MENELICK. A Hermenêutica Constitucional e os Desafios postos aos Direitos Fundamentais

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    4 JURISDIO CONSTITUCIONAL E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

    TROTIGNON, Pierre. Heidegger. Lisboa: Edies 70,1990.VIEHWEG, Theodor. Tpica e jurisprudncia. Trad. de Trcio Sampaio Ferraz Jr.Braslia: Departamento de Imprensa Nacional, 1979.ZARADER, Marlne. Heideggere as palavras da origem. Lisboa: Instituto Piaget1990.

    A HERMENUTICA CONSTITUCIONALE OS DESAFIOS POSTOS AOS D IREITOSFUNDAMENTAIS

    M enelick de Carvalho Netto

    Em sua palestra, A Crise da Herm enutica e aHermenutica da Crise o Prof. Lnio Streck enfocou o Di-reito Constitucional como vida. E, realmente, o Direito Cons-titucional vida; ou vida ou no na da. Norberto Bobbio,no seu A Era Dos Direitos afirma que a histria do DireitoConstitucional uma histria de promessas no cumpridas.Exatamente por isso, a atual doutrina do Direito unnimeem requerer que o Direito em geral e, em espec ial, o DireitoConstitucional selam uma efetividade viva, isto , que se tra-duzem-na vivncia cotidiana de todos ns. Os direitos funda-mentais, tal como os entendemos hoje, so o resultado de umprocesso histrico tremendamente com plexo, como pude-mos ver na brilhante exposio do Prof. Marcelo Ga luppo,O Qu e So os Direitos Fundam entais, que retoma a traje-tria do labor filosfico, jurdico e poltico que buscouontologiz-los fornecendo distintos fundamentos elaboradose reelaborados nesse mesm o e nico processo de sua afirma-* Doutor em Filosofia do Direito pela UFMG. Professor dos cursos de Graduao

    e Ps-Graduao da UFMG.

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    o e negao histrica. Fundamentos q ue se acreditaramdefinitivos e que, hoje, revelam-se frgeis, requerendo queos compreendam os como con quistas histricas discursivasque, embora estruturalmente inafastveisdo processo-dereproduo diuturna da sociedade mo derna, por si ss, noso definitivas, ao contrrio, encontram-se, elas prprias,em permanente risco de serem m anipuladas e abusadas.Vimos a fragilidade da fundamentao que, em nossapoca, podemos plausivelmente oferecer noo de direi-tos fundamentais e, claramente, prefiro essa expresso outra, direitos humanos, por entend-los conquistas histri-cas, aquisies evolutivas socialmente criadas, direitosinstitucionalizados em uma sociedade improvvel, comple-xa. Na modernidade, vivemos em um a sociedade instvel,uma sociedade que se alimenta de sua prpria instabilidade,uma sociedade absolutamente imp lausvel. O antroplogoLevi Strauss, na segunda dcada do sculo XX , j questi-onava a pretensa superioridade dessa sociedade, colocandoem xeque a idia m esma de desenvolvimento, ao afirmarque ela produz infelicidades no somente para os seus mem-bros, mas a sua mvel estrutura relacional predatria esten-de-se tambm ao seu entorno ambiental, pois sempre in-satisfeita, inadequada, e da a sua permanente mutabilidade.Levi Strauss contrapunha essa nossa sciedade moderna sociedade dita primitiva, s sociedades tribais. E foi assimque, ao estudar tribos indgenas amaznicas, Levi Straussquestionou a postura tradicionalmente assumida pelos an-troplogos diante das sociedades tribais, pois, ao estudar oque eles prprios denominavam "sociedades primitivas", pres-supunham a inferioridade tanto da mente daque las pessoasquanto daquela cultura, bem como, claro, a superioridadede sua prpria m ente e de sua cultura ocidental, tornando-se absolutamente incapazes de apreender o alto grau decomplexidade sempre presente na mente humana e nas dis-tintas experincias culturais. Eles no viam, por exemplo,que, ao contrrio da nossa sociedade, aquelas eram socie-dades bem adaptadas ao entorno, capazes de produzir

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    estabilidade e incluso sociais e, dessa sorte, a felicidadede seus mem bros. Em qual sentido ns poderamos legiti-mamente nos considerar uma sociedade superior, desen-volvida? Na capacidade de produzir rdios de pilha, com-putadores, produtos de consumo de toda a ordem? E qualseria o nosso desenvolvimento em termos do que chama-mos incluso social? Uma sociedade indgena, diz LeviStrauss, em termos da integrao social de seus mem bros,possibilita algo muito maior, muito mais desenvolvido - a sa-tisfao no reconhecimento do papel social desempenhado porcada um na comunidade. Vivemos em uma sociedade da insa-tisfao, pois se possvel, por um lado, descrevera socieda-de moderna, e por outro, a nica certeza que podemos ter emrelao ao seu futuro, cientificamente, o fato de ela se tornarcada vez mais complexa e sempre mais rapidamente.

    Trata-se de um tipo de sociedade que requer um graurecorrentemente mais alto de complexidade para a sua pr-pria reproduo, uma sociedade, portanto, insatisfeita con-sigo mesma. Desde o seu nascimento, uma sociedade que-se diferenciai aue se especializa para poder se reproduzirnum grau de com plexidade to grande que exigiu a inven-o dos direitos humanos dos direitos fundament ais; re-quereu --firmao a um s tempo paradoxal -e estrutrl-mente mvel do reconhecimento recproco da igualdade eda liberdae de todos os seus memb ros ou seja , tornou ,plausvel e exigiu a idia de que somos pela primeira vez nahistria uma sociedade na qual nos reconhecemos comopessoas iguais porque ao mesmo tem po livres . Livres parasermos i crentes, um a vez que somos diferentes, plurais, \'-em dotes e potencialidades desde o nascimento e nos reco-nhecemos o direito de sermos diferentes e de exercermosas nossas diferenas, _ou seja, de sermos livres e de exer-cermos nossas liberdades. E, ainda assim, ou melhor, pre-cisamente or ,-nos res citamos como iguais.

    Essa, igualdade na diferena a grande tenso inova-dora que a sociedade moderna inaugura em nossos camposde interesse, o do Direito e o da poltica, em razo de seu

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    prprio processo interno de diferenciao. Neste processocolocou-se a exigncia de uma tal ordem de complexidadeque a religio no mais pde continuara ser vista como umelemento unitario e necessariamente compartilhado por -do oc membros da comunidade como basicamente constitutivoda coeso social, como nas sociedades tradicionais, tornan-do-se agora apenas direito individual de cada um dos ses`integrantes considerados de forma plural e atomstica.A poltica e o Direito so vivencialmente sentidos e teo-ricamente reconstrudos como problemas seculares, a seremresolvidos, nos espaos pblicos, secularmente por ns, ho-

    {1 c. e- mens como cidados, para que, ao mesmo tempo, pudsse-mos ser sujeitos de Direito, protegendo assim, publicamente,o espao privado de cada um. Adota-se, como bvio, o su-posto, absolutamente improvvel, segundo o qual, com vista produo e reproduo da sociedade, teramos de noscolocar de acordo sobre tudo em todos os momentos. Ora, a

    produo e a reproduo dessa sociedade altamente cmpljtornou- se possve l no pela nossa efetiva e permanenteparticipao nas c le-eises pblicas mas ao contrrio comodemonstra Niklas Luhmann por um processo interno de- di-ferenciao e esp lo funcionais-da sociedade em di-versos subsistemas sociais. Vivemos em uma sociedade detal ordem complexa que ela prpria criou monstros _^ara ga-rantir a sua produo e reproduo . Uma sociedade que fun-ciona graas a esses monstros inventados na mesma pocaem que a noo de direitos naturais passa a ser rS ou ida_pela exigncia lgico - racional do reconhecimento recprocode que somos universalmente livres e iguais mor nascimento.So o mercado o Estado o Direito enfim toda uma sriede subsistemas esnecializgdos e funcionalmente diferencia-dos que garantem a reproduo social pelas nossas costas.Sistemas que podem fazer com que os sentidos que preten-demos dar a determinadas aes venham a ser na prticainvertidos do avesso . Corremos esse risco a todo momento.

    Aqui eu_gostari de comear a tratar explicitamente daquesto ls desafios postos hoje aos direitos fundamentais.

    O primeiro e grande desafio a meu ver sabermos que^sepor um lado os direitos fundamentais promovem a inclu-so social , por outro e a um s tempo produzem exclusesfundamentais. A qual uer afirma o de direitos correspondeuma dlimitao ou seja corresponde ao achamento docorpo daqueles titulados a esses direitos demarcao docampo inicialmente invisvel dos excludos de tais ireitos-A nossa histria constitucional no somente comprova issocma- a ta que repos tu lem os auesto da identi a'constitucionaLcomo um processo permanente em que severi ica uma constante tenso extremamente rica e comple-xa entre a incluso e a excluso e que ao dar visibilidade excluso permite a organizao e a luta pela conquista deconcepes cada vez mais complexas e articuladas da afir-mao constitucional da igualdade e _da liberdade de todos.Este um desafio compreenso dos direitos fundamen-tais ; tom-los como algo permanentemente aberto, ver aprpria Constituio formal como um processo permanen-te e portanto mutvel de afirmao da cidadania.-A am eaa aos direitos fundam entais por inter-mdio das leis de combate ao terror - a inglesa da dcadade oitenta e a norte-americana bem mais recente - umadas questes centrais do debate constitucional de nossosdias. E a comparao dessas leis nas distintas tradies cons-titucionais dos dois pases recoloca a necessidade de refle-tirmos acerca da importncia que a formalidade constituci-onal deve assumir ao lado e concomitantemente com a exi-gncia de materialidade, de concre tude, dos direitos consti-tucionais na vida cotidiana de todos ns. Ou seja, tambmaqui coloca-se mais uma vez a imperatividade de umareabord_gem teortica que supere o enfoque dicotmicosimplista e antinmico tpico da_ tica moderna clssica -Constituio formal x Constituio material J tivemos ocasiode oferecer m enfoq m ais complexo das dicotomias ci-ncia e filosofia, pblico e privado, e agora tambm temosde ver a relao de complementaridade e de interdependnciarecproca que entre si guardam esses dois opostos, forma e

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    matria, em termos constitucionais. Precisamos pensar essasrelaes de forma mais complexa do que a reduo ao anta-gonismo procedida pela modernidade desde o seu incio ata dcada de 196 0/1970. A concepo m aterial de Consti-tuio como realidade viva, concreta, orgnica de cada povo,como prope Carl Schmitt, por exemplo, contra a viso clssica,universal e formal de Constituio do perodo constitucionalanterior, o do paradigma do Estado de D ireito, foi a tnicavigente sob o paradigma do Estado Social, ao se redescobrir,tecer louvores e erigir condio modelar a C onstituiomaterial e vivencial britnica, como se a formalidade e, conse-qentemente, a universalidade abstrata a ela vinculada notivessem a menor relevncia.

    Como bem salientou em sua palestra o Prof. MarceloGaluppo, por um lado, os direitos humanos em abstrato nadasignificam, pois precisam da densificao da tica e daefetividade que tanto o D ireito quanto a poltica precisamlhes emprestar. O Direito, por intermdio da positivao des-ses direitos em normas gerais e abstratas, transforma-os emdireitos fundamentais e permite que a poltica, mediante asua forma moderna do Estado, com todo o seu aparato bu-rocrtico-funcional, venha emprestar-lhes coercibilidade efetivaem nossa vida cotidiana. A poltica e o D ireito, por outrolado, na modernidade, precisam do insumo de legitimidadeque somente os direitos fundamentais podem lhes fornecer.

    Assim, se, enfocadas por determinado ngulo so asmodernas exigncias morais, abstratas e universais, da igual-dade e da liberdade de todos que ganham maior densidade econcretude ao serem incorporadas tanto )eios usos, costu-mes e tradies da experincia vivida dos distintos povos, ou-seja, pela eticidade, quanto pelos diversos ordenamentos ju- rdicos modernos, ou seja, pelo Direito, pela legalidade, quantoainda pela poltica, ganhando a etetrvi a e a imperatvidadeestatal. Se enfoeac^a^ e outro ngulo, podemos ver que soessas exigncias, agora j transformadas em direitos funda-.mentais-por sua incorporaro ao D ireito, que fornecem osinsumos bsicos de legitimidade de credibilidade institucional,

    indis ensveis ao bom funcionamento do Direito e da polti-lex _ --^_cai mp --sociedade moderna. mais enriquecidos peloNeste passo, podemos retornar, j aquele dapercurso trilhado at aqui, ao nosso problema inicial, aes de Constituio formal e de^ epcontraposio entre as conConstituio material, tomadas como idias antagnicas.De um lado, a concepo formal, universal, de Cons-

    tituio como uma constituio ideal,existncia de direitosonha da peloliberalismo, declarando ade igualdade e de liberdade inatos a todos e estabelecendoas bases da organ izao poltica de m odo a transform-la,ameaa ao livre exerccio dessesestruturalmente, de umagarantia do seu livre curso na sociedade Vdireitos em uma g que deveria ,Y ^civil. A Constituio que deveria ser perfeita, Jy^funcionar como o mec anismo de um relgio. O nico pro-no entanto, que, na vida real, as constituies factveisblema,eram imperfeitas, no eliminavam problemas, ao contrrio,tamento jurdico oucriavam problemas a exigirem ou tracuidado poltico. Os homens daquele perodo, no entanto,teimavam em crer na possibilidade de uma Constituio ra-cional, perfeita, capaz de p ermitir sociedade "funcionarcomo um relgio" por si s. Acreditavam, em sua inocnciahistrica, ser possvel a Constituio perfeita que traduziriamecanicamente a verdade universal e evidente dos direitosracionais, inegveis a qualquer ser humano, reconhecendo-os, internalizando-os e garantindo-os nas prprias bases da

    organizao poltica. O problema residiria apenas em queela ainda no havia sido feita.Na outra vertente contraposta, to antiga quanto a pr-pria idia moderna de Constituio, tipicamente caracters-tica, no entanto, do constitucionalismo social do sculo XX,encontramos a concepo material de Constituio. Carl Schmitt,traduz claramente as cren-nstituio sua T eoria da oaas de sua poca em conceitos ao atacar a idia de universa- ^^^lidade da Constituio, de uma constituio ideal, de direi-tos humanos u niversais. Segundo Sc hmitt, abstraes, semdvida, teis sociedade burguesa politicamente censitria

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    e excludente do sculo XIX que visava neutralizar o risco doEstado e garantir, atravs de poucas leis gerais e abstratas, olivre desenvolvimento das propriedades de cada um. Idiasque agora, para Schmitt, revelam-se completamente inteise visivelmente desviantes tendo em vista a sociedade de massasque emerge no final da segunda dcad a do sculo XX. 0sufrgio universal requer que a poltica seja vista como aarte de manipular as massas mediante a construo de umaidentidade constitucional, de uma comunho poltica que apenasum Estado forte, unitrio, sem divises partidrias, de prefe-rncia capaz de ser encarnado na pessoa de um lder, de umFher poderia realizar. Um Estado que promete constitucio-nalmente o resgate dos desvalidos, o asseguramento a todosdas condies materiais mnimas ao exerccio consciente dacidadania, mediante a prestao de um sem-nmero de ser-vios estatais, enfocados como direitos sociais, bem como aproteo legal e institucional daquele que se encontrar no ladomaterialmente mais frgil das vrias relaes. Constituio,liberdade e igualdade so vistos agora como conceitos de umateologia secularizada voltados implementao de um Estadoforte capaz de responder, pelo menos politcmente aos imensosdesafios postos aquela sociedade, criando e mantendo umacomunidade poltica a partir de interesses plurais, diversos e,sem dvida, no mais das vezes, antagnicos.

    Assim que afirmam que direitos universais no exis-tem; o que h so direitos nacionalmente reconhecidos quedependem da tradio na qual se inserem. Pois, claro, oreconhecimento desses direitos, e no de outros, atende realizao de interesses construdos como nacionais nos termosdos grupos que dominam aquelas naes. Schmitt buscou,desse modo, ao retomar elementos tipicamente pr-moder-nos da sociedade indiferenciada, levar s ltimas conseq-ncias o projeto moderno de adequao de meios conse-cuo de fins no campo da po ltica e do Direito Constituci-onal, ou seja, responder aos desafios desagregadores com oquais defrontou-se a organizao poltica e jurdica moder-na no incio do sculo XX.

    Como pano de fundo da pr-compreenso da comuni-cao social cada vez mais difundido e preponderante a par-tir dos anos finais da Primeira Guerra i nzli e-pradigmado Constitucionalismo social ou d siado social , pressa-mente ac olhido nas C onstituies do p ' la um pro-cesso difuso de doloroso aprendizado social. Liberdade eigualdade, como direitos fundamentais, no mais podem se rntendrdas em seu sentido exclusivamente formal. Parrem plausveis requerem, agora, a sua materializao em di-reitos que constitucional e legalmente protejam, como vi-mos, o lado mais fraco das varias relaes e que viabilizempolticas pblicas inclusivas (acesso sade, educao, cultura, a tentativa de controle estatal e jura ico d c omiabuscando evitar as G ris . cclicas do capitalismo, etc.). Oconstitucionalismo clssico, ao d esconhecer as diferenasmateriais, as desigualdades efetivamente existentes entre osindivduos, a ttulo de buscar proteger-lhe a liberdade, afir-mou uma compreenso exc lusivamente formal e intimamen-te associada propriedade privada da igualdade e da liberda-de, que possibilitou a maior explorao do homem pelo ho-mem de que se tem notcia na histria. Um acmulo de capitalsem precedentes nas mos de pouqussimos, bem como umamisria igualmente nunca antes vista de forma to difundida.As lutas sociais por igualdade e liberdade materiais, a partir demeados do sculo XIX, revelam o aprendizado ideolgico e,sobretudo, vivencial das pessoas do perodo que se defronta-ram diretamente com o lado mais perverso dessas conquistasevolutivas. Como resultado dessas lutas, a massa de desva-lidos agora politicamente includa, alcanando a conquistado sufrgio universal. O desafio que se colocava ao Estadosocial em termos de direitos fundamentais era, sem dvidaalguma, imenso, transformar aquela massa de desvalidos, antesvista corno sociedade civil, em cidados.Estados fortes, dotados de Executivos poderosos, ca-Pazes de rea lizar polticas pblicas de incluso com rapidez

    e agilidade, eram uma necessidade poltica. Pudemos assistirno perodo entre-guerras a confirmao da tese schmittiniana

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    da derrocada dos regimes de democracia representativa emtodo o mund o e, mesmo naqueles pases que a mantiveram,a ascenso ao poder de lderes carismticos como R ooseveltou Churchil. A identidade entre o govern^rP^e oe^oyernado,o que definia a democracia para Schmitt parecia realmentes poder ser alcanada nas ditaduras A urgente mat. rializodos direitos, como condio prvia cidadania parecia re-querer e recomendar a supresso da formalidade, dos pro-cessos de participao. Afinal de contas, o que a massa ouseus representantes pluralmente configurados teriam a dizerem assuntos tecnicamente intrincados e complexos? A cons-truo da identidade constitucional poderia se dar de formarpida e eficaz por intermdio da figura de um Fhrer querecorresse a meios simblicos e icnicos adequados a lidarcom a massa em ocionalmente e no por meio da razo. Acomunho em torno de alguns valores tradicionais concretosdefine os que efetivamente deveriam constituir a nao con -tra aqueles que, embora formalmente pertencessem quelanacionalida e, por materialmente no -comungarem essesvalores, seriam, na verdade, seus inimigos. A viso materia-liz poTtic com o especificada pl^ relao amigo versusinimigo, naturalizan as astantas naes em um supostoNom os da Terra continua a perdurar aps a Segunda Gu er-ra Mundial e a alimentar Guerra ria que se seguiu.

    Com al ncia do Estado social, capaz de produzir, nomximo, clien a-e-nunca-e-idatI-o como prometera, tendo/ em sua base toda uma crtica aos excessos da racionalidadeinstrumental moderna, com, portanto, o acolhimento de umamovo conceito de cincia, como saber que se sabe limitado, ,ecom o advento da questo ambiental e d queda do_ muro deBerlim, novos desafios so postos aos direitos fundamentais.Todos esses eventos provocam, outra vez, um dramti-co processo de aprendizado geracional e difuso. O grau decomplexidade que a doutrina constitucional passa a ter de in-corporar para responder aos novos desafios imenso. A pr-

    pria garantia poltica de participao na polis tambm umaexcluso de muitos da prpria polis podendo atingir graus

    racionalmente insustentveis como o nazismo, o fascismo eo comunismo, como estados burocrticos de massas demons-traram. Forma e matria no podem ser enfocados como em ,uma relao de contradi o. Se so dimenses distintas emesmo contrrias, elas no so contraditrias entre si, mascomplementares, co-originrias egi rimordiais. roces-so histrico de aprendizado na recorrente busca de afirma-o dos direitos fundamentais ressalta a importncia dos pa-nos de fundo de silncio por ns compartilhados em que seassenta a nossa compreenso do mundo, ou seja,_os nossosconceitos fundam-se em preconceitos. E a radical historicidadeos reumana, portanto, que nAssim que

    _de ^ardigma.ceito de parada ma ina r or , na

    cincia, a compreensaoM ss1 idade humana de umconhecimento absoluto, de um saber total, perfeito e eterno,precisamente em razo do nosso inafastvel e co nstitutivoenraizamento social, histrico-cultural. O fato de que - eaqui retomo a palestra do Prof. Ln io Streck - nos encon-tramos mergulhados na vida e de que nela que nos consti-tumos, nos formamos, faz com que sejamos condicionadosa limites tipicamente humanos. S podemos observar algocom os olhos que temos, marcados socialmente e historica-mente datados, e no com supostos olhos divinos e atemporais.Nossos olhos so sempre os olhos de uma sociedade deter-minada, de determinada poca. Nas conferncias hoje pro-feridas e que tive a oportunidade de ouvir, h, sem dvida,uma linha comum a todas elas, uma linha de viso do mun-do, de compreenso deste mundo qu e certamente no apenas minha, apenas do Prof. Streck ou do Prof. Galuppo, tambm do acm ulo de vivncias que herdamos e quenos constitui, bem como da sociedade que est se vendo oubuscando se ver, desses monstros sistmicos que de algu-ma forma esto falando po r nosso intemdio.H algo mais complexo que s podemos intuitivamen-te traduzir e que possibilita que no s comuniquem os, atporque essa comunicao se assenta nesse pano de fundocompartilhado de uma srie de sentidos naturalizados, no

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    52 JURISDIO CONSTITUCIONAL E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS discutidos racionalmente por ns, mas inconscientementeassentados em nossas prticas sociais cotidianas; pr-com-preenses que limitam a nossa possibilidade de ver sem quesaibamos. Ou melhor, hoje sabemos, em razo do prprioconceito de paradigma, compreendido como essa grade se-letiva que, queiramos ou no, molda o nosso olhar sob rens mesmos e o mundo, a determinar o horizonte social depossibilidades de a tribuio de sentido, de significao, ans mesmos e ao mundo que nos circunda.

    Qualquer saber, para ser considerado saber cientfico,tem atualmente de levar em considerao esse limite huma-no do conhecimento ou, simplesmente, no cincia o quese est a fazer. Como cond io do cone cimento temosento precisamente a exigncia de saber que nosso conhe-cimento e limitado, o que requer fundamentao explicitadae, assim, que esse saber se apresente abertamente em suaprecarie a e, oferecendo-se permanente ossibilidad drefutao, ou seja, ou um saber refutvel e aQrimorvelou no conhecimento. A dogmtica jurdica, portanto, elaprpria s admissvel hoje como cincia do direito se nofor exatamente dogmtica, h que ser fundamentada, aber-ta e se s b li it ler m a a pe a permanente possibilidade-de re-futao de suas premissas e afirmaes.

    Nesse sentido, claro que a viso schmittiniana dofechamento da identidade constitucional, da idia orgnicae concreta d privo como um dado histrico nat ado eontologizado, u _ a e=ae-um a- soluo. No pro-cesso de nstruo da identidade constitucional, a contraposioao outro, Tt-er a , ' mom en o necessrio e, sem d-vida, imprescindvel, tal como o no processo de formaoda identidade individual. No entanto, no suficiente. Oespelho do outro necessrio para que eu me afirme comoindivduo; preciso de que o outro me reconhea como umigual; o risco, no entanto, o da armadilha da relao entreo senhor e o escravo to bem descrito por Hegel. Eu preci-so exatamente do espelho do outro para me afirmar com oindivduo e, uma vez que preciso e busco desesperadamen-

    te esse reconhecimento, tendo a alcan-lo da forma m aisfcil, apossando-me do o utro, por meio de um processode reificao, de escravizao, mediante o qual consigo oreconhecimento do outro exatamente por ser mais forte. Alisessa a histria da humanidade, no ? Q uando se tornoupossvel, quando a riqueza socialmente produzida possibilitouque alguns deixassem de trabalhar, a escravido, de imediato,surgiu. No entanto, essa relao entre o senhor e o escravo tremendam ente perversa, alerta-nos Hegel. uma rela-o alienante para ambos, pois, por um lado, o escravo no o senhor de seu trabalho, no sentido de determinar asfinalidades que vai buscar realizar, o senhor, que as deter-mina para o esc ravo; por outro lado, ao ficar livre de ter detrabalhar, do lado duro da natureza, para se apropriar ape-nas do lado ma cio dela, dos frutos do trabalho alheio, nadaaprende com o processo de fazer realizado apenas pelo es-cravo, tornando-se, assim, ao cabo, escravo do escravo, ouseja, inteiramente depen dente do trabalho deste ltimo. Oescravo aprende a fazer, ele sabe fazer, o senhor no sabefazer, alis, por isso que estamo s aqui, no ? Ns, quegozamos deste lado macio da natureza, ainda hoje sofremosde outro m odo, diz Hegel, o calvrio do estudo, do esforointelectual para a apreenso daquilo que foi produzido, de umsaber que foi produzido. Quando, por exemplo, este prdiofoi construdo, as pessoas que efetivamente estiveram aqui,que o ergueram com o seu trabalho braal, nunca mais entra-ram aqui, no esto aqui assistindo a esta conferncia. Dealguma forma, no entanto, geraram um saber ou, para dizerem termos m ais atuais, uma linguagem, um plano de com uni-cao do qual eles mesmos se encontravam excludos.

    O reconhecimento alcanado pela vitria e a dominaodo outro transforma-o em coisa dom inada e, de imediato, oreconhecimento obtido perde qualquer valor, posto que equi-valente ao reconhecimento que se busca por intermdio daposse das coisas, da demonstrao externa de status. Ovazio interior permanec e e se agrava no interior do sujeito,levando-a desejar possuir mais e m ais coisas, e, assim, nunca

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    MENELICK DE CARVALHO NETTOJURISDIO CONSTITUCIONAL E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

    ser preenchido, o seu objeto do desejo nunca poder sersatisfeito pela apropriao das coisas. Somente r conhecen-do os outros como iguais, como pessoas iguais a mim possoreconhecera mim mesmo como sujeito de um processo devida individual que s se d na interao complexa da vidcoletiva e aprender com esse processo, tornando-me sujeitoportador de uma identidade prpria. Como c arncia, airic mnletiide do.u_' constitucional, tal como_ oprre conoscono nvel individual, s pode ser superada no mbito de umacomunidade de cidados que se assume como um projetoinclusivo, em _que essa carncia seja transformada na dispo-- ----mbilidade p-ara_aprendercom as prprias vivncias e na aberturapra-sempre novas incluses. A identidade constitucional nopode se fechar, a no ser ao preo de trair o prprioconstitucionalismo como demonstra Michel Rosenfeld.

    O constitucionalismo, ao lanar na histria a afirmaoimplausvel de que somos e devemos ser uma comunidade dehomens, mulheres e crianas livres e iguais, lanou uma ten-so constitutiva sociedade moderna que sempre cem 1ut^por-noras incluses, pois toda incluso tambm umanova excluso. E os direitos ^is s Dodero cn `tino-tis se a prpria C onstitui o como a nossa ex-pressamente afirma no 2 do se art. 5 , aprsnfr_cma moldura de um processo deermanente aquiso de novosdireitos fundamentais. Aquisies que no representaro ape-nas alargamento da tbua de direitos, mas, na verdade,redefinies integrais dos nossos conceitos de liberdade e deigualdade, requerendo nova releitura de todo o ordenamento luz das novas concepes dos direitos fundamentais.

    Assim, so nossas prticas sociais cotidianas que pos-sibilitam um pano de fundo de silncio, um horizonte decompreenso, por intermdio do qual lemos a Constitui-o e a n s mesm os, quer individualmente, quer cone'mem bros de grupos categoriais, quer como cidados, OI`seja, membros d essa identidade constitucional fluida, abstrata e aberta, que, em bora requeira densificao, jarrapoder se fechar material e concretamente, sob pena d`

    negar o constitucionalismo e de se realizar como ditadurae excludncia.Deve resultar claro, portanto, agora s,-que osdireitos fundamentais apresentam um natureza reflexiva,

    no so apenas um texto, um pacto funmelhor se so textos se so pacto fundador so fundantesde um imenso problema ns mesmos e o reconhecimentorecproco de ns m esmos como identidades individuais ecomo cidados co-partcipes e co-responsveis por nossavida em comum . Nesse sentido acredito que seja timo quenos mantenhamos sempre como um problema . O perigo parans nos fecharmos tanto no nvel individual como pessoassomos pessoas; to mais saudveis quanto mais nos enten-dermos como processos em permanente fieri, em perma-nente construo capazes de aprender com as nossas expe-rincias com as nossas vivncias de nos tornarmos reflexi-vamente pessoas cada vez melhores como tambm comosujeito coletivo como identidade constitucional como povo. bvio que sobretudo a reside a matria propria-mente constitucional . Esses direitos fundamentais que sodireitos civis polticos e sociais a um s tempo que impor-tam sim exatamente na superao ou melhor na compre-enso desse processo de aprendizado de construo de umaidentidade como povo como cidados que reciprocamentese respeitam em suas diferenas que foi a prpria trajetriado constitucionalismo como exigncia universal de liberda-de e de igualdade de todos.

    Esses duzentos e poucos anos de experincia constituci -onal da hum ana raie nclusive a universalizao do ,,fenmeno d constitucionalismo, revelam-se hoje para nsUm processo de ap a ser reflexivamente assumido.

    -- em vimos, na experincia do ^rimeiro grande per-todo constitucional' aprendemos duramrrte-4ue--se__enten-s ex g n=errnos os direitos fundamentais como direitos naturalcias morais, egosticas,que antecederiam a prpria organi-_za ^ridico-poltica, condicionndo_a ao mnim o neces-srio pari evitar a autodestruio, ou seja,_que se preteri-

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    JURISDIO CONSTITUCIONAL E OS DIREITOS FUNDAMENrAu 9EL ICK DE CARVALHO NETTO

    dermos reduzir ao mximo a dimenso pblica buscand o afirm tm de ^^ zar daropriamente dia. Normas ue enciais fet-seus pt_ ara cida anca, mataremos precisamente a cidadania. cidada-nia_ er dimenso blica ou eu reduzo a dimens n ipdade de serem aceitas por tds os_os (aceitabilidade). No entanto de fe daaIgualdade dosde_ id vidua , os direitos individuais, a mero egosmo, inviablllzandoa prpria noo de convivncia comum do respeito a

    i uma garantia da_ , ib ___abstrata h or o utro lado - risco de acreditarm os quemesma for maqu ad ds`tro, que a dimenso pblica inafastvel dos direitos priva-dos. E precisamente esse aspecto, e p ralismo, da tensoentre igualdade e liberdade, o da igualdade dos diferentes

    _as dl aao aplica_las devssemos p. __; ._- rtnte entrarmos emfizemos, a adota-ls. Aqul, e Impuma outra dimenso da palestra do Prof. Marcelo Galuppo,licao. No momento deaque abre a possibilidade de uma sociedade to complexa quantoa moderna. Tanto quanto, de outra vertente, o outro aspectodessa tenso, o da liberdade dos iguais. Aprendemos a ver os

    pso dos discursos r daaplicao desses direitos eu ^ olegislativa eou sejr d__-uei no nvel da elabo _ ui, encontro-me nomase nor; 2q ;iscos envoltos nesse segundo aspecto da tenso entre igual- ado o,-ao da^j va dosade e liberdade, no menos dolorosamente, por intermdio distinto terreno da a licaao norma. r e nsue e Becoddos excessos aterializantes do constitucionalismo social.Adimenso pblica pressupe o respeito s difere t iniagrandes enganos da modern que medianteexcessiva na racionalidade. as resolvia-se ode abes, op es, valores e crenas. O pluralismo poltico eor ni i l strara es tabelec imento de norm as g d s leis deveria sera zac on a essencial para que o pblico no ser privatizado por umaburocrla encastelada no poder Somo m e

    aproblema do controle social; a aplicaosempre esituaess distintas situaes deecificidades das semp tales -e tal. s iguais, e bora t nhamos cores diferentes religies diferen i g plicao. O imperativo categrico kantian leimaes-_ op es sexua sdiferentes, etc., e, no entanto, nos respeitamos como i uais pforma que a mxima de tua ao seja sempcampo da adoo.Somos-livres para cnstru r a nossa i Idade no respeito s.nossas diferenas. O interesse pblico o de t d fversal - deveria cobrar no somente nodas normas, mas igualmente no da sua aplicao, uma apli-sempre que se }eta-s os aos elo exerccio do e_p_ poder e_no, necessariamente, o duma determinada administrao. Essa a dimenso prtica dos cao automtica, frrea e inafastvel daverificasse a hiptese normativa prevista. A crena na ca-f eada

    direitos fundamentais que agora cobramos no s em tex-\i

    de racionalmente, Por ortacidade fide surdictos, mas em nossa vida cotidiana eregularmos a vida moral, o normativa.ei aiEste um problema central afeto a outro ue eu- carmos livres de problemas no campo da ap erais isoladas nogos-taria de nomear como o roblema da legitimidade do Direi- Bom, o problema que as normas m examinarmos abto portanto dos di s f ecm lexidade d vida. Se h soe uI aTrn'nrta -^^ l^-f da- esgotam a veremos queurdico pnto dos direitos fundamentais problema que foi a tnica Constituio e o ordenamento j ans-regras e queda palestra do Prof. Marcelo G aluppo a saber ssi-d cpios contrrios que so densificados e do o ordenamento a pobilidade de fundamentarmos leis de aceitarmos as rmas mitem a tenso originria entre eles a to i-idnogerais que vo reger a nossa vida em comum. A legitimida- aque, nesse sentido, no se fecha aos IrI oemtde que passa pela percepo de que as normas erais e aana, como urja-realidade per idualidade dos event^iabstratas s vc-nncretude e a indue lauma g arantia bsica para todos ns os / egger aqueontrrios da acon raprivilgios tradicionais de nascimento que impediam O Udificultavam a institucion li

    ^P ara a comiuraao normativa adequa, m re es ecI Ica e da-o determit --_za ua 58 MENELICK DE CARVALHO NETTO 9

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    Podem os compreender o fascnio de Kant. e omaravilhamento de toda a modernidade pela forma da leicomo um a forma que, por si s, garantiria a civilidade, ofim dos odiosos privilgios de nascimento, o respeito aooutro e a, efetividade deste antigo sonho da realizao dajustia. Se, no entanto, a forma gen rica e abstrata da leipde ser traduzida materialmente, na prtica, em uma explo-rao do homem pelo homem sem precedentes na histriada humanidade, foi capaz, contudo, de manter a sua mstica,apenas que agora no contexto da materializao do Direito.Manteve-se no Estado Social a mesma crena: seria por meiode normas g erais e abstratas que se poderia materializar oDireito, exigindo aes polticas de densificao desses direi-tos mediante a adoo de polticas pblicas pelo Estado; soos direitos sociais, educao, sade, etc. Polticas pbli-cas que, hoje, para ns, so direitos, mas somente o so, claro, medida que efetivamente promovam a liberdade e aigualdade dos membros da comunidade.

    Assim que a aplicao dos direitos no mais podeser confundida coma sua justificao em tese. As norm asgerais e ab stratas so, claro, rantia evolutiva, se-gundo a qual as normas a serem aplicadas so normas quepassaram po r este crivo da universalidade, da aceitabilidadeuniversal. No m omento da a plicao, no entanto, tenho deter claro o problema que o Prof. Lnio Streck colocou. Euno interpreto s texto, nossa situao no m undo urnasituao hermenutica, inclusive eu mesmo sou um projetose for algo, porque os sistemas tendem a no s reduzir a nada.a objetos, a papis sociais. Se eu prprio no m e assumiscomo sujeito, se a psicanlise no puder m e ajudar a, mi-nimamente, eu tendo a ser reduzido a papis, usualmente.muito problemticos, quase nunca harmn icos entre si. Mas.enfim, tambm no nvel pblico, temos de empreender oresgate de ns mesmos como projeto de uma cidadania con-creta, de um povo, de uma nao. Ou seja, de uma com u-nidade de pessoas que requer concretam ente a realizao'dos direitos de seus membros em sua vida cotidiana. No

    mais n nrP ender que coma racionalizao em termosde estabelecimento de uma legislao abstrata eu tenha re-solvido os problemas da vida concreta. Pelo contrr pee--nas criei o instrumental necessrio para que tenha lugar o^trabalho de aplicao. Sabemos hoje, tal como Luhmann podenos alertar, que o Direito tem limites, que a normatividade, apositividade tem limites e limites que sabemos, na pele, so-bretudo em m atria constitucional. No podem ser supera-dos aprovando-se mais texto constitucional. No reformandoa Constituio que solucionaremos problemas que n o sodo Direito, mas da poltica ou da economia, por exemplo.

    O grande desafio, posto hoje aos direitos fundamen-tais no meu modo e ntender, continua a ser a descobertade que o Direito moderno no regula nem a si mesmo.O Direito moderno s se d a conhecer por meio del

    textos e textos, por de finio; so manipulveis. Kelsen jbuscar trabalhar o carter indeterminado do Direitp ino a partir de uma concepo positivista de cincia.(Dworkin,a^entrric^, huscar^ respondera esse desafio, nodo atual conceito de cincia, optando pelo enfoque dhermenu tica filosfica. Se so p ossveis vrias leituras deum mesmo texto, para ela, a sada encontra-se na concretudee na singularidade dos eventos sociais que o Direito regula.A situao vivencial concreta levada ao Judicirio nica,irrepetvel, por definio. No campo social, os eventos nose repetem e n o se repetem em grau definitivo, porque se ofizerem j no so os mesmos, uma vez que ns que osvivenciamos somos pessoas diferentes do antes framos, jque aprendemos vivencialmente com eles. Somos pessoasmais vivenciadas, mais vividas, mais experientes e as nossasexpectativas em relao a eles so distintas.

    nesse sentido que Ronald Dworkin pde afirmar queh uma nica deciso correta para cada caso, no emtermos _de s seja possvel uma n ica leitura de um textolegal. Dworkin tem uma formao extremam ente sofistica-da, um crtico literrio, sabe no somente qu e um textoadmite vrias leituras, mas que o horizonte de possibilidade

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    das leituras se altera com as mudanas sociais verificadasao longo do tempo. Por isso mesmo para ele no temosacesso ao fato mas a leituras que fazemos desses fatos.Para retomar o Prof. Lnio a nossa condio no mundo hermenutica atribumos sentido interpretamos o tempointeiro e as nossas interpretaes dependem de uma sriede no ditos de supostos . A grande questo reside a: comolidar com a aDlic ao dessa arntis que no garantemnada com as nrmas __ gerais_e_ab_strat s. Esse o grandeproblema da doutrina constitucional de hoje.

    A partir de diversas perspectivas todos os autores vobuscar responder quele desafio lanado por Norberto Bobbio:dar efetividade aos direitos fundamentais nas situaes con-cretas de vida no apenas em abstrato aqui e agora no bojodas distintas situaes vivenciais . Para tanto como ser im-parcial? Como seria possvel garantir a liberda e e a i ld-de de todos na ap Icao das normas jurdicas ? Claro queobservando a nnsio concreta e as pretenses a direitos le-vantadas pelos envolvidos naquele caso levando em contaque pode haver pretenses abusivas que nada tm a ver coma situao concreta vivenciada pelas partes decorrentes xtamente do carter genrico e abstrato das leis . -mc s en-volvidos levanta uma pretenso a direito no porque a tives-se levantado e esta tivesse sido aceita quando do eventomas simplesmente em razo de haver uma previso geral eabstrata que em tese daria guarida a tal pretenso . Normasgerais nem sempre so aplicveis a todos os casos mas ape-nas queles casos que sejam capazes de reger sem resduosde injustia . Qualquer caso complexo difcil qualquersituao concreta envolve pretenses a direitos e o trabalhojudicial a essencial para que a nossa e^ essa socie-dade artificial, sem fund amento, s torne crvel, para quepossamos acreditar que existe justia. damentao dadeciso h de apresentar- tal consistncia que possa, em tese.convencer racionalmente a parte cuja pretenso no foi aco-lhida da impossibilidade de se faz-lo sem ferir a justia eportanto, a prpria segurana jurdica.

    Esse o grande desafio ue recai sobre os ombros dosjuzes: tornar plausvel a crena em nossas instituies. Esse um desafio que recai tambm so bre ns, professores d^Direito Constitucional em um pas onde ensinar Direito Cons-titucional no fcil, pois o jornal cotidianamente noticia con-dutas das autoridades, como se normais e corriqueiras, quecolocam emxeque tdo o que se buscou ensinar em sala. E^esse um problm-bsicwUt prbl-m que ns rnvia ao incio de nossa palestra, do nosso dilogo: idia de queesses direitos fundamentais ou so vida ou no so nada.

    No h Constituio a ser defendida se ela no forvivenciada. claro que estamos em um terreno cultural,em um terreno em que pagamos um alto preo pela vidaque construmos para ns mesmos. Esse o toque de M idastpico da condio humana; tudo o que tocamos torna-sens mesmos, estamos enfeixados em ns. Retomamos aquia palestra do Prof. Lnio mais uma vez, no h sada forade ns mesm os, nossa situao herm enutica, vemos ans mesmos em tudo. E se o ns que c onstrumos for umns pobre, um ns excludente e e xcludo, um ns de umpas perifrico, claro que a identidade constitucional serapenas um cone para os poderosos reproduzirem a suaprivatizao do espao pblico, como, alis, necessariamentese vem obrigadas a fazer as ditaduras.No entanto, ns, o povo, no Brasil de hoje, somosuma identidade aberta, que s pode ser efetivamente cons-titucional medida que no se fechar, que se mantiver sempreaberta. Sempre um problema e nunca uma soluoTambm, como a prpria noo de direitos fundamentaise a rica e profunda exposio do P rof. Marcelo Galupporevelou o imenso e rico problema que so os direitos fun-damentais. Espero sinceramente que os direitos fundamen-tais de todos continue a ser um rico problema para ns eque, sobretudo, se transforme para a lavadeira da favela do

    Pendura-a-Saia, bem como para o pipoquero ali da esqui-na, em um rico problema. Em algo a ser conquistado, por-que vale a pena alcanar e preservar. 1 OL JURISDIO CONSTITUCIONAL E OS D IREITOS FUNDAMENTAIS 1 DIENELICK DE CARVALHO NETTO

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    A teoria da Consti tuio nasceu com o um hinoschimitiniano Constituio inglesa. A efetividade, aconcretude da Constituio inglesa e a sua falta de formalismo,historicamente, quem sa be, at explicvel pelo prprio fatode a Inglaterra haver inventado o contedo material do Di-reito Constitucional, e talvez, por isso mesmo, no tenhaprecisado nem inventar e nem posteriormente acolher a for-malidade constitucional que os norte-americanos termina-ram por inventar. De toda sorte, estamos d iante dessas duase distintas experincias histricas. A lei antiterror foi apro-vada na Inglaterra j h dca das, revogando dispositivosto antigos que remontavam M agna Carta, destruindo ospilares mestres da Constituio britnica. Acabou co m nor-mas profundamente enraizadas no povo ingls. At Schimittchegava a adm ir-lo, um povo que acred itava no direitoconstitucional como realidade viva, que criou o habeas corpusa inviolabilidade da correspondncia, do domiclio, etc. Pensarque na Inglaterra de hoje qualquer um pod e ser preso paraaveriguao, sem culpa formada, sem autorizao judicial esem ser pego em flagrante; que qualquer um pode ter suacorrespondn cia aberta e o seu dom iclio violado. farta aliteratura constitucional inglesa sobre o fim da Constituobritnica. A experincia norte-americana, embora muito re-cente, j aprova a questo da formalidade constitucional e daimportncia do controle de con stitucionalidade. Ser que di-ante de am eaas desse tipo, conquistas histricas poderoser derrogadas como na Inglaterra? A Constituio norte-americana vai ser destruda? Se tomarmos o que a Suprem aCorte dos EUA entende por Constituio, veremos que exatame nte essa garantia que leis antiterror desse tipo des-truiriam. O respeito dupla tenso presente entre o direito igualdade e liberdade de todos. Toda essa construo, umaconstruo fantstica, admirvel, mesmo com todas as crti-cas que lhe podem ser dirigidas, colocada em tela de desa-fio. Desafio aos direitos fundamentais, formalidade consti-tucional e ao prprio controle de constitucionalidade com ogarantias evolutivas do constitucionalismo.

    Concluindo, gostaria de salientar um outro desafio, nomenos srio, porm de origem interna: a importao por vialegal de supostos tpicos do controle concentrado ou austracode constitucionalidade das leis. Nossos supostos so de umatradio muitssimo mais antiga e tambm m elhor em ter-mos de experincia e de vivncia constitucional do que aalem, extremamente mais sofisticada e muito mais efetivacomo garantia da idia de liberdade e de igualdade concretas.So colocados em xeque os supostos bsicos do controledifuso de constitucionalidade, que constituem nossa heranade mais de cem anos. Uma herana que marca a compre-enso da Constituio como de autoria de todos ns, queafirma que a m atria constitucional diz respeito a todos ns.O controle difuso faz com que qualquer um de ns sejaintrprete autorizado da Constituio, uma vez que no seautorizou ao Legislativo e nem a qualquer outro poder violardireitos fundamentais, e em que a m atria constitucional,por ser sempre afeta aos direitos fundamentais de todosns, reconhece-se competncia para discusso, averiguaoe deciso dessa matria a qualquer juiz em qualquer casoconcreto que surja diante dele. importante registrar o tre-mendo esforo q_ue P eter Hberle empreende ara poderafirmar a Pxistncia de uma comunidade aberta de intrpre-tes da Constituio na Alemanha, o que para ns um su-posto, um ponto bsico de partia a mais e cm anos. claro que no mais possvel a artificialidade da viso kelsenianaabsolutamente superada, como salientou o prprio Prof. LnioStreck. A autoridade encarregada de aplicar a Constituio'ao pode fazer o que bem quiser do texto constitucional, hlimites, esses limites so intersubjetivamente compartilhados,e a m aior garantia de qualquer constituio chama-se cidada-nia, uma cidadania viva e atuan te, zelosa de seus direitos.