Copyright © 1990 by Robert Jordan REVISÃO DE … · Quando morrer, seu último pensamento será a...

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  • Copyright 1990 by Robert JordanPublicado mediante acordo com Sabel Weber Associated Inc.The Wheel of Time, The Dragon RebornTMe o smbolo da roda/cobra so marcasregistradas pertencentes a Robert Jordan

    TTULO ORIGINALThe Eye of the World

    TRADUOFbio Fernandes

    REVISO DE TRADUO E EDIORaquel Zampil

    PREPARAOPaulo Bernardo Henriques

    CAPAJlio Moreira

    IMAGEM PGS. 2 e 3 Cosma Andrei/Shutterstock images

    IMAGEM DA RODA DO TEMPO Sam Weber

    COURO Duncan P. Walker/iStockphoto

    MAPASEllisa MitchellThomas Canty

    ADAPTAO DOS MAPAS de casa

    ILUSTRAES INTERNASMatthew C. Nielsen

    REVISO DE EPUBJuliana Latini

    GERAO DE EPUB

  • Intrnseca

    E-ISBN978-85-8057-362-6

    Edio digital: 2013

    Todos os direitos desta edio reservados

    EDITORA INTRNSECA LTDA.Rua Marqus de So Vicente, 99, 3 andar22451-041 GveaRio de Janeiro RJTel./Fax: (21) 3206-7400www.intrinseca.com.br

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  • Para Harriet,corao do meu corao,

    luz da minha vida,para sempre.

  • SUMRIO

    CFCMD PRLOGO MONTE DO DRAGO M 1 UMA ESTRADA DESERTA 2 ESTRANHOS 3 O MASCATE 4 O MENESTREL 5 NOITE INVERNAL 6 A FLORESTA DO OESTE 7 FORA DA FLORESTA 8 UM LUGAR SEGURO 9 HISTRIAS DA RODA10 A PARTIDA11 A ESTRADA PARA BARCA DO TAREN12 CRUZANDO O TAREN M13 ESCOLHAS14 CERVO E LEO15 ESTRANHOS E AMIGOS16 A SABEDORIA

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  • 17 VIGIAS E CAADORES18 A ESTRADA DE CAEMLYN19 ONDE A SOMBRA ESPERA20 POEIRA AO VENTO21 ESCUTE O VENTO22 UM CAMINHO ESCOLHIDO23 IRMO DOS LOBOS24 FUGA PELO ARINELLE25 O POVO ERRANTE26 PONTE BRANCA27 ABRIGO DA TEMPESTADE28 PEGADAS NO AR29 OLHOS IMPIEDOSOS30 FILHOS DA SOMBRA31 O PREO DO SEU JANTAR32 QUATRO REIS NA SOMBRA33 AS TREVAS ESPERA34 A LTIMA ALDEIA35 CAEMLYN36 A TEIA DO PADRO37 A LONGA PERSEGUIO38 RESGATE39 TESSITURA DA TEIA40 A TEIA SE ESTREITA41 VELHOS AMIGOS E NOVAS AMEAAS42 RECORDAES DE SONHOS43 DECISES E APARIES44 A ESCURIDO DOS CAMINHOS45 O QUE SEGUE NA SOMBRA M46 FAL DARA47 MAIS HISTRIAS DA RODA48 A PRAGA49 O TENEBROSO SE AGITA50 ENCONTROS NO OLHO51 CONTRA A SOMBRA52 NO H COMEO NEM FIM53 A RODA GIRA G

  • S

  • PRLOGO

    Monte do Drago

    O palcio ainda estremecia de quando em quando, e a terra ressoava com a lembrana,gemendo como se quisesse negar o que havia acontecido. Feixes de luz do sol,atravessando fendas nas paredes, faziam cintilar a poeira ainda suspensa no ar. Manchaschamuscadas maculavam as paredes, o piso, o teto. Grandes ndoas negras cruzavam astintas e as douraduras cheias de bolhas de murais antes brilhantes, a fuligem cobrindofrisos que se desintegravam com figuras de homens e animais que pareciam ter tentadofugir antes que a loucura se aquietasse. Os mortos jaziam por toda parte, homens,mulheres e crianas, atingidos durante a fuga pelos relmpagos que atravessaram todos oscorredores, ou encurralados pelos incndios, ou soterrados pelas pedras do palcio,pedras que os perseguiram, voando, quase vivas, antes que o silncio retornasse. Em umestranho contraponto, coloridas tapearias e pinturas, todas obras-primas, pendiamimpassveis, exceto onde paredes deformadas as haviam deslocado. Mveis finamenteesculpidos, entalhados com marfim e ouro, estavam intocados, a no ser ondeondulaes no piso os tinham derrubado. A distoro da mente havia atingido o ncleo,ignorando a periferia.

    Lews Therin Telamon vagava pelo palcio, mantendo habilmente o equilbrioquando a terra voltava a oscilar.

    Ilyena! Meu amor, onde est voc? A barra de seu manto cinza-claro arrastou-se pelo sangue quando ele passou por cima do corpo de uma mulher, a beleza de cabelosdourados conspurcada pelo horror de seus ltimos momentos, os olhos ainda abertos,paralisados, incrdulos. Onde voc est, minha mulher? Onde todos se escondem?

    Os olhos dele captaram o prprio reflexo em um espelho torto que pendia de umaparede de mrmore fundido. Suas roupas, que um dia foram um traje finamente tecido e

  • majestoso em tons de cinza, escarlate e ouro, trazido por mercadores do outro lado doMar do Mundo, agora estavam rasgadas e sujas, cobertas pela mesma poeira que lhesujava o cabelo e a pele. Por um momento ele tocou o smbolo no manto, um crculometade branco e metade preto, as cores divididas ao meio por uma linha sinuosa.Significava alguma coisa aquele smbolo. Mas o crculo bordado no prendeu sua atenopor muito tempo. Ele encarou a prpria imagem com o mesmo espanto. Um homem altorecm-chegado meia-idade, que j fora bonito, mas cujos cabelos agora eram maisbrancos que castanhos, as linhas de tenso e preocupao marcando-lhe o rosto e osolhos escuros j tendo visto demais. Lews Therin comeou a rir baixinho, depois jogou acabea para trs; sua gargalhada ecoou pelos sales sem vida.

    Ilyena, meu amor! Venha, meu amor. Voc precisa ver isso.Atrs dele o ar ondulou, tremeluziu e se solidificou na forma de um homem, que

    olhou ao redor, a boca contorcida de desprazer por um breve momento. No era to altoquanto Lews Therin, e estava todo vestido de preto, exceto pela renda branca como neveno pescoo e pelos detalhes de prata nas barras viradas das botas de cano longo. Andavacom cuidado, segurando o manto com zelo para evitar que tocasse nos mortos. O chovibrava com as rplicas dos abalos, mas sua ateno estava fixa no homem que encarava oespelho e gargalhava.

    Senhor da Manh ele disse. Vim busc-lo.O riso cessou como se nunca tivesse comeado, e Lews Therin se virou, sem parecer

    surpreso. Ah, um convidado! Voc tem a Voz, estranho? Em breve ser hora do Canto, e

    aqui todos so bem-vindos a participar. Ilyena, meu amor, temos um convidado. Ilyena,onde voc est?

    Os olhos do homem de preto se arregalaram e relancearam para o corpo da mulherde cabelos dourados, depois de volta para Lews Therin.

    Que Shaitan o carregue. Ser que a mcula j o afetou tanto assim? Esse nome. Shai Lews Therin estremeceu e ergueu a mo, como se para

    repelir alguma coisa. No deve dizer esse nome. perigoso. Ento, pelo menos disso voc se lembra. perigoso para voc, tolo, no para

    mim. Do que mais se lembra? Lembre-se, idiota cego pela Luz! Eu no vou deixar queisso acabe com voc envolto na ignorncia! Lembre-se!

    Por um momento Lews Therin encarou sua mo erguida, fascinado pelos desenhosda sujeira. Ento, limpou-a no casaco ainda mais imundo e voltou a ateno para o outrohomem.

    Quem voc? O que quer?O homem de preto se empertigou com arrogncia. Um dia fui chamado Elan Morin Tedronai, mas hoje Traidor da Esperana. A voz de Lews Therin era apenas um murmrio.A memria tentou vir tona, mas ele virou a cabea, esquivando-se dela. Ento voc se lembra de algumas coisas. Isso mesmo, Traidor da Esperana.

    Assim alguns homens me chamaram, da mesma forma que o chamaram de Drago. Mas,ao contrrio de voc, eu aceitei o nome. Eles me conferiram o ttulo para me ofender, masainda hei de faz-los se ajoelharem e o adorarem. O que far com o seu? Depois destedia, os homens ho de cham-lo de Fratricida. O que far com isso?

    Lews Therin franziu a testa e olhou para o salo em runas.

  • Ilyena deveria estar aqui para dar as boas-vindas ao convidado ele murmurou,distrado, e ento levantou a voz. Ilyena, onde est voc?

    O cho tremeu; o corpo da mulher de cabelos dourados se moveu como serespondesse a seu chamado. Ele no a viu.

    Elan Morin fez uma careta. Olhe s para voc disse com escrnio. J foi o primeiro entre os Servos. J

    usou o Anel de Tamyrlin e sentou-se no Gro-trono. J invocou os Nove Bastes doDomnio. Agora olhe para si mesmo! Um desgraado arruinado e digno de pena. Masisso no basta. Voc me humilhou no Salo dos Servos. Voc me derrotou nos Portesde Paaran Disen. No entanto, eu sou o maior agora. E no vou deixar que voc morrasem saber disso. Quando morrer, seu ltimo pensamento ser a plena conscincia de suaderrota, do quanto ela completa e absoluta. Isso, se eu o deixar morrer.

    No consigo imaginar o que esteja segurando Ilyena. Ela vai me fazer um sermose achar que estou lhe ocultando a presena de um convidado. Espero que aprecie umaboa conversa, pois ela adora falar. Estou lhe prevenindo: Ilyena lhe far tantas perguntasque voc poder acabar lhe dizendo tudo que sabe.

    Jogando para trs o manto preto, Elan Morin flexionou as mos. uma pena para voc ele refletiu que uma de suas Irms no esteja aqui.

    Eu nunca fui muito hbil na Cura, e obedeo a um poder diferente agora. No entanto,mesmo uma delas s poderia lhe dar alguns minutos de lucidez, se voc no a destrusseprimeiro. Mas o que posso fazer tambm servir a meus propsitos. Seu sorrisosbito era cruel. Porm, receio que a cura de Shaitan seja diferente daquela que vocconhece. Cure-se, Lews Therin!

    Ele estendeu as mos, e a luz diminuiu, como se uma sombra tivesse passado diantedo sol.

    A dor calcinou Lews Therin, e ele gritou, um grito sado das profundezas de seu ser,um grito que ele no conseguiu sufocar. O fogo cauterizou seus ossos; o cido correu emsuas veias. Ele caiu para trs e desabou no piso de mrmore, a cabea atingindo a pedra equicando. Seu corao batia forte, tentando escapar do peito, e a cada pulsao lanava-lhenovamente as chamas pelo corpo. Impotente, ele comeou a ter convulses e se debater,seu crnio era uma esfera de pura agonia, prestes a explodir. Seus gritos roucosreverberavam pelo palcio.

    Devagar, muito devagar, a dor foi abrandando. O alvio pareceu levar mil anos e odeixou fraco e trmulo, arfando pela garganta ferida. Outros mil anos pareceram sepassar antes que ele conseguisse se erguer, os msculos iguais a geleia, e, vacilante, pr-sede quatro. Seus olhos pousaram na mulher de cabelos dourados, e o grito que lhe foiarrancado sobrepujou todos os anteriores. Com dificuldade, quase desabando, ele searrastou pelo cho at ela. Precisou de cada migalha de fora a fim de pux-la para seusbraos. Suas mos tremiam ao afastar-lhe os cabelos do rosto de olhos vidrados.

    Ilyena! Que a Luz me ajude, Ilyena! Seu corpo se curvou de forma protetorasobre ela, seus soluos o clamor a plenos pulmes de um homem que no tinha maispelo que viver. Ilyena, no! No!

    Voc pode t-la de volta, Fratricida. O Grande Senhor das Trevas poderessuscit-la, se voc o servir. Se servir a mim.

    Lews Therin ergueu a cabea, e o homem vestido de preto deu um passoinvoluntrio para trs, afastando-se daquele olhar.

  • Dez anos, Traidor Lews Therin disse baixinho, o som suave do ao deixandoa bainha. Por dez anos seu mestre vem arruinando o mundo. E agora isso. Eu vou

    Dez anos! Seu tolo pattico! Essa guerra no durou dez anos, mas desde o inciodos tempos. Voc e eu travamos mil batalhas com o girar da Roda, mil vezes mil, econtinuaremos a trav-las at o tempo morrer e a Sombra triunfar!

    Ele terminou com um grito e o punho erguido, e foi a vez de Lews Therin recuar,respirando com dificuldade ante o brilho nos olhos do Traidor.

    Com cuidado, Lews Therin pousou Ilyena no cho, os dedos roando gentilmenteseus cabelos. As lgrimas borravam sua viso quando ele se levantou, mas a voz soou friacomo o ferro.

    Pelas outras coisas que voc fez no pode haver perdo, Traidor, mas pela mortede Ilyena vou destru-lo alm do que seu mestre ser capaz de recuperar. Prepare-separa

    Lembre-se, seu tolo! Lembre-se de seu ataque intil ao Grande Senhor dasTrevas! Lembre-se do contra-ataque dele! Lembre-se! Neste exato instante os CemCompanheiros esto fazendo o mundo em pedaos, e todos os dias cem mais se juntam aeles. Que mo assassinou Ilyena Cabelos de Sol, Fratricida? No foi a minha. No foi aminha. Que mo destruiu cada vida que tinha uma gota do seu sangue, todos que oamavam, todos a quem voc amava? No foi a minha, Fratricida. No foi a minha.Lembre-se e saiba o preo de se opor a Shaitan!

    Um suor sbito escorreu pelo rosto de Lews Therin, abrindo trilhas em meio ao pe sujeira. Ele lembrou; era uma lembrana enevoada como o sonho de um sonho, masele sabia que era verdade.

    Seu uivo ricocheteou nas paredes, o uivo de um homem que havia descoberto quesua alma fora condenada pela prpria mo, e ele cravou as unhas no rosto como se pararasgar a viso do que havia feito. Para onde quer que se voltasse, seus olhos encontravamos mortos. Dilacerados, despedaados, queimados, ou quase soterrados pelas pedras.Por toda parte jaziam sem vida rostos que ele conhecia, rostos que ele amava. Velhoscriados e amigos de infncia, companheiros fiis durante os longos anos de batalha. Eseus filhos. Seus prprios filhos e filhas, espalhados como bonecos quebrados, suasbrincadeiras para sempre interrompidas. Todos assassinados por sua prpria mo. Osrostos de seus filhos o acusavam, os olhos vazios perguntando por qu, e as lgrimas deleno ofereciam nenhuma resposta. A gargalhada do Traidor o aoitou, abafando seusuivos. Ele no podia suportar os rostos, a dor. No suportava ficar ali nem mais umsegundo. Em desespero, buscou a Fonte Verdadeira, o saidin maculado, e Viajou.

    A terra ao seu redor era plana e deserta. Um rio passava ali por perto, largo e reto, eele sentia que no havia pessoas em um raio de cem lguas. Estava s, to s quanto umhomem podia estar enquanto vivesse, mas no podia fugir da memria. Os olhos operseguiam pelas infinitas cavernas de sua mente. No podia se esconder deles. Os olhosde seus filhos. Os olhos de Ilyena. Lgrimas cintilavam em seu rosto quando ele voltou osolhos para o cu.

    Luz, perdoe-me! No acreditava que ele viesse, o perdo. No para o que haviafeito. Mas gritou para o cu mesmo assim, implorou pelo que no acreditava que pudessereceber. Luz, perdoe-me!

    Ele ainda estava tocando o saidin, a metade masculina do poder que movia ouniverso, que fazia girar a Roda do Tempo, e podia sentir a mancha oleosa conspurcando

  • sua superfcie, a marca do contra-ataque da Sombra, a mcula que condenou o mundo.Por sua causa. Porque, em seu orgulho, ele acreditara que os homens podiam seequiparar ao Criador, podiam consertar o que o Criador havia feito e eles haviamdestrudo. Em seu orgulho, ele acreditara.

    Ele recorreu Fonte Verdadeira profundamente, e cada vez mais fundo, como umhomem morrendo de sede. Em pouco tempo havia absorvido mais do Poder nico doque poderia canalizar sem ajuda; sua pele parecia estar em chamas. Com muito esforo,ele se obrigou a absorver mais, tentou absorver tudo.

    Luz, perdoe-me! Ilyena!O ar transformou-se em fogo, e o fogo, em luz liquefeita. O raio que desceu dos

    cus teria carbonizado e cegado qualquer olho que o vislumbrasse ainda que por um sinstante. Dos cus ele veio, atravessou Lews Therin Telamon, cravou-se nas entranhas daterra. As pedras se transformaram em vapor ao seu toque. A terra se debateu como umser vivo em agonia. A linha de luz existiu apenas por uma frao de segundo, ligando aterra ao cu, mas depois que ela se foi o solo ainda se agitava como o mar em umatempestade. A pedra fundida jorrou a quinhentos ps de altura, e o cho, gemendo,elevou-se, lanando os jatos incandescentes cada vez mais alto. Do norte e do sul, do lestee do oeste, o vento chegou uivando, partindo rvores como gravetos, urrando e soprandocomo se quisesse ajudar a montanha crescente a subir ainda mais rumo aos cus. Semprerumo aos cus.

    Finalmente o vento cessou, e da terra vinham apenas murmrios trmulos. De LewsTherin Telamon, nenhum vestgio restava. Onde ele antes estivera erguia-se agora umamontanha de milhas de altura, a lava ainda jorrando do pico partido. O rio largo e retoafastara-se da montanha em uma curva, e nesse ponto as guas se separaram, formandouma ilha comprida no meio. A sombra da montanha quase chegava ilha, estendendo-seescura pela terra como a mo agourenta de uma profecia. Por algum tempo os roncos deprotesto da terra eram tudo que se ouvia.

    Na ilha, o ar tremeluziu e se condensou. O homem de preto estava ali, de p,olhando para a montanha em chamas que se erguia da plancie. Seu rosto se contorceu defria e desprezo.

    No pode escapar to facilmente, Drago. A batalha entre ns dois ainda noacabou. E no acabar at o fim dos tempos.

    Ento ele desapareceu, e a montanha e a ilha ficaram desertas. espera.

    E a Sombra caiu sobre a terra, e o Mundo foi despedaado, pedra por pedra. Os oceanosrecuaram, as montanhas foram engolidas, e as naes se espalharam pelos oito cantos doMundo. A lua era como o sangue, e o sol, como as cinzas. Os mares ferveram, e os vivosinvejaram os mortos. Tudo se fez em pedaos, e tudo se perdeu, a no ser a memria, euma delas acima de todas, a daquele que havia trazido a Sombra e a Ruptura do Mundo. Ea ele deram o nome de Drago.

    (De Aleth nin Taerin alta Camora,A Ruptura do Mundo.

    Autor desconhecido, a Quarta Era)

  • E assim aconteceu naqueles dias, como havia acontecido antes e tornaria a acontecer: asTrevas caram pesadas sobre a terra e oprimiram o corao dos homens, e o que eraverde extinguiu-se, e a esperana morreu. E os homens gritaram para o Criador: Luzdos Cus, Luz do Mundo, deixai que o Prometido nasa da montanha, seguindo asprofecias, como foi em eras passadas e ser nas eras por vir. Deixai que o Prncipe daManh cante para a terra, que o verde vicejar e dos vales viro os cordeiros. Deixai que obrao do Senhor da Aurora nos proteja das Trevas, e a grande espada da justia nosdefenda. Deixai que o Drago cavalgue novamente nos ventos do tempo.

    (De Charal Drianaan te Calamon,O Ciclo do Drago.

    Autor desconhecido, a Quarta Era)

  • C

    Uma Estrada Deserta

    A Roda do Tempo gira, e Eras vm e vo, deixando memrias que se transformam emlendas. As lendas desvanecem em mitos, e at o mito j est h muito esquecido quando aEra que o viu nascer retorna. Em uma Era, chamada por alguns de a Terceira Era, umaEra ainda por vir, uma Era h muito passada, um vento se ergueu nas Montanhas daNvoa. O vento no era o incio. O girar da Roda do Tempo no tem incios nem fins.Mas era um incio.

    Nascido abaixo dos picos eternamente cobertos por nuvens que davam montanhaseu nome, o vento soprava para leste, atravessando as Colinas de Areia, outrora asmargens de um grande oceano, antes da Ruptura do Mundo. Ele desceu e fustigou osDois Rios, penetrando na mata densa chamada de Floresta do Oeste, e flagelou doishomens que seguiam com uma carroa e um cavalo por uma via estreita e pedregosachamada de Estrada da Pedreira. Ainda que a primavera devesse ter chegado um bom msantes, o vento trazia consigo um arrepio gelado, como se preferisse trazer a neve.

    Rajadas colavam o manto de Rand alThor s suas costas, chicoteavam a l cor deterra ao redor de suas pernas e depois a faziam tremular atrs dele. Rand desejou que seucasaco fosse mais pesado ou que tivesse vestido uma camisa extra. Metade das vezes emque tentava puxar o manto, trazendo-o de volta frente do corpo, ele se prendia na aljavaque balanava em seus quadris. Tentar segurar o manto com uma das mos no ajudavamuito; na outra mo ele segurava o arco, a flecha encaixada, pronta para disparar.

    Quando uma rajada particularmente forte arrancou o manto de sua mo, ele olhoude relance para o pai por cima do dorso da gua marrom peluda. Sentia-se um tanto tolopor querer se assegurar de que Tam ainda estava ali, mas era um daqueles dias. O ventouivava, mas, tirando isso, o silncio na terra era pesado. Comparado a ele, o suave

  • rangido do eixo da carroa soava alto. Nenhum pssaro cantava na floresta, nenhumesquilo se agitava nos galhos das rvores. No que ele esperasse ouvi-los, de fato; nonaquela primavera.

    Somente as rvores que no perdiam suas folhas ou agulhas durante o invernotinham algum vestgio de verde. Restos dos espinheiros do ano anterior espalhavam teiasmarrons sobre as pedras embaixo das copas. As urtigas eram maioria entre as poucaservas; o resto era do tipo que tinha carrapichos afiados, espinhos ou trombeteiras, quedeixavam um cheiro ranoso na bota descuidada que as esmagasse. Trechos brancos edispersos de neve ainda pontilhavam o cho onde as rvores se adensavam e conservavamuma sombra mais slida. O sol fraco pairava acima da vegetao a leste, mas sua luz erafria e apagada, como se misturada sombra. Era uma manh estranha, prpria para se terpensamentos desagradveis.

    Sem pensar, ele tocou a rabeira da flecha; estava pronta para ser puxada at seu rostoem um nico e suave movimento, do jeito que Tam lhe ensinara. O inverno havia sidobastante ruim nas fazendas, o pior de que at mesmo as pessoas mais velhas selembravam, mas devia ter sido ainda mais duro nas montanhas, se o nmero de loboslevados a descer para os Dois Rios servia de indicativo. Eles atacavam os redis de ovelhase invadiam os celeiros atrs do gado e dos cavalos. Os ursos tambm haviam atacadoovelhas, mesmo onde um urso no era visto havia anos. J no era seguro andar por aaps o anoitecer. Homens se tornavam presas com a mesma frequncia das ovelhas, enem sempre era preciso que o sol se tivesse posto.

    Tam caminhava a passo firme do outro lado de Bela, usando a lana como cajado,ignorando o vento que fazia seu manto marrom drapejar como um estandarte. De vez emquando tocava levemente o flanco da gua, para lembr-la de seguir em frente. Com opeito forte e o rosto largo, ele era um pilar de realidade naquela manh, como uma pedrano meio de um sonho flutuante. A face marcada pelo sol podia ter suas rugas, e oscabelos, apenas uns poucos fios pretos, mas havia nele uma solidez, como se umaenchente pudesse passar por ele sem tirar seus ps do lugar. Agora seguia pela estrada,impassvel. Lobos e ursos no eram um problema, dizia sua postura, criaturas a quequalquer pastor de ovelhas devia estar atento, mas era melhor que no tentassem impedirTam alThor de chegar a Campo de Emond.

    Comeando a se sentir culpado, Rand voltou a vigiar seu lado da estrada, a atitudesimples e direta de Tam fazendo-o lembrar-se de sua tarefa. Ele era uma cabea mais altoque o pai, mais alto que qualquer pessoa no distrito, e tinha pouco de Tam fisicamente,exceto talvez os ombros largos. Os olhos cinzentos e o tom avermelhado dos cabelosvinham da me, assim dizia Tam. Era estrangeira, e, alm de um rosto sorridente, Randpouco se recordava dela embora pusesse flores em seu tmulo todos os anos, no BelTine, na primavera, e aos domingos, no vero.

    Dois barris pequenos do conhaque de ma de Tam seguiam na carroa sacolejante eoito barris maiores de sidra, levemente forte depois de fermentar ao longo do inverno.Tam entregava a mesma carga todos os anos Estalagem Fonte de Vinho, para usodurante o Bel Tine, e afirmara que seria preciso mais do que lobos ou um vento frio paraimpedi-lo nessa primavera. Mesmo assim, eles haviam passado semanas sem ir aldeia.Nem Tam viajava muito naqueles dias. Mas dera a palavra a respeito do conhaque e dasidra, apesar de ter esperado at a vspera do Festival para fazer a entrega. Manter apalavra era algo importante para Tam. Rand estava simplesmente contente por sair da

  • fazenda, quase to contente quanto pela chegada do Bel Tine.Enquanto Rand vigiava seu lado da estrada, crescia nele a sensao de estar sendo

    observado. Durante algum tempo tentou ignor-la. Nada se movia nem fazia qualquerrudo entre as rvores, a no ser o vento. Mas a sensao no apenas persistiu; elaaumentou. Os pelos dos braos se arrepiaram; a pele formigou, como se coasse pordentro.

    Irritado, ele mudou o arco de posio para coar os braos e disse a si mesmo queno deixasse se levar por fantasias. No havia nada na floresta no seu lado da estrada, eTam teria avisado se houvesse alguma coisa do outro. Ele olhou por cima do ombro episcou. A menos de vinte braas atrs deles na estrada uma figura a cavalo, coberta porum manto, os seguia, cavalo e cavaleiro negros, escuros e sombrios.

    Foi mais o hbito do que qualquer outra coisa que o fez caminhar de costas ao ladoda carroa enquanto olhava.

    O manto do cavaleiro o cobria at a ponta das botas, o capuz bem puxado frente demodo a no mostrar nenhuma parte do rosto. Rand pensou vagamente que havia algo deestranho no cavaleiro, mas era a abertura ensombreada do capuz que o fascinava. Ele sconseguia ver traos vagos de um rosto, mas tinha a sensao de que estava olhando bemnos olhos do cavaleiro. E no conseguia desviar o olhar. Sentiu o estmago embrulhar. Spodia ver sombras sob o capuz, mas sentia um dio to agudo quanto se pudesse ver umrosto enfurecido, um dio por todas as coisas vivas. dio por ele principalmente, por eleacima de todas as coisas.

    De repente, uma pedra bateu em seu calcanhar e ele tropeou, os olhos se desviandoda figura negra. Seu arco caiu na estrada, e apenas a mo estendida que agarrou os arreiosde Bela evitou que ele se estatelasse de costas no cho. Resfolegando de susto, a guaparou, girando a cabea para ver o que a havia detido.

    Tam franziu a testa para ele por cima do dorso de Bela. Tudo bem com voc, rapaz? Um cavaleiro disse Rand sem flego, aprumando-se. Um estranho nos

    seguindo. Onde? Tam ergueu a lana de lmina larga e olhou cautelosamente para trs. Ali atrs na As palavras de Rand morreram quando ele se virou para

    apontar. A estrada atrs deles estava deserta. Sem acreditar, ele olhou para a floresta queladeava a estrada. As rvores de galhos nus no ofereciam esconderijos, mas no havia omenor vestgio do cavalo nem do cavaleiro. Ele deu com o olhar questionador de seupai. Ele estava ali. Um homem de manto preto, num cavalo preto.

    Eu no duvidaria de sua palavra, rapaz, mas para onde ele foi? No sei. Mas estava ali. Ele pegou o arco e a flecha cados, verificou

    apressadamente as aletas antes de recolocar a flecha no encaixe e puxou a corda at ametade antes de deix-la relaxar. No havia nada em que mirar. Estava, sim.

    Tam balanou a cabea grisalha. Se voc diz, rapaz. Vamos. Um cavalo deixa marcas de cascos, mesmo num

    terreno destes. Ele comeou a se encaminhar na direo da traseira da carroa, omanto drapejando ao vento. Se as encontrarmos, vamos saber com certeza que eleesteve ali. Se no bem, dias como estes fazem um homem achar que est vendo coisas.

    Subitamente Rand percebeu o que havia achado estranho no cavaleiro, alm do fatode ele simplesmente estar ali. O vento que o fustigava e a Tam no havia deslocado uma

  • dobra sequer daquele manto negro. Rand sentiu a boca ficar seca de repente. Deviamesmo ter imaginado aquilo. O pai estava certo: era uma manh do tipo que mexia com aimaginao de um homem. Mas ele no acreditava nessas coisas. No entanto, comopoderia dizer ao pai que o homem que aparentemente havia desaparecido em pleno arvestia um manto intocado pelo vento?

    Com a testa franzida, ele espiou a floresta ao redor; parecia diferente do que semprefora. Praticamente desde que aprendera a andar, ele corria solto por ali. As lagoas eriachos da Floresta das guas, alm das ltimas fazendas a leste de Campo de Emond,eram onde ele havia aprendido a nadar. Havia explorado as Colinas de Areia, o que muitagente nos Dois Rios dizia que dava azar, e certa vez chegara ao sop das Montanhas daNvoa, ele e seus amigos mais prximos, Mat Cauthon e Perrin Aybara. Isso era muitomais longe do que a maioria das pessoas de Campo de Emond jamais tinha ido; para eles,uma jornada at a aldeia seguinte, subindo at a Colina da Viglia ou descendo at a Trilhade Deven, era um grande acontecimento. De todos aqueles lugares, no houvera um sque o fizesse sentir medo. Naquele dia, porm, a Floresta do Oeste no era mais o lugardo qual ele se lembrava. Um homem capaz de desaparecer to de repente podia reaparecerda mesma maneira, talvez at mesmo ao lado deles.

    No, pai, no h necessidade.Quando Tam parou, surpreso, Rand encobriu o rubor puxando o capuz de seu

    manto. O senhor provavelmente tem razo. No h necessidade de sair procurando o que

    no existe, no quando podemos aproveitar esse tempo para seguir at a aldeia e sairdeste vento.

    Um cachimbo no seria nada mau disse Tam devagar , assim como umacaneca de cerveja num lugar quente. Subitamente ele abriu um sorriso. E imaginoque voc esteja ansioso para ver Egwene.

    Rand conseguiu dar um sorriso fraco. De todas as coisas em que ele poderia quererpensar naquele instante, a filha do prefeito estava l no fim da lista. Ele no precisava demais confuso. Durante o ltimo ano ela o vinha deixando cada vez mais nervoso sempreque estavam juntos. Pior, ela nem sequer parecia se dar conta disso. No, ele certamenteno queria somar Egwene a seus pensamentos.

    Estava torcendo para que o pai no tivesse notado que ele estava com medo quandoTam falou:

    Lembre-se da chama, rapaz, e do vazio.Essa era uma coisa estranha que Tam lhe havia ensinado. Concentrar-se em uma

    nica chama e aliment-la com todas as suas paixes medo, dio, raiva at suamente ficar vazia. Torne-se um com o vazio, dizia Tam, e poder fazer qualquer coisa.Ningum mais em Campo de Emond falava assim. Mas Tam vencia o campeonato de arcoe flecha no Bel Tine todo ano com sua chama e seu vazio. Rand achava que esse anopoderia obter uma boa colocao tambm, se conseguisse se ater ao vazio. O fato de Tamtocar no assunto naquele momento significava que havia notado, mas no disse mais nadaa respeito.

    Tam estalou a lngua, incitando Bela a voltar a andar, e eles retomaram sua jornada, ohomem mais velho caminhando como se nada fora do normal tivesse acontecido e nadafora do normal pudesse acontecer. Rand queria poder imit-lo. Tentou criar o vazio emsua mente, mas ele lhe escapava. A todo instante imagens do cavaleiro de manto negro

  • ficavam se formando em sua cabea.Ele queria acreditar que Tam tinha razo, que o cavaleiro havia sido apenas

    imaginao, mas lembrava-se do sentimento de dio muito bem. Algum tinha estado ali.E esse algum havia lhe desejado mal. Ele no parou de olhar para trs at os telhadospontudos e altos de Campo de Emond comearem a cerc-lo.

    A aldeia ficava perto da Floresta do Oeste, a mata aos poucos rareando at as ltimasrvores se erguerem j entre as casas baixas e slidas. A terra se inclinava suavemente,descendo na direo do leste. Embora houvesse trechos de mata, fazendas e campos epastos demarcados por cercas vivas cobriam a terra como uma colcha de retalhos alm daaldeia at a Floresta das guas e seu emaranhado de riachos e lagoas. A terra que seestendia para oeste era igualmente frtil, e os pastos ali vicejavam quase todos os anos,mas havia apenas um punhado de fazendas na Floresta do Oeste. Mesmo essas poucasdesapareciam completamente a milhas das Colinas de Areia, para no mencionar asMontanhas da Nvoa, que se elevavam acima das copas das rvores da Floresta do Oeste,distantes, mas perfeitamente visveis de Campo de Emond. Uns diziam que a terra erarochosa demais, como se no houvesse rochas por toda parte nos Dois Rios, e outrosdiziam que a terra trazia m sorte. Uns poucos resmungavam que no havia por que seaproximar das montanhas mais do que o necessrio. Fossem quais fossem as razes,apenas os homens mais corajosos cultivavam a terra na Floresta do Oeste.

    Crianas pequenas e ces comearam a cercar a carroa em enxames, gritando elatindo, assim que Tam e Rand passaram pela primeira fileira de casas. Bela seguiapacientemente, ignorando os pequenos que gritavam e se acotovelavam embaixo de seufocinho, brincando de pique e com bambols. Nos ltimos meses pouco se vira de risosou brincadeiras de criana; mesmo quando o tempo abrandara o suficiente para que elaspudessem sair, o medo dos lobos as mantivera dentro de casa. Parecia que a aproximaodo Bel Tine as havia ensinado a brincar novamente.

    O Festival havia afetado tambm os adultos. As janelas estavam escancaradas, e emquase todas as casas a dona se punha ali, vestindo avental e usando um leno nos longoscabelos tranados, sacudindo lenis ou pendurando colches nos peitoris.Independentemente do aparecimento ou no de folhas nas rvores, nenhuma mulherdeixaria o Bel Tine chegar antes de fazer sua limpeza anual. Em cada quintal viam-setapetes pendurados em varais, e as crianas que no foram rpidas o bastante paraescapulir livres pelas ruas descontavam sua frustrao nos tapetes com batedores de vime.Em todos os telhados o dono da casa se empoleirava, verificando a cobertura de palhapara ver se os danos do inverno necessitavam de uma visita do velho Cenn Buie, otelhador.

    Por vrias vezes Tam parou para conversar rapidamente com um ou outro aldeo.Como ele e Rand haviam ficado semanas sem sair da fazenda, todos queriam saber comoas coisas andavam por aqueles lados. Poucos homens da Floresta do Oeste tinhamaparecido na aldeia. Tam falou de prejuzos com as tempestades do inverno, cada umapior que a anterior, de ovelhas natimortas, de campos marrons onde as plantaesdeveriam estar brotando e os pastos verdejando, de bandos de corvos se reunindo ondenos anos anteriores havia pssaros canoros. Conversas lgubres, com os preparativospara o Bel Tine acontecendo por toda parte ao redor deles, e muitas cabeas anuindo. Eraa mesma coisa em todos os lugares.

    A maioria dos homens dava de ombros e dizia:

  • Bem, se a Luz quiser, ns vamos sobreviver.Outros sorriam e acrescentavam: E, se a Luz no quiser, vamos sobreviver assim mesmo.Assim era a maioria das pessoas dos Dois Rios. Pessoas obrigadas a ver o granizo

    arrasar suas colheitas ou os lobos levarem suas ovelhas e recomear, no importando porquantos anos isso se repetisse, no desistiam facilmente. A maioria dos que desistiam jpartira havia muito tempo.

    Tam no teria parado para Wit Congar se o homem no tivesse sado para o meio darua obrigando-os a frear ou deixar Bela passar por cima dele. Os Congars e osCoplins; as duas famlias casavam tanto entre si que no se sabia de fato onde umaacabava e a outra comeava eram conhecidos da Colina da Viglia at Trilha de Deven,e talvez at Barca do Taren, como gente queixosa e encrenqueira.

    Preciso levar isto para Bran alVere, Wit disse Tam, indicando com a cabeaos barris na carroa.

    Mas o homem magricela ficou onde estava com uma expresso azeda no rosto.Momentos antes ele estivera esparramado na soleira da porta, e no em cima do telhado,embora a cobertura estivesse com um aspecto to ruim que parecia precisar com urgnciados cuidados de Mestre Buie. Wit nunca parecia pronto a retomar o trabalho ou terminaro que havia comeado. A maioria dos Coplins e dos Congars era assim, os que no erampiores.

    O que vamos fazer a respeito de Nynaeve, alThor? questionouCongar. No podemos ter uma Sabedoria assim em Campo de Emond.

    Tam deu um suspiro profundo. No da nossa conta, Wit. A Sabedoria assunto das mulheres. Bem, melhor fazermos alguma coisa, alThor. Ela disse que teramos um

    inverno ameno. E uma boa colheita. Agora pergunte o que ela ouve no vento, e elasimplesmente olha para voc de cara feia e sai pisando duro.

    Se voc a questionou com seus modos habituais, Wit disse Tam compacincia , tem sorte de ela no o ter acertado com aquele cajado que carrega. Agora, seno se importa, este conhaque

    Nynaeve alMeara jovem demais para ser uma Sabedoria, alThor. Se o Crculodas Mulheres no fizer nada, ento o Conselho da Aldeia ter de fazer.

    O que voc tem a ver com a Sabedoria, Wit Congar? rugiu uma voz feminina.Wit se encolheu quando sua mulher saiu marchando da casa. Daise Congar tinha o dobroda largura de Wit, uma mulher de rosto endurecido sem um s grama de gordura nocorpo. Ela o fuzilou com os olhos, as mos nos quadris. Experimente se meter nosassuntos do Crculo das Mulheres e veja se gosta de cozinhar sua prpria comida. Coisaque voc no vai fazer na minha cozinha. E lavar as prprias roupas e arrumar a prpriacama. O que no vai ser embaixo do meu teto.

    Mas, Daise Wit gemeu , eu s estava Com seu perdo, Daise disse Tam. Wit. Que a Luz brilhe sobre os dois.Ele ps Bela em movimento, fazendo-a desviar-se do sujeito magricela. Daise estava

    concentrada no marido agora, mas a qualquer minuto poderia perceber com quem Witestivera conversando.

    Era essa a razo de os alThors no terem aceitado nenhum dos convites para comeralguma coisa nem tomar algo quente. Sempre que viam Tam, as donas de casa de Campo

  • de Emond punham-se de orelha em p, como perdigueiros ao avistarem um coelho. Nohavia uma s delas que no conhecesse a esposa perfeita para um vivo com uma boafazenda, mesmo que fosse na Floresta do Oeste.

    Rand afastou-se na mesma velocidade que Tam, talvez at mais rpido. Ele s vezes sevia encurralado quando o pai no estava por perto, sem outra maneira de escapar que nofosse a grosseria. Levado at um banco ao lado do fogo na cozinha, eram-lhe servidosdoces, bolos de mel ou tortas de carne. E os olhos da dona da casa sempre o pesavam emediam com a mesma preciso das balanas e fitas mtricas de um mercador enquantoela lhe dizia que o que ele estava comendo no era nem de perto to bom quanto o quesua irm viva, ou sua prima mais velha, sabia preparar. Tam certamente no estavaficando mais jovem, ela diria. Era bom que ele tivesse amado tanto a esposa isso eraum timo sinal para a prxima mulher em sua vida , mas seu luto j havia duradotempo demais. Tam precisava de uma boa esposa. Era fato, diria ela isso ou algoparecido , que um homem simplesmente no podia ficar sem uma mulher quecuidasse dele e o mantivesse longe de problema. As piores eram aquelas que nessemomento se detinham, pensativas, e ento perguntavam com um descompromissoestudado exatamente quantos anos ele tinha agora.

    Como a maior parte do povo dos Dois Rios, Rand tinha como forte trao depersonalidade a teimosia. Os forasteiros s vezes diziam que essa era a principalcaracterstica da gente da regio: eram capazes de dar aulas a mulas e ensinar s pedras. Asmulheres eram boas e gentis em sua maioria, mas ele detestava ser forado a fazerqualquer coisa, e elas o deixavam com a sensao de estar sendo conduzido com varaspontudas. Assim, ele acelerou o passo, torcendo para que Tam apressasse Bela tambm.

    No demorou para que a rua se abrisse, indo dar no Campo, uma ampla rea nomeio da aldeia. Normalmente coberto por uma grama espessa, o Campo nessa primaveramostrava apenas alguns trechos de verde em meio ao marrom-amarelado da grama mortae o negro da terra nua. Uns poucos gansos vagavam pelo local, olhando atentos o cho,sem no entanto achar nada que valesse a pena bicar, e uma vaca leiteira fora amarrada aliperto para pastar na grama esparsa.

    Mais para a extremidade oeste do Campo, a fonte propriamente dita do riacho Fontede Vinho jorrava de um afloramento baixo na rocha em um fluxo que nunca falhava, umfluxo forte o bastante para derrubar um homem e doce o suficiente para justificar seunome cem vezes. Da nascente, as guas corriam ligeiras para o leste, alargando-serapidamente, as margens pontilhadas de salgueiros ao longo de todo o caminho at omoinho de Mestre Thane e alm, at se dividir em dezenas de crregos nas profundezaspantanosas da Floresta das guas. Duas pontes baixas e estreitas para pedestresatravessavam o lmpido riacho no Campo, assim como outra mais larga e forte o bastantepara suportar o peso de carroas. A Ponte das Carroas marcava o ponto onde a Estradado Norte, que vinha de Barca do Taren e da Colina da Viglia, tornava-se a Estrada Velha,que levava at Trilha de Deven. Os forasteiros costumavam achar engraado que a estradativesse um nome ao norte e outro ao sul, mas, at onde os habitantes de Campo deEmond sabiam, era assim que sempre fora, e isso bastava. Era motivo suficiente para agente dos Dois Rios.

    Do outro lado das pontes, os montes j estavam crescendo para as fogueiras do BelTine, trs pilhas de troncos, cuidadosamente arrumados, quase do tamanho de casas.Elas tinham de ficar na terra nua, naturalmente, e no no Campo, por mais esparsa que a

  • grama estivesse. No Festival, o que no acontecia ao redor das fogueiras acontecia noCampo.

    Perto da Fonte de Vinho um grupo de mulheres mais velhas cantava baixinhoenquanto erguia o Pau da Primavera. Despido dos galhos, o tronco reto e esguio de umabeto elevava-se a dez ps de altura, mesmo no buraco que elas haviam escavado para ele.Um bando de meninas jovens demais para usar os cabelos tranados encontrava-se aliperto. Sentadas de pernas cruzadas, elas observavam com inveja, ocasionalmente cantandofragmentos da cano das mulheres.

    Tam estalou a lngua, como se para incitar Bela a acelerar o passo, embora ela oignorasse, e Rand manteve deliberadamente os olhos afastados do que as mulheresestavam fazendo. Pela manh os homens fingiriam surpresa ao encontrar o Pau; depois,ao meio-dia, as mulheres solteiras danariam ao redor dele, enrolando-o com longas fitascoloridas enquanto os homens solteiros cantavam. Ningum sabia quando esse costumecomeara nem por qu era mais uma prtica que seguia do jeito que semprefora , mas era uma desculpa para cantar e danar, e ningum nos Dois Rios precisavade muita desculpa para isso.

    O dia inteiro do Bel Tine seria tomado com cantoria, danas e banquetes, comcorridas e competies de quase tudo. Haveria prmios no somente para o melhor comarco e flecha, mas tambm com funda e lana. Haveria concursos de enigmas e charadas,de cabo de guerra e de levantamento e lanamento de pesos, prmios para o melhorcantor, o melhor danarino e o melhor tocador de rabeca, para o mais rpido a tosquiaruma ovelha, e at mesmo para o melhor em bocha e nos dardos.

    O Bel Tine devia acontecer quando a primavera houvesse chegado de verdade, osprimeiros cordeiros tivessem nascido e a primeira colheita estivesse brotando. Mas,mesmo com o frio ainda intenso, ningum sequer pensara em adiar o Festival. Um poucode msica e dana faria bem a todos. E, para completar, se os rumores fossemverdadeiros, uma grande exibio de fogos de artifcio estava planejada para oCampo se o primeiro mascate do ano aparecesse a tempo, claro. Isso vinha gerandoum falatrio considervel; dez anos haviam se passado desde a ltima exibio desse tipo,e as pessoas ainda falavam dela.

    A Estalagem Fonte de Vinho ficava na extremidade leste do Campo, bem ao lado daPonte das Carroas. O primeiro andar da construo era de pedras do rio, embora afundao fosse de rochas mais antigas, que, diziam uns, vinham das montanhas. Osegundo andar, de paredes caiadas onde Brandelwyn alVere, estalajadeiro e Prefeito deCampo de Emond pelos ltimos vinte anos, vivia nos fundos com a mulher e asfilhas , projetava-se alm da rea do andar inferior. As telhas vermelhas, nico telhadodesse tipo na aldeia, reluziam luz fraca do sol, e saa fumaa de trs das doze chaminsaltas da estalagem.

    No lado sul da estalagem, distante do riacho, estendiam-se os vestgios de umafundao de pedra muito maior, outrora parte da construo ou pelo menos assimdiziam. No meio dela agora crescia um imenso carvalho, cujo tronco tinha cerca de trintapassos de dimetro, e os galhos que se espalhavam eram da grossura de um homem. Novero, Bran alVere dispunha cadeiras e mesas embaixo daqueles galhos, que, carregadosde folhas, davam uma boa sombra, e ali as pessoas podiam beber alguma coisa e desfrutarda brisa fresca enquanto conversavam ou arrumavam o tabuleiro para um jogo de pedras.

    Aqui estamos, rapaz. Tam estendeu a mo para os arreios de Bela, que se

  • deteve diante da estalagem antes mesmo que ele encostasse no couro. Conhece ocaminho melhor do que eu. Ele deu uma risada.

    Quando o ltimo rangido do eixo da carroa j no se ouvia, Bran alVere surgiu dedentro da estalagem, parecendo como sempre pisar leve demais para um homem de suacircunferncia, quase o dobro da de todos os demais na aldeia. Um sorriso dividiu seurosto redondo, que era encimado por uma franja esparsa de cabelos grisalhos. Oestalajadeiro estava de mangas curtas apesar da friagem, o avental de um branco imaculadoamarrado na cintura. Um medalho de prata na forma de uma balana de dois pratospendia em seu peito.

    O medalho, junto com a balana de tamanho real usada para pesar as moedas dosmercadores que desciam de Baerlon para negociar l ou tabac, era o smbolo do cargo dePrefeito. Bran s o usava para lidar com os mercadores e para festividades e casamentos.Agora ele o estava usando com antecedncia, mas aquela seria a Noite Invernal, a vsperado Bel Tine, quando todos fariam visitas de um lado para o outro quase a noite inteira,trocando presentinhos e comendo e bebendo um pouco em cada casa. Depois desse inverno,pensou Rand, ele provavelmente considera a Noite Invernal desculpa suficiente para no esperar atamanh.

    Tam! o Prefeito gritou ao ir apressado at eles. Que a Luz brilhe sobremim, bom v-lo finalmente. E voc tambm, Rand. Como vai, meu rapaz?

    Vou bem, Mestre alVere disse Rand. E o senhor?Mas a ateno de Bran j havia voltado a Tam. Eu j estava comeando a pensar que voc no traria seu conhaque este ano. Voc

    nunca esperou tanto assim antes. No me agrada deixar a fazenda, Bran respondeu Tam. No com os lobos

    do jeito que esto. E esse tempo.Bran pigarreou. Gostaria que algum quisesse falar sobre outra coisa que no o tempo. Todo

    mundo reclama disso, e gente que deveria saber das coisas espera que eu resolva aquesto. Acabei de passar vinte minutos explicando Senhora alDonel que nada possofazer quanto s cegonhas. De qualquer forma, o que ela esperava que eu fizesse Elesacudiu a cabea.

    Um mau agouro uma voz spera anunciou. Nenhum ninho de cegonha nostelhados no Bel Tine. Cenn Buie, encarquilhado e enegrecido como uma raiz velha,marchou at Tam e Bran apoiando-se em seu cajado, quase to alto quanto ele eigualmente encarquilhado. Tentou encarar os dois homens ao mesmo tempo com seusolhos midos. Coisas piores viro, ouam o que eu digo.

    Ento voc se tornou vidente, interpretando pressgios? Tam perguntou,seco. Ou voc escuta o vento, como uma Sabedoria? Vento o que no falta. E algunsno vm de longe daqui.

    Pode zombar se quiser resmungou Cenn , mas, se o tempo no esquentar obastante para as lavouras brotarem logo, mais de um celeiro vai estar vazio antes que sepossa fazer a colheita. No prximo inverno pode ser que no haja nada vivo nos DoisRios exceto lobos e corvos. Se chegarmos ao prximo inverno. Talvez seja ainda neste.

    E o que que voc quer dizer com isso? perguntou Bran, rspido.Cenn olhou para os dois com azedume. No tenho muita coisa boa a dizer sobre Nynaeve alMeara. Voc sabe disso. Para

  • comear, ela jovem demais para No importa. O Crculo das Mulheres parecedesaprovar que o Conselho da Aldeia sequer comente os assuntos delas, embora elasinterfiram nos nossos sempre que desejam, coisa que acontece na maior parte do tempo,ou assim parece

    Cenn interrompeu Tam , voc quer chegar a algum lugar com essaconversa?

    O que quero dizer o seguinte, alThor: pergunte Sabedoria quando o invernoir terminar, e ela se afasta. Talvez ela no queira nos contar o que ouve no vento. Talvezo que oua seja que o inverno no ir terminar. Talvez esse inverno simplesmentecontinue at a Roda girar e a Era chegar ao fim. Isso o que eu quero dizer.

    E talvez as ovelhas saiam voando retorquiu Tam.Bran ergueu as mos no ar. Que a Luz me proteja dos tolos. Voc, que se senta no Conselho da Aldeia,

    Cenn, agora anda espalhando essa conversa de Coplin. Bem, escute aqui, j temosproblemas suficientes sem

    Um rpido puxo na manga de Rand e uma voz baixa, destinada somente a seusouvidos, distraiu-o da conversa dos homens mais velhos.

    Venha, Rand, enquanto eles esto discutindo. Antes que ponham voc paratrabalhar.

    Rand olhou para baixo e teve de sorrir. Mat Cauthon encontrava-se agachado ao ladoda carroa de forma que Tam, Bran e Cenn no podiam v-lo, seu corpo magricelacontorcido como uma cegonha tentando se dobrar ao meio.

    Os olhos castanhos de Mat brilhavam antecipando alguma travessura, como decostume.

    Dav e eu pegamos um texugo velho enorme. Ele ficou todo zangado por ter sidoarrancado da toca. Vamos solt-lo no Campo e ver as garotas correrem.

    O sorriso de Rand se abriu; aquilo no lhe soou to divertido quanto teria sido umou dois anos antes, mas Mat parecia no crescer nunca. Rand lanou um olhar rpidopara o pai os homens ainda tinham as cabeas muito prximas, todos os trs falandoao mesmo tempo e ento abaixou a prpria voz.

    Prometi descarregar a sidra. Mas posso encontrar vocs mais tarde.Mat revirou os olhos. Carregar barris! Que me queimem, eu preferiria brincar com minha irmzinha.

    Bom, sei de coisas melhores que um texugo. Temos estranhos nos Dois Rios. Ontem noite

    Por um instante Rand parou de respirar. Um homem a cavalo? ele perguntou com interesse. Um homem coberto

    por um manto preto, montado num cavalo preto? E seu manto no se move com o vento?Mat engoliu o sorriso, e a voz tornou-se um sussurro ainda mais rouco. Voc o viu tambm? Achei que tinha sido o nico. No ria, Rand, mas ele me

    assustou. No estou rindo. Ele tambm me apavorou. Eu podia jurar que ele me odiava,

    que queria me matar. Rand estremeceu. At aquele dia jamais pensara que algumpudesse querer mat-lo, mat-lo de verdade. Esse tipo de coisa simplesmente noacontecia nos Dois Rios. Trocar uns socos, talvez, lutas, mas matar, no.

    No sei sobre essa histria de dio, Rand, mas ele era bastante assustador de

  • qualquer maneira. Tudo que fez foi ficar sentado em seu cavalo, olhando para mim, naentrada da aldeia, mas eu nunca senti tanto medo em minha vida. Ento, quando desvieios olhos, s por um instante e isso no foi fcil, veja bem e olhei de novo, ele haviadesaparecido. Sangue e cinzas! Isso j tem trs dias, e eu mal consigo parar de pensar nele.Fico olhando o tempo todo por cima do ombro. Mat tentou uma risada que acabousaindo como um grasnido. gozado como o medo toma conta da gente. Faz a gentepensar coisas estranhas. Eu cheguei a pensar s por um minuto, veja bem quepudesse ser o Tenebroso. Ele tentou dar outra risada, mas dessa vez nenhum somsaiu de sua garganta.

    Rand respirou fundo. Tanto para lembrar a si mesmo quanto por qualquer outromotivo, disse mecanicamente:

    O Tenebroso e todos os Abandonados esto presos em Shayol Ghul, alm daGrande Praga, presos pelo Criador no momento da Criao, presos at o fim dostempos. A mo do Criador protege o mundo, e a Luz brilha sobre todos ns. Elerespirou fundo mais uma vez e continuou: Alm disso, se estivesse livre, o que oPastor da Noite estaria fazendo nos Dois Rios? Vigiando garotos de fazenda?

    No sei. S sei que aquele cavaleiro era mau. No ria. Posso jurar que sim.Talvez ele fosse o Drago.

    Voc est mesmo cheio de pensamentos animadores, hein? Randresmungou. Est pior que Cenn.

    Minha me sempre disse que os Abandonados viriam me pegar se eu no mecorrigisse. Se algum dia eu vi algum que parecesse com Ishamael ou Aginor, esse algumfoi ele.

    Toda me assusta os filhos com os Abandonados disse Randsecamente , mas a maioria cresce e supera isso. Por que no o Homem das Sombras, jque voc tocou no assunto?

    Mat o fuzilou com o olhar. Eu no sentia tanto medo desde No, nunca senti tanto medo assim, e no me

    importo de admitir isso. Eu tambm no. Meu pai acha que eu estava com medo das sombras das rvores.Mat assentiu, sombrio, e se recostou na roda da carroa. Meu pai tambm. Contei a Dav, e a Elam Dowtry. Eles esto atentos feito gavies

    desde ento, mas no viram nada. Agora Elam acha que eu estava tentando engan-lo. Davacredita que o cavaleiro vem l de Barca do Taren um ladro de ovelhas, ou degalinhas. Ladro de galinhas! Ele caiu num silncio afrontado.

    Provavelmente isso tudo no passa mesmo de uma bobagem disse Rand porfim. Talvez seja realmente s um ladro de ovelhas. E tentou visualizar a cena, masera como visualizar um lobo tomando o lugar de um gato na frente da toca de um rato.

    Bem, eu no gostei de como ele olhou para mim. Nem voc, no pelo jeito comoreagiu ao assunto. Deveramos contar a algum.

    J falamos, Mat, ns dois, e no acreditaram. J imaginou tentar convencer MestrealVere sobre esse sujeito, sem que ele o veja? Ele nos mandaria para Nynaeve para ver seestamos doentes.

    Mas agora somos dois. Ningum poderia achar que ns dois imaginamos amesma coisa.

    Rand esfregou rapidamente o topo da cabea, perguntando-se o que dizer. Mat era

  • uma figura conhecida na aldeia. Poucas pessoas haviam escapado de suas traquinagens.Agora seu nome surgia sempre que um varal deixava cair as roupas no cho ou uma fivelade sela frouxa derrubava um fazendeiro na estrada. Nem era preciso que Mat estivesse porperto. O apoio dele podia ser pior que no ter apoio nenhum.

    Depois de um instante Rand falou: Seu pai acharia que voc me convenceu a inventar isso, e o meu Ele olhou

    por cima da carroa para onde Tam, Bran e Cenn estavam conversando, e se viu olhandonos olhos do pai.

    O prefeito ainda repreendia Cenn, que agora ouvia quieto e amuado. Bom dia, Matrim disse Tam, animado, erguendo um dos barris de conhaque

    at apoi-lo na lateral do carro. Estou vendo que voc veio ajudar Rand a descarregar asidra. Bom garoto.

    Mat se levantou de um salto j na primeira palavra e comeou a recuar. Bom dia para o senhor, Mestre alThor. E para o senhor, Mestre alVere. Mestre

    Buie. Que a Luz brilhe sobre os senhores. Meu pai me mandou aqui para Claro que mandou disse Tam. E claro que, como voc um rapaz que

    executa suas tarefas imediatamente, j terminou o que veio fazer. Bem, quanto maisrpido vocs levarem a sidra ao poro de Mestre alVere, mais rpido podero ver omenestrel.

    Menestrel! exclamou Mat, parando de supeto onde estava, no mesmo instanteem que Rand perguntava:

    Quando ele vai chegar?Rand s conseguia se lembrar da visita de dois menestris aos Dois Rios em toda a

    sua vida, e em uma dessas visitas ele era to pequeno que pde sentar-se nos ombros deTam para assistir. O fato de terem um deles ali de verdade durante o Bel Tine, com aharpa e a flauta, as histrias e tudo o mais Dali a dez anos, Campo de Emond aindaestaria comentando aquele Festival, mesmo que no houvesse fogos de artifcio.

    Bobagem resmungou Cenn, mas calou-se com um olhar de Bran que tinhatodo o peso do cargo de Prefeito.

    Tam recostou-se na lateral da carroa, usando o barril de conhaque como apoiopara o brao.

    Sim, um menestrel, e ele j est aqui. Segundo Mestre alVere, neste exatomomento ele se encontra em um quarto da estalagem.

    Chegou na calada da noite. O estalajadeiro balanou a cabea emdesaprovao. Bateu na porta da frente at acordar a famlia inteira. No fosse peloFestival, eu teria dito que levasse o prprio cavalo para o estbulo e que dormisse na baiacom ele, menestrel ou no. Imagine chegar assim no escuro.

    Rand ficou olhando intrigado. Ningum viajava alm dos limites da aldeia noite,no naqueles dias, certamente no sozinho. O telhador resmungou baixinho novamente,muito baixo dessa vez para que Rand compreendesse mais do que uma ou duas palavras.Louco e anormal.

    Ele no usa um manto negro, usa? perguntou Mat de repente.A barriga de Bran balanou com a risada. Negro? O manto dele igual ao manto de todo menestrel que j vi na vida. Tem

    mais remendos do que manto, e mais cores do que voc possa imaginar.Rand surpreendeu-se rindo muito alto, um riso de puro alvio. O ameaador

  • cavaleiro de negro como menestrel era mesmo uma ideia ridcula, mas Ele cobriu aboca com a mo, envergonhado.

    Est vendo, Tam? disse Bran. No tem havido muito riso neste vilarejodesde a chegada do inverno. Agora at mesmo o manto do menestrel motivo degargalhada. S isso j vale a despesa de t-lo trazido l de Baerlon.

    Digam o que quiserem pronunciou-se Cenn subitamente. Eu ainda achoque um desperdcio de dinheiro. Isso e esses fogos de artifcio que vocs todosinsistiram em mandar trazer.

    Ento h mesmo fogos de artifcio disse Mat.Mas Cenn prosseguiu: Deveriam ter chegado h um ms, com o primeiro mascate do ano, mas no

    houve nenhum mascate sequer, no foi? Se ele no vier at amanh, o que vamos fazercom os fogos? Realizar outro Festival s para solt-los? Isto , se ele os trouxer, claro.

    Cenn. Tam suspirou Voc confia tanto nas pessoas quanto um homem deBarca do Taren.

    Onde ele est, ento? Diga-me isso, alThor. Por que o senhor no nos contou? perguntou Mat em tom ofendido. A

    aldeia toda teria se divertido tanto com a espera quanto com o prprio menestrel. Ouquase, pelo menos. D para ver como todo mundo ficou s com o boato de fogos.

    , d para ver respondeu Bran, olhando de esguelha para o telhador. E seeu tivesse certeza de como esse boato comeou Se eu achasse, por exemplo, que algumandou reclamando do preo das coisas onde as pessoas pudessem ouvi-lo, quando ascoisas deveriam ser segredo

    Cenn pigarreou. Meus ossos esto velhos demais para este vento. Se vocs no se importam, vou

    ver se a Senhora alVere pode me servir um pouco de vinho quente para espantar afriagem. Prefeito. AlThor.

    Ele j seguia para a estalagem antes de terminar de falar, e, quando a porta se fechavaatrs dele, Bran suspirou.

    s vezes acho que Nynaeve tem razo sobre Bem, isso no importante agora.Vocs, jovens, pensem por um minuto. Todos esto empolgados com os fogos, verdade, e isso s com um boato. Pensem como eles vo ficar se o mascate no chegaraqui a tempo, depois de toda a expectativa. E, com o clima do jeito que est, quem sabequando ele vir? Todos ficariam cinquenta vezes mais empolgados com um menestrel.

    E se sentiriam cinquenta vezes piores se ele no tivesse vindo disse Randdevagar. Talvez nem mesmo o Bel Tine conseguiria alegrar o esprito das pessoas.

    Voc tem a cabea no lugar quando resolve us-la disse Bran. Ele vai seguirseus passos no Conselho da Aldeia um dia, Tam. Oua o que digo. Neste momento, nose sairia pior do que algum que conheo.

    Nada disso vai descarregar a carroa disse Tam vigorosamente, entregando oprimeiro barril ao Prefeito. Quero uma lareira quente, meu cachimbo e uma caneca dasua boa cerveja. Ele ergueu o segundo barril de conhaque e o colocou noombro. Tenho certeza de que Rand vai lhe agradecer a ajuda, Matrim. Lembre-se:quanto mais cedo a sidra estiver no poro

    Quando Tam e Bran desapareceram no interior da estalagem, Rand olhou para oamigo.

  • No precisa ajudar. Dav no vai conseguir segurar aquele texugo por muitotempo.

    Ah, por que no? perguntou Mat, resignado. Como seu pai falou, quantomais rpido isso estiver no poro Apanhando um dos barris de sidra nos braos,ele correu na direo da estalagem num meio trote. Talvez Egwene esteja por a. Vervoc olhar para ela feito um boi abatido com uma alabarda to divertido quantoqualquer texugo.

    Rand deteve-se no momento em que colocava o arco e a aljava na parte de trs dacarroa. Ele havia de fato conseguido tirar Egwene da cabea. Isso por si s j eraincomum. Mas provavelmente ela estaria em algum lugar da estalagem. No havia muitachance de conseguir evit-la. Naturalmente, j fazia semanas desde que a vira pela ltimavez.

    E ento? Mat gritou da frente da estalagem. Eu no disse que ia fazer tudosozinho. Voc ainda no est no Conselho da Aldeia.

    Com um sobressalto, Rand apanhou um barril e o seguiu. Talvez ela no estivesseali, afinal. Estranhamente, essa possibilidade no o fez se sentir nem um pouco melhor.

  • C

    Estranhos

    Quando Rand e Mat passaram com os primeiros barris pelo salo, Mestre alVere jestava enchendo um par de canecas com sua melhor cerveja escura, de fabricao prpria,servida de um dos barris empilhados junto a uma parede. Coceira, o gato amarelo daestalagem, estava deitado em cima dele, os olhos fechados e a cauda enrolada ao redor daspatas. Tam encontrava-se de p diante da grande lareira feita de pedras do rio, enchendoum cachimbo comprido com tabac de uma lata polida que o estalajadeiro sempremantinha sobre o console plano de pedra. A lareira estendia-se por metade docomprimento do grande salo quadrado, com um lintel da altura do ombro de umhomem, e as chamas que nela crepitavam derrotavam a friagem que vinha l de fora.

    Naquela hora da agitada vspera do Festival, Rand esperava encontrar o salo vazio,exceto por Bran, seu pai e o gato, mas quatro outros membros do Conselho da Aldeia,incluindo Cenn, estavam sentados em cadeiras de espaldar alto diante do fogo, canecasnas mos, a fumaa cinza-azulada dos cachimbos formando guirlandas acima de suascabeas. Dessa vez, nenhum dos tabuleiros de pedras estava em uso, e todos os livros deBran encontravam-se ociosos na prateleira em frente lareira. Os homens nem sequerfalavam, mas olhavam silenciosamente suas cervejas ou batiam as piteiras dos cachimbosnos dentes, impacientes, enquanto aguardavam que Tam e Bran se juntassem a eles.

    A preocupao no era algo incomum ao Conselho da Aldeia naqueles dias, no emCampo de Emond, e provavelmente no na Colina da Viglia, nem em Trilha de Deven.Ou mesmo em Barca do Taren, embora ningum pudesse saber o que a gente de Barca doTaren realmente achava a respeito de qualquer coisa.

    Somente dois homens diante do fogo, Haral Luhhan, o ferreiro, e Jon Thane, omoleiro, ergueram os olhos para os garotos quando eles entraram. Mestre Luhhan,

  • entretanto, deu mais que uma olhada de relance. Os braos do ferreiro eram grossoscomo as pernas da maioria dos homens, cobertos de msculos fortes, e ele ainda usava oavental comprido de couro, como se tivesse sado correndo da forja direto para areunio. Seu olhar carrancudo abarcou os dois, e ento ele se endireitou deliberadamentena cadeira, voltando, com interesse exagerado, a ateno novamente para o cachimbo noqual seu enorme polegar batia.

    Curioso, Rand reduziu o passo, mas teve de engolir um grito quando Mat chutou-lhe o tornozelo. O amigo acenava insistentemente com a cabea na direo da porta dosfundos do salo e correu para l, sem esperar. Mancando de leve, Rand o seguiu, menosapressado.

    O que houve? quis saber assim que entrou no corredor que levava para acozinha. Voc quase quebrou meu

    o velho Luhhan disse Mat, espiando o salo por cima do ombro deRand. Acho que ele suspeita que fui eu quem Ele parou bruscamente quando aSenhora alVere saiu num rompante da cozinha, o aroma de po quentinho flutuando frente dela.

    A bandeja em suas mos trazia alguns dos pes crocantes pelos quais ela era famosaem Campo de Emond, bem como pratos de picles e queijo. Isso subitamente lembrouRand de que ele s havia comido uma ponta de po antes de deixar a fazenda naquelamanh. Seu estmago roncou constrangedoramente.

    Uma mulher esbelta, com a trana grossa de cabelos que j comeavam a ficargrisalhos cada em um dos ombros, a Senhora alVere sorriu com ar maternal para osdois.

    H mais destes na cozinha, se vocs dois estiverem com fome, e nunca conhecigarotos da sua idade que no estivessem. Nem de qualquer outra idade, para ser sincera.Se preferirem, estou assando bolos de mel agora.

    Ela era uma das poucas mulheres casadas da regio que nunca tentavam dar uma decasamenteira com Tam. Em relao a Rand, seu jeito maternal se expressava em sorrisosafetuosos e um lanche rpido sempre que ele passava pela estalagem, mas ela agia assimcom todos os rapazes do lugar. Se de vez em quando ela o olhava como se quisesse fazermais, pelo menos no ia alm do olhar, e ele se sentia profundamente grato por isso.

    Sem esperar resposta, a Senhora alVere se apressou para o salo. Imediatamenteouviu-se o som de cadeiras sendo arrastadas quando os homens se levantaram, eexclamaes quanto ao cheiro do po. Ela era de longe a melhor cozinheira de Campo deEmond, e no havia um s homem num raio de milhas que, se tivesse chance, no iriacorrendo se sentar sua mesa.

    Bolos de mel disse Mat, estalando os lbios. Depois Rand falou com firmeza , ou no vamos acabar nunca.Um lampio pendia acima da escada que levava adega, ao lado da porta da cozinha,

    e outro criava um poo de luz no aposento de paredes de pedra embaixo da estalagem,banindo toda a escurido a no ser por uma leve penumbra nos cantos mais distantes.Prateleiras de madeira ao longo das paredes e suportes no cho sustentavam barris deconhaque e sidra, e outros maiores de cerveja e vinho, alguns com torneiras. Muitos dosbarris de vinho estavam marcados com giz na letra de Bran alVere, indicando o ano emque haviam sido comprados, que vendedor os tinha trazido, e em que cidade foramproduzidos, mas toda a cerveja e o conhaque eram de fabricao dos fazendeiros dos

  • Dois Rios ou do prprio Bran. Mascates, e at mesmo mercadores, s vezes traziamconhaque ou cerveja de fora, mas esses jamais eram to bons quanto os locais, alm decustarem uma fortuna, e ningum nunca bebia deles mais de uma vez.

    Agora disse Rand, quando colocavam os barris nos suportes , o que vocfez para ter de evitar Mestre Luhhan?

    Mat deu de ombros. Nada, na verdade. Eu s disse a Adan alCaar e a alguns de seus amigos

    melequentos Ewin Finngar e Dag Coplin que alguns fazendeiros viram cesfantasmas cuspindo fogo e correndo pela floresta. Eles engoliram tudo como se fossecreme de nata.

    E Mestre Luhhan est furioso com voc por causa disso? perguntou Rand,desconfiado.

    No exatamente. Mat fez uma pausa, depois balanou a cabea. Sabe, eucobri dois cachorros dele com farinha de trigo, para que ficassem todos brancos. Entoos soltei perto da casa de Dag. Como que eu ia saber que eles iriam voltar correndopara casa? No minha culpa, de verdade. Se a Senhora Luhhan no tivesse deixado aporta aberta, eles no poderiam ter entrado. No como se eu tivesse a inteno deespalhar farinha pela casa dela toda. Ele deu uma gargalhada que mais parecia umlatido. Ouvi dizer que ela botou tanto o velho Luhhan quanto os cachorros, todos ostrs, para fora da casa com uma vassoura.

    Rand fez uma careta e riu ao mesmo tempo. Se eu fosse voc, estaria mais preocupado com Alsbet Luhhan do que com o

    ferreiro. A mulher quase to forte quanto ele, s que o temperamento dela bem pior.Mas no importa. Se andar rpido, talvez ele no repare em voc.

    A expresso de Mat dizia que ele no estava achando graa em Rand.No entanto, quando voltaram pelo salo, no houve a menor necessidade de Mat se

    apressar. Os seis homens haviam agrupado suas cadeiras num n apertado diante dalareira. De costas para o fogo, Tam falava baixo, e os outros se inclinavam para a frentepara ouvir, to concentrados nas palavras dele que provavelmente no teriam notado seum bando de ovelhas tivesse passado por ali. Rand queria se aproximar, ouvir sobre oque eles estavam conversando, mas Mat puxou a manga de sua roupa e lhe lanou umolhar agoniado. Com um suspiro, ele seguiu Mat at a carroa l fora.

    Quando retornaram ao corredor eles encontraram uma bandeja no alto da escada,com bolos de mel quentes que enchiam o ar com seu aroma doce. Tambm havia duascanecas, e um bule de sidra fumegante. Apesar de sua prpria advertncia quanto aaguardar at mais tarde, Rand se viu fazendo as duas ltimas viagens entre a carroa e aadega tentando equilibrar um barril e um bolo quente.

    Ao colocar o ltimo barril no suporte, ele limpou as migalhas da boca enquanto Matdescarregava seu fardo e ento falou:

    Agora, vamos ao menesDa escada veio um rudo de ps, e Ewin Finngar quase caiu na adega de tanta pressa,

    o rosto gorducho brilhando de ansiedade para transmitir suas notcias. H estranhos na aldeia. Ele respirou fundo e dirigiu um olhar atravessado a

    Mat. No vi nenhum co fantasma, mas ouvi dizer que algum cobriu de farinha oscachorros do Mestre Luhhan. Tambm ouvi dizer que a Senhora Luhhan tem l suassuspeitas sobre quem fez isso.

  • A diferena de idade que separava Rand e Mat de Ewin, que tinha apenas quatorzeanos, em geral era mais do que suficiente para que eles no dessem muita importncia aqualquer coisa que o garoto tivesse a dizer. Dessa vez, porm, os dois trocaram um olharpreocupado, e ento comearam a falar ao mesmo tempo.

    Na aldeia? questionou Rand. No na floresta?Enquanto ele ainda falava, Mat tambm perguntou: O manto dele era preto? Voc conseguiu ver o rosto dele?Ewin olhou inseguro de um para o outro, depois falou rapidamente quando Mat deu

    um passo ameaador em sua direo: claro que consegui ver o rosto dele. E o manto verde. Ou talvez cinza. Ele

    muda de cor. Parece que assume as cores de onde quer que esteja. s vezes voc no o vmesmo quando olha diretamente para ele, no se ele no se mexer. E o dela azul, comoo cu, e dez vezes mais luxuoso do que qualquer roupa de festa que eu j vi na vida. Elatambm dez vezes mais bonita que qualquer pessoa que j vi. uma dama nobre, comoas das histrias. Tem de ser.

    Ela? perguntou Rand. De quem voc est falando? Ele olhou para Mat,que havia colocado as duas mos na cabea e fechado bem os olhos.

    Era deles que eu estava querendo lhe falar murmurou Mat antes que vocme levasse a E se interrompeu, abrindo os olhos e lanando um olhar afiado paraEwin. Chegaram ontem noite Mat continuou depois de um momento ealugaram quartos aqui na estalagem. Eu os vi chegar a cavalo. E que cavalos, Rand! Nuncavi to altos nem to lustrosos. Pareciam capazes de correr para sempre. Eu acho que eletrabalha para ela.

    A servio interrompeu Ewin. assim que falam nas histrias: ele est aservio dela.

    Mat continuou como se Ewin no tivesse falado. De qualquer maneira, ele obedece a ela, faz o que ela manda. S que no parece

    um criado. Um soldado, talvez. A maneira como leva a espada, como se ela fizesse partedele, como a mo ou o p. Ele faz os guardas dos mercadores parecerem vira-latas. E ela,Rand. Eu nunca sequer imaginei que existisse algum como ela. Parece que saiu de umahistria de menestrel. Ela como como Ele fez uma pausa e dirigiu um olharcido a Ewin. Como uma dama nobre concluiu com um suspiro.

    Mas quem so eles? perguntou Rand. A no ser pelos mercadores quechegavam uma vez por ano para comprar tabac e l e pelos mascates, forasteiros nuncaapareciam nos Dois Rios, ou quase nunca. Talvez em Barca do Taren, mas nunca to aosul. J fazia uns bons cinco anos desde a ltima vez em que um estranho de verdadeaparecera em Campo de Emond, e assim mesmo porque o sujeito estava tentando seesconder de algum problema em Baerlon que ningum na aldeia compreendeu. Ele noficara por muito tempo. O que eles querem?

    O que eles querem?! exclamou Mat. No me importo com o que elesquerem. So estranhos, Rand, e estranhos como voc nunca sonhou. Pense nisso!

    Rand abriu a boca, depois tornou a fech-la sem falar. O cavaleiro de manto negro ohavia deixado to nervoso quanto um gato em um canil. Aquilo parecia simplesmenteuma imensa coincidncia, trs estranhos na aldeia ao mesmo tempo. Isto , trs se omanto do sujeito que mudava de cores nunca mudasse para preto.

    O nome dela Moiraine disse Ewin no silncio momentneo. Ouvi

  • quando ele disse o nome. Moiraine, foi assim que a chamou. Lady Moiraine. O nomedele Lan. A Sabedoria pode no gostar dela, mas eu gosto.

    O que faz voc pensar que Nynaeve no gosta dela? perguntou Rand. Hoje cedo ela pediu informao Sabedoria sobre como chegar a algum

    lugar contou Ewin e a chamou de criana. Rand e Mat assoviaram baixinho, eEwin, na pressa de explicar, acabou tropeando nas palavras. Lady Moiraine no sabiaque ela era a Sabedoria. Pediu desculpas quando descobriu. Pediu, sim. E fez algumasperguntas sobre ervas, e sobre quem quem em Campo de Emond, com o mesmorespeito que qualquer mulher da aldeia demonstraria mais at do que algumas. Ela estsempre fazendo perguntas, sobre a idade das pessoas e h quanto tempo esto ondemoram e ah, e no sei o que mais. De qualquer forma, Nynaeve respondeu como setivesse mordido uma fruta verde. Ento, quando Lady Moiraine se afastou, Nynaeve ficouolhando para ela, como Bem, no foi de maneira amigvel, isso eu posso garantir.

    Isso tudo? perguntou Rand. Voc conhece o temperamento de Nynaeve.Quando Cenn Buie a chamou de criana no ano passado, ela deu na cabea dele com ocajado, e ele faz parte do Conselho da Aldeia e, alm disso, velho o bastante para ser avdela. Ela se enfurece com qualquer coisa, mas a raiva passa assim que vira as costas.

    Para mim isso j tempo demais murmurou Ewin. No me interessa em quem Nynaeve bate. Mat riu. Desde que no seja em

    mim. Esse vai ser o melhor Bel Tine de todos. Um menestrel, uma lady quem poderiapedir mais? Quem precisa de fogos de artifcio?

    Um menestrel? perguntou Ewin, a voz elevando-se subitamente. Vamos l, Rand continuou Mat, ignorando o menino mais novo. J

    acabamos aqui. Voc tem de ver aquele sujeito.Ele subiu os degraus aos pulos, com Ewin esforando-se para acompanh-lo e

    gritando: Tem mesmo um menestrel, Mat? No que nem os ces fantasmas, ? Ou os

    sapos?Rand fez uma pausa para apagar o lampio, depois foi correndo atrs deles.No salo, Rowan Hum e Samel Crawe haviam se juntado aos outros perto da lareira,

    de modo que todo o Conselho da Aldeia estava ali reunido. Bran alVere falava, a voznormalmente grave num tom to baixo que, alm da aglomerao de cadeiras, ouvia-sesomente um murmrio surdo. O Prefeito enfatizava as palavras batendo um indicadorgrosso na palma da outra mo e olhando para os homens, um de cada vez. Todosassentiam, concordando com o que quer que ele estivesse dizendo, embora Cenn ofizesse de modo mais relutante.

    A maneira como os homens se aglomeravam falava com mais clareza do que umaplaca pintada. Qualquer que fosse o assunto era somente para o Conselho da Aldeia, pelomenos por enquanto. Eles no iriam gostar de ver Rand tentando escutar. Comrelutncia, ele se afastou dali. Ainda havia o menestrel. E os estranhos.

    Do lado de fora, Bela e a carroa haviam sumido, levados por Hu ou por Tad, oscavalarios da estalagem. Mat e Ewin estavam ali, parados, fuzilando um ao outro com oolhar a poucos passos da entrada da estalagem, o vento fustigando seus mantos.

    Pela ltima vez gritou Mat , eu no estou pregando uma pea em voc.Vamos ter mesmo um menestrel. Agora v embora. Rand, quer dizer a este cabea de bagreque estou falando a verdade, para ver se ele me deixa em paz?

  • Fechando o manto, Rand avanou para apoiar Mat, mas suas palavras morreramquando os pelos de sua nuca se eriaram. Ele estava sendo observado novamente. Asensao estava longe de ser a que o cavaleiro de capuz lhe causara, mas tampouco eraagradvel, especialmente to pouco tempo depois daquele encontro.

    Uma rpida olhada pelo Campo mostrou-lhe apenas o que ele tinha vistoantes crianas brincando, pessoas se preparando para o Festival e ningum detendo oolhar mais do que alguns segundos em sua direo. O Pau da Primavera erguia-sesozinho agora, espera. A algazarra e os gritos infantis enchiam as ruas menores. Tudoestava como deveria. Exceto pelo fato de que ele estava sendo observado.

    Ento alguma coisa o levou a se virar, a erguer os olhos. No beiral da estalagem umcorvo enorme encontrava-se empoleirado, oscilando um pouco com as rajadas do ventoque vinha das montanhas. Sua cabea estava inclinada para o lado, e um olhinho pretoestava fixo nele, Rand pensou. Ento engoliu em seco, e subitamente uma raivaqueimou nele, uma raiva ardente e aguda.

    Comedor de carnia imundo ele resmungou. Estou cansado de ser observado grunhiu Mat, e Rand percebeu que o amigo

    havia parado ao seu lado e que tambm estava olhando de cenho franzido para o corvo.Eles trocaram um olhar, e ento, como se fossem um s, suas mos dispararam em

    busca de pedras.Duas pedras voaram precisamente e o corvo deu um passo para o lado; as pedras

    passaram assoviando pelo espao onde ele havia estado. Afofando as asas uma vez, eletornou a inclinar a cabea, fitando-os com um olho preto sem expresso, sem medo,como se nada houvesse acontecido.

    Rand encarou o pssaro, intrigado. Voc j viu um corvo fazer isso? perguntou baixinho.Mat sacudiu a cabea sem desviar seu olhar da ave. Nunca. Nem outro pssaro. Um pssaro vil soou uma voz de mulher atrs deles, melodiosa apesar do tom

    de repugnncia , no qual no se pode confiar mesmo nas melhores pocas.Com um grito agudo o corvo se lanou no ar com tamanha violncia que duas penas

    pretas caram do beiral, flutuando.Assustados, Rand e Mat se viraram para acompanhar o voo do pssaro, acima do

    Campo e na direo das Montanhas da Nvoa, com seus cumes envoltos em nuvenserguendo-se alm da Floresta do Oeste, at que ele no passasse de um pontinho no oestee desaparecesse de vista.

    O olhar de Rand desceu at a mulher que havia falado. Ela tambm acompanhara ovoo do corvo, mas nesse momento se virou, e seus olhos encontraram os dele. Rand nopodia deixar de olh-la. S podia ser Lady Moiraine, e ela era tudo que Mat e Ewintinham dito, tudo e um pouco mais.

    Quando soube que ela chamara Nynaeve de criana, Rand a imaginou mais velha,mas no. Pelo menos ele no conseguia atribuir a ela nenhuma idade. De incio, achouque fosse to jovem quanto Nynaeve, mas quanto mais a olhava mais pensava que ela eramais velha. Havia uma maturidade em seus olhos grandes e escuros, um ar deconhecimento que ningum poderia ter adquirido ainda jovem. Por um instante, achouque aqueles olhos fossem poos profundos prestes a engoli-lo. Tambm estava claro porque Mat e Ewin a consideravam uma dama sada de um conto de menestrel. Seu porte era

  • altivo, e havia nela um ar de autoridade que o fazia sentir-se sem jeito e desastrado. Acabea dela mal chegava ao peito de Rand, mas sua presena era tal que sua altura pareciaapropriada, e ele se sentia inadequado com o prprio tamanho.

    Em todos os aspectos, ela no se parecia com ningum que ele j tivesse conhecido.O capuz largo do manto emoldurava-lhe o rosto e os cabelos escuros, que pendiam emcachos suaves. Ele jamais havia visto uma mulher adulta sem os cabelos presos numatrana; toda garota dos Dois Rios aguardava ansiosamente que o Crculo das Mulheres deseu vilarejo determinasse que tinha idade suficiente para tranar os cabelos. Suas roupaseram igualmente estranhas. O manto era de veludo azul-celeste, com folhas, vinhas eflores num denso bordado prateado por toda a borda. O vestido cintilava discretamentequando ela se movia, num azul mais escuro que o do manto, com veios creme. Um colarde pesados elos de ouro pendia de seu pescoo, enquanto outra corrente de ouro,delicada e presa em seus cabelos, sustentava uma pequena e reluzente pedra azul no meiode sua testa. Um cinturo largo de ouro tranado envolvia-lhe a cintura, e no segundodedo da mo esquerda havia um anel de ouro no formato de uma serpente picando aprpria cauda. Ele certamente nunca vira um anel assim, embora reconhecesse a GrandeSerpente, um smbolo da eternidade ainda mais antigo que a Roda do Tempo.

    Mais luxuoso que qualquer roupa de festa, Ewin dissera, e ele estava certo. Ningumjamais se vestia assim nos Dois Rios. Jamais.

    Bom dia, Senhora h Lady Moiraine disse Rand, seu rosto ficou quentecom o tropeo da lngua.

    Bom dia, Lady Moiraine ecoou Mat um pouco mais tranquilamente, mas sum pouco.

    Ela sorriu, e Rand pegou-se pensando se havia alguma coisa que pudesse fazer porela, algo que lhe desse uma desculpa para ficar perto dela. Ele sabia que ela estavasorrindo para todos, mas parecia que o sorriso se destinava somente a ele. Era de fatocomo se um conto de menestrel houvesse adquirido vida. Mat tinha um sorriso bobocolado no rosto.

    Vocs sabem meu nome disse ela, parecendo encantada. Como se suapresena, ainda que breve, no fosse se tornar o principal assunto das conversas da aldeiapor um ano inteiro! Mas vocs devem me chamar de Moiraine, no de lady. E seusnomes, quais so?

    Ewin deu um pulo para a frente antes que um dos outros pudesse falar. Meu nome Ewin Finngar, minha senhora. Fui eu quem contou a eles seu nome;

    por isso que sabem. Ouvi Lan cham-la, mas no estava espionando. Ningum como asenhora jamais veio a Campo de Emond. Um menestrel est na aldeia tambm, para o BelTine. E hoje teremos a Noite Invernal. A senhora vai minha casa? Minha me fez bolosde ma.

    Terei de ver ela respondeu, pondo a mo no ombro de Ewin. Os olhos delacintilaram, divertidos, embora ela no desse nenhum outro sinal de agrado. No seicomo poderia competir com um menestrel, Ewin. Mas vocs todos devem me chamar deMoiraine. Ela olhou, em expectativa, para Rand e Mat.

    Eu sou Matrim Cauthon, La h Moiraine disse Mat.Ele fez uma mesura dura e desajeitada, e estava com o rosto vermelho quando se

    endireitou.Rand estava se perguntando se deveria fazer algo parecido, do jeito que os homens

  • faziam nas histrias, mas, com o exemplo de Mat, simplesmente disse seu nome. Pelomenos no tropeou na prpria lngua dessa vez.

    Moiraine olhou dele para Mat e novamente para ele. Rand achou que o sorriso dela,uma simples curva nos cantos da boca, era agora do tipo que Egwene exibia quando tinhaum segredo.

    Talvez eu venha a ter algumas pequenas tarefas espordicas enquanto estiver emCampo de Emond ela disse. Quem sabe vocs no estejam dispostos a meajudar? Ela riu ao v-los assentirem, um mais vido que o outro. Aqui disse, eRand ficou surpreso quando ela pressionou uma moeda na palma de sua mo, fechandoa mo dele com as dela.

    No preciso ele comeou a falar, mas ela dispensou seu protesto com umgesto enquanto tambm dava a Ewin uma moeda, e em seguida ps outra na mo de Matdo mesmo jeito que fizera com Rand.

    claro que . No se pode esperar que vocs trabalhem de graa. Consideremisso um pagamento simblico, e guardem-no com vocs, para que se lembrem de queconcordaram em vir quando eu chamar. Entre ns existe agora um compromisso.

    Eu nunca vou esquecer afirmou Ewin. Mais tarde conversaremos disse ela , e devero me contar tudo sobre vocs. Lady quer dizer, Moiraine? chamou Rand, hesitante, quando ela lhes deu as

    costas. Ela parou e olhou sobre o ombro, e ele teve de engolir em seco antes decontinuar. Por que veio a Campo de Emond?

    A expresso no rosto dela manteve-se impassvel, mas subitamente ele desejou noter perguntado, embora no soubesse dizer por qu. De qualquer forma, apressou-se emexplicar.

    No quis ser rude. Desculpe. s que ningum vem aos Dois Rios, a no ser osmercadores, e os mascates quando no h neve demais para descer de Baerlon. Quaseningum. Certamente ningum como voc. Os guardas dos mercadores s vezes dizemque isto aqui o fim do mundo, e suponho que o que deve parecer a qualquer pessoade fora. Eu s fiquei imaginando

    Ento o sorriso dela foi desaparecendo, lentamente, como se ela tivesse se recordadode alguma coisa. Por um momento ela apenas ficou olhando para ele.

    Eu sou uma estudante de histria disse ela por fim , uma colecionadora deantigas histrias. Este lugar que vocs chamam de os Dois Rios sempre me interessou. svezes eu estudo as histrias sobre o que aconteceu aqui h muito tempo, aqui e emoutros lugares.

    Histrias? perguntou Rand. O que aconteceu nos Dois Rios que possainteressar a algum como quer dizer, o que pode ter acontecido aqui?

    E de que outro nome voc chamaria isto aqui alm de os Dois Rios? acrescentou Mat. assim que sempre foi chamado.

    medida que a Roda do Tempo gira disse Moiraine, quase que para simesma e com uma expresso distante nos olhos , os lugares recebem nomesdiferentes. Os homens recebem muitos nomes, muitas faces. Faces diferentes, massempre o mesmo homem. No entanto, ningum conhece o Grande Padro que a Rodatece, nem sequer o Padro de uma Era. Ns s podemos observar, estudar e teresperana.

    Rand ficou olhando para ela, sem palavras, nem mesmo para perguntar o que ela

  • queria dizer. Ele no tinha certeza se ela tivera a inteno de que eles ouvissem aquilo. Osoutros dois estavam igualmente mudos, ele percebeu. Ewin estava boquiaberto.

    Moiraine voltou a se concentrar neles, e todos os trs estremeceram um pouco,como se despertassem.

    Conversaremos mais tarde disse ela. Nenhum deles replicou. Maistarde. Ela seguiu na direo da Ponte das Carroas, parecendo deslizar sobre o choem vez de andar, o manto se abrindo de ambos os lados de seu corpo como asas.

    Quando ela se afastava, um homem alto que Rand no notara antes saiu da frente daestalagem e a seguiu, uma das mos descansando no punho longo de uma espada. Suasroupas eram de um verde-escuro acinzentado que teria desaparecido entre folhas ousombras, e o manto alternava entre tons de cinza, verde e marrom quando se agitava aovento. s vezes ele parecia quase desaparecer, o manto misturando-se ao que quer queestivesse atrs dele. Seus cabelos eram compridos e grisalhos nas tmporas, afastados dorosto por uma faixa estreita de couro. O rosto tinha linhas e ngulos rgidos, desgastadospelo tempo mas sem rugas, apesar do cinza nos cabelos. Quando ele se movia, Rand noconseguia pensar em outra coisa que no lobos.

    Ao passar pelos trs jovens seu olhar os percorreu, olhos to frios e azuis quanto aaurora no solstcio de inverno. Era como se ele os estivesse pesando em sua mente, e nohavia nenhum sinal em seu rosto do que as balanas lhe diziam. Ele apertou o passo atalcanar Moiraine, ento diminuiu a velocidade para caminhar ao lado dela, curvando-separa lhe falar. Rand soltou a respirao que nem havia percebido que estivera prendendo.

    Aquele era Lan disse Ewin com a voz rouca, como se ele tambm tivesseprendido a respirao. Fora um olhar capaz de fazer isso. Aposto que ele umGuardio.

    No seja tolo. Mat riu, mas era um riso nervoso. Guardies s existem emhistrias. De qualquer maneira, Guardies tm espadas e armadura cobertas de ouro ejoias, e passam todo o tempo no norte, na Grande Praga, combatendo o mal, os Trollocse coisas assim.

    Ele poderia ser um Guardio Ewin insistiu. Voc viu algum ouro ou alguma joia? zombou Mat. Temos algum Trolloc

    nos Dois Rios? Ns temos ovelhas. O que pode ter acontecido aqui algum dia parainteressar a algum como ela?

    Algo pode ter acontecido respondeu Rand devagar. Dizem que a estalagemest aqui h mil anos, talvez mais.

    Mil anos de ovelhas disse Mat. Um pni de prata! Ewin gritou. Ela me deu um pni de prata inteirinho!

    Pensem s no que vou poder comprar quando o mascate chegar.Rand abriu a mo para olhar a moeda que ela lhe dera e quase a deixou cair de

    surpresa. No reconheceu a moeda grossa de prata com a imagem em relevo de umamulher equilibrando uma nica chama na mo com a palma erguida para o alto, mas elehavia observado Bran alVere pesar as moedas que os mercadores traziam de uma dezenade terras, e tinha uma ideia de seu valor. Tanta prata assim compraria um bom cavalo emqualquer parte dos Dois Rios, e ainda sobraria algum dinheiro.

    Ele olhou para Mat e viu a mesma expresso atordoada que sabia que seu prpriorosto devia exibir. Inclinando a mo para que Mat pudesse ver a moeda, mas no Ewin,ele ergueu uma sobrancelha em interrogao. Mat assentiu, e por um minuto eles ficaram

  • olhando um para o outro, perplexos e maravilhados. Que tipo de tarefa ela nos pedir? perguntou Rand por fim. No sei disse Mat com firmeza e no me interessa. Tambm no vou gastar

    esse dinheiro. Nem mesmo quando o mascate vier. E enfiou a moeda no bolso docasaco.

    Assentindo, Rand lentamente fez a mesma coisa. No sabia ao certo por qu, maspor alguma razo o que Mat dissera parecia correto. A moeda no deveria ser gasta. Notendo vindo dela. Ele no conseguia pensar em nenhuma outra utilidade para a prata,mas

    Vocs acham que eu devia guardar a minha tambm? A angstia e a indecisocoloriam o rosto de Ewin.

    S se voc quiser respondeu Mat. Acho que ela deu a moeda para voc gastar disse Rand.Ewin olhou sua moeda, depois balanou a cabea e enfiou o pni de prata no bolso. Vou guardar disse ele, meio triste. Ainda temos o menestrel lembrou Rand, e o rosto do menino se iluminou. Se ele acordar algum dia acrescentou Mat. Rand chamou Ewin , tem mesmo um menestrel? Voc vai ver respondeu Rand com uma risada. Estava claro que Ewin s ia

    acreditar quando pusesse os olhos no menestrel. Ele vai ter de descer, mais cedo oumais tarde.

    Gritos vieram da direo da Ponte das Carroas, e quando Rand olhou procurandoo motivo, sua risada ficou ainda mais espontnea. Uma multido crescente de aldees, develhos grisalhos a criancinhas que mal sabiam andar, escoltava um carroo alto rumo ponte, um carroo imenso puxado por oito cavalos, de cuja parte externa da lonaarredondada pendiam sacos que pareciam cachos de uvas. O mascate havia finalmentechegado. Estranhos e um menestrel, fogos de artifcio e um mascate. Aquele seria omelhor Bel Tine de todos.

  • C

    O Mascate

    Pencas de panelas chacoalhavam ruidosamente quando o carroo do mascate passouribombando sobre as toras pesadas da Ponte das Carroas. Ainda cercado por umanuvem de aldees e fazendeiros que haviam chegado para o Festival, o vendedor puxou asrdeas dos cavalos e fez com que parassem diante da estalagem. De todas as direessurgiam pessoas, aumentando a multido ao redor da grande carroa, de rodas mais altasdo que qualquer uma daquelas pessoas cujos olhos no desgrudavam do mascate acimadelas, no banco do condutor.

    O homem na carroa era Padan Fain, um sujeito plido e magricela, com braosdesengonados e um narigo que mais parecia um bico. Fain, sempre sorridente egar