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  • CONSIDERAES SOBRE UMA LGICA JURDICA *

    Cham Perelman 1

    A lgica jurdica o conjunto de tcnicas de raciocnio que permitem

    ao julgador conciliar, em cada caso, o respeito ao direito e a

    aceitabilidade da soluo encontrada. As fontes do direito, tais como

    postas em cada sistema jurdico, so o ponto de partida do raciocnio do

    jurista, que tem como objetivo a adaptao dos textos jurdicos s

    necessidades e s aspiraes de uma sociedade viva, em constante

    mutao2.

    Agradeo meus colegas da Academia pela oportunidade de apresentar minhas idias

    sobre a lgica jurdica, no momento em que lanado meu livro dedicado ao assunto3.

    Comeo por um breve sumrio de minhas pesquisas.

    Durante o XI Congresso Internacional de Filosofia, que se realizou em Bruxelas no ano

    de 1953, o Centro Nacional de Pesquisas de Lgica organizou um colquio internacional

    consagrado, em parte, teoria da demonstrao4. Evidenciou-se, ao longo dos debates, que o

    raciocnio jurdico, objeto de duas exposies, era bastante desconhecido pelos lgicos e

    filsofos, que analisaram os meios de prova das cincias exatas e naturais, mas no

    demonstraram nenhum interesse em relao ao direito. Na verdade, esta rea do conhecimento

    mostrou-se pouco prestigiada como fonte de inspirao s reflexes dos participantes do

    Congresso.

    Em companhia do saudoso Professor da Universidade de Louvain, Robert Feys, ficou

    decidida a criao, no Centro, de um departamento jurdico naquele mesmo ano. A esta

    *. Traduo do original em francs por Cassio Scarpinella Bueno. A publicao do texto traduzido estava previsto para o vol. 3 da Revista de Ps-Graduandos da PUC/SP, que, infelizmente, nunca chegou a sair. Ficam registrados os agradecimentos sinceros Professora Helosa Brito de Albuquerque Costa, que reviu a primeira verso do trabalho, e ao Professor Fabio Ulhoa Coelho. O texto original foi extrado de Ethique et Droit, Editions de l'Universite de Bruxelles, 1990, pp. 636/648, coletnea de estudos de Perelman organizada por Alain Lempereur. A publicao, poca, foi autorizada pela Livraria Martins Fontes Editora Ltda., titular dos direitos de verso para o portugus daquela obra.

    1 A palestra foi publicada, originalmente, no Bulletin de la classe des lettres et des sciences morales et politiques da Academie royale de Belgique, Bruxelas, 1976, 5. srie, t. LXII, pp. 155/167.

    2 C. Perelman. "Ontologie juridique et sources du droit" em Archives de philosophie du droit, t. 27, Sirey, 1982, p. 31 (Em Ethique et Droit, cit., pp. 523/535) (N. T.)

    3 Logique Juridique, Paris, Dalloz, 1976, 2. ed., 1979, 193 pp.

    4 Palestra publicada em 1954 na Revue internationale de philosophie, vols. 27/28.

  • 2

    iniciativa associaram-se os professores Henri Buch, Membro do Conselho de Estado, Ren

    Dekkers, da Universidade de Bruxelas e de Gand, e, principalmente, Paul Foriers, Reitor da

    Universidade de Bruxelas.

    Os primeiros trabalhos resultaram em um artigo coletivo publicado em 1956 no

    "Journal des Tribunaux" n. 4104 com o ttulo "Essais de logique juridique" (Ensaios de lgica

    jurdica). Desde ento, decidimos concentrar maior ateno a uma srie de questes

    particularmente interessantes do ponto de vista do modo de pensar jurdico: "Le fait et le droit"5

    (O fato e o direito), "Les antinomies en droit"6 (As antinomias no direito), "Le problme des

    lacunes en droit"7 (O problema das lacunas no direito), "La rgle de droit"8 (A regra de direito),

    "Le prsomptions et les fictions en droit"9 (As presunes e as fices no direito). H dois anos

    examinamos a problemtica da motivao no Direito. O Centro publicou, alm destas obras,

    seis volumes intitulados "tudes de Logique Juridique" (Estudos de Lgica Jurdica).

    No hesitamos em designar o objeto de nosso trabalho pela expresso 'lgica jurdica'.

    Trata-se, com efeito, de expresso tradicional para se referir aos estudos destinados ao modo de

    pensar especfico dos juristas.

    No entanto, esta denominao contrape-se concepo da lgica difundida com maior

    freqncia entre os estudiosos do sculo XX, que identificam a lgica com a lgica formal.

    Georges Kalinowski, lgico polons atuante em Paris, caracteriza-a como "instrumento de toda

    atividade do saber, de aplicao tanto no domnio da vida cotidiana, como em qualquer

    cincia". Esta citao foi tirada de um artigo de 1959 intitulado "Y-a-t-il une logique

    juridique?" (Existe uma lgica jurdica?) publicado na Revista "Logique et Analyse" (Lgica e

    Anlise), mantida pelo Centro10. questo que coloca, responde o Professor Kalinowski de

    modo peremptrio: "no meu entender, somente existe uma lgica, a lgica pura e simples, tout

    court, utilizada no sentido terico ou normativo. Por outro lado, entre as diversas aplicaes

    de leis ou regras lgicas universais no se pode deixar de verificar aquelas feitas para

    aplicao em qualquer campo jurdico. extremamente interessante e til a anlise das

    diferentes aplicaes das leis e regras lgicas universais nos diversos campos do direito, assim

    como o exame das razes pelas quais elas so aplicadas. Todavia, no tem qualquer sentido o

    estudo de uma lgica jurdica no sentido prprio da palavra. Uma tal lgica simplesmente no

    existe"11.

    5 Bruxelas, Bruylant, 1961.

    6 Bruylant, 1965.

    7 Bruylant, 1968.

    8 Bruylant, 1971.

    9 Bruylant, 1974.

    10 Logique et Analyse, n. 5, pp. 48/53.

    11 Ibid., p. 53.

  • 3

    No obstante a concluso ento tomada, o Professor Kalinowski publicou alguns anos

    mais tarde um livro com o ttulo de "Introduction la Logique Juridique"12 (Introduo

    Lgica Jurdica), seguindo o exemplo do jurista alemo, Ulrich Klug, cuja obra ("Juristische

    Logik"), lanada em 1950, foi traduzida para vrios idiomas e reeditada sucessivas vezes.

    Como estes autores publicaram obras consagradas lgica jurdica se, expressamente,

    negam sua existncia? Tal comportamento deve-se porque consideram a lgica jurdica como a

    lgica formal aplicada ao direito, limitando-se ao exame "das operaes intelectuais do jurista

    do ponto de vista formal"13.

    Mas, se o raciocnio jurdico, seu modo de pensar, no tem nada de caracterstico, por

    que desenvolver uma lgica especificamente jurdica ao lado de uma lgica matemtica e no

    tratar, por exemplo, de uma lgica zoolgica ou bioqumica?

    Desde a antiguidade, so conhecidas as frmulas de raciocnio utilizadas na

    interpretao e aplicao dos textos jurdicos, tais como os argumentos a simili, a contrario, a

    fortiori, estes ltimos dividindo-se nos argumentos a maior ad minus e a minori ad maius.

    Pretendendo ver a lgica jurdica to somente como a aplicao da lgica formal ao direito,

    impe-se realar a estrutura formal destes argumentos tradicionais do pensamento jurdico. Este

    o ponto de maior aproximao entre as obras de Klug e Kalinowski: Klug dedicou ao assunto

    a terceira parte de seu livro14 enquanto que Kalinowski, o terceiro pargrafo do quarto

    captulo15.

    Entretanto, no tarefa difcil a demonstrao de que estes argumentos no so

    estruturas de pensamento puramente formais. Se assim fossem, seriam invariavelmente vlidos

    e aplicados universalmente, em quaisquer situaes. A aplicao simultnea dos argumentos a

    simili e a contrario, todavia, leva a concluses diametralmente opostas, donde decorre a

    necessidade de escolha entre uma e outra resposta, caso se deseje evitar qualquer contradio.

    Se, por exemplo, uma lei submete todos os jovens de uma certa idade ao servio militar

    obrigatrio, a inevitvel concluso, por aplicao do argumento a simili, a de que tambm

    esto submetidas ao mesmo dever as jovens do sexo feminino da mesma idade. De sua parte,

    mediante o argumento a contrario, elas estaro isentas deste mesmo dever.

    Para reduzir estes argumentos a esquemas puramente formais, indispensvel que sua

    aplicao, caso a caso, seja precedida de uma argumentao em torno da inteno do legislador.

    No exemplo dado, o legislador quis excluir as mulheres do servio militar ou, ao contrrio, o

    texto legal, ao se referir a jovens, tambm abrange as pessoas do sexo feminino? As tcnicas

    12 Paris, L.G.D.J., 1965.

    13 Kalinowski, op. cit., p. 12.

    14 Klug, Juristische Logik, Berlin, Springer, 3. ed., 1966, pp. 97/140.

    15 Kalinowski, op, cit., pp. 155/170.

  • 4

    que reduzem estes argumentos a esquemas puramente formais no levam em considerao esta

    escolha preliminar justificvel apenas por uma argumentao estranha, por completo, estrutura

    da lgica formal.

    Esta ltima colocao conduz a um problema mais amplo, de contedo filosfico

    inegvel: a lgica deve ser limitada ao estudo dos raciocnios demonstrativos, como os que

    caracterizam a prova matemtica, ou deve, tambm, analisar os raciocnios, os modos de

    raciocinar, das mais variadas espcies, que apresentem argumentos a favor desta ou daquela

    escolha, desta ou daquela deciso? Raciocinar , unicamente, inferir, calcular e demonstrar, ou

    , tambm, fornecer as razes pr e contra uma dada tese? Os vrios estudos lanados sob o

    ttulo "Les machines pensent-elles?" (As mquinas pensam?) respondem, em geral, pela

    negativa: os clculos e as demonstraes so considerados como mais distantes do pensamento

    que as argumentaes contrapostas, caracterizadoras do modo de pensar crtico e sua refutao,

    seja na deliberao ntima ou em uma discusso entre duas ou mais pessoas.

    Deve ser excludo da lgica o estudo dos argumentos, em especial aqueles que se

    mostram irredutveis a esquemas puramente formais? A conseqncia desta excluso resultaria

    imediatamente na impossibilidade de compreenso da lgica da controvrsia, j que em seu

    campo de atuao, dentro das discusses e das controvrsias, que podem ser encontradas as

    argumentaes contrapostas, estranhas ao campo de aplicao da lgica formal. Esta tem como

    objeto o estudo das leis lgicas, dos raciocnios corretos, vlidos e impositivos, pelo que no

    resta espao para desacordo.

    ridculo ignorar, sob o pretexto de serem estranhas lgica formal, as outras diversas

    formas de argumentos que aparecem no somente no direito, mas, tambm, na filosofia, na

    metodologia das cincias e em todo campo onde intervm a crtica, a refutao e a justificao,

    atividades caracterizadoras, por excelncia, da atividade reflexiva de um ser racional.

    indevida a tentativa de reduo da lgica lgica formal. Aristteles, considerado o

    pai da lgica formal, por seu "Analytiques" (onde se ocupa com as dedues corretas

    formalmente), dedicou sua "Rhtorique" e seus "Topiques et les Rfutations Sophistiques" ao

    exame do raciocnio dialtico, que trata do controvertido, dos argumentos de persuaso e

    convico, das razes pr e contra, que servem crtica, refutao, justificao e que so

    indispensveis para estabelecer as premissas de um raciocnio16.

    Este precisamente o papel da lgica jurdica. Seu campo de aplicao no concorre

    com o da lgica formal, porquanto nenhum homem sensato pe em dvida a validade de um

    silogismo ou de um raciocnio formalmente correto. Porm, a veracidade da concluso no pode

    ser garantida apenas pela deduo correta, j que esta nada mais faz que transferir quela a

    veracidade das premissas. H necessidade de se buscar mecanismos que assegurem a veracidade

    das premissas. Quando as premissas podem ser demonstradas, o problema remontado s

    16 Aristteles, Topiques, 101b I-4.

  • 5

    premissas anteriores. Finalmente, pode ser necessrio regredir at os axiomas: desde que sejam

    evidentes ou admitidos por hiptese, pode-se dispensar a argumentao. Naqueles casos,

    entretanto, em que o debate envolve as prprias premissas, que no so evidentes ou

    indiferentes, ser necessria a escolha de uma ou de outra tese que se apresente. Se esta escolha

    pensada porque toma como base os argumentos que constituem as razes e que fornecem os

    motivos em prol de uma dada tese. Estes argumentos no sero corretos ou incorretos,

    verdadeiros ou falsos, ou seja, conformes ou desconformes s regras de uma deduo vlida.

    Sero, antes, mais ou menos pertinentes, mais ou menos eficazes, para obter a adeso do

    auditrio a que se dirigem.

    Um argumento que convence um determinado auditrio pode ser ineficaz em relao a

    outro. Para apreciar o valor, e no somente, a eficcia dos argumentos normal, falta de

    critrios objetivos, a referncia qualidade do auditrio que convencido pelo discurso.

    Poderia se conceber o uso da razo, na prtica tradicional dos filsofos, como a considerao de

    um auditrio ideal, to informado e exigente quanto possvel. Plato, imaginando a retrica

    digna de um filsofo, desejava que os discursos pudessem ser aptos a convencer os prprios

    deuses ("Phdre", 273). Aqui, a argumentao racional dirige-se ao auditrio universal. Este

    processo ser, como a ao moral em Kant, de acordo com o imperativo categrico: ser

    prefervel a argumentao que, segundo o sentir do orador, apta a convencer todos os homens

    suficientemente informados. Como toda argumentao, ainda que racional, no pode ser

    impositiva, o que se pode pretender apenas uma inteno de racionalidade na mente do orador.

    No se pode esconder a circunstncia de que bastante difcil a obteno de uma adeso

    unnime a uma das teses postas em confronto. Por isto, faz-se necessrio que sejam previstos os

    procedimentos para se chegar a uma deciso, mormente quando a discusso no possa durar

    indefinidamente.

    Os diversos ramos do direito possuem instituies e prevem procedimentos e

    competncias para que, em cada caso, possa se determinar como e por quem as regras sero

    elaboradas, interpretadas e aplicadas. O Code judiciaire indica os procedimentos e as condies

    segundo as quais os litgios so resolvidos. Para evitar que os processos no se repitam sem fim,

    as decises tomadas, obedecidos certos pressupostos, beneficiam-se da autoridade da coisa

    julgada.

    A lgica jurdica no pode desprezar todas estas questes, cujas consideraes tericas

    so indissociveis de suas conseqncias prticas, pois o modo de pensar especfico do jurista

    deve se adaptar ao contexto construdo pelas instituies, pelos procedimentos e, sobretudo,

    pela ideologia dominante. Esta deve responder s seguintes questes: o que o direito? Quais

    suas relaes com a moral e com a religio? Em que medida os juzes devem se preocupar com

    a justia e com a eqidade? Levando em conta o dever do juiz de dizer o direito, sua obrigao

    cumprida apenas com a invocao das disposies legais ou, conforme o caso, dever limit-

    las com a aplicao de outras fontes do direito como, por exemplo, os princpios gerais?

  • 6

    Em todas estas indagaes pode ser constatada uma evoluo da antiguidade at os dias

    de hoje. A ideologia da Revoluo Francesa ocupou um papel determinante na evoluo do

    direito continental (europeu), mas, desde a edio do Code Napolon, verifica-se uma alterao

    de perspectiva: inicialmente, o positivismo jurdico da escola da exegese; depois, a concepo

    funcional e teleolgica do direito; e, por fim, uma viso mais sociolgica e mais democrtica do

    papel do juiz, destinada ao estabelecimento da paz judiciria, mediante a obteno do consenso

    da opinio pblica esclarecida.

    Os argumentos jurdicos tero contedo diverso toda vez que forem utilizados, pois o

    que constitui um argumento forte em dado contexto poder no ser levado em considerao em

    outro diverso. O juiz deve considerar, para seu julgamento, as conseqncia sociais, econmicas

    ou polticas de sua deciso? Ou deve ser fiel mxima pereat mundus, fiat justicia? Quais so

    as consideraes que devero prevalecer no seu ponto de vista? a segurana jurdica, vale

    dizer, a fidelidade letra da lei? a eqidade? O juiz deve conciliar estas duas exigncias

    quando parecem levar a decises divergentes?

    Ao mesmo tempo que a segurana jurdica e a imparcialidade exigem respeito justia

    formal, isto , tratamento igual a situaes essencialmente semelhantes, pode-se dizer que o

    progresso tcnico e a evoluo dos hbitos acabaram por transformar a legislao e a

    jurisprudncia. Como evitar a arbitrariedade nesta matria? Uma primeira garantia consiste na

    previso de colegiados nos Tribunais. Uma outra reside na possibilidade de recursos. O

    constituinte, com o decreto de 16/24 de agosto de 1790, fornece a propsito duas garantias

    diversas: a obrigao de motivao dos julgamentos e a instalao de um Tribunal de Cassao.

    De acordo com o art. 4. do Code Napolon, "o juiz que se recusar a julgar, sob o

    pretexto de omisso, obscuridade ou insuficincia da lei, poder ser processado como culpado

    de denegao de justia". Portanto, ao contrrio de um cientista, o juiz no pode, argindo sua

    ignorncia, abster-se de decidir: ele deve, sempre, fornecer um julgamento. A lgica jurdica

    tem como tarefa o estudo das tcnicas e das razes que lhe possibilita chegar deciso e

    motiv-la.

    Quando a produo da prova dos fatos livre, depende unicamente da formao da

    convico ntima dos juzes. Pode ser baseada em presunes precisas e concordantes. As

    presunes legais dispensam a produo de prova por aqueles que se beneficiam com sua

    aplicao. Na hiptese de no serem absolutas, a parte adversa, ento com o nus da prova,

    poder refut-las. Quando a produo de prova testemunhal indispensvel para o

    estabelecimento de um dado fato, o juiz poder convocar as testemunhas e tomar seu

    depoimento sob juramento. Em contrapartida, de acordo com o art. 931 do Code judiciaire,

    vedada a oitiva dos descendentes naquelas causas em que seus ascendentes tiverem interesses

    opostos, evitando-se, com esta medida, qualquer possibilidade de conflito no seio familiar.

    Aquele que guarda segredo profissional pode se recusar a testemunhar. A busca da verdade no

    processo subordina-se, ainda, s relaes de confiana estabelecidas entre o advogado e seu

  • 7

    cliente, assim como ocorre entre o mdico e o doente, o confidente e o confessor. Por fim, so

    previstos outros limites na livre pesquisa da ocorrncia dos fatos relacionados com a dignidade

    da pessoa humana, com destaque proibio da tortura.

    O juiz a pea fundamental na administrao da justia, por ser o centro de todo debate

    judicirio: a ele que as partes devem convencer da realidade dos fatos, da escolha e da

    interpretao da regra de direito a ser aplicada ao caso litigioso. Sendo assim, como assegurar

    sua imparcialidade e sua independncia? Ao analisar um raciocnio matemtico, ningum se

    interessa pela honestidade e independncia daquele que o realiza, porque sua demonstrao

    impessoal e sua validade impe-se a todos que tiverem condies de acompanh-la. Mas, a

    imparcialidade e a independncia dos juzes so essenciais ao bom funcionamento da justia.

    So indispensveis para a proteo de todas as presses a que esto sujeitos aqueles que

    exercem o poder. Desta observao, fica evidenciado o perigo dos tribunais de exceo

    (tribunaux spciaux) que subtraem dos jurisdicionados seu juiz natural. Por outro lado, o juiz

    pode ser recusado por uma das razes constantes do art. 828 do Code judiciaire e o art. 831 do

    mesmo estatuto estabelece o dever de o juiz abster-se de julgar quando "tem conhecimento de

    motivo para recusa de sua pessoa".

    Diante desta constatao, percebe-se que a lgica jurdica no pode se desinteressar do

    contexto social e poltico dentro do qual exercida. Do mesmo modo que o professor Lon

    Fuller, da Universidade de Harvard, elencou vrias regras a serem observadas por todos os

    sistemas jurdicos para que o direito seja eficaz no interior de uma sociedade organizada17, no

    errado salientar que certas condies devem ser realizadas para asseguramento de uma

    administrao imparcial da justia, o due process of law.

    Toda a argumentao que tem como objetivo obter ou aumentar a adeso de um dado

    auditrio s teses que se lhe apresentam, realiza-se dentro de um contexto psicossocial, j que

    implica a existncia de contato entre os espritos e a utilizao de uma linguagem comum, assim

    como a observao de um certo nmero de costumes, de prticas e hbitos que regem a

    utilizao do discurso. Mas aquilo que vago e indeterminado quando se trata de prticas

    socialmente admitidas, passa a ter a necessidade de um regramento mais rgido quando o que

    est em pauta a prtica jurdica, em especfico a judiciria.

    Os cdigos de processo visam a assegurar o desenvolvimento normal dos debates

    judicirios, tendo em vista, principalmente, a garantia do direito de defesa. importante que as

    teses em oposio se manifestem com toda a sua fora, sendo desejvel a apresentao dos

    melhores argumentos favorveis e, tambm, os contrrios a cada uma delas, de modo que o juiz

    possa tomar sua deciso com amplo conhecimento da causa. De acordo com a maneira pela qual

    concebe sua misso, o juiz dar primazia segurana jurdica, coerncia, s conseqncias

    sociais de sua deciso ou eqidade.

    17 L. Fuller, The Morality of Law, Yale University Press, New Haven, 1964.

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    A lgica jurdica no se limita anlise dos esquemas argumentativos que podem ser

    utilizados para o acolhimento de uma ou outra tese jurdica. Antes, ela uma forma de

    argumentao que se desenvolve no interior de um contexto, o judicirio no mais das vezes, em

    que o respeito s regras de direito, sejam as de fundo, sejam as relativas ao procedimento,

    essencial. Em uma sociedade democrtica, a segurana jurdica, o respeito pelas regras e a busca

    da verdade, devem se conciliar com o respeito pessoa humana, com a proteo dos inocentes e

    com a salvaguarda das relaes de confiana, valores indispensveis vida em sociedade. Tal

    preocupao, totalmente estranha lgica formal, faz com que a lgica jurdica (a lgica da

    controvrsia) tenha como objetivo o estabelecimento, caso a caso, da predominncia de um ou

    de outro valor.

    Esta a razo, alis, pela qual o raciocnio jurdico no pode deixar de recorrer s

    fices jurdicas, atacadas com veemncia pelos tericos racionalistas do direito, com destaque

    a Jrmie Bentham.

    Ao contrrio do que ocorre com o cientista ou com o filsofo, o jurista deve levar em

    conta as fices. Pode ocorrer, por exemplo, que o juiz, sem competncia para alterar as leis,

    seja forado a recorrer s fices toda vez em que a deciso a ser tomada mostrar-se, de uma

    maneira patente entre os membros da comunidade, contrria eqidade. A fico jurdica pode

    ser definida como uma qualificao de fatos ou uma motivao contrria realidade jurdica.

    Eis alguns exemplos de fices jurisprudenciais que podem ser colhidos nos diversos

    campos do direito:

    O Direito Penal Ingls fornece um interessante caso de recurso fico na revolta dos

    jris populares contra as leis inglesas promulgadas nos anos seguintes Revoluo Francesa,

    tidas como demasiadamente severas. Todos os delitos qualificados como grand larceny (grande

    roubo) passaram a ser punidos com a pena de morte no incio do sculo XIX. O tipo penal

    compreendia todo roubo de objetos com valor superior a 40 shillings. Os juzes recusaram-se a

    condenar morte alguns homens culpados de roubo e estimaram em 39 shillings o roubo de

    qualquer importncia, diante da impossibilidade de alterarem a lei. No caso R.V. Macallister de

    1808, bastante elucidativo, no houve qualquer receio em avaliar em 39 shillings a subtrao de

    uma nota de 10 libras (200 shillings)18.

    Uma rebeldia nestes moldes contra um dado texto legal difcil de ser imaginada em se

    tratando de juzes profissionais. Entretanto, h casos em que a Corte de Cassao recorreu no

    s s fices, mas a uma verdadeira reinterpretao da lei, principalmente no que se refere

    motivao das decises.

    A Corte de Cassao da Blgica pode reformar um julgamento somente naquelas

    hipteses em que se verifica a violao de uma lei belga. O art. 1.080 do Code judiciaire de

    18 Cf. G. Gottlieb, The Logic of Choice, London, 1968, p. 44, a partir de Kenny, Outlines of Criminal Law, p. 208 (15. ed., 1946).

  • 9

    1967 determina que a petio do recurso adequado para tanto (recurso de cassao) conter "a

    indicao das disposies legais que fundamentam a violao". Quando o caso no era de

    violao da lei, mas de um princpio geral do direito, os advogados nas razes do recurso - e a

    Corte, na medida em que lhes dava razo - procuravam fundamentar-se, como dito pelo

    procurador-geral Ganshof van der Meersch, no discurso de abertura do ano judicirio de 1970,

    em textos legais que tinham somente uma relao "longnqua e aproximativa" com a regra de

    direito efetivamente violada19. Este uso de uma motivao mais ou menos fictcia mostrou-se

    indispensvel Corte para reformar um julgado que lhe parecia contrrio ao direito, at o dia

    em que, por proposta de seu procurador-geral, admitiu que "est satisfeita a obrigao do

    recorrente quando invocado e indicado em sua petio um princpio geral do direito"20. A

    tcnica da fico tornou-se desnecessria, desde que a Corte passou a interpretar o termo

    "disposies legais" em um sentido mais amplo, abrangendo, tambm, outras regras de direito.

    O terceiro exemplo fornecido pelo direito administrativo francs que se valeu do

    recurso fico jurdica para sair de um situao ridcula, que parecia juridicamente

    insustentvel21.

    Estes exemplos demonstram casos em que a busca de uma soluo aceitvel justifica a

    criao de uma fico jurisprudencial. Entretanto, no se pode deixar de ter em mente que esta

    tcnica perigosa, pois uma justia que se apresentasse como instrumento a servio de um

    poder desptico, poderia se valer dela para condenar inocentes, indesejveis ao regime. Por esta

    razo, ainda, so comuns as crticas em torno das fices jurdicas, pois quaisquer

    consideraes estranhas misso dos juzes do margem ao risco de arruinarem a segurana

    jurdica.

    Em concluso, considerando o direito como uma tcnica de proteo simultnea de

    diversos valores, s vezes incompatveis entre si, a lgica jurdica apresenta-se, essencialmente,

    como uma forma de argumentao destinada a motivar as decises de justia, para que possam

    usufruir de um consensus das partes, das instncias judicirias superiores e, enfim, da opinio

    pblica esclarecida. Se a soluo tomada pelo Tribunal, ao hierarquizar e ordenar valores

    conflitantes, no parecer aceitvel ela ser, conforme o caso, reformada ou cassada e, em se

    tratando de um julgamento da Corte de Cassao, poder suscitar a modificao da lei. desta

    forma que a administrao da justia em um Estado Democrtico resulta de uma constante

    19 Cf. Propos sur le Texte de la Loi et Les Principes Gnraux du Droit. Bruxelas, Bruylant, 1970, p. 132.

    20 Ibid., p. 133.

    21 O autor, segundo anota Alain Lempereur, organizador da coletnea Ethique et Droit, desenvolveu este exemplo em outra palestra que proferiu em 1978. Trata-se, ao que consta, da construo do conceito de funcionrio de fato pela Corte de Cassao francesa exposta na doutrina do administrativista francs Jean Rivero. Aquele Tribunal no deixou de reconhecer direitos subjetivos em prol de administrados de boa-f, ainda que originrios de irregular desempenho de funes pblicas naqueles casos em que, objetivamente, no havia margem de dvida quanto investidura e exerccio na forma da lei (N. T.).

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    confrontao de valores que implica um dilogo permanente entre o poder judicirio, o poder

    legislativo e a opinio pblica.