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1 / 27 Rua Tomás Ribeiro 89 – 3.º - 1050-227 Lisboa * Telefone 213 814 100 – Fax 213 870 603 P PARECER DO S S M M M M P P RELATIVO AO PROJECTO DE PROPOSTA DE LEI DE ALTERAÇÃO DO CÓDIGO PENAL (ABRIL DE 2012) 1. Introdução O Ministério da Justiça solicitou a emissão de parecer sobre o projecto de Proposta de Lei que visa alterar pontualmente o Código Penal. As alterações que se propõe efectuar incidem sobre o instituto da prescrição, a natureza do crime de furto simples em determinadas circunstâncias, o crime de falsas declarações relativamente a antecedentes criminais e a criação de um novo tipo legal que criminaliza as falsas declarações prestadas perante autoridade ou funcionário público no exercício das suas funções. De forma a melhor efectuarmos a nossa análise, passaremos a debruçar-nos especificamente sobre cada uma das matérias que o Governo se propõe alterar. 2. Alteração do regime da suspensão da prescrição do procedimento criminal 2.1. Breves considerações sobre o regime da prescrição O legislador português consagrou dois regimes distintos relativamente à prescrição: nos artigos 118.º a 121.º do Código Penal, o regime da prescrição do procedimento criminal; nos artigos 122.º

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PPAARREECCEERR DDOO SSMMMMPP

RREELLAATTIIVVOO AAOO PPRROOJJEECCTTOO DDEE PPRROOPPOOSSTTAA DDEE LLEEII DDEE AALLTTEERRAAÇÇÃÃOO DDOO

CCÓÓDDIIGGOO PPEENNAALL

((AABBRRIILL DDEE 22001122))

1. Introdução

O Ministério da Justiça solicitou a emissão de parecer sobre o projecto de Proposta de Lei que visa

alterar pontualmente o Código Penal.

As alterações que se propõe efectuar incidem sobre o instituto da prescrição, a natureza do crime

de furto simples em determinadas circunstâncias, o crime de falsas declarações relativamente a

antecedentes criminais e a criação de um novo tipo legal que criminaliza as falsas declarações

prestadas perante autoridade ou funcionário público no exercício das suas funções.

De forma a melhor efectuarmos a nossa análise, passaremos a debruçar-nos especificamente sobre

cada uma das matérias que o Governo se propõe alterar.

2. Alteração do regime da suspensão da prescrição do procedimento criminal

2.1. Breves considerações sobre o regime da prescrição

O legislador português consagrou dois regimes distintos relativamente à prescrição: nos artigos

118.º a 121.º do Código Penal, o regime da prescrição do procedimento criminal; nos artigos 122.º

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a 126.º do mesmo código, o regime da prescrição das penas e medidas de segurança. Na marcha

do processo, o primeiro regime aplica-se até ao momento do trânsito em julgado da decisão,

passando o segundo regime a aplicar-se a partir dessa data.

O regime que se pretende alterar é o que regula a prescrição do procedimento criminal.

O Professor Figueiredo Dias1 entende que existem várias razões para que se consagre o instituto da

prescrição do procedimento criminal. Segundo o mesmo «a limitação temporal da perseguibilidade

do facto ou da execução da sanção liga-se a exigências político-criminais claramente ancoradas na

teoria das finalidades das sanções e correspondentes, além do mais, à consciência jurídica da

comunidade». De acordo com este autor, com o tempo a censura comunitária traduzida no juízo de

culpa esbate-se e as exigências de prevenção especial diminuem acentuadamente.

O instituto da prescrição está, pois, intimamente ligado à prevenção geral positiva, uma das

finalidades das penas. Nos termos do artigo 40.º, nº 1, do Código Penal, a aplicação de penas visa a

protecção de bens jurídicas e a reintegração do agente na sociedade. Se o fim das penas visa a

reintegração do indivíduo, não se justifica que as penas possam ser aplicadas após ter decorrido

um prazo temporal muito alargado, pois, por várias circunstâncias, o arguido pode ter alterado

radicalmente o seu modo de vida e a aplicação de uma pena pode não ter justificação nesse

momento.

O nosso legislador optou durante muitos anos por não ratificar a Convenção Europeia sobre a

imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade e os crimes de guerra, celebrada em

Estrasburgo em 25 de Janeiro de 1979, mantendo todos os crimes como passíveis de prescrição do

procedimento criminal2.

Em 1998, a Comissão Revisora do Código Penal considerou que não existiam razões que

justificassem a imprescritibilidade de quaisquer crimes, ainda que de gravidade extrema,

afirmando que só uma visão puramente retributiva poderia acolher tal figura3.

1 Direito Penal Português, Parte Geral, As consequências jurídicas do crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pág.

699 2 Veja-se a este respeito Simas Santos/ Leal Henriques, Código Penal Anotado, Rei dos Livros, Tomo 1, 1997, pág.

824 e Manuel Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado, Almedina, 11ª Edição, 1997, pág. 390. 3 11ª Sessão da Comissão Revisora do Código Penal realizada em 16 de Junho de 1989

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Não obstante tal posição, a Lei n.º 31/2004, de 22 de Julho, adaptou a legislação penal portuguesa

ao Estatuto do Tribunal Penal Internacional, consagrando o seu artigo 7.º a imprescritibilidade do

procedimento criminal pelos crimes de genocídio, contra a humanidade e de guerra.

Assim sendo, neste momento, por regra o procedimento criminal pode prescrever quanto a todos

os crimes, com a excepção dos crimes de genocídio, contra a humanidade e de guerra.

A prescrição traduz-se numa renúncia do Estado ao seu jus puniendi e o lapso temporal em que se

manifesta tal desinteresse é mais ou menos longo consoante a gravidade do crime que tenha sido

praticado. Por essa razão, o artigo 118.º, nº 1, do Código Penal, estabeleceu prazos diferenciados

para a prescrição do procedimento criminal. Como bem referiu o Professor Paulo Pinto de

Albuquerque4 «Tendo decorrido um prazo longo desde a ocorrência do facto criminoso sem que

haja trânsito em julgado da sentença, esfuma-se a carência da pena e, com ela, as necessidades de

prevenção especial e geral da punição».

2.2. Suspensão da prescrição do procedimento criminal – Proposta do Governo

Como regra, nos termos do artigo 119.º, nº 1, do Código Penal, “o prazo de prescrição do

procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado”.

No entanto, o legislador entendeu que existem causas que podem suspender ou interromper a

contagem do prazo prescricional. Se é certo que o instituto da prescrição demonstra um

desinteresse do Estado na punição de um agente, também o é que existem determinadas

circunstâncias em que se considera que o prazo prescricional não deve correr por existirem factos

que demonstram que o Estado continua a querer exercer o seu poder punitivo ou que a falta de

punição se deve a factores imputáveis ao próprio arguido.

Nos casos em que o legislador entendeu que o prazo prescricional fica suspenso, o prazo volta

somente a correr a partir do dia em que cessar a causa de suspensão – cfr. artigo 120.º, nº 3, do

Código Penal. Ou seja, enquanto a prescrição do procedimento criminal se encontrar suspensa é

como se o tempo parasse, não se efectuando assim a contagem do prazo prescricional.

4 Comentário ao Código Penal, Universidade Católica Portuguesa, 2008, pág. 328

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O Governo pretende alterar o regime da suspensão da prescrição aditando uma nova causa de

suspensão do procedimento: a notificação ao arguido de sentença. Para isso, propõe a introdução

de uma nova alínea no n.º 1 do artigo 120.º do Código Penal, e dois números ao mesmo artigo.

A sentença condenatória é uma manifestação inequívoca de que o Estado pretende exercer o seu

poder punitivo e que tem interesse em tal facto.

O que se verifica actualmente é que, em determinadas situações, o procedimento criminal

prescreve após os arguidos terem sido condenados em primeira instância, fruto, muitas das vezes,

do recurso a manobras dilatórias da sua parte (que, não obstante, depois não se coíbem de

manifestar publicamente o seu desagrado, alegando que, por causa da prescrição, não puderam

obter uma decisão de mérito comprovando a sua já presumida inocência, antes permanecendo

sobre eles uma eterna suspeita).

Os Conselheiros Cunha Rodrigues e Laborinho Lúcio já se pronunciaram relativamente à

desadequação do nosso sistema processual penal face a novos perfis de criminosos.

Afirmou lapidarmente Cunha Rodrigues5 que «o direito não evoluiu à medida das transformações

sociais. O sistema de garantias processuais foi pensado para o delinquente dito comum, indivíduo

geralmente pouco alfabetizado, quase sempre desprovido de bens e marginal à sociedade. (…).

Para ele, havia garantias a mais, pois não se prevalecia normalmente de todas as que lhe eram

oferecidas. Com os movimentos de neocriminalização, nomeadamente no domínio da economia, do

ambiente, do consumo e do desporto, e com o reforço da criminalização ligada a actos de poder,

houve uma expansão do processo penal cujo denominador comum é a emergência de um novo tipo

de deliquente, activo, socialmente inserido e, não raro, poderoso. (…) A nova criminalidade deu

lugar a um delinquente que tende a esgotar as garantias do processo.»

Laborinho Lúcio, por seu lado, refere que existe um abuso do sistema das garantias processuais

concedidas aos arguidos, pelo que não há que reduzir as garantias, mas sim sancionar os abusos6.

5 Que futuro para o Direito Processual Penal?, Coimbra Editora, 2009, págs. 153 e 154 6 Levante-se o véu, reflexões sobre o exercício da Justiça em Portugal, Oficina do Livro, 1ª Edição, 2011, pág. 19

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As alterações que se visam introduzir inserem-se precisamente nessa linha, pois são conhecidos os

casos mediáticos em que através de diversos expedientes processuais se pretende fazer com que

ocorra a prescrição do procedimento criminal, nomeadamente pela utilização intensiva do direito

de recurso.

Assim, concorda-se com a criação desta nova causa de suspensão do procedimento criminal.

Porém, defende-se que a mesma não deve ter as limitações temporais ora propostas nos n.ºs 3 e

4 do artigo 120º. do Código Penal, como aliás acontece em legislação estrangeira para situações

similares (v.g. Código Penal Alemão). Em verdade, como a prática recente tem demonstrado, a

possibilidade de sobre tudo recorrer e reclamar é quase ilimitada, pelo que facilmente se concebe

uma situação em que os prazos máximos de suspensão propostos pelo Governo se possam esgotar

sem que seja possível dar como transitada em julgado uma sentença condenatória. Assim, o

propósito que leva o Governo a introduzir esta nova causa de suspensão do procedimento

criminal pode vir a gorar-se, a não ser que não se estabeleça qualquer limite temporal.

2.2. Suspensão da prescrição do procedimento criminal – Proposta do SMMP (contumácia)

Se é certo que defendemos que na situação anterior não deverá existir uma limitação temporal,

entendemos que, no que diz respeito à suspensão da prescrição do procedimento criminal quando

ocorre a declaração de contumácia, a solução deveria ser diferente.

De acordo com o regime legal vigente, quando um arguido é declarado contumaz a suspensão do

procedimento criminal não tem limite temporal, pelo que os processos poderão ficar eternamente

nesse estado. Na prática, esta situação leva a que muitos processos sem qualquer dignidade penal

se vão amontoando nos tribunais, sem que o Estado e muitas vezes os ofendidos tenham qualquer

interesse no exercício da acção penal.

Não é raro nos dias de hoje serem julgados arguidos pela prática de crimes de emissão de cheque

sem provisão que datam dos anos 90 e que dizem respeito a pequenas quantias. O julgamento de

bagatelas penais após ter decorrido tanto tempo desde a data da prática dos factos em nada

dignifica a Justiça e só faz criar pendências artificiais nos tribunais.

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Por outro lado, há processos em que foram declarados como contumazes indivíduos de

nacionalidade estrangeira que nunca virão a ser julgados e que, só com grande dificuldade e

custos, se poderá saber se estão vivos ou mortos. Mesmo os indivíduos de nacionalidade

portuguesa poderão nunca vir a ser julgados, mas aí será mais fácil saber se estão vivos ou mortos.

Deste modo, voltamos aqui a defender7 que deveria existir um prazo máximo durante o qual o

procedimento criminal pudesse estar suspenso por efeito da contumácia. Tal prazo deveria ser

igual ao próprio prazo de prescrição previsto no artigo 118.º, nº 1, do Código Penal, para cada tipo

de crime, que se afigura razoável e permitiria um tratamento diferenciado consoante a gravidade

do crime. Por exemplo, para um crime de furto simples, o prazo máximo durante o qual o

procedimento criminal poderia estar suspenso por efeito da contumácia seriam cinco anos, mas se

estivéssemos a falar de um homicídio esse prazo passaria para quinze anos.

Como tivemos oportunidade de referir na exposição inicial sobre a prescrição do procedimento

criminal, não existem razões de prevenção geral ou especial que expliquem que, por exemplo, um

indivíduo que conduziu um automóvel na via pública sem carta de condução possa ser julgado 30

ou 40 anos depois da prática dos factos (ou mais, pois o único limite é mesmo a morte do

indivíduo, que extingue o procedimento), em virtude de ter sido declarado contumaz.

3. Alteração do regime jurídico do crime de furto simples

3.1. Proposta

O Governo propõe a introdução de um n.º 4 ao artigo 203.º do Código Penal, que passaria a dispor:

Artigo 203.º

Furto simples

1 ………………………………………………………………………………………………………………………………………

2 ………………………………………………………………………………………………………………………………………

7 Esta proposta já consta do documento elaborado e divulgado pelo SMMP em Junho de 2011: 50 medidas para a

Justiça - Mais eficácia com menores custos.

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3 ………………………………………………………………………………………………………………………………………

4 - O procedimento criminal depende de acusação particular quando a conduta prevista no n.º 1 ocorrer em estabelecimento comercial aberto ao público, durante o período normal de funcionamento, relativamente à subtracção de coisas móveis expostas e desde que tenha havido recuperação da coisa ilegitimamente apropriada ou reparação integral dos prejuízos causados, excepto no caso de concurso de duas ou mais pessoas.

A análise da alteração proposta levanta algumas questões que problematizam aspectos de

política-criminal e jurídico-dogmáticos.

A alteração reside sobretudo na mudança da natureza do crime, que de semi-público passa a

particular (por regra, o tipo-base de furto simples tem natureza semi-publica, i.e., o

procedimento criminal depende de queixa do ofendido, cujo regime jurídico quanto à

legitimidade e à tempestividade de exercício têm pressupostos definidos legalmente. No caso

dos crimes de natureza particular, além dos pressupostos referidos, é ainda necessário, à

procedibilidade ou promoção do processo pelo Ministério Público, que o ofendido se constitua

assistente – para o que necessita de estar representado por advogado e de pagar uma UC de

taxa de justiça – e venha a deduzir oportunamente acusação particular).

A exposição de motivos da proposta salienta duas justificações principais para a alteração: por

um lado o carácter bagatelar que assumem os crimes de furto ocorridos em

estabelecimentos comerciais (shoplifting) onde os produtos se encontram expostos ao

público; por outro lado, a «restituição» (sic) da coisa furtada ou a reparação integral do

prejuízo causado como condições da imposição da natureza particular ao crime de furto.

Só assim não será, ou seja, a reunião dessas condições não importará a alteração da natureza

do crime, se para o cometimento do furto tiverem concorrido duas ou mais pessoas (a

justificação remete para a co-autoria como forma de comparticipação - «concertados e em

comunhão de esforços»), salientando que, nesse caso, existe «uma nítida exasperação de

ilicitude e de perigosidade que justifica a intervenção do Estado com a mera apresentação de

queixa do ofendido».

Segundo a Proposta, deve efectuar-se uma distinção entre os furtos efectuados em

estabelecimentos comerciais com objectos expostos ao público e os restantes furtos. Como

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fundamento para a distinção, o Governo entende que o proprietário deve providenciar pela

adequada vigilância que resulta da opção comercial de expor os seus produtos ao público e

que a justiça penal, como última ratio, não deve ser chamada a intervir nestes casos, sem que

o ofendido deduza ele próprio a acusação.

3.2. Considerações genéricas

Entendemos que o Estado deve providenciar pela segurança de todas as pessoas e seus bens.

Os comerciantes, como todos os proprietários, devem zelar pelos seus bens, mas o Estado

deve garantir-lhes o mínimo de segurança que não os obrigue à contratação de vigilantes. Se é

certo que as grandes superfícies e grupos económicos possuem meios que lhes permitem

contratar seguranças, instalar câmaras de vigilância e detectores que previnam que se saia dos

estabelecimentos com produtos ocultos e não pagos (facilmente iludíveis), a generalidade dos

comerciantes não detêm esses meios.

A alteração proposta poderá transmitir uma indesejável mensagem de permissividade face à

prática de furtos.

Compreende-se qual a intenção do Governo ao propor esta alteração, mas existem fundadas

razões de prevenção geral e especial que desaconselham a que o faça.

Como regra, existem duas situações que se verificam quando alguém efectua furtos em lojas

com objectos expostos ao público: se o funcionário/proprietário da loja não detecta que alguém

furtou um determinado objecto, o autor do furto abandona o estabelecimento e, por regra,

nunca é descoberto; se o autor do furto for descoberto e, consequentemente, o objecto for

recuperado, o funcionário/proprietário ficará na situação de ter de proceder ao pagamento de

um advogado e a uma quantia superior a 100 Euros para que o processo possa prosseguir. Se

estivermos perante furtos de objectos até cerca de 100 Euros, não será economicamente

racional para o ofendido decidir-se constituir assistente e suportar os necessários custos.

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Em suma, se o autor do furto não for descoberto evita ser julgado, mas se for descoberto com

grande probabilidade também não será julgado, pelos custos que isso implicará para o dono do

estabelecimento.

Numa altura em que os comerciantes se encontram em grande dificuldade, a introdução de uma

norma deste género poderá acarretar situações muito graves. Note-se que não estamos apenas

perante furtos de pouco relevo, pois o valor das coisas furtadas poderá ir até 5099 Euros.

Acresce que existem muitas pessoas que já neste momento se dedicam de forma profissional à

prática de furtos em lojas e que, com a publicação desta alteração legislativa, terão ainda um

incentivo para aumentar a sua actividade, face à impunidade que se verificará. Há redes que se

dedicam à prática de furtos, sendo apenas um dos envolvidos que entra no estabelecimento e

efectua a subtracção, tendo este indicações expressas para, caso seja detectado e apanhado, se

oferecer para proceder ao pagamento dos objectos furtados, pois sabem que deste modo

desincentivam a apresentação de queixas.

Ora, se, para além de ter de apresentar queixa, o proprietário tiver de suportar o pagamento de

uma taxa de justiça e pagamento de honorários de um advogado, com grande probabilidade

essas pessoas não serão responsabilizadas pelo crime que cometeram.

O Professor Figueiredo Dias refere que o processo penal constitui uma sede privilegiada pelos

legisladores para obter, na prática, resultados de descriminalização indirecta8. No nosso

entendimento, a alteração proposta implicará, na prática, a descriminalização da conduta

quando os objectos forem recuperados. A alteração que se pretende efectuar poderá, na

prática, levar à impunidade dos pequenos furtos, estimulando os autores deste tipo de delitos à

sua prática.

Maurice Cusson9 defende a importância do efeito da dissuasão geral do efeito das penas, não

sobre o condenado, mas sobre aqueles que estariam tentados a seguir-lhe o exemplo. Segundo

8 Criminologia, o homem delinquente e a sociedade criminógenea, 2ª reimpreensão, Coimbra Editora, págs. 418 e

419. 9 Criminologia, Casa das letras, 2ª Edição, págs. 212 a 217

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o mesmo autor, os investigadores verificaram que quanto maior for a probabilidade da pena,

menor é a criminalidade, ou seja, a criminalidade varia na razão inversa da certeza da pena.

Afirma o mesmo autor: «a probabilidade da pena é mantida a um nível razoável, não apenas

para intimidar, mas, em primeiro lugar, porque uma lei frequente e impunemente violada dá a

impressão de já não ser válida».

Se grande parte dos furtos nos estabelecimentos deixarem de ser punidos, poderá dar-se a

impressão de que a lei já não é plenamente válida, o que poderá influenciar negativamente a

taxa de criminalidade dos furtos.

Do ponto de vista económico, de acordo com os dados apresentados pelas empresas de

distribuição, os pequenos furtos ocorridos em supermercados são responsáveis por uma

diminuição significativa do valor dos lucros. Deste modo, para além dos proprietários dos

estabelecimentos ficarem lesados por este tipo de furtos, o Estado Português também ficará

prejudicado, pois deixará de arrecadar as receitas fiscais que resultariam do aumento da receita

fiscal proveniente de um aumento dos lucros.

Na reforma do Código Penal operada no ano de 2007, esteve igualmente em discussão que os

furtos de quantias inferiores a uma unidade de conta passassem a crimes de natureza particular.

Nessa altura, o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público pronunciou-se10 negativamente

sobre a introdução de uma norma deste género, por incentivar a prática de furtos. As

associações representativas dos comerciantes pronunciaram-se também negativamente quanto

a esta medida e demonstraram uma grande preocupação, caso a mesma viesse a ser aprovada.

Após ponderação das consequências práticas da introdução de uma medida que tem

semelhanças com a que agora se propõe, a mesma não foi aprovada na Assembleia da

República.

10 Parecer do SMMP sobre as alterações ao Código Penal (Reforma de 2007) e diversas intervenções em órgãos de

comunicação social.

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Na nossa opinião, como de alguns conceituados autores que se debruçaram sobre esta

matéria11, o Direito Penal e o Direito Processual Penal Português deveriam reorientar-se para as

vítimas dos crimes, pois ao longo de décadas estas foram ficando cada vez mais desprotegidas.

As condutas passaram a ser punidas por representarem uma violação da vontade do Estado, em

vez de se ter em conta essencialmente uma punição pela violação dos direitos das vítimas.

A transformação do crime de furto nas circunstâncias propostas acaba, na verdade, por operar

uma descriminalização substantiva por via da exigência da acusação particular, com todas as

exigências, ónus e encargos patrimoniais que isso representa para os ofendidos/vítimas, um

pouco em contraciclo com a protecção que a ONU, o Conselho da Europa e a UE cada vez mais

conferem à vítima (cf., no âmbito da UE, a D.Q. 2001/220 sobre a posição das vitimas no

processo penal, de 15 Março 2001 JO 2001, L 82/1-4; Directiva 2004/80 relativa à compensação

das vitimas de crimes, de 29 Abril 2004, JO 2004, L 261/15 – 18).

A desprotecção dos comerciantes, sejam eles grandes ou pequenos, tenham ou não meios de

legitima defesa do seu património e do seu negócio, pode ser contraproducente, na medida em

que encoraja a justiça privada, quase sempre com piores resultados, ou na medida em que

contribui para acentuar a anomia social.

Caso se considerem esses obstáculos ou ónus demasiado desproporcionais ou injustificados (o

que pode vir a depender dos custos efectivos a suportar pela vítima), o direito a uma tutela

jurisdicional efectiva pode estar posto em causa e por via disso suscitarem-se dúvidas de

constitucionalidade da alteração proposta.

3.3. Apreciação – notas

3.3.1. Sistematização

11 Veja-se sobre esta matéria a tese de mestrado de Guilherme Costa Câmara publicada sob o tema “Programa de

Política Criminal orientado para vítima do crime”, Coimbra Editora, 2008

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O Governo formula a sua proposta através da introdução de um novo número no artigo 203.º

do Código Penal.

Porém, face aos termos da norma proposta, seria sistematicamente mais correcto introduzir

um novo número no artigo 206.º do Código Penal (que, esse sim, tem por epígrafe «Restituição

e reparação») e/ou um aditamento de um novo número ao artigo 207.º do mesmo Código (que

tem por epígrafe «acusação particular» e trata já da alteração da natureza do crime de furto

simples de semi-público para particular em determinadas circunstâncias).

3.3.1. Restituição vs Reparação

A exposição de motivos refere a «restituição» como condição da privatização do

procedimento. Porém, no texto da alteração proposta consta «recuperação», que tem

significado bem diferente no que respeita ao juízo de censura sobre a conduta criminosa e

sobre o respectivo agente.

A restituição é um comportamento cujo impulso reside no agente do crime: é da sua livre

iniciativa e faz, porventura, indiciar uma diminuição do juízo de censura que sobre ele recai na

medida em que pode revelar um arrependimento efectivo ou se vem a justificar a ponderação

de razões de prevenção geral ou mesmo de prevenção especial, esta com reflexos na

desnecessidade da pena ou de certo tipo de pena, por se prognosticar uma menor capacidade

para delinquir.

No caso da recuperação é indiferente o modo como o bem é recuperado, se a iniciativa é de

terceiro ou do agente do crime, com que esforços, por parte de quem e se dessa recuperação

resulta um juízo de censura sobre a conduta do agente, posterior ao crime ou de desvalor do

resultado que vise premiar uma conduta activa do agente ou não. Além de tudo isso, a

recuperação da coisa móvel subtraída, sendo então distinta da restituição, não fica sujeita à

restrição doutrinal que à restituição era feita para ser considerada total ou parcial com as

consequências jurídicas respectivas (substancial manutenção, na coisa, do conjunto de

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qualidades e de aptidões de uso que possuía no momento do furto ou da apropriação, sob pena

de se considerar apenas como restituição parcial). A recuperação parece que não dependerá,

para ser relevante à luz da alteração proposta, da manutenção da integridade ou da eventual

degradação da coisa subtraída e recuperada, uma vez que recuperar significa reaver o que se

perdeu e tem por centro de imputação o ofendido ou quem em seu nome agir para recuperar

(admitindo-se que a recuperação da coisa subtraída possa incluir o concurso activo do agente

do crime, por via da restituição mais ou menos voluntária). Em todo o caso, parece daqui

resultar uma ligeira e desproporcionada protecção do agente em contraposição à desprotecção

do ofendido ou da vítima face à contingente eficácia ou ineficácia da recuperação indemne da

coisa subtraída.

Deste modo, parece-nos evidente que a proposta não é fiel à exposição de motivos e não

apela ao rigor dos institutos, como é o caso da restituição, que fundamentam a atenuação

especial da pena ou mesmo a extinção do procedimento criminal (por representarem

voluntariedade e espontaneidade do agente com efeitos no juízo de culpa e necessidade da

pena), como no artigo 206.º do Código Penal se prevê, ou que constituem circunstâncias

atenuativas comuns ou gerais, modificativas ou não – artigos 72.º e 73.º do Código Penal.

3.3.2. Momento da Restituição e/ou Reparação

A proposta não estabelece qualquer momento relevante até ao qual a recuperação ou a

reparação integral do prejuízo justifica a natureza particular do crime. Deveria fazê-lo, à

semelhança do que no artigo 206º do Código Penal se estabelece, ou definindo outro momento

em que a recuperação é relevante para os efeitos constantes da proposta – a alteração da

natureza semi-publica do crime de furto simples se ocorrido em estabelecimento comercial e

sem concurso de duas ou mais pessoas – designadamente até ao início do procedimento

criminal. Ao não definir um momento relevante, a qualquer altura do processo se pode vir a

alterar a natureza do crime (por via da recuperação ou da reparação integral dos prejuízos

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causados, o que sempre provoca perturbações na condução do processo e discussões

jurídicas mais ou menos estéreis12.

Ora, além das perturbações que uma verdadeira sucessão de leis no tempo vêm a representar

na condução do processo, vêm a aditar-se outras que decorrem do simples facto de a

recuperação do bem ou a reparação integral dos prejuízos causados não estar associada a um

momento processual relevante ou atendível, seja o início do procedimento criminal, seja outro,

o que pode significar que um furto cometido em estabelecimento comercial sem o concurso de

duas ou mais pessoas venha a implicar apenas a apresentação de queixa por via da natureza

semi-pública do crime (no pressuposto de não se ter verificado recuperação da coisa móvel

subtraída ou reparação integral), mas que pode passar a crime particular assim que a

recuperação ou reparação ocorra. Na base dessas perturbações estará certamente o facto de

se associar a natureza do crime de furto (semi-público ou particular) à recuperação do bem ou

à reparação do prejuízo, o que é verdadeiramente inédito e constitui uma alteração estranha

ao sentido da restituição ou reparação e respectivos efeitos, tal como configurada no artigo

206.º do Código Penal.

3.3.3. Furto Consumado vs Furto Tentado

Na proposta de alteração ao artigo 203.º refere-se que a recuperação é a recuperação «da

coisa ilegitimamente apropriada».

12 Aliás, essas perturbações são desde já antecipáveis por via do regime da sucessão de leis penais no tempo (em sentido material e atendendo à dupla natureza, material e processual, das condições de procedimento penal, designadamente no que respeita à alteração da natureza do mesmo crime). Ter-se-á que optar pelo regime legal mais favorável ao agente e esse é sem dúvida aquele que a proposta de alteração legislativa quer que venha a ser consagrada, pois é a que afecta favoravelmente a posição ou o estatuto do arguido no processo, que virá a ser aplicada de imediato, portanto com retroactividade em relação aos factos cometidos ao abrigo da lei antiga. Essa é a posição maioritária na doutrina e na jurisprudência, sem necessidade de grandes demonstrações, além de ser a que tem respaldo constitucional no artigo 29.º, n.º 1 e n.º 4 da CRP. Os juízos de valor do poder legislativo e político sobre determinados factos e a mutação dos critérios que lhe estão subjacentes não podem violar a protecção da confiança legítima dos cidadãos na manutenção de determinado satus quo, a não ser em seu benefício. Condicionar os poderes de perseguição penal a uma vontade particular que, para ser relevante, terá que suportar ónus tributários e de representação forense no processo através de advogado, entre outros encargos ou obstáculos (cf. as condições legais para a constituição como assistente por parte de ofendido em crime de natureza particular), corresponde a uma valoração, opção e critério de politica legislativa que beneficia o arguido e consubstancia um verdadeiro caso de sucessão de leis processuais-penais no tempo.

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Antecipando o interesse das observações que se seguem, diga-se que quer em caso de

restituição, quer em caso de recuperação da coisa furtada, uma e outra, com diferente

significado, como vimos, pressupõem a consumação do crime. A exposição de motivos apela,

para justificar a diminuição da tutela dos particulares ofendidos (comerciantes ou

estabelecimentos comerciais com bens expostos ao público), que estes devem contrabalançar

os cómodos da sua actividade, com os incómodos de vigiarem ou providenciarem pela

adequada vigilância que a opção de expor os seus produtos ao público porventura exige. Não

distingue a exposição de motivos (nem o teria que o fazer) se essa vigilância é efectuada por

meios pessoais ou por meios técnicos. Além da controvérsia que em termos probatórios o

registo de voz e imagem (ou a videovigilância) recolhido por particulares vem representando

em termos de aquisição e valoração de prova, centremo-nos nos casos em que, além da

disponibilidade desses meios, o comerciante tem vigilantes contratados ou segurança privada.

A doutrina tem considerado, de forma mais ou menos pacífica, que o furto se consuma com a

substituição da posse do proprietário/possuidor pretérito/ofendido pela posse do agente,

posse que para ser relevante tem que ser pacífica (pleno e autónomo domínio sobre a coisa,

com tendencial estabilidade - ablatio). No caso de ainda não o ser – como sucede quando o

agente do furto em estabelecimento é imediatamente perseguido e detido por um segurança

privado que actua em nome e no interesse do comerciante/ofendido – a posse pacífica da coisa

móvel ainda se não verificou e portanto é possível a legitima defesa, por via da actuação do

segurança (pois se assim não fosse não haveria legitima defesa, por não ser actual – antes já

consumada – a agressão ilícita aos interesses juridicamente protegidos de terceiro). Em

resultado da recuperação da coisa móvel ilegitimamente subtraída, mas ainda não apropriada,

a qualificação da conduta deve ser a de tentativa e não a de consumação. A tentativa é punível,

segundo o n.º 2 do artigo 203.º, e, como a proposta de lei apenas prevê a alteração da natureza

do crime de furto quando «ocorrer em estabelecimento comercial aberto ao público, durante o

período normal de funcionamento, relativamente à subtracção de coisas móveis expostas e

desde que tenha havido recuperação da coisa ilegitimamente apropriada», então o furto

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apenas assume natureza particular quando há efectiva consumação por via da apropriação,

sendo que manterá a natureza semi-pública no caso de tentativa.

Parece ser esta interpretação uma decorrência lógica do principio da legalidade penal e que

eventualmente demonstra como a intenção do legislador (revelada na exposição de motivos)

parece ser contrariada por uma interpretação mais rigorosa da proposta de alteração.

Este problema poderia ser parcialmente superado se a expressão “ilegitimamente

apropriada” fosse substituída por “ilegitimamente subtraída”. No entanto, o problema

subsistiria para os casos em que, apesar de se considerar já existir tentativa (cfr. artigo 22.º,

n.ºs 1 e 2, do Código Penal), nem chegasse a existir subtracção.

3.3.4. Comparticipação

Na proposta, a comparticipação na forma de co-autoria (forma que é identificável face às

considerações respectivamente efectuadas na exposição de motivos) exclui a natureza

particular do crime.

Ora, a co-autoria ou qualquer outra forma de comparticipação no cometimento do crime de

furto não deveria ter qualquer relevância como circunstância que altera a natureza do crime,

sobretudo porque se trata de um crime comum em que a comparticipação deverá ser punível e

a respectiva perseguição penal ser realizada em termos também comuns. Ou seja, não há, ao

contrário do que na exposição de motivos se refere, qualquer «nítida exasperação de ilicitude e

de perigosidade que justifica a intervenção do Estado com a mera apresentação de queixa do

ofendido».

A argumentação em que se apoia a exposição de motivos é, pelo menos aparentemente,

contraditória. Por um lado, se o concurso de duas ou mais pessoas representa uma

exasperação da ilicitude e da perigosidade, então tal circunstância deveria implicar uma

alteração do artigo 204.º por via do acrescento de uma nova alínea que consagrasse essa

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circunstância como fundamentando também a qualificação do crime, tal como sucedia no

artigo 297.º, n.º 2, alínea h), do Código Penal de 1982 (antes da revisão de 1995). A reunião de

esforços de duas ou mais pessoas constituía, para os comentadores de então, um maior perigo

para a vítima e uma maior insegurança social, por via do reforço da vontade criminosa numa

vontade colectiva, por assim dizer. Em todo o caso, essa perigosidade ou especial gravidade

teria que ser ponderada em função das circunstâncias do caso e ficar sujeita a ponderação e

discussão judicial por não se considerar de funcionamento automático. Essa circunstância

qualificativa do furto caiu nas sucessivas alterações ao Código Penal, ficando consagrada a

qualificativa consistente na prática do furto por membro de bando destinado à prática

reiterada de crimes contra o património, com a colaboração de pelo menos outro membro do

bando. No entanto, na exposição de motivos agora em apreço, essa perigosidade, que

justificaria uma qualificação da conduta com efeitos na moldura penal e não apenas uma mera

alteração da natureza do crime, está plenamente neutralizada, a nosso juízo, pelo fundamento

que esteve – ele sim - subjacente à proposta de alteração e que é traduzido na consideração de

que «o proprietário deve providenciar pela adequada vigilância que resulta da opção comercial

de expor os seus produtos ao público e a justiça penal, como ultima ratio, não deve ser

chamada a intervir nestes casos, sem que o ofendido deduza ele próprio a acusação».

Vale isto por dizer que a perigosidade que, por um lado, justifica o retorno à natureza semi-

pública do crime de furto, por outro, é desconsiderada por impender sobre a

vítima/comerciante/proprietário o ónus de providenciar pela mobilização dos recursos

necessários que garantam segurança à livre iniciativa de ter expostos os seus produtos ao

público.

O grau de ilicitude da conduta que fundamenta a pena da co-autoria na prática de um crime

tem a sua justificação apenas no artigo 26.º do Código Penal e esgota-se nessa proposição13,

não tendo nada que ver com a justificação político-criminal da natureza dos crimes ou, por

arrastamento, com a pena abstracta cominada para o facto ou com as condições de promoção

13 Cf. PINTO, Frederico Lacerda da Costa. Aspectos da tutela penal do património após a revisão do Código penal.

AAFDL, Lisboa, 1998, pp. 30-31.

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ou procedibilidade penal. Não há razões para que a co-autoria, cujo tipo se encontra na parte

geral e constitui uma cláusula de extensão da tipicidade (como é exemplo o artigo 26º Código

Penal), seja objecto de referência específica no caso do furto para justificar a alteração da

natureza do crime. É inédito, porventura, associar a opção de política criminal normalmente

subjacente à atribuição pelo legislador de natureza pública, semi-publica ou particular aos

crimes a factores conexionados com juízos de ilicitude e perigosidade. Normalmente isso é

aceite e corrente quanto à agravação da pena ou à qualificação do crime com o mesmo

resultado de agravação da pena [ex: o bando como forma especial de co-autoria no artigo

204.º, n.º 2, alínea g)]. Pelo contrário, o juízo sobre a ilicitude na comparticipação há-de

resultar do que estabelece o artigo 28.º ou então não poderá ter qualquer relevância

diferenciadora ou justificadora de opções de política criminal; sendo certo ainda que não deve

nunca a comparticipação comum funcionar como justificadora de regime mais desfavorável ao

arguido, ainda que seja regime processual, mas ainda assim sujeito às regras da aplicação

retroactiva da lei penal mais favorável, como vimos. Cada comparticipante é punido (em

sentido lato) segundo a sua culpa (artigo 29.º do Código Penal) e não segundo a perigosidade

que resulta da actuação conjunta e concertada no cometimento do crime de furto em

estabelecimento comercial ou da ilicitude que essa actuação conjunta e concertada representa,

até pela simples razão de que a perigosidade e a ilicitude na comparticipação num crime

comum é igual à perigosidade e ilicitude na autoria singular, sendo apenas o juízo sobre a culpa

que diferencia cada comparticipante.

Além do que fica exposto, comuns são as situações em que a suposta comparticipação conta

com a intervenção de pessoa inimputável na acção criminosa, quer em razão da idade, quer em

razão de anomalia psíquica, o que pode gerar discussão jurídica sobre o âmbito de aplicação da

norma em causa ou mesmo soluções diferenciadas no âmbito Penal e no âmbito Tutelar.

3.3.5. Um novo tipo de crime?

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A norma proposta declara aplicar-se às condutas prevista no n.º 1 do artigo 203.º do Código

Penal. Porém, caem neste âmbito todas as condutas que se traduzem em subtracção de coisa

móvel alheia com ilegítima intenção de apropriação. Todas, mesmo aquelas previstas no artigo

204.º do Código Penal, pois também nestas há subtracção de coisa móvel alheia com ilegítima

intenção de apropriação (a que acresce depois alguma circunstância qualificativa).

A forma como se pretende consagrar a natureza de crime particular do furto cometido em

autoria singular em estabelecimento comercial aberto ao público, durante o período normal de

funcionamento, relativamente à subtracção de coisas móveis expostas e desde que tenha

havido recuperação de coisa ilegitimamente apropriada ou reparação integral do prejuízo

parece constituir uma forma indirecta de consagração de um novo tipo de crime que pode

colidir com circunstâncias qualificativas do furto.

De facto, perscrutadas as actas da comissão de revisão do Código Penal de 1993 (edição “Rei

dos Livros”), a pp. 508 considerou-se que o crime de furto em supermercado não se confundia

com o furto formigueiro ou por necessidade e que, portanto, não estava assim especificamente

previsto nem na Reforma, nem no direito vigente à data, cabendo portanto no domínio de

aplicação do furto em geral e deixando a questão do furto em supermercados ao abrigo das

normas gerais sobre furtos. Daqui pode concluir-se que a proposta de alteração em apreço, ao

ter em vista um regime específico para o crime em estabelecimento comercial aberto ao

público inova e delimita um novo âmbito incriminatório. Tome-se a exemplo a qualificativa da

alínea f) do n.º 1 do artigo 204.º do Código Penal, que agrava o furto cometido em

estabelecimento comercial onde se tenha entrado ilegitimamente. As grandes superfícies

comerciais, bem como os pequenos estabelecimentos comerciais têm normalmente locais de

armazenagem de bens, também eles expostos, espaços que são normalmente contíguos e

contínuos ao estabelecimento comercial propriamente dito. Uma interpretação restritiva do n.º

4 do artigo 203.º do Código Penal constante da proposta de lei alarga o âmbito da tipicidade e é

por isso tendencialmente desfavorável ao arguido e passível de juízo de inconstitucionalidade.

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Parece assim que podem vir a existir problemas que resultam da eventual colisão entre a

alteração agora proposta e algumas das circunstâncias que qualificam o furto, como a

referida na alínea f) do n.º 1 do artigo 204.º e mesmo a alínea h) do mesmo n.º 1 do artigo

204.º (fazendo da prática de furtos modo de vida). É que o juízo a efectuar nestes possíveis

casos de colisão de normas é o da eficácia obstrutora da qualificação do furto por via da

natureza do crime particular e das condições que o legislador lhe confere para ser relevante, à

semelhança do efeito que é produzido pelo n.º 4 do artigo 204.º do Código Penal (eficácia

obstrutora da qualificação do furto por via do valor diminuto, que funciona como neutralizante

da qualificação).

O mesmo juízo ou preocupação é transponível para os aspectos que relevam para a

importância do valor no crime de furto. Um estabelecimento comercial aberto ao público não

é apenas um supermercado ou uma loja de conveniência. Pode ser e é também uma

ourivesaria, uma loja de aparelhos de alta-fidelidade, que normalmente têm expostos bens de

valor elevado ou mesmo consideravelmente elevado. É nestes casos evidente que a ilicitude é

mais elevada e o dolo do agente é directo (e que não tem equivalente na proposta do Governo

quando, na exposição de motivos, atribui à comparticipação na forma de co-autoria uma

exasperação da ilicitude e do juízo de perigosidade) e deve ser reflectida na medida da pena.

Mas será que o valor elevado ou consideravelmente elevado da coisa móvel exposta em

estabelecimento comercial aberto ao público, durante o período normal de funcionamento,

que venha a ser recuperada ou venha a ser objecto de reparação integral dos prejuízos

causados importa ou não importa para a integração do n.º 4 do artigo 203.º do Código Penal

segundo a proposta de lei; neutraliza ou não neutraliza a qualificativa estabelecida na alínea a)

do n.º 1 e na alínea a) do n.º,º 2 do artigo 204.º do Código Penal?

Parece-nos, pois, que o n.º 4 do artigo 203.º do Código Penal, tal como consta da proposta de

alteração, constitui uma verdadeira e inequívoca norma incriminadora pela consignação legal

do contexto factual em que a coisa é furtada, que, como tal, terá que entrar no jogo de

relações e de concurso de normas que cada caso concreto vier a justificar. Não se conferiu

apenas natureza particular ao crime de furto. Acabou por se conferir teor normativo, que

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delimita a incriminação e é por via desse teor normativo que é concedido ou não à vítima o

direito de decidir se acusa ou não o agente do furto.

3.3.6. Concurso com o Crime de Dano

O crime é particular nas condições da proposta de lei, designadamente em caso de recuperação

da coisa apropriada ou por via da reparação integral dos prejuízos causados. Ora, se

considerarmos que a reparação integral visa indemnizar os casos em que a reconstituição

natural não é possível por via da recuperação, então o âmbito da reparação é mais restrito do

que o que seria desejável, pois o furto pode causar outros danos (porventura incluindo os

danos morais) que importem reparação e não se considerando esses danos abrangidos pela

reparação que equivale ou substitui a recuperação da coisa furtada então teremos um crime a

acrescer ao furto: o crime de dano, que é semi-público e que parece vir a poder parasitar a

intenção do legislador ao proceder a esta efectiva descriminalização substantiva.

3.3.7. Inviabilidade da detenção e do julgamento em processo sumário

O objectivo de desembaraçar a justiça penal dos casos de pequena criminalidade patrimonial

por via da despublicização do direito penal ou por via da privatização do impulso processual –

que em grande parte, por decisão consciente do legislador em desjurisdicionalizar14 (poucas

são as vítimas que se constituem assistentes), vem engrossar o número de crimes que não

chegam ao conhecimento das autoridades – pode não ser totalmente conseguido com a

presente proposta de alteração legislativa.

A sustentar essa consequência, sublinhe-se o facto de, passando o crime a ter natureza

particular, será legalmente inadmissível a detenção em flagrante delito (cfr. artigo 255.º, n.º

4, do Código de Processo Penal) e, consequentemente, não será possível o julgamento em

14 Cf. ALMEIDA, Carlota Pizarro de. Despublicização do direito criminal. AAFDL. Lisboa, 2000, pp. 22 e ss.

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processo sumário (cfr. artigo 381.º, n.º 1, do mesmo Código), boicotando assim soluções de

celeridade e simplificação que têm sido preocupações evidenciadas no âmbito da reforma em

curso do processo penal.

3. 4. Conclusão

Julgamos assim que a proposta apresentada, no que se refere à alteração ao crime de furto,

deve ser reponderada quanto à justificação, razoabilidade e acerto político-criminal e

jurídico-dogmático, não colhendo da parte do SMMP parecer favorável quando à sua

consagração.

4. Falsidade de depoimento ou declaração

O Governo pretende alterar o artigo 359.º, nº 2, do Código Penal, de modo a compatibilizar este

preceito com as alterações que pretende efectuar no Código de Processo Penal.

Na verdade, se se propõe alterar a redacção actual do artigo 141.º, n.º 3, do Código de Processo

Penal, no sentido de o arguido não ser obrigado a responder com verdade aos seus antecedentes

criminais quando é interrogado, não se justifica que a conduta continue a ser criminalizada.

O SMMP não tem objecções de fundo a esta alteração, desde que, como referido com maior

detalhe no parecer sobre as propostas de alteração do Código de Processo Penal, seja garantido

um sistema eficaz e actualizado de registo criminal, disponível a todo o tempo, o que hoje não

sucede.

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5. Falsas declarações

5.1. A Proposta pretende aditar ao Código Penal o crime de falsas declarações nos seguintes

termos:

Artigo 348.º-A

Falsas declarações

1 - Quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções, identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, será punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa.

2 - Se as declarações se destinarem a ser exaradas em documento oficial o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa.

De acordo com o preâmbulo da proposta, o crime de falsas declarações deixa de se confinar às

declarações que são recebidas como meio de prova em processo judiciário ou equivalente para

passarem a constituir ilícito criminal sempre que as falsas declarações sejam prestadas perante

autoridades oficiais e se destinem a produzir efeitos jurídicos, dando-se conteúdo normativo às

múltiplas remissões feitas na legislação avulsa para este tipo de crime.

5.2. Como regra, as declarações prestadas a autoridades públicas ou funcionários no exercício das

suas funções dão origem a documentos. O artigo 348.º-A, n.º 2, da proposta, que se pretende

aditar ao Código Penal refere expressamente a punição de declarações falsas que se destinarem a

ser exaradas em documentos oficiais. Caso as declarações falsas sejam vertidas num documento,

temos de equacionar se o agente poderá ser punido em concurso efectivo pela prática de um crime

de falsificação de documento e falsas declarações.

Na nossa opinião, a resposta terá de ser negativa.

A primeira questão que se coloca ao analisar a introdução deste novo tipo de crime passa por saber

se a punição de algumas das condutas desvaliosas que se visam punir não estarão já previstas no

Código Penal, designadamente no artigo 256.º, n.º 1, alínea d), do código mencionado, quando as

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declarações falsas são feitas constar em documento. O tipo de crime previsto no artigo 256.º do

Código Penal pune a falsificação material, mas também a falsificação intelectual e em

documento15.

Refere Helena Moniz16 «Na falsificação intelectual integram-se todos aqueles casos em que o

documento incorpora uma declaração falsa, uma declaração escrita, integrada no documento,

distinta da declaração prestada. Por seu turno, na falsidade em documento integram-se os casos

em que se presta uma declaração de facto falso juridicamente relevante; trata-se, pois, de uma

narração de facto falso.»

Em legislação anterior já existiu um tipo de crime autónomo que punia a falsificação indirecta

(artigo 233.º, n.º 2, do Código Penal de 1982, antes das alterações de 1995), mas o que se punia

era o facto do funcionário ter sido colocado em erro por atestar facto falso, cuja atestação era da

sua competência.

Helena Moniz afirmou17 que «não existe, pois, actualmente no sistema jurídico português nenhum

tipo legal de crime que puna o terceiro que se serve do funcionário de boa fé para inserir no

documento elementos inexactos ou falsos. E quanto a nós correctamente, visto que a actividade de

falsificação irá ser integrada no tipo legal de crime que temos vindo a analisar, e apenas a indução

em erro parece não ser punida».

Maia Gonçalves18 considerou que no artigo 256.º do Código Penal se previram todos os tipos de

falsificação, em todos os documentos, condensando vários crimes de falsificação que se

encontravam dispersos em vários artigos do Código Penal de 1886.

Os tribunais têm condenado como crimes de falsificação algumas das situações previstas no artigo

que ora se pretende aditar. No entanto, a definição de quais as condutas que são criminalmente

relevantes para efeitos do disposto no artigo 256.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal, é das matérias

que levantam maiores divergências na jurisprudência. Existem muitas situações em que se fizeram

15 Helena Moniz, Código Penal Conimbricense, Tomo 2, Coimbra Editora, 1999, pág. 676 16 Código Penal Conimbricense, Tomo 2, Coimbra Editora, 1999, pág. 676 17 Código Penal Conimbricense, Tomo 2, Coimbra Editora, 1999, pág. 679 18 Código Penal Português Anotado, Almedina, Coimbra, 11º Edição, 1997, págs. 743 e 744

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constar factos falsos em documentos autênticos, na sequência de declarações falsas prestadas por

arguidos, e a jurisprudência entendeu que tal acção não configurou a prática de um crime de

falsificação ideológica de documento. O âmbito do artigo que se pretende introduzir é mais vasto

do que o crime de falsificação de documentos ora previsto, pois o n.º 1 do artigo 348.º-A prevê

declarações que se destinam a produzir efeitos jurídicos, mas que não constarão em documentos.

Por outro lado, como existe desde logo uma punição das declarações falsas, alguns dos casos que a

jurisprudência tem entendido que não punidos como crime de falsificação poderão ser punidos

com base nesta norma.

5.3. A consagração deste artigo poderá esclarecer algumas situações numa matéria que levantou

logo polémica na Comissão Revisora do Código Penal em 3 Abril de 199019 e até consagrar, na

prática, uma extensão do crime de falsificação de documento. No entanto, caso se entenda

consagrar um novo tipo de crime, entendemos que a pena a aplicar ao mesmo deveria ser idêntica

ao do crime de falsificação de documento e conjugado com o crime de falsificação ideológica de

documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal. Caso tal não

aconteça, com grande probabilidade nos julgamentos os arguidos passarão a defender que factos

que actualmente se subsumem ao crime de falsificação ideológica previsto de acordo com as

disposições conjugadas dos artigos 256.º, n.ºs 1, alínea d), e n.º 3, do Código Penal, passem a

integrar o n.º 2 do novo artigo, uma vez que a pena é substancialmente inferior (no primeiro crime

mencionado a pena máxima é de 5 anos de prisão e no segundo, de 2 anos de prisão).

5.4. Temos ainda de tecer alguns comentários sobre o conceito de documento oficial previsto no

artigo 348.º-A, n.º 2, e o facto das declarações falsas só relevarem quando forem prestadas

perante autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções.

De acordo com o artigo 363.º do Código Civil, os documentos são classificados unicamente como

autênticos, autenticados e particulares, pelo que entendemos que a referência deve ser efectuada

19 Os Professores Figueiredo Dias e Costa Andrade questionaram que a alínea que previa a falsificação ideológica

ficasse no mesmo tipo da falsificação material de documentos - Actas da Comissão Revisora, 26ª Sessão.

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tendo em conta este conceito por uma questão de maior rigor jurídico e por forma a evitar

discussões sobre o conceito de documento oficial.

Atenta a definição do que é um documento autêntico (artigo 363.º, n.º 2, do Código Penal),

entendemos que a expressão “documento oficial” deverá ser substituída por “documento

autêntico”.

5.5. No que diz respeito ao facto das declarações só relevarem quando forem prestadas perante

autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções, importa concretizar qual o

âmbito de aplicação da norma.

A inserção sistemática do preceito no capítulo dos crimes contra a autoridade, à primeira vista

poderia dar a entender que foi estabelecido um conceito restrito de entidades a quem a prestação

de falsas declarações poderia relevar criminalmente. Sucede que, de acordo com o preâmbulo da

proposta, as falsas declarações passam a relevar quando sejam prestadas perante autoridades

oficiais e se destinem a produzir efeitos jurídicos, pelo que parece que foi adoptado um conceito

lato de autoridade pública. Aliás, só assim se justifica a última parte do preâmbulo onde se refere

que se pretende proteger a autonomia intencional do Estado e dar-se conteúdo normativo às

múltiplas remissões feitas na legislação avulsa para este tipo de crime.20

A remissão genérica de algumas normas dispersas pelo nosso ordenamento jurídico para o crime

de falsas declarações tem dado origem a decisões dos tribunais superiores que entendem que esta

remissão é inconstitucional por violar o princípio da legalidade21, uma vez que não existe o crime

para o qual a norma remete. A intenção da proposta de abranger várias normas dispersas que

fazem referência ao conceito de falsas declarações leva-nos assim a concluir que se pretende

consagrar a prática de um crime perante um regime amplo de entidades.

20 A título exemplificativo o artigo 97º do Código de Notariado dispõe que “os outorgantes são advertidos que

incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público, se dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura”.

21 Veja-se a este respeito o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07.12.2011, proferido no âmbito do Processo 66/08.5JAPDL, relator Juiz Desembargador Carlos Almeida.

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Em suma, apesar de entendermos que a norma em causa deve ser compatibilizada com o regime

do crime de falsificação de documentos, somos da opinião que a sua introdução é positiva.

6. Conclusões

Face ao escasso tempo permitido, são estes os comentários que o SMMP tem a fazer ao projecto

de Proposta de Lei de alteração do Código Penal apresentado.

Num resumo muito simplista, poderemos dizer que o SMMP concorda com a criação da causa de

suspensão do procedimento criminal, embora defenda que não deve ter qualquer limite; discorda

da alteração proposta ao crime de furto; concorda com a eliminação do crime de falsas declarações

relativamente a antecedentes criminais por parte do arguido e com a criação de um novo tipo legal

que criminaliza as falsas declarações prestadas perante autoridade ou funcionário público no

exercício das suas funções.

Propõe ainda o SMMP a criação de um prazo máximo para a suspensão do procedimento criminal

com fundamento na contumácia.

* * *

Lisboa, 3 de Maio de 2012

A Direcção do

Sindicato dos Magistrados do Ministério Público