Concepções de Língua e Reflexos na Prática do Professor

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  • 7/30/2019 Concepes de Lngua e Reflexos na Prtica do Professor

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    Concepes de Lngua e Reflexos na Prtica doProfessor

    Gilberto Scarton

    Problema de lngua, conflito de paixes.

    Amado Alonso

    O ensino de lngua na escola a nica disciplina em que existe disputa entre duasperspectivas distintas, dois modos diferentes de encarar o fenmeno da linguagem:a doutrina gramatical tradicional, surgida no mundo helenstico no sculo III a.C., ea lingstica moderna, que se firmou como cincia autnoma no final do sculo XIX

    e incio do sculo XX.

    Marcos Bagno

    ... ainda creio que a mais importante contribuio que a lingstica pode trazer aoprofessor em sala de aula formular sua viso sobre o que so as lnguas e oaprendizado de uma lngua.

    Albert Marckwardt

    Introduo

    Inspirou o presente tema o fato de existirem, na apreciao de questeslingsticas, pontos de vista conflitantes, concepes errneas bastante difundidas,o que leva a crer que princpios fundamentais que a Lingstica vem fixando nosltimos tempos no esto sendo incorporados por professores de lnguaportuguesa, por alunos e pela comunidade em geral.

    A anlise de manuais de cultura idiomtica ou simplesmente de artigospublicados em jornais e revistas; o levantamento de atitudes de professores deportugus, realizado em entrevistas, cursos e pesquisa; a observao docomportamento de entrada de alunos de Letras e ainda os testemunhos que seouvem a toda hora - "como ns falamos errado", "como o portugus difcil","quanto mais se estuda, menos..." - podem comprovar o que se disse.

    Fixando-se a ateno em artigos de jornal e em manuais de cultura idiomtica,citam-se alguns exemplos que ilustram a falta de um enfoque adequado em relaoa inmeros fatos gramaticais, conseqncia de concepo equivocada acerca danatureza das lnguas.

    O jornal Folha da Tarde (Porto Alegre, 27/04/81) publicou reportagem com ottulo "Por que o brasileiro no consegue aprender seu idioma". Transcrevem-seaqui algumas opinies:

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    "Se valerem os conceitos universais para a classificao das formas de comunicao dos povos, oPortugus, falado no Brasil, no pode ainda ser considerado uma lngua. Ele no tem uniformidade, asregras so falhas e sua evoluo mais rpida do que a capacidade de organizao dos especialistas.

    Isso porque, ao contrrio das lnguas mais antigas, suficientemente domesticadas, o Portugus do Brasilcontm mais excees do que regras e, em alguns casos, simplesmente no respeita regra nenhuma.

    A nossa o tipo de lngua que no favorece o falante por causa da quantidade de detalhes que possui.Em vez disso, o que vemos no Brasil que existe uma linguagem empregada no telejornal e outra nasnovelas. A primeira, bastante correta; a outra, de qualidade duvidosa."

    Poder-se-ia avanar muito nesta tarefa de pinar, atravs da leitura deperidicos, concepes totalmente distorcidas. No o objetivo do momento. Atranscrio realizada , no entanto, suficiente para mostrar que opinies muitasvezes manifestadas em jornais e revistas carecem totalmente de fundamentaolingstica.

    O mesmo acontece com manuais de cultura idiomtica. Vejam-se, por exemplo,as lies de Almeida (1964). O autor de Cooperemos para a boa

    linguagem ensina que se deve corrigir frases como "Estava o doente com febrealta, que punha em perigo sua vida", "O Serrano jornal semanal", "Senecessitares de alguma coisa, pede pelo telefone", "Fomos ao Maranho num navioa vapor", "O nibus est lotado". No se tem dvida de que tarefa impossvelpara a imensa maioria dos utentes da lngua descobrir algum erro nas frasescitadas. Para mostrar o absurdo a que chega o autor, d-se aqui a chave dacorreo: no existe febre "alta" nem "baixa", deve-se dizer "temperatura"; o

    jornal no pode ser semanal, uma vez que a palavra vem do italianos e significa"dirio"; "telefone" um barbarismo que deve ser substitudo por "telefnio";"navio de vapor" e no "navio a vapor", que um galicismo; "lotado" palavra nodicionarizada.

    Poder-se- argumentar que os exemplos foram extrados de obra relativamenteantiga. Pode-se comprovar, no entanto, que no existe diferena significativa,observando-se muitos manuais de cultura idiomtica publicados maisrecentemente. O manual No erre mais(Sacconi, 1979) ensina, por exemplo, quese deve dizer "suadouro" e no "suador", "a personagem" e no "o personagem","est na hora de ela entrar" e no "est na hora dela entrar", formas quecontrariam os usos lingsticos cultos atuais e outros registros de autores maisatentos realidade lingstica dos fatos. (Consultem-se os dicionrios de Luft eAurlio, para os dois primeiros casos, e Bechara (1975) para o ltimo).

    Aqui tambm no se quer fazer um levantamento exaustivo de pontos malabordados em nossa bibliografia no que diz respeito, principalmente, questonormativa da lngua. Quer-se mostrar apenas, atravs de alguns exemplos, a

    existncia de inmeros aspectos tratados sem fundamentao por manuais decultura idiomtica e que, sem dvida, influenciam os professores de lnguaportuguesa que, por sua vez, transmitem aos alunos e ao pblico em geral umaviso bastante distorcida da lngua.

    Mais um fato revelador deve ser aqui citado para ressaltar uma vez mais arelevncia do tema em questo.

    Em 1989, em pesquisa financiada pelo Instituto de Estudos e PesquisasEducacionais (Scarton, 1989), aplicou-se um questionrio com 77 questes a 100professores de lngua portuguesa da Grande Porto Alegre. Nas dez ltimas questesdizia-se que as construes apresentadas apareciam em dissertaes de candidatos

    no exame vestibular, solicitando-se aos professores que marcassem se corrigiriamou no as referidas construes. O teste apresentou os seguintes resultados:

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    CORRIGIRAM NOCORRIGIRAM

    68. As medidas do Governo visavam o combate a

    inflao.

    65 33

    69. Aumento de salrio implica em inflao? 47 50

    70. Todos ns custamos a crer no efeito das medidas. 35 60

    71. Tu e ele acreditariam nas medidas. 40 56

    72. Nossa famlia consome apenas quinhentas gramasde carne por semana.

    70 26

    73. Os integrantes da equipe econmica entravam esaam da sala apressados. 39 56

    74. Est na hora dos empresrios colaborarem. 40 56

    75. Ns assistimos um debate sobre economistas. 75 21

    76. A equipe econmica chegou em Braslia ontem

    noite.41 56

    77. Amanh no ter mais comida na mesa de muitagente. 54 41

    evidente a falta consenso demonstrada pelos professores submetidos aoteste, o que pe a descoberto concepes diferentes frente norma lingstica bemcomo a falta de preparo slido. Algum diria que as estruturas apresentadas sopolmicas e que a abordagem que delas fazem os gramticos bastantecontrovertida. Tal fato, no entanto, no exime o professor da obrigao de seatualizar atravs de cursos e leituras mais especializadas, fato que lhe permitir sepostar diante da lngua com uma atitude mais fundamentada, arejada, cientfica,projetando para a sociedade a imagem de um profissional que efetivamenteconhece a especificidade do objeto de sua rea de especializao.

    Denunciar concepes distorcidas, errneas, preconceituosas em relao lngua, que h muito deveriam ter sido superadas pela confrontao com princpiosque a Lingstica vem construindo nos ltimos tempos e encorajar os colegas aexplorarem cada vez mais as potencialidades expressivas da linguagem so, pois,os objetivos principais do artigo.

    No demais relembrar, antes de concluir, que a tarefa do professor de lnguamaterna pode ser facilitada e enriquecida pelo apoio que a Lingstica Moderna lheoferece. No se quer dizer com isso que ele deva ser um especialista na rea.

    Quer-se dizer simplesmente que imprescindvel acercar-se dos princpios que osestudos lingsticos vm fixando nas ltimas dcadas, que lhe propiciariam refletirsobre inmeros aspectos aceitos rotineiramente, mas que, luz dos novosconhecimentos, deveriam ser redefinidos ou at abandonados.

    Quanto organizao do texto, apenas duas palavras. Faz-se, primeiramente,um rpido relato acerca de concepes lingsticas ao longo da histria para, aseguir, abordar as principais concepes conflitantes na abordagem de nossosassuntos gramaticais.

    1. Concepes acerca da lngua - viso histrica

    "Concepo" idia, conceito, noo, modo de ver, ponto de vista, opinio,

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    maneira de formular uma idia. Concepes acerca da lngua so, pois, modos dever, pontos de vista, opinies a respeito da lngua.

    Concepes de linguagem esto profundamente enraizadas na psique individuale coletiva. Com efeito, tem havido sempre, nas culturas em geral, uma quantidadeaprecivel de mitos, crenas, tradies que revelam as concepes de linguagem de

    seus povos. A antropologia cultural nos demonstra, por exemplo, que a maioria dasculturas primitivas concebiam a linguagem como um dom de Deus, como na Bblia:"E o Senhor, tendo criado todos os animais da terra e todos os ventos do ar, levou-os a Ado para saber o que lhes queria chamar; porque o que fosse que Adochamasse a uma criatura viva esse ficaria seu nome." J para os egpcios, o deusToth foi o criador da fala e da escrita; para os babilnios, o deus Nabu; para oschineses, a escrita foi trazida do cu no dorso de uma tartaruga.

    Muitas sociedades primitivas (e pessoas supersticiosas tambm) concebem alinguagem como alguma coisa dotada de poder mgico. Assim, em certas culturasprimitivas, no se deveria pronunciar o nome de uma pessoa morta, pois enquantoo nome durasse duraria a pessoa, e pronunciar seu nome seria atrair a morte. No

    Egito antigo, seus habitantes tinham dois nomes, um para o mundo e outro paraDeus, jamais revelado. Conhecer esse segundo nome era ter poder sobre oindivduo. Em Roma, para citar mais um exemplo, as autoridades convocavamprimeiramente homens com nomes auspiciosos: Victor, Flix, Teodoro (presente deDeus), etc.

    A concepo de que a linguagem se reveste de poder mgico inspirou a primeiradescrio lingstica de que se tem notcia, a gramtica do snscrito. Naquela poca(sculo VI a.C.), os dialetos populares da ndia (pratkrits) se generalizavamrapidamente, enquanto o snscrito culto (blasha) ia caindo no esquecimento.Tratava-se, ento, de assegurar a conservao dos textos sagrados escritos nessalngua (poemas religiosos chamados Vedas) e de sua pronncia exata, a fim de que

    surtissem seus efeitos. Quem levou a cabo essa tarefa foi Panini.Na verdade, a histria das concepes acerca da lngua a prpria histria dos

    estudos lingsticos. A Lingstica, em suas diferentes fases de desenvolvimento,adota uma concepo de lngua, de linguagem, com que observa, analisa edescreve esses fenmenos, conforme se pode ilustrar, por exemplo, nestesdiferentes momentos do desenvolvimento dos estudos lingsticos: gramticatradicional, lingstica do sistema, sociolingstica, lingstica do discurso.

    A gramtica tradicional deve ser definida no como um livro, mas como umconjunto de concepes acerca da lngua, formulado a partir dos gregos e quechegou at nossos dias: entende a lngua como expresso do pensamento;preocupa-se exclusivamente com a lngua escrita; elege a modalidade literria, amodalidade mais formal como objeto de estudo; privilegia as formas mais antigasem detrimento das atuais, das inovaes lingsticas; emite juzos de valor (umalngua mais bonita, mais harmoniosa, mais rica que outra); estabelece regrasnormativas arbitrrias; etc.

    Para a lingstica do sistema, a lngua um cdigo de signos arbitrrios; umsistema de comunicao. J para a sociolingstica, a lngua um conjunto devariedades, enquanto para a lingstica do discurso um sistema de interao, umsistema que somente se realiza sob a forma textual.

    Concepes diferentes ou antagnicas acerca da lngua tm originado, ao longoda histria, srios conflitos, polmicas acaloradas entre indivduos, grupos ou

    correntes. o que se aborda a seguir.

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    2. Concepes de lngua / conflitos de paixo

    2.1 Os tradicionalistas e os nacionalistas.

    Duas concepes - a lngua como um sistema imutvel e a lngua como umsistema que varia no tempo, no espao social, no espao geogrfico e num mesmoindivduo - esto na raiz de muitas idias errneas, distorcidas, preconceituosas econflitantes acerca da lngua.

    O mais antigo e clebre embate de concepes lingsticas no Brasil se deu nosfins do sculo XIX e nas primeiras dcadas do sculo XX, entre duas correntes - atradicionalista e a nacionalista (Cunha, 1968).

    Defendiam os nacionalistas a concepo de lngua como um sistema varivel.Machado de Assis, o compreensivo e sereno leitor dos clssicos - nas palavras deCunha (1968) - em magistral artigo, escrito em 1873, ponderava:

    No h dvida que as lnguas se aumentam e se alteram com o tempo e as necessidades dos usos ecostumes. Querer que a nossa pare no sculo de quinhentos, um erro igual ao de afirmar que a suatransplantao para a Amrica no lhe inseriu riquezas novas. A este respeito a influncia do povo decisiva. H, portanto, certos modos de dizer, locues novas, que de fora entram no domnio do estiloe ganham direito de cidade.

    Nessa poca, ia acesa a polmica de Alencar (nacionalista) com os detratores desua obra (os tradicionalistas). Alencar chegou ao extremo de falar em "lnguabrasileira" e a teorizar sobre o assunto, dadas as diferenas que se faziam notarentre o uso brasileiro e o uso lusitano, claramente expressas em suas obras. Deacordo com Cunha (1968):

    A Alencar no lhe criticavam, de incio, a idealizao do indgena. As censuras recaam sobre suaexpresso lingstica, o seu vocabulrio e, principalmente, a sua sintaxe, que parecia desobedecer aosintangveis cnones portugueses.

    Na verdade, Alencar no pretendia criar uma lngua nova, mas a legitimaodos usos lingsticos, das peculiaridades lingsticas brasileiras, uma elasticidademaior da expresso, uma sintaxe mais livre, um uso liberto das severas normas deportugus europeu, o respeito variao inerente que existe em todas as lnguas:

    Uns certos profundssimos fillogos negam-nos, a ns brasileiros, o direito de legislar sobre a lngua quefalamos. Parece que os cnones desse idioma ficaram de uma vez decretados em algum concliocelebrado a pelo sculo XV.

    E acrescentava:

    Se ns, os brasileiros, escrevssemos livros no mesmo estilo e com o mesmo sabor dos melhores quenos envia Portugal, no passaramos de uns autores emprestados; renegaramos nossa ptria, e no sela, como a nossa natureza, que o bero dessa ptria.

    No era outro o pensamento de Gonalves Dias

    Vs tu o nosso Macedo? O seu merecimento no ser clssico, mas ser brasileiro; e ele no seria toestimado, to popular, se andasse alambicando frases que os poucos conhecedores da lngua malcompreenderiam a sopapo de dicionrio. O que o simples bom senso diz que no se repreende de levenum povo o que geralmente agrada a todos. (Cunha, 1968).

    Gonalves Dias tambm reconhecia que os brasileiros tinham o direito deenriquecer a lngua portuguesa e de adapt-las s suas necessidades, quer nolxico, quer na sintaxe, pois era preciso" dar novo jeito frase antiga", para

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    Os "profundssimos fillogos" a que se refere Alencar eram, naturalmente, ostradicionalistas, que falavam pela boca de Pinheiro Chagas (Cunha, 1968):

    O defeito que vejo nessa lenda (Iracema), o defeito que vejo em todos os livros brasileiros, e contra o

    qual no cessarei de bradar intrepidamente, a falta de correo na linguagem portuguesa, ou antes amania de tornar o brasileiro uma lngua diferente do velho portugus, por meio de neologismosarrojados e injustificveis, e de insubordinao gramatical, que ( tenham cautela !) chegaro a serrisveis....

    Este era, portanto, o conflito no fim do sculo XIX e nas primeiras dcadas dosculo XX: de um lado, a corrente tradicionalista, o conformismo, o servilismo snormas lusitanas, a concepo fossilizada da lngua, o reacionismo histrico, opurismo exagerado, o imobilismo lingstico; de outro, a corrente nacionalista, oanelo por uma lngua nacional, desvinculada da portuguesa, um ato de rebeldiacontra uma ordem arbitrariamente importada de Portugal, a conscincia do artistacriador rebelde a jugos, a conscincia da variao lingstica.

    2.2 Os tradicionalistas e os no-tradicionalistas.

    2.2.1 Consideraes preliminares

    Hoje em dia, o conflito de concepes ou as polmicas lingsticas no se domais entre tradicionalistas e nacionalistas, mas entre tradicionalistas e no-tradicionalistas.

    Os tradicionalistas concebem a lngua como um bloco monoltico, portanto una,estvel, invarivel, elegendo como padro lingstico s os usos altamenteformalizados do passado. A concepo que subjaz s suas apreciaes ou

    julgamentos sobre a lngua pode ser resumida na seguinte frmula: LnguaPortuguesa = lngua culta formal (de um perodo pretrito).

    Contrapem-se a essa concepo os no-tradicionalistas que, apoiados nascontribuies da Lingstica nos ltimos 60 anos, entendem a lngua como umconjunto de variedades, o que pode ser expresso mediante a seguinte frmula:Lngua Portuguesa = lngua culta formal + popular + regional + gria + etc.

    O aspecto mais polmico entre as duas correntes o que diz respeito normalingstica. Para os tradicionalistas, como se ver, o critrio histrico o parmetroda correo lingstica: o correto, em linguagem, o que est de acordo com osusos lingsticos do passado. Alm disso, fundamentam o princpio da correo

    numa concepo absolutista: o correto, em linguagem, o que se identifica com osusos cultos apenas. Evidentemente que tais concepes levam ao dogmatismo, sprescries arbitrrias, ao irrealismo lingstico, pois a "norma" imposta por"gramticos de poltrona" no emana dos usos vigentes na comunidade, estando,pois, distante da vida, da realidade.

    Os no-tradicionalistas, alimentados pelas contribuies oferecidas peloEstruturalismo, pela Sociolingstica, pela Pragmtica, entendem que a norma consuetudinria (isto ,est de acordo com os costumes); relativa, (isto ,relativa ao tempo, ao espao social, ao espao geogrfico, ao contexto); condicionada pelo contexto (o correto, em linguagem o que tem aceitabilidadecontextualizada); realista (pois leva em considerao os usos, a realidade

    lingstica.Feito esse ligeiro cotejo entre concepes to opostas, importa aprofundar

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    alguns aspectos.

    2.2.2 A definio da norma

    De acordo com Coseriu (1962), entende-se por norma a maneira de falar e deescrever de uma determinada comunidade; , pois, mero costume, tradiocontinuada e reiterada no falar e no escrever de uma comunidade.

    Levando-se em conta as diferentes variedades da lngua portuguesa, pode-sefalar em normas temporais (a de 1550, a de 2005), em normas espaciais (agacha, a mineira, etc.), em normas sociais (a culta, a popular) e em normassituacionais (a formal, a informal, por exemplo).

    Os textos que seguem podem ilustrar o que se disse.

    Texto 1"Ns recebeu seu ofcio que veio cheio de mumunha. E passamos a responder nessa mal-traada linha.

    Vocs quer moleza, j vi tudo. Mas a gente no t a fim de criar caso. S queremos jogar. Vocs podetrazer juiz. Que com ns ele no vai ter vida mansa. Se tiver afanando a gente, nosso capito do timetoma o apito dele e d pra outro. Ns sabe que na Barra do Catimb s tem juiz ladro. Ns no otrio. Mas aceitamos nessa base que botamos aqui. Agora, no negcio da bola, vocs traz a bola. Nsd o campo e vocs a bola. Cada um d uma coisa. Se quiser assim, t combinado." (Plnio Marcos,apud Carvalho, 1988).

    Nesse texto observa-se uma norma, um uso lingstico facilmente identificvel:o verbo fica sempre no singular se o sujeito est claramente expresso na frase("Ns recebeu seu ofcio...", "Vocs quer moleza...", etc.); se o sujeito no estclaramente expresso, o verbo passa a ser flexionado ("S queremos jogar", "Masaceitamos nessa base que botamos aqui", etc.). A no marcao do plural com opredicativo ("Ns no otrio"), o emprego da gria e de formas como "a gente","com ns", "t" e "pra" so outros fatos normais, usuais, caractersticos dessamodalidade lingstica, e quem no os respeita comete uma violao norma dodialeto em questo.

    Texto 2

    O texto um anncio que a DPZ criou para uma campanha contra a AIDS. Ottulo uma tirada popular, construda com dois setesslabos que rimam, para umamais rpida fixao na memria do leitor. O fato que se quer comentar a misturados pronomes.

    A mistura de tratamento um trao tpico, um costume, um fato normal damodalidade lingstica culta coloquial. A propsito da questo, oportuno citar umtrecho da carta de Monteiro Lobato a Rangel:

    "Apontas-me, como crime, a minha mistura de voc com tu na mesma carta e s vezes no mesmoperodo. Bem sei que a Gramtica sofre com isso, a coitadinha; mas me muito mais cmodo, mais

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    lpido, mais sadio - e, portanto, sebo para a coitadinha. s vezes o tu entra na frase que uma beleza;outras vezes no voc que est a beleza - e como sacrificar essas duas belezas s porque um coruja,um Bento Jos de Oliveira, um Freire da Silva, um Epifnio entre outros perobas "no querem"? Nofiscalizo gramaticalmente minhas frases em CARTAS. Lngua de cartas lngua em mangas de camisa ep-no-cho - como a falada. E, portanto, continuarei a misturar o tu com voc como sempre fiz..." (apudKury e MeIo, 1972).

    O apagamento da preposio antes do pronome relativo ("O gesto que eu maisgosto a reconciliao"); o emprego das formas retas depois da preposio "entre"("Tu sabes muito bem que entre eu e tu no pode haver desavenas"); o uso de"lhe" no lugar de "o" ("Na fila no lhe cumprimentei porque no lhe vi"); a flexodo advrbio "meio", modificando um adjetivo ("Percebi claramente que ficaste meiatriste"); o uso de "para mim" + infinitivo ("Este livro para mim ler"); a utilizaodo pronome reto em funo objetiva ("Eu vi ele") so outros fatos da linguagemcoloquial dignos de nota.

    Erros?

    Na opinio do publicitrio e escritor Nei Leandro de Castro, a resposta sim. A

    propsito da mistura dos pronomes no anncio h pouco referido, escreveu:"Cspite! ter dito Antnio Houaiss ao ler o que li. Epa!, digo eu. Alguma coisa acontece no meu coraoquando cruzo com uma construo dessas. (...) Mas ser, Sr. Criativo, que no dava para evitar oencontro de voc com tu na mesma frase? Esses pronomes no se cruzam, sabia? Ser que no erapossvel arranjar um jeitinho de no levar cama do brasileiro mais um, com licena da palavra,solecismo?"(Imprensa, dezembro, 1990).

    Misturar "tu" e "voc" , de fato, um solecismo? No. um uso lingsticonormal adequado ao contexto.

    A Lingstica Moderna, colocando em evidncia o princpio da variao, levou ainterpretar o erro, em linguagem, como uma inadequao lingstica, como muitobem se pode depreender da afirmao de Preti (1973):

    "Levando-se em conta os fatores extralingsticos j referidos, variantes de nvel podero ser admitidas,desde que no locutor fique a conscincia da adequao de certos usos situao e ao ouvinte, no ato dafala. Corrigir passaria a ser, ento, adequar os vrios nveis sociolingsticos a uma situao e a umouvinte determinados".

    Quanto questo, Possenti (1984) incisivo:

    "E preciso dizer com todas as letras que todas as variedades so boas e corretas, e que funcionamsegundo regras to rgidas quanto se imagina que so as regras da "lngua clssica dos melhoresautores". As variedades no so, pois, erros, mas diferenas.

    No existe erro lingstico. O que h so inadequaes de linguagem, que consistem no no uso de umavariedade, ao invs de outra, mas no uso de uma variedade ao invs de outra numa situao em que asregras sociais no abonam aquela forma de fala. Assim, to inadequado (no errado) dizer-se "VossaSenhoria quer fazer o obsquio de me passar o sal" numa refeio em famlia, quanto dizer-se ", meuchapa, qu faz o favor de demit o Ministro X que ningum mais tem saco pra guent ele?" aoPresidente da Repblica numa reunio do Ministrio. Mas no se diga que esta ltima frase est errada.Ela uma frase do portugus, tem regras prprias. Nos exemplos, trata-se apenas de gafes anlogas air praia de smoking ou a um jantar formal de bermudas. O "erro", portanto, se d sempre em relao avaliao do valor social das expresses, no em relao s expresses mesmas. No fosse assim,seria como considerar mal acabado um colete por no ter mangas".

    A correo lingstica, assim entendida, leva a uma postura relativista diante dofenmeno lngua. O relativismo lingstico nada mais do que uma atitude ou umponto de vista segundo o qual a produo de linguagem deve ser analisada em

    funo de fatores condicionadores tais como o ouvinte, o assunto, a situao, aintencionalidade, etc. A atitude contrria a do absolutismo gramatical, prpria daGramtica Tradicional, que julga o desempenho lingstico dos falantes atravs de

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    um nico parmetro - o da modalidade lingstica formal.

    Desse modo, a linguagem popular, a gria ou o conjunto de fatos prprios dalinguagem informal, como a mistura de pronomes de tratamento ou a forma "paramim + infinitivo" ou as construes "Eu vi ele" e "Tu foi", no podem simplesmenteser considerados erros, se sua ocorrncia est de acordo com o contexto, entendido

    como o conjunto de todas as influncias que provenham da situao e dascircunstncias em que ocorre o ato lingstico, como o ambiente fsico, o tema emdesenvolvimento, a identidade do ouvinte ou leitor, o grau de intimidade entre osinterlocutores, dentre outros. No caso especifico da frase do anncio "Se voc nose cuidar a AIDS vai te pegar", devem ser considerados, basicamente, os seguintesaspectos: a construo faz parte no apenas da modalidade popular mas tambmda modalidade lingstica culta informal, uma vez que pessoas cultas dela fazemuso na linguagem diria; a utilizao de tal modalidade lingstica no anncio fazparte da estratgia de seu criador que teve como objetivo atingir a todos ossegmentos sociais; por isso, a linguagem adequada, correta, e o anncio parecebom.

    Infelizmente, tal postura diante da lngua no foi ainda adotada por boa partede professores de lngua portuguesa, como mostram uma vez mais dados dapesquisaJulgamentos metalingsticos de professores de lngua portuguesaacerca de aspectos relacionados variao lingstica (Scarton, 1989), jreferida neste trabalho. A pergunta "Como que voc caracteriza uma pessoa que,numa roda de amigos, em conversa informal, fala, a toda hora, assim: 'Eu vi ele','Tu foi', etc., teve como respostas inadequadas o escore de 53% dos entrevistados.Entre as respostas encontram-se julgamentos desta ordem: "pessoa que tem baixograu de escolaridade", "que no l", "que no valoriza, em sua linguagem, a lnguaportuguesa", "que no conhece as regras gramaticais", "que tem baixo nvelcultural", "uma pessoa que no foi bem alfabetizada", "algum viciada emlinguagem do tipo informal", "com falhas no aprimoramento da lngua materna",

    "desinformada", "um tanto descuidada com a oralidade", "pessoa que no temconhecimento mais apurado da lngua", "que tem vcios de linguagem e/ou combaixo nvel de linguagem", "uma pessoa que no teve acesso lngua culta","povo desligado, que no foi trabalhado na escola", "uma falta total deconhecimento da lngua", "pessoa que desconhece a importncia da linguagem edas boas maneiras mesa como sinais denotativos de uma classe social", "umavtima do emprego incorreto da modalidade lingstica culta formal", "pessoa queno faz coordenao de linguagem".

    Caracterizar-se assim quem faz uso de tais formas desconhecer os aspectosmais elementares relativos variao lingstica, os conceitos de certo e errado, deadequao lingstica, de variantes - aspectos lingsticos que, pelo que dadoobservar na questo em exame, no foram ainda assimilados por boa parte dosprofessores pesquisados, que revelam assim uma concepo distorcida dalinguagem.

    2.2.3 A correo lingstica (a norma) nas situaes formais decomunicao

    2.2.3.1 Norma culta e uso

    O que preside a correo lingstica nas situaes formais de comunicao nose afasta das consideraes feitas at aqui. Retomando alguns desses aspectos,

    cumpre lembrar que norma costume, tradio, uso; e que a norma adequadapara as situaes formais de comunicao a culta formal atual.

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    Importa salientar, pois, a identidade que se estabelece entre norma culta e usoculto atual. Insiste nesse particular Staub (1987):

    "Os lingistas no pregam a anarquia, a desordem, o vale-tudo. Surge aqui uma pergunta. O usolingstico de que e de quem? Damos a resposta: o uso da lngua pelas pessoas cultas que falam anorma culta e escrevem bem. No h correo independente do uso. pena que tenhamos de reafirmar,na segunda metade do sculo XX, o valor do uso. Para Horcio o uso j era a nica forma de fala. Doido aquele que combate o uso, afirmava Montaigne. Uma regra gramatical, na opinio de Samuel Johnson,deve estar de acordo com o uso da grande maioria dos falantes. Joseph Pristley e George Campbell, doisgramticas ingleses do fim do sculo dezoito, j afirmavam que o uso e no regras artificiais devemdeterminar a correo da linguagem. Os gramticos, dizia Campbell, no devem criar leis, mas observaro uso. Anotar, coletar e metodizar. Leibniz aconselhava a substituio de especulaes abstratas pordados concretos na descrio das lnguas. Franz Boas enfatiza a coleta de dados lingsticos e ageneralizao a partir dos fatos. Conversas de telefone forneceram o material bsico da America EnglishGrammar de Fries".

    2.2.3.2 Norma culta atual e gramticas

    A variante lingstica culta, tambm denominada de dialeto padro, no foi, noentanto, at o presente momento, suficientemente bem descrita ou pesquisada. E a

    ausncia de pesquisa nesta rea tem trazido problemas para a organizao de umaGramtica Normativa e, conseqentemente, para o ensino de aspectos normativosda lngua portuguesa, uma vez que a elaborao de uma Gramtica Normativadepende, fundamentalmente, do conhecimento da realidade lingstica culta,levantada atravs da descrio, da pesquisa. Tal relao - pesquisa/elaborao deuma Gramtica Normativa - foi muito bem expressa por Cmara (1970):

    "... a codificao (...) tem de partir dos resultados obtidos pela lingstica descritiva, com uma tcnicade pesquisa e interpretao objetiva e rigorosa, para no operar viciosamente no vazio, fora de qualqueruso real.

    Como esse trabalho de lingstica descritiva ainda no se realizou nem em Portugal nem no Brasil, emambos os pases se patinha em gramtica normativa e o ensino gramatical na escola denunciado comouma perturbao, antes do que um auxlio, para um uso lingstico adequado".

    A elaborao ou o aparecimento de novas gramticas de nossa lngua no est,pois, levando em considerao a descrio lingstica anteriormente mencionada,substituda pela cpia ou pela parfrase das gramticas anteriores, como bemafirma Carvalho (1988):

    "A maioria dos gramticos - com excees, evidentemente - limitam-se a copiar ou parafrasear os queos antecederam, nem sempre com o necessrio esprito crtico. por isso que a forma feminina elefoa,para elefante, segundo informao encontradia no livro de Luiz Autuori, "Nos garimpos da linguagem",nasceu de um erro de imprensa de uma edio da "Grammatica descriptiva", de Maximino Maciel, que osgramticos copiaram sistematicamente".

    Quando no fundamentadas na cpia, a elaborao e/ou a publicao de novas

    gramticas fica merc do livre arbtrio de seu autor, como mais uma vez pe emevidncia Carvalho (1988):

    "O VOLP registra pego e pegado como particpios de pegar, embora evidenciando a preferncia pelaforma regular. O Dicionrio do Aurlio registra pego como brasileirismo. No seu Dicionrio de dvidas edificuldades, Antenor Nascentes ensina que pegado o nico particpio de pegar; no Dicionrio brasileirode Macedo Soares, h o verbete pegado, mas no h pego; o Dicionrio de verbos conjugados, deRodrigo de S Nogueira, nega o particpio regular a pegar, porque inclui esse verbo no paradigma daconjugao de chegar, ao lado de carregar, empregar e outros mais, terminados em -egar; no Manualde conjugaes, Cndido Juc (filho) considera pego forma ainda sem abonao dos mestres e no bemaceita; Otelo Reis, mais categrico, condena como errnea a forma pego (ao lado de empregue).Adriano da Gama Kury (Mil perguntas) admite pego como correto, embora o considere de menos uso nalngua culta; Celso Cunha e Rocha Lima, em suas gramticas, omitem o verbo pegar na relao dosverbos abundantes. Mas Domingos Paschoal Cegalla, na Novssima gramtica, inclui pegar na relao

    dos verbos de particpio duplo, aceitando sem restries as formas pego e pegado".

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    2.2.3.3 Usos cultos atuais X apego a formas do passado

    evidente que concepes diferentes acerca da lngua orientam a elaborao degramticas diferentes (mais puristas, mais irrealistas, mais conservadoras oumenos puristas, mais atentos aos usos vigentes, evoluo lingstica) que, porsua vez, influenciam professores e consulentes em geral. E se h gramticas eprofessores com concepes diferentes, lgico que haver pontos de vistaconflitos sobre o que se pode ou no se pode dizer / escrever, sobre o que "estcerto" e o que "est errado" em linguagem.

    Do-se, a seguir, seis exemplos de construes sistematicamente condenadaspela maioria dos gramticos e professores de portugus, afrontando usos etendncias atuais da lngua.

    a) O gnero da palavra grama

    No h razo para se ensinar que o gnero da palavra grama , obrigatoriamente,masculino, Diz-se hoje, tambm, corretamente, "duzentas gramas", porque esse o uso majoritrio entre as pessoas cultas. Se se quisesse um registro feito porgramticos, bastaria consultar Lima (1972) e Cunha & Cintra (1986).

    b) A concordncia verbal com sujeitos representados por "tu-ele"

    No h igualmente razo para se difundir no ensino da lngua portuguesa afrmula: tu + ele = vs, uma vez que tal sintaxe, tradicional, cannica, dificilmente documentada na lngua contempornea do Brasil. Sabe-se que o uso

    culto inclina-se para a concordncia na 3 pessoa do plural. Veja-se, para tanto,Lima (1972) e Neto (1977).

    c) A concordncia do verbo "ser" na indicao de data

    A regra invariavelmente codificada em nossos manuais de cultura idiomtica e,conseqentemente, difundida no ensino, est atestada nas duas construes: "Hojeso dezesseis de janeiro / Hoje dia dezesseis de janeiro", considerando-se,portanto, errada, a terceira: "Hoje dezesseis de janeiro".

    O critrio do uso culto consagrado, que deveria prevalecer em todas as

    questes lingsticas, e o registro bibliogrfico, que vale enquanto cpia darealidade lingstica dos falantes, apontam para a possibilidade de o verbo ficar nosingular, concordando com a idia implcita de "dia". Veja-se Cmara (1966) eCegalla (1976).

    d) O pronome oblquo solto entre dois verbos

    A colocao do pronome oblquo entre dois verbos como, por exemplo, em "Odiretor quer lhe falar" uma prtica sinttica brasileira que se consagrou a partirdo Romantismo. Por isso, conforme afirma Luft (1985), no faz nenhum sentidonossas gramticas condenarem a colocao brasileira dos pronomes; seria como -complementa o autor - a gramtica portuguesa condenar colocaes lusitanas.

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    e) Complemento comum a verbos de regncia diferente

    Muitas gramticas ensinam que est errada a construo sinttica simplificada queape um complemento comum a duas palavras que no tenham o mesmo regime,como no caso "Entraram e saram da sala". Pode-se, no entanto, demonstrarfacilmente que tal regra arbitrria, uma vez que no leva em considerao o uso.

    Com efeito, tal construo, incriminada pela maioria dos professores deportugus, foi utilizada por autores clssicos como Vieira, Rodrigues Lobo,Herculano e Camilo e teve aceitao entre escritores modernistas, conforme Lessa(1976). No bastasse a constatao do uso efetivo, no passado e no presente,poder-se-ia invocar o testemunho do gramtico:

    "Ao gnio de nossa lngua, porm, no repugnam tais frmulas abreviadas de dizer, principalmentequando vm dar expresso uma agradvel conciso que o giro gramaticalmente lgico nem sempreconhece".

    E mais adiante:

    "... a lngua d preferncia s construes abreviadas que a gramtica insiste em condenar. Ainda quetenha o peso de ilustre sabedor como Mrio Barreto". (Bechara, 1975).

    f) O sujeito preposicionado em oraes infinitivas

    Segundo Lessa (1966), at mesmo autores de certo respeito endossam a liosegundo a qual errnea a construo do tipo "Est na hora do trem partir". Otestemunho de escritores, do passado e do presente, no entanto, d prova que norepugna ao gnio da lngua tal forma de expresso. Entre os modernistas, Lessa(1966, p. 149-52) colhe uma vasta srie de exemplos da construo incriminada,fato que, por si s, basta para contrariar os ensinamentos dos puristas ou dos que

    se contentam com a primeira gramtica que lhes caia mo.

    Tal conflito de opinies acerca do que se deve dizer ou escrever se manifestatambm na hora dos vestibulares ou dos concursos pblicos. Questes anuladas,respostas colocadas sob suspeita, respostas contestadas atravs de medidas

    judiciais, gabaritos criticados por professores especializados no so novidade.Leia-se o que escreveu, certa feita, Mestre Luft acerca de uma prova de vestibular:

    "Passo os olhos pela prova de Portugus e Literatura do ltimo vestibular da PUC local. Com algumadecepo topo com surradas questes que denotam apego a regras gramaticais h muito alteradas nalngua viva.

    Uma das teimosas, obstinadas regras artificiais de purismo a da pluralizao de verbos acompanhados

    de 'se' - consertam-se calados, vendem-se terrenos... - coisas assim que professores de Portugusteimam em classificar como frases passivas, contra todo o sentimento dos falantes nativos, e delesmesmos."

    E acrescenta:

    "Ora, em termos de linguagem efetiva, atual, v o leitor que essas questes admitem mais de umaresposta (...); tanto se USA formas como 'aceitam-se crticas', 'evitem-se injustias' e 'discutem-secasos' como 'aceita-se crticas', 'evita-se injustias' e 'discute-se casos' ..."

    No h dvida de que a organizao de uma Gramtica Normativa a partir daobservao dos usos lingsticos reais evitaria todas as polmicas dessa natureza eofereceria aos professores de lngua portuguesa uma codificao atual dos usos

    lingsticos a ser difundida em nosso ensino.A assimilao de vrias contribuies que os estudos lingsticos vm dando nas

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    ltimas dcadas, a ateno realidade lingstica dos textos literrios ejornalsticos, a leitura de pesquisas (poucas, na verdade) acerca de fatosgramaticais, a consulta a gramticos mais atentos aos usos atuais dariam, noentanto, ao professor condies timas para se movimentar nesta rea.

    3 Quadro-resumo

    O que se disse at aqui pode ser sintetizado no seguinte quadro-resumo:

    Aspectos Tradicionalistas No-tradicionalistas

    1. Concepode lngua

    Lngua Portuguesa = Lngua culta formal(de um perodo pretrito).

    Lngua Portuguesa = conjunto devariedades = Lngua culta formal+ informal+ popular + regional+ gria + etc.

    2. Critrio decorreolingstica

    - Critrio histrico.

    - Critrio absolutista: s aceito o usoformal culto.- Critrio irrealista: no levada emconta a variao lingstica, os novosusos.- Incorre em distores temporais: noaceita a evoluo dos usos lingsticos;em distores espaciais: no aceita osusos regionais; em distores sociais:no se aceitam as variaes sociais; emdistores situacionais: no se aceitamas variaes determinadas oucondicionadas pelos contextos diferentesna interao social.

    - Critrio fundamentado nos usosatuais.- Critrio relativista: todas asmodalidades lingsticas solegtimas desde que adequadasao contexto.- Critrio realista.- Defendem a aceitabilidadecontextualizada: todas asmodalidades lingsticas desdeque adequadas ao contexto.

    3. Papel dogramtico, dodicionarista

    - Repetem /copiam os registros

    tradicionais.- No observam / registram os usosreais, atuais.- Consideram-se "autoridades" emquestes de linguagem.

    - So servos da lngua e noseus senhores: registram eexplicam os usos lingsticosreais.

    4. Papel daEscola

    - Tornar o falante monolnge: impor amodalidade culta formal, erradicando/combatendo todas as demaismodalidades lingsticas.

    - Tornar o falante plurilnge nointerior da prpria lngua:respeitar /apoiar todas asmodalidades lingsticas dosalunos e, sob a forma deacrscimo, ampliar acompetncia comunicativa com ofavorecimento da linguagemculta formal.

    5. Papel doprofessor

    o juiz, o rbitro da lngua julgandotodos os fatos lingsticos mediante umaviso radical expressa na seguintedicotomia: isto est certo X isto esterrado.

    No julga os fatos da lnguaatravs da perspectiva elementardo certo X errado, mas informasobre usos lingsticos,distinguindo:- uso atual X uso antigo.- uso culto X uso popular.- uso brasileiro X uso lusitano.- uso formal X uso informal.- uso adequado X usoinadequado.

    6.Conseqncias

    Os tradicionalistas so conservadores,puristas, inflexveis, dogmticos,

    irrealistas.

    Os no-tradicionalistas somenos conservadores, mais"liberais", mais flexveis, edistinguem o que obrigatrio, o

    que facultativo, o que tolervel, o que inadmissvel, oqu, o quando, o por qu.

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    Concluso

    Ver a lngua como uma realidade essencialmente dinmica, imagem e

    semelhana da sociedade, daqueles que a usam, criam e recriam sem parar; ver nalngua um conjunto heterogneo de variedades,cuja igualdade e legitimidadereconhece; finalmente, ver na lngua, pelo domnio de recursos de expresso, apossibilidade de lavar os alunos ao acesso aos bens culturais, articulao dessesbens e desse saber aos interesses de sua classe so atitudes que devemcaracterizar o professor de Portugus, so atitudes que o professor de Portugusdeve manifestar na prtica da sala de aula.

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