Contos para o ensino médio

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Contos para o Ensino Médio Tangará da Serra - 2014

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Contos para o Ensino Médio

Tangará da Serra - 2014

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Caro aluno.

Acredito que uma coletânea deve representar um todo, um grupo maior, muito

mais diverso e rico. Esse é o papel desses textos por mim reunidos, dizer da diversidade

do conto contemporâneo, seja ele o brasileiro ou o universal, aqui presentes a partir de

Cortazar, Saramago e Hemingway.

A vida do homo sapiens urbanus, com suas incertezas, alienações e solidão faz-

se presente nos textos escolhidos, mas também a riqueza do espírito humano, em sua

surpreendente capacidade de superar-se e se reencontrar na grandiloquência das

pequenas coisas.

Espero que o contado com esses autores, tão próximos de nós no espaço-tempo,

possa encantá-los, motivando-os a contemplação artística.

Boas leituras.

Prof. Ewerton Rezer Gindri

EE. 29 de Novembro – Tangará da Serra/MT

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Sumário

Situação e Formas do conto brasileiro contemporâneo (fragmento)_____________04

Desforra_____________________________________________________________05

Sorôco, sua mãe, sua filha_______________________________________________07

A máquina extraviada__________________________________________________09

O lixo_______________________________________________________________13

Passeio Noturno____________________________________________________________16

Um Gato à Chuva______________________________________________________18

Casa tomada__________________________________________________________21

Uma vela para Dario ___________________________________________________25

Baleia _______________________________________________________________27

O primeiro beijo _______________________________________________________31

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Situação e Formas do conto brasileiro contemporâneo

Alfredo Bosi

O conto cumpre a seu modo o destino da ficção contemporânea. Posto entre as

exigências da narração realista os apelos da fantasia e as seduções do jogo verbal, ele

tem assumido formas de surpreendente variedade. Ora é o quase-documento –folclórico,

ora a quase-crônica da vida urbana, ora o quase-drama do cotidiano burguês, ora o

quase-poema do imaginário às soltas, ora, enfim, grafia brilhante e preciosa votada às

festas da linguagem.

Esse caráter plástico já desnorteou mais de um teórico da literatura ansioso por

encaixar a forma-conto no interior de um quadro fixo de gêneros. Na verdade, se

comparada à novela e ao romance, a narrativa curta condensa e potencia no seu espaço

todas as possibilidades da ficção. E mais, o mesmo modo breve de ser compele o

escritor a uma luta mais intensa com as técnicas de invenção, de sintaxe compositiva, de

elocução: daí ficarem transpostas depressa as fronteiras que no conto separam o

narrativo do lírico, o narrativo do dramático.

Proteiforme, o conto não só consegue abraçar a temática toda do romance, como

põe em jogo os princípios de composição que regem a escrita moderna em busca do

texto sintético e do convívio de tons, gêneros e significados.

[...]

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Desforra

José Saramago

O rapaz vinha do rio. Descalço, com as calças arregaçadas acima do joelho, as

pernas sujas de lama. Vestia uma camisa vermelha, aberta no peito, onde os primeiros

pêlos da puberdade começavam a enegrecer. Tinha o cabelo escuro, molhado de suor

que lhe escorria pelo pescoço delgado. Dobrava-se um pouco para frente, sob o peso dos

longos remos, donde pendiam fios verdes de limos ainda gotejantes. O barco ficou

balouçando na água turva, e ali perto, como se o espreitassem, afloraram de repente os

olhos globulosos de uma rã. O rapaz olhou-a, e ela olhou-o a ele. Depois a rã fez um

movimento brusco e desapareceu. Um minuto mais e a superfície do rio ficou lisa e

calma, e brilhante como os olhos do rapaz. A respiração do lodo desprendia lentas e

moles bolhas de gás que a corrente arrastava. No calor espesso da tarde, os choupos

altos vibraram silenciosamente, e, de rajada, flor rápida que do ar nascesse, uma ave

azul passou rasando a água. O rapaz levantou a cabeça. No outro lado do rio, uma

rapariga imóvel olhava-o, imóvel. O rapaz ergueu a mão livre e todo o seu corpo

desenhou o gesto de uma palavra que não se ouviu. O rio fluía lento.

O rapaz subiu a ladeira, sem olhar para trás. A erva acabava logo ali. Para cima,

para além, o sol calcinava os torrões dos alqueives e os olivais cinzentos. Metálica,

duríssima, uma cigarra roia o silêncio. À distância, a atmosfera tremia.

A casa era térrea, acachapada, brunida de cal, com uma barra de ocre violento.

Um pano de parede cega, sem janelas, uma porta onde se abria um postigo. No interior,

o chão de barro refrescava os pés. O rapaz encostou os remos, limpou o suor ao

antebraço. Ficou quieto, escutando as pancadas do coração, o vagaroso surdir do suor

que se renovava na pele. Esteve assim uns minutos, sem consciência dos rumores que

vinham da parte de trás da casa e que se transformaram, de súbito, em guinchos

lancinantes e gratuitos: o protesto de um porco preso. Quando, por fim, começou a

mover-se, o grito do animal, desta vez ferido e insultado, bateu-lhe nos ouvidos. E logo

outros gritos, agudos, raivosos, uma súplica desesperada, um apelo que não espera

socorro.

Correu para o quintal, mas não passou da soleira da porta. Dois homens e uma

mulher seguravam o porco. Outro homem, com uma faca ensanguentada, abria-lhe um

rasgo vertical no escroto. Na palha brilhava já um ovóide achatado, vermelho. O porco

tremia todo, atirava gritos entre as queixadas que uma corda apertava. A ferida alargou-

se, o testículo apareceu, leitoso e raiado de sangue, os dedos do homem introduziram-se

na abertura, puxaram, torceram, arrancaram. A mulher tinha o rosto pálido e crispado.

Desamarraram o porco, libertaram-lhe o focinho, e um dos homens baixou-se e apanhou

os dois bagos, grossos e macios. O animal deu uma volta perplexo, e ficou de cabeça

baixa, arfando. Então o homem atirou-lhos. O porco abocou, mastigou sôfrego, engoliu.

A mulher disse algumas palavras e os homens encolheram os ombros. Um deles riu. Foi

nessa altura que viram o rapaz no limiar da porta. Ficaram todos calados e, como se

fosse a única coisa que pudessem fazer naquele momento, puseram-se a olhar o animal

que se deitara na palha, suspirando, com os beiços sujos do próprio sangue.

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O rapaz voltou para dentro. Encheu um púcaro e bebeu, deixando que a água lhe

corresse pelos cantos da boca, pelo pescoço, até aos pêlos do peito, que se tornaram

mais escuros. Enquanto bebia, olhava lá fora as duas manchas vermelhas sobre a palha.

Depois, num movimento de cansaço, tornou a sair de casa, atravessou o olival, outra vez

sob a torreira do sol. A poeira queimava-lhe os pés, e ele sem dar por isso, encolhia-os,

para fugir ao contacto escaldante. A mesma cigarra rangia, em tom mais surdo. Depois a

ladeira, a erva com o seu cheiro de seiva aquecida, a frescura entontecedora debaixo dos

ramos, o lodo que se insinua entre os dedos dos pés e irrompe para cima.

O rapaz ficou parado, a olhar o rio. Sobre um afloramento de limos, uma rã,

parda como a primeira, de olhos redondos sob as arcadas salientes, parecia estar à

espera. A pele branca da goela palpitava. A boca fechada fazia uma prega de escárnio.

Passou tempo, e nem a rã nem o rapaz se moviam. Então ele, desviando a custo os

olhos, como para fugir a um malefício, viu no outro lado do rio, entre os ramos baixos

dos salgueiros, aparecer outra vez a rapariga. E novamente, silencioso e inesperado,

passou sobre a água o relâmpago azul.

Devagar, o rapaz tirou a camisa. Devagar se acabou de despir, e foi só quando já

não tinha roupa nenhuma no corpo que a sua nudez, lentamente, se revelou. Assim

como se estivesse curando uma cegueira de si mesma. A rapariga olhava de longe.

Depois, com os mesmos gestos lentos, libertou-se do vestido e tudo quanto a cobria.

Nua sobre o fundo verde das árvores.

O rapaz olhou uma vez mais o rio. O silêncio assentava sobre a líquida pele

daquele interminável corpo. Círculos que se alargavam e perdiam na superfície calma,

mostravam o lugar onde enfim a rã mergulhara. Então, o rapaz meteu-se à água e nadou

para a outra margem, enquanto o vulto branco e nu da rapariga recuava para a penumbra

dos ramos.

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Sorôco, sua mãe, sua filha

Guimarães Rosa

Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o

expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da estação. Não era um

vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo novo. A gente

reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas

sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. A gente sabia que, com pouco, ele ia

rodar de volta, atrelado ao expresso dai de baixo, fazendo parte da composição. Ia servir

para levar duas mulheres, para longe, para sempre. O trem do sertão passava às 12h45m.

As muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do carro, para esperar. As

pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conversavam, cada um porfiando no

falar com sensatez, como sabendo mais do que os outros a prática do acontecer das

coisas. Sempre chegava mais povo - o movimento. Aquilo quase no fim da esplanada,

do lado do curral de embarque de bois, antes da guarita do guarda- chaves, perto dos

empilhados de lenha. Sorôco ia trazer as duas, conforme. A mãe de Sorôco era de idade,

com para mais de uns setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo. Afora

essas, não se conhecia dele o parente nenhum.

A hora era de muito sol - o povo caçava jeito de ficarem debaixo da sombra das

árvores de cedro. O carro lembrava um canoão no seco, navio. A gente olhava: nas

reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que nas pontas se empinava. O borco

bojudo do telhadilho dele alumiava em preto. Parecia coisa de invento de muita

distância, sem piedade nenhuma, e que a gente não pudesse imaginar direito nem se

acostumar de ver, e não sendo de ninguém. Para onde ia, no levar as mulheres, era para

um lugar chamado Barbacena, longe. Para o pobre, os lugares são mais longe.

O Agente da estação apareceu, fardado de amarelo, com o livro de capa preta e as

bandeirinhas verde e vermelha debaixo do braço. - "Vai ver se botaram água fresca no

carro... " - ele mandou. Depois, o guarda-freios andou mexendo nas mangueiras de

engate. Alguém deu aviso: "Eles vêm!... " Apontavam, da Rua de Baixo, onde morava

Sorôco. Ele era um homenzão, brutalhudo de corpo, com a cara grande, uma barba,

fiosa, encardida em amarelo, e uns pés, com alpercatas: as crianças tomavam medo dele;

mais, da voz, que era quase pouca, grossa, que em seguida se afinava. Vinham vindo,

com o trazer de comitiva.

Aí, paravam. A filha - a moça - tinha pegado a cantar, levantando os braços, a

cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras - o nenhum. A

moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de

disparates, num aspecto de admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores,

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uma carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfunada em tantas roupas ainda de

mais misturas, tiras e faixas, dependuradas - virundangas: matéria de maluco. A velha

só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docementes. Sem

tanto que diferentes, elas se assemelhavam.

Sorôco estava dando o braço a elas, uma de cada lado. Em mentira, parecia

entrada em igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro. Todos ficavam de

parte, a chusma de gente não querendo afirmar as vistas, por causa daqueles transmodos

e despropósitos, de fazer risos, e por conta de Sorôco - para não parecer pouco caso. Ele

hoje estava calçado de botinas, e de paletó, com chapéu grande, botara sua roupa

melhor, os maltrapos. E estava reportado e atalhado, humildoso. Todos diziam a ele

seus respeitos, de dó. Ele respondia: - "Deus vos pague essa despesa..."

O que os outros se diziam: que Sorôco tinha tido muita paciência. Sendo que não

ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio. Isso não tinha cura,

elas não iam voltar, nunca mais. De antes, Sorôco agüentara de repassar tantas

desgraças, de morar com as duas, pelejava. Dai, com os anos, elas pioraram, ele não

dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi preciso. Tiveram que olhar em socorro

dele, determinar de dar as providências de mercê. Quem pagava tudo era o Governo,

que tinha mandado o carro. Por forma que, por força disso, agora iam remir com as

duas, em hospícios. O se seguir.

De repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi se sentar no degrau da

escadinha do carro. - "Ela não faz nada, seo Agente... " - a voz de Sorôco estava muito

branda: - "Ela não acode, quando a gente chama... " A moça, ai, tornou a cantar, virada

para o povo, o ao ar, a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em

espetáculo, mas representava de outroras grandezas, impossíveis. Mas a gente viu a

velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo - um amor

extremoso. E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar,

também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia.

Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar.

Aí que já estava chegando a horinha do trem, tinham de dar fim aos aprestes, fazer

as duas entrar para o carro de janelas enxequetadas de grades. Assim, num consumiço,

sem despedida nenhuma, que elas nem haviam de poder entender. Nessa diligência, os

que iam com elas, por bem-fazer, na viagem comprida, eram o Nenêgo, despachado e

animoso, e o José Abençoado, pessoa de muita cautela, estes serviam para ter mão

nelas, em toda juntura. E subiam também no carro uns rapazinhos, carregando as

trouxas e malas, e as coisas de comer, muitas, que não iam fazer míngua, os embrulhos

de pão. Por derradeiro, o Nenêgo ainda se apareceu na plataforma, para os gestos de que

tudo ia em ordem. Elas não haviam de dar trabalhos.

Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorçôo do canto, das duas, aquela

chirimia, que avocava: que era um constado de enormes diversidades desta vida, que

podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo

antes, pelo depois.

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Sorôco. Tomara aquilo se acabasse. O trem chegando, a máquina manobrando

sozinha para vir pegar o carro. O trem apitou, e passou, se foi, o de sempre.

Sorôco não esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de chapéu na mão, mais de

barba quadrada, surdo - o que nele mais espantava. O triste do homem, lá, decretado,

embargando-se de poder falar algumas suas palavras. Ao sofrer o assim das coisas, ele,

no oco sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso. E lhe falaram: - "O mundo

está dessa forma... "Todos, no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas. De

repente, todos gostavam demais de Sorôco.

Ele se sacudiu, de um jeito arrebentado, desacontecido, e virou, pra ir-s'embora.

Estava voltando para casa, como se estivesse indo para longe, fora de conta.

Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser.

Assim num excesso de espírito, fora de sentido. E foi o que não se podia prevenir: quem

ia fazer siso naquilo- Num rompido - ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho

para si - e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava

continuando.

A gente se esfriou, se afundou - um instantâneo. A gente... E foi sem combinação,

nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó do Sorôco,

principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas!

Todos caminhando, com ele, Sorôco, e canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás

quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair mais da memória. Foi

um caso sem comparação.

A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com

ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.

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A máquina extraviada

José J. Veiga

Você sempre pergunta pelas novidades daqui deste sertão, e finalmente posso lhe

contar uma importante. Fique o compadre sabendo que agora temos aqui uma máquina

imponente, que está entusiasmando todo o mundo. Desde que ela chegou - não me

lembro quando, não sou muito bom em lembrar datas - quase não temos falado em outra

coisa; e da maneira que o povo aqui se apaixona até pelos assuntos mais infantis, é de

admirar que ninguém tenha brigado ainda por causa dela, a não ser os políticos.

A máquina chegou uma tarde, quando as famílias estavam jantando ou acabando

de jantar, e foi descarregada na frente da Prefeitura. Com os gritos dos choferes e seus

ajudantes (a máquina veio em dois ou três caminhões) muita gente cancelou a

sobremesa ou o café e foi ver que algazarra era aquela. Como geralmente acontece

nessas ocasiões, os homens estavam mal-humorados e não quiseram dar explicações,

esbarravam propositalmente nos curiosos, pisavam-lhes os pés e não pediam desculpa,

jogavam pontas de cordas sujas de graxa por cima deles, quem não quisesse se sujar ou

se machucar que saísse do caminho.

Descarregadas as várias partes da máquina, foram elas cobertas com encerados e

os homens entraram num botequim do largo para comer e beber. Muita gente se

amontoou na porta mas ninguém teve coragem de se aproximar dos estranhos porque

um deles, percebendo essa intenção nos curiosos, de vez em quando enchia a boca de

cerveja e esguichava na direção da porta. Atribuímos essa esquiva ao cansaço e à fome

deles e deixamos as tentativas de aproximação para o dia seguinte; mas quando os

procuramos de manhã cedo na pensão, soubemos que eles tinham montado mais ou

menos a máquina durante a noite e viajado de madrugada.

A máquina ficou ao relento, sem que ninguém soubesse quem a encomendou nem

para que servia. E claro que cada qual dava o seu palpite, e cada palpite era tão bom

quanto outro.

As crianças, que não são de respeitar mistério, como você sabe, trataram de

aproveitar a novidade. Sem pedir licença a ninguém (e a quem iam pedir?), retiraram a

lona e foram subindo em bando pela máquina acima - até hoje ainda sobem, brincam de

esconder entre os cilindros e colunas, embaraçam-se nos dentes das engrenagens e

fazem um berreiro dos diabos até que apareça alguém para soltá-las; não adiantam

ralhos, castigos, pancadas; as crianças simplesmente se apaixonaram pela tal máquina.

Contrariando a opinião de certas pessoas que não quiseram se entusiasmar, e

garantiram que em poucos dias a novidade passaria e a ferrugem tomaria conta do

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metal, o interesse do povo ainda não diminuiu. Ninguém passa pelo largo sem ainda

parar diante da máquina, e de cada vez há um detalhe novo a notar.

Até as velhinhas de igreja, que passam de madrugada e de noitinha, tossindo e

rezando, viram o rosto para o lado da máquina e fazem uma curvatura discreta, só

faltam se benzer. Homens abrutalhados, como aquele Clodoaldo seu conhecido, que se

exibe derrubando boi pelos chifres no pátio do mercado, tratam a máquina com respeito;

se um ou outro agarra uma alavanca e sacode com força, ou larga um pontapé numa das

colunas, vê-se logo que são bravatas feitas por honra da firma, para manter fama de

corajoso.

Ninguém sabe mesmo quem encomendou a máquina. O prefeito jura que não foi

ele, e diz que consultou o arquivo e nele não encontrou nenhum documento autorizando

a transação. Mesmo assim não quis lavar as mãos, e de certa forma encampou a compra

quando designou um funcionário para zelar pela máquina.

Devemos reconhecer - aliás todos reconhecem - que esse funcionário tem dado

boa conta do recado. A qualquer hora do dia, e às vezes também de noite, podemos vê-

lo trepado lá por cima espanando cada vão, cada engrenagem, desaparecendo aqui para

reaparecer ali, assoviando ou cantando, ativo e incansável. Duas vezes por semana ele

aplica kaol nas partes de metal dourado, esfrega, sua, descansa, esfrega de novo - e a

máquina fica faiscando como jóia.

Estamos tão habituados com a presença da máquina ali no largo, que se um dia ela

desabasse, ou se alguém de outra cidade viesse buscá-la, provando com documentos que

tinha direito, eu nem sei o que aconteceria, nem quero pensar.

Ela é o nosso orgulho, e não pense que exagero. Ainda não sabemos para que ela

serve, mas isso já não tem maior importância. Fique sabendo que temos recebido

delegações de outras cidades, do estado e de fora, que vêm aqui para ver se conseguem

comprá-la. Chegam como quem não quer nada, visitam o prefeito, elogiam a cidade,

rodeiam, negaceiam, abrem o jogo: por quanto cederíamos a máquina. Felizmente o

prefeito é de confiança e é esperto, não cai na conversa macia.

Em todas as datas cívicas a máquina é agora uma parte importante das

festividades. Você se lembra que antigamente os feriados eram comemorados no coreto

ou no campo de futebol, mas hoje tudo se passa ao pé da máquina. Em tempo de eleição

todos os candidatos querem fazer seus comícios à sombra dela, e como isso não é

possível, alguém tem de sobrar, nem todos se conformam e sempre surgem conflitos.

Felizmente a máquina ainda não foi danificada nesses esparramos, e espero que não

seja.

A única pessoa que ainda não rendeu homenagem à máquina é o vigário, mas

você sabe como ele é ranzinza, e hoje mais ainda, com a idade. Em todo caso, ainda não

tentou nada contra ela, e ai dele. Enquanto ficar nas censuras veladas, vamos tolerando;

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é um direito que ele tem. Sei que ele andou falando em castigo, mas ninguém se

impressionou.

Até agora o único acidente de certa gravidade que tivemos foi quando um caixeiro

da loja do velho Adudes (aquele velhinho espigado que passa brilhantina no bigode, se

lembra?) prendeu a perna numa engrenagem da máquina, isso por culpa dele mesmo. O

rapaz andou bebendo em uma serenata, e em vez de ir para casa achou de dormir em

cima da máquina. Não se sabe como, ele subiu à plataforma mais alta, de madrugada

rolou de lá, caiu em cima de uma engrenagem e com o peso acionou as rodas. Os gritos

acordaram a cidade, correu gente para verificar a causa, foi preciso arranjar uns barrotes

e labancas para desandar as rodas que estavam mordendo a perna do rapaz. Também

dessa vez a máquina nada sofreu, felizmente. Sem a perna e sem o emprego, o

imprudente rapaz ajuda na conservação da máquina, cuidando das partes mais baixas.

Já existe aqui um movimento para declarar a máquina monumento municipal - por

enquanto. O vigário, como sempre, está contra; quer sabe a que seria dedicado o

monumento. Você já viu que homem mais azedo?

Dizem que a máquina já tem feito até milagre, mas isso - aqui para nós - eu acho

que é exagero de gente supersticiosa, e prefiro não ficar falando no assunto. Eu - e creio

que também a grande maioria dos munícipes - não espero dela nada em particular; para

mim basta que ela fique onde está, nos alegrando, nos inspirando, nos consolando.

O meu receio é que, quando menos esperarmos, desembarque aqui um moço de

fora, desses despachados, que entendem de tudo, olhe a máquina por fora, por dentro,

pense um pouco e comece a explicar a finalidade dela, e para mostrar que é habilidoso

(eles são sempre muito habilidosos), peça na garagem um jogo de ferramentas, e sem

ligar a nossos protestos se meta por baixo da máquina e desande a apertar, martelar,

engatar, e a máquina comece a trabalhar. Se isso acontecer, estará quebrado o encanto e

não existirá mais máquina.

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O lixo

Luís Fernando Veríssimo

Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira

vez que se falam.

- Bom dia...

- Bom dia.

- A senhora é do 610.

- E o senhor do 612

- É.

- Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...

- Pois é...

- Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...

- O meu quê?

- O seu lixo.

- Ah...

- Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...

- Na verdade sou só eu.

- Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata.

- É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...

- Entendo.

- A senhora também...

- Me chame de você.

- Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em

seu lixo. Champignons, coisas assim...

- É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como moro sozinha,

às vezes sobra...

- A senhora... Você não tem família?

- Tenho, mas não aqui.

- No Espírito Santo.

- Como é que você sabe?

- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.

- É. Mamãe escreve todas as semanas.

- Ela é professora?

- Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?

- Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.

- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.

- Pois é...

- No outro dia tin ha um envelope de telegrama amassado.

- É.

- Más notícias?

- Meu pai. Morreu.

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- Sinto muito.

- Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.

- Foi por isso que você recomeçou a fumar?

- Como é que você sabe?

- De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu

lixo.

- É verdade. Mas consegui parar outra vez.

- Eu, graças a Deus, nunca fumei.

- Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...

- Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.

- Você brigou com o namorado, certo?

- Isso você também descobriu no lixo?

- Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de

papel.

- É, chorei bastante, mas já passou.

- Mas hoje ainda tem uns lencinhos...

- É que eu estou com um pouco de coriza.

- Ah.

- Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.

- É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.

- Namorada?

- Não.

- Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.

- Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.

- Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.

- Você já está analisando o meu lixo!

- Não posso negar que o seu lixo me interessou.

- Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que

foi a poesia.

- Não! Você viu meus poemas?

- Vi e gostei muito.

- Mas são muito ruins!

- Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.

- Se eu soubesse que você ia ler...

- Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da

pessoa ainda é propriedade dela?

- Acho que não. Lixo é domínio público.

- Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa

vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte

mais social. Será isso?

- Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...

- Ontem, no seu lixo...

- O quê?

- Me enganei, ou eram cascas de camarão?

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- Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.

- Eu adoro camarão.

- Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...

- Jantar juntos?

- É.

- Não quero dar trabalho.

- Trabalho nenhum.

- Vai sujar a sua cozinha?

- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.

- No seu lixo ou no meu?

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Passeio Noturno

Rubem Fonseca

Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos,

pesquisas, propostas, contratos. Minha mulher, jogando paciência na cama, um copo de

uísque na mesa de cabeceira, disse, sem tirar os olhos das cartas, você está com um ar

cansado. Os sons da casa: minha filha no quarto dela treinando impostação de voz, a

música quadrifônica do quarto do meu filho. Você não vai largar essa mala?, perguntou

minha mulher, tira essa roupa, bebe um uisquinho, você precisa aprender a relaxar.

Fui para a biblioteca, o lugar da casa onde gostava de ficar isolado e como

sempre não fiz nada. Abri o volume de pesquisas sobre a mesa, não via as letras e

números, eu esperava apenas. Você não pára de trabalhar, aposto que os teus sócios não

trabalham nem a metade e ganham a mesma coisa, entrou a minha mulher na sala com o

copo na mão, já posso mandar servir o jantar?

A copeira servia à francesa, meus filhos tinham crescido, eu e a minha mulher

estávamos gordos. É aquele vinho que você gosta, ela estalou a língua com prazer. Meu

filho me pediu dinheiro quando estávamos no cafezinho, minha filha me pediu dinheiro

na hora do licor. Minha mulher nada pediu, nós tínhamos conta bancária conjunta.

Vamos dar uma volta de carro?, convidei. Eu sabia que ela não ia, era hora da novela.

Não sei que graça você acha em passear de carro todas as noites, também aquele carro

custou uma fortuna, tem que ser usado, eu é que cada vez me apego menos aos bens

materiais, minha mulher respondeu.

Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem, impedindo que eu

tirasse o meu. Tirei os carros dos dois, botei na rua, tirei o meu, botei na rua, coloquei

os dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas manobras todas me

deixaram levemente irritado, mas ao ver os pára-choques salientes do meu carro, o

reforço especial duplo de aço cromado, senti o coração bater apressado de euforia.

Enfiei a chave na ignição, era um motor poderoso que gerava a sua força em silêncio,

escondido no capô aerodinâmico. Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que

ser uma rua deserta, nesta cidade que tem mais gente do que moscas. Na avenida Brasil,

ali não podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de árvores

escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente não fazia grande diferença, mas

não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso, isso sempre acontecia, eu

até gostava, o alívio era maior. Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse

menos emocionante, por ser mais fácil. Ela caminhava apressadamente, carregando um

embrulho de papel ordinário, coisas de padaria ou de quitanda, estava de saia e blusa,

Page 17: Contos para o ensino médio

17

andava depressa, havia árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante

problema a exigir uma grande dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela

só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus

batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas,

um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo

os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete rente a

uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o

meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos. Ainda deu para ver que o corpo

todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um

muro, desses baixinhos de casa de subúrbio.

Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve pelos pára-

lamas, os pára-choques sem marca. Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a

minha habilidade no uso daquelas máquinas.

A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está mais calmo?,

perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando fixamente o vídeo. Vou dormir, boa

noite para todos, respondi, amanhã vou ter um dia terrível na companhia.

Page 18: Contos para o ensino médio

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Um Gato à Chuva

Ernest Hemingway

Apenas dois americanos estavam hospedados no hotel. Eles não conheciam

nenhuma das pessoas com quem tinham cruzado pelas escadas, no movimento de ―entra

e sai‖ do quarto. Estavam hospedados no segundo andar, num apartamento que ficava

de frente para o mar e também de frente para a praça e o monumento de guerra. Havia

enormes palmeiras e bancos verdes na praça. Quando o tempo estava bom havia sempre

um pintor com o seu cavalete por lá. Os artistas gostavam das formas das palmeiras e

das cores brilhantes dos hotéis, de frente para os jardins e para o mar. Italianos vinham

de longe para ver o monumento de guerra. Era feito de bronze e reluzia na chuva.

Estava a chover. Gotas de chuva caiam das palmeiras. A água formava poças nos

caminhos de cascalho. O mar quebrava numa extensa linha, na chuva, e deslizava rumo

à praia para retornar e quebrar novamente numa longa linha, repetindo o mesmo

movimento. Os carros já tinham deixado a praça, passando pelo monumento de guerra.

Do outro lado, um garçom olhava a praça vazia, da porta de uma lanchonete. A mulher

americana, de pé, próxima à janela, observava o movimento. Fora do hotel, bem

debaixo da janela deles, uma gata estava encolhida debaixo de uma das mesas verdes

encharcadas. A gata se enroscava para não molhar.

– Eu vou descer e pegar aquela gatinha – disse a mulher americana.

- Deixa que eu cuido disso – o marido falou da cama.

- Não, pode deixar que eu vou. Pobre gatinha, tentando se proteger da chuva debaixo da

mesa. O marido continuou sua leitura, apoiado em dois travesseiros nos pés da cama.

- Não vá se molhar – disse ele.

A mulher desceu as escadas e o dono do hotel levantou-se para a cumprimentar quando

ela passou pelo seu escritório. Ele era velho e muito alto.

- Il piove – a mulher falou. Ela gostava do dono do hotel.

- Si, si, Signora, brutto tempo. O tempo está muito ruim.

Ele ficou de pé atrás de sua mesa, no fundo da sala escura. A mulher gostava

dele. Apreciava o jeito extremamente sério com que ele recebia qualquer reclamação.

Admirava sua dignidade. Gostava do jeito como ele a tratava. Gostava de como ele se

sentia honrado em cuidar do hotel. Gostava de seu rosto velho e marcado pelo tempo, e

de suas mãos grandes. Enquanto pensava nele, ela abriu a porta e olhou para fora. A

Page 19: Contos para o ensino médio

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chuva estava mais forte. Um homem com uma capa de chuva estava atravessando a

praça em direção ao café. A gata deveria estar por perto, à direita. Talvez pudesse ir por

debaixo dos telhados. Ainda estava na porta quando um guarda-chuva se abriu atrás

dela. Era a empregada do quarto deles.

- A senhora não se deve molhar – ela sorriu, falando italiano.

Obviamente tinha sido mandada pelo dono do hotel. A americana andou pelo

caminho de cascalho, com a empregada a segurar o guarda-chuva para que ela não se

molhasse, até que chegou debaixo da janela de seu quarto. A mesa estava lá, com um

verde brilhante após ter sido lavada pela chuva, mas o gato tinha desaparecido. De

repente, ela se sentiu desapontada. A empregada olhou para a hóspede.

- Ha perduto qualque cosa, Signora?

- O gato – disse a mulher americana.

- Um gato?

- Si, il gatto.

- Um gato? – a empregada riu.

- Um gato na chuva?

- Sim – ela disse.

- Debaixo da mesa. Eu queria tanto que ela fosse minha. Queria ter uma gatinha.

Quando ela falou em inglês o rosto da empregada se contraiu.

- Venha signora – ela disse.

- Devemos voltar para dentro. A senhora vai acabar se molhando.

- Está bem – disse a garota americana. Elas voltaram pelo caminho de cascalho e

entraram pela porta. A empregada ainda ficou do lado de fora para fechar o guarda-

chuva. Quando a garota americana passou pelo escritório, o padrone fez um gesto de

cortesia, de sua mesa. A garota sentiu como se houvesse algo bem pequeno e apertado

dentro de si. O padrone fez com que ela se sentisse insignificante e ao mesmo tempo

muito importante. Subiu as escadas. Abriu a porta do quarto. George estava a ler, na

cama.

- Conseguiu agarrar o gato? – ele perguntou, abaixando o livro.

- Não, desapareceu.

- Para onde será que ele foi? – ele perguntou, tirando os olhos do livro. Ela sentou na

cama.

Page 20: Contos para o ensino médio

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- Eu queria tanto aquela gatinha. Nem sei porque queria tanto. Queria aquela pobre

gatinha. Deve ser horrível ser uma gatinha indefesa nessa chuva. George estava lendo

de novo. Ela caminhou e sentou-se na frente do espelho da cómoda, olhando para si

mesma, com um espelho na mão. Estudou seu perfil, primeiro de um lado, depois do

outro. Então estudou a parte de trás de sua cabeça e a sua nuca.

- Você não acha uma boa ideia deixar meu cabelo crescer? – perguntou, olhando

novamente seu perfil. George olhou e viu sua nuca, raspada como a de um garoto.

- Gosto dele como está.

- Estou tão cansada deste cabelo – ela disse. Estou tão cansada de parecer um rapaz.

George mudou de posição na cama. Ainda não tinha desviado os olhos dela desde que

havia começado a falar.

- Você está bem bonitinha – ele falou. Ela colocou o espelho na cómoda e foi para a

janela e olhou para o lado de fora. Estava escurecendo.

- Quero puxar meu cabelo para trás, bem preso e liso, e fazer um coque bem grande para

que eu o sinta. E quero uma gatinha para sentar no meu colo e fazer ronrom quando eu

fizer carinho nela.

- É – George disse da cama.

- E eu quero comer numa mesa com meus próprios talheres e quero velas. E quero que

seja primavera, quero escovar meu cabelo na frente de um espelho e quero uma gatinha

e roupas novas.

- Ora, cale a boca e vá ler alguma coisa – disse George. Ele estava lendo de novo. Sua

esposa estava olhando pela janela. Agora o céu estava bastante escuro e a chuva

continuava caindo nas palmeiras.

- De qualquer modo, eu quero um gato – ela disse

- Eu quero um gato. Quero um gato agora. Se não posso ter cabelos compridos nem uma

distração, posso ter um gato sim. George não estava ouvindo. Estava lendo seu livro.

Sua mulher olhou pela janela e viu que a luz da praça estava acesa. Alguém bateu na

porta.

- Avanti – George disse. Ele levantou os olhos do livro. A empregada estava de pé na

porta. Ela segurava um grande gato malhado, apertado fortemente contra seu corpo.

- Com licença – ela disse – O padrone mandou trazer isso para a Signora.

Page 21: Contos para o ensino médio

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Casa tomada

Julio Cortázar

Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas antigas de

hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as

lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de nossos pais e de toda a nossa infância.

Acostumamo-nos Irene e eu a persistir sozinhos nela, o que era uma loucura,

pois nessa casa poderiam viver oito pessoas sem se estorvarem. Fazíamos a limpeza

pela manhã, levantando-nos às sete horas, e, por volta das onze horas, eu deixava para

Irene os últimos quartos para repassar e ia para a cozinha. O almoço era ao meio-dia,

sempre pontualmente; já que nada ficava por fazer, a não ser alguns pratos sujos.

Gostávamos de almoçar pensando na casa profunda e silenciosa e em como

conseguíamos mantê-la limpa. Às vezes chegávamos a pensar que fora ela a que não

nos deixou casar. Irene dispensou dois pretendentes sem motivos maiores, eu perdi

Maria Esther pouco antes do nosso noivado. Entramos na casa dos quarenta anos com a

inexpressada idéia de que o nosso simples e silencioso casamento de irmãos era uma

necessária clausura da genealogia assentada por nossos bisavós na nossa casa. Ali

morreríamos algum dia, preguiçosos e toscos primos ficariam com a casa e a mandariam

derrubar para enriquecer com o terreno e os tijolos; ou melhor, nós mesmos a

derrubaríamos com toda justiça, antes que fosse tarde demais.

Irene era uma jovem nascida para não incomodar ninguém. Fora sua atividade

matinal, ela passava o resto do dia tricotando no sofá do seu quarto. Não sei por que

tricotava tanto, eu penso que as mulheres tricotam quando consideram que essa tarefa é

um pretexto para não fazerem nada. Irene não era assim, tricotava coisas sempre

necessárias, casacos para o inverno, meias para mim, xales e coletes para ela. Às vezes

tricotava um colete e depois o desfazia num instante porque alguma coisa lhe

desagradava; era engraçado ver na cestinha aquele monte de lã encrespada resistindo a

perder sua forma anterior. Aos sábados eu ia ao centro para comprar lã; Irene confiava

no meu bom gosto, sentia prazer com as cores e jamais tive que devolver as madeixas.

Eu aproveitava essas saídas para dar uma volta pelas livrarias e perguntar em vão se

havia novidades de literatura francesa. Desde 1939 não chegava nada valioso na

Argentina. Mas é da casa que me interessa falar, da casa e de Irene, porque eu não tenho

nenhuma importância. Pergunto-me o que teria feito Irene sem o tricô. A gente pode

reler um livro, mas quando um casaco está terminado não se pode repetir sem

escândalo. Certo dia encontrei numa gaveta da cômoda xales brancos, verdes, lilases,

cobertos de naftalina, empilhados como num armarinho; não tive coragem de lhe

perguntar o que pensava fazer com eles. Não precisávamos ganhar a vida, todos os

meses chegava dinheiro dos campos que ia sempre aumentando. Mas era só o tricô que

distraía Irene, ela mostrava uma destreza maravilhosa e eu passava horas olhando suas

mãos como puas prateadas, agulhas indo e vindo, e uma ou duas cestinhas no chão onde

se agitavam constantemente os novelos. Era muito bonito.

Page 22: Contos para o ensino médio

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Como não me lembrar da distribuição da casa! A sala de jantar, lima sala com

gobelins, a biblioteca e três quartos grandes ficavam na parte mais afastada, a que dá

para a rua Rodríguez Pena. Somente um corredor com sua maciça porta de mogno

isolava essa parte da ala dianteira onde havia um banheiro, a cozinha, nossos quartos e o

salão central, com o qual se comunicavam os quartos e o corredor. Entrava-se na casa

por um corredor de azulejos de Maiorca, e a porta cancela ficava na entrada do salão.

De forma que as pessoas entravam pelo corredor, abriam a cancela e passavam para o

salão; havia aos lados as portas dos nossos quartos, e na frente o corredor que levava

para a parte mais afastada; avançando pelo corredor atravessava-se a porta de mogno e

um pouco mais além começava o outro lado da casa, também se podia girar à esquerda

justamente antes da porta e seguir pelo corredor mais estreito que levava para a cozinha

e para o banheiro. Quando a porta estava aberta, as pessoas percebiam que a casa era

muito grande; porque, do contrário, dava a impressão de ser um apartamento dos que

agora estão construindo, mal dá para mexer-se; Irene e eu vivíamos sempre nessa parte

da casa, quase nunca chegávamos além da porta de mogno, a não ser para fazer a

limpeza, pois é incrível como se junta pó nos móveis. Buenos Aires pode ser uma

cidade limpa; mas isso é graças aos seus habitantes e não a outra coisa. Há poeira

demais no ar, mal sopra uma brisa e já se apalpa o pó nos mármores dos consoles e

entre os losangos das toalhas de macramê; dá trabalho tirá-lo bem com o espanador, ele

voa e fica suspenso no ar um momento e depois se deposita novamente nos móveis e

nos pianos.

Lembrarei sempre com toda a clareza porque foi muito simples e sem

circunstâncias inúteis. Irene estava tricotando no seu quarto, por volta das oito da noite,

e de repente tive a idéia de colocar no fogo a chaleira para o chimarrão. Andei pelo

corredor até ficar de frente à porta de mogno entreaberta, e fazia a curva que levava para

a cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som chegava

impreciso e surdo, como uma cadeira caindo no tapete ou um abafado sussurro de

conversa. Também o ouvi, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do

corredor que levava daqueles quartos até a porta. Joguei-me contra a parede antes que

fosse tarde demais, fechei-a de um golpe, apoiando meu corpo; felizmente a chave

estava colocada do nosso lado e também passei o grande fecho para mais segurança.

Entrei na cozinha, esquentei a chaleira e, quando voltei com a bandeja do

chimarrão, falei para Irene:

— Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos.

Ela deixou cair o tricô e olhou para mim com seus graves e cansados olhos.

— Tem certeza?

Assenti.

— Então — falou pegando as agulhas — teremos que viver deste lado.

Eu preparava o chimarrão com muito cuidado, mas ela demorou um instante para

retornar à sua tarefa. Lembro-me de que ela estava tricotando um colete cinza; eu

gostava desse colete.

Page 23: Contos para o ensino médio

23

Os primeiros dias pareceram-nos penosos, porque ambos havíamos deixado na

parte tomada muitas coisas de que gostávamos. Meus livros de literatura francesa, por

exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene pensou numa garrafa de Hesperidina de

muitos anos. Freqüentemente (mas isso aconteceu somente nos primeiros dias)

fechávamos alguma gaveta das cômodas e nos olhávamos com tristeza.

— Não está aqui.

E era mais uma coisa que tínhamos perdido do outro lado da casa.

Porém também tivemos algumas vantagens. A limpeza simplificou-se tanto que,

embora levantássemos bem mais tarde, às nove e meia por exemplo, antes das onze

horas já estávamos de braços cruzados. Irene foi se acostumando a ir junto comigo à

cozinha para me ajudar a preparar o almoço. Depois de pensar muito, decidimos isto:

enquanto eu preparava o almoço, Irene cozinharia os pratos para comermos frios à

noite. Ficamos felizes, pois era sempre incômodo ter que abandonar os quartos à

tardinha para cozinhar. Agora bastava pôr a mesa no quarto de Irene e as travessas de

comida fria.

Irene estava contente porque sobrava mais tempo para tricotar. Eu andava um

pouco perdido por causa dos livros, mas, para não afligir minha irmã, resolvi rever a

coleção de selos do papai, e isso me serviu para matar o tempo. Divertia-nos muito,

cada um com suas coisas, quase sempre juntos no quarto de Irene que era o mais

confortável. Às vezes Irene falava:

— Olha esse ponto que acabei de inventar. Parece um desenho de um trevo?

Um instante depois era eu que colocava na frente dos seus olhos um quadradinho

de papel para que olhasse o mérito de algum selo de Eupen e Malmédy. Estávamos

muito bem, e pouco a pouco começamos a não pensar. Pode-se viver sem pensar.

(Quando Irene sonhava em voz alta eu perdia o sono. Nunca pude me acostumar

a essa voz de estátua ou papagaio, voz que vem dos sonhos e não da garganta. Irene

falava que meus sonhos consistiam em grandes sacudidas que às vezes faziam cair o

cobertor ao chão. Nossos quartos tinham o salão no meio, mas à noite ouvia-se qualquer

coisa na casa. Ouvíamos nossa respiração, a tosse, pressentíamos os gestos que

aproximavam a mão do interruptor da lâmpada, as mútuas e freqüentes insônias. Fora

isso tudo estava calado na casa. Durante o dia eram os rumores domésticos, o roçar

metálico das agulhas de tricô, um rangido ao passar as folhas do álbum filatélico. A

porta de mogno, creio já tê-lo dito, era maciça. Na cozinha e no banheiro, que ficavam

encostados na parte tomada, falávamos em voz mais alta ou Irene cantava canções de

ninar. Numa cozinha há bastante barulho da louça e vidros para que outros sons

irrompam nela. Muito poucas vezes permitia-se o silêncio, mas, quando voltávamos

para os quartos e para o salão, a casa ficava calada e com pouca luz, até pisávamos

devagar para não incomodar-nos. Creio que era por isso que, à noite, quando Irene

começava a sonhar em voz alta, eu ficava logo sem sono.)

É quase repetir a mesma coisa menos as conseqüências. Pela noite sinto sede, e

antes de ir para a cama eu disse a Irene que ia até a cozinha pegar um copo d'água. Da

porta do quarto (ela tricotava) ouvi barulho na cozinha ou talvez no banheiro, porque a

Page 24: Contos para o ensino médio

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curva do corredor abafava o som. Chamou a atenção de Irene minha maneira brusca de

deter-me, e veio ao meu lado sem falar nada. Ficamos ouvindo os ruídos, sentindo

claramente que eram deste lado da porta de mogno, na cozinha e no banheiro, ou no

corredor mesmo onde começava a curva, quase ao nosso lado.

Sequer nos olhamos. Apertei o braço de Irene e a fiz correr comigo até a porta

cancela, sem olhar para trás. Os ruídos se ouviam cada vez mais fortes, porém surdos,

nas nossas costas. Fechei de um golpe a cancela e ficamos no corredor. Agora não se

ouvia nada.

— Tomaram esta parte — falou Irene. O tricô pendia das suas mãos e os fios chegavam

até a cancela e se perdiam embaixo da porta. Quando viu que os novelos tinham ficado

do outro lado, soltou o tricô sem olhar para ele.

— Você teve tempo para pegar alguma coisa? — perguntei-lhe inutilmente.

— Não, nada.

Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no armário

do quarto. Agora já era tarde.

Como ainda ficara com o relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei

com meu braço a cintura de Irene (acho que ela estava chorando) e saímos assim à rua.

Antes de partir senti pena, fechei bem a porta da entrada e joguei a chave no ralo da

calçada. Não fosse algum pobre-diabo ter a idéia de roubar e entrar na casa, a essa hora

e com a casa tomada.

Filho de pai diplomata, Julio Cortázar nasceu por acaso em Bruxelas, no ano de 1914.

Com quatro anos de idade foi para a Argentina. Com a separação de seus pais, o

escritor foi criado pela mãe, uma tia e uma avó. Com o título de professor normal em

Letras, iniciou seus estudos na Faculdade de Filosofia e Letras, que teve que

abandonar logo em seguida, por problemas financeiros. Para poder viver, deu aulas e

diversos colégios do interior daquele país. Por não concordar com a ditadura vigente

na Argentina, mudou-se para Paris, em 1951. Autor de contos considerados como os

mais perfeitos no gênero, podemos citar entre suas obras mais reconhecidas

―Bestiário‖ (1951), ―Las armas secretas‖ (1959), ), ―Rayuela‖, (1963), ―Todos los

fuegos el fuego‖ (1966), ―Ultimo round‖ (1969), ―Octaedro‖ (1974), ―Pameos y

Meopas‖ (1971), ―Queremos tanto a Glenda (1980), ―Salvo el crepúsculo‖ — póstumo

(1984) e "Papéis inesperados" — póstumo (2010). O escritor morreu em Paris, de

leucemia, em 1984.

O texto acima foi publicado originalmente em "Bestiario" e extraído do livro "Contos

Latino-Americanos Eternos", Bom Texto Editora, Rio de Janeiro — 2005, pág. 09,

organização e tradução de Alicia Ramal.

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Uma vela para Dario

Dalton Trevisan

Dario vem apressado, guarda-chuva no braço esquerdo. Assim que dobra a

esquina, diminui o passo até parar, encosta-se a uma parede. Por ela escorrega, senta-se

na calçada, ainda úmida de chuva. Descansa na pedra o cachimbo.

Dois ou três passantes à sua volta indagam se não está bem. Dario abre a boca,

move os lábios, não se ouve resposta. O senhor gordo, de branco, diz que deve sofrer de

ataque.

Ele reclina-se mais um pouco, estendido na calçada, e o cachimbo apagou. O

rapaz de bigode pede aos outros se afastem e o deixem respirar. Abre-lhe o paletó, o

colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe tiram os sapatos, Dario rouqueja feio, bolhas

de espuma surgem no canto da boca.

Cada pessoa que chega ergue-se na ponta dos pés, não o pode ver. Os moradores

da rua conversam de uma porta a outra, as crianças de pijama acodem à janela. O senhor

gordo repete que Dario sentou-se na calçada, soprando a fumaça do cachimbo,

encostava o guardachuva na parede. Ma não se vê guarda-chuva ou cachimbo a seu

lado.

A velhinha de cabeça grisalha grita que ele está morrendo. Um grupo o arrasta

para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protesta o motorista: quem pagará

a corrida? Concordam chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado à

parede - não tem os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.

Alguém informa da farmácia na outra rua. Não carregam Dario além da esquina; a

farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito peso. É largado na porta de uma

peixaria. Enxame de moscas lhe cobrem o rosto, sem que façam um gesto para espantá-

las.

Ocupado o café próximo pelas pessoas que apreciam o incidente e, agora,

comendo e bebendo, gozam as delícias da noite. Dario em sossego e torto no degrau da

peixaria, sem o relógio de pulso.

Um terceiro sugere lhe examinem os papéis, retirados - com vários objetos - de

seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficam sabendo do nome, idade, sinal de

nascença. O endereço na carteira é de outra cidade.

Page 26: Contos para o ensino médio

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Registra-se correria de uns duzentos curiosos que, a essa hora, ocupam toda a rua

e as calçadas: é a polícia. O carro negro investe a multidão. Várias pessoas tropeçam no

corpo de Dario, pisoteado dezessete vezes.

O guarda aproxima-se do cadáver, não pode identificá-lo - os bolsos vazios. Resta

na mão esquerda a aliança de ouro, que ele próprio - quando vivo - só destacava

molhando no sabonete. A polícia decide chamar o rabecão.

A última boca repete - Ele morreu, ele morreu. A gente começa a se dispersar.

Dario levou duas horas para morrer, ninguém acreditava estivesse no fim. Agora, aos

que alcançam vê-lo, todo o ar de um defunto.

Um senhor piedoso dobra o paletó de Dario para lhe apoiar a cabeça. Cruza as

mãos no peito. Não consegue fechar olho nem boca, onde a espuma sumiu. Apenas um

homem morto e a multidão se espalha, as mesas do café ficam vazias. Na janela alguns

moradores com almofadas para descansar os cotovelos.

Um menino de cor e descalço vem com uma vela, que acende ao lado do cadáver.

Parece morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.

Fecham-se uma a uma as janelas. Três horas depois, lá está Dario à espera do

rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó. E o dedo sem a aliança. O toco de vela

apaga-se às primeiras gotas da chuva, que volta a cair.

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Baleia

Graciliano Ramos

A CACHORRA Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe

em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras

supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços

dificultavam-lhe a comida e a bebida.

Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e

amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia,

sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente,

enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta,

grossa nas base, cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel.

Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a,

limpou-a com o saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer

muito.

Sinhá Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que

advinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta:

- Vão bulir com a Baleia?

Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam-nos,

davam-lhes a suspeita de que Baleia corria perigo.

Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer

não se difereciavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo,

ameaçava cobrir o chiquiro das cabras.

Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas sinhá vitória levou-os para a

cama de varas, deitou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos: prendeu a cabeça do

mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os

pequenos resistissem, aperreou-se e tratou de subjugá-los, resmungando com energia.

Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de

Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.

Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as

pancadas surdas da vareta na bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.

Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como sinhá Vitória tinha

relaxado os músculos, deixou escapar o mais taludo e soltou uma praga:

- Capeta excomungado.

Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade.

Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia de

ramagens.

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Pouco a pouco a cólera diminuiu, e sinhá Vitória, embalando as crianças,

enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento,

babão. Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que

estava sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido

não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável.

Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os dedos.

Sinhá Vitória encolheu o pescoço e tentou encostar os ombros às orelhas. Como isto

era impossível, levantou um pedaço da cabeça.

Fabiano percorreu o alpendre, olhando as barúna e as porteiras, açulando um cão

invisível contra animais invisíveis:

-Ecô! ecô!

Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da

cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a e esfregar as peladuras no pé de

turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se

no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca,

mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a

janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou

de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom

alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e

puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos de Baleia, que se pôs latir

desesperadamente.

Ouvindo o tiro e os latidos, sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos

rolaram na caca chorando alto. Fabiano recolheu-se.

E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da

esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da

cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar

Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou-se aí por um instante, meio

desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.

Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue,

andou como gente em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo.

Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.

Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e

funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos,

e quando se levantava, tinha as folhas e gravetos colados às feridas, era um bicho

diferente dos outros. Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se,

endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteira, mas o resto do corpo ficou deitado de

banda. Nesta posição torcida, mexeu-se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no

chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras

onde os meninos jogavam cobras mortas. Uma sede horrível queimava-lhe a garganta.

Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a

latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latina: uivava baixinho, e os uivos iam

diminuindo, tomavam-se quase imperceptíveis.

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Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e escondeu-se

numa nesga de sombra que ladeava a pedra.

Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e

aproximavase.

Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e

havia nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado

muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a ladeira e

perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade.

Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços

torrados e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se

embotava: certamente os preás tinha fugido.

Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu

diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o

objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis.

Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e

julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto

dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão,

ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.

O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os

dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum tempo,

depois sossegou. Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.

Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol

desaparecera. Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do

chiqueiro espalhou-se pela vizinhança.

Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação

dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir

os meninos. Estranhou a ausência deles.

Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía

a esse desastre a importância em que se achava nem percebia que estava livre de

responsabilidades.

Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar cabras: àquela

hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas.

Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde sinhá Vitória

guardava o cachimbo.

Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio

completo, nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro,

nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas

quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares revelavam-lhe a

presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado.

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Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua

pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que

recebera no quarto e a viagem difícil no barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu

espírito.

Provavelmente estava no cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes

de se deitar, sinhá Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho

de vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro

descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochilos,

numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.

A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do outro peito

para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava,

espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença.

Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente

sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.

Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as

mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com

ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás,

gordos, enormes.

_______________

Fonte: RAMOS, Graciliano. Vidas secas, 82ªed. Rio de Janeiro: Record. 2001. p. 85-91.

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O Primeiro Beijo

Clarice Lispector

Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e

ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.

– Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas

me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele

foi simples:

– Sim, já beijei antes uma mulher.

– Quem era ela? perguntou com dor.

Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.

O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da

garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos

cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto,

sem quase pensar, e apenas sentir – era tão bom. A concentração no sentir era difícil no

meio da balbúrdia dos companheiros.

E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o

barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.

E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida

na boca ardente engulia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a

saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava

agora o corpo todo.

A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio dia tornara-se quente e árida e ao

penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.

E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto?

Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez

minutos apenas, enquanto sua sede era de anos.

Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a

mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada,

penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.

O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre

arbustos estava… o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus

parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de

pedra, antes de todos.

De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde

jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era a

vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora

podia abrir os olhos.

Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era

a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de

que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a

água.

E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A

vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.

Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma

mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida… Olhou a estátua

nua.

Ele a havia beijado.

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Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e

tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou

para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de

seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca

lhe tinha acontecido.

Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração

batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente

nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.

Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a

verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais

sentido: ele…

Ele se tornara homem.