O Guarda-memória Câmara Cascudo e suas provisões da Província
Como vendedores de chegadinho usam o som em seus … · O baião é hoje uma das manifestações...
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(Trabalho apresentado na IX Reunião de Antropologia do Mercosul - Culturas, Encontros e Desigualdades, realizada em Curitiba-PR, Brasil, de 10 a 13 de julho de 2011. Disponível em http://www.starlinetecnologia.com.br/ram/arquivos/ram_GT18_Thais_Amorim_Aragao.pdf)
Como vendedores de chegadinho usam o som em seus percursos urbanos Thaís Amorim Aragão Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR) [email protected]
R esumo: No ditado popular, “devagar se vai ao longe”. No dia-a-dia dos vendedores de chegadinho da cidade de
Fortaleza, vai-se devagar e é possível ir ainda mais longe, graças ao instrumento musical que esses ambulantes tocam
pelas ruas. O som do triângulo é elemento fundamental numa particular combinação de astúcias táticas, a partir das
quais esses praticantes do espaço não apenas asseguram sua subsistência como se inscrevem na memória afetiva dos
habitantes. Longe de conflitos que emergem com a tentativa de fixação de outros trabalhadores dessa categoria em
zonas centrais, eles cruzam bairros, driblando limites entre público e privado com seu cativante tilintar. Esta pesquisa
se situa no âmbito de uma ciência prática do singular, proposta por Michel de Certeau, em que o fenômeno da
passagem do vendedor de chegadinho é abordado como prática cotidiana no seio de uma poderosa cultura ordinária.
O qu e é c hega dinh o
Importante iniciar fazendo algumas considerações sobre o que vem a ser chegadinho – ou chegadinha, ou
ainda chegadim1. Num primeiro momento, esse produto vendido nas ruas de Fortaleza pode parecer
completamente estranho aos que nunca tiveram contato com o assunto. Isso acontece porque os cearenses
usam uma palavra diferente para nomear algo que, a não ser pelas especificidades locais na forma de fazer,
1 Como é encontrado na fala e até mesmo na escrita, especialmente nos dias de hoje, quando a coloquialidade encontra na Internet um canal livre para registro. Grafarei como “chegadinho” por ter sido assim que o conheci, ainda em muito tenra idade.
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comerciar e reconhecer, está presente em muitas cidades brasileiras. O chegadinho se assemelha ao que em
outros estados nordestinos é conhecido como cavaco chinês, cavaco, cavaquinho ou taboca. Na região Norte,
tem como equivalente o cascalho; em São Paulo e proximidades, o beiju (ou biju, que neste caso não se
refere ao alimento do qual descende a tapioca); e em áreas do Sul e Sudeste, a casquinha.
Para aqueles que não conhecem quaisquer desses produtos, cabe dizer que chegadinho é um doce muito
fino, feito basicamente de água, farinha de trigo, goma e açúcar, e que é comumente assado em chapas sobre
fornos a carvão. Feito pelo próprio vendedor ou em pequenas fábricas que atendem grupos muito pequenos
desses trabalhadores, o chegadinho é tirado da chapa com a ajuda de um funil, o que lhe dá a forma de um
pequeno cone. Seco e crocante, é muito delicado e quebradiço, o que oferece uma peculiar sensação ao
paladar da clientela. Mas isso também requer um cuidado especial no transporte, realizado em tambores
levados na diagonal às costas dos vendedores, que anunciam a iguaria tocando triângulo pelas ruas.
Idiofones são instrumentos "cuja produção sonora é feita pela vibração do próprio corpo, sem necessitar de
tensão como as cordas ou as membranas" (FRUNGILLO, 2003). É o caso do triângulo, que durante a
Idade Média era conhecido na Europa pelo nome, em latim, de "tripos colebaeus" e que em 1589 aparece em
uma partitura musical (idem, ibidem). Em Portugal, a presença dos “ferrinhos” – como o triângulo é
comumente chamado por lá – não passa despercebida na música popular. Ainda na primeira metade do
século XX, o instrumento marcava o ritmo das polcas marchas nos bailes de roda de Algarve, estava em
cena nos fandangos de Beira Alta e nas estúrdias e nas rondas das vareiras do Minho (LEÇA, s/d). Nos
registros do compositor, folclorista e etnomusicólogo português Armando Lopes, eles também aparecem
nos acompanhamentos musicais dos folguedos populares, especialmente festas juninas (fogueiras de
Junho), autos natalinos e reisados, que foram trazidos pelos colonizadores ao Brasil.
Dicionarista de percussão, Frungillo considera que na música brasileira o instrumento é “indispensável em
conjuntos da região norte e nordeste” para tocar baiões. Quando iniciei esta pesquisa, também fiz a
associação entre o triângulo dos vendedores de chegadinho e o utilizado por tais grupos. Suspeitava que a
prática dos ambulantes podia ser de alguma forma influenciada pela referência a essa música, que
contribuiu sobremaneira para a própria fundação identitária regional. Tal suspeita era reforçada pelo fato
de ter identificado que em outras regiões brasileiras o triângulo era substituído por instrumentos como a
matraca (Figuras 1 e 2).
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Figu ra 1: Enquanto o vendedor de chegadinho em Fortaleza-CE usa o triângulo, o vendedor na praia de Capão da Canoa-RS anuncia a casquinha com uma espécie de matraca (imagens da pesquisadora, registradas em março e janeiro de 2011, respectivamente).
Figu ra 2: Localização dos eventos da Figura 1 no mapa do Brasil.
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O triân gu lo no bai ão
O baião é hoje uma das manifestações mais destacadas no âmbito da música brasileira2. Encontramos
Câmara Cascudo registrando que, na cantoria sertaneja, esse termo – assim como rojão – designava “uma
breve introdução musical, executada (…) antes do debate vocal entre dois cantadores”, podendo ser
realizada com um toque de viola, de rabeca ou com os dois instrumentos. Para Baptista Siqueira, a palavra
viria de “bailão”, ou “baile grande”. O autor é citado por Guerra Peixe, compositor que trabalhou na
sistematização das características melódicas, rítmicas e harmônicas dessa música.
Por outro lado, acredita-se que “baião” venha a ser corruptela de “baiano”, opinião da qual compartilham alguns dos nossos estudiosos mais autorizados, talvez por se julgar que a dança tenha se originado no lundu – uma forma musical popular que, em certa modalidade, se teria designado lundu-baiano. “Baiano” indicaria, então, a procedência geográfica: Bahia. (GUERRA PEIXE, 1955)
Tal dança3 seria já bastante popular durante o século XIX, em parte da região que viria a ser conhecida
como Nordeste (CASCUDO, 2001, p. 41-42). Ou, como escreve o historiador Albuquerque Jr., na
“instituição sociológica e histórica” que viria a se tornar o Nordeste a partir da década de 1920
(ALBUQUERQUE JR., p.117), uma vez que a primeira divisão geográfica do Brasil ocorre em 1913.
Naquele contexto, não havia referência a Nordeste e sim à região Norte-Oriental, que compreendia
Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas.
Em 1925, “o Livro do Nordeste, elaborado sob influência direta de Gilberto Freyre, dará a este recorte
regional um conteúdo cultural e artístico, com o resgate do que seriam as suas tradições, a sua memória, a
sua história” (idem, ibidem). A oficialização do Nordeste como região só se daria em 1942 (LIMA, p. 10-
11), de forma que ele já havia se antecipado a esse fato como construção intelectual.
Nestes processos relativamente recentes de consolidação de uma cultura profundamente atrelada a uma
ideia de lugar – que, por sua vez, também estava sendo concomitantemente gestada no seio dessa mesma
cultura –, o baião teve um papel fundamental. Graças a adventos como a indústria fonográfica e os meios
de comunicação de massa, foi possível a ascenção de um artista do porte de Luiz Gonzaga, que tornou-se o
maior expoente desse gênero musical.
2 "São as grandes famílias reais musicais brasileiras: a do samba e a do baião." Depoimento de Gilberto Gil, músico, compositor e ex-ministro da Cultura do Brasil de 2003 a 2008, no documentário “O homem que engarrafava nuvens”, de Lírio Ferreira (2009). Trailer disponível em http://www.youtube.com/watch?v=IgxYcpwMhX8. Acessado em 04 de junho de 2011. 3 “Renato Almeida informava que dançar o baião era dançar o baiano, como se usava de Sergipe a São Paulo.” (CASCUDO, 2001, p. 41)
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Em letras, entrevistas, performances e figurino, o músico pernambucano não apenas contribuiu para
instaurar uma ideia de Nordeste como também o fez em relação ao próprio baião4. Para estabelecê-lo no
panorama da emergente música urbana, valeu-se de inúmeros elementos estéticos, entre eles o som do
triângulo, um dos três vértices do conjunto instrumental que criou para dar suporte à sua música. O
próprio trio foi firmado e reafirmado nas próprias canções, como se pode perceber a seguir:
Ô baião Faz a gente lembrar, esquecer Ô baião Traz saudade gostosa de ter Um triângulo, uma sanfona, um zabumba Uma cabrocha Baionando um balanceio Quanto vale? Tesouro e meio Uma peixeira, um gibão Um chapéu de couro Valem um tesouro Valem um tesouro Mas o gemer de uma sanfona No balanceio Então isso é baião E baião por si só É tesouro e meio Tesouro e meio5
Embora não seja o criador do baião, Luiz Gonzaga fixou o trio de sanfona, triângulo e zabumba como o
formato de conjunto ou grupo musical que se tornou característico do gênero a partir dos anos 1940
(TAVARES, p. 28), graças à força de sua expressividade e ao investimento da indústria do disco, que
difundiu o gênero para as massas. Em uma entrevista televisionada, Luiz Gonzaga Júnior – o Gonzaguinha
– perguntou ao pai por que motivo este havia decidido utilizar só aqueles instrumentos no famoso trio do
baião, recebendo a seguinte resposta:
Eu vinha cantando sozinho, mas eu precisava de um ritmo. Porque a música nordestina precisava de côro. Côro, que eu digo, é couro de cachorro, couro
4 “Os títulos dos baiões na música de Luiz Gonzaga evocam a construção da própria noção de baião como um gênero em processo de formação. É este o sentimento que me vem quando leio: Baião, Eu sou o baião, Tudo é baião, Baionada, Baionando e Abraço do baião.” (VIEIRA, p. 46) 5 Canção “Tesouro e meio”, de Luiz Gonzaga. Como detalhado por Jonas Rodrigues de Moraes: “Baião, 78 RPM. RCA Victor 801689/B, gravação 05/1956, lançamento 11/1956. A música foi relançada na coletânea em CD ‘Revivendo Luiz Gonzaga: Despedida’” (MORAES, p. 61).
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de bode. Negócio para bater, como no Rio de Janeiro se usa couro de gato, né? Então, primeiramente, eu criei o zabumba baseado nas bandas de couro lá do sertão, aquelas que nós chamamos de esquenta-muié. Mas a zabumba, só… eu fiquei assim, com a asa quebrada. Eu precisava descobrir um instrumento bastante vibrante, agudo, pra brigar com a zabumba. Até que vi no Recife passar um menino vendendo cavaco chinês, com aquele tubo nas costas, tocando o tinguilim, como eles chamavam – o tinguilim. Aí ele fazia aquilo com certa cadência, né? E pronto! Achei o marido da zabumba. Olha que casamento!6
A história reaparece em depoimento de Gonzaga à sua biógrafa Dominique Dreyfus, no qual ele também
expressa sua preferência pelo som agudo do triângulo, em detrimento daquele produzido pelo pífano7, em
função da força da projeção sonora do idiofone.
“Mais tarde, numa feira no Recife, eu vi um menino que vendia biscoitinho, e o pregão dele era tocando triângulo. Eu gostei (…). Havia os pífanos, que têm o som agudo, mas eu não quis utilizá-los porque a sanfona, com aquele sonzão dela, ia cobrir os pífanos todinhos.” (DREYFUS, p. 152)
Dessa forma, podemos agora considerar que não foram os ambulantes que primeiro se inspiraram na
música de Luiz Gonzaga. Ao contrário, o músico fez escolhas estéticas que marcaram profundamente a
cultura brasileira a partir desse fenômeno cotidiano da sua região – a prática dos vendedores de cavaco
chinês nas ruas da capital pernambucana. Mais do que a iguaria em si, é também o evento sonoro que
merece a ênfase de Gilberto Freyre, ao mencionar a atividade no prefácio à terceira edição de “Açúcar: uma
sociologia do doce”8.
Interessante de observar-se é que a certos doces, vendidos por ambulantes, estão associados, no Nordeste, sons que como o da campainha de Pavlov, em cachorros, despertam em meninos e adultos predisposições específicas de paladar: o som do triângulo dos chamados cavaquinhos, por exemplo. (FREYRE, 2007, p.59)
Na própria fala do “Rei do Baião” surgem figuras de linguagem interessantes em referência ao som desse
instrumento, que dão uma ideia da importância atribuída a esse timbre, em particular. Numa metonímea, o
triângulo aparece como seu próprio som, pois não é ele que é “agudo”, senão o que se escuta quando é
6 “Luiz Gonzaga - Arquivo Trama/Radiola 03/11/08”, vídeo disponível em http://www.youtube.com/watch?v=7G5sK7kNr4U. Acessado em 16 de abril de 2011, às 11:44. 7 “Instrumento de sopro feito de madeira, taquara ou bambu. É um tipo de flautim, com furos ao longo do comprimento, também denominado pífaro ou pife. (…) A banda de pífanos [é] conhecida também como esquenta-mulher.” (CASCUDO, p. 515) 8 O preâmbulo do livro, publicado pela primeira vez em 1939, foi escrito pelo autor no período entre 1968 e 1986.
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tocado. Além disso, chega a ser nomeado a partir da transposição, para uma palavra, do som que produz ao
vibrar. Esta onomatopeia – “tinguilim” – curiosamente veio aparecer na fala de alguns vendedores de
chegadinho que pude entrevistar em Fortaleza, mais de vinte anos depois da morte de Luiz Gonzaga.
Os ven dedor es de ch eg adinho e o tr i âng ulo
Nenhum dos vendedores de chegadinho abordados soube dizer quem começou a vender chegadinho
tocando o triângulo pelas ruas. Quando começaram na ocupação, vindos de cidades no interior do estado
do Ceará para trabalhar na metrópole, receberam esse instrumento junto com o tambor diretamente dos
fabricantes aos quais estavam ligados, sem nunca questionar a composição da indumentária.
Esses mesmos patrões se encarregavam da feitura dos objetos. Os tambores eram feitos de folha de zinco
cravadas por rebites, para prender suas bordas. Do mesmo material era feita uma palheta, um pegador, com
o qual os vendedores retiravam os chegadinhos. Esse tipo de recipiente teria a vantagem de conservar o
produto livre da luz e da umidade.
Um dos vendedores mencionou que, certa vez, quando já trabalhava por conta própria, trocou o tambor
por um isopor. Não obteve muito êxito nas vendas, pois os compradores se mostraram confusos sobre a
natureza do produto que vendia. Habitantes da cidade que se demoram nela tempo suficiente para
dominar tais convenções, ou que estão conectados a redes nas quais podem encontrar essas informações de
forma mais rápida e espontânea, tomam quase como certo que ambulante com tambor e triângulo só pode
estar vendendo um tipo de coisa: chegadinho. É um código compartilhado pela comunidade.
Ao modificar elementos dessa ideia corrente que se estabeleceu junto à população, esse vendedor alterou a
relação com seu público e, diante das dificuldades em escoar o produto, sentiu que deveria retornar à
prática anterior. E retornou. Os objetos trazidos parecem caracterizar a imagem do vendedor de
chegadinho a tal ponto que eles se tornam únicos na paisagem humana da cidade. O mesmo acontece com
o som. No entanto, diferente do tambor, nenhum dos vendedores mencionou intenção de mudar o
instrumento usado para anunciar o chegadinho.
O som produzido pelos vendedores de chegadinho amplia consideralmente, no tempo e no espaço, a
percepção da presença do ambulante nas redondezas. Embora o ambulante passe perto de um possível
comprador por um instante apenas, o som do seu triângulo pode exceder a duração de dois minutos se
ouvido de um ponto fixo, e consegue destacar-se bem em meio a um conjunto de sons ambientais que
inclui a presença contínua de máquinas, motores e outros emissores sonoros bem mais poderosos.
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Por ter seu emissor em movimento, tal som possui uma dinâmica que permite ao ouvinte inferir
previamente sua distância até o vendedor, se este se afasta ou se aproxima, em que direção, a qual
velocidade. Além disso, esse tipo de projeção sonora permite aos ambulantes cruzarem limites entre o
espaço público e o espaço privado, questão muito sensível na contemporaneidade, geradora de inúmeros
conflitos. Curiosamente, é muito raro encontrar registros de habitantes que se incomodem com o som que
faz o vendedor de chegadinho.
A recepção desse evento acústico pela população merece ser – e será – abordada em maior profundidade em
outro momento. Na impossibilidade de dar conta da complexidade desse fenômeno em um só artigo, nos
concentraremos aqui principalmente no uso que os vendedores de chegadinho fazem do som em seus
percursos urbanos. Por exemplo: que importância é dada por eles ao instrumento que tocam em sua lida
diária?
Os triângulos de muitos vendedores de Fortaleza não eram comprados em lojas de artigos musicais, e sim
encomendados pelos patrões em qualquer ferreiro. Processo simples, sem segredo: é só mandar entortar um
ferro que soe bem. Alguns vendedores hoje autônomos mencionaram que conseguiram seu triângulo
pedindo a conhecidos que trabalham em canteiros de obras pela cidade, como favor. É comum que o
instrumento se parta, ao longo de algum tempo, seja pela qualidade do material, seja pela intensidade e
frequência de uso. Dessa forma, é comum encontrar quem tenha mais de um triângulo – assim como mais
de um tambor.
Boa parte desses homens nunca havia tocado triângulo na vida. Aprenderam a fazê-lo para que pudessem
desempenhar a função de vendedor de chegadinho. Alguns nem dizem que tocam: esses simplesmente
batem o triângulo. Os patrões também não lhes cobravam qualquer habilidade musical. “O triângulo é só
pra chamar a atenção. Você passa ali, você escuta alguma coisa, você vai querer dar uma olhada. Naquele
tempo a gente olhava, pra ver o que era. Só isso. Pra chamar a atenção, o triângulo”, explica o descendente
de uma das famílias que costumava fabricar chegadinho em Fortaleza. A habilidade não era considerada
pré-requisito para ingressar na atividade, sendo aprendida no imediato desempenho da venda nas ruas.
Um dos mais jovens ambulantes entrevistados – já na casa dos trinta anos – comenta que as pessoas riam
dele no começo, pois estava todo tempo mordendo a ponta da língua enquanto tentava acertar o toque do
instrumento. Extremamente constrangido com a situação, passou um certo tempo com “medo de vender”.
“Pra falar a verdade, eu não sei tocar… direito. Toco tão mal! Mas o pessoal não percebe isso”, afirma.
Este vendedor demonstrou grande satisfação ao falar de seu contato com pessoas que costuma encontrar
pelo caminho, especialmente no Monte Castelo e no Parque Araxá. Algumas vezes o triângulo lhe serviu a
uma aproximação bem mais efetiva com a população. Chegou a relatar episódios sucedidos nesses bairros,
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em que deu liberdade a curiosos que lhe pediam para tocar o triângulo, para segurar nos ombros o tambor
ou tudo ao mesmo tempo. Houve quem andasse assim por alguns metros ao longo da calçada e até mesmo
para dentro de casa, ao encontro da família, como se fosse um verdadeiro vendedor de chegadinho.
Em muitas ruas, onde já tinha cliente certo, também deixava de soar o triângulo. Ali já sabia que veria os
mesmo grupos de pessoas em frente às mesmas residências ou pequenos pontos comerciais, e que
certamente lhes comprariam seu chegadinho. Às vezes, em dias de boa vendagem, chegava a reservar uns
últimos pacotes no tambor e a trocar a chance de voltar para casa mais cedo para ir um pouco mais longe,
até onde morava uma certa senhora que sempre o interpelava em suas andanças usuais. Como o produto já
tinha endereço certo, a partir dali também já não tocava mais triângulo, indo batê-lo à porta daquela
cliente, em especial.
Foi encontrado outro vendedor que recorria ao recurso de suster o toque do triângulo a fim de selecionar
sua clientela, embora o depoimento tenha apontado mais para o ato de ignorar certas vizinhanças, e não de
agradar outras. Como a grande maioria desses ambulantes mora na periferia, eles constumam se deslocar até
as áreas onde começam a vender, por meio de transporte público. Mas este, em particular, reside nas
imediações do Centro da cidade. Assim, ao invés de pegar ônibus ou outra condução, ele caminha até onde
inicia sua rota de venda.
Este vendedor não sai de casa já anunciando o chegadinho. Ele só começa a tocar o triângulo onde
considera que valer mais a pena. No considerável trecho entre sua morada e o início – de fato – da linha,
simplesmente não lhe interessa soar o instrumento. Talvez a rota de um vendedor de chegadinho realmente
comece quando ele começa a tocar seu triângulo, sendo sua linha – como muitos chamam seu percurso de
venda – marcada pelo som que produz quando passa.
Percebe-se que a rota marcada pelo som emitido pelo vendedor de chegadinho pode ser contínua e também
pode ser entrecortada, se assim desejar o vendedor. Mas ela pode, ainda, ser re-marcada. Foram verificados,
por exemplo trechos percorridos por dois ambulantes no mesmo dia, no mesmo turno, com pouco tempo
de intervalo entre a passagem de ambos.
“Ontem eu ia ali na (rua) Joaquim Nabuco, ali depois da (avenida) Dom Luís, aí uma mulher dum prédio
me chamou. Não tava com 10 minutos que o E. tinha passado. Ele passou e ela esperou por mim. É por isso
que eu digo que não precisa ter cliente, não. É o que chegar primeiro”, diz um terceiro vendedor
entrevistado. Interessante também reparar que, embora tenha passado depois do colega, ele acaba dizendo
que “chegou primeiro”. O primeiro a ser percebido conscientemente pela cliente? O primeiro a ser
abordado por ela?
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Como o som do triângulo chega ao ouvinte antes mesmo do vendedor, e também permanece sendo ouvido
por um certo tempo depois que seu tocador passa, os ambulantes estão sempre atentos a chamados que
possam surgir de todas as partes. Aguçam os ouvidos, sempre que podem dão uma boa olhada para as portas
das casas, as varandas dos edifícios ou para a rua que deixam para trás, antes de dobrar uma esquina. Assim,
não é de se estranhar que evitem andar longos trechos pelas avenidas, mais movimentadas e mais ruidosas:
conseguem ouvir melhor e melhor serem ouvidos.
Boa parte anda, no máximo, um ou dois quarteirões por esses grandes logradouros. Ao invés de seguir seus
cursos, que muitas vezes funcionam como marcos dos limites entre bairros, é mais comum que os
ambulantes os cruzem, seja com o intuito de passar de uma vizinhança a outra, ou também para retornar
por outras vias ao interior daquela onde estão, ziguezagueando a área9.
Mas há registro de trechos de rotas em que a atração, para o vendedor, está no movimento da avenida. Só
que, nesses casos, o fluxo de pedestres é maior que ou quase tão intenso quanto o fluxo de automóveis. É o
caso do “calçadão” do North Shopping, na avenida Bezerra de Menezes, e da Praça Luíza Távora, que se
localiza numa quadra entre a avenida Santos Dumont e a não menos frenética rua Costa Barros. Algumas
vezes, quando outras praças até mesmo bem menores e menos movimentadas do que esta aparecem no
percurso de um vendedor, este prefere deixar a rua, cruzando-a em sua extensão.
Embora seja a finalidade primeira da atividade, é importante comentar que nem todas as performances de
vendedores de chegadinho ao triângulo são orientadas exclusivamente ao propósito final de realizar uma
venda. Para muitos deles, o triângulo diverte, entretém, torna a caminhada mais leve. Nenhum dos toques
que ouvi de cada vendedor de chegadinho entrevistado chegou a se repetir no repertório rítmico de outro.
Todos trazem uma marca pessoal. Oportuno lembrar que foi um desses toques que me trouxe a esta
pesquisa: o vendedor que passava na minha rua em 2008 trouxe minha escuta, antes periférica, ao nível da
escuta ativa (ou listening-in-search, como propõe Truax)10. Não foi apenas minha atenção que foi chamada
para aquele som específico; ele mesmo começou a desvelar para mim muitos outros aspectos da própria vida
urbana.
Não sei quantos dias foram necessários, no interior da minha sala de estudos, até que eu me desse conta de
que havia ouvido um único e destacado toque vindo do exterior, da rua, cujo timbre aparentava ser
diferente dos demais, além de se situar num tempo distinto dos outros. Curiosamente, isso tudo parecia se
dar no mesmo ponto da trajetória do ambulante. Foi espreitando à janela para descobrir como esse
9 A organização de considerável parte do território fortalezense tem a característica do traçado xadrez. 10 Para Truax (2001), a escuta opera em diferentes níveis de atenção. O listening-in-search revelaria uma escuta mais ativa, em que encontramos o indivíduo conscientemente absorvido pelas manifestações acústicas do seu ambiente, buscando deduzir algo dele.
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vendedor fazia soar tal som que se revelou para mim toda uma prática cotidiana estabelecida lentamente, ao
longo de muito tempo, de forma quase imperceptível mas com muita persistência, nas malhas da cidade.
Conclui que aquele primeiro vendedor que investigei – em prinícipio, quase por brincadeira – deixava, por
onde passava, “a marca de que percebe sensivelmente seu entorno e que também pode controlá-lo em
determinados níveis e fazer uso dele, inclusive de forma sofisticada, com funções estéticas”. Assim, persiste
como sujeito, fazendo do ambiente sonoro da cidade um meio para se afirmar (ARAGÃO, 2009).
Talvez a observação inicial de que eram pouco habilidosos musicalmente não se sustente, já que, depois de
anos de prática nas ruas, esses indivíduos assimilaram as melhores formas de se sentirem cômodos com sua
ocupação e de comunicarem sua passagem, seduzindo paladares pela audição. Dois aprendizados: enquanto
vendem chegadinho, conhecem a cidade como poucos têm a chance de conhecê-la e desenvolvem suas
próprias maneiras de se expressar, ao mesmo tempo em que se constituem como sujeitos.
Isso se reflete na produção de canções de pelo menos dois vendedores de chegadinho que foram
identificados como compositores. Um deles hoje em dia compra seu triângulo diretamente numa loja de
instrumentos musicais. Em suas músicas, feitas para serem cantadas na rua, é bastante frequente contarem
histórias de sua própria profissão: quem são os vendedores de chegadinho, o que fazem, por onde andam,
quem encontram, o que as pessoas acham de seu produto. Esse material, por si só, daria um trabalho de
análise à parte, o que também não será possível neste momento. Mas apresento uma “palhinha” dele, como
dizem os músicos.
“Deus abençoe minha lata E meu triângulo também Os meus passos pela rua Quando vou e quando venho.” “Vou caminhando pelas ruas da cidade Tenho saudade da minha terra querida Ainda me lembro do meu tempo de criança A esperança de subir na minha vida Com tanta luta, me tornei um ancião E agradeço ao nosso Criador Na caminhada Todos os dias Tenho alegria porque sou compositor.”
Estas duas músicas são cantadas por um senhor nascido em 1944 em Paramoti, município a 104
quilômetros de Fortaleza. Confesso fã de Luiz Gonzaga, ele repete no ato de autoafirmação e de afirmação
de sua própria atividade, por meio da e na própria música. Além disso, toca baião. Se não podemos afirmar
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que antes do baião urbano, fenômeno cultural de massas no século XX, o toque dos vendedores de cavaco
chinês e suas variações no território brasileiro continha as características musicais do baião – Gonzagão
inclusive reivindica a autoria da composição rítmica do gênero para o triângulo (DREYFUS, p. 152) – a
influência dessa música se faz presente no toque que hoje se escuta nas ruas da capital cearense.
Por meio da música, este quarto vendedor procura ainda sublimar o fato de se aproximar dos 70 anos de
idade vivendo uma rotina diária fustigante, em que se põe a manhã inteira ao lado de fornalhas e a tarde
toda a caminhar longos percursos. Mantém a expectativa de que alguma de suas canções seja gravada por
artistas famosos, ou que algum programa de televisão sorteie sua carta e lhe presenteie não apenas com um
trailer para vender cachorro-quente como já traga o gestor municipal com a autorização de instalar o
equipamento em uma praça.
Revela aí o desejo de abdicar finalmente do ir e vir para poder fixar trabalho num espaço público de grande
circulação, mas compreende que isso só seria possível com o aval do poder público, que há décadas intervém
para coibir a apropriação dessas áreas pelo comércio informal – em alguns momentos da história da cidade,
até mesmo violentamente.
Perm anec er soan do, em m ovim en to
Manter-se em movimento parece ser uma maneira encontrada pelo vendedor de chegadinho de continuar
trabalhando na cidade. Ele vai buscar público nas zonas residenciais em torno da área central ou mesmo em
zonas mais periféricas, distanciando um pouco de onde se acirram e se concentram os conflitos relativos à
fixação de comércio informal, sem precisar deixar de sê-lo. Além disso, potencializa o alcance e a recepção
de sua mensagem e a aceitação de seu produto articulando o som de um simples triângulo. Consegue a
proeza de se projetar do espaço público ao privado – um tabu – e ainda cativar os habitantes.
Digno de nota é a demonstração da população de Fortaleza, gradual nas últimas décadas, de um carinho ao
este fenômeno das ruas da capital. É frequente a associação feita entre ele e uma memória de infância – que
tanto pode remeter a uma cidade que pode não existir mais como também a um espírito lúdico que já não
regeria mais os dias do citadino, embora possa eventualmente se levantar, ainda que timidamente - quando
se ouve passar o vendedor de chegadinho, por exemplo. Esse personagem detona um processo de
reconhecimento e identificação não apenas entre os vendedores e a população, mas entre a população e a
ideia que ela própria constroi da cidade que habita, em dialogismo com outros produtores desse espaço.
É possível que as perambulações desse indivíduo seja o que Certeau (2009) descreveria como um
procedimento multiforme, resistente, astucioso e teimoso que escapa à disciplina sem ficar fora do campo
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onde é exercido. Neste sentido, a mobilidade e o som podem ser elementos centrais de uma tática de
apropriação do espaço público urbano – tática enquanto maneira de driblar os aparelhos produtores de um
espaço disciplinar.
Enquanto prática cotidiana – manipulações internas de um sistema (CERTEAU, 2009, p.80) – a passagem
dos vendedores de chegadinho produz a cidade. É cultura porque aqui a consideramos enquanto praticada;
cultura no sentido que “se julga pelas operações e não pela possessão dos produtos” (CERTEAU, GIARD,
MAYOL, p.339). Afinal, não é exatamente do chegadinho que falamos, mas do movimento desses
ambulantes em direção a outros indivíduos; com finalidades múltiplas, da mais imediata às impalpáveis; ao
longo de gerações, sendo transmitida e reprocessada. Como cultura ordinária, é um “fazer-com, aqui e
agora, que é um ato singular ligado a uma situação, circunstância e atores particulares” (CERTEAU,
GIARD, MAYOL, p.341).
Neste momento, está em investigação um “aqui” que é uma cidade específica e uma situação e uma
circunstância que são próprias desse lugar. Os atores, no entanto, parecem ser mais disseminados, como
vimos logo no início. Não há apenas vendedores de chegadinho, mas também vendedores de cavaco chinês,
de casquinha, de biju, de cascalho, de taboca. Assim como o estudo dos primeiros nos faz compreender
melhor Fortaleza, em suas dimensões mais diversas, debruçar-se sobre esse tipo de prática em outras cidades
brasileiras talvez pudesse esclarecer algumas questões sobre nossas metrópoles? O que esses fazeres diriam
sobre os lugares onde se processam? Seriam elas capazes de dizer algo também sobre o país? Estas são
perguntas que podem surgir, quando se sabe das semelhanças e diferenças que tais manifestações
aparentemente guardam umas em relação às outras.
Mas, para além das nossas fronteiras políticas, parece estarmos ligados também a outros povos, por meio da
observação desse fenômeno em nossas cidades contemporâneas. Na América Latina, esse fazer encontra
equivalência no dos vendedores de obleas ou de barquillos. Nos dias de hoje, é possível rapidamente até
observar, quase à guisa de comentário, que o vendedor de chegadinho cearense se assemelha mais com “el
vendedor de obleas” mexicano – que carrega triângulo e tambor reluzente – do que mesmo com o vendedor
de casquinha da região Sul brasileira, com sua matraca e cesto de madeira. Realinham-se as perguntas sobre
como essas práticas produzem seus lugares. Qualquer que sejam as possíveis respostas, elas certamente não
precisarão ser buscadas apenas nos registros de outrora, mas também naquilo que se opera num presente
vibrante em nossas ruas.
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Figu ra 3: À esquerda, vendedor de chegadinho em Fortaleza, no Brasil, em março de 2011 (imagem da pesquisadora). À direita, vendedor de obleas na cidade de Puebla, no México, em outubro de 2006 (imagem reproduzida com a gentil autorização da autora, Alicia Moya-Sanchez).
Figu ra 4: Localização dos eventos da Figura 3 no mapa da América.
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