em uma luta pró-democrática de êxito incerto. Reforçado pelo ver-bo construir, denota algo que está em processo e não acabado. Portanto, é aceitável que, tentar não significa conseguir iniciar o processo de construção de um país democrático para o futuro. Tempo futuro reitera o sentido que a mudança, se acontecer, possivelmente não será para breve.

A repetição de dirijo-a, verbo seguido de pronome oblíquo átono, indica que no tempo presente o discurso é certamente guiado para interlocutores variados. No entanto, quando em relação ao povo palestino há uma quebra nesse paralelismo que denota um tratamento específico orientado a esse.

A conjunção mas em: “Mas sobretudo eu estendo minha mão para o povo palestino” marca uma coordenação sindética

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no período e possui sentido adversativo, colocando-o em posi-ção de desigualdade em relação aos outros povos citados. Se-guido do advérbio sobretudo, denota situação de superioridade e confirma a intenção de sobressaí-lo entre os demais.

O dizer de Netanyahu afirma buscar uma paz justa e dura-doura. O uso do substantivo abstrato paz torna-se redundante com o adjetivo explicativo justa. Segundo a acepção da palavra paz, ausência de conflito, por si só explicita uma situação em que todos estão satisfeitos, a menos que, podemos inferir que uma paz, relativa, possa ser construída quando um povo sobre-pujar o outro. Desse modo, os interesses de um estarão sobres-salentes ao do outro subserviente.

A conjunção coordenativa aditiva e acrescenta o adjetivo duradoura que, embora apresente a noção de algo que se per-petua por longo tempo, no contexto analisado e seguindo o raciocínio aludido, se a paz não estiver pautada em princípios de igualdade e isonomia entre os povos, essa durabilidade será inatingível.

As escolhas lexicais do discurso de Netanyahu revelam a fragilidade de sua intenção em consolidar efetivamente um acordo de paz.

Novamente o primeiro ministro israelense segue com o intento de reforçar a imagem de uma nação não repressora e democrática, e demonstra a insatisfação no tratamento dispen-sado pela ONU ao país:

em Israel nossa esperança por paz nunca diminui. Nossos cientistas, médicos, inovadores aplicam sua genialidade para melhorar o mundo de amanhã. Nossos artistas, nossos escritores, enriquecem o patrimônio da humanidade. Agora eu sei que essa não é exatamente a imagem de Israel que muitas vezes é retratada nesta sala (LEIA A ÍNTEGRA..., 2011a).

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O uso do pronome possessivo nossos acrescenta ao discur-so um tom mais suntuoso ao incluir os profissionais daquela nacionalidade como uma espécie de patrimônio imaterial do país: nossos cientistas, médicos, nossos artistas, nossos escrito-res. Ao mesmo tempo, a repetição do pronome nossos ameniza o discurso agregando valor afetivo com a inclusão do povo no seu dizer, ou seja, não aborda somente por si, mas em nome da população de Israel. Nesse contexto, os possessivos adjetivos não cumprem somente a função de determinar o substantivo e indicar posse, mas também transmitem uma postura valorativa do sujeito do discurso que se junta aos demais compatriotas no ato de esperançar sem cessar.

Essa nomenclatura da gramática tradicional que em um processo taxinômico insere nossos na classe dos pronomes, é relativizada na Gramática Descritiva de Mário Perini (2009, p. 329). Assim, o autor aponta semelhanças entre as funções do substantivo e de alguns pronomes, o que possibilitaria uma reorganização desses elementos por meio de “traços definitó-rios”. De acordo com essa concepção, o elemento sintático nos-sos seria definido por sua propriedade que é designar posse, então, o define como [+Poss] em substituição a nomenclatura pronome.

As relações funcionais que se estabelecem na estrutura sin-tática de um enunciado produzem sentido do ponto de vista se-mântico, o que nos permite, independentemente da terminolo-gia adotada, enxergá-lo como fato linguístico contextualizado.

Destacamos que no enunciado de Netanyahu gramatical-mente predomina o pronome pessoal na primeira pessoa do singular eu. Marca de subjetividade que está de acordo com o tom mais enfático dado ao discurso, como se realmente in-

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tencionasse demonstrar um ponto de vista particularizado da problemática em questão. Observa-se, portanto, que na oração precedente à fala inclusiva marcada pelo pronome nossos, o po-lítico retoma o tom mais subjetivo evidenciando sua posição axiológica em: “Agora eu sei que essa não é exatamente a ima-gem de Israel que muitas vezes é retratada nesta sala”.

Diferentemente do israelense, o discurso do líder palestino segue no propósito de aproximação com os princípios nortea-dores de atuação da ONU e o trabalho empenhado por suas agências, elegendo-a como defensora de seus anseios:

A questão da Palestina está intrinsecamente ligada às Nações Unidas por meio das resoluções adotadas por vários de seus órgãos e agências e também por meio do elogiado e essencial papel desempenhado pela Agência de Auxílio de Trabalho da ONU para Refugiados Palestinos no Oriente Próximo (UNRWA), que encarna a responsabilidade internacional em relação ao drama dos refugiados palestinos, que são vítimas da al-Nakba [catástrofe] ocorrida em 1948 (LEIA A ÍNTEGRA..., 2011b).

Em “intrinsecamente ligada às Nações Unidas”, a escolha das lexias destacadas reitera o efeito de sentido que o enuncia-dor intencionou passar ao auditório de que a ONU apoia a cau-sa palestina. Denota a noção de união entre as partes com o uso do substantivo ligada. Com o advérbio intrinsecamente, o vocá-bulo possui o sentido “de modo intrínseco”, dado pela formação com seus constituintes imediatos. Assim, intrínsec + a – rad. + vogal temática – e, intrínseca + mente – base adjetiva + sufixo – apresenta a noção que a questão palestina é fator fundamental da – e para a – Instituição. A suposta característica de união em nome de propósito maior está abonada pelo substantivo no plu-

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ral resoluções. Segundo a acepção da palavra, deliberação para uma solução. De tal modo, demonstra que a Instituição inter-veio na situação conflitante, por mais de uma vez, fornecendo apoio à população palestina refugiada.

Na situação histórica concreta, o enunciado de Abbas se justifica pelo apoio que os refugiados palestinos têm recebido da ONU, assim como da comunidade internacional desde o iní-cio do conflito árabe-israelense em 1948, motivado pela criação do Estado de Israel na Palestina.

Desde 1950, por meio da United Relief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East (UNRWA), criada para atender temporariamente aos necessitados diante de uma situa-ção que exigia ação iminente, a Organização concede auxílio humanitário para um crescente número de refugiados.

O enunciado apresenta acentos apreciativos marcados com os substantivos elogiado e essencial. Com o primeiro possibilita um sentido conotativo de prestígio junto aos países integran-tes devido a uma atuação adequada. Enquanto com o segundo, esse ligado pelo conectivo e, acrescenta o sentido de que o reco-nhecimento sine qua non da comunidade deveu-se, sobretudo, por ser iminente uma intervenção humanitária.

No propósito de exaltar a ONU, o enunciador produz efeito de sentido, atribuindo à Instituição uma personificação marca-da pelo substantivo abstrato encarna, com a intenção de cons-truir uma imagem que possa humanizá-la.

Continuamente o discurso do presidente da Autoridade Palestina visa à adesão da comunidade internacional à causa por esse defendida, exaltando os esforços empreendidos:

não desistimos e não paramos com nossos esforços em busca de novas iniciativas e contatos. No decorrer do ano passado

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não deixamos de bater em cada porta, nem de testar cada canal e nem de experimentar cada rumo, e não ignoramos nenhum participante de estatura e influência, seja formal ou informal, para fazer avançar as negociações (LEIA A ÍNTEGRA..., 2011b, grifos nossos).

Assim, na negação polêmica pressupõe-se que alguém pensa de forma oposta e previamente rebate-se a posição con-troversa. Vozes enunciativas divergentes se fazem presentes no enunciado, pois estamos sempre respondendo a algo que foi dito anteriormente. Da mesma forma, essa postura ativa do su-jeito também implica em uma responsiva ativa posterior. Con-siderando que o discurso proferido por Abbas possui caráter argumentativo na defesa da proposição, intencionou-se com a construção da escala de negação – não, não, nem, nem, não e nenhum – reforçar o sentido discursivo que os palestinos fazem o possível para que se possa chegar a um acordo de paz. Mar-cado em “não desistimos e não paramos com nossos esforços”, fica inferido que o mesmo não ocorre por parte da autoridade israelense.

Há tentativa de induzir o auditório a apoiá-lo em “não ig-noramos nenhum participante de estatura e influência, seja for-mal ou informal”. O pronome indefinido nenhum sugere uma quantidade indefinida de pessoas que foram procuradas. Nesse contexto, acentua-se para o sentido de um número elevado de pessoas. Ainda, com o conector seja, semanticamente direciona a interpretação para a alternância entre o “formal ou informal” como meio de angariar mais opções e pleitear apoio à causa.

O emprego da palavra não na expressão de negação ocorre seguindo um padrão, que é antes da forma verbal, nesse caso seu emprego antecede, desistimos, paramos, deixamos e igno-ramos. Outra marca de negação é a conjunção nem com a fun-

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ção de adicionar mais elementos a ideia apresentada.Diferentemente do líder palestino que enalteceu a ONU em

seu discurso, Netanyahu procurou desqualificá-la nas suas atri-buições questionando sua confiabilidade. Buscou, através do recurso de citar em sua fala países em situações conhecidamen-te conflituosas, eximir-se de suas práticas em relação à invasão palestina. A intenção foi a de mostrar a sua causa como legítima e, por isso, suas ações justificáveis.

Bem, esta é a parte triste da ONU. É o teatro do absurdo. Não só Israel é elencado como vilão, mas muitas vezes vilões reais assumem papéis principais: a Líbia de Kadafi presidiu a Comissão das Nações Unidas sobre Direitos Humanos; o Iraque de Saddam dirigiu o Comitê da ONU sobre o Desarmamento. Vocês podem dizer: isso é passado. Bem, aqui está o que está acontecendo agora – agora hoje. O Líbano, controlado pelo Hezbollah, agora preside o Conselho de Segurança da ONU. Isto significa, com efeito, que uma organização terrorista preside a instância encarregada de garantir a segurança do mundo. Vocês não poderiam deixar isso ocorrer (LEIA A ÍNTEGRA..., 2011a).

Para instituir sentido à expressão teatro do absurdo, consi-dera-se o caráter polissêmico da palavra enquanto signo ideo-lógico determinado pelas esferas do cotidiano.

No dinamismo dialógico cada enunciado ocorre em situa-ção discursiva que é única e irrepetível.

Depreender a expressão é buscar o seu sentido denotativo de cada palavra que a compõe. Essas palavras possuem no nível da significação uma aceitação que é determinada pelas esferas sociais, um sentido geral partilhado entre os falantes da língua. Quando essas formas linguísticas se juntam, formando uma ex-pressão, passam a designar um sentido único que faz com que

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a expressão deixe o nível de significação para ser inserido no estágio superior denominado tema. Embora a expressão em sua forma linguística seja a mesma, cada vez que essa é retomada se produz um novo sentido em que se consideram todos os ele-mentos inerentes à condição de interação.

Em: “É o teatro do absurdo”, o sentido dicionarizado do substantivo teatro significa a arte da representação. Enquanto o do substantivo/adjetivo absurdo denota aquilo que contraria a razão, o que é tolo ou estúpido.

As duas lexias estão ligadas pela preposição do – de+o – e possuem referência nocional na medida em que acrescentam novo conteúdo significativo com a vinculação dessas palavras.

Segundo Perini (2009, p. 333), as “preposições” são elemen-tos conectivos que podem ser subordinativos ou coordenativos, de acordo com a sua função sintática. O coordenativo subordi-nativo de converte um SN em SAdj., passando a exercer função sintática de modificador. Para o autor: “Preposição é a palavra que precede um SN, formando o conjunto um SAdj. ou um SAdv.” (PERINI, 2009, p. 333, grifos do autor).

A expressão teatro do absurdo é um empréstimo do mundo das artes e remete a uma modalidade do teatro moderno, cha-mado de situação. É uma representação ontológica da vida do homem e sua perspectiva diante do vazio existencial, marcado por diálogos sem prolixidade e uma aproximação com o non-sense.

Sem a perspectiva de um futuro promissor, o indivíduo sente a inutilidade de comportar-se segundo os padrões convencionais. Absurdo é aquilo que não tem objetivo, uma vez que o homem perdeu suas raízes religiosas e patrióticas. É a reflexão sobre a estupidez do comportamento do homem em sociedade que sustenta esse tipo de dramaturgia, cujos

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adeptos não formam uma escola, mas cada autor, conforme sua formação e ideologia, apresenta as contradições, as normas absurdas que regem a vida social (D’ONOFRIO, 2003, p. 148).

A subjetividade marcada pelo uso da expressão teatro do absurdo revela julgamento de valor do enunciador em relação à ONU por meio de um aspecto metafórico e conotativo ao traçar semelhanças entre campos tão distintos da atividade humana.

A analogia entre os campos evidencia uma postura axioló-gica do sujeito, esse que tenta impetrar à instituição a imagem de falta de discernimento, e que a atual conjuntura não é confiá-vel. A intenção é de desqualificá-la em sua atuação multilateral.

Em: “Isto significa, com efeito, que uma organização terro-rista preside a instância encarregada de garantir a segurança do mundo”, há um mecanismo de predicação modalizadora que transfere para o operador toda a sentença e corresponde a uma avaliação asseverativa.

Com esse movimento está sintetizada a ideia de que o Líba-no não apresenta confiabilidade ou perfil que esteja de acordo com a função exercida no Conselho de Segurança da ONU.

Assim, na expressão “organização terrorista”:

•Osubstantivoorganizaçãoéformadopeloverboorga-nizar, que denota arrumar, ordenar, planejar a realização de. Acrescido do sufixo ção, que designa uma ação ou re-sultado dessa;•Oadjetivoterroristaéformadopelosubstantivoterror,que denota medo ou pavor. Acrescido do sufixo ista, que designa quem é partidário de determinada doutrina.Então, a expressão pode ser entendida como pessoas que

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planejam a ação de aplicar o terror segundo princípios que as norteiam.

O discurso apresentado utiliza o grupo islâmico fundamen-talista Hezbollah para desqualificar o Líbano para o cargo que ocupa. Metonimicamente estabelece-se uma relação da parte pelo todo. A fala contundente de Netanyahu se justifica por ser o Hezbollah um dos principais inimigos de Israel desde quando invadiu o Líbano e houve movimento de resistência liderado pelo grupo xiita.

Considera-se que a situação discursiva permite que tal ex-pressão seja utilizada pelo premier. No entanto, ideologicamen-te, outros pontos de vista como os dos aiatolás, ou o de grande parte da população libanesa que apoia suas ações expõem outro contexto sócio-histórico e apreciativo em que a expressão não seria bem aceita.

Como dissemos, Netanyahu dirigiu sua fala solidarizando-se com os povos de países onde há situação de conflito e não aos governantes, entre os quais o Líbano: “Dirijo-a ao povo da Síria, Líbano e Irã, com admiração à coragem daqueles que lu-tam contra a repressão brutal”.

Desse modo, o discurso proferido pode parecer amistoso, porém o que está inferido é um ataque aos países com os quais não mantém relações diplomáticas. Ainda que o Hezbollah te-nha forte atuação política no Líbano, é movimento de resistên-cia a Israel e grupo patrocinado pelo Irã, que é país inimigo; assim como a Síria, que também possui um histórico de invasão por Israel e confrontos fronteiriços mais recentes.

O enunciado apresenta marca linguística quantificado-ra com o advérbio “muitas vezes vilões reais assumem papéis principais”, que funciona como predicador aspectualizador.

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Processo que delimita a “ampliação de extensão” e orienta para o sentido de que a situação apontada ocorre com frequência.

Segundo Castilho (2012, p. 566), “em que estado de coi-sas têm uma ocorrência pluralizada. Pode-se reconhecer que a quantificação implicou numa restrição ou ampliação de exten-são. São aspectualizadores, portanto esses advérbios.”

Há, ainda, com o uso do verbo dicendi no discurso direto, a intenção de dar mais expressividade à alocução: “Vocês podem dizer: isso é passado”.

A marca temporal com o substantivo passado orienta para o sentido de mostrar que representantes de países repressores em cargos da ONU é algo que ocorreu em algum tempo inde-terminado anterior ao do momento do discurso.

Discursivamente representa mote para contra argumentar uma suposta opinião contrária, apontado em “aqui está o que está acontecendo agora – agora hoje”.

São marcas linguísticas denotadoras de tempo: passado, está acontecendo agora, agora hoje e agora. Dêiticos que orien-tam a noção de tempo em relação aos interlocutores.

O advérbio de tempo hoje direciona o sentido do discurso para o dia específico em que ocorre a situação discursiva, e o que está ocorrendo neste período de tempo determinado nas dependências da ONU.

Enquanto o advérbio temporal agora apresenta uma função anafórica no próprio discurso que retoma a situação apresenta-da anteriormente, com o sentido de que ocorre no momento atual novamente a presença de representante de país opressor no poder.

Em “está acontecendo agora”, a locução com gerúndio re-força o sentido do discurso em que a situação denunciada por Netanyahu se prolonga e está em curso.

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A exposição acerca dos advérbios, como citamos, orientou-se por Ataliba Castilho (2012). Acrescentamos que, segundo Mario Perini (2009, p. 338), a classe dos “advérbios” necessita mais estudos, pois há potencial funcional para categorizá-los nessa classe, parte de uma orientação semântica que não com-pete à função sintática.

No excerto analisado há no enunciado, em dois momen-tos, o uso de um marcador discursivo que, segundo estudos da análise da conversação, é uma delimitação de alternância que identifica o turno da fala, marcada pela entoação subjetiva pela qual se inicia o assunto: “Bem, esta é a parte triste” e em: “Bem, aqui está”.

A situação discursiva impõe coerções como a ordem da interação verbal, o nível de formalidade e o modo como será apresentado o discurso.

Assim, na ordem das falas ao longo da Assembleia Geral, Netanyahu proferiu o discurso após o seu oponente político Abbas. Quanto ao nível de formalidade da fala, nessa condição discursiva é alto e está de acordo com o status dos participantes e as relações de poder que ali se estabelecem.

E o modo como o discurso será exposto exige a adequação em um caráter ilocutório, que visa a apresentação de argumen-tos lógicos na defesa de uma proposição que leve à conclusão intencionada.

Todos esses elementos situacionais estão alinhados com uma entoação, ao proferir bem, o enunciador revela sua postura valorativa e seu estado afetivo. É mais subjetivo na medida em que se distancia de um discurso rigorosamente esquematizado para a ocasião e sua orientação apreciativa denota certo desâ-nimo.

Um dos desafios a solucionar entre Israel e Palestina é em

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relação aos assentamentos. Trata-se de uma política adotada por Israel para ocupar o território palestino. Ocorre que para alcançar o intento, moradores são desalojados de suas casas. Por esse motivo, Abbas discursa sobre violação da Lei Humani-tária, enquanto Netanyahu usa um tom irônico para contra-ar-gumentar.

Demonstrando uma postura pouco conciliatória, o líder israelense defende que o conflito se estabelece porque a Pales-tina não reconhece o Estado como judeu em qualquer frontei-ra. Dessa maneira, exime-se da responsabilidade no conflito, transferindo-a somente para Abbas.

O representante palestino segue com seu discurso, apoian-do-se nos princípios da ONU. Em contraposição ao discurso de Netanyahu, busca argumentos na história segundo sua visão de mundo.

A política israelense de ocupação, que constitui uma violação da lei humanitária internacional e das resoluções das Nações Unidas, é a principal causa do fracasso do processo de paz, do colapso de dúzias de oportunidades, e do sepultamento das grandes esperanças que surgiram após a assinatura da Declaração de Princípios de 1993 entre a Organização para a Libertação da Palestina e Israel para o estabelecimento de uma paz justa que desse início a uma nova Era para nossa região (LEIA A ÍNTEGRA..., 2011b, grifos nossos).

Neste excerto há uma gradação que orienta para o sentido descendente com lexias que possuem teor valorativo negativo marcado em violação da lei, fracasso do processo de paz, co-lapso de dúzias de oportunidades, sepultamento das grandes esperanças.

A subjetividade discursiva é instituída na materialidade

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pelo enunciador e denota a sua insatisfação com a conjuntura.Na dinâmica dialógica a interdiscursividade se instaura no

ato discursivo que é uma resposta a um enunciado anterior. Neste caso, os sujeitos da interação estão inseridos em uma

mesma situação institucionalizada, mediada por outros sujeitos que também fazem parte do processo de inter-relação enuncia-tiva.

O líder israelense evidencia a subjetividade em uma postu-ra avaliativa ao contra-argumentar o discurso de seu rival po-lítico com a intenção de colocar em dúvida, de desacreditá-lo em suas convicções diante da Assembleia. As escolhas lexicais orientam para o sentido da imprecisão em: “se [...] está dizendo é verdade, então acho [...]. Talvez seja isso que ele quis dizer [...]. Ele não disse a partir de 1967, ele disse a partir de 1948”.

O presidente Abbas esteve aqui há pouco, e ele disse que o núcleo do conflito israelense-palestino é os assentamentos. Bem isso é estranho. Nosso conflito tem sido travado por quase meio século antes que houvesse um único israelense na Cisjor-dânia. Portanto, se o que o presidente Abbas está dizendo é ver-dade, então acho que os assentamentos de que está falando são Tel Aviv, Haifa, Jaffa, Beer Sheva. Talvez seja isso que ele quis dizer no outro dia quando ele disse que Israel vem ocupando terras palestinas por 63 anos. Ele não disse a partir de 1967, ele disse a partir de 1948. Espero que alguém vá se preocupar em fazer-lhe esta pergunta, porque ela ilustra uma verdade simples, o núcleo do conflito não são os assentamentos. Os assentamen-tos são um resultado do conflito (LEIA A ÍNTEGRA..., 2011a, grifos nossos).

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Considerações finais

Neste estudo contemplaram-se as escolhas lexicais, a dispo-sição dos elementos sintáticos e a carga semântica como com-ponentes que cooperam para a exegese dos enunciados. Bus-cou-se mostrar, por meio de estudo gramatical, que a organiza-ção sintática dos vocábulos corrobora para a expressividade na medida em que os itens da língua possuem conteúdo semântico no funcionamento discursivo. Segundo Perini (2009), as regras semânticas acrescentam significados às formas da língua.

Os critérios sintático, semântico e morfológico são comple-mentares e não excludentes para uma interpretação no nível da macroestrutura de um enunciado.

Há sempre uma intenção no ato enunciativo manifestado em uma linguagem que é de conhecimento partilhado no so-cial, no que se refere ao código e ao caráter polissêmico da pa-lavra.

Na interação o enunciador deixa marcas linguístico-discur-sivas que revelam sua alteridade e sua postura valorativa.

Lançar luz sobre a intencionalidade discursiva é apreender os sentidos e os efeitos de sentido instaurados pelo interlocu-tor na enunciação marcada cronotopicamente. É considerar no contexto imediato do discurso elementos extraverbais como a entonação valorativa e os papéis sociais dos envolvidos. Além da interdiscursividade que se instala quando o sujeito traz para seu discurso a voz do outro como uma postura axiológica e res-ponsiva ativa de ato enunciativo anterior.

Referências

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Paulo: Hucitec, 2012.

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CASTILHO, A. T. de. Nova gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2012.

CUNHA, C.; CINTRA, L. Nova gramática do português con-temporâneo. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

D’ONOFRIO, S. Teoria do texto 2. São Paulo: Ática, 2003.

GRILLO, S. Esfera e campo. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: ou-tros conceitos-chaves. São Paulo: Contexto, 2006.

HOUAISS, A. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.

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LEIA a íntegra do discurso do premiê de Israel, Benjamin Ne-tanyahu, na ONU. Estado de São Paulo, 26 set. 2011. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,leia-a-integra-do-discurso-do-premie-de-israel-benjamin-netanya-hu-na-onu,777726,0.htm. Acesso em: 4 maio 2013.

LEIA a íntegra do discurso do presidente palestino, Mahmoud Abbas, na ONU. Estado de São Paulo, 23 set. 2011. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,leia-a-integra-do-discurso-do-presidente-palestino-mahmoud-ab-bas-na-onu,776683,0.htm. Acesso em: 4 maio 2013.

PERINI, M. A. Gramática descritiva do português. 4. ed. São Paulo: Ática, 2009.

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Sobre os organizadores

Carlos Augusto Baptista de Andrade

Doutor em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professor titular de Língua Portuguesa na Universi-dade Cruzeiro do Sul. Foi diretor de escola, assessor de delegado de ensino e coordenador de Projeto de Alfabetização de Jovens e Adultos. Nos últimos trinta anos, dedicou-se ao Ensino Superior, tanto na Graduação, quanto na Pós-Graduação, desenvolvendo pesquisas na área de Letras e Linguística re-lacionadas à Análise do Discurso e à Linguística Textual, com ênfase em leitura e escrita, nas modalidades presencial, semipresencial e a distância. Atuou por mais de vinte anos em gestão acadêmica universitária. Foi asses-sor acadêmico da Pró-Reitoria de Graduação, Diretor do Centro de Ciências Humanas e Sociais, pró-reitor de Graduação na Universidade Cruzeiro do Sul e, pró-reitor de Graduação no Centro Universitário do Distrito Fede-ral (UDF). Atualmente exerce a função de vice-coordenador do Mestrado em Linguística da Universidade Cruzeiro do Sul e de coordenador da Co-missão Permanente de Avaliação (CPA) da mesma universidade. É autor e organizador de obras acadêmicas e literárias. Conferencista com trabalhos publicados no Brasil e no exterior. É avaliador do Instituto Nacional de Es-tudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira do Ministério da Educação (INEP-MEC), responsável pela Avaliação Institucional e de cursos na área de Letras, Pedagogia, presenciais e EaD.

Guaraciaba Micheletti

Possui Graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (USP, 1972), Mestrado em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo (1983) e Doutorado em Letras (Teoria Literária e

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Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo (1992). Atualmente é professora titular da Universidade Cruzeiro do Sul, onde coordena o curso de Pós-Graduação em Linguística. Aposentada da Universidade de São Pau-lo, atuou até 2008 no Programa de Pós-Graduação em Filologia, orientando alunos de Mestrado e Doutorado. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Língua Portuguesa, atuando principalmente nos seguintes temas: análise do discurso, leitura, estilística, enunciação, ensino, poesia brasilei-ra. Possui vários artigos e livros publicados relacionados aos temas de sua atuação.

Sobre os autores

Andréia Maria Moura de Gouveia

Possui Graduação em Letras pela Universidade Cidade de São Paulo (2000), mestranda no Programa de Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atualmente é Professora de Educação Básica (PEB) II na Secre-taria da Educação do Estado de São Paulo e professora no Colégio Cruzeiro do Sul. Possui experiência na área de Língua Portuguesa.

Claudia Pereira de Souza

Mestre em Linguística pela Universidade Cruzeiro do Sul (2014). Professora de Ensino Fundamental e Médio nas secre-tarias de Educação da Prefeitura de São Paulo e do Estado de São Paulo.

Flávio Augusto Balbin

Mestre em Linguística pela Universidade Cruzeiro do Sul. Professor de Ensino Fundamental II e Ensino Médio na Secre-taria de Educação do Estado de São Paulo.

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Giselda Fernanda Pereira

Mestrado em Letras – Clássicas – pela USP. Professora de Idiomas – na condição de prestadora de serviços – do Council on International Educatio-nal Exchange, Estados Unidos.

Karen Dantas de Lima

Mestranda em Linguística, bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoa-mento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e Especialista em Língua Portu-guesa pela Universidade Cruzeiro do Sul.

Katia Melchiades

Mestranda em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

Maria Veronica da Fonseca Teixeira

Mestre em Linguística pela Universidade Cruzeiro do Sul

Nathália Rodrighero Salinas Polachini

Mestrado em Filologia e Língua Portuguesa pela USP.

Patrícia Leite Di Iório

Possui Graduação em Letras pela Universidade Braz Cubas (1992), Es-pecialização em Linguística Aplicada ao Ensino de Português pela Univer-sidade Braz Cubas (1993), Mestrado em Língua Portuguesa pela PUC-SP (1997) e Doutorado em Língua Portuguesa pela PUC-SP (2007). Atualmen-te é professora adjunta III da Universidade Cruzeiro do Sul e pesquisadora da PUC-SP. Possui experiência na área de Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: historiografia linguística, historiografia da língua por-tuguesa, ensino de língua portuguesa.

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Sonia Sueli Berti Santos

Graduada em Letras pelo Centro Universitário Fieo (1999), Mestrado em Semiótica e Linguística Geral pela Universidade de São Paulo (2002) e Doutorado em Semiótica e Linguística Geral pela Universidade de São Pau-lo (2005). Em 2008 concluiu o Pós-Doutorado em Linguística Aplicada e Es-tudos da Linguagem sob a supervisão da professora doutora Elisabeth Brait, na PUC-SP, desenvolvendo o projeto de pesquisa Memória discursiva em práticas de leitura para alunos de Graduação. Atualmente, é pesquisadora e professora do corpo permanente do Programa de Mestrado em Linguística na Universidade do Cruzeiro do Sul. Ministra no Mestrado as disciplinas: Memória, Letramento e Formação do Leitor Crítico, Letramento Acadêmi-co e Prática Docente e na Graduação Leitura e Produção de textos e Lingua-gens em Comunicação no curso de Comunicação Social. É pesquisadora e uma das fundadoras do Grupo de Trabalho (GT) Estudos Bakhtinianos, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll). Avaliadora Institucional e de curso, responsável por avaliação de cursos da área de Letras e Comunicação Social, presencial e EAD, do Inep/MEC. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Análise Dia-lógica do Discurso, Estudos da Linguagem e Educação, atuando principal-mente nos seguintes temas: análise do discurso, gênero do discurso, análise dialógica do discurso, a linguagem verbo-visual, crônicas, charges, leitura, hipermídias, hiperdiscursividade na EAD, discursos jornalísticos e publici-tários, formação docente, leitura, desenvolvimento humano.