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IZABELLA GOMES LOPES BERTONI CONCEITUALISMO E EXPERIMENTAÇÃO EM UM CONTEXTO POLÍTICO AUTORITÁRIO: FORMAS DE ATUAÇÃO NA OBRA DE CILDO MEIRELES (1970-1975) CURITIBA 2004

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IZABELLA GOMES LOPES BERTONI

CONCEITUALISMO E EXPERIMENTAÇÃO EM UM CONTEXTO POLÍTICO AUTORITÁRIO: FORMAS DE ATUAÇÃO NA OBRA DE CILDO MEIRELES

(1970-1975)

CURITIBA 2004

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IZABELLA GOMES LOPES BERTONI

CONCEITUALISMO E EXPERIMENTAÇÃO EM UM CONTEXTO POLÍTICO AUTORITÁRIO: FORMAS DE ATUAÇÃO NA OBRA DE CILDO MEIRELES

(1970-1975)

Monografia apresentada ao Curso de História do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná.

Orientador: Prof.º Marcos Napolitano

CURITIBA

2004

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SUMÁRIO

RESUMO..................................................................................................................iii 1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................1 2 ARTE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: A busca por uma totalidade (1965- 1975)......................................................................................................................5

2.1 Figuração e crítica na arte brasileira...................................................................5 2.2 A idéia sobrepondo-se à forma: a inauguração do conceitual..........................13 3 ARTE E OU OU ENGAJAMENTO POLÍTICO?..................................................19 3.1 Condição limite: Tiradentes: totem monumento ao preso político................... 21 3.2 Os graffitis móveis: Inserções em circuitos ideológicos....................................27 3.2.1 Projeto Coca-Cola..........................................................................................31 3.2.2 Projeto Cédula...............................................................................................34 4 O CONSUMO DA RESISTÊNCIA ISOLADA PELO SISTEMA..........................39 5 CONCLUSÃO......................................................................................................51 REFERÊNCIAS......................................................................................................54 ANEXOS.................................................................................................................58

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RESUMO A arte contemporânea, desde os primeiros movimentos pós-modernos, propõe diversas questões que circulam entre a utilização de um determinado suporte até os temas a serem trabalhados por ela. Encontramos essa forma de abordagem na produção artística brasileira entre as décadas de 1960 e 1970. No campo das artes plásticas, esse período ficou representado pela utilização de temáticas que envolviam aspectos éticos, políticos e sociais. Tais temáticas haviam sido influenciadas pelas tendências da pop art norte-americana e pela nova figuração ou neo-realismo europeu, além da proposta duchampiana de apropriações de objetos industrializados e/ou do cotidiano, levados para o campo da arte – os chamados ready mades. No Brasil, após o golpe militar de abril de 1964, alguns artistas passaram a se utilizar dessas novas formas de linguagem para apontar questionamentos a realidade política do país e para emitir críticas sociais. Dessa forma, dispensavam a estética realista, tradicionalmente utilizada por artistas ditos “oficiais” da esquerda, em detrimento de linguagens que eram associadas a uma postura mais crítica. Dentro dessa perspectiva insere-se as obras Tiradentes: totem monumento ao preso político (1970) e a série Inserções em circuitos ideológicos: Projeto Coca-Cola (1970) e Projeto Cédula (1975), do artista plástico Cildo Meireles. Tanto Tiradentes: totem monumento ao preso político quanto a série Inserções em circuitos ideológicos foram representativas de uma fase de conscientização criada pela realidade castradora delineada ao longo do regime militar brasileiro (mais precisamente ao período que vai de 1968 até meados da década seguinte). Essas obras representam igualmente a tendência da vanguarda das artes plásticas em partir para uma radicalização artística pautada na estética da violência, ultrapassando as experiências artísticas de liberdade de participação da década de 1960. Tiradentes... aborda a temática do tratamento destinado aos presos políticos em um regime de exceção. O Projeto Coca-Cola propunha uma crítica à sociedade de consumo em massa, utilizando-se do próprio mecanismo desse sistema para colocar em circulação uma ideologia contrária a ele. Já o Projeto Cédula buscava trazer à tona o sistema prisão-tortura-morte institucionalizado pela ditadura militar e evidenciado pela morte do jornalista Wladimir Herzog. A escolha por tais obras deu-se por representarem um período das artes plásticas no Brasil que ficou marcado pelo engajamento mais incisivo e pelo posicionamento mais radical em relação às questões políticas do país. Buscamos, com a análise delas, tornar evidente essas formas reduzidas e individualizadas de ação que mantiveram e subsidiaram a oposição ao regime vigente, estabelecendo uma perspicaz e representativa alternativa de divulgação desse posicionamento. Com isso, evidenciamos a trama de relações entre artista e função social da obra. Assim, partimos para uma pesquisa interdisciplinar, analisando os contextos sócio-cultural e político em que as obras foram produzidas, com o objetivo de encontrarmos neles suas origens e significações.

Palavras-chave: arte contemporânea; vanguarda; engajamento político; comprometimento social.

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1 INTRODUÇÃO

Este trabalho de pesquisa visa abordar as formas de comprometimento

político e social presente nas artes plásticas brasileira entre o final da década de

1960 e início da década de 1970. Para estudar esse tema, escolhemos como

objeto de pesquisa três obras do artista plástico Cildo Meireles produzidas entre

os anos de 1970 e 1975. Entre as diversas obras de Meireles desse período que

poderiam ser associadas ao tema proposto acima, escolhemos especificamente

Tiradentes: totem monumento ao preso político (1970) e a série Inserções em

circuitos ideológicos: Projeto Coca-Cola (1970) e Projeto Cédula (1975). Essa

escolha é justificada por considerarmos tais obras representativas do ambiente

artístico em que elas foram criadas. Tanto Tiradentes... quanto a série

Inserções..., possuem, intrinsecamente, questões formais e temáticas presentes

na arte contemporânea mundial.

Em suas análises abordamos problemáticas referentes à arte

contemporânea que, a partir dos primeiros movimentos pós-modernos, propunha

questões que abarcavam desde a utilização de um determinado suporte até os

temas a serem abordados por ela.

Em relação à arte contemporânea brasileira, essas questões são

evidenciadas durante o período de produção das vanguardas artísticas das

décadas de 1960 e 1970. Esse período ficou representado por tendências

voltadas ao experimentalismo formal e ao comprometimento com a crítica da

realidade política e social do país. Tais temáticas eram representadas sob a

influência de tendências da arte mundial, como a pop art norte-americana e a nova

figuração ou neo-realismo europeu, além da proposta duchampiana de

apropriações de objetos industrializados e/ou do cotidiano, levados para o campo

da arte – os chamados ready mades. Dessa forma, alguns artistas dispensavam a

estética realista, tradicionalmente utilizada por artistas ditos “oficiais” da esquerda,

em detrimento de linguagens que eram associadas a uma postura mais crítica.

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Durante a primeira metade da década de 1970, as artes plásticas ficaram

marcadas por uma radicalização temática, caracterizada por sua constante

politização. Cildo Meireles, dentro desse ambiente de produção, passou a

representar a posição dos presos políticos e dos marginalizados socialmente,

trabalhando com a temática do sacrifício, criticando a sociedade de consumo em

massa e denunciando o sistema prisão-tortura-morte institucionalizado pela

ditadura militar. Agrupando, desse modo, elementos que conferiam às suas obras

o caráter de arte engajada.

Sendo assim, a importância que se pode perceber nas obras de Meireles

está ligada a essa maleabilidade de tocar em temáticas importantes para o

momento histórico, sem deixar de lado questões estéticas intrínsecas à obra de

arte.

Por meio da análise contextual do período, da abordagem da situação da

produção artística dentro de um regime de exceção e das associações destes com

as características das obras de Meireles, realizamos um levantamento da maneira

como essas obras foram usadas como meios de contestação política e social

dentro de um regime ditatorial. As formas de circulação dessas obras dentro do

corpo social e as preocupações estéticas contidas em cada uma delas foram

também apontadas. Objetivamos com a análise das obras fazermos uma reflexão

a respeito da produção artística engajada politicamente e comprometida com uma

forma de arte experimental.

O procedimento que foi adotado para a realização deste trabalho uniu

algumas propostas de abordagens e métodos de pesquisa em artes plásticas. As

formas de leitura de imagens selecionadas para este trabalho foram a semiológica

– que enfoca os símbolos, signos e sinais presentes nas imagens – e a

iconográfica – que aborda os conteúdos temáticos e o significado das obras.

Essas formas de leitura não foram praticadas isoladamente, mas ao longo do

texto, mesclando-se para possibilitar uma riqueza maior de interpretação. A

primeira buscando ressaltar o caráter político e social da obra, e a segunda o seu

conteúdo estético, sem, com isso, hierarquizar essas abordagens.

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Juntamente com essas etapas de análise, apoiando-nos em alguns eixos

teóricos, buscamos fazer uma “[...] análise das ‘entidades criativas’, os artistas,

parcerias e grupos de criação reconhecíveis, localizando os materiais e vivências

sociais e ideológicas que norteiam seu ato e processo criador; [...]”,1 e a união do

debate estético-ideológico das técnicas, dos materiais e das discussões da época.

Com isso pretendeu-se atingir os diversos aspectos da obra, buscando responder

aos objetivos propostos para este trabalho.

Sendo a arte engajada durante a década de 1970 o tema geral pesquisado,

podemos inserir este trabalho na vertente historiográfica denominada história

social da arte, uma vez que o objetivo de abordar essas obras de Cildo Meireles é

tentar encontrar nelas todo o contexto de discussão cultural ao qual elas foram

produzidas. Para isso trataremos essas obras como fenômenos sociais passíveis

de revelar “[...] uma determinada sociedade e momento histórico [...]”.2

De acordo com Maria Amélia Bulhões, “[...] a pesquisa, tendo como objetivo

o fato artístico e seu processo, desenvolveu-se de forma pouco sistemática e

integrada. [...]. Evidencia-se uma defasagem bastante grande da área de artes

plásticas com relação às demais áreas do conhecimento.”3 Assim, a investigação

do tema engajamento político nas artes plásticas torna-se relevante devido à

escassez de produções acadêmicas voltadas para análises relativas à arte

contemporânea brasileira. Por isso, um trabalho como este busca revelar algumas

facetas das obras de um artista, que foi extremamente representativo dentro do

panorama cultural e das artes plásticas no Brasil, tanto na década de 1970 como

nos dias atuais.

No primeiro capítulo deste trabalho traçamos um panorama do contexto

artístico brasileiro da década de 1960 e meados da década de 1970, numa

tentativa de localizar nosso objeto no campo das artes plásticas. Buscamos em

1 NAPOLITANO, M. História e arte, história das artes ou simplesmente história. In: NODARI, E.; PEDRO, J. M.; IOKOI, Z. M. G. História: fronteiras. São Paulo: Humanitas / FFLCH / USP: ANPUH, 1999. p. 907. 2 VELHO, G. (Org.). Arte e sociedade: ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977. p. 7. 3 BULHÕES, M. A. A pós-graduação e a pesquisa em artes plásticas no Brasil. In: PILLAR, A. D. et al. Pesquisa em artes plásticas. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS/ Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP), 1993. p. 94.

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algumas exposições ocorridas durante esse período, o cerne da produção, que

fora mais tarde, denominada de arte conceitual. Abordamos também neste

capítulo a confluência entre uma radicalização temática e as primeiras

manifestações da arte conceitual no Brasil. Buscamos analisar no segundo

capítulo as obras de Cildo Meireles, sempre evidenciando nelas uma provocação

à realidade social brasileira desse período. Por fim, no terceiro capítulo optamos

por observar a recepção e legitimação da obra de arte engajada por parte da

crítica especializada da época. Tentando reconhecer as exigências que geraram

os novos caminhos para a crítica de arte brasileira a partir dos movimentos de

vanguarda dos anos 1960 e 1970.

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2 ARTE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: A busca por uma totalidade (1965-1975)

2.1 Figuração e crítica na arte brasileira

A arte brasileira, sobretudo na década de 1960, foi tingida por diversas

nuances estéticas e temáticas que fizeram desse período um ambiente de

renovação e de reflexão. Entre o final dos anos 1960 e início dos anos 1970, as

artes plásticas brasileira foram marcadas por uma espécie de transgressão a

norma, pela finalização da figura do artista como um gênio criador, abrindo as

possibilidades para criações coletivas, e pelo aparecimento de uma gama enorme

de caminhos para o campo estético. Unido a essas transformações, foram

inseridas nas problemáticas propostas por alguns artistas a dimensão ética, social

e política. O elemento que, no mínimo, pode ser chamado de interessante e que

marcou o campo das artes plásticas desse período foi a mudança de

comportamento, tanto em relação à arte como em relação à sociedade e ao

mundo em os artistas estavam vivendo.

De forma geral e sem delimitar padrões, podemos apontar vertentes que

seguiram o caminho do retorno à figuração, na qual se faziam presentes ícones da

sociedade de consumo e da cultura de massas, e outras, nas quais havia “[...]

trabalhos que desdobrariam as tendências construtivas4 dos anos 50 –

particularmente o concretismo e o neoconcretismo5 junto a outras que rompem e

4 O ambiente desenvolvimentista dos anos 1950 marca o ideal construtivista (ou também chamado de concretista) brasileiro. Já participam com trabalhos construtivistas na I Bienal de São Paulo, em 1951, Ivan Serpa e Abraham Palatnik. O construtivismo traduzia as leis da física nas leis da percepção, preocupava-se com as cores e formas, estas na maioria das vezes vindas da matemática, buscando uma maior objetividade das obras. Dentro do construtivismo, a cor era submetida à forma, e, aos poucos, esta foi sendo simplificada nas figuras do quadrado e do retângulo. 5 Por volta de 1954, como uma dissidência do construtivismo de São Paulo, surge o grupo neoconcreto do Rio de Janeiro, denominado Grupo Frente, do qual fazia parte Aloísio Carvão, Lygia Clark, Lygia Pape, Hélio Oiticica e Franz Weissman. Entre os neoconcretistas havia um posicionamento de uma forma de produção de arte que consolidasse um pensamento libertário. Dele faziam parte tanto abstracionistas como expressionistas e surrealistas. Esse grupo passa a

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inauguram novos campos de investigações mais radicais sobre o ambiente e o

engajamento do corpo.”6 Essas vertentes sofreram fortes influências das

vanguardas artísticas européia e norte-americana, respectivamente com o novo

realismo francês7 e a pop arte americana8. Já não se fazia presente em grande

escala o alcance “[...] dos abstracionismos informal e geométrico – das questões

eminentemente expressionistas e das tradições construtivistas – [...]”.9

A problemática que se colocava aos artistas de início e meados da década

de 1960 passava primordialmente pela questão da vanguarda, com referências

claras a obra de Marcel Duchamp10 e sua proposta de ready-made, e a liberdade

de criação do artista. “Vivia-se então, realmente, no meio artístico, uma libertação

extraordinária, impulsionada pelo pop norte-americano quanto aos materiais (tudo

passava a ser válido entre nós, e com muita rapidez) e a precariedade dos

ter maior representação quando se propõe a ultrapassar a estética abstrata em função de uma preocupação social. 6 DUARTE, P. S. Anos 60: transformações da arte no Brasil. Rio de Janeiro: Campos Gerais, 1998. p. 14. 7 Aqui, entenda-se, não havendo relação de aproximação com o realismo socialista – mais coerente com a proposta de engajamento político das artes defendido pelo Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes – mas de superação. O novo realismo francês – também chamado de movimento neofigurativo – aproximava-se mais da nova figuração brasileira, e surgiu como uma crítica a pop arte norte-americana, buscando uma renovação da imagem no interior da arte. 8 O nascimento da arte pop se deu na Inglaterra, e seu desenvolvimento nos Estados Unidos, onde se tornou a representação da sociedade industrial na década de 1960. Essa corrente artística representa todo o imaginário urbano, com seus supermercados, cinemas, televisão, automóveis, histórias em quadrinhos, publicidade, ou seja, uma arte baseada no modo de vida e na realidade norte-americana. Propunha uma comunicação direta com o público por meio de signos e símbolos retirados da cultura de massas e do cotidiano. O objetivo primeiro da arte pop era o de recusar a separação arte e vida, levando para o campo da arte as imagens de uma sociedade industrializada e de consumo. Trata-se aí também da adoção de um outro tipo de figuração, que se beneficiava de imagens, comuns e descartáveis, veiculadas pelas mídias e novas tecnologias, bem como de figuras emblemáticas do mundo contemporâneo. “Arte do imediato, do brilho, da alegria, da mais pura celebração da vida e do quotidiano, a pop revela a beleza do ‘american vulgarism’ e do prosaico, rejeitando a introspecção e o subjetivismo do Expressionismo abstrato [...], trazendo para a arte a presença abrupta do objeto.” (MORAIS, F. Opinião 65: ontem, hoje. In: Galeria de arte BANERJ. Opinião 65. Rio de Janeiro, 1985. Não paginado. Catálogo). A arte pop tem como seus maiores representantes Andy Warhol, Roy Lichtenstein, Claes Oldenburg, entre outros. 9 DUARTE, op. cit., p. 16. 10 Marcel Duchamp já em 1913, passou a captar objetos que não haviam sido produzidos como objetos de arte, mas como elementos utilitários, de uso comum e cotidiano, e transpô-los para um ambiente ao qual não pertenciam: o campo da arte. O ready made mais conhecido de Duchamp é a Fonte, datada de 1917, e com ele surge todo um pensamento de encarar a idéia como o centro da obra.

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trabalhos era quase sempre uma constante nessa época”.11 Sendo assim, Aracy

Amaral aponta para as obras produzidas nesse fervilhar de novidades a “[...]

liberdade de participação e [utilização] de materiais e técnicas novas [...] como o

surgimento do ‘objeto’, tridimensional, ‘apropriações’ pelo artista de ready mades

ou objetos por eles manufaturados [...] representavam mais um ‘protesto’ ou uma

postura do artista em geral diante dos fatos sociais e políticos”.12 Podemos pensar,

então, em uma associação entre as inovações técnicas e críticas à sociedade de

consumo, vindas do pop norte-americano, adaptadas a realidade brasileira

formulando, desse modo, tentativas de crítica social e política por parte dos

artistas da época.

No que se refere às apropriações, Maria José Justino coloca que elas são

as representações da antiarte, que desembocam na compreensão do artista a

respeito da “[...] inutilidade da elaboração do objeto artístico. A partir dessa

compreensão, [...], estão depositados na capacidade do artista os limites para

determinar o que é ou não é obra, que podem ser coisas vivas ou conceitos”.13

Esse processo de apropriações acaba por desarticular o sistema de arte14, pois,

produz uma forma de arte sem autor determinado, sem espectador contemplativo

e sem a aura de uma obra presente em instituições como um museu ou um “cubo

branco”. Sendo assim, o artista abdica de sua posição para assumir o papel de

instigador, mas ainda continua sendo ele quem propõe e cria as obras.

Para esclarecer o surgimento esse ambiente de renovações, voltemos ao

início dos anos 1960, quando toda a modernização implementada no Brasil na

década anterior ainda atingia uma parcela pequena da população. No ambiente

11 AMARAL, A. Arte para quê? : a preocupação social na arte brasileira, 1930-1970: subsídios para uma história social da arte no Brasil. São Paulo: Nobel, 1987. p. 315. 12 AMARAL, op. cit., p. 333. 13 JUSTINO, M. J. Seja marginal, seja herói: modernidade e pós-modernidade em Hélio Oiticica. Curitiba: Ed. da UFPR, 1998. p. 92. 14 Isso que estamos chamando de sistema de arte “somente começa a se configurar de maneira mais concreta a partir dos anos 60. Este termo designaria as instâncias – produção, circuito, crítica, colecionadores – que se confrontam no processo de formação de um mercado de arte no Brasil. Sem dúvida elas já existiam anteriormente: tratava-se de uma reduzida elite onde o trabalho de arte era manipulado de uma forma um tanto diletante, suficiente para lhe dar uma certa institucionalização, sem porém ocasionar maiores conseqüências.” (VENÂNCIO FILHO, P. Lugar nenhum: o meio de arte no Brasil. In: FUNDAÇÃO NACIONAL DE ARTES. Arte Brasileira Contemporânea: caderno de textos. Rio de Janeiro, 1980. Convênio: FUNARTE e Fundação de Artes da Cidade do Rio de Janeiro. p. 23.)

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artístico começavam a surgir manifestações derivadas de novas investigações

estéticas unidas a preocupações políticas e sociais – o Cinema Novo representa

bem essa forma de comprometimento social. Por outro lado, com mecanismos

mais “fáceis” de assimilação, estavam as correntes mais explicitamente

engajadas, “[...] cujo paradigma se encontrava nas teses do Centro Popular de

Cultura – o CPC – da União Nacional dos Estudantes/UNE, que começou a

funcionar em dezembro de 1961. [...]. Do ponto de vista estético, suas teses

beócias eram, indubitavelmente, reacionárias.”15 Criado com o intuito de levar a

arte ao povo, principalmente por meio do teatro, o CPC produzia peças que

tratavam das lutas políticas do momento. Aos poucos, foram surgindo outras

formas de manifestações artísticas dentro do CPC, como a dança e a música.

Primordialmente as ações do CPC da UNE eram voltadas para um público

universitário, depois esse movimento foi sendo expandido para os sindicatos e

favelas. De modo geral, a visão do CPC no que se referia a posição do artista

brasileiro era a de que a sua produção não poderia estar desconectada da vida

social do país. A crítica feita pelo CPC aos artistas que não seguiam esta linha de

trabalho se dava no sentido da abrangência da obra: “‘Uma vez realizada a obra, o

artista situa-se diante dela como espectador e, porque consegue captar o seu

sentido em todo o seu alcance, conclui que a obra é humanamente apreensível,

conclui que ela pode se comunicar com todos’.”16 O artista que seguisse a linha

popular revolucionária do CPC se dedicaria a trabalhar com questões que

provocassem identificações ao povo, unidas a linguagens que seguissem uma

tradição realista, negando qualquer forma de experimentalismo17.

15 DUARTE, op. cit., p. 30. 16 AMARAL, op. cit., p. 322. 17 O CPC classificava em três categorias os artistas e intelectuais, as quais podem ser identificadas como: conformistas, inconformistas e revolucionários-conseqüêntes. Dentro do CPC era proposta uma orientação da produção artística distinguindo “arte popular”, “arte do povo” e “arte popular revolucionária”, sendo as duas primeiras rejeitadas pelo CPC, pois, “[...] ‘tais formas artísticas expressam o povo apenas em suas manifestações fenomênicas e não em sua essência. Com efeito, só se pode falar em uma arte do povo e de uma arte popular porque se tem em vista uma obra de arte ao lado delas, ou seja, a arte destinada aos círculos não populares’. Assim, esta arte dos ‘senhores’ mostra bem o conformismo social, na medida em que divide em parte a sociedade e, conseqüentemente, nega o povo” (AMARAL, op. cit., p. 321). Por esse motivo, o CPC opta por direcionar a sua produção artística para a arte popular revolucionária, no sentido de dar ao povo “o seu devido lugar”.

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Tomemos como ponto principal a ser discutido a participação das artes

plásticas dentro desse projeto que pode ser chamado de participativo e

comprometido com a realidade social e política do país. De acordo com Aracy

Amaral, a

[...] palidez da contribuição dos artistas plásticos é explicável, como sabemos, pelo elitismo dos canais distribuidores da produção plástica – ao contrário dos grandes auditórios dos teatros e festivais, bem como pelo isolacionismo que caracteriza o processo da produção individual do artista, ao contrário de outros setores de criação artística em equipe.18

Para tentar romper com esse isolacionismo, surge, durante a década de

1960, grupos de artistas plásticos que tomam a cidade como suporte de suas

obras, ou seja, apresentam seus trabalhos em espaços públicos, tratando de

temáticas do espaço urbano objetivando uma maior abrangência de espectadores.

Com o golpe militar de abril de 1964 as pesquisas formais no campo das

artes plásticas agregaram-se às vertentes políticas das manifestações culturais.

As primeiras manifestações documentadas de intelectuais e artistas referentes à

participação atuante nos problemas sociais, de acordo com Aracy Amaral, surgem

durante a década de 1960, “[...] seja em termos de ‘artista de elite’ versus ‘artista

popular revolucionário’, seja como referência à assunção da arte de conteúdo, a

arte política como único caminho para o artista de seu tempo, a par da

preservação necessária da qualidade de sua produção”.19 A princípio, a crítica

levantada por alguns artistas em suas obras não possuía um caráter

declaradamente político. Segundo Aracy Amaral

É evidente que a década de 60, fervilhante em sua múltipla agitação em nível mundial como nacional e latino-americano (e aqui a revolução cubana e suas conseqüências gozariam de repercussão considerável) fez com que vários artistas se interessassem pelos eventos internacionais e nacionais de maneira excepcional [...]. É inegável, igualmente, que a expressão criativa dessas temáticas é liberada a partir do acesso de novas técnicas e novas formas expressivas inexistentes anteriormente, a partir dos novos materiais exibidos nas obras pop americanas.20

18 AMARAL, op. cit., p. 328. 19 Ibid., p. 318. 20 Ibid., p. 329.

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Após o golpe militar, apesar da pequena participação das artes plásticas

nesse ambiente “politizado” e comprometido com uma produção engajada política

e socialmente, o que foi realmente feito sofreu fortes influências das iniciativas do

teatro. Como foi o caso da exposição realizada no Museu de Arte Moderna do Rio

Janeiro (MAM), organizada por Ceres Franco e Jean Boghici, inspirada no show

realizado em 1964, no Teatro Opinião21, intitulada Opinião 65. A leitura política

dessa exposição foi realizada pelo crítico de arte Mário Pedrosa. Mas, no entanto,

quando Opinião 65 foi realizada, esse caráter não era, de modo geral, uma regra

entre os trabalhos expostos. Aos organizadores da exposição o objetivo era o de

unir artistas franceses e brasileiros na tentativa de ampliar o mercado de arte

brasileiro. Junto com isso, Opinião 65 revelou a produção de uma vanguarda

brasileira, apontado para uma nova figuração, com influências da arte pop norte-

americana, e para um novo realismo. De acordo com Sérgio Duarte,

Opinião 65 marcou muito mais por mostrar linguagens que se encontravam em gestação do que por ‘uma ruptura com a arte do passado’. De qualquer forma, o efeito de ‘ruptura’ aparecia. Afinal, pela primeira vez, nas artes plásticas, a questão política e a crítica social apareciam integradas às novas linguagens e não associadas aos ‘realismos’, como eram freqüentemente tratados pelos artistas ‘oficiais’ da esquerda.22

Ao abordarem a nova corrente realista, os artistas não buscavam o enfoque das

classes sociais – operários e camponeses –, mas o apontamento da cultura de

massa e de questões urbanas.

Opinião 65 teve uma repercussão no decorrer da arte brasileira, que se

estende até, aproximadamente, 1968, quando o Ato Institucional n° 5, publicado

em 13 de dezembro desse ano, mudou o país. A exposição Proposta 65

representou a repercussão mais imediata de Opinião 65, aquela organizada pelo

21 O show Opinião teve como interpretes Nara Leão e, depois, Maria Betânia, que cantavam “Caracará” de João do Vale. Esse show obteve um grande sucesso e representou uma manifestação de protesto da classe artística contra a censura imposta pela ditadura militar. A idéia de um show inspirar uma exposição se deu por ser o teatro popular próximo da vida social e da atmosfera política da época. De acordo com Mario Pedrosa, em depoimento colhido pela equipe da galeria Banerj de arte, o grupo de Teatro de Arena, com sua Opinião, foi o propiciador do desabafo dos cidadãos pelo clima de terror e de opressão cultural implementado pelo regime militar. E, continua, foi desse contexto opressor que surgiu “Carcará”, “um hino da revolução social camponesa nordestina como Carmagnole o foi da plebe urbana e dos seus sans cullotes da Revolução Francesa durante o terror.” (MORAIS, F. Opinião 65... Não paginado). 22 DUARTE, op. cit., p. 35.

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artista Waldemar Cordeiro – e, por ser organizada por um artista, já tinha em seu

princípio um propósito diferente de Opinião 65 –, realizada em São Paulo na

Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). No ano de 1966 essas duas

exposições se repetem, tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro.

Nessa adequação das inovações trazidas pelo pop e pelo novo realismo,

surge no ano de 1967, a proposta da exposição Nova Objetividade Brasileira

(NOB), que reunia diversas correntes da vanguarda artística brasileira, enfatizando

o experimentalismo, “[...] corporificando a arte como ‘antiarte’, magnificando a

importância do objeto em detrimento dos suportes convencionais, a vinculação

ambiental [e] participação [...]”23 do espectador. A NOB tinha Hélio Oiticica como

um de seus maiores teóricos e “[...] propunha uma atitude radical dos artistas na

criação em face dos acontecimentos políticos e problemas sociais, afirmando,

antes de tudo, a criação coletiva”.24 Dessa forma, a NOB partia como um

contraponto da forma conduzida pelo CPC da UNE as imposições feitas aos

artistas de produzir uma forma de arte engajada ideologicamente que fosse de

fácil acesso ao grande público, mais definida didaticamente. Segundo Maria José

Justino, “[...] a tendência mais marcante do NOB era a sua inclinação para tornar a

população consciente de seu cotidiano, particularmente das atrocidades do

presente”.25 Na exposição Nova Objetividade Brasileira que ocorreu no MAM do

Rio de Janeiro, Oiticica – que expôs a obra Tropicália, que dá nome ao movimento

Tropicalista de 1968 – apontou o caminho da arte que estava sendo produzida por

aquele grupo:

1 vontade construtiva geral; 2 tendência para o objeto ao ser negado e superado o quadro de cavalete; 3 participação corporal, tátil, visual, semântica etc., do espectador; 4 tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais e éticos; 5 tendência a uma arte coletiva; 6 ressurgimento do problema da antiarte.

Essa é a direção tomada pelo grupo Nova Objetividade Brasileira, que se opunha a qualquer espécie de elitismo, a qualquer forma de contemplação e ilusionismo.26

23 AMARAL, op. cit., p. 334. 24 JUSTINO, op. cit., p. 93-94. 25 Ibid., p. 94. 26 Ibid., p. 95.

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Esse grupo, portanto, propunha a total liberdade de criação e experimentação, o

desenvolvimento de um pensamento e posicionamento político partindo das artes

plásticas, buscando a união de preocupações estéticas atuais com os problemas

políticos e sociais, sem, contudo, a camisa de força de uma ideologia. Era a

vanguarda que estava se impondo, “[...] atuando a priori, forçando caminhos,

criando novos repertórios, ativando a linguagem”.27 De acordo com o crítico de

arte Frederico Morais, o termo vanguarda significa “[...] ação permanente. A arte

como ação e engajamento. O artista de vanguarda não se restringe a produzir

obras. Ele luta por impor suas idéias, que não se esgotam, evidentemente, no

campo estético”.28 E a proposta da NOB representava essa forma de vanguarda,

atuante na ação e engajamento e não apenas preocupada com questões

puramente estéticas ou ideológicas.

Este, entre outros acontecimentos – projetos como Arte no Aterro, realizado

no MAM do Rio de Janeiro – “[...] encerravam, por assim dizer, o ‘clima’ dos anos

60, do artista tentando se articular com o seu entrono coletivo/urbano, sair de sua

interioridade/ateliê habituais em seu fazer artístico”.29 A partir de 1968, “[...]

impossibilitados de qualquer crítica aberta do sistema com a implantação do Ato

Institucional n° 5, a censura e a autocensura se impõem nos meios artísticos.”30

27 MORAIS, F. Artes plásticas: a crise da hora atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. p. 69-70. 28 Ibid., p. 69. 29 AMARAL, op. cit., p.339. 30 Ibid., p. 336.

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2.2 A idéia sobrepondo-se à forma: a inauguração do conceitual

A primeira vez que a expressão “arte conceito” apareceu, foi empregada

pelo escritor e músico Hery Flynt, já em 1961. “Flynt escreveu que ‘arte conceito’ é

acima de tudo uma arte na qual o material são os ‘conceitos’, [argumentando em

seguida que], uma vez que ‘os conceitos são estritamente vinculados à linguagem,

a arte conceitual é um tipo de arte na qual o material é a linguagem’”.31 Nas artes

plásticas, os predecessores da arte conceitual foram os ready mades de Marcel

Duchamp32. A partir desse artista a arte conceitual européia desenvolveu-se em

um espaço criado pela vanguarda, apoiada na crítica aos padrões presentes na

arte moderna.33

A partir de 1969, a arte conceitual ficou caracterizada por sua constante

politização. “O debate no mundo da arte, no entanto, tornava-se cada vez mais

politizado no final da década de 60, [...]” 34 principalmente na América Latina, que,

por razões históricas, a vanguarda tornou-se um espaço para intervenções

políticas e culturais devido à pequena abertura para o debate político. De acordo

com Paul Wood, “O conceitualismo da América Latina não era ‘um reflexo,

derivação ou réplica da arte conceitual realizada no centro’35, mas representava,

antes, uma série de ‘respostas locais às contradições geradas pelo fracasso dos

projetos de modernização pós Segunda Guerra e dos modelos artísticos adotados

31 WOOD, P. Arte conceitual. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 8. 32 Na década de 1970, os artistas retornam a apropriação de objetos “que ganham novas funções e são enriquecidos semanticamente com idéias e conceitos.”(MORAIS, Contra a arte afluente..., não paginado). 33 Um marco interessante para a arte conceitual foi realizado pelo artista e professor inglês John Latham, quando convidou seus alunos e alguns artistas para uma “mastigação” de algumas páginas do livro Arte e Cultura, do crítico de arte norte-americano Clement Greenberg. De acordo com Paul Wood, toda a ação “[...] envolvia escolher uma página, arrancá-la, mastigá-la e cuspir o resultado em um receptáculo preparado para aquele fim. Latham em seguida decompôs a pasta em um líquido com uma mistura de produtos químicos aos quais acrescentou lêvedo”. Como o livro havia sido emprestado da biblioteca da St. Martins School of Art, quando foi requisitada a devolução, Latham o devolveu em um tubo de ensaio contendo álcool. Com isso “[...] a arte ganhou um ícone conceitual na forma de uma maleta duchampiana contendo um exemplar do livro, os frascos de produtos químicos utilizados e a carta de demissão de Letham.” (WOOD, op. cit., p. 32-33). 34 WOOD, op. cit., p. 55. 35 Por “centro” entenda-se Estados Unidos e Europa.

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na região’”.36 Esse se torna o início de uma radicalização37 da contracultura, da

resistência e “[...] de um novo tipo de arte de vanguarda que usa a tática da

guerrilha para se expressar”.38 Surge, portanto, uma vanguarda que é gestada na

contestação à tradição na arte, ao academicismo, “[...] uma vanguarda que

desmistificou a arte e espraiou para a vida o fazer artístico, levando em seus

primeiros momentos quase tudo de roldão para poder afirmar sua existência”.39

De acordo com Marcos Napolitano, “[...] o debate intelectual entre 1964 e

1968, no qual se inseriu o problema da criação artística engajada, foi estimulado

pela busca de novas perspectivas culturais e políticas para entender a nova

conjuntura nacional”.40 Apesar do caráter autoritário, o regime militar, entre 1964 e

1968, não perseguiu diretamente artistas e intelectuais, o que possibilitou a eles

certa liberdade para criar e se expressar. Se no Brasil a década de 1960 ficou

representada por um momento de experimentação e relativa liberdade para a

criação, os anos 1970 foram marcados pela consciência de uma realidade

bastante delimitada pelo endurecimento do regime militar. Foi um período para a

cultura “[...] que poderia ser chamado de ingresso na idade da razão, com todas

as suas dolorosas conseqüências”.41

Dentro desse clima, a nova atuação artística foi representada por um

evento promovido por uma firma de publicidade no Rio de Janeiro, em 1969. Com

o título de Salão da Bússola, essa exposição montada no MAM do Rio, apresentou

o que se desenvolveria nas artes plásticas da década de 1970.

Como uma maré montante, um número pequeno de artistas na casa dos 20 anos tomou de assalto esse salão e ocupou-se com uma série de obras de tal contundência que o restante dos participantes, assim como seus promotores e o próprio júri transformaram-se em meros figurantes levados de roldão pela avalancha criadora. Foram Antonio Manuel,

36 WOOD, op. cit., p. 60. 37 De acordo com Francisco Bittencourt, no âmbito mundial “[...] o parto, doloroso e difícil, começara muito antes, em 1967/1968, com a tomada de consciência e a revolta dos estudantes em muitas partes do mundo, com a Primavera de Praga, com a constatação da ineficácia da filosofia hippie e a arrancada dos jovens para o radicalismo”. (BITTENCOURT, F. Dez anos de experimentação. In: GALERIA DE ARTE BANERJ. Depoimento de uma geração: 1969-1970. Rio de Janeiro, 1986. Não paginado. Catálogo.). 38 BITTENCOURT, op. cit., não paginado. 39 Ibid., não paginado. 40 NAPOITANO, M. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). São Paulo: Contexto, 2001. p. 47. 41 BITTENCOURT, op. cit., não paginado.

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Barrio, Thereza Simões, Cildo Meireles, Guilherme Vaz, Odila Ferrez e Luiz Alphonsus, exatamente os que deram ao Salão da Bússola uma dimensão que seus tímidos criadores não pretendiam e foi graças tão só à atuação dos jurados Frederico Morais e Mário Schemberg que não se criou na ocasião um impasse do gênero do fechamento da mostra de artistas brasileiros que tinham sido escolhidos para participar da VI Bienal dos Jovens de Paris, cuja representação foi vetada por misteriosos órgãos governamentais.42

A abertura do salão representou uma vitória para a vanguarda, pois, antes

disso, artistas e os jurados citados acima tiveram de travar uma discussão com os

produtores e com o crítico Walmir Ayala para derrubar as intenções de expor

obras de caráter acadêmico. Com a abertura do Salão da Bússola a vanguarda

das artes plásticas consegue se impor e se firmar “[...] com a concessão do prêmio

principal a Cildo Meireles43, com propostas datilografadas, isto é, antiobras,

enquanto dois outros prêmios importantes iam para Antônio Manuel e Thereza

Simões”.44 O Salão da Bússola iniciou um movimento que se desenvolveria nos

anos seguintes em diversos setores da criatividade, questionando todo o sistema

de arte desde sua produção até sua comercialização.

Estamos tomando aqui o Salão da Bússola como o primeiro evento que

evidencia uma produção de arte conceitual no Brasil, ou seja, uma exposição em

que a obra em si não existe, e sim a idéia da obra, seja ela numa ação ou numa

experiência. Os expositores desse salão partiram das mais diversas tendências

artísticas, mas, que, a partir de 1969, “[...] voltaram-se quase que exclusivamente

para experiências mais radicais com o corpo, as sensações, a inteligência e os

conceitos. Com isso, marcaram de forma extraordinária o período e deram-lhe um

42 BITTENCOURT, op. cit., não paginado. A respeito do veto da mostra de artistas brasileiros selecionados para participar da VI Bienal de Paris, o então diretor executivo do MAM do Rio, Maurício Roberto, em depoimento à equipe da galeria de arte BANERJ a 14 de maio de 1986, afirmou que “[...] o Ministério das relações Exteriores delegou ao Museu a responsabilidade de escolher os artistas que iriam participar da Bienal de Paris. Tivemos o cuidado de escolher um júri altamente competente para indicar os artistas. [...]. Foi montada uma exposição belíssima, mas ninguém pode vê-la, nem a crítica. Por volta das 15:30 horas do dia da inauguração, recebi um telefonema de Vera Sauer, da Divisão de Difusão Cultural do Itamaraty, dizendo que a exposição era revolucionaria, e que por imposição das Forças Armadas não deveria ser aberta. [...]. As tropas, efetivamente, invadiram o salão de exposições. [...]. A partir desse momento, o Museu de Arte Moderna passou a ter uma conotação subversiva e, desde então, um camburão da policia ficou lá, estacionado.”(GALERIA DE ARTE BANERJ. Depoimento de uma geração: 1969-1970. Rio de Janeiro, 1986. Não paginado. Catálogo). 43 Sua obra baseava-se em “folhas de papel contendo sugestões, escritas à maquina, para que os espectadoreses realizassem vários tipos de experiência, como por exemplo, determinar uma área da praia.”(MORAIS, Contra a arte afluente..., não paginado). 44 BITTENCOURT, op. cit., não paginado.

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impulso de uma unidade de ação que os seus colegas da década anterior, [...],

poucas vezes conseguiram”.45 Esse grupo de artistas expressava-se partindo de

uma necessidade de revolta, que cada vez era mais abafada pela censura, de “[...]

libertar-se do peso da hipocrisia de costumes que a partir de 1964 passou a ser

regra de comportamento oficial, principalmente através do meio de comunicação

de massa mais poderoso, a televisão”.46

Dentro desse clima é que surge a exposição Do Corpo à Terra, realizada

em Belo Horizonte, Minas Gerais, em abril de 1970, organizada pelo crítico de arte

Frederico Morais. Essa mostra era um dos eventos comemorativos da Semana da

Inconfidência e que também inaugurou o Palácio das Artes de Belo Horizonte.

Realizado no Parque Municipal, teve duração de três dias e ficou marcado pela

participação de artistas mineiros e cariocas com o desenvolvimento de

performances e happenings47.

Certamente o órgão oficial mineiro que patrocinou “Do Corpo à Terra” nunca pretendeu oferecer à pacata população de Belo Horizonte os rituais de sacrifício e o macabro espetáculo de distribuição de trouxas ensangüentadas em que se transformou a promoção.48

45 BITTENCOURT, op. cit., não paginado. 46 Ibid., não paginado. 47 O termo happening ficou conhecido no final dos anos 1950 por meio do americano Allan Kaprow para designar uma forma de arte, que combina artes visuais e um teatro sui generis, sem texto nem representação. Nos espetáculos, distintos materiais e elementos são organizados de forma a aproximar o espectador, fazendo-o participar da cena proposta pelo artista (nesse sentido, o happening se distingue da performance, onde não há participação do público). Os eventos possuem estrutura flexível, sem começo, meio e fim. As improvisações conduzem a cena - ritmada pelas idéias de acaso e espontaneidade - que têm lugar em contextos variados: ruas, antigos lofts, lojas vazias etc. Os happenings são eventos em tempo real, mas recusam as convenções artísticas. São gerados na ação e, como tal, não podem ser reproduzidos. Os únicos registros que podem levar ao conhecimento de tal acontecimento a quem não esteve presente são fotos ou filmagens. Mas, certamente esses registros não são aceitos como a obra em si, ou seja, apenas os que presenciaram o happening é que realmente viram a obra. Os happenings, de acordo com Allan Kaprow, são um desdobramento das assemblages e da arte ambiental, mas ultrapassa-as pela introdução do movimento e por seu caráter de síntese, espécie de arte total em que se encontram reunidas diferentes modalidades artísticas - pintura, dança, teatro etc. A filosofia de John Dewey, sobretudo suas reflexões sobre arte e experiência, o zen budismo, a música experimental de John Cage, assim como a action painting de Jackson Pollock, são as matrizes fundamentais para a concepção de happening. (ITAÚ CULTURAL. Disponível em: <www. itaucultural.com.br> Acesso em 15, agosto, 2004.). 48 BITTENCOURT, op. cit., não paginado.

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Diversos artistas participaram dessa exposição como Artur Barrio, Thereza

Simões, Luiz Alphonsus, Umberto Costa Barros, Hélio Oiticica, Cildo Meireles,

este com a obra Tiradentes: totem monumento ao preso político, entre outros. De

acordo com o crítico de arte Francisco Bittencourt,

[...] foi em Cildo Meireles [que queimou animais vivos] e Artur Barrio [que lançou trouxas com carne e ossos no Ribeirão das Arrudas] que a manifestação assumiu o tom sombrio de uma situação limite. Ninguém antes deles no Brasil reagiu com tal intensidade dentro do campo estético à realidade do momento. Os trabalhos que fizeram em Belo Horizonte ultrapassaram na verdade a simples polêmica estética [...] para adquirir a feição de luta pela vida de todo um povo.49

Na definição de Frederico Morais, essas manifestações de arte de

vanguarda no Brasil durante a ditadura militar podem ser vistas como uma forma

de arte-guerrilha. “A tarefa do artista-guerrilheiro é criar para o espectador (que

pode ser qualquer um e não apenas aquele que freqüenta exposições) situações

nebulosas, incomuns, indefinidas, provocando nele, mais do que o estranhamento

ou a repulsa, o medo”.50 Por isso tinha como seu princípio pequenas ações

visando um engajamento popular nas questões referentes à luta contra o

alienamento produzido pelo regime militar, assim como uma espécie de

provocação a todo o aparato de censuras e repressões sustentadas por este

regime.

Apesar dessas manifestações de arte-guerrilha, esse engajamento com o

“coletivo” e com o “popular” não ocorreu no meio das artes plásticas da forma e

com a força que se sucedeu com o teatro, com a música popular e com o cinema.

Com algumas exceções, a temática político-social circundou o campo das artes

plásticas de forma, digamos tímidas. De acordo com Aracy Amaral, talvez “[...] a

única tentativa de direção de uma desmistificação e deselitização do fazer artístico

haja sido, nesse sentido, a iniciativa de Frederico Morais, em ‘Domingos de

Criação’, no espaço do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, já em 1971,

porém dentro do clima de ‘comunhão com o urbano’, vigente nos anos 60”.51

Em se tratando da década de 1970, segundo Aracy Amaral,

49 BITTENCOURT, op. cit., não paginado. 50 MORAIS, F. Contra a arte afluente..., não paginado. 51 AMARAL, op. cit., p. 330.

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O dado político, na obra da maior parte dos artistas de início e meados dos anos 70, é quase nulo, embora a presença crítica, através da metáfora, seja evidente, tanto nas pinturas expressivas de Antônio Henrique Amaral, como de João Câmara Filho, dessa época, além de igualmente visíveis em trabalhos conceituais de Cildo Meireles [...].52

Aracy Amaral coloca que não havia um alinhamento político nessas críticas no

sentido de que os artistas não estavam divulgando uma ideologia de um

determinado partido político, mas uma espécie de “[...] ‘comentários’ do artista em

relação a eventos de seu tempo”.53

De modo geral, a produção artística brasileira de início e meados da década

de 1960 teve suas raízes pautadas no “[...] espetáculo da cidade grande e de seu

submundo, aí incluída até a criminalidade [...]”54, ou seja, a circulação dessa forma

de arte só fazia sentido dentro de um ambiente de uma metrópole e atuando em

um certo submundo, às vezes até mesmo no anonimato. Havia igualmente uma

tentativa de envolvimento, em diversos sentidos, com o espectador. A partir de

1968, as motivações no campo das artes plásticas passam a tomar uma direção

menos ligada a euforia da participação, e mais voltada para a tomada de

consciência de uma realidade irreversível.

52 AMARAL, op. cit., p. 337. 53 Ibid., p. 337. 54 JUSTINO, op. cit., p. 01.

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3 ARTE E OU OU ENGAJAMENTO POLÍTICO?

Neste capítulo optamos por trabalhar diretamente com a análise de três

obras de Cildo Meireles produzidas entre os anos de 1970 e 1975. Tais obras

possuem um caráter de contestação política ao regime militar, vigente no Brasil

entre os anos 1964 e 1986, assim como a crítica à sociedade de consumo que se

formou com o processo de industrialização do país na década de 1950.

Buscaremos nelas o caráter reflexivo da crítica ao ambiente social e político pelo

qual o Brasil estava passando, sem deixar de lado a análise estética das obras.

Cildo Meireles teve sua formação artística em Brasília, onde participou de

cursos livres da Universidade de Brasília e freqüentou ateliês de arte. Nesse

período de formação, teve como seu mestre o artista peruano Félix Barrenechea.

Quando chega ao Rio de Janeiro, em 1967, traz consigo toda uma tradição de

estudos em desenho e pintura, que mais tarde, de certa forma, abandonaria.

Ainda em Brasília, tinha tido contato com as obras de Hélio Oiticica, Lygia Clark,

Lygia Pape e Artur Barrio, assim como de outros artistas da vanguarda artística da

época, as quais interessavam-lhe suas linguagens. Desde o princípio de sua

produção, Cildo Meireles já podia ser chamado de um artista conceitual,

interessado em mecanismos de percepção, problemas internos de arte, questões

relacionadas ao espaço, sem deixar de lado a interação de suas obras com o

ambiente social ao qual estavam sendo produzidas.

A produção de Cildo Meireles propõe uma ligação entre o movimento

neoconcreto da década de 1960 e a produção engajada politicamente e ligada ao

conceitualismo da década de 1970. De acordo com Paulo Herkenhoff, um de seus

maiores críticos, sua obra pode ser descrita como uma “teoria poética da

sociedade”, pois ele trabalha com

[...] questões que vão da política à ideais e estratégias. Examina espaços e processos de comunicação, as condições do espectador, os legados da História da arte e o espaço social do gueto – espaço freqüentemente evocado. O foco de sua arte pode abranger desde a expansão econômica do capitalismo internacional a um pequeno gesto cultural de

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índios brasileiros. [...]. A obra é concebida e estruturada em torno de um ponto nodal em que o Real, o Simbólico e o Imaginário se articulam e encontram sua medida.

55

Suas temáticas são flexíveis, sendo cada uma delas tratadas com sua

devida importância. Em seus trabalhos são incorporadas diferentes linguagens,

gestos e circuitos sociais. A temática social, da arte unida à vida, sempre esteve

presente em suas obras, às vezes de forma mais velada e outras de forma mais

explícita.

As obras que serão analisadas nesse capítulo darão conta de mostrar a

complexidade e a simplicidade, as entrelinhas e o que é apresentado nitidamente,

do pensamento que as envolve.

Está patente que as linguagens emergentes com os anos 1970 não pretendem tanto – como as vanguardas do início do século XX – promover rupturas formais e sim construir um ponto de vista diferente acerca da arte e sua inserção cultural e ideológica. Este ponto de vista, sobretudo político, não implica obviamente submissão a programas partidários, nem significa uma redução do trabalho de arte à categoria de reflexo das situações políticas em que aparece. Trata-se de superar a opacidade mítica em que a instituição arte mantinha protegidos os seus lances e ainda o ingênuo platonismo da condição de artista.

56

Dessa forma abordamos o tema arte e/ou engajamento político focando

para uma forma de arte comprometida com o político e com o social em um

sistema ditatorial. Dentro desse sistema, buscaremos apontar para as alternativas

tomadas por Meireles visando a divulgação de seu trabalho e o raciocínio que

envolveu essas alternativas.

55

HERKENHOFF, P. Um gueto labiríntico: a obra de Cildo Meireles. In: HERKENHOFF, P., MOSQUERA, G., CAMERON, D. Cildo Meireles. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. p. 38. 56 ZÍLIO, C. et. al. O boom, o pós-boom e o dis-boom. In: BASBAUM, R. (org.). Arte contemporânea

brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. p. 190.

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3.1 Condição limite :::: Tiradentes totem monumento ao preso político

Antes do ano de 1970, Cildo Meireles já produzia obras de caráter engajado

politicamente, obras que se comprometiam, de alguma forma, com a denúncia de

um sistema opressor imposto pela ditadura militar desde 1964. Mas, é a partir de

1970, dois anos depois da decretação do Ato Institucional n° 5, que sua produção

passa a ser radicalizada, acompanhada também pela radicalização de trabalhos

de outros artistas da chamada vanguarda da década de 1970. Juntamente com

ação inflexível da censura, das prisões, das torturas e da suspensão dos direitos

políticos dos cidadãos, observa-se uma busca de Cildo Meireles pela

representação das angústias que circulavam entre os artistas, que passavam “[...]

a dirigir-se, por meio de todos os sentidos da percepção, a um público visto então

como um agente potencial da ação”.57

Na exposição intitulada Do Corpo à Terra, organizada pelo crítico de arte

Frederico Morais para a Hidrominas – uma empresa de economia mista do Estado

de Minas Gerais –, “[...] que durou três dias, os trabalhos foram realizados no

Parque Municipal, no centro da capital mineira, e para isso os artistas receberam

uma ajuda de custo. Ou seja, pela primeira vez, em uma manifestação de artes

plásticas, os artistas, não apresentaram obras, mas limitaram-se a desenvolver

ações, eventos, rituais e manifestações”.58 Essa exposição não pretendia oferecer

a população de Belo Horizonte um “show de horror”, ou melhor, um espelho do

que era realizado nos ditos porões da ditadura. De acordo com Francisco

Bittencourt, “[...] a entidade do Estado de Minas viu-se a braças, de repente, com

algo que ultrapassava de muito sua imaginação, um desafio quase insuportável

aos valores ‘culturais’ tradicionais às belas artes”.59 Essa mostra era um dos

eventos comemorativos da Semana da Inconfidência e que também inaugurou o

Palácio das Artes de Belo Horizonte.

57 HERKENHOFF, op. cit., p. 59. 58 MORAIS, F. Artes plásticas..., p. 104. 59 BITTENCOURT, op. cit., não paginado.

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22

Nesta exposição Cildo Meireles realiza o happening Tiradentes: totem

monumento ao preso político, apresentado no espaço externo ao pavilhão de

exposições do recém inaugurado Palácio das Artes. Essa obra consistia em uma

“[...] estaca de 2,50m sobre um quadrilátero marcado por um pano branco e tendo

no topo um termômetro clínico. Ao poste foram amarradas dez galinhas vivas,

sobre as quais se derramou gasolina e ateou-se fogo”.60 O sacrifício com as

galinhas foi realizado no dia 21 de abril, dia da abertura do evento, levando ao

extremo grau de violência, que só seria maior, mas impossível, se ateasse fogo

em seres humanos. O emprego da temática da extrema violência como base

deste trabalho fazia alusão direta ao sistema repressor vigente no Brasil no

período tratado, causando um desconforto não só aos que presenciaram o

happening, mas a todo o meio de arte.

Uma das análises dessa obra que pode ser feita é observar a verticalidade

do poste, em uma referência aos monumentos que exaltam personagens

considerados representativos para a história do país. O poste remete também

tanto a um totem (objeto de veneração) quanto à forca usada para matar

Tiradentes61. As galinhas queimadas eram a representação da própria violência

com que eram tratados os presos políticos. Seus corpos despedaçados eram a

imagem da castração da liberdade pelas ações do regime militar. Nesse trabalho

Cildo Meireles usa um discurso mais explícito, a questão formal com a qual

pretendia trabalhar, como explica em entrevista concedida a Gerardo Mosquera,

estava na “[...] metáfora e no deslocamento do tema. Queria usar o tema vida e

morte, como matéria prima do trabalho”.62

Além das questões já mencionadas, Tiradentes... tratava de temas

relacionados com o imaginário da guerra do Vietnã, que estava ocorrendo no

60 HERKENHOFF, op. cit., p. 62. 61 A citação a Tiradentes, enforcado pela Coroa portuguesa em 1792, não aparecia na arte brasileira até o final do Império, em 1889, pois, a maioria dos artistas era subordinada ao governo imperial, o qual tinha ordenado a morte de Tiradentes. Após a proclamação da República, o artista Pedro Américo de Figueiredo e Melo realizou uma pintura, intitulada Tiradentes esquartejado (1893), que foi uma das referências para o Tiradentes: totem monumento ao preso político de Cildo Meireles. 62 MOSQUERA, G. Conversa com Cildo Meireles. In: HERKENHOFF, P., MOSQUERA, G., CAMERON, D. Cildo Meireles. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. p. 15.

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23

período. O que deve ser salientado é que a intenção da metáfora vida e morte foi

representada em Tiradentes... por uma realidade altamente chocante e

desestabilizadora, pois Cildo Meireles usou da metáfora para atear realmente fogo

em animais vivos e deixou-os queimar até que fossem mortos. O material vivo

torna-se ambíguo, não no sentido negativo do termo, mas na questão das diversas

interpretações que podem ser adicionadas a ele.

O termo “preso político” contido no título da obra faz alusão não apenas a

Tiradentes como um mártir do processo histórico de independência do Brasil, nem

como uma tentativa de resgate do passado, mas a geração de uma imagem

associada à liberdade proposta pela figura de Tiradentes que foi manipulada e

distorcida pela política praticada pelos militares. Cildo Meireles ao tratar o tema da

violência como base para essa obra procurou fazer uma menção direta a situação

brasileira de repressão política. Nas palavras do próprio artista:

Na época havia muito cinismo e tentativa de cooptação do personagem [Tiradentes]. Era, de fato, uma espécie de regra de três simples. Pegar galinhas e matá-las equivalia, na verdade, a pegar um símbolo nacional e torná-lo símbolo do golpe militar. Ao mesmo tempo em que eles estavam se aproveitando do símbolo de Tiradentes, herói da independência brasileira, com todas as contradições que o personagem possa ter, eles estavam usando de procedimentos análogos aos do artista contra as próprias galinhas, e justamente para defender o contrário do que o próprio Tiradentes defendia.63

Tiradentes foi tomado como mártir – devido ao seu enforcamento e

esquartejamento de seu corpo, depois exposto à população de Minas Gerais – da

Inconfidência Mineira de 1789, este que foi o primeiro levante organizado contra a

Coroa Portuguesa e inspirado nos ideais iluministas da Revolução Francesa. O

nome de Tiradentes traz a lembrança a luta pela libertação política, esta que

também, guardadas as devidas proporções, era proposta por aqueles que eram

denominados presos políticos. Estes, extremamente marginalizados da sociedade,

sem direitos aos mesmos tratamentos que os “cidadãos comuns”, por serem

considerados subversivos, são referenciados em Tiradentes... como argumento da

crítica.

63 MEIRELES, C. Cildo Meireles, geografia do Brasil. Rio de Janeiro: Artviva Produção Cultural, 2001. p. 64.

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A estética da violência adotada por Cildo Meireles nessa obra está em

absoluta sintonia com a metáfora da vida e morte que pretendia trabalhar. A

violência política do regime militar não poupava, como é sabido, nenhuma

particularidade. Cildo Meireles, em Tiradentes..., trabalha de forma suspeita com a

condenação moral da violência. Isso não quer dizer que seu posicionamento fosse

a favor das torturas e humilhações destinadas aos presos políticos, obviamente. O

fato é que a violência é representada com tal radicalismo, ou seja, sem

condenação moral, pois está sendo repetida, que sua intensidade torna-se

insuportável para quem a observa. Essa forma de violência é representada e

repetida com a intenção de expressar a revolta e o repúdio a esse sistema , e não

de apoiar essas formas de opressão. É a amplificação do horror para gerar

consciência e provocar seus verdadeiros executores. Nas palavras de Herkenhoff,

“[...] no imaginário brasileiro, Tiradentes representa uma visão arquetípica do

corpo esquartejado pela violência política, e é assim que Cildo Meireles o tratou.

[...] [como] os corpos mutilados daqueles que, muitas vezes injustificadamente,

foram executados como traidores”.64

Tendo isso, pode-se afirmar que não houve manifestação política nas artes

plásticas brasileira com tal intensidade, assumindo o tom sombrio dessa situação

limite, comparável à Tiradentes... de Cildo Meireles. Uma obra realizada nessa

mesma exposição pode ter tido o mesmo impacto produzido por Meireles, as

Trouxas ensangüentadas65 de Artur Barrio. De acordo com Francisco Bittencourt,

os trabalhos de Cildo Meireles e Artur Barrio “[...] ultrapassam na verdade a

simples polêmica estética – como no caso do porco empalhado de Nelson Leirner

num Salão em Brasília66 – para adquirir a feição de luta pela vida de todo um

povo”.67

64 HERKENHOFF, op. cit., p. 65. 65 Barrio “[...] fez 15 trouxas de carne e ossos reais, comprados num açougue, e distribuiu-as por diversos pontos da cidade, concentrando-se porém onde havia um esgoto. [...]. As trouxas ensangüentadas intrigaram de tal forma o povo de Belo Horizonte, que se pôs a murmurar sobre crimes do Esquadrão da Morte, que tiveram de ser retiradas com presteza pelos garis. Era a arte incômoda e fétida que seria posta à prova por seu autor em diversas ocasiões”. (BITTENCOURT, op. cit., não paginado). 66 A polêmica estética se deu no ano de 1967, quando Nelson Leirner foi premiado pela crítica do IV Salão Nacional de Artes Plásticas de Brasília com uma menção honrosa por um porco empalhado. Mais do que uma piada, o porco de Leirner discutia os critérios utilizados para o

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Observando Tiradentes... do ponto de vista da teoria da arte, podemos

adequá-lo ao conceito de obra de Umberto Eco. Tiradentes... deixa de existir

fisicamente, ou seja, a obra em si é um conceito que se expande, é libertada do

suporte e do apoio, passando a ser uma situação, um acontecimento, uma

reflexão. Nessa concepção de arte, o artista é tratado como um propositor de

situações e não mais como um produtor de obras. Como afirma Frederico Morais,

a vanguarda que atuava na década de 1970, tratava a “[...] arte como ação e

engajamento. O artista da vanguarda não se restringe a produzir obras. Ele luta

para impor suas idéias, que não se esgotam, evidentemente, no campo estético”.68

A contemplação da obra de arte não é mais posta em questão, ou melhor, ela é

desprezada, descartada em função da participação, conscientização e

experimentação dessa obra.

Outro conceito que vai se esfalecendo com a produção da geração de 1970

é o de durabilidade e permanência da obra, igualmente como as bases para esses

conceitos (suportes, molduras, pedestais, chegando até mesmo ao museu e a

galeria). Na conceituação de Frederico Morais, o artista aparecia como uma

espécie de guerrilheiro, fazendo da arte uma emboscada. “Atuando

imprevistamente, onde e quando é menos esperado, de maneira inusitada, o

artista cria um estado permanente de tensão, uma expectativa constante. Tudo

pode transformar-se em arte, mesmo o mais banal evento cotidiano”.69 Nesse

sentido podemos entender Tiradentes... como uma transposição dramática da

condição social do período para o campo da arte, de forma imprevista e radical.

Da mesma forma, pode-se interpretar a atitude de Cildo Meireles ao realizar o

julgamento das obras. Leirner provocou o júri que havia aceitado o seu porco empalhado, enviando para o Jornal da Tarde uma foto da obra juntamente com a pergunta: “que critérios o júri usou para aceitá-lo?”. A resposta de Frederico Morais, um dos integrantes do júri, a provocação foi: “A arte é, e sempre foi, provocação. [...]. Este não foi também o seu comportamento ao mandar publicar no ‘Jornal da Tarde’ a fotografia do seu porco empalhado e saber por que foi aceito? O júri não aceitou o porco, tal como insinua no jornal. Considerou uma proposição digna de exame e interesse, ainda que no título, equivocada. [...]. À crítica aberta não interessa a obra em si, ela não julga mais academicamente, os chamados valores plásticos, as qualidades artesanais. A esta crítica interessa o problema, a proposição e como ela foi resolvida. Para mim tudo é valido, tudo é possível de se transformar em arte: a vida, o próprio homem. Até o porco do Leirner”.(MORAIS, Artes plásticas..., p. 89.). 67 BITTENCOURT, op. cit., não paginado. 68 MORAIS, Artes plásticas..., p. 69. 69 MORAIS, Contra a arte afluente..., não paginado.

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sacrifício com as galinhas para fazer alusão ao massacre e repressão aos seres

humanos no Brasil ou no Vietnã. Ao propor essa situação, o artista assume a

crueldade e violência dos agentes do poder, se violentando e violentando o bem-

estar dos espectadores, para que todos sintam o horror da morte injusta,

sacrificada e adorada.

Tiradentes: totem monumento ao preso político é uma obra que pertence ao

seu contexto político e social e que, se retirada dele, perde totalmente o seu

significado, “[...] a ‘obra’ perde ou ganha significados em função dos

acontecimentos, sejam eles de qualquer ordem”.70 Portanto, Tiradentes..., seja por

sua radicalidade, seja por sua estética da violência, marcou o início de um novo

período das artes plásticas no Brasil. Esse período, que começa em 1970 e se

prolonga até aproximadamente 1975, foi marcado, dessa forma, por um

engajamento mais incisivo nas questões políticas e por uma espécie de desabafo.

Isso demonstra que o estigma dos anos 1970 ter sido representado por uma

espécie de apatia cultural não considera essas formas de engajamento e

produção artística.

70 MORAIS, Contra a arte afluente..., não paginado.

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3.2 Os graffitis móveis:::: Inserções em circuitos ideológicos

A idéia básica dos chamados graffitis móveis71 passa, de forma reduzida,

por duas correntes que chamaremos de posicionamentos em relação à obra, uma

ligada aos readymades duchampianos e, outra, à circulação do objeto dentro do

corpo social. Como já foi citada anteriormente, a concepção primordial dos

readymades de Duchamp era a retirada de objetos de uso comum e transposição

deles para o campo da arte. Pautado nesse processo, Cildo Meireles, com seus

graffitis móveis realiza esse caminho, mas de uma forma um tanto particularizada.

Os readymades de Meireles são também objetos trazidos do cotidiano,

modificados, mas, depois devolvidos ao seu ambiente natural. Dentro dessa

perspectiva duchampiana, insere-se também o pensamento presente na pop arte.

Os readymades de Cildo Meireles são associados igualmente a elementos da

cultura de massa, ou seja, a imagens que já foram assimiladas pela sociedade de

consumo devido ao seu alto grau de circulação e, conseqüentemente,

reconhecimento. A cultura do pop dava a possibilidade estética da representação

de ícones do mundo de consumo, organizando “[...] uma operação artística que

reconhecia que o elemento universal da arte poderia estar embutido nos ícones

cotidianos cuja circulação em escala planetária estava assegurada pela história

dos meios de comunicação e pelo universo do consumo”.72

Na análise desses graffitis móveis de Cildo Meireles, pensaremos nessas

vertentes e por elas nos guiaremos para decifrar essas obras. Tanto o conceito de

readymade como o de circulação da obra receberão um tratamento mais

aprofundado ao longo da análise. Contudo, é importante termos em mente que

partindo desses conceitos, por mais que a presença de ícones do consumo

facilitasse a circulação desse objeto de arte, a operação formal não se esgotava

apenas nesses aspectos. Veremos que eles compunham uma parte importante da

obra, mas, de forma alguma, representavam o seu todo. O artista se apropriava de

71 Expressão criada pelo próprio Cildo Meireles. 72 DUARTE, op. cit., p. 22.

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objetos existentes e com cargas ideológicas já determinadas, numa espécie de

readymade, dando uma nova significação e função a partir das idéias e conceitos

que pretendia veicular.

As Inserções em circuitos ideológicos de Cildo Meireles são interpretadas

pelo crítico de arte Ronaldo Brito como “[...] um circuito de inteligibilidade que se

movimenta à maneira das sombras: sinuosamente, sem cristalizar-se em Formas,

agenciaria Densidades que percorreriam indistintamente o mais singular e o mais

plural, sem respeito à hierarquia do Real, atento à toda espécie de alteração e

perturbação da Ordem”.73 Partindo desse pensamento, pode-se fazer uma

associação com o que Frederico Morais chamava de “artista guerrilheiro”,

propositor de uma espécie de “arte-guerrilha”, com emboscadas, agindo

imprevistamente, sem local nem hora marcados (como em um ambiente de

galerias ou museus), seria aquele artista que “[...] cria um estado permanente de

tensão, uma expectativa constante”.74 Dessa forma imprevista, até garrafas de

Coca-Cola e cédulas monetárias podem ser transformadas em objetos de arte.

As Inserções... buscavam principalmente a oralidade, o mais importante na

obra não era o seu caráter de objeto, mas o de não-objeto. Ela se propunha a um

contato indiferenciado com o público, na tentativa de comunicação e transgressão

constante. A busca por uma oralidade passível de perpassar o corpo coletivo, sem

distinção, numa constante comunicação em forma de senhas, distribuídas no

anonimato. O que Cildo Meireles faz com as Inserções em circuitos ideológicos se

resume a uma manifestação de rua, isolada e sem denominação, como reação a

uma rede formada pela censura e pela repressão.

Podemos dizer que em Inserções..., se relacionadas à Tiradentes: totem

monumento ao preso político, Meireles se afasta do circuito da arte e atua

realmente em um circuito real. Segundo o próprio artista, esse trabalho

[...] não tinha mais aquele culto do objeto, puramente: as coisas existiam em função do que podiam provocar no corpo social. Era exatamente o que se tinha na cabeça: trabalhar com

73 BRITO, R. Freqüência imodulada. In: BASBAUM, R. (org.). Arte contemporânea brasileira. Rio de Janeiro:::: Rios Ambiciosos, 2001. p. 112. 74 MORAIS, Contra a arte afluente..., não paginado.

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a idéia de público. Jogava-se tudo no trabalho, que visava um número grande e indefinido de pessoas; esta coisa chamada público.75

Assim, uma garrafa de refrigerante e uma nota de dinheiro passavam a ser

suportes ideais para popularizar uma idéia dentro do corpo social e atingir um

grande número de pessoas, sem qualquer forma de privilégio.

Frederico Morais observa que

A cultura de massa, [...] é aberta. A ênfase é dada ao consumo, à quantidade, à reprodução. Os produtos culturais destinados à massa fundam-se numa estrutura repetitiva [...] e estandardizada e sua transmissão se faz indireta e descontinuamente pelos veículos de comunicação massiva, na rua ou nos grandes auditórios.76

Por conta disso, as Inserções em circuitos ideológicos surgiram a partir de três

pressupostos:

“1. existem na sociedade determinados mecanismos de circulação

(circuitos);

2. esses circuitos veiculam evidentemente a ideologia do produtor, mas ao

mesmo tempo são passíveis de receber inserções em sua circulação;

3. isso ocorre sempre que as pessoas o deflagrem”.77

O conceito de circuito, para Meireles,

[...] determina a carga dialética de trabalho, uma vez que parasitaria todo e qualquer esforço contido na essência mesma do processo (o meio). Isto é, a embalagem veicula sempre uma ideologia. Então, a idéia inicial era a constatação de ‘circuito’ (natural) que existe e sobre o qual é possível fazer um trabalho real. Na realidade, o caráter da inserção nesse circuito seria sempre de contra-informação. A sofisticação do meio seria capitalizada em benefício da ampliação da igualdade de acesso à comunicação de massa e, cabe dizer, em benefício de uma neutralização da propaganda ideológica original (da indústria ou do Estado), que é sempre anestesiante. É uma oposição entre consciência (inserção) e anestesia (circuito), considerando-se consciência como função da arte e anestesia como função da indústria. Porque todo circuito industrial normalmente é amplo, porém alienante (alienado).78

75 MEIRELES, C. Textos do artista. In: HERKENHOFF, P., MOSQUERA, G., CAMERON, D. Cildo Meireles. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. p. 110. 76 MORAIS, Artes plásticas..., p. 39. 77 MEIRELES, Textos do..., p. 110. 78 Ibid., p. 112.

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Portanto, o importante nestas obras é o seu caráter de guerrilha, que exigia

uma tática de ação política específica para essa forma de circulação de idéias. As

Inserções... não eram apenas uma forma de intervenção na ordem política, social

e econômica estabelecida, que se apropriava dos próprios mecanismos de

distribuição do capitalismo; tratavam também da questão do indivíduo encoberto

por um sistema de distribuição e consumo de mercadorias.

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3.2.1 Projeto Coca-Cola

Ainda no ano de 1970 houve outro evento importante que contou com a

presença de Cildo Meireles. Além de sua participação na exposição Do corpo à

Terra, Meireles integrou a série de exposições individuais ocorridas na Petite

Galerie, no Rio de Janeiro. A exposição cujo título era Agnus Dei (palavra do latim

que representa a expressão “Cordeiro de Deus”), contou também com a presença

de Thereza Simões e Guilherme Vaz, aquela também teria participado da

exposição Do Corpo à Terra. De acordo com Francisco Bittencourt, essa série de

individuais contava com uma “[...] extraordinária coesão ao nível ideológico, [...]

[com o] denominador comum da vontade de enxugar ao máximo a linguagem

artística”.78 Foi nessa exposição que Cildo Meireles apresentou o primeiro projeto

da série Inserções em circuitos ideológicos. Ainda citando Bittencourt, os trabalhos

de Meireles apresentados nessa mostra foram “todos com um denominador

comum surdo e fúnebre, acusador e premonitório dos holocaustos praticados pelo

homem, num estilo de suprema elegância estilística”.79

O primeiro trabalho da série Inserções em circuitos ideológicos,

apresentado na Agnus Dei, foi o Projeto Coca-Cola. Essa obra consistia na

retirada temporária de garrafas de Coca-Cola do mercado, para que nelas fosse

inscrito: Inserções em circuitos ideológicos: 1. Projeto Coca-Cola. Gravar nas

garrafas opiniões críticas e devolvê-las à circulação. CM.5.70., e colocá-las

novamente em circulação. A expressão a ser veiculada nessa obra foi: Yankees,

go home. Com a técnica do decalque de silk screen (serigrafia), Cildo Meireles se

utilizou dos mesmos caracteres usados pela própria indústria para a impressão

nas garrafas. Tais garrafas eram postas novamente em circulação como uma

forma de readymade. Segundo Paulo Herkenhoff, as proposições desse trabalho

estavam na “[...] existência de determinados mecanismos de circulação na

sociedade e na veiculação da ideologia do produtor por meio deles”.80

78 BITTENCOURT, op. cit., não paginado. 79 Ibid., não paginado. 80 HERKENHOFF, op. cit., p. 48.

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A idéia das garrafas foi inspirada em uma prática simples, utilizada por

náufragos: enviar mensagens em garrafas. Dessa idéia simples, Meireles

surpreende com as ambições propostas e realizadas por esse trabalho, tanto no

aspecto da linguagem da obra, quanto politicamente e ideologicamente. A prática

de colocar em circulação frases com teor político e ideológico transformava-se em

uma forma de apresentar ao público uma crítica, por meios informais e anônimos,

uma vez que os canais oficiais de circulação de idéias estavam fechados. De

acordo com a análise feita por Marcos Napolitano, as garrafas de Coca-Cola eram

“[...] uma espécie de ‘guerrilha cultural’, um conjunto de pequenas ações e

intervenções no espaço público, clandestinas e anônimas. [...]. Pequenas ações

como estas mantinha o ethos da oposição ao regime em movimento e

estabeleciam uma verdadeira rede de recados sutil, mas significativa”.81 A série

Inserções em circuitos ideológicos tinha a intenção de criar uma rede clandestina

e eficiente de expressão individual, que pudesse ter sua abrangência multiplicada

em grande escala.

Estavam implícitas a essa prática “[...] a noção de meio circulante, como

papel moeda82, e embalagens de retorno, como garrafas de bebida”.83 Portanto,

além da noção de readymade, é importante observarmos o caráter da circulação

do objeto industrializado. Especificamente neste caso, Cildo Meireles trabalha com

a alteração do objeto – garrafas de Coca-Cola – de forma que o produto passa a

negar a sua procedência. É devolvido a um sistema econômico real e não levado

para o campo da arte, assumindo um caminho contrário ao percorrido pelos

readymades. Isso a priori, pois, como foi mencionado, as garrafas foram expostas,

junto com outras obras do artista, na exposição Agnus Dei.

O acaso era também importante para a circulação do Projeto Coca-Cola,

uma vez que não havia nenhuma forma de controle centralizado de quem iria

receber essa informação contida nas garrafas de refrigerante. As Inserções...

foram criadas partindo da necessidade de aderir a um sistema de informações e

de trocas que não dependessem da forma de controle presente em outros

81 NAPOLITANO, Cultura brasileira..., p. 79. 82 O terceiro trabalho a ser analisado neste capítulo têm como suporte o papel moeda do período. 83 HERKENHOFF, op. cit., p. 48.

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circuitos, como o da televisão e do rádio, que precisavam de um controle das

mensagens que eram veiculadas para continuar atuando nesses meios. Nesses

casos, de acordo com Cildo Meireles, “[...] a inserção é exercida por uma elite que

tem acesso aos níveis que ela se desenvolve: sofisticação ideológica, altas somas

de dinheiro e poder”.84 Em meios de comunicação de massa, como a televisão e o

rádio, a censura contava com a ajuda dos donos dessas mídias. Esse tipo de

intervenção era praticada porque essas “[...] empresas eram as principais

beneficiárias da política de expansão da infra-estrutura de comunicação [...]

patrocinada pelo regime militar. Qualquer conflito com o governo poderia

ocasionar uma represália em termos econômico-financeiros, desastrosa para a

atividade”.85

Podemos perceber no Projeto Coca-Cola a opção por tomar o mercado

consumidor como público para essa obra e, assim, criar um novo circuito para o

objeto de arte, apropriando-se de um mecanismo de circulação já existente e

inserindo nele elementos que configuravam um embate a condição social vigente.

Essa forma de arte possuía, desse modo, uma função social consciente. Já a

indústria era encarada no sentido oposto, pois, seu princípio estava no maior grau

de alienação possível. Assim, o Projeto Coca-Cola colocava-se como um

obstáculo a ideologia posta movimento pela indústria.

84 Ibid., p. 110. 85 NAPOLITANO, Cultura brasileira..., p. 101.

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3.2.2 Projeto cédula

O Projeto cédula da série Inserções em circuitos ideológicos é datado de

1970, mas especialmente a obra desse projeto que iremos analisar foi produzida

no ano de 1975. Apresentaremos apenas uma das propostas do Projeto cédula.

Contudo, desde 1970 Cildo Meireles carimbava frases de caráter político em

cédulas, mas para este trabalho interessa-nos apenas a abordagem de uma delas.

O Projeto cédula fundamentava-se em carimbar frases com teor político e

ideológico em papel moeda, colocando-os novamente em circulação.

Particularmente a cédula desse projeto que iremos analisar continha a questão:

Quem matou Herzog?. Não à-toa ela foi posta em circulação em 1975, ano da

morte do jornalista da TV Cultura de São Paulo, Wladimir Herzog, nas

dependências do Quartel General do II Exército, em São Paulo. Oficialmente, a

morte do jornalista na prisão foi anunciada como sendo um suicídio. Os próprios

militares fizeram a divulgação de uma fotografia na qual Herzog aparecia com uma

corda amarrada no pescoço, presa a uma janela, e de joelhos no chão. Esse fato

provocou grande indignação principalmente entre a classe média e a Igreja (os

principais alicerces do golpe de 1964), pois, por meio dessa fotografia, os militares

assumiam publicamente e de forma irônica que o jornalista não havia suicidado-

se, e sim, morto sob tortura. A morte de Herzog representou um marco da

mobilização social pela redemocratização do país. As notas de cruzeiro lançadas

por Cildo Meireles circulavam livremente com a indagação que apontava para a

institucionalização de mecanismos de torturas e mortes.

A fotografia foi fornecida por setores do exército que estavam “[...]

descontentes com a política de abertura e desafiando a ordem do governo de

suspender as torturas em presos políticos, [...] passaram a concentrar a repressão

a jornalistas de esquerda visando sabotar a tímida aproximação entre governo e

grande imprensa, que então se esboçava”.85 Em março de 1974 assume um novo

governo militar, que tinha como presidente o general Ernesto Geisel. De acordo

85

NAPOLITANO, Cultura brasileira..., p.106.

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com Boris Fausto, a escolha de Geisel para a presidência representou uma

derrota da linha-dura do regime militar.86

Geisel assume a presidência em uma conjuntura inflacionária, com a classe

média, principal apoio do golpe de 1964, insatisfeita. O novo presidente dizia-se

disposto a promover uma abertura gradual, lenta e segura do regime. Os

integrantes dos órgãos de repressão não estavam de acordo com a política de

abertura democrática e continuavam agindo com a mesma violência dos anos

anteriores. “Embora a guerrilha tivesse sido eliminada, os militares linha-dura

continuavam a enxergar subversivos por toda parte. Continuava também a prática

da tortura, acrescida do recurso ao ‘desaparecimento’ de pessoas mortas pela

repressão”.87 Por mais que o regime militar ainda comandasse a situação social e

política do país, tanto a classe média quanto as classes populares estavam

envolvidas em uma discussão política e com perspectivas para a reabertura do

regime. Em relação à cultura, artistas e intelectuais de esquerda viram-se

novamente motivados a realizar uma “[...] participação política mais intensa,

passando de uma fase de resistência para uma fase mais crítica e agressiva, na

medida em que as massas voltavam ao primeiro plano da vida nacional e, com

isso, mudando completamente a correlação de forças entre a sociedade civil e

democrática e o Estado, dominado por um regime autoritário e coercitivo”.88

Nesse delicado período da conjuntura política nacional Cildo Meireles toca

no cerne do regime, carimbando em cédulas monetárias a questão Quem matou

Herzog?. “A pergunta, tão incomoda ao regime quanto ameaçadora para uma

população amedrontada, circulava livremente em cédulas porque ninguém

guardaria ou destruiria dinheiro para esconder a dúvida”.89 Assim, a pessoa que

repassasse a cédula estaria involuntariamente propondo a questão. Com isso,

Cildo Meireles envolveria o público, fazendo-o repetir o mesmo processo realizado

pelo artista no anonimato. Para Meireles

86

FAUSTO, B. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 448. 87

Ibid., p. 491. 88

NAPOLITANO, Cultura brasileira..., p. 121. 89

HERKENHOFF, op. cit., p. 50.

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[...] as Inserções... só existiriam na medida em que não fossem mais a obra de uma pessoa. Isto é, o trabalho só existe na medida em que outras pessoas o pratiquem. Outra coisa que se apresenta então é a necessidade do anonimato. A questão do anonimato compreende por extensão a questão da propriedade. Não se trabalharia mais com o objeto, pois o objeto seria uma prática, uma coisa sobre a qual não se pode ter nenhum tipo de controle ou propriedade. E tentaria colocar outras coisas: primeiro, buscaria mais gente, na medida em que não se precisa ir até a informação. Ela viria até você. Em conseqüência haveria condições de fazer explodir a noção de espaço sagrado.

90

Ele partia do princípio de que havia um sistema abstrato de retorno e

circulação de notas monetárias, assim como no processo de garrafas de

refrigerante. “As Inserções em circuitos ideológicos tornavam-no visível. Era a

primeira inserção: a noção de circuito”.91 A primeira intenção com essa série era a

de criar, de certa forma, um novo circuito para a livre circulação de idéias, mesmo

que elas fossem expostas sem a identificação do seu autor. Por isso a noção de

readymade não aparece especialmente como estilo de arte, mas é usada em

termos da circulação de um objeto que já possuía seu próprio território de

receptividade. Consideramos, como Herkenhoff, que “[...] como tática de guerrilha,

Inserções em circuitos ideológicos se definem como modelo de atuação simbólica

em sistemas sociais significativos. Na verdade, Coca-Cola ou cédulas monetárias

são apenas veículos de uma ação tática clandestina de resistência política”.92

A referência ao readymade dava-se, novamente, no sentido oposto ao da

proposta de Marcel Duchamp, no sentido do não-objeto. Meireles escreveu, em

texto publicado em 1975, que: “A interferência de Duchamp no sistema de arte foi

do ponto de vista da lógica do objeto de arte, vale dizer, da estética. Qualquer

intervenção nessa esfera hoje – uma vez que o que se faz tende a estar mais

próximo da cultura do que da arte – é necessariamente uma interferência política.

Porque, se a estética fundamenta a arte, é a política que fundamenta a cultura”.93

Cildo Meireles ia no sentido contrário ao caminho dos readymades duchampianos,

ou seja, “[...] atuava no universo industrial. Não mais o objeto industrial colocado

no lugar do objeto de arte, mas o objeto de arte atuando no universo industrial.

Elas [Inserções em circuitos ideológicos] eram um graffiti num meio (suporte) que

90

MEIRELES, Textos do..., p. 112. Por espaço sagrado entenda -se museus e galerias. 91

Ibid., p. 109. 92

HERKENHOFF, op. cit., p. 48. 93

MEIRELES, Textos do..., p. 113.

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circulava”.94 Seu sucesso independia do meio de arte e não era fundamentado na

quantidade de ocorrências, mas na capacidade de abrangência das frases

inscritas nos objetos industrializados. A eficácia dessa série estava na sua

aparição, enunciação, na explicitação da crítica, traduzida em uma prática social

percebida como prática artística. De acordo com Cildo Meireles, o Projeto Coca-

Cola era “[...] uma metáfora (artística e politicamente necessária naquele

momento) do Projeto cédula, mais amplo e abrangente”.95 E, principalmente,

aquele projeto atendia a três pontos colocados pelo artista para sua produção:

1. A dolorosa realidade político-social-econômica brasileira, conseqüência em boa parte do 2. American way of politics and culture e sua ideologia (filosofia) expansionista, intervencionista, hegemônica, centralizadora, sem perder de vista os 3. aspectos formais da linguagem, ou seja, do ponto de vista da história da arte, a necessidade de produzir um objeto que pensasse produtivamente (criticamente, avançado e aprofundado), [...].

96

Junto com essa postura pode-se perceber a característica vanguardista

desse artista, “[...] embora o que se esteja chamando de vanguarda envolva uma

gama variada e heterogênea, uma das características de alguns de seus

segmentos é o seu caráter mais público”.97 De acordo com Gilberto Velho, “[...] o

ethos dominante estaria ligado a uma visão de mundo política e existencialmente

progressista. Assim, tanto ao nível de sua percepção da realidade política,

propriamente dita, como em relação aos costumes, hábitos e valores dominantes

na sociedade brasileira, tenderiam a adotar uma postura crítica”.98 Isso se torna

importante dentro da análise das obras de Cildo Meireles, já que “[...] as formas

desta manifestação podem variar desde a adoção de um projeto político mais

consistente, aproximando pessoas que pensam de maneira semelhante, até

manifestações de protesto estritamente individuais e momentâneas, sem maior

continuidade”.99 Durante o período tratado por Velho (décadas de 1960 e 1970),

com a ausência de liberdade de expressão, ele coloca que havia diversas queixas

94

MEIRELES, Textos do..., p. 108-109. 95

Ibid., p. 109. 96

Ibid., p. 108. 97

VELHO, op. cit., p. 29. 98

Id. 99

Ibid., p. 29-30.

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de artistas e intelectuais pela fragmentação, falta de unidade e individualismo

desse grupo. Contudo, apesar das dificuldades impostas pelo período, como

pudemos observar, as atividades artísticas tiveram uma certa continuidade.

Apesar de possuírem um forte caráter de contestação à política do regime

militar e de serem dotadas de um alto valor simbólico, Cildo Meireles não

pretendia que suas obras se esgotassem apenas no discurso político. Pelo

contrário, em todas elas sempre esteve presente a sua preocupação com o objeto

de arte, com aspectos formais e conceituais. Inclusive, é justamente por isso, por

essa maneira de enxergar o mundo e a arte que o seu trabalho se diferencia de

uma simples pichação num muro. Ele passa a criar novos meios de divulgação de

idéias partindo de uma dificuldade de se expressar em uma sociedade

temporariamente privada da liberdade. Esse modo de se ‘infiltrar’ no circuito

comercial e, muitas vezes se valer das armas ‘inimigas’, acaba por criar uma nova

mídia e leva novos dados para o debate histórico e artístico.

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4 O CONSUMO DA RESISTÊNCIA ISOLADA PELO SISTEMA

Neste terceiro e último capítulo buscaremos apontar, de certo modo, para a

forma como as obras analisadas no capítulo anterior foram recebidas pela crítica

especializada da época e as formas de percepção implicadas com essa visão. A

princípio, havíamos proposto a busca pelo alcance dessas obras no público, mas

não teríamos como precisar quem esteve presente durante o happening

Tiradentes... ou quem recebeu uma Inserção em mãos, tornando assim essa

pesquisa inviável e condenada de imediato ao fracasso. Portanto, preferimos

atermo-nos a percepção da crítica de arte do período, ou seja, a textos publicados

em jornais ou em livros que emitissem opiniões sobre a obra de Cildo Meireles e a

produção da vanguarda das artes plásticas do início da década de 1970.

O crítico, no sentido que tentaremos abordá-la aqui, aparece como um

aglutinador de significados para a obra de arte. Ele, a partir do surgimento das

vanguardas artísticas da década de 1960 e 1970, teve de buscar novas formas de

relacionamento com o artista e com sua obra. “O crítico, por exemplo, julgava,

ditava normas de bom comportamento, dizendo que isto era bom e aquilo ruim,

isto é válido aquilo não, limitando áreas de atuação, defendendo categorias e

gêneros artísticos, os chamados valores plásticos e os específicos. Para tanto

estabelecia sanções e regras estéticas (éticas)”.100 Acreditamos que o crítico

passava de uma posição de apenas emitir juízos de valor e categorizar a obra de

acordo com a história da arte, para fazer parte da obra criticada, assim como

estava sendo exigido do espectador dessas vanguardas. Nas palavras de

Frederico Morais, que vem sendo citado ao longo desse trabalho, “[...] o crítico faz-

se artista ao penetrar fundo na intimidade da obra, agravando ainda mais as

contradições da arte”.101 Assim percebemos a função do crítico das vanguardas de

1960 e 1970, não como o sujeito capacitado para dar o aval a respeito da boa ou

má qualidade de uma obra, mas aquele que, atuando com ou sem o artista,

100 MORAIS, Contra a arte afluente..., não paginado. 101 MORAIS, Artes plásticas..., p. 9.

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propõe uma nova obra, ou ainda uma nova forma de pensar a respeito da obra

proposta pelo artista.

De acordo com texto de Frederico Morais escrito em 1975, a vanguarda

artística brasileira, a partir da década de 1970, passou por um período de pouca

atuação, tanto por um sentimento pessimista como pela auto-censura, uma vez

que a censura em si acabava por desestimular os artistas a uma criação mais livre

e, eles próprios, passavam a se censurarem. Por outro lado, esse argumento da

censura poderia ser tido apenas como uma justificativa para a não criação.

Frederico Morais refere-se a uma certa crise da vanguarda artística

brasileira, atribuindo a essa crise “[...] uma conjunção de fatores, desde aqueles

imanentes à própria arte, e outros subjacentes ou externos e que dizem respeito à

situação do país e do mundo”.102 As tradicionais formas de interpretação de uma

obra de arte, como foi mencionado, vão se esfalecendo com a introdução de

novos caminhos para o objeto “arte”, os meios de consumo em massa ganham

uma proporção gigantesca, propondo o consumo rápido e alienante, e até mesmo

as modificações que ocorreram na sociedade brasileira podem ser vertentes para

a explicação dessa crise.

A arte produzida entre as décadas de 1960 e 1970, ao que tudo indica,

parecia ter como perspectiva uma visão de aproximação com a vida. “A operação

de reelaborar o conceito de trabalho de arte está estreitamente ligado ao fim da

concepção humanística de arte, já delineada no início do século XX com a crise

das vanguardas históricas e que se convencionou chamar de ‘morte da arte’”.103

Para Frederico Morais, toda arte, consciente ou inconscientemente, faz parte de

um projeto de nação. Depois de pronta, ela ganha ou perde significados que o

artista não tem como controlar.

Pode-se perceber a partir da análise das obras de Cildo Meireles realizada

no segundo capítulo deste trabalho, que esse artista coloca em tensão a arte

como instituição. De acordo com o crítico de arte Harold Rosenberg, o que se

102 MORAIS, Artes plásticas..., p. 70. 103CABO, S. Barrio: a morte da arte como totalidade. In: BASBAUM, R. (org.). Arte contemporânea brasileira. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. p. 98. A respeito da “morte da arte” ver GULLAR, F. Argumentação sobre a morte da arte. Rio de Janeiro: Revan, 1993.

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fazia nesse período tratado, apesar de estar destinado a suportar a incerteza de

ser ou não ser uma obra de arte, nunca foi outra coisa senão um movimento

artístico.104 Para ele, a desestetização praticada pelas vanguardas artísticas

referia-se às tendências da arte produzida no início da década de 1970, de ir

contra a negociação do seu produto por conta da função atribuída a ela naquele

momento: “[...] a função da Arte no nosso tempo não é agradar aos sentidos [...], a

idéia ou processo do artista é mais importante que o produto acabado [...]”.

Complementa Rosenberg que a arte, “[...] para ser verdadeiramente destrutiva em

relação à estética, deveria renunciar à ação artística em benefício da ação

política”.105 Para Meireles o interessante não era a destruição da estética na obra

em função do seu caráter político de ação. Mas “[...] o caráter duplo desses

trabalhos: um objeto podia simultaneamente abarcar dois níveis, dentro e fora de

uma definição artístico-histórica do objeto de arte”.106 Para ele era importante

pensar sobre a arte de uma forma que não fosse restrita ao visual, à estética, mas

não que essas características fossem simplesmente descartadas. Talvez em

Tiradentes... possa-se aplicar parcialmente a noção de desestetização proposta

por Rosenberg, pois nela, Meireles pensava em uma obra radical de caráter

político. Contudo, essa obra correspondia às exigências de um trabalho de arte,

com todas as questões que o termo abarca. “Havia aspectos formais e

conceituais, intimamente ligados à questão do objeto de arte, que nada tinham a

ver com o discurso político”107, como diz o artista, não excluindo nem o caráter

político nem o estético da obra.

Segundo Morais, a vanguarda brasileira, após o movimento neo-concreto,

se apagou por um tempo, retomando sua atuação entre 1965 e 1967, durante o

governo do general Costa e Silva. Como pode ser percebido pelas datas desse

ressurgimento, o golpe militar de 1964 não provocou reações imediatas entre os

artistas plásticos no Brasil. “Um ano depois, 1965, os artistas, timidamente

começaram a se agrupar, para poder falar novamente. Em parte sob o impulso 104 ROSENBERG, H. Desestetização. In: BATTCOCK, G. A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 1986. p. 218. 105 Ibid., p. 216. 106 MOSQUERA, op. cit., p. 13. 107 Ibid., p. 15.

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das novas tendências mundiais: a Pop-Art americana e a Nova Figuração

européia”.108

Os primeiros anos do governo instaurado com o golpe ficaram

representados pelo veto em diversos setores sociais. O direito de greve abolido –

proibida dessa forma a resistência operária –, a provocação de uma recessão no

desenvolvimento econômico do país gerando também a entrada do capital

estrangeiro e uma conseqüente privatização de grande parte das indústrias

nacionais. Em poucas palavras, foi um período de forte adesão ao capitalismo.

“Tudo, portanto, se desenvolveu nos quartéis, entre militares. Intramuros. A

grande massa da população brasileira foi mantida à margem, proibida de falar”.109

Ainda citando Frederico Morais, “[...] a principal tarefa da vanguarda

durante o primeiro ‘governo revolucionário’ foi tentar opinar”.110 Nas artes

plásticas surgem nesse contexto as já citadas primeiras versões das exposições

Opinião 65 e Proposta 65, respectivamente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Já

em 1968, no campo cultural, a decretação do AI-5

[...] oficializou a censura prévia, o que iria repercutir obviamente sobre a produção intelectual e artística. [...]. Do final de 68 ao início da nova década a arte brasileira viveria momentos de grande inquietação, até se sensibilizar negativamente, com a auto-censura, numa aceitação passiva do status-quo. A vanguarda assumiu uma posição de marginalidade em relação ao sistema.111

Sheila Cabo compartilha do mesmo posicionamento que Frederico Morais

quando afirma que “[...] o experimental da década de 1970 no Brasil significava

estar à margem de qualquer instituição. Ser marginal é então uma recusa do papel

institucional da arte (circuito) e também uma recusa de si mesmo, que se dá

[também] na recusa dos materiais instituídos para a arte”.112

Uma das primeiras manifestações da censura se deu no VI Salão de

Brasília, mas devido à ação do júri, a retirada de trabalhos considerados políticos,

ou seja, que agrediam de alguma forma o regime militar, foi impedida.

108 MORAIS, Artes plásticas..., p. 82-83. 109 Ibid., p. 83. 110 Ibid., p. 85. 111 Ibid., p. 101. 112 CABO, op. cit., p. 104.

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Contudo, o primeiro conflito realmente grave com a censura ocorreu na II Bienal da Bahia, inaugurada alguns dia antes do Ato Institucional [n° 5]. No discurso inaugural, o então governador Luiz Vianna Filho afirmou que ‘toda arte jovem tem de ser revolucionária’ e que ‘a liberdade caracteriza a arte’. No outro dia, entretanto, a Bienal foi fechada, presos seus organizadores, seguindo-se da retirada de vários trabalhos considerados eróticos e subversivos.113

Em 1969 o conflito com a censura tornou-se mais intenso devido à proibição da

abertura da exposição, que seria realizada no MAM do Rio de Janeiro, de

trabalhos dos artistas que haviam sido selecionados para participar da VI Bienal

de Veneza. “Os prejuízos proporcionados pela ação da censura em 68/69 tanto

internamente (criando a chamada ‘fossa cultural’ [...]) e externamente (para a

imagem cultural do Brasil) foram irrecuperáveis”.114

Frederico Morais afirma que o último suspiro da vanguarda artística

brasileira foi representado pelo (também já citado) Salão da Bússola, em 1969,

realizado no MAM do Rio de Janeiro. Foi desse salão que se viu nascer uma nova

vanguarda carioca que proporcionou uma dimensão dessa mostra não prevista

por seus organizadores. O Salão da Bússola trouxe novas tendências, presentes

também na arte mundial, que foram vistas nos trabalhos de Cildo Meireles,

Antônio Manuel, Artur Barrio, Luiz Alphonsus, Thereza Simões e Guilherme

Magalhães Vaz. Na definição de Frederico Morais, essas tendências passavam

por um neo-construtivismo e pela contra-arte. Esse grupo que tomou posição

durante a chamada “fossa cultural”, iniciado aproximadamente após a decretação

do AI-5, adotou uma

postura que mantiveram de embate com a totalidade na arte. Essa geração só foi possível no vazio provocado pela morte da ‘obra de arte’; só se tornou possível porque os artistas não fazem obras, mas propõem atos, gestos, ações coletivas. Movimentam-se no plano do agir, no sentido de assumir o experimental [...]. O movimento da contracultura propõe: transgressão das instituições pela arte/comportamento desregrado. Nada tem em comum com a coerência dos discursos contestadores, da crítica militante ou dos programas estéticos.115

O termo contra-arte ou arte da contracultura, que é uma das vertentes

113 MORAIS, Artes plásticas..., p. 101. 114 Ibid., p. 102. 115 CABO, op. cit., p. 107.

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desse trabalho, pode ser entendido, segundo Frederico Morais, como a soma da

[...] contestação política à contestação da própria arte (sobretudo suas categorias tradicionais). [...] sua arte é cada vez mais conceitual. [...]. Surgidos repentinamente, vindos de outros setores, fazem uma arte selvagem, que tende ao nomadismo (fora dos museus e galerias, de preferência) e ao anonimato. Atuam imprevisivelmente como guerrilheiros, sem se anunciar, e onde menos se espera.116

Para esse crítico de arte, enquanto os neo-construtivistas, de alguma forma,

poderiam ser absorvidos pelo comércio de arte, os artistas que produziam essa

forma de contra-arte, mesmo quando expunham em galerias, ficavam à margem

de tal comércio. Para essa vanguarda da década de 1970 a “[...] arte é

irrecuperável, invendável, por isso mesmo alimenta-se do precário, de situações

fortuitas, das oportunidades que surgem”.117 Analisando tanto Tiradentes: totem

monumento ao preso político quanto as Inserções em circuitos ideológicos,

percebe-se que Cildo Meireles pertence a essa vanguarda pelo seu

posicionamento, sua forma de agir, inserindo-se em sistemas de circulação,

aproveitando-se de situações existentes para expressar seu ponto de vista,

atuando, dessa forma, na contramão da chamada crise da vanguarda da década

de 1970.

Pelo que foi analisado ao longo desse trabalho pode-se perceber que a

obra de Cildo Meireles estava tão próxima da arte contemporânea européia e

norte-americana quanto a própria vanguarda da Europa e dos Estados Unidos. De

acordo com Paulo Venâncio Filho, essa independência de criação não poderia ser

pensada para arte brasileira até o movimento modernista da década de 1920, este

que, apesar de revolucionar o campo das artes no Brasil, foi de certo modo mera

transposição, guardadas suas devidas particularidades, do que estava sendo

produzido em países europeus, como França e Alemanha.118 A autonomia da arte

brasileira a partir de 1960 chegou a surpreender os grandes centros de hegemonia

cultural, tanto que, como afirma Frederico Morais, a crise que fora observada na

vanguarda artística brasileira a partir da década de 1970, entre diversos fatores, 116 MORAIS, Artes plásticas..., p. 103-104. 117 Ibid., p. 104. 118 Em relação ao movimento modernista no Brasil ver AMARAL, A. Artes plásticas na Semana de 22: subsídios para uma história das artes no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1972.

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teve um deles decorrente da saída de muitos artistas do território brasileiro,

transferindo-se para os Estados Unidos ou Europa, sendo reconhecidos e

aclamados mais vivamente fora, que dentro de seu próprio país. Entre eles

podemos localizar Cildo Meireles, que teve o sucesso alcançado primeiramente

nos Estados Unidos e, só depois disso, seu nome ganhou maior destaque no

Brasil. O caminho traçado por Meireles elucida de forma plausível o esquema

elaborado por Frederico Morais para a arte brasileira de meados da década de

1960 e início da década de 1970: “1- Agravamento sensível do conflito com a

censura; 2- o surgimento de uma contra-arte ou arte-guerrilha; 3- êxodo crescente

de artistas e intelectuais para o exterior”.119 Francisco Bittencourt coloca também

que “[...] a essa altura dos acontecimentos a vanguarda já começava a se

encaramujar, numa fase de refluxo. Depois de uma atividade esgotante, seus

principais artífices dispersaram-se e alguns deles viajaram para o exterior por

longos períodos”.120

Esse caminho percorrido também por Cildo Meireles não o impediu de

propor uma articulação entre a preocupação estética com um determinado

contexto político-social brasileiro. Buscamos encontrar a medida compreensível

dessa relação. Manifestamos que os trabalhos de Cildo Meireles se inscrevem

num quadro de experimentalismo da arte contemporânea brasileira. Como afirma

Paulo Venâncio Filho,

[...] esse quadro tinha como referências as tendências construtivas vigentes nos anos 1950 e as tendências pop nos anos 1960. Numa sociedade ainda insuficiente de signos de amplo reconhecimento social, a estratégia pop era estruturalmente problemática. A escolha duchampiana do ready-made, que na América era simples apropriação pelo artista de uma imagem previamente escolhida, eleita pela sociedade de consumo, exaustivamente posta em circulação, aqui se tornaria inviável [...]. Dessa maneira persistia ainda um resíduo de afeto, uma inevitável sentimentalização, nada equivalente ao cinismo e à indiferença pop.121

Não podemos concordar com essa argumentação pois, acreditamos que tanto em

Tiradentes: totem monumento ao preso político quanto em Inserções em circuitos

119 MORAIS, Artes plásticas..., p. 101. 120 BITTENCOURT, Dez anos de..., não paginado. 121VENÂNCIO FILHO, P. Situações limite. In: BASBAUM, R. (org.). Arte contemporânea brasileira. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. p. 319-320.

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ideológicos, Meireles atua com o mais alto grau de cinismo – talvez maior ainda do

qual fora observado na pop norte-americana – em relação a forma de conduta

adotada pelo regime militar com os presos políticos e ao consumo de massa de

uma determinada ideologia. Os três trabalhos analisados no segundo capítulo são

representados por uma forma de pensar e atuar socialmente, podendo ser

entendida como uma espécie de se “fazer política”. Essa forma de agir não

acabava com o término da obra, mas tornava-se presente pela sua inserção e por

sua existência crítica. Não era uma forma de arte representativa da subjetividade

do artista, e sim de uma realidade objetiva. Para Paulo Venâncio, nos trabalhos de

Meireles “[...] encontramos um sistema que se poderia chamar de visionário,

coerente e rigoroso, aglutinador de experiências, que articula desde gestos

insignificantes do cotidiano até grandes estruturas sociais. Daí o fato de não

podermos esperar desses trabalhos imagens ilustrativas e superficiais. Elas

procuram menos a superfície do que as forças, relações, tensões que estão por

trás da superfície”.122 Essa superficialidade apontada por Paulo Venâncio e

encontrada na pop art norte-americana, não aparece nas obras de Meireles.

Contudo, o cinismo superficial da pop dá lugar na obra de Cildo Meireles a um

cinismo crítico e elucidativo sobre a sociedade brasileira.

O ponto que mais buscamos enfocar nos trabalhos de Cildo Meireles foi a

vinculação da arte produzida por esse artista as preocupações sociais, que não

aparecem apenas nas obras citadas nesta análise. Em crítica publicada no Jornal

do Brasil, Sérgio Ryff ridiculariza os argumentos utilizados para a análise das

obras de Meireles. Apesar da citação ser longa é importante que seja mostrada,

pois, Ryff coloca que tal artista traz

[...] em seu currículo de realizações artísticas a façanha de ter, numa exposição organizada por Frederico Morais no ano de 1970, em Belo Horizonte, explodido ‘10 galinhas vivas num totem-monumento ao preso político, na semana de Tiradentes’. (...). Outra de suas realizações, esta menos macabra, consistia em produzir ‘inserções em circuitos ideológicos’, proposição aparentemente complexa mas que na realidade não passava de imposição de inscrições em garrafas de Coca-Cola já vazias que depois de trocadas por outras cheias do refrigerante – como faz de ordinário qualquer consumidor – devolvendo-as assim ao circuito normal botequim-casa-casa-botequim. Peca, no sentido da proposta pela total ausência de originalidade. Sabe-se de há muito que tal experiência vem sendo realizada com maior eficácia pelos artistas (autores?) anônimos que costumam rabiscar

122 VENÂNCIO FILHO, op. cit., p. 320.

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versinhos pitorescos – e muito mais objetivos – nas notas de dinheiro de pequeno valor, reinserindo-as nos circuitos ideológicos, isto é, devolvendo-as à circulação.123

Já o crítico de arte Ronaldo Brito, discorrendo a respeito das Inserções em

circuitos ideológicos de Cildo Meireles expõe que esse trabalho

não é construção de obra, mas fluxo de desperdícios comunicantes. Não se toma como processo de agenciamento de sentidos próprios, distintivos, e sim como bateria de descargas nos circuitos de informações estabelecidos. Os seus efeitos não se deixariam assim medir simplesmente no espaço e no tempo. No espaço, porque quase não se exibem aí, não são sólidos o suficiente para atrair atenção. No tempo, porque têm um percurso aparentemente aleatório, misturam-se ao acaso e ao anonimato. [...]. Não há como contar inscrições no dinheiro e nos muros. Objetivamente isso não conta e não vale. Mas o que a ‘inserção’ tematiza é a espécie de inteligência, a espécie de discurso, a espécie de sociabilidade que movem essas insignificâncias. O que a ‘inserção’ nota é que o próprio gesto de classificá-las como insignificâncias implica reconhecimento e valorização. Nega-se e recalca-se apenas o que existe e pressiona. Desejo suspeito, estranhamento radical, o de condenar à inexistência o que por si só já não existia. O importante não são os conteúdos, mas a estrutura dessa comunicação volátil: murmúrio coletivo que não cessa de acontecer. A ‘inserção’ tira daí seu modelo, opera nessa freqüência, aposta nessa homeopatia explosiva.124

Os apontamentos de Brito por si só já rebatem a crítica elaborada por

Sérgio Ryff. No entanto, não podemos concordar inteiramente com a posição de

Ronaldo Brito por um detalhe, esse crítico coloca como ponto mais importante das

Inserções... a sua forma de comunicação/infiltração social, não atribuindo

importância semelhante aos conteúdos veiculados nelas. De acordo com a análise

proposta neste texto, os conteúdos difundidos, no momento histórico em que

foram expostos e da forma praticada em Inserções..., tomaram o mesmo lugar de

importância que sua circulação. Tanto na crítica a sociedade de consumo, com a

frase Yankees go home, quanto na questão-acusação Quem matou Herzog?,

Cildo Meireles não buscava priorizar a forma em função do conteúdo. Ao que tudo

indica, tanto uma quanto a outra foram pensadas juntas e não fariam sentido se

praticadas separadamente.

A respeito da Inserção em circuito ideológico: Projeto Coca-Cola, Frederico

Morais realizou em 1970 – mesmo ano que esse projeto foi exposto na Petite

Galerie – uma exposição que criticava os trabalhos apresentados na mostra

123 RYFF, S. Cildo Meireles, com risco de incêndio, prova que tem toda razão. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 abr. 1979. 124 BRITO, op. cit., p. 113-114.

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Agnus Dei. A exposição de Frederico Morais, intitulada Nova Crítica, teve a

duração de uma noite e foi realizada também na Petite Galerie no Rio de Janeiro.

Nela o crítico de arte, agora assumindo a posição de artista, encheu a galeria com

quinze mil garrafas de Coca-Cola, tendo algumas a frase ideológica Yankees go

home que Cildo Meireles havia empregado em seu Projeto Coca-Cola. Frederico

Morais fez alusão semelhante ao trabalho de Thereza Simões e Guilherme Vaz,

que também participaram da Agnus Dei.

Essa exposição-comentário que adotava as mesmas táticas dos artistas criticados foi muito mais que a simples tentativa de inaugurar uma nova crítica, pois o crítico estava ali não como opressor do artista, mas em pé de igualdade com ele, levantando de forma inteligente e sensível as barreiras que sempre existiram entre as duas classes. Mais do que o crítico, ali estava o colega de luta, atuante e irreverente, capaz de utilizar de qualquer arma para chegar ao melhor entendimento do fenômeno artístico.125

Frederico Morais com essa atitude buscava justamente executar uma nova

forma de ação para os críticos de arte, a nova crítica que fora mencionada no

início deste capítulo. Essa crítica de Morais ao Projeto Coca-Cola, bem diferente,

aliás, da crítica redigida por Sérgio Ryff, parece-nos um tanto controversa para um

crítico que se mostrava estimulador de atitudes contrárias ao status quo. Morais

ataca o Projeto Coca-Cola de Cildo Meireles apontando para sua ineficácia em um

sistema de circulação de mercadorias forte e esmagador desses pequenos atos. A

crítica de Morais é colocada em função da individualidade desse projeto, no

sentido de que uma ação solitária em um sistema gigantesco de consumo e

distribuição de mercadorias não resultaria no efeito desejado. Em outras palavras,

Frederico Morais buscava apontar para a impossibilidade de infiltração nesses

circuitos que, pela sua grandiosidade, iriam inevitavelmente engolir essas formas

de ação. Explicando, décadas mais tarde, como reagiu a crítica de Frederico

Morais, Cildo Meireles disse que sua “[...] intenção na época era chegar a uma

fórmula que tivesse efeito político [...]”, completando que acreditava ter alcançado

seu objetivo. Meireles acrescenta que naquele momento era “[...] praticamente

impossível concretizar qualquer coisa em escala individual [...] [e que] na ocasião,

estava muito contente com o projeto porque era o menos factível, ainda que

125 BITTENCOURT, Dez anos de..., não paginado.

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levantasse a questão da desproporção”.126 Em relação ao Projeto cédula Meireles

afirmava que: “A idéia de circuito ainda estava lá e teve um efeito maior que o

Projeto Coca-Cola. No confronto entre o indivíduo e o Estado naquelas

circunstâncias, o Estado era claramente visto como o problema. O Projeto Coca-

Cola tratava mais da questão do indivíduo em relação ao capitalismo. Como a pop

art, utilizava de forma irônica a iconografia de massa”.127

Outro pensamento que pode ser mencionado neste trabalho é o da crítica

de arte Sheila Leirner, que apesar de não tratar especificamente da obra de Cildo

Meireles, discorre sobre o período de produção das obras que abordamos.

Segundo texto escrito por Sheila Leirner, no ano de 1978, “[...] a arte

contemporânea parece transgredir mais a si própria do que estabelecer a profícua

relação de trocas transgressivas com a realidade externa”.128 De acordo com

Sheila Leirner, os artistas que atuavam no início dos anos 1970 não estavam

preocupados com uma produção artística engajada politicamente. Desse modo,

para essa autora,

[...] pode-se dizer perfeitamente que grande parte dos artistas contemporâneos de países que vivem tanto em estado de exceção como de superdesenvolvimento sofre transformações resultantes das circunstâncias opressoras ou repressoras de seu ambiente. Tendem a renunciar radicalmente às realidades externas, descobrindo verdades paralelas e se fecham cada vez mais dentro de um casulo protetor.129

Para Leirner as transformações ocorridas nesses ambientes não vão além do

indivíduo, e só aparecem em questões referentes à própria obra ou a criação. O

fato criticado por essa autora é a extrema individualização das obras, com

temáticas e preocupações que não se relacionam com a sociedade como um todo,

mas com o desenvolvimento do artista apenas em torno de si e da própria arte.

Ela afirma que:

126 MOSQUERA, op. cit., p. 12. 127 Ibid., p. 13. 128 LEIRNER, S. Arte como medida. São Paulo: Perspectiva, 1982. p. 36. Esses fragmentos compõem um texto escrito depois que o Conselho Permanente de Justiça da 4a Região Militar de Juiz de Fora condenou o artista Lincoln Volpini a um ano de prisão sob acusação de que seu quadro, Penhor da igualdade, continha “mensagens altamente subversivas”. 129 Ibid., p. 2.

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Praticamente não há uma arte verdadeiramente política. São poucas as tentativas ponderadamente modificadoras; assim como é mínimo o empenho em questionar normas estabelecidas. São raros os sistemas artísticos engajados, organizados e coesos que tenham viva participação na vida cultural de seus países. No nosso, grande parte das diferentes manifestações não são mais do que subtítulos permitidos para a arte que não respeita o silêncio.130

Contudo, pela exposição do posicionamento de alguns críticos de arte em

relação à produção da vanguarda da década de 1970, podemos considerar que

mesmo dentro desse grupo não havia um pensamento homogêneo a respeito do

que estava sendo produzido nesse período no campo das artes plásticas. Alguns

ignoravam claramente as investidas e tentativas dos artistas que se propunham a

produzir uma forma de arte voltada para a participação política e envolvimento

com questões sociais. Outros louvavam essas formas de atuação artística, mas,

no entanto, não deixavam de censurar iniciativas como as de Cildo Meireles, que

eram pautadas na atuação individual. Sendo assim, pudemos perceber,

observando o posicionamento da crítica especializada em artes plásticas, que a

característica de movimentos artísticos bastante presente na década de 1960 de

coletivização da arte, de colocar na prática o conceito de participação e de criação

coletiva marcou o pensamento e o posicionamento dos críticos de arte durante o

início da década de 1970. Sendo assim, deduzimos que a atuação individual de

artistas nesse período era vista com um certo incômodo, pois, saindo de uma

década na qual a participação coletiva representava a espinha dorsal da arte

brasileira, a individualização dos projetos artísticos era observada mais pelas

questões intrínsecas à arte do que pelo seu caráter de engajamento político-

social.

130 LEIRNER, op. cit., p. 39.

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5 CONCLUSÃO

Nessa pesquisa direcionada para a história social da arte, a própria obra

representou nosso campo documental essencial, mas não apenas ela, a sua

inserção dentro de um contexto cultural acabou estruturando esse trabalho. Na

abordagem de Marcos Napolitano a respeito das questões teórico-metodológicas

referentes à utilização da documentação artística pelo historiador, é colocada a

necessidade de se observar a historicidade tanto da obra quanto do artista. Sendo

assim, “[...] o campo da arte, pela ambigüidade e polissemia de suas bases, abre-

se para a gestação de projetos sociais e utopias, assim como expressa visões de

mundo predominantes ou contestadoras”.130 E expõe a discussão de como a obra

de arte poderia ser analisada da perspectiva do historiador: “[...] a obra deveria

funcionar como um receptáculo de temporalidades, tradições e projetos sócio-

históricos, que encontram nela uma formulação material, concreta, submetida a

um conjunto de códigos estabelecidos por cada área de expressão, estilo e gênero

artístico”.131 E o artista observado como um ponto de confluência dos campos

estético, sociológico e ideológico. Pautando-nos nisso pudemos fazer uma

abordagem de três obras produzidas por Cildo Meireles, buscando por meio delas

evidenciar vertentes da produção artística brasileira na primeira metade da década

de 1970.

Conforme apresentado ao longo dessa pesquisa, no Brasil as mudanças

ocorridas entre as décadas de 1960 e 1970 foram significativas em diversos

setores da vida social e extremamente sensível para o campo das artes plásticas.

As modificações políticas após o ano de 1964, mas, principalmente após a

publicação do Ato Institucional n° 5 no ano de 1968, incidiram diretamente sobre o

campo cultural e, de acordo com o que foi analisado, foram também decisivas

para a produção artística.

130

NAPOLITANO, História e arte..., p. 902. 131

Ibid, p. 902-903.

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No campo das artes plásticas havia esgotado-se o debate da limpeza e do

equilíbrio, do bom acabamento e da contemplação da obra, que foram por muito

tempo considerados essenciais para toda uma geração de críticos de arte e de

artistas. Foi então o momento de superar esses valores e adotar – principalmente

pós 1968 – uma estética da violência, do lixo, de materiais inusitados. Podemos

afirmar, com base nas obras de Cildo Meireles, que a vanguarda da década de

1970 demonstrava um interesse maior em manifestações artísticas que fossem

associadas a ações políticas, capazes de abrir brechas para a divulgação de

idéias em um país marcado pela censura e sob o peso de uma ditadura.

Acreditamos que, apesar do momento histórico castrador da liberdade de

expressão e de criação, o período que abrange o final da década de 1960 e

meados da década seguinte, tenha sido um dos mais ricos para a arte

contemporânea brasileira. A vanguarda artística de 1970 foi marcada por inúmeras

propostas inovadoras, por formas singulares de atuação política e social, tanto

com provocações que evidenciavam a relação entre realidade e representação,

quanto em relação à crítica que era colocada à própria arte e ao regime militar.

A arte brasileira do início da década de 1970 foi representativa do espaço

urbano, apresentada tanto na vertente da pop art, quanto na vertente experimental

ou ainda nas intervenções em espaços públicos (performances e happenings). No

caso de Cildo Meireles, percebemos todas essas vertentes que, no seu conjunto,

achamos ser apropriado denominarmos como uma vertente conceitual.

Constatamos que, apesar de ter existido um controle sobre a produção

cultural do período ditatorial, no que se referia as artes plásticas esse controle

atuou de forma relativamente branda. Esse fato explica o surgimento da

diversidade de tendências estéticas e da busca por um comprometimento político

e social maior por parte dos artistas.

As obras de Cildo Meireles emergem com total coerência a esse ambiente

de produção. Tornando-as ativas, Meireles apropria-se de meios inesperados para

lidar com a questão do engajamento político e social em seu trabalho, sem

menosprezar as questões que conferem a uma determinada “coisa” o caráter de

arte. Tiradentes: totem monumento ao preso político e a série Inserções em

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circuitos ideológicos forjam respostas não usuais às condições políticas e sociais

do seu momento. São formas de arte marginal. Marginal no estilo, marginal na

poética, marginal no processo de produção e execução das obras. Marginal até

mesmo na forma de distribuição e no plano de circulação desses trabalhos. Neles,

destacamos a ação transgressora e isolada de resistência, de se fazer ouvir, de

pôr em público por meios informais seus pontos de vista.

Atualmente os trabalhos de Cildo Meireles continuam a ser politicamente

comprometidos, mas seu alvo de críticas foi transferido para as formas atuais de

produção e comércio da arte. Dessa forma, Meireles ultrapassa a década de 1980,

separada da anterior pela passagem da arte como local de transgressão para a

arte que foi sendo absorvida pelo mercado. Apesar dos aspectos comerciais já se

fazerem presentes no campo das artes plásticas em um período anterior, foi a

partir dos anos 1980 que o comprometimento político e social cedeu espaço para

a arte vista como mercadoria. A partir de então, a discussão sobre o comércio de

arte se tornará uma questão crucial para os artistas que pertenceram à vanguarda

de 1970 e para os que representaram a geração de 1980.

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ANEXOS

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