COMUNICAÇÃO E AMBIENTE DIGITAL

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CINZIA GIACINTI UM ESTUDO NETNOGRÁFICO JUNTO AOS NATIVOS DIGITAIS COMUNICAÇÃO E AMBIENTE DIGITAL

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  • C I N Z I A G I A C I N T I

    UM ESTUDO NETNOGRFICO JUNTO AOS NATIVOS DIGITAIS

    COMUNICAO E AMBIENTE DIGITAL

  • COMUNICAO E AMBIENTE DIGITAL

    COLEO E.BOOKS

    PUBLICIDADE E PROPAGANDA

  • COMUNICAO E AMBIENTE DIGITALUM ESTUDO NETNOGRFICO JUNTO AOS NATIVOS DIGITAIS

    C I N Z I A G I A C I N T I

  • Coleo E.books FAPCOM

    A Coleo E.books FAPCOM fruto do trabalho de alunos de graduao da Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicao. Os contedos e temas publicados concentram-se em trs grandes reas do saber: filosofia, comunicao e tecnologias. Entendemos que a sociedade contempornea transformada em todas as suas dimenses por inovaes tecnolgicas, consolida-se imersa numa cultura comunicacional, e a filosofia, face a esta conjuntura, nos ocorre como essencial para compreendermos estes fenmenos. A unio destas trs grandes reas, portanto, nos prepara para pensar a vida social. A Coleo E.books FAPCOM consolida a produo do saber e a torna pblica,a fim de fomentar, nos mais diversos am-bientes sociais, a reflexo e a crtica.

    Conselho Cientfico

    Antonio Iraildo Alves de BritoClaudenir Modolo Alves

    Claudiano Avelino dos Santos Jakson Ferreira de Alencar

    Mrcia Regina Carvalho da Silva Valdir Jos de Castro

    Livros da Coleo E.books FAPCOM

    A COMUNICAO NA IGREJA CATLICA LATINO-AMERICANAPaulinele Jos Teixeira

    ASCENSO DIALTICA NO BANQUETEIorlando Rodrigues Fernandes

  • Direo EditorialClaudiano Avelino dos Santos

    Coordenao EditorialClaudenir Mdolo AlvesMrcia Regina Carvalho da Silva

    Produo EditorialEditora Paulus

    Capa Gledson Zifssak

    DiagramaoLuana Felicia

    Reviso GramaticalClaudio Fatigatti

    PAULUS 2016

    Rua Francisco Cruz, 22904117-091 So Paulo (Brasil)Tel. (11) 5087-3700 Fax (11) [email protected]: 978-85-349-4397-0

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Giacinti, Cinzia Comunicao e ambiente digital [livro eletrnico] : um estudo netnogrfico junto aosnativos digitais / Cinzia Giacinti. -- So Paulo : Paulus, 2016. -- (Coleo E.books FAPCOM) 593,83 Kb ; ePUB

    Bibliografia. ISBN 978-85-349-4397-0

    1. Cibercultura 2. Comunicaes digitais 3. Comunidades virtuais 4. Jovens 5. Meio ambientedigital 6. Redes sociais 7. Tecnologia da comunicao I. Ttulo. II. Srie.

    16-04278 CDD-303.4833

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Nativos digitais : Netnografia : Comunicao e ambiente digital : Comunicao e tecnologia 303.4833

  • Dedicatria

    Aos meus sobrinhos Andr e Davi, simplesmente Nativos Digitais!

  • Agradecimentos

    Agradecimentos s Coletividades-Comunidades que se fizeram presentes:s famlias Giacinti e Barbon, onde aprendi o amor para e com o mar, e a beleza e ousadia das navegaes. Congregao Nossa Senhora Rainha dos Apstolos pelas Vocaes, conhecidas como Irms Apostolinas, minha Comunidade e Coletividade. Aos Padres e Irmos Paulinos, pela generosidade e pelo cuidado de Irmos mais velhos. Caritas da Diocese de Latina, Itlia Don ngelo, Amlia e ngelo pelos meios digitais, sem os quais no podia viver a extenso de mim mesma.s minhas Professoras: Fernanda Budag e Marcella Schneider, duas brasileiras e um pouco alems: sbias, pacientes, inteligentes, ousadas e apaixonadas pela prpria profisso-vocao de ensinar.Aos nativos digitais, representados pelos integrantes dos coletivos Campus Party (Rafael, Carlos e Mateus) e Mdia Ninja (Isadora, Gabriela e Tiago). Pela reviso ortogrfica e traduo para o ingls: Paulo Teixeira, Mara Brando, Prof. Claudio Fatigatti, Mariana Mascarenhas, Dna. Arlete e Rita Oliva. s fontes de inspirao, amigos e mestres em navegao: Massimo Di Felice, Steve Jobs e Aaron Swartz.

  • Jesus, falando a Pedro, no disse:Esperem que venham dizer-lhes:

    Instrui-nos na religio crist;mas disse Ide procur-los!.

    Ide! Precisa esprito de iniciativa.

    (Bem-aventurado Tiago Alberione s Apostolinas AP 1961, p. 193)

  • Lista de Figuras

    Figura 1 Viso do Ponto mega 34Figura 2 Inteligncia Coletiva 34Figura 3 Teoria de Paul Baran 52Figura 4 Continuum da participao 54Figura 5 Perfil dos Alheios 93Figura 6 Perfil deriva 94Figura 7 Perfil do Crtico 95Figura 8 Perfil do Agente 95Figura 9 Perfil do Hackers da Poltica 84Figura 10 Atividades Desenvolvidas pelos Grupos 99Figura 11 Exemplo de como participar do Mdia Ninja 100Figura 12 Exemplo de participao no Campus Party 101Figura 13 Exemplo de nibus Hacker 104Figura 14 Shaima al-Sabbagh 105Figura 15 Joo Santiago com a Equipe Carabola, Campus Party 2015 106Figura 16 Aaron Swartz, Hacker e Socializador do Conhecimento Livre 107Figura 17 BattleHack, prints do Site 108Figura 18 Significado de uma Fab Lab 109Figura 19 Inovao Arduino 109Figura 20 Nuvem = Msica + Bike 110Figura 21 Fluxo, um site de contedo 111Figura 22 Post: Tem gosto de lama 113Figura 23 Protesto Berkeley, 2014 114Figura 24 Protesto de Baltimore, 2015 115Figura 25 Chris Anderson The Long Tail 117

  • Sumrio

    Apresentao 12Prefcio de Massimo Di Felice 14Introduo 16

    CAPTULO IContextualizao 191.1 Conceito de Tcnica e Humanidade 191.2 Homem e tecnologia: uma viso simbitica 271.3 Noosfera e Cyberativismo 331.4 Real vs Virtual 391.5 Tempo vs Espao 43

    CAPTULO II Conexo 462.1 Net-ativismo e Ativismo Digital possibilidade de protagonismo 48

    2.1.1 Participao e espao democrtico 53 2.1.2 Identidade coletiva e estratgia poltica 54

    2.2 Inteligncia coletiva, pensamento complexo, arquitetura reticular: um mtodo-caminho novo 56

    2.2.1 O pensamento complexo 57 2.2.2 Apresentao da Arquitetura Reticular 59

    2.3 Alm da individualidade: coletividade e colaborao 61 2.3.1 Uma nova pesquisa: a hora da gerao digital 66

    2.4 WIKI: um novo jeito de partilhar saberes 692.5 Cdigo aberto: aquilo que o futuro vai nos dizer-apontar 73

  • CAPTULO III Pesquisa Netnogrfica 773.1 Nativos digitais: os protagonistas(?) 783.2 Fazendo e aprendendo: netnografia, uma nova modalidade de pesquisa 803.3 Coletivos: apresentando os locus de coleta de dados 81

    3.3.1 Justificativa de seleo dos coletivos 863.4 Mapeamento dos nativos digitais: estudos anteriores 89

    3.4.1 Perfis Digigrficos 90 3.4.2 O Sonho Brasileiro da Poltica 92 3.4.3 Escola de Ativismo 97

    3.5 Mapeamento dos nativos digitais: nossa imerso netnogrfica 993.6 Aprofundando a imerso: o que encontramos? 112

    3.6.1 Os resultados do monitoramento 112 3.6.1.1 Trs meses com Mdia Ninja 112 3.6.1.2 Dois meses com Campus Party Brasil 2015 116

    3.6.2 Qual feedback teve esta pesquisa? 118 3.6.3 Relato do dirio de campo 120

    3.7 Complementando a imerso: resultado das entrevistas em profundidade 123

    Consideraes Finais 126Referncias 129Apndice Post-Comunicao OneAPP 137Anexos Transcries das entrevistas em profundidade 140

  • Apresentao

    Fernanda Elouise Budag Este livro consiste exatamente na monografia de concluso do curso de graduao da autora pela Fapcom, Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicao. Os escritos, que so exigncia parcial para a obteno do ttulo de bacharel em Comunicao Social, com habilitao em Publicidade e Propaganda, portanto, esto aqui em sua totalidade original, sem edies, apenas passados por reviso. Alis, sua monografia continuao de uma discusso anterior iniciada junto ao Programa de Iniciao Cientfica da faculdade, sob orientao da Professora Mestre Marcella Schneider Faria, docente da mesma instituio. Agora, ganhando o formato de e-book, h a possibilidade de alcance e visibilidade para alm da biblioteca da faculdade em que o estudo foi depositado; potencializando a disseminao do conhecimento produzido, fim ltimo da produo cientfica. Enquanto responsvel pela orientao desta pesquisa, podemos defender a centralidade contempornea das reflexes aqui propostas; articuladas com maturidade por uma estudante em nvel de graduao. Considerando todo o contexto da comunicao ps-massiva, da tecnologia digital, que trazem consigo novas prticas e todo um novo modo de estar em sociedade, especialmente para os que j nascem imersos nesse ambiente, Giacinti justamente prope questionar se possvel relacionar o perfil dos nativos digitais com novas formas de protagonismo social. E, nisso, assume, pois, o objetivo de compreender as prticas dos nativos digitais em ambiente online, em comunidades que fazem da tecnologia o mbito de suas atuaes. Assim, ao longo dos dois primeiros captulos, a pesquisadora empreende toda uma extensa reviso de literatura, dialogando com autores do campo da comunicao, evidenciando as caractersticas da sociedade contempornea permeada pelo digital e aprofundando

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    algumas das teorias proeminentes sobre aes que vm delineando o atual cenrio digital. Por fim, essa base terica serve de sustentao para a anlise do corpus coletado a partir de insero netnogrfica, na qual foram observadas postagens e interaes de nativos digitais nas plataformas online dos coletivos selecionados. Tal observao foi enriquecida com entrevistas em profundidade e seus resultados compem o terceiro e ltimo captulo que tambm traz relatos de outros estudos atuais em torno de temas afins. Convidamos a uma leitura atenta, mas tambm leve, deixando-se levar deriva para conversar com metfora das navegaes que tanto agrada autora.

  • Prefcio

    Quis me fazer presente com este texto, pois a sua pesquisa revela a necessidade de uma conscincia imersiva, prpria do habitat das redes digitais, que impossibilita uma distncia entre o pesquisar e a pesquisa. Imerso entre mar e estrelas, entre as profundidade dos abismos marinhos e as distncias infinitas que intercorrem entre as estrelas no cu, o andar do marinheiro (leia-se pesquisador) por guas profundas assume uma sua mais ntida viso e uma sua maior compreenso, no na observao dos mapas e das cartas geogrficas, mas na noite. Pois na noite que o cu estrelado aparece e que a gua assume a mesma cor do cu e confundem-se com ele ao receber o reflexo do luar. na noite que o barco parece mais com uma astronave intergalctica e que a navegao deixa de aparecer algo que percorre distncias marinhas para assumir a forma de uma viagem interstelar. Nesta condio a navegao (leia-se pesquisa) deixa de ser um movimento de um ponto de um mapa para outro, ou uma rota a ser cumprida, para tornar-se um andar plural que compreende o transitar na escurido profunda da profundidade dos abismos marinhos, o transitar pelas galxias do cu e uma viagem na prpria imaginao. Trata-se, portanto, de um transitar no numa geografia s ou num espao-tempo, mas do transitar em redes. Pouco serve ao marinheiro a consulta dos manuais de navegao, nem a leitura dos contos de mar o das histrias das grandes expedies, dos naufrgios legendrios etc. Estes textos relatam apenas de travessias marinhas, de preenchimento de distncias, isto , de viagem e de navegaes no espao e num tempo determinado, de junes de pontos numa cartografia, feita de cidades, pases e continentes. A navegao em guas profundas necessita de saberes distintos, daqueles que se aprende na academia, necessita de um tipo de expertise particular que no enxergue a navegao como um simples andar do seu barco e de ser prprio, mas como uma atividade conectiva, expresso de um

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    saber no umbilical, mas ecolgico que conecta as galxias, os abismos marinhos e a imaginao do marinheiro (leia-se pesquisador). este um tipo de saber que se aprende nas noites estreladas, em alto mar, navegando nas redes e nas profundidades interiores. Um conhecimento e um expertise que se pergunta continuamente por que tanto navegar se temos tudo facilmente ao alcance l na terra ?

    Navegador/Pesquisador, Massimo Di Felice

  • Introduo

    Todas as histrias j foram contadas. Com essas palavras comea A potica de Aristteles, um dos primeiros livros da humanidade que trata de narrativa. O filsofo, nestas palavras, deu como que um xeque-mate para qualquer conto e histria a ser escrita depois dele, sobretudo depois de dois mil anos. Mas a humanidade vive e se comunica e faz de histrias inter-mundos, para um nmero infinito de vezes. Talvez por isso que continuamos a contar e escutar, criar e partilhar histrias. O mundo passa, atualmente, por mudanas estruturais, existenciais e miditicas. Ns estamos envolvidos nas mdias, neste mundo digital e um dos autores pioneiros na comunicao, Marshall McLuhan, afirma em seus escritos que todos os relacionamentos com as mdias provocam mudanas de vida e nos levam a transformaes.

    Ele usa uma metfora bastante sombria, proveniente de um conto de Edgard Allan Poe, Uma descida no Maelstrm, que compara a mdia, a um redemoinho que nos envolve e vai nos levando e nos puxando para baixo. A nica forma de escapar desse redemoinho seria reconhecer padres, entender sua dinmica, como ele opera, para, a partir dali, conseguir se agarrar em algum objeto que no seja puxado imediatamente para o fundo s assim seria possvel sobreviver. Baseado nesse conto de Poe, ele [McLuhan] afirma que a nica soluo para lidar com essa questo das mudanas da mdia de ponto de vista humano o aprendizado: olhar para ela e reconhecer padres. (LEMOS, 2014, p. 14)

    Ligamos este trabalho e a nossa pesquisa com as navegaes na rede, por isso pertinente introduzir com este conto o seu contedo. O objetivo deste trabalho cientfico medir a participao, ou melhor, o protagonismo dos nativos digitais como sujeitos de mudanas ativas no contexto da era da comunicao digital.

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    Desenvolvemos isto atravs de trs captulos e uma pesquisa netnografica, de imerso na realidade digital, que perpassa o trabalho no seu conjunto, vai alm do tempo real, para medir com a imerso e mapeamento o estudo de dois coletivos de nativos digitais que foram monitorados mais de perto, sendo eles: o coletivo do Mdia Ninja e os participantes do Campus Party Brasil. O primeiro capitulo contextualizao para traar as mudanas e novas relaes que tm a humanidade com os meios de comunicao e agora digitais, os novos relacionamentos e as mudanas que eles nos trazem. No segundo que chamamos de conexo, analisamos, atravs de um smbolo, a ponte, as diferentes realidade e situaes, redes e coletividades que se unem na participao e no ativismo. Entendemos melhor as arquiteturas reticulares, que quer dizer as novas relaes que nos proporcionam a rede das redes. Enfim, no terceiro capitulo, analisamos e contamos um pouco mais em detalhe o mapeamento das coletividades, as pesquisas que ficaram como inspirao e nortearam a nossa navegao, mas tambm as entrevistas e o monitoramento que fizemos pessoalmente. Foi isto, talvez a contribuio mais preciosa deste trabalho, poder criar experincias juntos com os nativos digitais um pouco dos desafios, sonhos e desejos que eles cultivam, aprimoram e buscam na e com a rede. Cabe agora fazer esta navegao, que implica ter um duplo esprito: o esprito dos antigos que seguiam as estrelas olhando o cu, mas apontando o horizonte desconhecido para encontrar lugares novos nesta busca de novas terras. E com o esprito dos jovens que amam as aventuras, seguindo os pontos, as linhas e os mapas dos navegantes da era digital entre bits, hiperlinks e open data encontrar aquilo que nos faz mais humanos. Pelos antigos e novos, vale esta dica e sugesto de algum que soube confiar:

    Voc no consegue ligar os pontos olhando pra frente; voc s consegue lig-los olhando pra trs. Ento voc tem que confiar que os pontos se ligaro algum dia no futuro. Voc tem que confiar em algo seu instinto,

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    destino, vida, carma, o que for. Esta abordagem nunca me desapontou, e fez toda diferena na minha vida [Steve JOBS]. (ISAACSON, 2011, p. 277)

    Talvez seja esta tarefa a nossa esperana ao escrever esta Monografia, ter o desejo e a ousadia de ligar pontos, bits, pessoas e traar novos mapas para que a humanidade possa, comunicando, confiar em algo que faz a diferena toda: ser mais humanos.

  • CAPTULO I

    CONTEXTUALIZAO

    A tecnologia no neutra. Estamos dentro daquilo que fazemos e aquilo que fazemos est dentro de ns. Vivemos em um mundo de conexes e importante saber quem que feito e des-feito. (HARAWAY, 2009, p. 32) Neste primeiro captulo, queremos nos adentrar neste universo que a tcnica e tecnologia, para fazer um dilogo com a contemporaneidade e colocar, assim, o nosso trabalho no contexto atual, da nossa realidade que na sua complexidade vem ao nosso encontro. Apontamos as caractersticas dela, em particular das interaes entre mquinas e seres humanos, para entender um novo jeito de se relacionar, no mais mecanicista, mas simbitico de integrao mtua e aperfeioamento. Que vai muito alm das dicotomias como real e virtual, ou do espao e tempo, para fazer da nossa realidade um contexto diferenciado, uma rede de redes em que o humano e o tecnolgico esto to prximos que temos ou teremos uma realidade diferente, um novo jeito de vivncia e, assim, com essas mudanas, tambm um novo ser humano.

    1.1 Conceito de Tcnica e Humanidade

    O problema : no aquilo que podemos fazer com os instrumentos tcnicos que ideamos-criamos, mas aquilo que a tcnica pode fazer de ns (GALIMBERTI, 2004, p. 38). Essa citao, ideia, provocao de Umberto Galimberti, citando Anders Gnther, pode abrir uma reflexo sobre o contexto atual no qual a tcnica parte de nosso cotidiano. Nesse sentido, dar-se- uma reflexo aberta,

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    entre o relacionamento humano com os instrumentos tcnicos e com a tcnica no sentido geral. Os humanos executam funes e so levados pelos instrumentos a executar aes, ou agem com reflexo tendo um sentido por aquilo que os instrumentos tcnicos levam a fazer? Assim, um computador pode se transformar, segundo o prprio uso tcnico em um instrumento de relao, protagonismo e interao ou, por outro lado, em um instrumento de segregao, excluso, bullying. As recentes revolues, desde a industrial at a revoluo digital, que ainda estamos vivenciando, trazem consigo um comeo de uma nova fase da civilizao humana, dessa vez marcada por uma nova relao entre tecnologia e ser humano, um resultado que determina no mais separao, mas junes de saberes que at ento eram separados, entre teoria e tcnica. O filsofo alemo Martin Heidegger nos aponta nesse sentido uma transformao ontolgica que est acontecendo, a atual revoluo tecnolgica produz o advento de uma nova tecnologia que no pode ser mais entendida com as categorias e saberes do passado, dividindo e separando o instrumento do uso antropolgico da tcnica.

    Para ele [Heidegger] a tkhne, desde a sua etimologia grega, pertencia ao mbito do produzir, no seu significado grego, isto , poisis que inclua, ao mesmo tempo, ao significado tcnico como quele artstico e que deveria ser aproximado ao sentido de tornar presente o que estava oculto e, portanto, quele de descobrir. (FELICE, 2007, p. 3)

    Vamos apresentar aqui esse novo conceito de tkhne, que segundo o nosso ponto de partida partilhado com Heidegger, mais abrangente, no cultiva a separao entre instrumento e executor. Assim, a tcnica no se limita a ser algo que fica fora do nosso horizonte, como, por exemplo, no contexto da modernidade, no qual a tcnica era desenvolvida para assegurar vida humanidade, permanncia, estabilidade e domnio sobre a natureza. Pensamos, por exemplo, os avanos tcnicos nas habitaes humanas, no desenvolvimento das tcnicas de locomoo e navegao que permitiram aos homens se movimentarem para diferentes lugares, ou mesmo no telescpio de Galileu, que expandiu o horizonte de conhecimento a partir de um objeto

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    tcnico. Por isso o nosso olhar visa aprofundar neste contexto aquilo que ao longo da histria as transformaes comunicativas fizeram, lembrando a importncia que cada fase introduziu humanidade, trazendo mudanas de formas de armazenar, organizar e comunicar as informaes e ao mesmo tempo uma nova forma de perceber e definir a realidade. No artigo As formas digitais do social e os novos dinamismos da sociabilidade contempornea (2007), Di Felice situa as trs grandes revolues que afetaram a humanidade no sentido da comunicao, at chegar na quarta revoluo que ainda estamos vivenciando. A primeira revoluo surge no sculo V a.C., no Oriente Mdio, quando os seres humanos deixam a cultura da sociedade oral para passar por uma cultura da escrita; o alfabeto revolucionou as comunicaes da poca. A revoluo seguinte acontece mais ou menos no sculo XV, na Europa, em que, com a impresso criada por Gutemberg, a leitura e a escrita, propagadas por meio da impresso de livros, at ento privilgios de poucos, tornam-se ao alcance de muitos. A terceira revoluo aquela que comumente chamamos de revoluo industrial, entre os sculos XIX e XX, comeo daquela que os histricos da comunicao chamam de cultura de massa, que vem caraterizada pelas mensagens veiculadas por meios de comunicao eletrnicos, como rdio, telgrafo, telefone e TV. Em cada uma das revolues comunicativas podemos presenciar aquilo que McLuhan observa, a possibilidade de chegar e alcanar com as novas comunicaes um pblico sempre maior com custos sempre menores. Tambm podemos evidenciar que esses novos meios mudam as perspectivas de atuao e manuseio deles e da realidade que eles determinam. Basta refletirmos sobre a mudana alcanada pela fotografia e pelo cinema no desenvolvimento de novas leituras e percepes do real. Agora, na ltima revoluo comunicativa, a quarta em sucesso de tempo, a das tecnologias digitais, estamos assistindo a uma expanso do elemento comunicativo. Nessa revoluo vamos alcanar um pblico ilimitado, uma transmisso de dados e quantidade de mensagem praticamente infinita e, alm disso,

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    vai ser afetado um processo de significado da comunicao que transforma realmente e ontologicamente o sentido do significado de comunicao. Podemos relevar, por assim dizer, que

    [...] de fato, pela primeira vez na histria da humanidade, a comunicao se torna um processo de fluxo onde as velhas distines entre emissor, meio, e receptor confundem-se e trocam-se at estabelecer outras formas e dinmicas de interaes, impossveis de ser representadas segundo os modelos dos paradigmas comunicativos tradicionais. (FELICE, 2007, p. 2)

    Esse novo paradigma no vai gerar uma distino entre quem produz e recebe a mensagem, mas gera uma integrao entre os objetos tcnicos, entre a tecnologia e o humano, at chegar a uma sntese que pode ser descrita como simbitica (YANAZE, 2013). Com essa palavra, simbitica, apontamos o dilogo entre tcnica e humanos em um novo ambiente em que pode surgir e se desenvolver um novo homem. Agora, neste espao, vamos nos aprofundar no dilogo entre os saberes tcnicos e humanos e mais adiante aprofundamos o surgimento do novo homem, apontado com diferentes ttulos ou nomes: nativos digitais1, gerao digital ou internet2, ou, simplesmente, gerao Z3, que nos leva descoberta de que as fronteiras entre meio e mensageiros so quase desaparecidas. Por isso autores como Yanaze (2013), McLuhan (1964) e Di Felice (2014) apresentam e mostram que a tcnica no deve ser pensada apenas como ferramenta que serve aos interesses humanos, numa relao exclusivamente objetiva, mas sim como uma extenso e representao dele mesmo. A relao no vista pelo uso, mas pelo dilogo e interao. Nesse sentido, McLuhan afirmava que:

    As consequncias sociais e pessoais de qualquer meio ou seja, de qualquer uma das extenses de ns mesmos constituem o resultado do novo estalo introduzido em nossas vidas por uma nova tecnologia ou extenso de ns mesmos. (MCLUHAN, 1964, p. 21)

    1 PRENSKY, Marc. Digital Natives, Digital Immigrants. California: NBC University Press, 2001. 2 TAPSCOTT, Don. A hora da gerao digital. So Paulo: Ativa, 2010.3 WIKIPEDIA. Gerao Z. Disponvel em: . Acesso em: 04 out. 2014.

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    Aquilo que McLuhan prope uma relao dialgica com a tecnologia do dilogo e da identificao, entre o ser e o fazer. A partir dos escritos de McLuhan compreensvel o avano tecnolgico no somente como algo de externo ao humano, mas como uma possibilidade de uma nova recriao, uma nova inveno do prprio ser humano. Com esse uso estendido do prprio ser, no sentido da essncia humana, as mdias completam o homem e a mulher no seu ser humano e o estendem ao infinito atravs do desenvolvimento das tecnologias, no mais usadas para um desenvolvimento externo, mas partcipe das melhores capacidades humanas. Por exemplo, a inteligncia artificial e o uso de tecnologias na recuperao de pessoas com doenas mentais, ou tecnologias para recuperao de membros artificiais. Nesses casos, as tecnologias oferecem ao ser humano novas perspectivas de atuao e existncia social. Nesse sentido, o binmio ser e fazer agora est unido em um s sentido: tecno-humano. Isso, sobretudo, com relao s geraes chamadas de nativas digitais (PRENSKY, 2001), que apontam para uma nova interao multitasking4, no uso variado de instrumentos de conhecimento; relao e interao que coloca em evidncia um jeito de aprender no linear e criativo. Para os nativos digitais, a relao que vivem com esses meios numa extenso de si mesmos, especialmente na partilha e relao das informaes e comunicaes sobre si mesmos, personalizando as informaes e partilhando os seus contedos. Por isso interessante o fenmeno do peering5, compartilhamento em forma colaborativa de contedos; que tem como talvez o mais famoso e difundido exemplo na enciclopdia Wikipdia, que deve o seu contedo a essa forma colaborativa, gratuita e desinteressada de lucro pessoal. Para compreender as atuais relaes comunicativas, precisamos entrar em uma viso diferente da

    4 Em computao, Multitarefa a caracterstica dos sistemas operativos que permite repartir a utilizao do processador entre vrias tarefas aparentemente simultaneamente. WIKIPEDIA. Multitarefa. Disponvel em: . Acesso em: 10 out. 2014.5 Peering um esforo colaborativo, seja de pessoas ou organizaes, onde cada parte contribui voluntariamente e de forma aberta para a formao de determinado contedo. Essa definio mais adequada para sua utilizao no trfego de dados na Internet, significando uma interconexo onde as partes envolvidas no necessitam de um acordo explcito. WIKIPEDIA. Peering. Disponvel em: . Acesso em: 10 out. 2014.

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    analtica, reducionista e moderna. Portanto, precisamos pensar a partir do pensamento complexo (MORIN, 2011), global e includente. A palavra complexus quer dizer o que tecido junto. E se, segundo Morin (2013, p. 13), o desafio da globalidade um desafio da complexidade, temos que o desafio tecer junto. Portanto, a compreenso da realidade que estamos estudando deve se dar atravs do pensamento complexo, que no fornece para a humanidade certezas, mas ajuda, nas incertezas do viver e das vivncias, a enxergar novas oportunidades, novas aberturas nesses conjuntos de comunicaes digitais enquanto novas redes de relacionamento e saberes. Os estudos de Raquel Recuero (2009) sobre as redes demonstram esse aspecto, no caso, na relao entre as pessoas e as conexes produzidas nas redes. A autora traa um importante balano das teorias das redes, desde a matemtica dos grafos aos estudos das redes sociais na Internet e mostra que a teoria da rede tem o seu foco na estrutura social, onde no possvel isolar os atores sociais e nem suas conexes (RECUERO, 2009, p. 24). De uma maneira ou de outra, esses atores sociais so protagonistas em conjunto de uma nova ao social (DI FELICE, 2013), constituda com e pela tecnologia e os humanos. Dessa forma, os autores estudados McLuhan (1964), Yanaze (2013) e Di Felice (2014) , propem uma postura cientfica diante da tcnica que a integra aos aspectos humanos e tal proposta vai na direo do pensamento complexo (MORIN, 2011) e tambm da Teoria dos sistemas desenvolvida por Bertalanffy (1975). Essa re-orientao cientfica no deve mais ser embasada em nveis e estruturas separadas e independentes uma da outra, como estgios a serem alcanados, mas numa unidade a ser desenvolvida. Para a Teoria dos sistemas, o sistema um conjunto de partes, interdependentes e interagentes, no qual sua soma mais complexa do que a unio das partes.

    Cada elemento do sistema um sistema em si mesmo. Funciona com certa independncia. As partes so coordenadas a partir das entradas, inputs, previstas e imprevistas e no relacionadas e, por isso, formam uma complexidade. Uma das caractersticas fundamentais que so sistemas abertos, que sofrem interaes com o ambiente e com os usurios negativas ou positivas. Isso fundamental, porque essa abertura faz dele um sistema vivo.

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    Essa viso d um novo rumo ao atual pensamento cientfico no que diz respeito ao estudo das redes sociotcnicas, no mais apontando conhecimentos separados uns dos outros e nem separando pessoas de objetos, mas conectando e ampliando o conhecimento, o entendimento sobre as relaes. Nessa viso sistmica da realidade, queremos aprofundar dois conceitos-chave que so usados ao longo deste trabalho: (1) humanidade, na tica do socilogo Maffesoli e (2) coletividade/tribo, sempre segundo o mesmo autor. Este ltimo um elemento diversificador e de unidade, para entender esse novo sistema que estamos vivenciando nesta poca de revoluo comunicativa digital. Humanidade e coletividade representam, por assim dizer, duas vertentes do mesmo sistema de comunicao digital, que nos levam a uma complexidade que vai nos proporcionar uma reflexo a respeito de: qual a definio de humano nesse contexto digital? Que tipo de humanidade est sendo definida pela cultura digital?

    [...] uma definio possvel do humano, numa viso no opositiva: a compreenso do humano que Michel Maffesoli prope, ligado-a sua etimologia latina: humus. O hmus a parte frtil do solo. aquela camada que est acima das pedras, onde a semente cai e floresce. Humano e hmus tm a mesma etimologia. Assim, uma das possveis caractersticas a ser atribuda ao humano sua fertilidade, a qual necessita de uma semente, de um elemento invasor. Ento, no h humano, ou sociedade, sem tecnologia, e vice versa. Aqui, devemos pensar, portanto, na perspectiva do desenvolvimento do conhecimento, assim como na perspectiva da inovao e das modalidades de transformao, em uma sinergia com a tecnologia, numa relao simbitica, e jamais opositiva nem hierrquica. (DI FELICE; LEMOS, 2014, p. 19)

    Podemos afirmar que essa relao de conjugao e ao entre diferentes, humano e tecnolgico, leva a fertilidade a algo de novo que vai nascer, se desenvolver e aparecer no contexto do conhecimento humano e nas comunicaes e relaes simbiticas entre seres e mquinas. Esses elementos da humanidade e tecnologia so chamados a um dilogo constante e ininterruptos entre si mesmos, com respeito e autonomia recprocos. H certo prevalecimento do

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    sistema em detrimento das partes, como nos aponta outro socilogo, mais crtico sobre o contexto atual, Zygmunt Bauman, que nos diz:

    Quando um circuito eltrico fica sobrecarregado, a primeira pea a queimar o fusvel. O fusvel, um elemento incapaz de aguentar tanta voltagem quanto o resto da instalao (na verdade, a parte menos resistente do circuito), foi inserido na rede de forma deliberada; ele derrete antes de qualquer outra parte da instalao no momento exato em que a corrente eltrica aumenta alm do ponto de segurana, e portanto antes que ela consiga derrubar todo o circuito, juntamente com os perifricos que alimenta. (BAUMAN, 2013, p. 20)

    Pode parecer uma banalidade, mas a constatamos a dificuldade dos sistemas fechados de incluir as partes, sobretudo aquelas mais fracas e perifricas e, por assim dizer, secundrias, deixando de lado o todo, concentrando-se s em uma perspectiva utilitarista e particularizada. Continuando o pensamento desse autor:

    Pensar em termos de danos colaterais presumir tacitamente uma desigualdade de direitos e oportunidades preexistentes, ao mesmo tempo em que se aceita a priori a distribuio desigual dos custos da ao empreendida (ou, nesse sentido, de ser desistir dela). (BAUMAN, 2013, p. 28)

    Mesmo revelando essa conjuntura no positiva nos sistemas e mecanismos da nossa humanidade, podemos e devemos relevar, todavia, sinais e passagens mais promissoras de uma vivncia solidria e coletiva, como vem nos apontando Maffesoli em sua reflexo sociolgica:

    Neste sentido, necessrio uma grande ateno ao que, por comodismo ,chamamos de marginalidade [...] Na verdade, sua vivacidade demonstra que est emergindo uma nova forma de agregao social. Talvez seja difcil conceitualiz-la, mas, com a ajuda de antigas figuras, certamente ser possvel esboar seus contornos. Da a proposio das metforas de tribos e de tribalismo. (MAFFESOLI, 2006. p. 231)

    Maffesoli defende que tribo seria tudo que [...] ultrapassa a mnada individual e confirma o sentimento coletivo (MAFFESOLI, 2006, p. 218). As coletividades se definem, assim, como sistema dos sistema dentro do contexto da cultura digital; um jeito novo e antigo de se formar e encontrar como pessoas, indivduos.

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    J o filosofo francs Michel Puech (2008) define a humanidade como uma nova espcie, o Homo Technologicus, que tem no relacionamento simbitico com as tecnologias um valor de complementariedade. Ou seja, os estudos do Puech consideram o aspecto inclusivo e tico do relacionamento humano e tecnolgico. Essa expresso tirada das teorias do Puech, Homo Technologicus, representa uma boa sntese daquilo que atualmente a humanidade vive em relao s tecnologias. Esta filosofia inclusiva com os meios e os humanos traa, por assim dizer, uma identidade pessoal que vai se refletir nas redes de relacionamento, em que, como afirma Maffesoli, vamos nos definir e redefinir como humanos e coletividades-tribos:

    O paradigma da rede pode, ento, ser compreendido como a reatualizao do antigo mito da comunidade [...] Da a existncia dessas pequenas tribos, efmeras, mas que nem por isso deixam de criar um estado de esprito que parece destinado a durar. Devemos ver a o trgico e o cclico retorno do mesmo? possvel. Em todo caso, isso nos obriga a repensar a misteriosa relao que une o lugar e o ns. (MAFFESOLI, 2006, p. 239)

    Ou seja, um conceito de humanidade, hoje, estaria muito mais relacionado solidariedade, ao agrupamento, ao coletivo e ao compartilhamento. E isso atravessado pela tecnologia.

    1.2 Homem e tecnologia: uma viso simbitica

    Avanando em nossa pesquisa e, sobretudo, no relacionamento humano e tecnolgico, queremos, de acordo com os espaos apontados nos pargrafos que antecedem, aprofundar os lugares de atuao digital, que podemos chamar de ciberespaos, nos sistemas de rede entre redes, lugares infinitos e interativos. Nesses espaos digitais ser traado um novo modelo, uma nova espcie humana, aquela que chamamos de Homo Technologicus que, como queremos apontar nesta sesso, vai desenvolver com a tecnologia um relacionamento simbitico.

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    O sentido do termo simbitico expresso de um relacionamento entre dois organismos diferentes, que convivem entre sim e produzem ou desenvolvem uma vida melhor para os dois organismos. A partir dessa definio, relevamos algumas situaes que apontam, a nosso ver, essa vivncia simbitica entre humano e tecnolgico que desenvolvem melhorias no sentido tico, da qualidade de vida e aponta a novos caminhos.

    possvel pensar, assim, uma interao entre o humano e a tcnica, que podemos chamar de ao scio-tcnica, como acontece, por exemplo, nas aes desenvolvidas pelos hackers, nas diversas formas de net-ativismo e nos social games6 (DI FELICE, 2013, p. 8). A obra de Joshua Meyrowitz pe particular nfase no carter tecno-informativo da situao social.

    Esse aspecto marcado pelo advento de uma situao social tecnolgica (MEYROWITZ, 1985, p. 65). Podemos apontar, como exemplo, aquilo que aconteceu em 2011, na Tunsia, depois do suicdio de Mohamed Bouazizi, a interao entre sujeitos, grupos e tecnologias desencadeou aquela que todos ns conhecemos como Primavera rabe, embora Mohamed Bouazizi tivesse morrido no dia 17 de dezembro de 2010. Os vdeos, conexes e manifestaes que sucederam proporcionaram a to desejada revoluo pela liberdade e pela dignidade. Talvez se no tivesse acontecido essa interao tecnolgica e social, o suicdio de Mohamed no passaria de uma notcia factual. Mas esse fato foi marcado por uma ao social gerada numa dimenso tecno-comunicativa enquanto consequncia da movimentao de fluxos informativos e de interaes tecno-humanas, que afinal iniciaram mudanas sociais. As interaes com a tecnologia geram espao social e criam significados sociais a partir do momento em que os diversos agentes sociais interagem entre si.

    6 Os SOCIAL GAMES (SG) so tipos de jogos casuais, ou seja, jogos relativamente simples, com regras fceis que exigem um baixo tempo de dedicao (TAUSEND, 2006; RAO, 2008). Eles so caracterizados como sociais pela presena de uma atividade ordenada do jogo desenvolvida por um grupo de participantes que interagem entre si (HUIZINGA, 2000).RECUERO, Rebeca. Bens Virtuais em Social Games. INTERCOM: Revista Brasileira de Cincias da Comunicao. Disponvel em: . Acesso em: 30 de jun. 2014.

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    A perspectiva de Meyrowitz aponta para uma viso complexa das interaes no mbito do espao social, no s limitada pelos agentes humanos. Ele afirma que as mdias, em particular a televiso (a mdia de interesse primrio e foco de seu estudo), expandem o conhecimento e criam um no-lugar, uma extenso do espao social, que vai alm das nossas fronteiras materiais e nos coloca em uma dimenso diferente.

    Esse no-lugar de Meyrowitz pode ser pensado tambm no caso do ciberespao, porque, como aquilo que acontece na TV, o ciberespao torna-se um espao ubquo; no podemos mais identific-lo em um s lugar. O infinito no ciberespao toma os limites infinitos das novas tecnologias digitais e produz, com um fluxo de comunicaes ilimitadas, infinitos que deixam os indivduos em movimento perene, sem mais fronteiras geoterrestres e menos ainda virtuais.

    Aps essa leitura interpretativa, pode-se dizer que os fluxos de comunicao que vo ser gerados em rede anulam a distino analgica entre emissor e receptor, segundo o novo modelo interativo que chamado por Di Felice (2014) de reticular e formado por agentes-protagonistas. Esse processo pode ser de qualquer natureza, coisa, matria ou significado. As relaes de comunicao antes eram vistas a partir da supremacia do homem racional, mas dentro do desenvolvimento do pensamento complexo as relaes de comunicao so vistas de maneira horizontal, sem alguma entidade que manda mais no processo.

    E tudo isso gera um novo modelo de ao social que Di Felice chama de reticular , sem lugar, atpica a partir da simbiose entre humanos e circuitos digitais eletrnicos. Justamente porque no importa o lugar, a identidade do homem, mas sim a interao em si, o momento da interao. Podemos delinear brevemente algumas das caractersticas desse modelo reticular; como o trmino do antropocentrismo, porque o humano e tecnolgico desenvolvem novas formas de interaes, como diria a pesquisadora Lucia Santaella, construindo um sistema com rota de navegaes e conexes (SANTAELLA, 2004, p. 163) em que emissor e receptor interagem entre si e no tm mais diferenciao entre o tipo de

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    participao que empreendem, mas fluxo de comunicaes. Da multiplicidade de atores-protagonistas gerada nas redes uma circulao de alianas, de fluxos, dentro dos quais todos agem e recebem interferncias constantes. (DI FELICE, 2012, p. 153) E, enfim, uma nova interconectividade vivenciada pela rede das redes, que podemos resumir em dois conceitos que aprofundamos em seguida, de inteligncia coletiva (Pierre LEVY) e inteligncia conectiva (Derrick DE KERCKHOVE).

    Estamos, assim, imersos em uma rede comunicativa relacional que tem no encontro com o outro o seu sentido e potencial, que assume as diferenas para faz-las dialogar em um espao que global e est em todos os lugares, que aceita como protagonistas e atores todos os elementos envolvidos. Essa concepo simbitica traa, por assim dizer, um novo modelo de ao dialgica e relacional entre humanos e tecnologias at chegar a uma viso cooperativa (DI FELICE, 2013). A sociedade vive nas redes interativas, como fala Levy (1999), com um universal por contato que coloca em contato o humano e o tecnolgico, que cria sentido no por identidade, mas por imerso, que produz lugares onde conecta cada ser humano com outro. Nesse sentido, os espaos digitais nos permitem um universal sem totalidade e oferecem uma inteligncia coletiva gerada pela participao de cada um a partir da sua originalidade. Inteligncia coletiva no se identifica em um subjeito ou ser, mas formada por uma interligao de seres e interfaces e, por assim dizer, vem a ser determinada pela distribuio dos saberes: ningum sabe nada sozinho, mas juntos cada uma faz a sua parte; uma formao coletiva. O primeiro autor a criar o termo inteligncia coletiva e aprofund-lo com diferentes teorias foi Pierre Levy, que nos prximos pargrafos exploramos mais de perto. Uma possvel relao entre inteligncia coletiva pode ser feita tambm com o conceito de inteligncia conectiva, do autor de Kerckhove, discpulo de McLuhan, que aponta com esse termo um novo modo de fazer comunidade em redes atravs das conectividades, que tambm explicamos adiante. A mente, uma vez expandida at a dimenso das ideias maiores, nunca volta ao seu tamanho original, afirma Oliver Wendell Holmes (HOLMES apud DE KERCKHOVE, 2009, p. 193). Talvez essa

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    frase possa dar a ideia de que a humanidade est dentro de um caminho sem volta. As inteligncias agora, interconectadas podem nos apontar aquilo que chamamos de Cyborg7 e a podemos questionar: onde a humanidade e as tecnologias podem nos fazer chegar?

    Hoje podemos fazer tudo o que quisermos (para chegar onde queremos), por isso primeiro temos de saber o que que queremos (DE KERCKHOVE, 2009, p. 194). Entre as infinitas possibilidades de novas estruturas que poderamos aprofundar, escolhemos investigar, dentro da inteligncia coletiva e conectiva, duas experincias da rede das redes: as Wiki Wiki e as interfaces de Linux e os seus desafios de cdigo aberto.

    Wiki, wiki uma expresso da lngua havaiana, que quer dizer rpido ou muito veloz8 . Todos e quaisquer sites de Wiki tm caractersticas prprias, segundo o autor Don Tapscott (TAPSCOTT, 2011, p. 21-35), que se resumem a cinco principais: a colaborao, a abertura, o compartilhamento, a integridade e, enfim, uma interdependncia entre as pessoas, organizaes e interfaces detalhadas uma a uma a seguir. Sobre a colaborao: talvez essa seja uma das expresses mais usadas para se referir ao ambiente do ciberespao, ganhando um sentido para cada um de ns. No geral, a colaborao entre humanos, tecnologias e interfaces desenvolveu a estrutura horizontal e circular de saberes, que aponta uma infinita gama de solues e colaboraes que ainda devemos entender nas nossas organizaes e redes convencionais.

    Quanto abertura, nas Wiki Wiki, trata-se de termo que agrega transparncia, liberdade e flexibilidade. J o compartilhamento, nesse sentido, parece importante e fundamental, e diz respeito a um esforo global, em detrimento do individualismo: a partilha vai sendo mais importante e cria uma rede de interesses multiplicadores.

    7 Um Ciborgue um organismo ciberntico, um hbrido de mquina e organismo, uma criatura de realidade social e tambm uma criatura de fico [...] O Ciborgue uma matria de fico e tambm de experincia vivida uma experincia que muda aquilo que conta como experincia feminina no final do sculo XX. Trata-se de uma luta vida e morte, mas a fronteira entre a fico cientfica e a realidade social uma iluso tica (HARAWAY, 2009, p. 37). 8 WIKIPEDIA. Wiki, wiki. Disponvel em: . Acesso em: 27 out. 2014.

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    Continuando, temos a integridade. Essa caracterstica explicita o que as anteriores delinearam implicitamente: a importncia de um comportamento tico e ntegro em funo no de um bem, ou de interesses pessoais, ou, menos ainda, privados, mas tendo como referncia mxima criar entre os usurios e entre as coletividades um sentimento de confiana mtua, de bem partilhado, de integridade humana.

    E, por fim, a interdependncia, parafraseando John Donne, ningum de ns uma ilha. E talvez McLuhan tivesse razo ao apontar que ns vivemos em uma aldeia global em que tudo e todos esto ligados, conectados entre si. Portanto, a caracterstica da interdependncia diz respeito a essa conexo entre todos para a gerao de conhecimento.

    Entre muitas citaes de produo social abertas, que so favorecidas pela inteligncia coletiva, podemos citar Wikileaks9 como uma possibilidade de fazer conhecer tudo aquilo que os Servios Secretos, sobretudo de potncias ocidentais, manipulam e deixam de falar aos prprios cidados.

    E outro exemplo de cdigo aberto, agora fruto de inteligncia conectiva, o sistema operacional Linux, que est ao alcance de todos e fruto de uma trabalho colaborativo. Sim, porque sabemos que uma evidncia nos nossos dias: todas as pessoas no mundo moderno usam Linux de uma forma ou de outra, vrias vezes por dia (Jim Zemlin, Diretor Executivo da Linux Foundation).

    Hoje, o Linux usado em tudo, desde os menores produtos eletrnicos de consumo at os maiores supercomputadores. Ele ajuda os sistemas de controle de trfego da Alemanha. Tambm controla numerosas usinas

    9 WIKILEAKS uma organizao transnacional sem fins lucrativos, sediada na Sucia, que publica, em sua pgina (site), postagens (posts) de fontes annimas, documentos, fotos e informaes confidenciais, vazadas de governos ou empresas, sobre assuntos sensveis. A pgina (site) foi construda com base em vrios pacotes de programas (software), incluindo MediaWiki, Freenet, Tor e PGP. Apesar do seu nome, a WikiLeaks no uma Wiki - leitores que no tm as permisses adequadas no podem editar o seu contedo. A pgina (site), administrado por The Sunshine Press, foi lanado em dezembro de 2006 e, em meados de novembro de 2007, j continha 1,2 milho de documentos. Seu principal editor e porta-voz o australiano Julian Assange, jornalista e ciberativistas. WIKILEAKS. Disponvel em: . Acesso em: 19 de out. 2014.

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    de energia nuclear, embora, por motivos de segurana nacional, no possamos identific-los. Se voc dirigir um BMW, as chances so de que o automvel esteja rodando um Linux. E, quando esta pgina foi escrita, mais que 500 milhes de usurios de sistemas de TV a cabo, de TiVo, de telefones Android e de outros eletrodomsticos usavam Linux, e mais de 1,5 bilho de pessoas beneficiam dele, indiretamente, ao acessar sites como Google, Yahoo e muitos outros. (TAPSCOTT, 2011, p. 67-68)

    Portanto, fica o questionamento: onde a humanidade pode chegar com o desenvolvimento colaborativo, entre inteligncias conectivas e coletivas?

    1.3 Noosfera e Cyberativismo

    Para responder questo que finaliza o tpico anterior onde a humanidade pode chegar com o desenvolvimento colaborativo, entre inteligncias conectivas e coletivas? precisamos estudar mais a fundo duas prticas: conectividades e coletividades. Consideramos ambas como mbitos de atuao na atual era digital que, aprofundados, permitem encontrar uma possvel resposta ao nosso questionamento.

    Traando um caminho de contextualizao com a realidade, para podermos dar fundamentao e atualidade ao nosso trabalho, aprofundamos, agora, coerentemente, os eixos da coletividade e conectividade. Conforme j mencionamos, o referencial terico , por ns tratado,assumindo uma perspectiva global da humanidade, no mais diferenciada em binmios excludentes, mas em uma viso holstica da realidade, onde a totalidade soma e diferena entre as partes.

    No hbito das conectividades, vem ao nosso encontro os estudos e as pesquisas do cientista e sacerdote jesuta, Theillard de Chardin. Seu desejo primrio, como estudioso, era fazer uma sntese entre evoluo e teologia, do estgio catico do surgimento do Universo at chegar ao Ponto mega, um centro de convergncia da humanidade. Theillard de Chardin, no seu livro mais conhecido, o Fenmeno Humano (1965), considera a evoluo humana em termos intelectuais e espirituais. Para ele, no mundo fsico existem

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    duas energias: uma energia radial (determinada pela causa e efeito) e uma energia tangencial (que vem de dentro). A energia tangencial por sua vez est dividida em trs nveis: primeiro a pr-vida, segundo nvel a vida e terceiro nvel a conscincia.

    Figura 1 Viso do Ponto mega

    Fonte: http://www.teilhard.it, 2014

    Essa camada da conscincia, para Theillard de Chardin, chama-se Noosfera. A Noosfera , assim, uma rede invisvel e coletiva da conscincia humana que virtualmente engloba todo o planeta. A Noosfera representa, segundo o autor, [...] uma nova Idade que comea. A Terra muda de pele. Melhor ainda, encontra a sua alma (CHARDIN, 1965, p. 191). Interpretando essa frase, podemos afirmar que a Noosfera como um recipiente vivo, uma camada que mantm unidos os nveis de conhecimento e conscincia da humanidade, sem uma pr-definio, mas que, atravs do descobrimento e do encontro na Noosfera a humanidade se descobre no seu ntimo mais ntimo, aquilo que o cristianismo chama de alma, a conscincia maior que pode ter um ser humano.

    possvel fazer uma ponte entre os conceitos desenvolvidos por quatro autores com os quais dialogamos: Chardin, Levy, Lemos e Di Felice. Podemos traar, assim, uma conexo entre o Ponto mega/Noosfera e o pensamento reticular-ecolgico (de Di Felice, j citado) que introduz a uma nova epistemologia, que interpreta a

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    realidade e faz compreender uma nova situao social e tecnolgica. J Lemos escreve sobre essa nova esfera de comunicao, chamada de ciberespao, comparando-a justamente Noosfera:

    Com as redes eletrnicas como Internet, o Ciberespao, enquanto Noosfera est diante de ns. O Cyberespao uma Noosfera na medida em que ele uma camada abstrata e invisvel, pela qual circulam dados, imagens, espectros e fantasmas digitais (LEMOS, 1996, p. 8).

    Nesse caso, o Ciberespao-Noosfera, para Lemos, uma via de expanso planetria, uma possibilidade de conscincia coletiva, em que podemos despejar como em um grande recipiente toda e qualquer sabedoria humana-tecnolgica, assemelhando-se ao conceito de Levy de inteligncia coletiva (LEVY, 1997).

    Figura 2 Inteligncia Coletiva

    Fonte: http://pierrelevyblog.com/2013/09/11/ideograms/, 2014

    Interpretando10 o grfico anterior e o conceito desenvolvido de inteligncia coletiva, temos que Pierre Levy acompanhou a evoluo humana do real (concreto, prprio do humano) ao virtual, com uma pesquisa continuada, at chegar concepo de inteligncia coletiva como um motor principal do desenvolvimento humano (LEVY,

    10 O caminho: uma aventura intelectual transdisciplinar. (LEVY, Pierre. A esfera semntica. Tomo I. Computao, cognio, economia da informao. So Paulo: Annablume, 2014. p. 29-57).

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    2014, p. 50). Assim, no grfico que representa a inteligncia coletiva, os ideogramas esto divididos em trs subgrupos: o signo, o ser e a coisa; cada qual com nove ramificaes, ou nove arqutipos caraterizados pelas principais distines Levy chega a contar at 81 tipos diferentes de interaes. Continuando nossa interpretao sobre o conceito, nas palavras de Levy, chegaremos a seguinte concluso: por fim, a inteligncia coletiva tal qual ela se investe objetivamente nos dados da Web se tornar capaz de refletividade [quer dizer, de auto-referncia cientfica] no espelho de um meio digital coordenado pela esfera semntica, que eu chamo de Hipercrtex (LEVY, 2014, p. 64).

    Passamos, por assim dizer, de uma fase de produo e inteligncias coletivas e conectadas, para poder traar novos aspectos e fluxos informativos, novos modelos de participao. E a partir dessa nova fase, podemos avaliar o protagonismo social e intelectual, definindo-o com um slogan tpico das coletividades sociais, derrubando muros, construindo pontes.

    A partir da queda do Muro de Berlim, no fim de 1989, o protagonismo social vai se diferenciando e entrando dentro daquela que Castells chama de sociedade em rede, que diz respeito a uma realidade que vai alm dos muros e da territorializao, e expressa um protagonismo e uma participao social no somente centrados em ideias de um partido, sociedade e/ou territrio especfico, mas uma participao social ampla, coletiva e difusa.

    O protagonismo social passa a ser, portanto, profundamente orientado pela participao. Nesse sentido, Jenkins foi um dos primeiros autores a falar e propor a ideia de uma cultura participativa:

    Participao no a mesma coisa que resistncia, nem simplesmente uma forma alternativa de recrutamento, mais, algo dentro e atravs do qual a participao est levando ao combate de batalha cujo xito ainda ningum sabe e permanece desconhecido. Os produtores como tambm os consumidores podem ser entendidos como participantes desta nova ecologia dos meios e das mdias, mesmo reconhecendo que esto em posicionamentos profundamente desiguais quanto a poder, recursos, competncias, possibilidades de acesso e de tempo (RHEINGOLD apud JENKINS, 2013, p. 171 [traduo do italiano, nossa])

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    Esse tipo de participao de que fala Jenkins (citado por Rheingold), ainda no representativa das totalidades e das massas; os participantes ficam excludos pelas diferenas sociais e econmicas, que ainda determinam as sociedades e as culturas. Em uma sociedade em rede, essas diferenas so conhecidas, estudadas e colocadas em cheque por modelos alternativos, participativos, mais igualitrios. Assim aconteceu, em 1999, nas manifestaes contra a reunio do G8 em Seattle, USA. Vale, todavia, lembrar que a primeira ao em rede, socialmente e ativamente globalizada, foi desenvolvida pelo movimento neo-zapatista, em Chiapas (1994), que iniciou uma nova forma de conflito com a divulgao das comunicaes pela rede mundial Web, colocando em conexo vrios movimentos e fazendo presso na opinio pblica mundial para mediar o conflito entre os indgenas e as autoridades mexicanas. A este novo fenmeno global chamamos de Ativismo, de origem estadunidense, enquanto modalidade de organizao e ao poltica direta de base (DI FELICE, 2012, p. 34).

    Do desenvolvimento da Web nos seus primrdios, at a chegada da era digital, peer-to-peer e hiperconexes, o ativismo passou por fases importantes que podemos assim resumir: (1) Web 1.0, em que os usurios eram meros fluidores de contedos, precisavam de um conhecimento s vezes complexo de sistemas e linguagem para poderem publicar o prprio site e/ou material disposio dos demais usurios; e (2) Web 2.0, o desenvolvimento da banda larga, as redes sociais e sobretudo o uso de computao mvel, como smarthphones e tecnologias Wi-Fi possibilitaram oportunidades e um desenvolvimento e protagonismo na Web praticamente infinitos. Sendo assim, a Internet funda um novo padro de comunicao e tambm uma nova cultura, estruturada em quatro camadas que contribuem para uma ideologia da liberdade: a cultura tecnomeritrocrtica (dos produtores/usurios), a cultura hacker, a cultura comunitria virtual, e a cultura empresarial (CASTELLS, 2003, p. 34-55).

    Nesse conjunto de culturas, iremos nos aprofundar na cultura comunitria virtual, que podemos chamar tambm de Net-Ativismo ou Ciberativismo, a partir de definio bem apropriada de Lemos:

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    refere-se de que forma utilizar a Internet para dar suporte a movimentos globais e a causas locais, utilizando as arquiteturas informativas da rede para difundir informao, promover a discusso coletiva e de ideias e a proposio de aes, criando canais de participao. (DI FELICE apud LEMOS, 2012, p. 34-35)

    Numa recente pesquisa internacional, coordenada pelo Centro de Pesquisa ATOPOS, da ECA, da Universidade de So Paulo e que reuniu importantes centros de pesquisa internacionais , foram identificadas algumas caractersticas comuns que marcaram a qualidade das aes net-ativistas em diversos pases (DI FELICE, 2014, p. 58).

    A primeira caracterstica foi identificada pela particular ecologia de tais aes e nas suas mltiplas localidades. Essa hipermobilidade conectada redunda em ubiquidade desdobrada: ubiquidade dos aparelhos, das redes, da informao, da comunicao, dos objetos e dos ambientes, ubiquidade das cidades, dos corpos e das mentes, ubiquidade da aprendizagem e da vida no escoar do tempo em que vivida (SANTAELLA, 2013).

    A segunda caracterstica identificada dos diversos movimentos net-ativistas se expressa na singular no linearidade de suas aes. Sinergia de diversos actantes (DI FELICE, 2014, p. 58). As aes so caracterizadas pela atuao no linear que passa para uma sinergia, um conjunto de aes desenvolvidas, no somente por humanos que possam assim manifestar um sujeito ator, mas como um resultado de diferentes actantes-protagonistas: circuitos informativos, dispositivos, smarthphones, cmaras digitais, gravadores, redes sociais (como Facebook), movimentos sociais, indivduos, etc.

    Outra caracterstica encontra-se na recursividade de suas aes que parecem ter como objetivos principais, ao lado das reivindicaes pblicas e externas, a consciente expresso de reivindicaes internas que se exprimem na exigncia radical de transparncia, da democracia real e da tomada coletiva das decises no mbito dos prprios movimentos, deslocando, assim, de forma elptica, a prpria ao e a direo do seu prprio impacto (DI FELICE, 2014, p. 59).

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    Mais duas outras caractersticas levantadas pela pesquisa do ATOPOS so: (1) a valorizao do anonimato, pois as pessoas que atuam no net-ativismo no querem ser heris ou heronas, uma coletividade que se apresenta sem precisar de lderes ou modelos de inspirao, o real aquilo que move; e (2) a recusa da institucionalizao, expressa na comum averso aos partidos polticos, ou s manipulaes de empresas e ONGs que queiram se apropriar do valor das identidades coletivas (DI FELICE, 2014, p. 59).

    Dentro desse novo contexto de coletividades ativas e protagonistas, conectadas entre si, desejamos, antes de aprofundar os atores e protagonistas dessas conexes, refletir um pouco ainda sobre as caractersticas da era digital. Em particular entre as dicotomias entre virtual e real e entre tempo e espao, que determinam os nossos dias, os relacionamentos entre humanos e tecnologias, para poder codificar as novas linguagens e os novos ambientes ubquos em que, como cyborges, somos chamados a nos manifestar. Nas mltiplas e diversificadas atividades e relaes coletivas, temos a possibilidade de poder enxergar qual tipo de ambiente comunicativo podemos ter ao nosso alcance e as fronteiras que ele vai nos oferecer.

    1.4 Real vs Virtual

    Em quantos mundos podemos viver e quantos mundos so nos apresentados atravs do uso de novos termos de linguagem como, por exemplo, sociedade em rede, ciberespao e cibercultura? Somos transportados e impulsionados continuamente a viver com olhares e sentidos diferentes, como nos aponta o autor De Kerckhove:

    a cibercultura implica ver atravs. Vemos atravs da matria, do espao e do tempo com as nossas tcnicas de captura de informao. Quando uma tecnologia nos d acesso fsico ou mental a um lugar na Terra ou ao espao profundo, para alm de qualquer limite anterior, as nossas mentes vo atrs. (DE KERCKHOVE, 2009, p. 155)

    Esse ver atravs vai nos proporcionar certa integrao entre matria, informao e mediao humana, que ao longo deste primeiro captulo procuramos colocar em evidncia; integrao esta que apontamos como protagonista dessa nova fase da era digital.

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    Tudo isso comporta para ns, humanos, certa atratividade e atrao em que as nossas mentes vo ser levadas, pela experincia virtual e real das novas formas de realidades. Podemos ter certo medo e uma ateno sempre presente, como um grande e intrigante dilema, como mesmo Castells nos desafia:

    O dilema do determinismo tecnolgico , provavelmente, infundado dado que a tecnologia a sociedade, e a sociedade no pode ser entendida ou representada sem as suas ferramentas tecnolgicas. (PEREIRA apud CASTELLS, 2012, p. 75)

    Ser que a tecnologia vai nos manipular, render escravos e meros repetidores de padres e esquemas programados, sem o nosso protagonismo? Qual ser a realidade virtual e qual a real? Vem em nossas mentes a famosa pergunta do filme Matrix: pode a realidade se tornar uma frmula, uma plula? Se voc tomar a plula azul, a histria acaba e voc acordar na sua cama, acreditando no que quiser acreditar. Se voc tomar a plula vermelha, ficar no Pas das Maravilhas e eu te mostrarei at onde vai a toca do coelho.

    Certamente essa realidade do virtual e do real nos questiona e proporciona sempre mais e em medidas maiores uma deciso, como poder da escolha que vai nos possibilitar entender onde estamos e aquilo que podemos fazer e ser como seres humanos. Por isso queremos partir do conceito de ciberespao11, que vem ao nosso encontro, descrevendo a realidade mais prxima das conexes e ligaes dos computadores e da Internet.

    O termo Cyberespao foi usado pela primeira vez em um romance de cyberpunk e depois Levy o aperfeioou levando-o para o universo filosfico e cientifico, dando a esse espao caractersticas prprias, como: aquela de um espao de comunicao digital que tem a vocao de colocar em sinergia e interfacear todos os dispositivos de criao de informao (LEVY, 1999, p. 92-93).

    11 O termo teve origem no romance Neuromancer de William Gibson (1984): Ciberespao. Uma alucinao consensual experimentada por bilhes de operadores legtimos, em cada pas, por crianas a quem so ensinadas conceitos matemticos... Uma representao grfica de dados ex-trados de bancos de cada computador do sistema humano. Complexidade impensvel. Linhas de luz alinhadas no no-espao da mente, clusters e constelaes de dados. Como luzes da cidade, afastando-se... (GIBSON, 1984, p. 51. Traduo livre. Apud PEREIRA, 2012, p. 76)

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    O ciberespao no somente imaginrio, mas um ecossistema integrador de elementos tcnicos e sociais, o qual o socilogo Massimo Di Felice caracteriza como:

    [...] formas experienciais das deslocaes tcnico-comunicativas [...] [que] criam e multiplicam espaos e materialidades eletrnicas socialmente ativas possibilitam, assim um novo lxico capaz de relatar as experincias sociais que se criam a partir das formas de superao de fronteiras entre orgnicos e inorgnicos. (PEREIRA, 2012, p. 77-78)

    Podemos dizer, assim, que esse novo lxico vai nos ajudar a encontrar um termo capaz de integrar e dar continuidade a essa realidade virtualizada. E esse termo rizoma, conceito que vem da botnica. Ao rizoma, os cientistas atribuem uma simbiose entre o mundo real e material, entre humanos, informaes e mquinas.

    Em particular, para Deleuze e Guattari, na obra Mil Plats (1995), o funcionamento do rizoma se assemelha s caractersticas do ciberespao: conexo, heterogeneidade, multiplicidade, ruptura e cartografia.

    Sendo assim, a realidade no vai mais ser interpretada entre dois mundos, ora contrapostos, ora paralelos, mas em continuidade entre si, como nos apresentam os conceitos e estudos de De Kerckhove 12 e Benedikt:

    Com o ciberespao o mundo real no se torna abstrato e, portanto, no conjunto menos amplo ou menos real; nem o mundo mental se torna concreto e, consequentemente, menos mental ou espiritual. Ao contrrio, o ciberespao descortina um novo espao para a complexidade da vida sobre a terra: um novo refgio para um reino que est entre os dois mundos. O ciberespao torna-se una nova sede para a prpria conscincia. (PEREIRA apud BENEDIKT, 2012, p. 78)

    Esse novo conceito de continuidade traz a conscincia de que, no novo mundo do ciberespao, no podemos mais aplicar as

    12 Vivemos um nmero incrvel de horas todo dia em frente a telas: da calculadora, do celular, da televiso; o que quer dizer que vivemos em uma situao de continuidade permanente, de troca ininterrupta entre o mundo interno e o externo. este espao da continuidade que chamamos de ciberespao. (DE KERCKHOVE em DI FELICE E PIREDDU, 2010, p. 154)

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    contraposies entre virtual/real, herana do nosso pensamento ocidental que atinge a cultura clssica grega e prega a separao entre o mundo das ideias e o mundo do sensvel. Podemos e estamos dentro e indo ao encontro de um novo mundo. Por isso podemos afirmar que estamos vivenciando uma complementao entre real e virtual como em um jogo de espelhos em que ambos so coisas distintas. Assim, podemos afirmar, como Eliete da Silva Pereira, que: o virtual se configura como efetivao do real enquanto potncia e como um dos principais vetores da criao da realidade. (PEREIRA, 2012, p. 80)

    Nessa nova virtualizao, mais uma vez o filosofo e comuniclogo Pierre Levy afirma que se reinventa uma cultura que ele chama de uma cultura nmade que feita de interaes sociais, com mais dinmicas no presas ao territrio, uma desterritorializao, uma unidade de tempo sem unidade de lugar que nos foram heterognese na pluralizao dos tempos e espaos. (PEREIRA, 2012, p. 80-81)

    Dentro desse novo mundo, no mais feito de contraposies entre o que real e virtual, mas feito de complementaes, queremos aprofundar um dos questionamentos antigos e sempre novos que a humanidade, desde o seu albores se faz: o que o espao e o que o tempo dentro desse novo mundo da integrao do real/virtual?

    1.5 Tempo vs Espao

    Tomamos a liberdade para responder a uma pergunta com uma nova pergunta: Como possvel medir algo que os sentidos no podem captar? (SANTAELLA, 2013, p. 129-132) Uma vez que os conceitos de tempo e espao fazem parte do jogo entre irreversibilidade e repeties, percebemos, como nos aponta o autor De Kerckhove, que na nossa era digital, na sociedade em rede nas suas complexidades, somos testemunhas de uma diminuio do hiato entre ao e reao [que] est criando uma espcie de continuidade entre planejar e executar em tempo real. (DE KERCKHOVE, 2009, p. 154)

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    Surpreendidos com esse tempo real, que nos leva ao culto e valorizao do momento presente, vivenciamos certo paradoxo, exagero entre aquela que percebemos ser uma realidade externa que podemos chamar de hardware e uma realidade psicolgica e subjetiva, que chamamos de software, por assim dizer.

    O paradoxo este. O nosso hardware a realidade material da terra est se contraindo e implodindo sobre si mesma, porque as nossas tecnologias reduzem constantemente os intervalos espao-temporais entre operaes. Entretanto, o nosso software, a nossa realidade psicolgica e tecnolgica, est continuamente se expandindo. O acesso aos reinos do infinito estruturas de informao atmicas e subatmicas, planetrias e galcticas est tambm expandindo o alcance da nossa cultura em profundidade, que no cessa de aumentar. (DE KERCKHOVE, 2009, 154)

    Envolvidos e colocados dentro da cultura em profundidade, as nossas referncias de tempo e espao devem se recodificar, renovar segundo os novos sistemas e procedurais ao nosso alcance. Nesse novo rumo e codificao, uma possvel interpretao poderia ser aquele de Lucia Santaella, autora do livro Comunicao ubqua. Repercusses na cultura e na educao: podemos medir o tempo em trs nveis: tempo externo, tempo interno e tempo social. (SANTAELLA, 2013, p. 128-132)Tempo externo aquele tempo que deixa marca, na sua passagem, por exemplo no dia aps dia quando uma criana cresce ou uma flor desabrocha e a erva murcha.Tempo interno reflete sobre a temporalidade e finitude do ser humano. Tempo social de acordo com os nveis de desenvolvimento social, ele determina a nossa vivncia em sociedade. Talvez esta poderia ser uma das interpretaes possveis para um conceito que v a humanidade dentro e no mesmo envolvida em diferentes sentidos, o tempo no pode ser observado de fora para dentro, precisa que a gente coloque nele sentidos.

    Interessante a interpretao e colocao do monlogo do filme Blade Runner, em quem um cyborge depois de ter salvo o homem que queria assassin-lo, assim se expressa:

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    Ive seen things you people wouldnt believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched c-beams glitter in the dark near the Tannhuser Gate. All those moments will be lost in time, like tears in rain. Time to die.

    Tenho visto coisas que no imaginariam. Naves de ataque ardendo no ombro de rion. Eu vi raios-c brilharem na escurido prximos ao Porto de Tannhuser. Todos esses momentos se perdero no tempo, como lgrimas na chuva. Hora de morrer.

    Teremos uma perda se no soubermos dar ao tempo o valor e sentido daquilo que vai nos fazer mais humanos, na integrao e complementariedade com a realidade ao nosso alcance e com as realidades virtuais e coletivas que proporcionam a vida e as escolhas ao nosso redor. como se o tempo se contrasse at chegar sempre e mais veloz em um eterno presente, onde aquilo que somos e fazemos dar a consistncia do nosso agir, em tempo real.

    Mesmo no podendo estender a nossa reflexo sobre o novo conceito de espao em um contexto de era digital e sociedade em rede, desenvolvemos essa nossa abordagem a partir de um artigo de Andr Lemos (2013), que tem como ttulo: Espao, mdia locativa e teoria ator-rede. Na premissa desse artigo o autor j insere suas contribuies sobre uma pesquisa mais ampla sobre as mdias locativas a partir da Teoria do Ator-Rede (TAR) em que se discute em particular o conceito de espao. Qual ser o conceito e o sentido de espao nessa Teoria? Precisamos perceb-lo alm do sentido das palavras; mesmo que possa parecer um simples jogo de palavras, aqui est o conceito: No o global no local, nem o local alm do global, nem mesmo o glocal. (LEMOS, 2013B, p. 52) Brevemente, mas precisamos que esse conceito seja analisado em uma relao entre atores e conexes capacitadas a criar um espao de topologia plana, horizontal, sempre em dilogo.Assim, h duas noes importantes para a compreenso do espao: 1) Espao como conceito abstrato (matemtico, reservatrio de todas as coisas); e 2) Espao como aquilo que constitudo pela distenso dos lugares (construdos historicamente), como relacional e dinmico. (LEMOS, 2013b, p. 53)

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    Na primeira noo, espao o reservatrio de todas as coisas e concebido como uma entidade matemtica. Na segunda noo, o espao uma rede de lugares; lugares, nesse sentido, podem ser pensados como o conjunto de localizao, local e relaes sociais. Quanto mais lugares/objetos, mais espaamentos vo sendo criados por suas relaes. Por isso, podemos afirmar com Lemos que o espao um espao-rede, dinmico, infinito, configurando-se na dinmica das associaes. (LEMOS, 2013b, p. 53)

    Essa nova origem de espao, que cria a sua originalidade dentro da TAR esse conceito de espao em conexo e relao dinmica com a rede. Rede aqui representa as conexes e interaes entre actantes, entre mquinas e em diferentes espaos-territrios. Mais uma vez, vem em nossa ajuda o mesmo Lemos para nos apontar o sentido desse conceito de espao, dizendo-nos:

    Aqui o espao no aquilo que contm coisas, mas o que est a se construir, como a noo de rede para a TAR. Para a anlise social e comunicacional devemos observar como o espao se conforma e se deforma na dinmica das associaes. (LEMOS, 2013b, p. 53)

    A partir desse novo sentido, o espao algo que vai se construindo e se desenvolvendo na medita das relaes e conexes que os atores-actantes produzem, criam e se conectam. Dessa forma, estamos frente a um espao relacional.

    Agora, fazemos nossas as palavras do filme Matrix, em que o Neo, ligando e desafiando Matrix, est em frente a um futuro que vai iniciar: Um mundo sem regras, sem controle, sem limites ou fronteiras, um mundo onde qualquer coisa possvel. O que haver depois voc vai decidir. Aqui estamos, prontos a decidir com os novos protagonistas os nativos digitais o futuro que vai iniciar, colocando as premissas para que essa nova histria possa ser contada.

  • CAPTULO II

    CONEXO

    Depois de evidenciar as caractersticas da sociedade contempornea permeada pelo digital, com este novo captulo queremos aprofundar algumas das teorias e aes digitais que vm delineando o atual cenrio digital. Somos conscientes das novas complexidades, onde se vivenciam essas novas teorias e caminhos para a humanidade: protagonismo, arquitetura reticular, coletividades e cdigos abertos so alguns dos novos mapas para descrever um novo ser humano-tecnolgico; e que exploramos agora.

    Para poder entender e aprofundar de um jeito adequado esta realidade, pegamos emprestada uma simbologia do filosofo Heidegger (1951), para demostrar com um smbolo conhecido a realidade conectada que nos interessa descrever, entender e acompanhar. O smbolo ao qual nos referimos a ponte. A ponte pende com leveza e fora sobre o rio. somente na travessia da ponte que as margens surgem como margens. (HEIDEGGER, 1951, p. 6) A ponte, como nos descreve o autor, coloca em conexo (usando a linguagem digital), realidades diferentes (neste caso as margens) e cria novas possibilidades (as passagens, as relaes). Por isso, podemos dizer que a ponte rene integrando a terra e o rio, por exemplo. A ponte, como nos escreve o Heidegger, um lugar que cria novos espaos, assim como as conexes digitais hoje so lugares que criam espaos infinitos.

    A ponte no se situa num lugar. da prpria ponte que surge um lugar. A ponte uma coisa. [...] Coisas, que desse modo so lugares, so coisas que propiciam a cada vez espaos.[...] Espao algo espaado, arrumado, liberado, num limite, em grego . O limite no onde uma coisa termina mas, como os gregos reconheceram, de onde alguma coisa d incio sua essncia.

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    Isso explica por que a palavra grega para dizer conceito , limite. Espao , essencialmente, o fruto de uma arrumao, de um espaamento, o que foi deixado em seu limite. O espaado o que, a cada vez, se propicia e, com isso, se articula, ou seja, o que se rene de forma integradora atravs de um lugar, ou seja, atravs de uma coisa do tipo da ponte. Por isso os espaos recebem sua essncia dos lugares e no do espao. (HEIDEGGER, 1951, p. 8)

    Mas esta criao vai alm do limite, porque d incio a uma essncia, algo de novo ao nosso alcance, perto de ns, mas ao mesmo tempo capaz de nos levar a outros lugares e espaos. Como descrevemos na sequncia, as conexes nos colocam dentro de uma inteligncia coletiva, que opera em regime de complexidade em que a arquitetura reticular cria um ambiente favorvel para novas criaes e ligaes importantes.

    A ponte uma coisa desse tipo. O lugar acolhe, numa circunstncia, a simplicidade de terra e cu, dos divinos e dos mortais, medida que edifica em espaos a circunstncia.[...] Produzir tais coisas construir. (HEIDEGGER, 1951, p.12)

    Produo como construo de novidade, inovao, novos ao nosso redor, dentro e perto de ns. O construir assim caracterizado um deixar-habitar privilegiado (HEIDEGGER, 1951). Neste novo e diferente deixar habitar podemos e devemos dar tcnica um sentido maior e com ela tambm aquilo que est ao nosso redor, como novas possibilidades, de um presente promissor e um futuro diferente. Assim, olhando o novo sentido de algumas palavras, descobrimos que

    Tkhne [tcnica] no significa, para os gregos, nem arte, nem artesanato, mas um deixar aparecer algo como isso ou aquilo, dessa ou daquela maneira, no mbito do que j est em vigor. Os gregos pensam a tkhne (), o produzir, a partir do deixar-aparecer. (HEIDEGGER, 1951, p.14)

    Deixar aparecer poderamos dizer que a palavra-chave deste nosso estudo e aprofundamento. Entre muitas, escolhemos duas realidades que esto emergindo em nosso contexto e nas conexes atuais. A primeira delas a relevncia das Wiki-Wiki como ambientes digitais que oferecem um processo colaborativo de

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    saberes, que esto mudando o nosso jeito de fazer economia, politica e a nossa educao e cultura. Estamos vivendo um conhecimento sempre mais compartilhado, em que as referncias globais e interconexes so frutos de inteligncia coletiva. baseado neste contedo e processo que damos importncia e lugar privilegiado as nossas referncias sobre Wikipdia, no como uma enciclopdia de segunda categoria, mas colocando-a como uma das mais importantes e relevantes fontes, j que a sua estrutura e desenvolvimento atua em sintonia perfeita com os nossos contedos tericos.

    A segunda realidade que vem ao nosso encontro e vai produzindo novas aparies a realidade representada pelo cdigo-aberto que, neste contexto, mais que representar algoritmos e conceitos matemticos descrita por um personagem, uma pessoa: Aaron Swartz. Talvez possamos comparar a sua vida e histria (que exploramos ao longo do captulo) a uma ponte, algo que constri novos caminhos, que est ligando margens; que indica que o momento de novas aberturas para uma internet livre em que, mais que os interesses e ligaes corporativas e econmicas, so as pessoas que podem ter vez e voz; determinando que o verdadeiro conhecimento aquele que pode ser partilhado e torna-se coletivo e no fechado e comprado por poucos. O cdigo-aberto torna-se, assim, a mesma vida e histria de Aaron at chegar a extremas consequncias.

    2.1 Net-ativismo e Ativismo Digital: possibilidade de protagonismo

    Precisamos, no incio deste segundo captulo, clarear e aprofundar o sentido e significado de algumas palavras-chave, que foram sendo citados j ao longo de nosso trabalho, mas que agora precisamos aprofundar. Uma dessas palavras protagonismo.

    Fazendo uma pesquisa, na enciclopdia Wikipdia, encontramos o seguinte significado:

    Do grego (protagonistes), de (prtos) = primeiro e (agonists) = ator, lutador; (agon) = disputa, exposio, combate. Protagonista a personagem

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    principal de uma narrativa, como obras literrias, cinematogrficas, teatrais ou musicais. Sobre ela a trama desenvolvida. As principais aes so realizadas por ela ou sobre ela13.

    No Dicionrio Online Houaiss, protagonismo um conceito, papel de liderana que algum ou algo exerce frente a uma organizao, um acontecimento, um tempo etc14.

    Os dois significados, nos apontam para atores sociais que exercem um papel que se sobressai da ordinariedade, e que implica em aes. Como no caso de pessoas que exercem lideranas em organizaes e movimentos sociais. No contexto da era digital, podemos captar e entender o protagonismo no somente como fruto de aes, mas em um contexto mais amplo e, sobretudo, diversificado e integrado. Por isso, vem ao nosso encontro, oportunamente o pensamento de Di Felice:

    Nas aes net-ativistas, de fato, a cumprir a ao no est mais o individuo teleolgico weberniano nem sujeito racional da ao comunicativa habermassiamo, mas uma ator-rede, conectado e parte de uma ecologia reticular que se articula em sucesses de aes, por meio das trocas de atos conectivos. A diferena da ao do sujeito, o ato conectivo exprime a dimenso impermanente e criadora, cara aos dramaturgos gregos, de um acontecimento criador. Em lugar da ao de sujeitos e atores humanos, o ato realiza-se por meio da conectividade frtil de diversos actantes e interagentes, humanos e no. (DI FELICE, 2013, p. 68)

    Com isso, podemos afirmar que os movimentos net-ativistas no tm mais a forma do antigo ativismo politico, porque fazemos parte de um contexto social, poltico e de vivncia diferenciado. O formato um outro, no tem mais aes com caractersticas de aes coletivas e massificadas. Temos uma ruptura na temporalidade e no significado que a poltica tem nesse contexto de era digital e, sobretudo, nas aes e reivindicaes do net-ativismo.

    Hoje a participao intermitente, no sequencial, mais prxima aos games interativos.

    13 Wikipdia, etimologia do termo protagonista. Disponvel em: . Acesso em: 15 mar. 2015.14 Consulta do Vocabulrio Online Houaiss, acesso 11 mar. 2015.

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    Os conflitos so informativos, as passeatas so hoje games interativos que promovem a interao entre informaes, espaos urbanos e aes, jogos de trocas entre corpos e circuitos informativos. Expresses do surgimento de um novo tipo de carne informatizada, que experimenta a sua mltipla dimenso, a informativa digital e a sangrenta material, ferida e machucada. Ambas so reais e nenhuma separada da outra, mas cada uma ganha a sua veracidade no seu agenciamento em dilogo informatizado com a outra. O sangue dos manifestantes feridos no cai somente no cho e no asfalto das ruas, mas se derrama em espacialidades informativas. (DI FELICE, 2013, p. 65)

    Quando estamos falando dessa natureza gamificada das aes hoje, no queremos ser pejorativos, apenas caracterizar esse novo modelo. Isso dizer que esse tipo de interao se caracteriza pela falta de ideologia comum entre os participantes; os participantes no so iguais mesmo se compartilham os mesmos ambientes, seja eles virtuais ou reais. Antes as aes polticas eram encabeadas por pessoas que compartilhavam das mesmas ideologias. Hoje feita por pessoas diferentes, no mais iguais. Numa tentativa de explicao desse novo cenrio, segundo tese de Di Felice15, temos o fato de hoje termos desconstrudo um dos fundamentos da poltica ocidental: os ideais iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade libert, egalit, fraternit no francs.

    Da liberdade, passamos para a dependncia. Ou seja, a rede leva os seus usurios a uma dependncia. Essa dependncia no indica um sentido negativo de sujeio rede, mas de uma rede de relao, no sentido de que as pessoas que interagem nas redes no so mais livres, porque eles dependem dos outros para agir, para dar vida ao agir. Uma dependncia de recursos, como uma grande biodiversidade que vai se formando e afirmando, um pelo outro. Hoje a liberdade iluminista, do indivduo que pode tudo reacionria. O indivduo vale e se conecta aos demais em uma relao de proximidade. Por isso o conceito inovador hoje no mais a minha liberdade, mas a dependncia aos demais. Aquilo que a conexo cria uma condio, entendendo que o termo condio tem um dublo sentido etimolgico dentro do seu significado.

    15 DI FELICE, Massimo. Ativismo digital. In: AULA MAGNA FAPCOM 2015, So Paulo, Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicao (Fapcom), 26 de fevereiro de 2015.

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    Tal ato conectivo reticular, mais do que um estado, pode ser pensado como uma condio. A etimologia latina do termo condio remete a dois significados. O primeiro se refere ao substantivo feminino condictio-onis, que pode ser traduzido como o termo condio, situao, sorte, pacto. O segundo relativo ao termo conditio, que alm do significado de condio pode assumir o significado de criao e fundao. O primeiro remete a um significado de imposio e limitao. O segundo faz pensar a uma abertura frtil e criadora. (DI FELICE, 2013, p. 69)

    Nessa direo, ao afirmarmos que conexo uma condio, isso pode ganhar o sentido de limite ou de possibilidade. Agora os atores e actantes precisam fazer suas escolhas, no sentido de colocar em prticas e aes aquilo que estava em condictio. O segundo termo do ideal iluminista redefinido hoje, no contexto das redes, a fraternidade. Agora, na rede das redes, mais que fraternidade, vm ao nosso encontro as coletividades. O poder das conexes, que agem em mundos diferentes, em mais mundos. Por ltimo, o termo igualdade, no contexto das redes, tem a primazia da diversidades e no da igualdade, nas conexes e nas net-atividades.

    Evidenciamos, pois, que a geometria da rede no igualitria e simtrica; a rede conecta pessoas e linguagens diferentes. Dando continuidade nossa reflexo, entre novas formas e formatos na rede das redes, colocamos em evidncia que a forma que a internet tem de distribuir as informaes complexa. No se pode mais pensar o ativismo como ao que procede de um ponto para o centro ou vice-versa, e, sim, devemos levar em conta todos os pontos: neste caso das redes, todos os ns so atuantes e ativos, e podem distribuir informaes. Por isso, para dar maior argumento a nossa reflexo, podemos resumir atravs de uma figura (a seguir) as atuaes e diversificaes das atividades e aes net-ativistas dos ltimos anos. Tendo como pano de fundo a teoria distributiva de Paul Baran (DI FELICE, 2013):

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    Figura 3 Teoria de Paul Baran

    Fonte: Ilustrao da Teoria de Baran, 201516.

    Conforme apresenta a figura anterior,

    Podemos flanquear a cada etapa histrica a imagem de um tipo de rede que narra visualmente a estrutura e a forma das suas aes em cada fase, a saber, a rede centralizada, a rede descentralizada e a forma rede distribuda. Esta ltima, na perspectiva de Baran, define-se como um modelo no qual a informao navega de forma distribuda, horizontal, dialgica e redundante e onde cada n tem igual importncia e poder de interdependncia. Esses trs tipos de topologias podem metaforicamente descrever as trs etapas histricas das aes net-ativistas. (DI FELICE, 2013, p. 55-56)

    Estes esquemas no descrevem somente uma ao de dentro para fora, mas evidenciam uma ao transformadora, em que no se tem mais centralidade, mas interatividade. O protagonismo no pode ser explicado somente atravs da identificao de prticas e aes transformadoras, mas ele se refere a uma realidade mais abrangente outras realidades: as conexes digitais tm potencial para gerar aes que fazem dos atores sociais protagonistas. Esse processo confere a eles um poder de empreender aes transformadoras.

    Por isso podemos afirmar, segundo Di Felice, que o net-ativismo, o resultado de uma prtica de protagonismo e ativismo isto , de mobilizao de pessoas construda em dilogo com tecnologias

    16 Imagem da Teoria de Baran. Disponivel em: . Acesso em: 07 mar. 2015.

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    de conectividade17. Podemos, assim, afirmar que estamos dentro de uma rede de interaes entre humanos e no humanos, entre digital e tcnico, todos eles interligados entre si. Mas, mesmo assim, as interligaes no criam apenas um dilogo entre os atores e actantes, como poderia afirmar uma reflexo superficial, criam transformaes substanciais de todos os atores e do uso das tecnologias.

    Todavia, o que constitui caracterstica prpria do ciberativismo, ou ativismo online, no se resume simples incorporao da Internet aos processos comunicativos do ativismo, mas inclui a forma como essa tecnologia comunicativa trasformou substancialmente o prprio ativismo e os conceitos de participao, espao democrtico, indentidade coletiva e estratgia poltica, implicando em uma mudana significativa nas formas de ao social por parte dos movimentos ciberativistas [...] (DI FELICE, 2012, p. 35)

    Aprofundamos a seguir, mesmo que brevemente, essas quatro esferas resinificadas pelo novo ativismo online18 citadas por Di Felice, que nos conduzem quilo que os socilogos Wellman e Berkowitz chamam de laos sociais (WELLMAN e BERKOWITZ apud GUZZI, 2010, p. 60), uma nova maneira de viver em comunidade advinda com as mudanas criadas dos novos hbitos comunicativos.

    2.1.1 Participao e espao democrtico

    Estamos frente a um novo protagonismo social constitudo por uma rede de novos atores individuais e coletivos que esto atuando no mundo todo, que constituem uma inteligncia coletiva e global, que est criando oposio, subverso e antagonismo sociedade moderna e sua estrutura controversa, injusta e desnecessria. Esse novo ativismo cria uma participao que poderia criar uma nova sociedade, mais justa e sustentvel, atenta ao meio ambiente e com uma cultura coletiva que respeita as diferenas. Querendo

    17 Entrevista a Massimo Di Felice. Disponvel em: . Acesso em: 07 mar. 2015.18 Novo ativismo online, entrevista a Massimo Di Felice. Disponvel em: . Acesso em: 24 mar. 2015.

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    aprofundar tudo isso nos seus eixos mais importantes, precisamos partir e responder a uma pergunta bsica e norteadora:

    Podemos nos perguntar: o que participao? [...] Fazendo eco a uma afirmao de James L. Creighton, consideramos que a participao pblica pode ser mais bem compreendida como um continuum. E, sendo um continuum, h de fato um nmero infinito de pontos ao longo de uma escala que preciso levar em considerao, de acordo com um processo descr