Consideração sobre a poesia brasileira em fim de século

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  • 7/30/2019 Considerao sobre a poesia brasileira em fim de sculo

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    C O N S I D E R A E S S O B R E A P O E S I AB R A S I L E I R A E M F IM D E S C U L O 1

    Iumna Maria Simon

    RESUMO

    "Temos no Brasil uma tradio literria moderna plena, anticonvencional, antitradicionalista,

    relativamente crtica, mas que j no funciona". A partir desta constatao, a autora faz um

    balano da poesia brasileira no sculo XX, tendo em vista as relaes que esta mantm com a

    modernizao e o mito do progresso. Esse roteiro destaca trs momentos-chave (modernismo,

    concretismo e "poesia marginal"), acompanhando os sentimentos diferentes e contraditrios

    que, em cada momento, mobilizaram a confiana da poesia brasileira na lgica da modernida-

    de. Por fim, destaca, no conjunto da produo potica atual, a transformao das tradies

    modernas em conformismo mercadolgico quase sempre traduzido em falsas continuidades

    ou superaes ps-modernas.

    Palavras-chave: literatura brasileira; poesia contempornea; modernidade artstica; vanguarda.

    SUMMARY

    "In Brazil, we have a modern literary tradition that is solid, non-conventional, anti-traditional,

    relatively critical, but which no longer works". Beginning with this statement, the author

    reviews twentieth-century Brazilian poetry, taking into account its relation to modernization

    and the myth of progress. The article distinguishes three key moments (modernism, concrete

    poetry, and "marginal poetry"), examining the different and conflicting feelings that in each

    moment mobilized Brazilian poetry's self-confidence within the logic of modernity. The article

    finally focuses on current poetic output, where modern traditions are transformed into a

    market-oriented conformity almost always translated as false continuities or as postmodern

    advances.

    Keywords: Brazilian literature; contemporary poetry; modernity in art; avant-garde.

    As pessoas hoje querem apenas trs coisas: o novo, o moderno e o jovem. Ningum se

    pergunta mais o que uma coisa boa de fato, que o que me interessa.

    Vivienne Westwood, a O Estado de S. Paulo, 24/04/1999.

    1

    Um dos traos mais notveis da poesia brasileira deste sculo suaradical contemporaneidade, isto , sua capacidade de se atualizar estetica-mente e de participar nos destinos da sociedade. Sintonizada com suacircunstncia histrica viva, ela tem sido uma poesia sempre pronta a

    NOVEMBRO DE 1999 27

    (1) Este texto amplia minhainterveno na mesa-redonda"As novas poticas" do III En-contro Internacional de Poe-tas, promovido pelo Grupo deEstudos Anglo-Americanos daFaculdade de Letras da Uni-versidade de Coimbra, em 10de junho de 1998.

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    CONSIDERAES SOBRE A POESIA BRASILEIRA EM FIM DE SCULO

    dialogar com as mais recentes correntes artsticas, tanto quanto capaz de

    produzir solues originais nos diferentes momentos do movimento

    moderno. Chegados agora ao fim do sculo, podemos dizer que temos no

    Brasil uma modernidade artstica altura das implicaes gerais desse

    conceito, uma tradio literria moderna plenamente constituda, porminstalada numa sociedade que usufruiu iniquamente dos supostos benef-

    cios da modernizao. Se pensarmos na literatura brasileira do sculo XIX,

    com sua ansiedade imitativa, a reboque da cultura europia, e pouca

    impregnao nacional, o estado contemporneo da poesia produzida no

    Brasil assinala o caminho andado. E mostra como a modernidade potica

    tem assumido a o papel de porta-voz do progresso almejado para o pas,

    como se vivssemos eternamente s vsperas de um desenvolvimento

    integrado que hoje j se pode dizer que no veio, nem vir. Este

    descompasso entre a modernidade concluda da poesia e a catstrofe ps-moderna do pas explica agora a posio difcil, seno constrangedora, que

    a poesia brasileira ocupa no quadro geral da poesia moderna, cuja regra

    tem sido antes a crtica ao progresso industrial, tecnolgico, a revelao de

    seus impasses e recalques, do que a aprovao, celebrao ou mimetizao

    de seus proce ssos (advertia o velh o Baudelaire: "A poes ia e o prog resso so

    dois ambiciosos que se odeiam com dio instintivo, e quando eles se

    encontram no mesmo caminho preciso que um dos dois sirva o outro").

    A um poeta como Drummond no escapou o paradoxo da posio do

    poeta brasileiro, cujos conflitos ele registrou com um grau de autoconsci-

    ncia indito, sem recalcar suas prprias ambivalncias modernistas em

    face das fantasias de progresso que fustigavam sua poca. "Melancolias,

    mercadorias, espreitam-me,/ Devo seguir at o enjo? Posso, sem armas,

    revoltar-me?" ("A flor e a nusea"). Creio que coube justamente a A rosa do

    povo, livro de 1945, configurar essa negatividade dilacerada entre a

    renncia aos anseios de modernizao ("O poeta/ declina de toda a

    responsabilidade/ na marcha do mundo capitalista/ e com suas palavras,

    intuies, smbolos e outras armas/ promete ajudar a destru-lo/ como uma

    pedreira, uma floresta,/ um verme.") e a crena na construo de um

    mundo melhor ("Este pas no meu/ nem vosso ainda, poetas./ Mas eleser um dia/ o pas de todo homem.").

    Entretanto, muito da fora inconformista das dices poticas criadas

    no Brasil deveu-se ao padro de atualidade conquistado pela inteligncia

    modernista dos anos 20, que soube traduzir o dado esttico novo,

    consultado nas vanguardas europias, em formas modernas de pesquisa e

    conhecimento da realidade do pas. Inaugurou assim novos modos de ver,

    sentir e figurar a experincia local. A partir da a soluo literria se

    particulariza, radicando-se no contexto moderno do atraso brasileiro, sem

    deixar de criticar as convenes literrias do passado, nem perder de vistaa crise da representao. Desta maneira se configura, no quadro da

    modernidade brasileira, uma superao provisria da dialtica do localismo

    e do cosmopolitismo, "lei de evoluo de nossa vida espiritual" conforme

    a formulao clssica de Antonio Candido, a qual seria decisiva para a

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    IUMNA MARIA SIMON

    formao de um sistema literrio nos pases novos e colonizados2. Histori-

    camente, no Brasil, a literatura precisou se integrar ao padro metropolita-

    no e dele se diferenciar, num movimento dialtico constante, at que a

    expresso do particular se sentisse vontade com as imposies das

    prestigiosas correntes contemporneas que at hoje continuam influindo.Se for apenas integrada, a literatura torna-se mera imitao do modelo

    europeu; para se constituir como sistema prprio, como literatura nacional,

    no pode faz-lo em abstrato, precisando especificar sua diferena por

    meio do modelo que, aos poucos, tem sua hegemonia enfraquecida.

    No caso dos anos 20, se a vanguarda brasileira no tivesse chegado

    percepo do contexto local e se suas solues literrias no correspondes-

    sem a tal particular, o modernismo dela recairia no vazio de um modernis-

    mo retrico, no universalismo abstrato de um futurismo de ultramar. Nesse

    momento complexo de inscrio da modernidade no quadro nacional doatraso redefine-se pois a universalidade vanguardista, que encontra no

    experimentalismo formal os meios para redescobrir os dados da realidade

    imediata. Numa passagem clebre, Antonio Candido notou que as "terrveis

    ousadias de um Picasso, um Brancusi, um Max Jacob, um Tristan Tzara,

    eram, no fundo, mais coerentes com a nossa herana colonial do que com

    a deles" 3. Isto significa que o acesso ao presente brasileiro foi mediado

    pelas novas linguagens criadas pela crise europia, cujos elementos de

    ruptura, choque e negao da ordem burguesa a exerceram a funo de

    descrever os conflitos, desajustes e contradies da condio local. Acom-panhando o movimento geral da modernizao, a noo de modernidade

    intuda pelos modernistas propiciou a especificao da matria brasileira no

    interior da forma nova: o desajuste entre a realidade atrasada e o mundo

    moderno no devia ser escamoteado; ao contrrio, tinha de ser exposto ao

    mximo em seus contrastes, de tal maneira que as disparidades por ele

    criadas pudessem compor uma imagem global da modernidade do ponto

    de vista brasileiro. "Apenas brasileiros de nossa poca", dizia marotamente

    Oswald de Andrade em seu "Manifesto da Poesia Pau-Brasil"4.

    Se o princpio modernista de "atualizao da inteligncia artstica

    brasileira", conforme a definio de Mrio de Andrade5 , foi bem sucedido e

    possibilitou, numa trajetria de percalos, a construo de uma cultura

    moderna e nacional no Brasil, hoje, quando seu ciclo histrico se encerrou,

    os constrangimentos do empenho atualizador vm tona, expondo as faces

    de uma contemporaneidade artstica que to viva quanto... insuficiente.

    Temos no Brasil uma tradio literria moderna plena, anticonvencional,

    antitradicionalista, relativamente crtica, mas que j no funciona. Noutras

    palavras, aquelas conquistas literrias pautadas pela atualizao e originali-

    dade, que permitiram que os modernistas tirassem a diferena que inferiori-

    zava a literatura brasileira, j no aferem hoje a defasagem ou o avano emrelao ao padro internacional do moderno, entre outras coisas porque este

    se generalizou desacreditando-se. Realmente temos uma modernidade

    artstica altura, e no caso uma poesia em parte internacionalizada e em

    parte bastante vinculada s referncias nacionais, o que no impede que a

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    (2) Para uma compreenso his-trico-crtica da dinmica pr-pria da formao da literaturabrasileira, remeto o leitor adois estudos fundamentais deAntonio Candido: Formaoda literatura brasileira. Mo-

    mentos decisivos. 5a

    ed. BeloHorizonte/So Paulo: Itatiaia/Edusp, 1975, 2 vols.; e "Litera-tura e cultura de 1900 a 1945"(in: Literatura e sociedade. 2ed. So Paulo: C ompanhia Edi-tora Nacional, 1967, pp. 129-160).

    (3) "Ora, no Brasil as culturasprimitivas se misturam vidacotidiana ou so reminiscn-cias ainda vivas de um passadorecente. As terrveis ousadiasde um Picasso, um Brancusi,

    um Max Jacob, um Tristan Tza-ra, eram, no fundo, mais coe-rentes com a nossa heranacolonial do que com a deles. Ohbito em que estvamos dofetichismo negro, dos calun-gas, dos ex-votos, da poesiafolclrica, nos predispunha aaceitar e assimilar processosartsticos que na Europa repre-sentavam ruptura profundacom o meio social e as tradi-es espirituais" (Candido, "Li-teratura e cultura de 1900 a1945", loc. cit., p. 121).

    (4) Sigo aqui Vinicius Dantas,

    cujos ensaios sobre a invenomodernista do Brasil foram im-prescindveis para essa com-preenso do perodo: "Oswaldde Andrade e a poesia". NovosEstudos. So Paulo: Cebrap, n30, julho, 1991, pp. 191-203; e"Entre A negra e a mata vir-gem". Novos Estudos. So Pau-lo: Cebrap, n 45, julho, 1996,pp. 100-116.

    (5) Ver "O movimento moder-nista", conferncia pronunciadapor Mrio de Andrade por oca-sio dos vinte anos da Semanade Arte Moderna, na qual ele

    faz um balano crtico e seve-ramente autocrtico dos alcan-ces e limitaes da atuao cul-tural do movimento modernistano contexto da modernizaobrasileira (in: Aspectos da litera-tura brasileira. So P aulo/Bra-slia: Livraria Martins Editora/INL-MEC, 1972, pp. 231-255).

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    CONSIDERAES SOBRE A POESIA BRASILEIRA EM FIM DE SCULO

    dificuldade atual de sua posio esttica acuse de uma s vez a irrealidade

    desse pa dr o internacional e tam b m o esvazia mento da referncia nacional.

    Em tempo observemos que, a despeito de arcasmos, vcios culturais e

    anacronismos de toda ordem, o subdesenvolvimento sempre estimulou a

    imaginao atualizadora; a poesia brasileira estava fadada por assim dizer aomoderno e ao antitradicional, forosamente posicionada contra o que

    parecia estorvo colonial. "Estamos, pela fatalidade mesma de nossa forma-

    o, condenados ao moderno", afirmava Mrio Pedrosa no final dos anos

    50 6. Afinal, na sociedade brasileira sempre h espao para o antitradicional e

    para as iluses da modernidade, tanto que ambos se confundem com a

    construo nacional ou institucional do pas e se fazem motor das transfor-

    maes sociais e culturais, tornando-se hoje ideologia estimulada pela mdia,

    pelas elites dirigentes e os donos do poder que a cada cinco ou quatro anos,

    numa situao social cada vez mais calamitosa, formulam macabras estrat-gias econmicas para ajustar o pas ordem mundial.

    Mxima contemporaneidade e insero sociocultural eficiente de-

    monstram a facilidade do trnsito que h no Brasil entre poesia e

    sociedade7 . Um trao brasileiro que, se empresta qualidades prprias

    nossa produo potica, tambm lhe impe limites quase que intranspon-

    veis, se considerarmos que a experincia contempornea no se generaliza

    homogeneamente e s est ao alcance de alguns setores da sociedade.

    Mesmo assim, os padres da mdia ganham hegemonia, difundindo com

    rapidez e primarismo a ltima onda do capitalismo num contexto agravado

    pela desagregao social, pela deteriorao do sistema educacional, pelo

    investimento em analfabetismo relativo e reativao do preconceito racial

    e cultural nesse quadro de desigualdade social ascendente. Vivemos num

    pas, preciso lembrar, em que a mdia, em especial a televiso, tem uma

    fora extraordinria, um poder inigualvel de influncia sobre a sociedade,

    cuja experincia letrada se rarefaz em seu trnsito freqente para a esfera

    miditica, afetando inclusive o saber produzido na universidade, que aos

    poucos perde a legitimidade de sua especializao.

    2

    Ainda que sucinto, um quadro como esse nos coloca diante de

    aspectos incmodos da relao da poesia com a modernizao desigual.

    Acompanhemos um pouco mais de perto os momentos decisivos desse

    percurso, destacando os sentimentos diferentes e contraditrios que mobi-

    lizaram a confiana da poesia brasileira na lgica da modernidade. Para

    isso, detenho-me na categoria do novo, j que interessam aqui os esforosperidicos de atualizao potica que, embora motivados por solicitaes

    diversas em cada momento histrico, deram expresso a tais anseios.

    No modernismo dos anos 20, como vimos, a atualizao artstica

    inaugurou um conceito de modernidade que se traduziu em conscincia

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    (6) Pedrosa, Mrio. "Braslia, aCidade Nova", apud Arantes,Otlia B. F. Mrio Pedrosa: iti-nerrio crtico. So Paulo:Scritta Editorial, 1991, p. 88.

    (7) Um captulo desse estilo deconsagrao nos anos 50 spode ter sido assim registradograas sagacidade de umaobservadora estrangeira que otestemunhou in loco: "Poetase poesia so tidos em alta esti-ma no Brasil. Entre homens,'poeta' s vezes se usa comocumprimento ou expresso de

    afeto, mesmo se a pessoa refe-rida um homem de negciosou um poltico, de modo al-gum um poeta. Um dos maisfamosos poetas brasileiros dosculo XX, Manuel Bandeira,foi agraciado com uma vagapermanente em frente de seuprdio de apartamen tos no Riode Janeiro com uma placa lus-trosa de 'POETA' apesar denunca ter possudo carro enem saber dirigir. Quando jera bem idoso, Bandeira lecio-nou uns poucos anos na Uni-versidade do Brasil, chegando idade de aposentadoria mui-

    to antes de ter lecionado onmero de anos necessriopara obt-la. Contudo, a C-mara dos Deputados, em gran-de ovao, concedeu-lhe porunanimidade aposentadoriaintegral" ("Introduction". In:Bishop, Elizabeth e Brasil,Emanuel (orgs.). An anthologyof twentieth-century Brazilian

    poetry. Middletown: WesleyanUniversity Press, 1974, p. xiii).

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    I U M N A M A R I A S IM O N

    crtica das particularidades da sociedade brasileira da distncia entre anorma escrita da lngua e a fala coloquial aos contrastes entre o mundo doatraso e o acesso modernidade, dos valores culturais dominantes aoscostumes, tradies e prticas populares. O novo, neste caso, o que

    modifica a inautenticidade da tradio cultural anterior (os mitos do bem-dizer, o parnasianismo, o academicismo, o esteticismo francesista), impli-cando portanto um desejo de superao da ordem e dos valores vigentes.De sorte que a pesquisa esttica, inventando formas artsticas novas,atendia s prprias demandas do processo em curso, ao mesmo passo queinventava imaginariamente um novo Brasil. O que diferenciava o modernis-mo brasileiro era, portanto, o sentimento de que a integrao moderniza-dora seria capaz de formular e pela primeira vez realizar artisticamente aespecificidade da experincia nacional. A "desgeografizao" de Mrio de

    Andrade, por exemplo, pressupe a construo imaginria de uma totalida-de brasileira nova. Como um bricoleur, Mrio pesquisa, registra e incorpora sua obra literria expresses, tradies e crenas populares, mitos,smbolos, retirados de diferentes regies do pas e misturados a todo tipode pesquisa culta. Enquanto o lirismo sinttico e piadstico de Oswald deAndrade, ao demolir os mitos passadistas, os valores patriticos, os grandessmbolos da cultura nacional, o mal da eloqncia "balofa e roagante",como diz Paulo Prado no "Prefcio" a Pau-Brasil (1925), reconta comhumor e irreverncia a histria do Brasil, de Pero Vaz de Caminha aosarranha-cus. E nos surpreende com uma poesia concisa do cotidiano,montagens de paisagens rurais e urbanas, cidadezinhas do interior, anedo-tas, tradies culturais, tipos populares, que compem um movimentadopainel da vida brasileira, repleto de contrastes8. Mas como nos anos 20/30os fatores clssicos da modernizao, a industrializao, a urbanizao, atcnica, eram ainda incipientes, o novo artstico se antecipava a eles, aomesmo tempo que os abordava com desconfiana, atenuando o progressis-mo e traduzindo-se em meio privilegiado para melhor compreender opassado, a vida popular, os descompassos e conflitos que formam asociedade brasileira. Assim, ao ser recolhida pela forma nova, a diferena

    local se configura literariamente, expondo o lado tortuoso dessa moderni-zao.

    Com premissas da mesma ordem, quanto ao empenho de interven-o artstica e cultural na construo do pas, a atualizao concretista dosanos 50 criou uma idia de vanguarda diretamente vinculada mitologiada nova era industrial e tecnolgica do ps-guerra, com suas invenescientficas, planejamento racional, novos meios de informao e comuni-cao. Nesse momento, relembremos, o nacional-desenvolvimentismo(1956-60) alimentava a esperana de rpida sada do subdesenvolvimento

    por meio da industrializao, da ampliao do mercado interno, dasubstituio das importaes, da economia planejada. O novo entopreconizado pelo concretismo implicava uma adeso irrestrita a essesfatores, fantasiando um processo de superao do subdesenvolvimentocom racionalidade potica e inveno criativa. Ao contrrio dos modernis-

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    (8) Roberto Schwarz valorizouas implicaes literrias dessa

    justaposio de elementos pr-burgueses e burgueses no con-texto modernista dos anos 20,em seu ensaio "A carroa, obonde e o poeta modernista"(in: Que horas so? So Paulo:Companhia das Letras, 1987,pp. 11 - 48).

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    tas, que pretendiam que os traos brasileiros aflorassem ao mximo

    medida que o progresso urbano-industrial se instaurasse, neste outro

    momento, superar o subdesenvolvimento queria dizer l i teralmente supe-

    rar os traos nacionais em prol de uma modernidade pensada em abstrato,

    independentemente dos processos sociais, econmicos, tcnicos, urbanosque estavam de fato em andamento. A confiana cega no progresso forjou

    uma noo muito peculiar de engajamento poltico-social, cujas formas de

    interveno seriam mais efetivas quanto mais esteticistas fossem. Eis como

    o artista plstico Waldemar Cordeiro, um dos prceres e o terico mais

    importante do movimento concretista na pintura, formulava a questo:

    "... no tentaremos levar o real para a cultura, mas a cultura para o real" 9.

    Para a poesia, palavras de ordem como essas condiziam com a proposta

    de uma "revoluo total da linguagem" (a "primeira grande totalizao da

    poesia brasileira", diziam na poca os poetas), por meio da criao de umnovo espao potico, grfico, visual, racional, inteiramente planejado,

    nisso equiparvel ao progresso socioeconmico v-se assim o quanto

    essa vanguarda idealizava as inovaes esttico-formais que alterariam

    radicalmente o espao tradicional de atuao da poesia. Dada a natureza

    anmala da modernizao brasileira, tais projees imaginrias abstraam

    seu "lugar social", para falar como Adorno, criando uma ideologia da

    forma capaz ela mesma de impulsionar o desenvolvimento do pas, j sem

    qualquer ponta de desconfiana. Em resumo, por desconhecer seu hori-

    zonte histrico imediato o esteticismo dessa vanguarda tanto se apia em

    procedimentos tcnicos e formais que s lhe resta idealizar o controle

    racional dos materiais prprios do poema, como se este j fosse a

    desejada transformao da sociedade, a um passo da universalidade. Uma

    tal dessintonia com o sentido histrico e cultural da modernizao desi-

    gual no poderia deixar de se refletir na prpria interveno concretista,

    que fora concebida para um mundo de "objetos-bens-de-consumo sim,

    mas no mbito do pensamento e da sensibilidade, inconversveis que so

    a valores meramente utilitrios", ou seja, um mundo em que at a

    mercadoria era idealizada10 .

    De qualquer modo, em ambos os casos, no modernismo e noconcretismo, estvamos ainda diante de empenhos de atualizao esttica

    voltados para a transformao da vida brasileira, seja exaltando as especi-

    ficidades locais, seja idealizando algum futuro promissor. A partir de 1964,

    com o golpe militar, as propostas de ajuste intelectual e artstico melhor

    talvez dizer aqui as poticas desenvolvimentistas mudam de sinal, outra

    vez por razes internas. Com a entrada em cena da ditadura militar, as elites

    cultas progressivamente se desidentificam do contedo dessa moderniza-

    o, tornando-se cada vez mais difcil idealizar o progresso e pensar a

    integrao positiva da arte nas transformaes da sociedade. Curiosamente,a poesia sai do centro da cena cultural, cedendo lugar a outras manifesta-

    es capazes de lidar com as contradies daquele momento de maneira

    mais interessante e com maior alcance comunicativo, tais como o cinema,

    o teatro e a msica popular.

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    (9) Cf. "Teoria e prtica doconcretismo carioca". In: Ama-ral, Aracy (coord.). Projetoconstrutivo na arte: 1950-1962. Rio de Janeiro/So Pau-lo: Museu de Arte Moderna/Pinacoteca do Estado, 1977, p.135.

    (10) Pignatari, Dcio. "Forma,

    funo e projeto geral". In:Campos, Augusto de, Pignata-ri, Dcio e Campos, Haroldode. Teoria da poesia concreta.Sao Paulo: Livraria Duas Cida-des, 1975, p. 110.

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    IUMNA MARIA SIMON

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    Sinalizando a mudana de estatuto cultural da poesia, o movimento

    seguinte, surgido nos anos 70, chamar-se- "poesia marginal", a bem dizerum movimento de jovens poetas que pretendiam com rebeldia e irrevern-

    cia reagir ao autoritarismo da ditadura militar criando alternativas s formas

    de produo e consumo da poesia. Do lado da renovao editorial, eles

    imprimiam e financiavam seus prprios livros, vendendo-os em porta de

    cinemas, bares e teatros, buscando sensibilizar o leitor mais jovem para uma

    experincia artstica que no possua equivalente industrial. Do lado

    estilstico, os poetas marginais restauravam, com impulso sincero de

    antagonismo cultural, as principais armas de choque da tradio modernis-

    ta, tais como a piada, a poesia-minuto, o coloquialismo, a espontaneidade,o humor. Com isso, queriam ressuscitar o histrico esprito antiburgus do

    modernismo do incio do sculo em contexto que lhe era oposto, assumin-

    do a ressubjetivao da linguagem da poesia contra o intelectualismo, o

    formalismo e a despersonalizao das poticas construtivas dominantes (as

    referncias so Joo Cabral de Melo Neto e a poesia concreta). A poesia

    passaria agora a ser um modo de assegurar a realizao plena do sujeito, em

    termos vitais, emocionais e existenciais. O novo neste momento significava

    portanto a liberao das represses, das insatisfaes, dos valores morais,

    familiares e institucionais como se no mbito da intimidade e da

    subjetividade estivesse a resposta que poderia enfrentar o autoritarismo. O

    desespero inocente desse lirismo podia ento dizer: "meu amor se esparra-

    ma na grama/ meu amor se esparrama na cama/ meu amor se espreguia/

    meu amor deita e rola no planeta"11.

    Se dentre os recentes foi este o movimento mais explcito na crtica

    mitologia modernizadora, esta crtica ficou no entanto marcada por sua

    circunstncia poltica imediata. Justamente porque tal mitologia se identifi-

    cava com a ditadura, naquele momento emblemtico do assim chamado

    "milagre brasileiro", em que se acentuaram a represso poltica, a violncia

    policial, a censura e a paralisao cultural, a poesia marginal desconfiou davinculao entre poesia e progresso. Era a experincia subjetiva, valorizada

    em sua vitalidade e liberdade, que deveria negar os constrangimentos

    autoritrios, afirmando que seu inconformismo lrico no fora afetado pela

    lgica do processo modernizador. Contra qualquer agrura o narcisismo

    poderia ser ativado, acreditando-se que na subjetividade se concentrava o

    enfrentamento das censuras da sociedade. Ainda assim observemos que os

    poetas marginais se deram conta de que a idia do poema como instrumen-

    to do desenvolvimento nacional estava bloqueada, seno esgotada.

    Aps a modernizao conservadora conduzida pelos governos mili-tares, o antigo progressismo ficou abalado. Todavia, somos um pas

    moderno, integrado na ordem mundial, que mostra os lados mais nefastos

    da modernizao, durante a qual se acentuaram todos os desnveis sociais

    e culturais da sociedade brasileira, inclusive a pior distribuio de renda do

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    (11) Chacal. Drops de abril.So Paulo: Brasiliense, 1983,p. 11.

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    CONSIDERAES SOBRE A POESIA BRASILEIRA EM FIM DE SCULO

    planeta. E o que a tradio da modernidade e da vanguarda tem a dizer

    sobre isso? E aquelas propostas inconformistas, construtivas, irreverentes,

    conquistadas ao longo deste sculo, de que servem agora? Se as manifes-

    taes do novo examinadas aqui no avanaram o suficiente na crtica

    modernizao, no tero paradoxalmente outros aspectos a serem reapro-priados, e que por assim dizer ainda no se cumpriram? O dado localista do

    modernismo no ter algo a oferecer nestes tempos de globalizao em que

    a prpria definio de local se modificou e se tornou mais complexa? No

    ambiente catico do mundo desregulado, se algum tiver a pretenso de

    realmente cumprir o desejo de ordem do iderio construtivo, sem as

    abstraes universalistas e o provincianismo concretistas, no travaria um

    bom combate? E a mitologia da liberao expressiva dos poetas marginais

    no estaria ainda viva para dar o seu depoimento sobre as tiranias da

    intimidade e a minimizao do eu?

    4

    Hoje, quando o nexo modernidade artstica/modernizao se partiu,

    e o pas no tem mais condies de se desenvolver mas precisa a qualquer

    custo entrar para a nova ordem da globalizao, cabe perguntar como ficam

    o princpio da atualizao, a inveno formal, que apesar dos seus limitesfaziam a crtica do atraso, dos arcasmos da sociedade brasileira, do

    conservadorismo das elites e, bem ou mal, eram ainda capazes de formular

    as vs promessas do novo. A corrida vanguardista para passar o facho

    adiante j parou, e dela resta o fetiche da Linguagem, quer dizer, dos seus

    prprios materiais. Por sua vez, o novo, integrado na ordem internacional,

    se torna uma categoria incua: aqueles radicalismos de teor social (moder-

    nismo dos anos 20), formal (vanguardismo dos anos 50) e expressivo

    (marginalismo dos anos 70) se desmancharam no ar. Como no h mais

    nacionalismo nem utopias vista, o princpio de atualizao artstica chega

    ao fim e com isto se esvai a potncia do novo. Entre parnteses, observoque este esgotamento assinala a modificao de um trao do sistema

    literrio dos pases novos, tal como identificado por Antonio Candido, que

    o designou como "tradio empenhada", com isso querendo dizer que o

    artista brasileiro tem sido obrigado a desempenhar o papel de agente

    civilizador, funo social que ele assumiu ao longo das vrias estaes do

    atraso12 .

    a partir da "dcada perdida", como se designa l a regresso

    econmica e social dos anos 80, que presenciamos a desmistificao cabal

    do que foi o radicalismo potico nas suas diferentes verses desmistifi-cao que vem acompanhada de uma desconfiana, esta sim radical, na

    possibilidade de realizao do sujeito, ou melhor, na potncia dos sujeitos

    como agentes transformadores da linguagem e da prpria sociedade.

    Progressivamente os jogos de linguagem, as brincadeiras sonoras e visuais,

    34 NOVOS ESTUDOS N. 55

    (12) De outro ngulo, este es-gotamento foi pressentido em1955 por nosso crtico quandoobservou: "Viu-se ento queno momento em que a litera-tura brasileira conseguia forjaruma certa tradio literria,criar um certo sistema expres-sivo que a ligava ao passado eabria caminhos para o futuro, neste momento as tradiesliterrias comeavam a nomais funcionar como estimu-

    lante. Com efeito, as formasescritas de expresso entra-vam em relativa crise, ante aconcorrncia de meios expres-sivos novos, ou novamentereequipados, para ns, como o rdio, o cinema, oteatro atual, as histrias emquadrinhos. Antes que a con-solidao da instruo permi-tisse consolidar a difuso daliteratura literria (por assimdizer), estes veculos possibili-taram, graas palavra oral, imagem, ao som (que supe-ram aquilo que no texto escri-to so limitaes para quem

    no se enquadrou numa certatradio), que um nmerosempre maior de pessoas par-ticipassem de maneira maisfcil dessa quota de sonho ede emoo que garantia o pres-tgio tradicional do livro" (Can-dido, Literatura e sociedade,loc. cit., pp. 159-160).

  • 7/30/2019 Considerao sobre a poesia brasileira em fim de sculo

    9/10

    IUMNA MARIA SIMON

    a dessensibilizao metafrica, a reciclagem de dices modernas presti-giosas (Drummond, Bandeira, Cabral e at mesmo o concretismo) foramsubstituindo as iluses modernas tanto da realizao plena da expresso dosujeito quanto do empenho artstico de intervir na construo do pas.

    Da retradicionalizao dos anos 80 ao pluralismo potico dos nossosdias, a poesia contempornea se cristalizou de tal maneira que quase todosos seus procedimentos e tcnicas se tornaram anacronismos, isto ,recursos poticos que prescindem da experincia e da prpria poesia,reduzidos ao culto de gneros, referncias e aluses a si mesmos13 . Enfim,o idioma da poesia est hoje pacificado, e nesta atitude de aceitaoconsumista de todo o legado da tradio (moderna e antiga) o dado novo que a criao potica vai se tornando cada vez mais uma tradio zelosade si e de seus prprios valores. Por paradoxal que parea, agora a meta

    revalorizar a competncia lrica, o cuidado artesanal, uma pretensa eleva-o da dico, baseada na reapropriao de estilos anteriores datados,retomando-se a idia mais edificante de poesia como forma e contedo como se a literatice tivesse agora outro flego, podendo at revitalizartradies que pareciam superadas, como o beletrismo e o preciosismoverbal. Na falta de qualquer antagonismo, o que conta uma certaadequao psicolgica de cada linguagem previamente existente ao tempe-ramento, cada autor exercendo sua preferncia dentro das opes prontasda tradio. Tudo converge para um lirismo e um expressionismo debilita-dos, os quais acenam com um direito ilusrio liberdade de poetar, masdestitudo de maior compromisso com o sujeito que os pratica, o que, nomeu modo de ver, realiza a libertao formal dos modernos como farsa, emestado permanente de creative writing. Nesse pluralismo esttico, o arsenalvanguardista de procedimentos fragmentrios, paratticos, assindticos,passa a servir meditao existencial, reflexo sobre a linguagem, depurao formal, elevao da lngua (para ocultar a misria do seuensino e a falncia da educao pblica), com muito respeito pelos gneroscannicos14 .

    Convenhamos que, nesse quadro de desintegrao de tradies e de

    falncia do estilo individual, poesia brasileira tm restado pouca negati-vidade e baixa inveno. Muita produo, ecletismo de timbres e dices,em que o carter diferenciador da obra individual se perde, substitudo pelapercia verbal, habilidade tcnica e "revisitao" de estilos consagrados a ponto de autores de diversa inspirao e tcnica submergirem numamesma corrente de requalificao forada da linguagem potica 15 .

    (Algum dir que preciso relativizar esta minha observao, a bemdizer esta valorao crtico-literria, j que hoje as categorias modernas daobra individual ou da negatividade crtica j no valem tanto assim,

    ultrapassadas pelos novos padres ps-modernos da textualidade em si,dos efeitos discursivos criados por tcnicas de citao, interpolao eproliferao de aluses literrias, ou pela sobreposio de padres identi-trios e expresses das minorias culturais realizao artstica, conforme osnovos critrios poltico-acadmicos dos chamados cultural studies. Mas eu,

    NOVEMBRO DE 1999 35

    (13) No custa lembrar que opluralismo dessa produo pa-rece ter sido instigado pelo

    princpio ps-utpico que Ha-roldo de Campos celebrou emtexto de 1984, quando assumiuconjunturalmente que a tarefada poesia passava agora a ser a"pluralizao das poticas pos-sveis", isto , a admisso rea-lista do existente (poesia da"agoridade") fundada num dia-logismo puramente textual quedescarta qualquer oposio ounegatividade caracteristica-mente modernas. Quero dizerque o poeta ex-vanguardistaprecisa ser reconhecido comopatrono dessa tendncia hojeassoladora (cf. "Poesia e mo-dernidade: da morte da arte constelao. O poema ps-ut-pico". In: O arco-ris branco.Ensaios de literatura e cultura.Rio de Janeiro: Imago, 1997,pp. 268-269).

    (14) curioso que um mestreda agitao conservadora te-nha recentemente propostouma "restaurao da lngua quenos foi legada pelo coloniza-dor sua dignidade original,isto , lusitana com muita hon-ra!", para se contrapor ao re-baixamento (?) modernista, aoqual se atribuem, entre outrasmazelas, o relaxamento idio-

    mtico e a pobreza atual denossa linguagem. Isso porque"[no somos uma variante afro-cafuza da lusofonia, nosso di-lema no 'tupi or not tupi', ,ainda e sempre, ser ou no sero que de fato somos: uma gran-de e sempre por si mesmarenovada civilizao lusfona"(Tolentino, Bruno. "Banquetede ossos". Bravo/ So Paulo,ano 1, n 8, maio, 1998, p. 18).Esse tradicionalismo racista ediscriminador tem encontradoboa acolhida na mdia, queparece agora se identificar comos piores vezos de certo nacio-

    nalismo e elitismo que ela pr-pria diz estarem superados.

    (15) Aps a "desqualificao"marginal, uma antologista as-sim descreve, agora com des-concerto, essa volta literatu-ra: " a vez do poeta letradoque vai investir sobretudo narecuperao do prestgio e daexpertise, no trabalho formal etcnico, com a literatura. Seuperfil o de um profissionalculto, que preza a crtica, temformao superior e que atua,com desenvoltura, no jornalis-mo e no ensaio acadmico,

    marcando assim uma diferen-a com a gerao anterior, agerao marginal, antiesta-blishment por convicco"(Buarque de Holanda, Helo-sa. "Introduo". In: Esses poe-tas Uma antologia dos anos90. Rio de Janeiro: Aeroplano,1998, pp. 10-11).

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    10/10

    CONSIDERAES SOBRE A POESIA BRASILEIRA EM FIM DE SCULO

    como crtica literria, desconfiada das idias de moderno, novo e jovem,

    interessada ainda nas coisas boas de fato, como posso considerar superadas

    carncias que sinto dentro de uma situao cultural que se recusa a

    satisfaz-las?)

    E agora, neste ltimo ano do sculo, na situao de ps-catstrofe emque vivemos s vsperas dos 500 anos do Brasil, ficamos a perguntar o que

    poder ser o novo, ou o que est ocupando o seu lugar. Sem pretender dar

    conta das possibilidades existentes, nem desmerecer o empenho dos

    poetas atuais em sua incansvel "procura da poesia", desconfio que o novo,

    pelo menos no campo especfico da produo potica, est circunscrito a

    formas e estratgias de atuao literria cujas linhas gerais podem ser assim

    delineadas: a) a liberdade de circular por todos os movimentos e

    propostas anteriores, sem restries e sem dramas, em jogos de linguagem

    que atropelam as historicidades. Multiplicaram-se os tradicionalismos,todos modernos, em cujas opes estticas atenuadas identificamos a

    aparncia de exigncia formal e riqueza de tendncias fenmeno que se

    imps com a retradicionalizao frvola da poesia nos anos 80, contra o

    rebaixamento do potico e o desleixo formal da poesia marginal; b) a

    identificao com os rtulos modernos, sem as inquietaes e os sentidos

    crticos de origem, rtulos estes quase sempre traduzidos em falsas

    continuidades ou superaes ps-modernas; c) a integrao tranqila no

    horizonte do mercado, rendio que em muitos casos passa por conscin-

    cia crtica. E o mais curioso o culto da liberdade abstrata de se integrar,

    seja pela identificao com autor ou tendncia prestigiosos, nacionais ou

    estrangeiros, seja buscando um lugarzinho ao sol no movimento editorial

    internacional, seja ainda por meio de gangues ou lobbies que infestam a

    universidade e a mdia por igual. Inscrever-se na tradio passou a ser uma

    forma de inserir-se no mercado editorial, de ganhar reconhecimento e lugar

    nesse negcio da poesia que, ao fim e ao cabo, no passa de um oficialismo

    desprovido de Estado e burguesia e no no mnimo estranho que o

    bandeirismo, o drummondismo, o cabralismo, o concretismo, o leminskis-

    mo etc. se tenham tornado griffes? (que digo eu, a poesia entrou na corrida

    do prt--porter?) E nos contentemos com esta circunstncia cmoda, emque o (supostamente) novo hoje no pode ser seno a reproduo ingnua,

    sofisticada ou cnica do sempre-igual do mercado?

    36 NOVOS ESTUDOS N. 55

    Recebido para publicao em8 de setembro de 1999.

    Iumna Maria Simon professo-ra de literatura na USP e Uni-camp. Publicou nesta revista"Esteticismo e participao: asvanguardas poticas no con-texto brasileiro" (n 26).