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Ações afirmativas e inclusão Nº 18 Dezembro de 2007 R$ 2,00 Constituição & Democracia C&D Dois aprendizados sobre igualdade racial Retrato colorido: universidade em cores Entrevista: Timothy Mulholland, reitor da UnB

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Boaventura de Sousa Santos

Esta frase, pronunciada peloRei de Espanha, dirigindo-seao Presidente Hugo Chávez

durante a XVII Cimeira Iberoameri-cana, corre o risco de ficar na histó-ria das relações internacionais co-mo um símbolo das contas por sal-dar entre as potências ex-coloniza-doras e as suas ex-colónias. Não seimagina um chefe de Estado euro-peu a dirigir-se nesses termos pu-blicamente a um seu congénere eu-ropeu quaisquer que tenham sidoas razões do primeiro para reagir àsafirmacões do último. Como qual-quer frase que intervém no presen-te a partir de uma história não re-solvida, esta frase é reveladora a di-ferentes níveis.

Revela a dualidade de critériosna avaliação do que é ou não demo-crático. Está documentado o envol-vimento do primeiro-ministro deEspanha, José Maria Aznar, no gol-pe de Estado que em 2002 tentoudepor um presidente democratica-mente eleito, Hugo Chávez, com aagravante que na altura a Espanhapresidia à União Europeia. ParaChávez, Aznar, ao actuar desta for-ma, comportou-se como um fascis-ta. Pode questionar-se a adequaçãodeste epíteto. Mas haverá tanta ra-zão para defender as credenciaisdemocráticas de Aznar, como fezpateticamente Zapatero, sem se-quer denunciar o carácter antide-mocrático desta ingerência? Have-ria lugar à mesma veemente defesase o presidente eleito de um paíseuropeu colaborasse num golpe deEstado para depor outro presidenteeuropeu eleito? Mas a dualidade decritérios tem ainda uma outra ver-tente: a da avaliação dos factoresexternos que interferem no desen-volvimento dos países. Zapaterocriticou aqueles que invocam facto-res externos para encobrir a sua in-capacidade de desenvolver os paí-ses. Era uma alusão a Chavez e àsua crítica do imperialismo norte-americano. Podem criticar-se os ex-cessos de linguagem de Chávez,

mas não é possível fazer esta afir-mação no Chile sem ter presenteque ali, há trinta e quatro anos, umpresidente democraticamente elei-to, Salvador Allende, foi deposto eassassinado por um golpe de Esta-do orquestrado pela CIA e porHenry Kissinger. Tão pouco é possí-vel fazê-lo sem ter presente que ac-tualmente a CIA tem em curso asmesmas tácticas usando o mesmotipo de organizações da “sociedadecivil” para destabilizar a democra-cia venezuelana.

Tanto Zapatero como o Rei fica-ram particularmente agastados pe-las críticas às empresas multinacio-nais espanholas (busca desenfrea-da de lucros e interferência na vidapolítica) feitas, em diferentes tons,pelos presidentes da Venezuela, Ni-carágua, Equador, Bolívia e Argenti-na. Ou seja, os presidentes legíti-mos das ex-colónias foram manda-dos calar mas, de facto, não se cala-

ram. Esta recusa significa que esta-mos a entrar num novo períodohistórico, o período pós-colonial,um período longo que se caracteri-zará pela afirmação mais vigorosana vida internacional dos paísesque se libertaram do colonialismoeuropeu, assente na recusa das do-minações neocoloniais que persis-tiram para além do fim do colonia-lismo. Isto explica porque é que afrase do Rei de Espanha, destinadaa isolar Chávez, saiu pela culatra.Pela mesma razão têm falhado astentativas da UE para isolar Rober-to Mugabe.

Mas “¿porqué no te callas?” éainda reveladora a outros níveis.Saliento três. Primeiro, a desorien-tação da esquerda europeia, simbo-lizada pela indignação oca de Zapa-tero, incapaz de dar qualquer usocredível à palavra “socialismo” etentando desacreditar aqueles queo fazem. Pode questionar-se o “so-

cialismo do século XXI” - eu pró-prio tenho reservas e preocupaçõesem relação a desenvolvimentos re-centes na Venezuela - mas a esquer-da europeia deverá ter a humildadepara reaprender, com a ajuda dasesquerdas latinoamericanas, a pen-sar em futuros pós-capitalistas.

Segundo, a frase espontânea doRei de Espanha, seguida do acto in-solente de abandonar a sala, mos-trou que a monarquia espanholapertence mais ao passado da Espa-nha que ao seu futuro. Se, como es-creveu o editorialista de El País, oRei desempenhou o seu papel, éprecisamente este papel que mais emais espanhóis põem em causa, aoadvogarem o fim da monarquia,afinal uma herança imposta pelofranquismo. Terceiro, onde estive-ram Portugal e o Brasil nesta Cimei-ra? Ao mandar calar Chávez, o Reifalou em família. O Brasil e Portugalsão parte dela?

24 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | DEZEMBRO DE 2007

Ações afirmativas e inclusão

Nº 18Dezembro de 2007

R$ 2,00 Constituição & DemocraciaC&DPorqué no te callas?Dois aprendizados

sobre igualdade racialRetrato colorido:

universidade em coresEntrevista: Timothy

Mulholland, reitor da UnB

A importância de entender direitoEDITORIALOObbsseerrvvaattóórriioo ddaa CCoonnssttiittuuiiççããoo ee ddaa DDeemmooccrraacciiaa

Final de ano é sempre tempo de balanço e analise de realiza-

ções. Esta edição, derradeira de 2007, a de número dezoito, é

exemplo de um ano frutífero dentro da proposta deste Observa-

tório da Constituição e da Democracia: ampliar o debate sobre

as leis, sobre a Constituição e a vida da sociedade brasileira, propor no-

vos rumos ao debate das idéias, promover a inclusão, a igualdade e a

justiça social. Enfim, tematizar a relação entre direito e democracia. Em

várias edições fechamos nosso foco em temas especiais, como a ques-

tão indígena, direito e arte, e a questão da memória. Foram edições que

aprofundaram discussões, sem fugir ao nosso sentido maior, o de acres-

centar diferentes visões de mundo ao dia-a-dia da prática do direito e

da democracia. Na defesa de todos esses valores este número aborda

uma questão central: o papel de ações afirmativas como políticas de in-

clusão, na luta pela integração das mais distintas camadas da socieda-

de brasileira - uma questão, aliás, na qual a Universidade de Brasília foi

pioneira no âmbito do ensino superior. Para este ponto, chama-se a

atenção para a entrevista do reitor da UnB, Timothy Mulholland. Em

2008, quando celebraremos 20 anos da Constituição Federal, aprofun-

daremos ainda mais a nossa observação participativa.

Grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e DireitoFaculdade de Direito – Universidade de Brasília

02 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | DEZEMBRO DE 2007 CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | DEZEMBRO DE 2007 UnB – SindjusDF | 23

GGrreevvee ccoommoo ddiirreeiittoo ffuunnddaammeennttaallJJoosséé GGeerraallddoo ddee SSoouussaa JJúúnniioorr -- Professor da Faculdade de Direito da UnB, membro dosgrupos de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua, da UnB e daComissão de Defesa da República e da Democracia, do Conselho Federal da OABCCrriissttiiaannoo PPaaiixxããoo -- Professor da Faculdade de Direito da UnB. Integrante dos grupos depesquisa Sociedade, Tempo e Direito e Direito achado na rua. Procurador do Ministério Público do Trabalho em Brasília 0033

EEdduuccaaççããoo ppaarraa ttooddooss ee eennttrree ttooddooss:: oo pprroocceessssoo rreeccíípprrooccoo ddaa ffoorrmmaaççããoo ssuuppeerriioorrLLoouussssiiaa MMuussssee FFeelliixx -- Professora da Faculdade de Direito da UnB, mestre em Direito (PUC-RJ)e doutora em Educação (UFSCAR), membro da Comissão do Programa Internacional deBolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford e coordenadora Latino-Americana na área de Direito do Projeto ALFA-Tunning 0044

AAss aaççõõeess aaffiirrmmaattiivvaass ee ddeessiigguuaallddaaddeess rraacciiaaiissFFrraanncciissccoo LLuucciiaannoo ddee AAzzeevveeddoo FFrroottaa -- Juiz do Trabalho 0066

CCrrôônniiccaa ddee ddooiiss aapprreennddiizzaaddooss ssoobbrree iigguuaallddaaddee rraacciiaallFFaabbiioo MMoorraaiiss ddee SSáá ee SSiillvvaa -- Advogado, mestre pela UnB; doutorando em Direito,Política e Sociedade na Northeastern University (Boston, EUA).MMiicchheellllee MMoorraaiiss ddee SSáá ee SSiillvvaa -- Bacharel em relações internacionais, mestre pelo Institute of Social Studies (A Haia, Holanda); doutoranda em Educação Comparada e Internacional na Columbia University (Nova Iorque, EUA).

0088RReettrraattoo ccoolloorriiddoo oouu aa UUnniivveerrssiiddaaddee eemm CCoorreess

DDaammiiããoo AAllvveess ddee AAzzeevveeddoo -- Advogado, mestre em Direito pela UnB, membro do grupo de pesquisas Sociedade, Tempo e Direito 1100

EEnnttrreevviissttaa:: TTiimmootthhyy MMuullllhhoollaanndd,, rreeiittoorr ddaa UUnniivveerrssiiddaaddee ddee BBrraassíílliiaaAAççããoo AAffiirrmmaattiivvaa:: ccoommpprroommiissssoo ccoomm aa iinncclluussããooJJoosséé GGeerraallddoo ddee SSoouussaa JJúúnniioorr 1122

EEdduuccaaççããoo iinncclluussiivvaa ee ooss ppoorrttaaddoorreess ddee nneecceessssiiddaaddeess eessppeecciiaaiissSSiillvviiaa RReeggiinnaa PPoonntteess LLooppeess -- Procuradora Federal, professora de Direito Público,membro do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito 1144

OOBBSSEERRVVAATTÓÓRRIIOO DDOO JJUUDDIICCIIÁÁRRIIOOAAççããoo aaffiirrmmaattiivvaa ee aa CCoonnssttiittuuiiççããoo

CCaarrllooss AAllbbeerrttoo RReeiiss ddee PPaauullaa -- professor adjunto da UnB e ministro do Tribunal Superior do Trabalho 1166

OOBBSSEERRVVAATTÓÓRRIIOO DDOOSS MMOOVVIIMMEENNTTOOSS SSOOCCIIAAIISSJJuuddiicciiáárriioo ee LLeeii MMaarriiaa ddaa PPeennhhaa:: ggrriittooss nnoo pprriivvaaddoo,, ssiillêênncciioo nnoo ppúúbblliiccoo

SSoorraaiiaa ddaa RRoossaa MMeennddeess -- Mestre em Ciência Política pela UFRGS, pós-graduada em Direitos Humanos pelo CESUSC, professora da Faculdade de Direito da UniDF e UnB 1188

OOBBSSEERRVVAATTÓÓRRIIOO DDOO LLEEGGIISSLLAATTIIVVOOPPaallaavvrraass ee ssiillêênncciiooss

JJoorrggee LLuuiizz RRiibbeeiirroo ddee MMeeddeeiirrooss -- Advogado, mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB, professor Universitário - UniCEUB e IESB 2200

OOBBSSEERRVVAATTÓÓRRIIOO DDOO MMIINNIISSTTÉÉRRIIOO PPÚÚBBLLIICCOOPPoollííttiiccaass ddee iinncclluussããoo ee aaççõõeess aaffiirrmmaattiivvaass

LLuuiizzaa CCrriissttiinnaa FFoonnsseeccaa FFrriisscchheeiisseenn -- Procuradora Regional da República, Bacharel em Direitopela UERJ, Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP e Doutora em Direito pela USP 2222

AA iimmppoorrttâânncciiaa ddee eenntteennddeerr ddiirreeiittooPPaauulloo RReennáá ddaa SSiillvvaa SSaannttaarréémm -- Bacharel em direito pela UnB, servidor do Tribunal Superiordo Trabalho e integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito 2233

PPoorrqquuéé nnoo ttee ccaallllaass??BBooaavveennttuurraa ddee SSoouussaa SSaannttooss -- Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra 2244

EXPEDIENTE

Caderno mensal concebido, preparado eelaborado pelo Grupo de PesquisaSociedade, Tempo e Direito (Faculdade de Direito da UnB – Plataforma Lattes do CNPq).

CoordenaçãoAlexandre Bernardino CostaCristiano PaixãoJosé Geraldo de Sousa JuniorMenelick de Carvalho Netto

Comissão de redaçãoAdriana Andrade MirandaGiovanna Maria FrissoJanaina Lima Penalva da SilvaLeonardo Augusto Andrade BarbosaMariana Siqueira de Carvalho OliveiraMarthius Sávio Cavalcante LobatoPaulo Henrique Blair de OliveiraRicardo Machado Lourenço Filho

Integrantes do ObservatórioAlex Lobato PotiguarAline Lisboa Naves GuimarãesBeatriz Cruz da SilvaCarolina PinheiroDamião AzevedoDaniel Augusto Vila-Nova GomesDaniel Barcelos Vargas

Daniela DinizDouglas Antônio Rocha PinheiroEduardo RochaFabiana GorensteinFabio Costa Sá e Silva Fernanda-Cristinne Rocha de PaulaGuilherme Cintra GuimarãesGuilherme ScottiGustavo Rabay GuerraHenrique Smidt SimonJan Yuri AmorimJean Keiji UemaJorge Luiz Ribeiro de MedeirosJuliano Zaiden BenvindoLaura Schertel Ferreira MendesLúcia Maria Brito de OliveiraMaurício Azevedo AraújoPaulo Rená da Silva SantarémPaulo Sávio Peixoto MaiaPedro DiamantinoRamiro Nóbrega Sant´AnaRenato BigliazziRosane LacerdaSilvia Regina Pontes LopesSven PeterkeVanessa Dorneles SchinkeVitor Pinto Chaves

Projeto editorialR&R Consultoria e Comunicação Ltda

Editor responsávelLuiz Recena (MTb 3868/12/43v-RS)

Editor assistenteRozane Oliveira

DiagramaçãoGustavo Di Angellis

IlustraçõesFlávio Macedo Fernandes

[email protected]

SindPD-DF

Sindicato dos Bancáriosde Brasília

Assine C&[email protected]

Paulo Rená da Silva Santarém

Se ninguém pode alegar o des-conhecimento da lei em bene-fício próprio, o que dizer da

incompreensão? No Brasil, o Códi-go Penal e a Lei de Introdução aoCódigo Civil rejeitam a ignorânciacomo desculpa para quem não se-guir as normas vigentes. A idéia égarantir que a mesma justiça valhaigualmente para todo mundo. To-davia, nada mais injusto que aobrigação de viver segundo uma leique não é compreendida, ou me-lhor, que dezenas de milhões debrasileiros sejam submetidos a re-gras enigmáticas.

Na origem das grandes codifica-ções modernas, uma das primeirasquestões foi a língua a ser usada.Para constituírem um corpo orgâ-nico de princípios, definições econceitos, os textos deviam ter con-teúdo claro, conciso e compreensí-vel. Pela primeira vez optou-se pe-las línguas nacionais em vez do tra-dicional latim, para que toda a po-pulação estivesse em condição decompreender as leis e a linguagemdo direito. As pessoas comuns, ago-ra destinatários do direito, podiamconfiar em uma proteção jurídicacontra a insensatez cotidiana, espe-cialmente contra as arbitrariedadesdo próprio Estado.

Mas os teóricos da época, na ân-sia iluminista pelo ideal da verdade,a ser atingida pelo caminho únicoda razão humana, preocupavam-secom o grau de ciência do direito.Mais que traduzir os conceitos dodireito romano, era necessário forjartermos precisos que permitissemdefinições jurídicas adequadas àcomplexidade do direito positivomoderno. Por isso, a linguagem dou-trinária manteve-se pedante e com-plicada. E como as normas apenaspodiam ser explicadas sob a autori-dade dos detentores dos conheci-mentos técnicos, o direito, mesmodespido do latim, continuou nebu-loso aos olhos leigos.

Há uma linha que divide o conhe-cimento e a compreensão. Saber lernão garante o entendimento do sig-nificado de artigo de lei, ou de umparecer, resolução, súmula, regimen-to etc. E, mais profundo, entre os

próprios “iniciados” nos mistériosdo juridiquês, um mesmo direito es-crito se abre para a construção deopiniões muito diferentes.

Se as pessoas divergem quantoao que seja ou não justo, pode-seafirmar que não se obedece às leisporque são justas, e sim porque sãopostas, porque foram elaboradaspor um processo legítimo, atual-mente, por votações próprias da de-mocracia representativa. Mas mes-mo o conhecimento e a compreen-são da letra do direito não são deter-minantes para a formação da con-sciência do indivíduo. Em um exem-plo simples, saber da velocidademáxima de uma via não força aspessoas a assumir o limite comocorreto. Na outra face da moeda, pa-ra o direito é irrelevante a opiniãoindividual do infrator, bastando o fa-to objetivo da transgressão da nor-ma para que incida a multa. E issonão se limita às normas do Códigode Trânsito.

As noções de certo e errado nãosão unívocas, nem dentro de ummesmo grupo. Por isso, o grau dejustiça de uma norma não dependede ela estar na lei, mas de escalasde valores que variam na socieda-de. Para proteger o futuro dos peri-gos vividos no passado, hoje conta-se com direitos humanos que cris-talizam um ideal de justiça marca-do pela dignificação dos indiví-duos. Mas no contexto de umaaplicação quase indiferente dasnormas, ao mesmo tempo em quese confere uma expectativa de jus-tiça social, dificulta-se a materiali-zação desses direitos.

A restrição das legitimidade paraquestionar o direito limita o númerodos que se sentem destinatários dasregras postas. Se a idéia de uma nor-ma é difundir um mesmo parâmetrode moralidade, mais que surreal, étragicômica a ficção segundo a qualbasta disponibilizar o acesso ao tex-to das leis para que qualquer umpossa alterar suas idéias de justo einjusto e, por meio de um saber pré-vio do direito, manipular o próprioagir. O ordenamento acaba fundadonuma piada triste, e por isso não élevado a sério.

A evolução do direito, inclusivesua democratização, dependeu

muito da pressuposição de que seupoder não poderia ser barrado pelodesconhecimento. Mas a concreti-zação de qualquer intenção jurídicaseria menos arriscada se abando-nada essa mentalidade unicamentecoercitiva, em benefício de umapostura de reprodução do direito.Relembrar as condições problemá-ticas em que tiveram origem seriaum bom caminho para diminuir aspossibilidades de sua não aplica-ção, ou abuso Uma cultura de co-municação difusa sobre a gênesedas proteções legais permitiria a to-dos defender o habeas corpus co-mo meio de proteger um inocentesubmetido a arbitrariedades do po-der polícia; a liberdade de expres-são como instrumento contra umgoverno falacioso; e o devido pro-cesso legal como caminho de supe-ração da lei do mais forte.

Os mais fortes, que estão no ladode cima da relação de poder, sen-tem-se confortáveis até o momentoirônico em que se sentem ameaça-dos pela insurreição dos mais fracos.E num momento de crise da rela-ções sociais, recorrer ao direito co-mo forma de proteção não é sufici-ente. A condenação de uma pessoa adécadas de prisão não lhe embutesociabilidade nem desfaz a perda deum ente querido, assim como o pa-gamento de uma indenização mo-netária não tem o condão de recu-perar os diversos danos causadospor anos de condições de trabalho

insalubres.Não se pode mais sustentar a ilu-

são de que o direito promove o re-torno temporal à situação anterior erepare o desgaste social decorrentede sua não-aplicação. Menos arris-cado é fomentar o conhecimento doconteúdo das normas. Não porqueele encerre uma essência justa, cujaclareza leve inevitavelmente à suaaplicação. Mas porque por trás decada norma positivada há um moti-vo. E se, uma vez compreendido, omotivo de uma norma se mostrardemocrático e estiver de acordocom a Constituição, fica mais fácilaceitar viver segundo suas disposi-ções. Por outro lado, uma vez revela-da uma prática mesquinha de merojogo de armar, a própria sociedadenão tem mais condições de aceitar asubmissão de todos a um governocomprometido apenas com o inte-resse de poucos.

O acesso ao direito depende deum tal acesso à linguagem em queele é produzido que altere o própriomodo de produção. Não se trata dereescrever todos os códigos, tradu-zindo expressões tradicionais dodireito para o português cotidiano.Mas se a efetivação dos preceitosconstitucionais e demais normaslegais se tornar mais viável pormeio de uma cultura de conheci-mento do direito, não há razão de-mocrática que justifique a subsis-tência de uma rede de mistérios nofuncionamento das leis.

Cristiano Paixão e José Geraldo de Sousa Junior

Desde que a greve surgiu co-mo direito coletivo, forçasde segurança são mobiliza-

das para monitorar, controlar eeventualmente reprimir o movi-mento. No Brasil, essa situação éparticularmente comum. Ao mesmotempo em que estabelecia a organi-zação sindical e o aparato institucio-nal voltado à tutela das relações detrabalho, o Estado Novo limitoudrasticamente o exercício do direitode greve. No período posterior a1946, o panorama não se alterou demodo substancial. Ainda que a legis-lação permitisse, em alguns casos, aparalisação dos serviços, persistiaaquele pano de fundo autoritárioque associava a deflagração de umagreve a um problema de segurançapública. Este terá sido, certamente,um obstáculo à institucionalização,no Brasil, de uma cultura da greve.Ao contrário de outras comunidadespolíticas (a França talvez seja o me-lhor exemplo), no Brasil não se esta-beleceu uma mentalidade coletivaque observasse a greve como umacomunicação de reivindicações a setraduzir no espaço urbano, a se rea-lizar na rua.

No regime militar, a greve foi rapi-damente inserida na ilegalidade -por meio da previsão de procedi-mentos de impossível implementa-ção para tornar qualquer paralisaçãolegal. A lei que vigorou nos anos daditadura era conhecida como “lei an-ti-greve”. Numa passagem histórica,Victor Nunes Leal afirmou que a leinão poderia exigir do operário queele desempenhasse o papel de heróiou soldado a serviço do patronato.Num determinado momento, os lí-deres que se arriscavam a deflagraruma manifestação paredista eramenquadrados na Lei de SegurançaNacional. Nunca havia sido tão ex-plícito o vínculo estabelecido entre atentativa de exercício de um direitosocial por definição e a mobilizaçãodo aparato repressivo estatal.

Esse padrão continuou a vigorarem tempos posteriores. As greves doABC, em fins da década de 1970 einício dos anos de 1980, foramacompanhadas e combatidas pelasForças Armadas. As assembléias demetalúrgicos eram interrompidaspelos vôos rasantes de helicópterosmilitares. Como uma espécie de me-mória perversa dessa associação en-tre greve e repressão, já no períodode redemocratização houve maisuma repressão violenta de movi-mento paredista: em 1988, três tra-balhadores foram mortos por tropasdo exército que invadiram o prédioda CSN, em Volta Redonda, em meioa uma greve.

Com a promulgação e vigênciada Constituição de 1988, a greve foierigida à condição de direito funda-mental, elemento central da própriaidéia de mobilização coletiva queenvolve a dinâmica das relações detrabalho. Uma lei de greve foi rapi-damente promulgada par ao setorprivado e se iniciou o longo - e pou-co qualificado - debate em torno doexercício do direito de greve dos ser-vidores públicos. Alguns setores detrabalhadores empreenderam gre-ves que atraíram a atenção da socie-dade, com resultados diversos: pe-troleiros, bancários, professores uni-versitários do sistema federal e tra-balhadores no setor de transportesem todo o Brasil, entre outros.

Porém, recentemente começou atomar corpo um movimento naclasse empresarial brasileira, queganhou imediata repercussão namídia e recebeu calorosa acolhidaem alguns tribunais. Trata-se da uti-lização de expedientes jurídicosmúltiplos como forma de inviabili-zar o exercício do direito de greve.Esse movimento se iniciou com aJustiça do Trabalho, que, desde a dé-cada de 1990, passou a estabelecerpatamares mínimos de funciona-mento de serviços essenciais, queacabavam por minar a própria mo-bilização típica de qualquer movi-mento paredista. Na última greve do

metrô em São Paulo, foi proferidadecisão determinando que os trensfuncionassem com 85% de sua ca-pacidade em horários de pico.

Mas a reação à greve suplantou oslimites da Justiça do Trabalho. A par-tir da greve nacional dos bancáriosocorrida em 2004, as instituições fi-nanceiras passaram a ajuizar, de for-ma maciça, ações em que se postula-vam interditos proibitórios contra ossindicatos de trabalhadores, que nãopodiam avançar além de determina-da distância fixada pela Justiça Co-mum. Vários sindicatos de bancáriosestão ameaçados pela execução demultas superiores a um milhão dereais, que ameaçam o patrimônio e asaúde financeira das entidades sin-dicais. A partir dessa greve dos ban-cários, outras empresas (como in-dústrias e concessionárias de rodovi-as) passaram a utilizar os interditosproibitórios como forma de impedira mobilização do sindicato por meioda deflagração de uma greve. Emtempos recentes, um juiz federal de-

cretou a abusividade do movimentogrevista da Infraero, ressaltando o di-reito dos usuários do sistema detransporte aéreo brasileiro.

Esses casos revelam que a re-pressão a um direito não precisamobilizar forças de segurança ar-madas (muito embora elas tenhamsido largamente empregadas nagreve dos bancários). Basta a utili-zação arbitrária de instrumentosdo direito comum e processual ci-vil para estabelecer uma vedaçãoreal ao exercício do direito de gre-ve. É a negação do direito pelo di-reito, demonstrada pelo esqueci-mento da perspectiva histórica queconsagra a greve como direito fun-damental. E, em última análise, éuma estratégia sub-reptícia de des-constitucionalização de direitos,subtraindo do trabalhador, públicoou privado, o dispositivo constitu-cional que lhe atribui a decisão so-bre a oportunidade de exercício esobre os interesses que pretendapor meio da greve defender.

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | DEZEMBRO DE 2007 UnB – SindjusDF | 0322 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | DEZEMBRO DE 2007

Políticas de inclusão eações afirmativas

Luiza Cristina Fonseca Frischeisen

Muito se fala de da exclusãosocial em nosso país, quaisseriam suas causas e políti-

cas possíveis para que grupos da so-ciedade brasileira historicamenteexcluídos do acesso a bens e direi-tos que a Constituição Federal pre-vê como universais na nossa socie-dade, pudessem exercer melhor asua cidadania.

É verdade que nosso país tem de-sigualdades sociais e regionais e quepolíticas universais como a melhoriado ensino público como um todocontribui para a diminuição de taisdesigualdades. Entretanto, existemdesigualdades que devem ser com-batidas com políticas específicas pa-ra determinado grupo tido comovulnerável face aos grupos majoritá-rios ou mais favorecidos de uma de-terminada sociedade.

Essas políticas são conhecidascomo ações afirmativas, que são umconjunto de ações que pode ser dire-tamente implementado pela legisla-ção ou incentivado a partir de umprograma estabelecido e que temcomo objetivo superar desigualda-des de grupos específicos no acessoa bens, direitos e serviços considera-dos essenciais em uma determinadasociedade.

Em vários países europeus, açõesafirmativas foram implementadaspara a defesa dos direitos das mulhe-res quanto ao acesso ao mercado detrabalho. Neste caso, a adoção de po-lítica de ação afirmativa consiste emeliminar as desigualdades que afe-tam as mulheres na sua vida, no tra-balho e destina-se a promoção deum melhor equilíbrio entre os sexosno emprego. Procura também in-centivar a presença da mulher nosaltos níveis de responsabilidade, afim de obter o melhor uso de todosos recursos humanos.

As ações afirmativas pressupõemuma renúncia do Estado e das insti-

tuições a uma neutralidade baseadano princípio da igualdade jurídico-formal, pois para promover a igual-dade material é necessária uma atu-ação voltada para os grupos mais ex-cluídos e vulneráveis da sociedade.

As ações afirmativas não ferem odireito à igualdade, pois este signifi-ca aplicar a mesma norma a pessoasque se encontram em uma mesmasituação básica, havendo diferençasna situação-base, normas diferentespoderão ser aplicadas.

Em nosso país, a Constituição Fe-deral prevê em seu artigo 37, incisoVII, ação afirmativa em relação àspessoas portadoras de deficiênciaquando ao acesso às concursos pú-blicos, prevendo que nos editais deconcursos haverá um a percentualreservado àqueles, que, em regra

tem sido de 5% . Sendo certo que oEstatuto do Servidor Público CivilFederal prevê também que essa re-serva não poderá superar 20%.

Para a iniciativa privada, a Lei nº8212/1991 em seu artigo 93 prevêque as empresas devem ter entre 2%e 5% de trabalhadores portadores dedeficiência de acordo com o númerode total de empregados.

Nos últimos anos, universidadespúblicas brasileiras, com base noprincípio constitucional da autono-mia na sua administração, passarama estabelecer ações afirmativas nassuas regras de ingresso relativamen-te a grupos diversos, como estudan-tes oriundos de escolas públicas,que se declarem negros e/ou pardos(segundo critérios do IBGE) ou indí-genas. Cada universidade em razão

da formação da população local e doque considera mais benéfico paracontar com a diversidade de alunosem seus quadros, tem adotado re-gras próprias, algumas adotam siste-ma de acréscimo de pontos (como aUnicamp), outras como a UNB, a re-serva de vagas para os candidatosque se declaram negros, outras situ-adas em estados com grande popu-lação de povos indígenas tem pro-gramas específicos para a formaçãode professores indígenas destinadosà educação destas comunidades.

Vê-se, portanto, que as ações afir-mativas são políticas dentre as váriasque podem e devem ser adotadaspara combater a exclusão social degrupos vulneráveis, que podem vari-ar de país para país. O importante éconstruir mais igualdade.

A repressão à greve e oapagamento da Constituição

OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO