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COLLEEN HOUCK

O RESGATE DO TIGRE

LIVRO DOIS

2012

Para meu marido, Brad -

prova de que de fato existem caras assim por aí.

O tear do tempo

Autor desconhecido

A vida do homem é urdida no tear do tempo

Em um padrão que ele nem mesmo vê,

Enquanto os tecelões trabalham e as lançadeiras

Voam até a aurora da eternidade.

Algumas lançadeiras sustentam fios de prata

Enquanto em outras deslizam fios de ouro,

Embora muitas vezes os matizes mais escuros

Sejam tudo o que se possa ver.

ARQUEIRO

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Mas os tecelões observam com olho hábil

Cada lançadeira correr de cá para lá,

E vêem o padrão surgir tão destramente

No movimento lento e certo do tear.

É Deus decerto quem planeja a trama:

Cada fio, o escuro e o claro,

É escolhido por Sua habilidade mestra

E colocado na urdidura com esmero.

Ele, que só lhes conhece a beleza,

Guia as lançadeiras em que passam

Tanto os fios menos atraentes

Como os do mais puro ouro.

Só quando cada tear houver silenciado

E a lançadeira deixar de deslizar,

Deus irá revelar a trama

E a cada um explicar o porquê

De os fios escuros serem necessários

Na hábil mão do tecelão

Tanto quanto os de ouro e prata

Para a trama que Ele planejou.

PRÓLOGO

De Volta para casa

Agarrei-me ao assento de couro e senti o coração disparar enquanto o

avião particular ganhava o céu, afastando-se da Índia. Tinha certeza de

que, se soltasse o cinto de segurança, atravessaria o piso e mergulharia

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numa queda livre em direção às selvas lá embaixo. Somente assim eu

me sentiria inteira novamente. Eu havia deixado meu coração na Índia

e podia sentir sua ausência em meu peito. Tudo o que restava de mim

era uma casca vazia, entorpecida e sem sentido.

A pior parte era que... eu tinha feito isso a mim mesma.

Como pude me apaixonar? E por alguém tão... complicado?

Os últimos meses tinham voado. Não sei como, de um trabalho no

circo, eu partira numa viagem para a Índia com um tigre - que vinha a

ser um príncipe indiano - e travara batalhas contra criaturas imortais,

tentando juntar os pedaços de uma profecia perdida. Agora minha

aventura havia chegado ao fim e eu estava sozinha.

Era difícil acreditar que apenas alguns minutos antes eu tinha dito

adeus ao Sr. Kadam. Ele não falara muita coisa. Havia se limitado a dar

tapinhas em minhas costas enquanto eu o abraçava com força, sem

querer soltá-lo. Por fim, o Sr. Kadam se libertara dos meus braços,

murmurara algumas palavras na tentativa de me tranqüilizar e me

entregara aos cuidados de sua tatatatatataraneta, Nilima.

Felizmente, no avião, Nilima me deixou sozinha. Eu não queria a

companhia de ninguém. Ela me serviu o almoço, mas eu não conseguia

nem pensar em comer. Sabia que estaria delicioso, porém tinha a

sensação de estar andando perto de areia movediça. A qualquer segundo

poderia ser sugada para um abismo de desespero. A última coisa que eu

queria era comer. Sentia-me desgastada e inútil, como o embrulho

amassado de um presente de Natal.

Nilima retirou a refeição e tentou me seduzir com minha bebida

favorita - água bem gelada com limão mas eu a deixei na mesa. Fiquei

olhando para o vidro sabe-se lá por quanto tempo, observando a água se

condensar no exterior do copo, formando gotículas que escorriam

lentamente e empoçavam em torno da base.

Tentei dormir, esquecer tudo por pelo menos algumas horas, mas

aquela tranqüilidade estava fora do meu alcance. Pensamentos sobre

meu tigre branco e a maldição secular que o aprisionava disparavam em

minha mente enquanto eu examinava o espaço ao redor. Eu fitava o

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assento do Sr. Kadam vazio à minha frente, olhava pela janela ou

observava uma luz piscando na parede. De vez em quando me voltava

para minha mão, traçando com o dedo o lugar onde o desenho de hena

feito por Phet já não era mais visível.

Nilima voltou trazendo um MP3 player com milhares de músicas.

Várias eram de artistas indianos, mas a maior parte era de americanos.

Rolei a tela em busca das canções de amor mais tristes, pus os fones nos

ouvidos e apertei o PLAY.

Abri o zíper da mochila para pegar a colcha de minha avó e só então

lembrei que havia embrulhado Fanindra com ela. Puxando as pontas da

colcha, espiei a cobra dourada, um presente da deusa Durga, e a

coloquei ao meu lado no braço da poltrona. A joia encantada estava

enrascada, descansando - ou pelo menos era o que eu supunha.

Esfregando-lhe a cabeça dourada e lisa, sussurrei:

- Você é tudo que eu tenho agora.

Estendendo a colcha sobre minhas pernas, recostei-me na poltrona

reclinada, olhei para o teto do avião e fiquei ouvindo uma canção

chamada "One Last Cry". Mantendo o volume baixo, coloquei Fanindra

no colo e acariciei os anéis reluzentes de seu corpo. O brilho verde dos

olhos preciosos da cobra iluminava suavemente a cabine do avião e me

consolava, enquanto a música preenchia o vazio em minha alma.

1

Estudos

Várias horas letárgicas mais tarde, o avião finalmente aterrissou no

aeroporto de Portland, no Oregon. Quando meus pés tocaram o asfalto

da pista, corri o olhar pelo terminal e pelo céu cinzento e nublado.

Fechei os olhos e deixei a brisa fria soprar minha pele. Ela trazia o

cheiro da mata. Um chuvisco suave molhou meus braços nus. Era bom

estar em casa.

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Respirando fundo, senti o Oregon me trazer de volta à realidade. Eu

fazia parte daquela terra e ela fazia parte de mim. Meu lugar era ali -

onde eu crescera e passara toda a minha vida. Minhas raízes estavam

ali. Meus pais e minha avó estavam enterrados ali. O Oregon me

recebeu como a uma filha amada, acolheu-me em seus braços frios,

acalmou minha mente e, por meio de seus pinheiros sussurrantes, me

prometeu paz.

Nilima desceu os degraus logo depois de mim e esperou em silêncio

enquanto eu absorvia o ambiente familiar. Ouvi o zumbido de um

motor veloz e um conversível azul-cobalto surgiu na esquina. O

elegante carro esportivo era da mesma cor dos olhos dele. O Sr. Kadam deve ter providenciado o carro. Revirei os olhos

lembrando seu gosto por coisas caras. Ele planejava cada mínimo

detalhe - e sempre com estilo. Pelo menos o carro é alugado, pensei.

Guardei minha bagagem no porta-malas e li na traseira: Porsche

Boxster RS 60 Spyder. Balancei a cabeça e murmurei:

- Meu Deus, Sr. Kadam, eu me contentaria em pegar o ônibus para

Salem.

- O quê? - perguntou Nilima, educadamente.

- Nada. Só estou feliz por chegar em casa.

Fechei o porta-malas e afundei no assento de couro em dois tons de azul

e um de cinza. Partimos em silêncio. Nilima sabia exatamente aonde

estava indo, portanto não me dei ao trabalho de lhe ensinar o caminho.

Apenas recostei a cabeça e fiquei observando o céu e a paisagem verde

pela janela.

Adolescentes passavam por nós, assoviando de seus carros, admirando a

beleza exótica de Nilima, com seus longos cabelos escuros voando ao

vento, ou o belo automóvel em que estávamos. Não sabia bem qual dos

dois inspirava os assovios, só imaginava que não eram para mim. Eu

usava minhas roupas de sempre: camiseta, calça jeans e tênis. Fios de

cabelo castanho-dourado se emaranhavam em minha trança e

açoitavam meus olhos castanho-avermelhados e meu rosto riscado pelas

lágrimas. Homens mais velhos também passavam por nós devagar. Eles

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não assoviavam, mas certamente admiravam a visão. Nilima os ignorava

e eu pensava: Devo estar tão horrível por fora quanto me sinto por dentro. Quando chegamos ao centro de Salem, passamos direto pela ponte

Marion Street, que teria nos levado ao outro lado do rio Willamette e à

rodovia 22, na direção das fazendas de Monmouth e Dallas. Avisei a

Nilima que ela havia perdido a saída, mas ela se limitou a dar de ombros

e dizer que estávamos tomando Um atalho.

- Tudo bem - retruquei com sarcasmo. - O que são mais alguns minutos

numa viagem de dias?

Nilima jogou seu lindo cabelo para trás, sorriu para mim e continuou

dirigindo, movendo-se em meio ao tráfego que seguia para South

Salem. Eu nunca tinha ido para aqueles lados. Era definitivamente o

caminho mais longo para Dallas.

Nilima seguiu em direção a um grande morro coberto pela mata.

Lentamente, subimos vários quilômetros pela linda estrada sinuosa e

margeada por árvores. Por entre elas, vi ruas de terra e casas que

pontilhavam a floresta aqui e ali, mas a área era em grande parte

intocada. Fiquei surpresa pelo fato de a cidade ainda não a ter anexado e

começado a construir ali. Era um lugar encantador.

Reduzindo a velocidade, Nilima tomou uma estrada particular, subindo

ainda mais a colina. Embora passássemos por caminhos secundários, eu

não via construções. No fim da estrada paramos diante de uma casa

geminada aninhada no meio da floresta de pinheiros.

Cada lado do prédio era a imagem espelhada do outro, com dois

andares, garagem e um pequeno pátio compartilhado. Ambos tinham

uma ampla janela na sacada que dava para as árvores. O revestimento

de madeira era pintado de castanho e um tom escuro de verde, e o

telhado era coberto com telhas verde-acinzentadas. Lembrava, de certa

forma, um chalé de esqui.

Nilima entrou suavemente na garagem e desligou o carro.

- Chegamos em casa - anunciou.

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- Em casa? Como assim? Não vamos para a casa dos meus pais adotivos?

- perguntei, ainda mais confusa do que já estava.

Nilima sorriu, compreensiva.

- Não. Esta é a sua casa - disse ela delicadamente.

- Minha casa? Do que você está falando? Eu moro em Dallas. Quem

mora aqui?

- Você. Venha, vamos entrar que eu explico.

Passamos por uma área de serviço e entramos na cozinha, que era

pequena, com cortinas amarelas, eletrodomésticos de aço inoxidável

novinhos em folha e paredes decoradas com motivos amarelo-limão.

Nilima pegou duas garrafas de refrigerante diet na geladeira.

Larguei minha mochila no chão e falei:

- Ok, Nilima, agora me diga o que está acontecendo.

Ela ignorou meu pedido. Em vez disso, me ofereceu o refrigerante, que

recusei, e então sugeriu que eu a seguisse.

Suspirando, tirei os tênis para não sujar o carpete felpudo da casa e a

acompanhei até a pequena porém charmosa sala de estar. Ali nos

sentamos num belo sofá de couro marrom. Uma estante alta, cheia de

clássicos encadernados com capa dura que provavelmente custavam

uma fortuna, me acenava convidativa do canto, enquanto uma janela

ensolarada e uma grande televisão de tela plana sobre um rack de

madeira polida também disputavam minha atenção.

Nilima começou a folhear os papéis deixados sobre a mesa de centro.

- Kelsey - começou ela -, esta casa é sua. É parte do pagamento pelo seu

trabalho neste verão na Índia.

- Eu não estava trabalhando, Nilima.

- O que você fez foi o trabalho mais vital de todos. Você realizou muito

mais do que qualquer um de nós sequer tinha esperança de conseguir.

Temos uma grande dívida para com você e essa é uma pequena forma

de recompensar seus esforços. Você superou obstáculos terríveis e quase

perdeu a vida. Somos todos muito gratos.

Constrangida, brinquei:

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- Bem, agora que você colocou a coisa dessa maneira... Ei, espere! Você

disse que esta casa é parte do meu pagamento? Então tem mais?

Com um gesto afirmativo da cabeça, Nilima respondeu:

- Tem.

- Não. Eu não posso aceitar este presente. Uma casa já é um exagero... E

ainda tem outras coisas? E bem mais do que combinamos. Eu só queria

algum dinheiro para pagar os livros da faculdade. Ele não devia fazer

isso.

- Kelsey, ele insistiu.

- Bem, então vai ter que desinsistir. Isso é um exagero, Nilima. É sério.

Ela suspirou ao olhar para o meu rosto, que exibia uma determinação

férrea.

- Ele quer que você fique com a casa, Kelsey. Isso vai deixá-lo feliz.

- Mas não é nada prático! Estou no meio do nada. Agora que voltei para

casa, pretendo me matricular na faculdade e não há linhas de ônibus

que passem por aqui.

Nilima me dirigiu um olhar perplexo.

- Linhas de ônibus?! Se quiser mesmo ir de ônibus, poderá dirigir até o

terminal.

- Dirigir até o terminal? Isso não faz o menor sentido.

- Bem, o que você está falando é que não faz o menor sentido. Por que

você não quer ir de carro para a faculdade?

- De carro? Que carro?

- O que está na garagem, é claro.

- O que está na... Ah, não. Você só pode estar brincando!

- Não. Não estou brincando. O Porsche é seu.

- Ah, não. Não é, não! Você sabe quanto custa aquele carro? De jeito

nenhum!

Peguei meu celular e procurei o número do Sr. Kadam. No instante em

que ia pressionar o botão de chamada, ocorreu-me um pensamento que

me deteve imediatamente.

- Tem mais alguma coisa que eu deva saber?

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- Bom... - disse Nilima, hesitante. - Ele também tomou a liberdade de

matricular você na Western Oregon University. O curso e o material

didático já foram pagos. Seus livros estão na bancada, ao lado de sua

lista de disciplinas, um moletom da Western Oregon e um mapa do

campus.

- Ele me matriculou na Western Oregon? - perguntei, incrédula. - Eu

estava planejando ir para a faculdade comunitária local e trabalhar...

não entrar para a Western Oregon.

- Ele deve ter achado que você iria preferir uma universidade maior.

Suas aulas começam na próxima semana. Quanto a trabalhar, você

pode, se quiser, mas não será necessário. Ele também abriu uma conta

bancária para você. O cartão está na bancada. Não se esqueça de assiná-

lo no verso.

Engoli em seco.

- E... hã... exatamente quanto dinheiro tem nessa conta?

Nilima deu de ombros.

- Não faço a menor idéia, mas tenho certeza de que é o suficiente para

seus gastos pessoais. Naturalmente, nenhuma das suas contas de

consumo será enviada para cá. Tudo irá direto para um contador. A casa

e o carro já estão quitados, assim como todas as suas despesas na

universidade.

Ela deslizou um maço de papéis em minha direção e então se recostou e

bebericou seu refrigerante.

Por um minuto fiquei sentada ali, imóvel, e então me lembrei de minha

decisão de ligar para o Sr. Kadam. Peguei o telefone e procurei o

número.

Nilima me interrompeu.

- Tem certeza de que quer devolver tudo, Kelsey? Estou certa de que ele

faz questão de que você fique com essas coisas.

- O Sr. Kadam deveria saber que não preciso de sua caridade. Vou

explicar que a faculdade comunitária é mais do que adequada e que

realmente não me importo de morar no dormitório e andar de ônibus.

Nilima se inclinou para a frente.

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- Mas, Kelsey, não foi o Sr. Kadam quem providenciou tudo isso.

- O quê? Se não foi o Sr. Kadam, então quem... Ah! - Desliguei o celular

imediatamente. Não havia a menor chance de eu ligar para ele, qualquer que fosse o motivo. - Então ele faz questão disso, não é?

As sobrancelhas arqueadas de Nilima se juntaram, expressando sua

confusão.

- É, eu diria que sim.

Deixá-lo havia quase dilacerado meu coração. Ele estava a mais de 11 mil quilômetros de distância, na Índia, e ainda assim arranjava um jeito de ter algum poder sobre mim. - Muito bem - resmunguei. - Ele sempre consegue o que quer mesmo.

Não tem sentido eu tentar devolver. Ele vai pensar em algum outro

presente exorbitante, que só vai servir para complicar ainda mais nosso

relacionamento.

Um carro buzinou lá fora, na entrada.

- Minha carona de volta ao aeroporto chegou - disse Nilima,

levantando-se. - Ah! Eu quase esqueci. Isto aqui também é para você. -

Ela pôs um celular novo na minha mão, ao mesmo tempo em que

pegava o aparelho velho, e me abraçou rapidamente antes de se dirigir à

porta da frente.

- Mas... espere! Nilima!

- Não se preocupe, Kelsey. Vai dar tudo certo. Os documentos de que

precisa para a universidade estão na bancada da cozinha. Tem comida

na geladeira e todos os seus pertences estão no segundo andar. Pode

pegar o carro e visitar sua família adotiva ainda hoje, se quiser. Eles

estão esperando seu telefonema.

Ela se virou, caminhou graciosamente para a porta e entrou no carro

que a aguardava. Do banco do carona, acenou. Acenei de volta,

tristonha, e fiquei olhando até o elegante sedã preto desaparecer de

vista. De repente, eu estava só numa casa estranha, cercada pela mata

silenciosa.

Após a partida de Nilima, resolvi explorar o lugar que eu agora

chamaria de lar. Ao abrir a geladeira, vi que as prateleiras estavam bem

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abastecidas. Peguei um refrigerante e fui espiar o interior dos armários.

Encontrei copos e pratos, assim como talheres, utensílios de cozinha e

panelas. Voltei para conferir a gaveta de baixo da geladeira, seguindo

um palpite, e lá estavam eles - vários limões. Evidentemente, isso tinha

sido coisa do Sr. Kadam. Atencioso, ele sabia que beber água com limão

me confortaria.

O toque do Sr. Kadam não terminava na cozinha. O lavabo no primeiro

andar era decorado em tons de verde-acinzentado e amarelo-limão. Até

o sabonete líquido tinha aroma de limão.

Coloquei meus tênis numa cesta de vime sobre o piso de cerâmica da

área de serviço, ao lado de um conjunto novo de máquina de lavar e

secadora, e segui para o pequeno escritório.

Meu velho computador encontrava-se no meio da mesa, mas ao seu

lado havia um notebook novinho em folha. Uma cadeira de couro, um

arquivo e uma prateleira com papel e outros suprimentos completavam

o escritório.

Peguei a mochila e subi a escada para ver meu novo quarto. Uma linda

cama queen size com um grosso edredom cor de marfim e almofadas

com estampa de pêssegos ficava junto à parede, tendo aos pés um antigo

baú de madeira. Poltronas aconchegantes cor de pêssego estavam

arrumadas no canto, de frente para uma janela que dava para a floresta.

Sobre a cama, havia um bilhete que me deixou mais animada:

Oi, Kelsey! Seja bem-vinda! Ligue para nós assim que possível — queremos saber

tudo da viagem. Todas as suas coisas estão guardadas nos devidos lugares. Adoramos sua casa nova! Com amor, Mike e Sarak

Ler o bilhete de Mike e Sarah - além do fato de estar no Oregon - me

reequilibrou. A vida deles era normal. Minha vida com eles era normal

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e seria bom estar com uma família normal e agir como um ser humano

normal, para variar. Dormir no chão da selva, falar com deusas

indianas, me apaixonar por um... tigre - nada disso era normal. Nem de

longe.

Abri o closet e vi que de fato minhas roupas e a coleção de fitas de

cabelo tinham sido trazidas da casa de Mike e Sarah. Corri os dedos por

alguns daqueles itens que eu não via fazia meses. Quando abri o outro

lado do closet encontrei todas as roupas que haviam sido compradas

para mim na Índia, assim como várias peças novas ainda em suas capas

de proteção.

Como o Sr. Kadam conseguiu fazer essas coisas chegarem aqui antes de mim? Eu deixei tudo isso na Índia! Fechei a porta, encerrando as roupas e as lembranças, determinada a

não abri-la outra vez.

Seguindo para a cômoda, puxei a gaveta do alto. Sarah havia arrumado

minhas meias do jeito que eu gostava. Os pares de meias pretas, brancas

e de cores variadas estavam enrolados em bolas perfeitas, organizadas

em fileiras. Ao abrir a gaveta seguinte, o sorriso desapareceu do meu

rosto. Ali estava o pijama de seda que eu, de propósito, deixara na Índia.

Meu peito ardeu quando passei a mão pelo tecido macio. Então,

resoluta, fechei a gaveta. Virando-me para deixar o quarto claro e

arejado, me toquei de uma coisa e na mesma hora o sangue afluiu

rapidamente para o meu rosto. As cores do quarto eram pêssego e

creme.

Deve ter sido escolha dele, deduzi. Uma vez ele disse que eu cheirava a pêssego com creme. Era de se imaginar que acharia uma forma de me fazer lembrar dele, mesmo a um oceano de distância. Como se eu pudesse esquecer... Joguei a mochila na cama e imediatamente me arrependi, lembrando

que Fanindra ainda estava dentro dela. Depois de tirá-la com cuidado e

me desculpar, acariciei-lhe a cabeça dourada e a coloquei sobre uma

almofada. Peguei o celular novo no bolso da calça. Como tudo mais, o

aparelho era caro e totalmente desnecessário, com design da grife

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Prada. Liguei o telefone e esperei que o número dele aparecesse

primeiro, mas isso não aconteceu. Tampouco havia mensagens. Na

verdade, os únicos números na memória eram o do Sr. Kadam e o dos

meus pais adotivos.

Vários sentimentos tomaram conta de mim. A princípio fiquei aliviada.

Depois, confusa. E em seguida, desapontada. Uma parte de mim

ponderou: Um telefonema teria sido gentil. Só para ver se cheguei bem. Irritada comigo mesma, liguei para meus pais adotivos. Disse a eles que

estava em casa, cansada da viagem, e que iria jantar com eles na noite

seguinte. Ao desligar, fiz uma careta, me perguntando que tipo de

surpresa à base de tofu estaria à minha espera. Mas qualquer que fosse o

cardápio natural e saudável, valeria a pena suportá-lo pela oportunidade

de revê-los.

Então desci a escada, liguei o som, preparei um lanche com fatias de

maçã e manteiga de amendoim, e comecei a folhear os papéis da

universidade que estavam na bancada. O Sr. Kadam escolhera estudos

internacionais como minha principal área de interesse, incluindo

também história da arte.

Examinei o quadro de horários. Eu não sabia como, mas o Sr. Kadam

conseguira colocar a mim, uma caloura, em turmas de nível mais

avançado. Não só isso, como também já me inscrevera tanto no

primeiro quanto no segundo trimestre, embora a matrícula do segundo

ainda não estivesse aberta.

A Western Oregon provavelmente recebeu uma polpuda doação vinda da Índia, pensei, com um sorriso irônico. Não me surpreenderia se visse um novo prédio ser erguido no campus este ano. KELSEY HAYES, MATRÍCULA: 69428LT

WESTERN OREGON UNIVERSITY

PRIMEIRO TRIMESTRE

Redação acadêmica 115 (4 créditos). Introdução à redação de trabalhos

acadêmicos.

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Latim 101 (4 créditos). Introdução ao latim.

Antropologia 476 D - Religião e ritual (4 créditos). Um estudo das

práticas religiosas no mundo. Apoia-se na antropologia para analisar a

religiosidade enquanto enfoca tópicos particulares, entre os quais:

possessão espiritual, misticismo, bruxaria, animismo, feitiçaria,

veneração ancestral e magia. Examina a mistura das principais religiões

do mundo com crenças e tradições locais.

Geografia 315-0 subcontinente indiano (4 créditos). Uma análise do

Sudeste Asiático e sua geografia, com ênfase na Índia. Avalia a relação

econômica entre a índia e outras nações; examina padrões, problemas e

desafios especificamente relacionados à geografia; e explora, do ponto

de vista histórico e moderno, a diversidade étnica, religiosa e lingüística

de seu povo.

SEGUNDO TRIMESTRE

História da arte 204 - Da Pré-história ao período românico (4 créditos).

Um estudo de todas as formas de arte desse período com ênfase

específica na relevância histórica e cultural.

História 470 - A mulher na sociedade indiana (4 créditos). Uma análise

da mulher na Índia, seus sistemas de crenças, seu papel cultural na

sociedade e a mitologia - passada e presente - associada.

Redação acadêmica I1135 (4 créditos). Redação avançada de

documentos acadêmicos baseados em pesquisas.

Ciência política 203 D - Relações internacionais (3 créditos). Uma

comparação de questões globais e políticas de grupos mundiais com

interesses semelhantes e/ou contrários.

Era oficial. Agora eu era uma universitária. Bem, universitária e encarregada de quebrar antigas maldições indianas em meio expediente, pensei, lembrando-me de que o Sr. Kadam continuava com

suas pesquisas. Ia ser difícil me concentrar nas aulas, nos professores e

nos trabalhos depois de tudo o que havia acontecido na Índia. Era

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estranho saber que eu deveria voltar à minha antiga vida no Oregon. De

certa forma, eu parecia não mais me ajustar a ela.

Para minha sorte, as aulas na Western Oregon seriam interessantes, em

especial as de religião e magia. O Sr. Kadam tinha escolhido disciplinas

que provavelmente eu mesma iria escolher - exceto latim. Franzi o

nariz. Nunca fui muito boa em línguas. Pena que a universidade não

oferecia nenhum curso de algum idioma indiano. Seria bom aprender

híndi, principalmente se eu voltar à Índia algum dia e me dedicar às

outras três tarefas indicadas na profecia de Durga para quebrar a

maldição do tigre. Talvez...

Nesse instante, o rádio começou a tocar "I Told You So", de Carrie

Underwood. Ouvir aquela letra me fez chorar. Enxugando uma lágrima,

pensei que ele provavelmente encontraria outra pessoa muito em breve.

Eu não me aceitaria de volta se estivesse em seu lugar. Pensar nele,

mesmo por um minuto, era doloroso demais. Calei minhas lembranças,

guardando-as numa minúscula fenda no meu coração. Então as cobri

com um monte de pensamentos novos. Pensei na universidade, em

minha família adotiva e no fato de estar de volta ao Oregon.

Vou ter que me manter ocupada, decidi. Esta será a minha salvação. Vou estudar feito louca, visitar os conhecidos e... e ficar com outros caras. Isso! É o que vou fazer. Vou sair com outras pessoas e me manter ativa, assim estarei cansada demais para pensar nele. A vida vai seguir em frente. Tem que seguir. Quando fui para a cama já era tarde e eu estava exausta. Fiz um carinho

em Fanindra, deslizei para debaixo dos lençóis e dormi.

No dia seguinte meu celular novo tocou. Era o Sr. Kadam, que parecia

ao mesmo tempo animado e decepcionado.

- Olá, Srta. Kelsey - disse ele, alegremente. - Fico muito feliz em saber

que chegou em casa em segurança. Está tudo em ordem e a seu

contento?

- Eu não esperava nada disso - repliquei. - Acho que não mereço tanto.

Me sinto mal...

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- Nem pense nisso. Foi um prazer providenciar tudo para você.

Vencida pela curiosidade, perguntei:

- Como está indo com a profecia? O senhor já a desvendou?

- Estou tentando traduzir o restante do monólito que vocês

encontraram. Mandei alguém até o templo de Durga para fotografar as

outras colunas. Parece que cada uma delas representa um dos quatro

elementos: terra, ar, água e fogo.

- Faz sentido - comentei, lembrando-me da profecia de Durga. - A

coluna original que encontramos devia estar relacionada à terra, pois

mostrava lavradores fazendo oferendas de frutas e grãos. Além disso,

Kishkindha era subterrânea e o primeiro objeto que Durga nos pediu

que encontrássemos foi o Fruto Dourado.

- Exato, mas acabamos descobrindo que existiu uma quinta coluna que

foi destruída há muito tempo. Ela representava o elemento espaço, o

que é comum na fé hindu.

- Bem, se existe alguém capaz de decifrar o que virá em seguida, esse

alguém é o senhor. Obrigada por ligar para saber de mim - acrescentei.

Antes de desligar, prometemos voltar a nos falar em breve.

Peguei meus livros novos, estudei por cinco horas e depois fui até uma

loja de brinquedos comprar tigres de pelúcia laranja com listras pretas

para Rebecca e Sammy, já que eu tinha me esquecido completamente

de trazer alguma coisa da índia para eles. Agindo contra o bom senso,

também acabei comprando um tigre de pelúcia branco, grande e caro.

De volta à casa, abracei o tigre e enterrei meu rosto em seu pelo. Era

macio, mas o cheiro não combinava. O cheiro dele era maravilhoso, um

misto de sândalo e cachoeira. O bicho de pelúcia era apenas uma

réplica. Suas listras eram diferentes e os olhos eram vítreos - de um azul

fosco, sem vida. Os olhos dele eram de um azul-cobalto vivo.

O que há de errado comigo? Eu não devia ter comprado isso. Assim vai ficar ainda mais difícil esquecê-lo. Deixando de lado as emoções, separei umas roupas e me arrumei para

visitar minha família adotiva.

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Ao atravessar a cidade, peguei o caminho mais longo a fim de evitar o

local em que o circo fora montado e trazer à tona mais lembranças

dolorosas. Quando parei na frente da casa de Mike e Sarah, a porta se

escancarou. Mike veio em minha direção... mas não pôde resistir a dar

uma olhada mais de perto no Porsche e passou correndo por mim em

direção ao carro.

- Kelsey! Posso? - perguntou ele, timidamente.

- Divirta-se - respondi, rindo.

O mesmo Mike de sempre, pensei e joguei-lhe as chaves para que ele

desse umas voltas.

Sarah passou o braço por minha cintura e me conduziu para dentro de

casa.

- Estamos tão felizes em ver você! Nós dois estamos! - gritou ela,

franzindo a testa para Mike, que acenou alegremente antes de sair de ré

da garagem. - Ficamos preocupados depois da sua partida para a Índia

porque você não telefonava muito, mas o Sr. Kadam ligava

regularmente explicando o que você estava fazendo e como andava

ocupada.

- Ah, é? E o que ele dizia exatamente? - perguntei, curiosa para saber a

história que ele tinha inventado.

- Ele falou sobre seu novo emprego e que a partir de agora você vai para

lá nas férias de verão ajudá-lo em vários projetos. Eu não tinha a menor

idéia de que você se interessava por estudos internacionais. Essa é uma

área maravilhosa. Muito fascinante. Ele também disse que, quando você

se formar, poderá trabalhar na empresa dele. É uma oportunidade

fantástica!

Sorri para ela.

- É, o Sr. Kadam é ótimo. Eu não poderia querer um chefe melhor. Ele

me trata mais como neta do que como funcionária, e me mima demais.

Você viu a casa e o carro, e ainda tem a universidade...

- Ele falava de você com muito carinho ao telefone. Até admitiu que

acabou se tornando dependente de você. É um homem muito

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simpático. Também declarou que você é... como foi mesmo que ele

disse... "um investimento que trará uma grande recompensa no futuro".

Lancei um olhar inseguro a Sarah.

- Espero que ele esteja certo quanto a isso.

Ela riu e em seguida ficou séria.

- Nós sabemos que você é especial, Kelsey, e que merece coisas

maravilhosas. Talvez esta seja a forma de o Universo compensar a perda

dos seus pais. Embora eu saiba que nada irá substituí-los.

Fiz um gesto afirmativo com a cabeça. Ela estava feliz por mim. E saber

que eu estaria respaldada financeiramente para viver com conforto por

conta própria devia ser um grande alívio para minha família.

Sarah me abraçou e tirou do forno um prato que exalava um cheiro

estranho. Ela o colocou em cima da mesa e disse:

- Agora vamos comer!

Fingindo entusiasmo, perguntei:

- Então... o que temos para o jantar?

- Lasanha integral orgânica de espinafre com tofu e semente de linhaça.

- Hum, mal posso esperar - falei, forçando um meio sorriso.

Pensei com carinho no mágico Fruto Dourado que eu tinha deixado na

Índia - o objeto divino que podia fazer a comida mais deliciosa aparecer

instantaneamente. Com ele nas mãos de Sarah, talvez até uma refeição

saudável ficasse gostosa. Provei a lasanha com o dedo. Pensando bem... Samuel, de 4 anos, e Rebecca, de 6, entraram correndo na cozinha,

saltitando e querendo chamar minha atenção. Abracei os dois e os levei

para a mesa. Então fui até a janela para ver se Mike já tinha voltado. Ele

havia acabado de estacionar o Porsche e vinha andando de costas na

direção da porta, olhando para o carro.

- Mike, hora do jantar - gritei da janela.

Ele respondeu por sobre o ombro, sem tirar os olhos do carro:

- Claro, claro. Já vou.

Sentei-me entre as crianças, servi um pouco de lasanha para cada uma e

peguei uma fatia minúscula para mim. Sarah ergueu a sobrancelha e

justifiquei minha pequena porção dizendo que comera muito no

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almoço. Mike enfim entrou e começou a tagarelar animadamente sobre

o Porsche. Então perguntou se poderia pegar o carro emprestado para

sair com Sarah numa sexta à noite.

- Claro. Eu posso vir e tomar conta das crianças.

Ele sorriu, radiante, enquanto Sarah revirava os olhos.

- Com quem você está planejando sair? Comigo ou com o carro? -

perguntou.

- Com você, é claro, minha querida. O carro é só uma vitrine para a

linda mulher sentada ao meu lado.

Sarah e eu nos entreolhamos, reprimindo o riso.

- Boa, Mike - zombei.

Depois do jantar fomos para a sala e dei os tigres de pelúcia laranja às

crianças. Elas soltaram gritinhos de alegria e se puseram a correr ao

nosso redor, rugindo uma para a outra. Sarah e Mike me fizeram todo

tipo de pergunta sobre a Índia e eu falei sobre as ruínas de Hampi e a

casa do Sr. Kadam. Tecnicamente, a casa não era dele, mas eles não

precisavam saber disso. Então me perguntaram sobre como estava indo

a adaptação do tigre do circo do Sr. Maurizio ao novo lar.

Fiquei paralisada por um instante, mas em seguida disse que ele estava

indo bem e que parecia muito feliz lá. Por sorte, o Sr. Kadam havia

explicado que ficávamos fora com freqüência, explorando ruínas

indianas e catalogando artefatos. Ele dissera que eu trabalhava como sua

assistente, mantendo o registro de suas descobertas e fazendo anotações,

o que não estava muito longe da verdade. Isso também explicava por

que eu escolhera incluir história da arte em meus estudos.

Estar com eles era divertido, mas também me esgotava, pois eu

precisava tomar cuidado para não me distrair e deixar escapar algo

estranho demais. Eles nunca acreditariam em todas as coisas que

haviam me acontecido. Às vezes eu mesma tinha dificuldade em

acreditar.

Sabendo que dormiam cedo, peguei minhas coisas e me despedi. Dei um

abraço em cada um e prometi que voltaria na semana seguinte.

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Quando cheguei em casa passei algumas horas estudando e então tomei

um banho quente. Enfiando-me na cama no quarto escuro, arquejei

quando minha mão esbarrou em pelo. Então me lembrei da minha

compra, empurrei o tigre de pelúcia para os pés da cama e enfiei a mão

entre o rosto e o travesseiro.

Eu não conseguia parar de pensar nele. Perguntava-me o que estaria

fazendo naquele momento e se pensava em mim ou sentia minha falta.

Estaria andando pela selva úmida e abafada? Lutando com Kishan? Eu

voltaria à Índia algum dia? Aliás, será que era isso mesmo que eu

queria?

Todas as vezes que eu empurrava um pensamento para o fundo da

mente, outro surgia no lugar. Eu não conseguia vencê-los; eles

continuavam pipocando, vindos do meu subconsciente. Suspirando,

estendi o braço, agarrei a perna do tigre de pelúcia e puxei-o de volta.

Abraçando-o, enterrei o nariz em seu pelo e adormeci com a cabeça em

suas patas.

2

Wushu

Os dias que se seguiram passaram depressa e sem acontecimentos

memoráveis, até que começaram as aulas na universidade. Fiquei

sabendo dos trabalhos que teria que fazer para cada disciplina e percebi

que minhas experiências na Índia viriam a calhar. Poderia escrever

sobre Hampi em minha pesquisa sobre uma metrópole indiana, discutir

a importância da flor de lótus como símbolo religioso em antropologia e

escolher como tema de meu trabalho final de religião algum aspecto de

Durga. A única matéria que parecia excessivamente desafiadora era

latim.

Não demorou para que eu estabelecesse uma rotina confortável.

Visitava Sarah e Mike com freqüência, assistia às aulas e falava com o

Sr. Kadam toda sexta-feira. Na primeira semana ele me ajudou com um

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relatório que comparava os veículos utilitários e o indiano Nano, e,

graças a seu vasto conhecimento sobre carros e minha descrição realista

do que é dirigir na Índia, tirei a melhor nota da turma. Minha mente

estava tão entretida com as tarefas acadêmicas que me sobrava pouco

tempo para me preocupar com qualquer outra coisa - ou pensar em

qualquer outra pessoa.

Numa dessas sextas-feiras o telefonema do Sr. Kadam me trouxe uma

surpresa interessante. Depois de conversar sobre a universidade e meu

último trabalho sobre os padrões climáticos no Himalaia, ele abordou

um assunto novo.

- Eu a matriculei em outra aula - começou ele. - Acho que vai lhe

agradar, mas consumirá mais do seu tempo. Se estiver ocupada demais,

eu vou entender.

- Na verdade, uma aula a mais provavelmente seria uma boa idéia -

repliquei, curiosa em saber o que ele havia planejado para mim.

- Maravilhoso! Você vai aprender wushu em Salem - explicou o Sr.

Kadam. - As aulas são às segundas, quartas e sextas, de seis e meia às

oito da noite.

- Wushu? O que é isso? Alguma língua indiana? - perguntei, torcendo

para que não fosse.

O Sr. Kadam riu.

- Ah, como eu sinto falta de ter a senhorita por perto. Não, wushu é um

tipo de arte marcial chinesa. Uma vez me disse que tinha vontade de

aprender artes marciais, correto?

Deixei escapar um suspiro de alívio.

- É, parece divertido. Posso incluí-lo em minha agenda. Quando as aulas

começam?

- Na próxima segunda. Prevendo que iria concordar, mandei um pacote

para a sua casa com o material necessário. Deve chegar amanhã.

- Sr. Kadam, não precisa fazer tudo isso por mim. O senhor tem que

parar de me encher de presentes ou eu nunca poderei quitar essa dívida.

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- Srta. Kelsey, não há nada que eu possa fazer que chegue sequer perto

de pagar o que lhe devo. Por favor, aceite essas coisinhas. Isso alegra

muito o coração de um velho.

Eu ri.

- Está bem, Sr. Kadam. Não precisa ser tão dramático. Vou aceitar, se

isso o deixa feliz. Mas o martelo ainda não foi batido em relação ao

carro.

- Vamos cuidar disso depois. Aliás, decifrei uma pequena parte da

segunda coluna. Talvez tenha algo a ver com o ar, mas ainda é cedo

demais para tirar qualquer conclusão. Essa é uma das razões por que eu

gostaria que você aprendesse wushu. Vai ajudá-la a desenvolver um

melhor equilíbrio da mente e do corpo, o que pode ser proveitoso se sua

próxima aventura se passar acima do chão.

- Com certeza eu não me importo de aprender a lutar e me defender

também. O wushu teria sido útil contra os kappa - brinquei. - As

traduções estão difíceis?

- Estão muito... desafiadoras. Os marcos geográficos que traduzi não se

encontram em território indiano. Estou preocupado com a possibilidade

de os outros três objetos que procuramos estarem em qualquer outro

lugar do mundo. É isso ou meu cérebro está muito cansado.

- O senhor virou a noite outra vez? Precisa dormir. Faça um chá de

camomila e vá descansar um pouco.

- Talvez tenha razão. Acho que vou tomar um chá enquanto leio algo

leve sobre o Himalaia para o seu trabalho.

- Mas não deixe de descansar. Sinto saudade do senhor.

- Eu também, Srta. Kelsey. Até logo.

- Tchau.

Pela primeira vez desde que voltara para casa, senti uma onda de

adrenalina percorrer o meu corpo. Mas assim que desliguei o telefone a

depressão se instalou outra vez. Eu esperava ansiosa por nossos

telefonemas semanais e sempre me entristecia quando chegavam ao

fim. Era o mesmo sentimento que eu experimentava depois do Natal. A

expectativa do feriado crescia durante todo o mês. Então, quando os

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presentes eram abertos, a ceia era saboreada e as pessoas partiam, cada

uma seguindo o seu caminho, eu ficava com uma melancólica sensação

de perda.

Lá no fundo eu sabia que a verdadeira razão da minha tristeza era

porque só havia um presente que eu queria de verdade: que ele ligasse.

No entanto, isso não acontecia. E cada semana que se passava sem que

eu ouvisse sua voz destruía minhas esperanças. Eu tinha deixado a Índia

para que ele pudesse começar a vida com outra pessoa, então deveria

me sentir feliz por ele. Eu me sentia, de certa forma, mas ao mesmo

tempo estava arrasada por mim mesma.

Experimentava aquela melancolia de quando as férias chegam ao fim e é

hora de voltar à escola. Ele fora meu maior presente, meu milagre

particular, e eu estraguei tudo. Abri mão dele. Era como ganhar um

convite para o camarim do seu maior ídolo e doá-lo para a caridade.

Não fazia o menor sentido.

No sábado meu misterioso pacote de artes marciais chegou. Era grande

e pesado. Eu o empurrei até a sala e peguei a tesoura no escritório para

cortar a fita adesiva da embalagem. Dentro encontrei calças de ginástica

e camisetas pretas e vermelhas, todas exibindo a logomarca do Estúdio

de Artes Marciais Shing, que mostrava um homem desferindo um soco

no rosto e outro lançando o pé na direção do abdome de seu oponente.

Também encontrei dois pares de sapatos e um conjunto de casaco e

calça de cetim vermelho. O casaco tinha botões pretos na frente e uma

faixa também preta. Eu não tinha a menor idéia de quando ou como eu

precisaria usar isso, mas achei bonito.

O que tornava a caixa pesada era a variedade de armas que encontrei

dentro dela. Havia um par de espadas, alguns ganchos, correntes, um

bastão de três seções e vários outros objetos que eu nunca tinha visto.

Se o Sr. Kadam está tentando me transformar numa guerreira ninja, vai ficar muito decepcionado, pensei, lembrando-me de que ficara

paralisada durante o ataque da pantera. Será que vou mesmo precisar dessas habilidades? Acho que viriam a calhar se eu voltasse à Índia e tivesse que lutar com o que surgisse em nosso caminho na busca do

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segundo presente de Durga. Essa idéia fez o cabelo em minha nuca

arrepiar. Na segunda-feira cheguei cedo à aula de latim, e minha rotina feliz

esbarrou num obstáculo quando Artie, o assistente do laboratório de

idiomas, aproximou-se de minha carteira. Ele parou muito perto de

mim. Perto demais. Ergui os olhos para ele, na esperança de que a

conversa fosse rápida e ele saísse de meu espaço pessoal.

Artie era o único cara que eu conhecia com coragem suficiente para

usar um pulôver de lã com gravata-borboleta. O triste era que o pulôver

era pequeno demais. Ele tinha que ficar puxando-o para baixo, tentando

cobrir a barriga saliente. Parecia o tipo de sujeito que combinava com

uma faculdade antiga e bolorenta.

- Oi, Artie. Tudo bem? - perguntei, impaciente.

Ele empurrou os óculos de lentes grossas nariz acima com o dedo médio

e abriu sua agenda. Foi direto ao ponto.

- Ei, você está livre na quarta às cinco?

Ele pairava sobre mim com o lápis no ar e o queixo duplo sobressaindo.

Os olhos castanhos e lacrimosos cravaram-se nos meus enquanto ele

aguardava, esperançoso, minha resposta.

- Hã... claro, eu acho. O professor quer falar comigo?

Artie estava ocupado escrevendo na agenda, mudando algumas coisas

de lugar e apagando outras. Ele ignorou minha pergunta. Então, fechou

a agenda, enfiou-a debaixo do braço e puxou o colete marrom até a

fivela do cinto. Tentei não reparar quando o tecido foi subindo

novamente.

Ele me dirigiu um sorriso débil.

- Não, não. Essa é a hora em que vou buscá-la para o nosso encontro.

Sem dizer outra palavra, Artie deu a volta em minha carteira e se

dirigiu para a porta.

Será que ouvi bem? O que acabou de acontecer aqui? - Artie, espere. O que foi que você disse?

A aula estava começando e o colete dobrou a esquina e se foi. Deixei-

me afundar na cadeira, repassando, confusa, nossa conversa enigmática.

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Talvez ele não esteja se referindo a um encontro de verdade, pensei. Talvez sua definição de encontro seja diferente da minha. Deve ser isso. Mas é melhor conferir para ter certeza. Tentei encontrar Artie no laboratório o dia todo sem sucesso. O

esclarecimento sobre o encontro teria que esperar.

Naquela noite eu faria minha primeira aula de wushu. Vesti a calça

preta, uma camiseta e as sapatilhas brancas. Deixei a capota do

conversível abaixada enquanto atravessava a floresta em direção a

Salem. Todo o meu corpo relaxou à medida que a brisa fresca do início

da noite me envolvia. O sol, que se punha naquele instante, pintava as

nuvens de púrpura, rosa e laranja.

O estúdio de artes marciais era grande e ocupava metade do prédio.

Andei até o fundo da sala. Uma área ampla estava cercada por espelhos

e grandes tatames azuis cobriam o chão. Já havia outras cinco pessoas lá.

Três rapazes e uma garota em boa forma física estavam se aquecendo a

um canto. Alongando-se no chão, em outro canto, estava uma mulher

de meia-idade que me fez lembrar a minha mãe. Ela sorriu para mim e

pude ver que estava um pouco assustada, mas também tinha um brilho

determinado nos olhos. Sentei-me ao seu lado e inclinei o tronco sobre

as pernas esticadas.

- Oi. Prazer. Eu sou Kelsey.

- Jennifer. - Ela soprou a franja, tirando o cabelo do rosto. - Muito

prazer.

O professor entrou no estúdio acompanhado por um rapaz. O instrutor

de cabelos brancos parecia velho, mas muito ágil e forte. Com sotaque

carregado, ele se apresentou como Chu... alguma coisa, mas disse que

devíamos chamá-lo de Chuck. O jovem que o acompanhava era seu

neto, Li, uma versão jovem do avô. Seu cabelo era preto e bem curto,

ele era alto e tinha o corpo musculoso, além de um sorriso bonito.

Chuck iniciou a aula com uma breve explicação:

- Wushu é uma arte marcial chinesa. Já ouviram falar dos monges shaolin? Eles praticam wushu. O nome do meu estúdio é Shing, que

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significa "vitória". Vocês todos terão a chance de experimentar a vitória

quando dominarem o wushu. Conhecem o termo "kung fu"?

Todos assentimos.

- Kung fu significa "habilidade". O kung fu não é um estilo de arte

marcial. O termo só quer dizer que você tem habilidade. Essa

habilidade pode ser cavalgar ou nadar. O wushu é um estilo. O wushu

são chutes, alongamento, ginástica e armas. Sabem de alguém famoso

que usa o wushu?

Ninguém respondeu.

- Jet Li, Bruce Lee e Jackie Chan, todos usam wushu. Primeiro vou lhes

ensinar as saudações. E assim que vocês cumprimentam o professor

todas as aulas. Eu digo: "Ni hao ma?" e vocês respondem: "Wo hen hao." Isso significa "Como vai você?" e "Eu vou bem".

- Ni hao ma? Respondemos hesitantes:

- Wo... hen... hao. Chuck sorriu para nós.

- Muito bom, turma! Agora vamos começar com um pouco de

alongamento.

Ele nos orientou no alongamento de panturrilhas e braços e então pediu

que nos sentássemos no chão e esticássemos as mãos até os dedos dos

pés. Disse que queria que nos alongássemos várias vezes por dia para

aumentarmos nossa flexibilidade. Então nos fez abrir espacate. Quatro

dos meus colegas de turma estavam indo bem, mas eu me sentia mal por

Jennifer. Ela já estava ofegante só com o alongamento e fazia um grande

esforço para conseguir realizar os espacates.

Chuck sorria para todos nós, inclusive para sua aluna com dificuldades,

encorajando-a. Em seguida pediu ao sobrinho que se pusesse diante da

turma, a fim de demonstrar a primeira postura em que queria que

trabalhássemos. Era chamada de postura do cavalo. Dali passamos para a

postura do arco e flecha, que torturou os músculos das minhas

panturrilhas, e a postura do gato. A postura de esquiva era a mais difícil.

Os pés ficam paralelos, mas o corpo tem que tombar estranhamente

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para o lado. A última que aprendemos foi a postura do descanso (ou da

fênix), que na realidade era bem cansativa.

Durante o restante da aula praticamos as cinco diferentes posturas. Li

me ajudou com o posicionamento dos pés e ficou algum tempo

demonstrando a postura de esquiva, mas ainda assim eu não conseguia

fazê-la corretamente. Ele foi muito simpático, sorrindo para mim

muitas vezes.

Jennifer estava com o rosto vermelho, mas parecia feliz quando a aula

terminou. O tempo tinha voado. Era bom me exercitar e eu já

aguardava ansiosa a aula seguinte - que seria na mesma noite de meu

encontro com Artie.

Procurei Artie no laboratório de idiomas três vezes na terça-feira para

esclarecer as coisas e, se tivesse sorte, cancelar o encontro. Quando por

fim consegui falar com ele, Artie fez um estardalhaço em torno do

adiamento de nosso encontro e seguiu virando as páginas de sua agenda

até esgotarem-se as minhas desculpas. Comecei a me sentir culpada e

concluí que não iria me matar sair com ele uma única vez. Ainda que

eu não tivesse qualquer interesse romântico por Artie, ele poderia se

tornar um amigo. Assim, aceitei o convite mais para o fim do mês.

As semanas seguintes transcorreram sem incidentes, mas logo me vi em

outra situação incomum. Meu parceiro na aula de antropologia, Jason,

me chamou para assistir a um jogo de futebol americano que

comemorava o retorno dos atletas da universidade.

O convite me pegou de surpresa. Então caiu a ficha e percebi que eu

não notara as várias pistas que ele vinha me dando. Minha mente estava

tão voltada para os trabalhos acadêmicos que eu presumira que ele

também só estivesse interessado nisso.

Jason parecia um cara legal, mas não chegava nem aos pés do homem

que eu deixara para trás na Índia. Fiz rapidamente uma lista mental das

qualidades de cada um deles, e o lado de Jason ficou muito menor. Eu

sabia que não era justo comparar os dois. Ninguém poderia competir

com ele. Jason não fazia com que eu me sentisse empolgada ou

amedrontada, feliz ou nervosa. Meu coração não disparava de

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ansiedade. Eu não sabia nem dizer se tínhamos alguma química.

Simplesmente me sentia entorpecida.

Preciso esquecê-lo. Tenho que seguir em frente e tentar namorar alguém, disse a mim mesma. Mordi o lábio. Ele provavelmente acabou com minhas chances de ser feliz com outra pessoa. Como eu poderia gostar de outros homens quando não podiam sequer se comparar a ele? Irritada com meu raciocínio circular, disse a Jason que adoraria ir com

ele ao jogo. Ele pareceu empolgado, mas temi que o garoto confundisse

meu entusiasmo em esquecer o passado com algum interesse por ele.

Naquela noite, na aula de wushu, aprendemos chutes. Eram de vários

tipos: o chute frontal, o lateral, o circular para dentro e o para fora, e o

chute com o calcanhar acompanhado de um movimento com a palma

da mão. Meu favorito foi o de ponta de pé com o punho fechado. Ele

me fez sentir finalmente que eu poderia bater em alguma coisa.

Praticamos chutes a aula toda até Chuck começar a nomear ao acaso os

diferentes tipos de chute para ver com que rapidez podíamos nos

lembrar deles. Durante a última parte da aula formamos duplas e eu

trabalhei com Jennifer. Li me pediu que demonstrasse os saltos e me

ajudou a posicionar os braços corretamente, orientando-me com a

postura antes de prosseguir. Logo depois anunciou o fim da aula.

Agradeci a ele e pratiquei mais um pouco sozinha.

- Li gosta de você - sussurrou Jennifer em tom conspiratório quando

acabei. - Não sei se ele vai ter coragem de fazer alguma coisa a respeito,

mas está na cara. Ele fica observando você o tempo todo. O que acha

dele?

- Não sinto nada por ele. É um cara legal, mas nunca pensei nele dessa

maneira.

- Ah. Tem outro na jogada.

Franzi a testa.

- Não. Não mais.

- Ah, querida, você não pode simplesmente deixar a vida passar

enquanto protege um coração partido. É preciso se arriscar e tentar de

novo. A vida é curta demais para vivermos sem amor.

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Eu sabia que ela tinha um casamento feliz de 15 anos. Seu marido era

um homem doce, de cabelos já rareando e que obviamente a adorava.

Todas as noites depois da aula ele lhe dizia que ela estava linda e que

estava emagrecendo tanto que já não podia vê-la de lado. Então lhe

beijava os cabelos castanhos encaracolados úmidos e abria a porta do

carro para ela. Se alguém pudesse ser considerado um especialista em

amor, esse alguém era Jennifer.

Pensei no que ela havia acabado de dizer. Sabia que estava certa. Mas como se faz para mudar o coração?

Jennifer sorriu, solidária, recolheu suas coisas e apertou meu ombro.

- Até a semana que vem, Kelsey.

Acenei enquanto se afastavam e fiquei olhando para a rua escura e vazia

por alguns minutos, perdida em pensamentos. Quando me virei para

pegar minhas coisas, percebi que todos já tinham ido embora. Li estava

parado à porta da frente, esperando pacientemente que eu saísse para

trancar o estúdio.

- Desculpe, Li. Acho que perdi a noção do tempo.

- Sem problema - disse ele, sorrindo.

Apanhei minha toalha, a chave do carro e a garrafa de água e me

encaminhei para a porta.

Assim que entrei no carro, Li me chamou:

- Ei, Kelsey. Espere.

Ele correu até a minha janela, enquanto eu baixava o vidro.

- Eu queria convidar você para jogar. Um grupo de amigos meus vai se

encontrar no Halloween para jogar Colonizadores de Catan. E um jogo

de tabuleiro em que você deve construir seu império. Vai ter comida

boa! Minha avó adora cozinhar. Você quer ir? Posso ensiná-la como se

joga.

- Humm.

Eu não tinha planos para o Halloween. Sabia que nenhuma criança iria

até a minha casa porque ficava muito longe da estrada. Passar na casa de

Mike e Sarah tampouco parecia uma boa opção. Todas as crianças da

vizinhança evitavam ir até lá porque eles davam doces sem açúcar e

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faziam um discurso para os pais sobre os males do excesso de

guloseimas.

Li ainda estava ali esperando uma resposta, então falei:

- Claro. Parece divertido!

Ele sorriu.

- Beleza! Até mais!

Fui para casa me sentindo estranha. Quando entrei, joguei a bolsa no

sofá e peguei uma garrafa de água na geladeira. Subi a escada, abri a

porta da varanda do meu quarto e me sentei numa poltrona. Inclinando

a cabeça para trás, fiquei olhando as estrelas.

Três encontros. Eu tinha três encontros em duas semanas - e não estava

ansiosa por nenhum deles. Definitivamente havia algo errado comigo.

3

Encontros

ENCONTRO 1

Eu não podia acreditar que o dia do meu encontro com Artie tinha

chegado tão rápido. Fui de carro até o campus, estacionei e fiquei

sentada, enrolando. Eu não queria sair com Artie. Nem um pouco. Sua

persistência tinha me vencido e eu suspeitava de que não era a primeira

vez que ele usava aquela tática.

Resignada a me encontrar com ele naquela noite, me dirigi ao

laboratório de idiomas. Artie estava lá, olhando para o relógio, com um

pacote marrom embaixo do braço. Caminhei até ele e enfiei as mãos nos

bolsos da calça.

- Oi, Kelsey. Vamos. Estamos atrasados - disse ele, seguindo

bruscamente para o corredor. - Ainda tenho que enviar um pacote pelo

correio para uma velha amiga. Ele não era apenas gordo. Era alto e dava passadas bem maiores que as

minhas. Eu precisava quase correr para acompanhá-lo. Artie atravessou

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o estacionamento, chegou à calçada e pôs-se a andar na direção da

cidade.

- Não seria melhor irmos no seu carro? - perguntei. - O correio fica a

quase três quilômetros daqui.

- Ah, não. Não tenho carro. São caros demais.

Ainda bem que vim de tênis, pensei. Artie andava em silêncio e com passos rígidos. Concluí que

provavelmente era tarefa minha fazer a conversa fluir.

- Então... para quem é esse pacote?

- É para a minha ex-namorada da escola. Ela freqüenta outra faculdade e

eu gosto de manter contato. Ela sai com muita gente, assim como eu -

gabou-se Artie. - Você precisa ver minha agenda. Tenho encontros

marcados para daqui a anos.

Foi a caminhada mais longa da minha vida. Tentei me imaginar

andando na selva indiana, mas estava frio demais. O céu estava escuro e

nublado, soprava um vento forte. Não era um clima adequado para uma

caminhada. Eu tremia - mesmo de casaco - e passei o tempo ouvindo

parcialmente o que Artie falava e admirando as casas decoradas para o

Halloween.

Finalmente chegamos ao correio e Artie despachou seu pacote.

Estávamos na Main Street e eu vi à nossa volta os vários restaurantes

minúsculos localizados ali. Perguntei-me em qual deles jantaríamos.

Estava faminta. Tinha me esquecido de almoçar de tão absorta nos

estudos. O cheiro de comida chinesa que vinha de um lugar ali perto

era de dar água na boca.

Quando Artie saiu à rua, eu estava gelada. Bati as palmas das mãos e

esfreguei uma na outra para aquecê-las. Se soubesse que ficaríamos

tanto tempo na rua, teria calçado luvas. Artie tinha um par de luvas de

couro no bolso, mas ele mesmo as usou.

Meu cérebro, sempre ávido por punição, insistia que ele teria me dado

suas luvas. Droga, ele teria tirado a camisa e me dado se achasse que eu

poderia precisar dela.

- E agora? Para onde vamos? - perguntei.

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Meus olhos dispararam, esperançosos, na direção do restaurante chinês.

- De volta ao campus. Tenho uma surpresa guardada para você.

Tentei colar um sorriso de entusiasmo no rosto.

- Que... ótimo.

No longo trajeto de volta ao campus Artie foi falando de si mesmo.

Falou sobre sua infância e a família. Descreveu todos os prêmios que

ganhou e mencionou que foi presidente de cinco clubes, inclusive o de

xadrez. Não fez uma só pergunta sobre mim. Eu ficaria surpresa se ele

soubesse meu sobrenome.

Minha mente divagou para uma conversa com um homem muito

diferente.

Ouvi sua voz cálida e hipnótica com muita clareza. De repente eu me

encontrava debaixo de uma árvore. A árvore sob a qual eu dissera

adeus. A árvore sob a qual eu olhara pela última vez seus olhos azul-

cobalto. O vento frio e cortante do Oregon desapareceu e eu senti a

balsâmica brisa do verão indiano soprar suavemente meus cabelos. A

noite cinza e nublada não existia mais e eu olhava as estrelas cintilantes

no céu noturno. Ele tocou o meu rosto e falou.

"Kelsey, o fato é que... estou apaixonado por você... já faz algum tempo. Não quero que você vá embora. Por favor. Por favor. Por favor. Diga que vai ficar comigo." Ele era tão lindo, como um anjo guerreiro enviado do céu. Como pude

lhe negar alguma coisa, especialmente quando eu era tudo o que ele

queria?

"Quero lhe dar uma coisa. É uma tornozeleira. São muito populares aqui e escolhi esta para que nunca mais tenhamos que procurar um sino." Meu tornozelo formigou quando me lembrei de seus dedos roçando-o.

"Kells, por favor. Preciso de você." Como eu pude deixá-lo? Minha mente voltou bruscamente ao presente e lutei para conter as

intensas emoções que vinham à tona quando eu me permitia pensar nele. Enquanto Artie discorria de forma monótona sobre como vencera

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o campeonato de debates, eu me repreendia por permitir que meus

pensamentos me levassem a um lugar tão perigoso. A verdade era que,

mesmo que eu estivesse tendo dúvidas sobre minha decisão de partir, ele não havia telefonado. Isso provava que eu tinha tomado a decisão

certa, não provava? Se ele me amasse tanto quanto dizia, teria tentado

entrar em contato comigo. Teria me procurado. Teria vindo ao meu

encontro. Ele precisava de espaço. Eu estava certa ao deixá-lo. Talvez

agora eu pudesse começar a me curar e esquecê-lo.

Obriguei-me a voltar a atenção para Artie e me esforcei de verdade para

ouvir sua conversa. Não havia a menor possibilidade de Artie ser o cara

certo para mim - nem para qualquer garota, aliás -, mas isso não

significava que eu estivesse sem opções. Eu ainda tinha um encontro

com Jason no dia seguinte e outro com Li na próxima semana.

Quando Artie e eu chegamos de volta ao campus, meu estômago

roncava tão alto que podia ser ouvido a três quarteirões de distância. Eu

esperava seriamente que fôssemos logo comer na lanchonete da

universidade.

Ele me levou para o centro de mídia da Biblioteca Hamersly, pediu dois

fones de ouvido e entregou um papel à mulher que nos atendia. Então

empurrou duas cadeiras de madeira diante de um minúsculo aparelho

de TV em preto e branco que estava num canto.

- Não é uma ótima idéia? Podemos assistir a um filme e eu não preciso

gastar nem um centavo! - Ele sorriu enquanto meu queixo caía. - Muito

inteligente, você não acha?

Apertei os lábios.

- Ah, é, muito inteligente.

Calei-me rapidamente depois disso, engolindo um comentário

sarcástico. Será que ele achava que as garotas gostavam de ser tratadas

dessa forma? Não que um encontro tivesse que envolver coisas caras ou

que fosse mesmo necessário gastar dinheiro. O que me aborrecia era

que Artie era presunçoso em relação a tudo e não achava que suas

acompanhantes fossem importantes o bastante para escutá-las. Eu

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estava indignada e com fome. Quando o filme começou, ele deslizou o

fone cinzento gigantesco sobre os ouvidos e apontou para o meu.

Limpei a poeira do dispositivo com a blusa, pluguei o fio e coloquei com

força os fones em cima dos ouvidos, irritadíssima por ficar ali sentada

por mais duas horas. Os créditos iniciais de A lenda dos beijos perdidos disparavam na tela e eu enviava mensagens mentais para que Gene

Kelly dançasse mais rápido.

Passada uma hora de filme, Artie fez um movimento. Ele ainda olhava

diretamente para a tela minúscula quando colocou o pesado braço nas

costas da minha cadeira.

Olhei-o pelo canto do olho. Ele tinha um sorriso afetado no rosto.

Imaginei que estivesse mentalmente ticando uma lista de tarefas em sua

agenda.

Seduzir a garota falando de outras namoradas

Impressioná-la com o número de prêmios que você recebeu

Não gastar dinheiro no encontro

Fazer a garota assistir a um fiime cafona no centro de mídia

Fazer comentários sobre a própria parcimônia

Pôr o braço no ombro da garota na marca exata da metade do filme

Inclinei-me para a frente e fiquei numa posição desconfortável, na

ponta da cadeira, durante toda a segunda metade do filme. Com a

desculpa de que precisava ir ao banheiro, fiquei de pé. Ele fez o mesmo

e foi até a mulher no balcão. Quando passava por eles, eu o ouvi

pedindo que ela parasse o filme e o rebobinasse um pouquinho para que

lembrássemos onde havíamos parado.

Sensacional! Isso soma mais cinco minutos a essa experiência maravilhosa! Eu me apressei, temendo que ele pudesse cismar de

reiniciar o filme. Pensei na possibilidade de sair do prédio correndo

feito louca, mas de onde estávamos sentados ele podia ver a porta do

banheiro e isso seria uma grosseria. Eu estava determinada a sofrer

ainda durante a última parte do filme e depois voar para casa.

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Finalmente, finalmente, o filme terminou e eu me levantei de um salto,

como se o alarme de incêndio tivesse acabado de ser acionado.

- Muito bem, Artie. Foi legal. Meu carro está estacionado aqui fora,

então até segunda. Obrigada pelo filme.

Infelizmente ele não entendeu a deixa e fez questão de me acompanhar

até o carro. Abri a porta e mais que depressa me enfiei atrás dela.

Ele pôs a mão na porta do carro e inclinou o corpo volumoso na minha

direção. Sua gravata-borboleta estava a poucos centímetros do meu

nariz. Ele forjou um sorriso artificial e desajeitado.

- Bem, eu me diverti muito e quero sair de novo com você na próxima

semana - disse ele. - Que tal na sexta?

Melhor cortar isto logo pela raiz. - Não posso. Já tenho outro encontro marcado.

Artie insistiu, sem se intimidar.

- Ah. - Ele nem sequer piscou. - E sábado?

Vasculhei meu cérebro freneticamente em busca de uma saída.

- Hã... Eu não trouxe minha agenda, então não sei o que já tenho

marcado.

Ele assentiu, como se isso fizesse todo sentido.

- Olhe, estou com uma dor de cabeça terrível, Artie. Vejo você no

laboratório semana que vem, está bem?

- Claro. Ligo para você mais tarde.

Entrei rapidamente no carro e fechei a porta. Sorrindo, pois sabia que

nunca tinha lhe dado o número do meu telefone, atravessei as ruas

silenciosas de Monmouth e subi a colina até a tranqüilidade de minha

casa.

ENCONTRO 2

No encontro seguinte eu estava mais bem preparada para o clima. Usava

minha blusa de moletom vermelho da Western Oregon e também

levara um casaco mais grosso, uma echarpe de caxemira vermelha e

luvas que encontrara numa gaveta. Normalmente eu teria evitado

qualquer coisa que ele tivesse comprado para mim, mas não tinha

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tempo para comprar luvas novas e, mesmo que tivesse, estaria usando o

dinheiro dele de qualquer forma.

Encontrei Jason no estacionamento do estádio e imediatamente

comecei a catalogar suas qualidades. Ele era bonito, um pouquinho mais

magro e mais baixo que a média, mas não se vestia mal e era inteligente.

Encostado em seu velho Corolla, ergueu as sobrancelhas, surpreso,

quando me viu saltar do Porsche.

- Uau, Kelsey! Que carrão!

- Obrigada.

- Vamos?

- Vamos. Me mostre o caminho.

Então nos misturamos à multidão que seguia para o campo de futebol.

A maioria usava camisas vermelhas ou da Western Oregon, mas havia

também as cores branco e azul-marinho do adversário, a Western

Washington University, espalhadas aqui e ali. Dois chapéus vikings se

destacavam no meio da multidão. Jason me levou até uma caminhonete

cercada por casais fazendo um churrasco na caçamba. Uma pequena

grelha estava cheia de salsichas e hambúrgueres fumegantes.

- Ei, pessoal! Quero apresentar Kelsey a vocês. Nos conhecemos na aula

de antropologia.

Vários rostos esticaram-se atrás dos vizinhos, tentando me ver. Acenei

timidamente para eles.

- Oi.

Ouvi alguns "Oi, tudo bem?" e "Muito prazer", e então eles voltaram a

suas conversas, esquecendo que estávamos ali.

Jason encheu um prato para mim e então abriu um cooler.

- Quer uma cerveja, Kelsey?

Sacudi a cabeça.

- Refrigerante, por favor. Diet, se tiver.

Ele me entregou um bem gelado, pegou uma cerveja para si mesmo e

apontou para duas cadeiras dobráveis vazias.

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Assim que se sentou, ele enfiou metade do cachorro-quente na boca,

mastigando ruidosamente. Era quase tão ruim quanto ver um tigre

comer - apenas um pouco menos sangrento.

Argh. O que há de errado comigo? Será que estou intencionalmente procurando coisas que me aborreçam? Eu preciso mesmo relaxar ou Jennifer terá razão: vou desperdiçar minha vida. Desviei os olhos e

comecei a beliscar minha comida. - Então você não é de beber, não é, Kelsey?

- É, acho que não. Para começar, não tenho idade suficiente. E o álcool

perdeu toda a graça para mim quando meus pais foram mortos há

alguns anos por um motorista embriagado.

- Ah. Foi mal.

Ele fez uma careta e tirou a cerveja do meu campo de visão,

escondendo-a embaixo da cadeira.

Droga. O que estou fazendo? Imediatamente me desculpei.

- Está tudo bem, Jason. Lamento ter sido tão deprimente. Prometo que

vou ser muito mais animada no jogo.

- Sem problema. Nem pense mais nisso.

Ele voltou a engolir a comida e a rir com os amigos.

O problema foi que eu continuei a pensar naquelas coisas. Sabia que a

morte dos meus pais não era algo que eu normalmente mencionaria

num primeiro encontro, mas... Eu sabia que ele teria reagido de forma

bem diferente. Talvez porque fosse mais velho, mais de 300 anos mais

velho. Ou porque não fosse americano. Talvez porque também tivesse

perdido os pais. Ou porque fosse simplesmente... perfeito.

Tentei pôr fim a esses pensamentos, mas não pude evitá-los. Voltei ao

dia em que acordei de um pesadelo envolvendo a morte dos meus pais e

ele estava lá para me consolar. Eu ainda podia sentir sua mão

enxugando minhas lágrimas enquanto ele me botava no colo.

"Shh, Kelsey. Eu estou aqui. Não vou deixá-la, priya. Quietinha agora. Mein aapka raksha karunga. Não vou deixar nada acontecer com você, priyatama." Ele havia acariciado meus cabelos e sussurrado palavras

tranquilizadoras até eu sentir o sonho desaparecer.

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Desde então eu tivera tempo de procurar o significado das palavras que

não havia entendido na Índia. Estou com você. Vou cuidar de você. Minha amada. Minha querida. Se ele estivesse aqui comigo, teria me

puxado para um abraço ou para o seu colo e teria compartilhado da

minha tristeza. Teria afagado as minhas costas e compreendido meus

sentimentos.

Eu me sacudi. Não, não teria. Podia ter feito isso antes, mas agora ele havia mudado. Ele já era e o que teria feito ou como teria reagido não tem mais importância. Acabou. Jason estava enchendo outro prato e eu tentei parecer interessada e me

envolver na conversa. Meia hora depois todos nos levantamos e nos

dirigimos para o campo de futebol.

Era bom ficar ao ar livre no clima fresco do outono, mas os bancos

estavam frios e meu nariz, congelado. O frio não parecia incomodar

Jason e os amigos. Eles ficavam em pé e torciam muito. Tentei fazer o

mesmo, mas não sabia por que estava aplaudindo: o jogo estava muito

distante para que eu sequer enxergasse a bola. Eu nunca me interessara

muito por futebol americano. Preferia de longe filmes e livros.

Olhei para o painel do placar. O primeiro tempo estava se esgotando.

Dois minutos. Um minuto. Vinte segundos. Ufa! O timer soou e as duas

equipes deixaram o campo correndo. O desfile de boas-vindas teve

início e vários carros antigos percorreram o perímetro externo do

campo. Garotas bonitas vestidas com chiffon e seda empoleiravam-se

no encosto dos bancos traseiros, acenando para a multidão.

Jason se juntou aos outros caras que davam assovios estridentes,

expressando admiração. O aroma de sândalo subiu pela arquibancada e

uma voz aveludada sussurrou em meu ouvido: "Você é mais bonita do que qualquer uma daquelas mulheres." Virei bruscamente a cabeça, mas ele não estava atrás de mim. Jason

ainda se encontrava de pé, gritando junto aos amigos. Deixei-me cair no

banco. Ótimo. Agora estou tendo alucinações. Pressionei os nós dos

dedos contra a cabeça na esperança de que a pressão o empurrasse de

volta aos recônditos da minha mente.

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Quando o segundo tempo do jogo começou, parei de tentar fingir

entusiasmo. Esse era o segundo encontro que me transformava em

picolé. Meu corpo foi lentamente se congelando no banco e comecei a

bater o queixo. Depois do jogo, Jason me acompanhou até o carro e pôs

o braço desajeitadamente em meu ombro, massageando-o para tentar

me aquecer, mas ele fez muita força e deixou meu ombro dolorido. Eu

nem me dei ao trabalho de perguntar quem havia ganhado.

- Adorei conhecer você melhor esta noite, Kelsey.

Será que ele tinha mesmo me conhecido melhor? - É, também achei legal.

- Então posso ligar para você outro dia?

Ponderei por um instante. Jason não era um cara ruim; era apenas um

cara. Primeiros encontros costumavam mesmo ser constrangedores,

então decidi lhe dar outra chance.

- Claro. Você sabe onde me encontrar.

Dirigi-lhe um sorriso morno.

- Certo. Vejo você na aula segunda-feira. Tchau.

- Tchau.

Ele voltou para seu grupo de amigos barulhentos e eu me perguntei se

tínhamos alguma coisa em comum.

ENCONTRO 3

Antes de que eu me desse conta, chegou o Halloween - e, com ele, o

encontro com Li.

Havia alguma coisa nele que fazia com que eu me sentisse muito à

vontade. Ele era mais divertido que Jason e, a contragosto, admiti que

era muito

possível que eu me sentisse mais relaxada na presença de Li porque ele

me lembrava um pouco o homem que eu estava tentando esquecer.

Relutante, puxei a porta do closet que jurei nunca abrir e encontrei

uma blusa de mangas compridas laranja-escuro, enfeitada com botões

de madeira e uma faixa na cintura. Para combinar, calça jeans escura

com lycra. Ambas me serviram perfeitamente, como se tivessem sido

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feitas sob medida. Um par de botas escuras encontrava-se no fundo do

armário e, após calçá-las, dei uma voltinha na frente do espelho. A

roupa fazia com que eu parecesse alta, chique e... estilosa, o que não era

o meu normal.

Deixei o cabelo solto, os cachos cascateando pelas costas, para mudar

um pouco. Passei um brilho alaranjado nos lábios e segui para o estúdio,

tomando o cuidado de dirigir mais devagar do que de hábito para evitar

alguma criança desatenta correndo atrás de doces.

Li estava em seu carro ouvindo música e balançando a cabeça para cima

e para baixo. Assim que me avistou, imediatamente desligou o rádio e

saltou do carro.

Ele sorriu.

- Uau, Kelsey! Você está linda!

Eu ria fácil com ele.

- Obrigada, Li. É muita gentileza sua. Se estiver pronto, posso seguir

você até a casa de sua avó.

Voltei para o meu carro, mas Li passou correndo por mim e abriu a

porta.

- Puxa, quase que eu não consigo! - Ele sorriu para mim outra vez. -

Meu avô me ensinou a sempre abrir a porta para as damas.

- Nossa, você é um perfeito cavalheiro.

Ele inclinou a cabeça ligeiramente, riu e então voltou para seu carro.

Dirigiu devagar também, verificando com freqüência no retrovisor se

eu o acompanhava nos cruzamentos. Seguimos até um bairro mais

antigo, muito agradável.

- Meus avós moram nesta casa - explicou Li quando entramos. - As

noites de jogos são sempre aqui porque a mesa é maior. Além disso,

minha avó cozinha muito bem.

Li pegou minha mão e me conduziu para uma cozinha muito bonita

com um cheiro mais gostoso que qualquer restaurante chinês em que eu

já estivera. Uma mulher pequenina de cabelos brancos espiava dentro

de uma panela de arroz. Quando ergueu a cabeça, as lentes dos óculos

estavam embaçadas.

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- Kelsey, esta é Vó Zhi. Vó Zhi, huó Kelsey.

Ela sorriu, assentiu com a cabeça e segurou meus dedos nos dela.

- Olá. Muito prazer.

Retribuí o sorriso.

- Prazer em conhecê-la também.

Li enfiou o dedo numa panela borbulhante e sua avó pegou uma colher

de madeira e bateu com ela levemente em sua mão. Então o repreendeu

em mandarim.

Ele riu enquanto ela estalava a língua afetuosamente.

- Até mais tarde, vó.

Eu a flagrei sorrindo orgulhosa para ele quando deixávamos a cozinha.

Segui Li até a sala de jantar. Toda a mobília havia sido afastada para o

lado a fim de abrir espaço para a grande mesa. Em torno dela

encontrava-se um grupo de garotos asiáticos que discutiam

acaloradamente a colocação das peças no tabuleiro do jogo. Li me levou

até o grupo.

- Ei, pessoal. Esta é Kelsey. Ela vai jogar com a gente esta noite.

Um garoto ergueu as sobrancelhas.

- Muito bem, Li!

- Agora dá para entender por que ele demorou tanto.

- Está com sorte. Wen trouxe o kit de expansão.

Houve vários outros murmúrios e cadeiras foram arrastadas. Pensei ter

ouvido um comentário abafado sobre trazer uma garota para o grupo,

mas não sabia dizer quem teria falado. Depois de alguns instantes, todos

se acomodaram para começar o jogo.

Li sentou-se ao meu lado e me explicou as regras do jogo. De início eu

nunca sabia se era uma decisão sábia trocar trigo por tijolo ou minério

por ovelhas, então podia pedir ajuda a ele. Depois de algumas rodadas,

comecei a me sentir confiante o bastante para jogar por conta própria.

Troquei duas de minhas aldeias por cidades e todos os garotos deram

um gemido.

Perto do fim do jogo, estava óbvio que o desfecho seria uma disputa

entre mim e um garoto chamado Shen. Ele se gabou, de leve, sobre

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como estava perto da vitória e que eu não tinha chance. Entreguei uma

ovelha, um minério e um trigo e comprei uma carta de

desenvolvimento. Era um bônus, o último do jogo.

- Ganhei!

Os garotos resmungaram, disseram que foi sorte de principiante e

fizeram um estardalhaço, ameaçando recontar todos os meus pontos só

para ter certeza de que minha conta estava certa. Fiquei surpresa ao

saber que haviam se passado horas. Meu estômago roncou.

Li se levantou e se espreguiçou.

- Hora de comer.

A avó dele havia montado um delicioso bufê para nós. Os garotos

fizeram uma montanha em seus pratos com arroz frito, bolinhos de

legumes e de carne, tempura de legumes e verduras e miniaturas de

rolinhos primavera de camarão. Li pegou refrigerante para nós dois e

nos acomodamos na sala de estar.

Ele prendeu seus bolinhos de carne de porco habilmente com os hashis

e disse:

- Então me fale sobre você, Kelsey. Alguma coisa além do wushu. O que

você fez nas férias?

- Ah, isso. Eu, hã... trabalhei na Índia como estagiária.

- Uau! Isso é incrível! O que você fazia?

- Na maior parte do tempo catalogava e registrava ruínas, obras de arte e

coisas históricas. E você? O que fez nas férias?

Voltei a pergunta para ele, ansiosa para desviar o foco da conversa.

- Basicamente trabalhei para o meu avô no estúdio. Estou tentando

economizar para a faculdade de medicina. Eu me formei em biologia na

Universidade de Portland.

Fiz os cálculos rapidamente, e as contas não pareciam fechar.

- Quantos anos você tem, Li?

Ele sorriu.

- Vinte e dois. Adiantei muitas disciplinas e também fiz cursos de verão.

Na verdade todos os jogadores aqui são universitários. Meii está

estudando química, Shen, engenharia da computação, Wen acabou de

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se formar e está fazendo mestrado em análise estatística e eu quero

fazer medicina.

- Vocês realmente... sabem o que querem.

- E você? Está estudando o quê, Kelsey?

- Estudos internacionais e história da arte. Nesse momento estou

focando a índia - respondi, jogando outro bolinho na boca. - Mas talvez

eu devesse mudar para wushu para me livrar de todas essas calorias.

Li riu e pegou meu prato. Voltamos para a sala de jogos e eu parei para

olhar a foto de Li e do avô, Chuck. Cada um segurava três troféus.

- Caramba. O estúdio ganhou todos esses?

Li espiou a foto e enrubesceu.

- Não, são todos meus. Participei de um torneio de artes marciais.

Ergui as sobrancelhas, surpresa.

- Eu não sabia que você era assim tão bom. Isso é um feito e tanto.

- Tenho certeza de que meus avós vão lhe falar sobre isso - disse Li, me

levando de volta à cozinha. - Não tem nada que eles gostem mais de

fazer do que falar dos méritos de seus descendentes. Certo, Vó Zhi?

Li deu-lhe um beijo no rosto e ela agitou as mãos para enxotá-lo de sua

lava-louças.

Os rapazes haviam definido um novo jogo que era muito mais fácil de

aprender. Eu perdi, mas foi muito divertido. Quando o jogo chegou ao

fim, já passava da meia-noite. Li me acompanhou até o carro na noite

fria e estrelada.

- Valeu por ter vindo, Kelsey. Eu me diverti muito com você. Acha que

ia gostar de repetir a dose? A gente se reúne a cada 15 dias.

- Claro. Parece divertido. E já que eu ganhei no primeiro jogo você vai

pegar mais leve comigo na aula de wushu? - provoquei.

- Nada disso. Quando você ganha, eu pego ainda mais pesado.

Eu ri.

- Então me lembre de perder da próxima vez. E o que acontece quando

você ganha?

Ele sorriu.

- Hum... vou pensar.

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Ele recuou e ficou parado sob a luz da entrada da casa, observando

enquanto eu me afastava.

Fui para a cama me arrastando de cansaço, pensando que, com o passar

do tempo, eu poderia aprender a gostar de Li. Ele era divertido e gente

boa. Eu não sentia nada por ele que não fosse amizade, mas talvez isso

pudesse mudar no futuro. A vida normal estava começando a parecer...

normal outra vez. Virei-me de lado, me enrolei na colcha da minha avó

e acidentalmente derrubei meu tigre branco da cama.

Por alguns instantes considerei a possibilidade de deixá-lo no chão ou

colocá-lo no armário. Fiquei deitada imóvel, olhando o teto, tentando

reunir forças para fazer isso. Minha decisão durou apenas cinco minutos

e eu me repreendi por minha fraqueza. Estiquei-me na cama, peguei o

tigre de pelúcia e o aconcheguei junto ao peito, me desculpando pelo

simples fato de ter tido tal pensamento.

4

Um Presente de Natal

Passado o Halloween, concentrei minha atenção em estudar para as

provas e evitar Artie. Ele conseguira o número do meu celular de

alguma forma e me ligava exatamente às cinco horas todas as tardes. Às

vezes me esperava depois da aula. O cara não se mancava.

Também dediquei algum tempo a esclarecer meus sentimentos por

Jason. Saímos mais algumas vezes, mas eu sempre tinha a impressão de

que não falávamos a mesma língua. Ele achava que Shakespeare, poesia

e livros eram chatos, e eu não conseguia apreciar as sutis diferenças

entre equipes esportivas universitárias e profissionais. Não creio que ele

desse muita importância ao fato de não sermos compatíveis. No fundo

eu sabia que meu relacionamento com Jason não estava indo a lugar

algum, mas ele era uma distração mental e eu gostava de tê-lo como

parceiro nas aulas.

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Justo quando eu achava que já tinha dominado a questão dos encontros

casuais, Li resolveu tornar a coisa ainda mais complicada. Estávamos

conversando no estúdio quando de repente ele ficou calado, rolando a

garrafa de água, nervosamente, para a frente e para trás entre as palmas

das mãos.

- Kelsey... - finalmente falou. - Queria saber se você quer sair comigo.

Só nós dois. Como num encontro de verdade.

Minha mente disparou com pensamentos confusos.

- Ah. E... claro - respondi devagar. - Gosto da sua companhia. Você é

muito divertido e é fácil conversar com você.

Ele fez uma careta.

- Mas você gosta mesmo de mim ou simplesmente gosta de mim?

Pensei por um momento e em seguida disse:

- Bem, para ser sincera, acho que você é um cara incrível e gosto muito

de você. Mas não sei se posso ter um relacionamento sério com alguém

neste momento. Eu rompi com uma pessoa recentemente e ainda não

me recuperei.

- Entendi. É difícil superar essas coisas. Mas ainda assim quero sair com

você. Isso se achar que vai ser bom e se estiver pronta.

Levei um instante para responder:

- Está bem. Acho que vai ser legal.

- Que tal começarmos com um filme de artes marciais? Tem um lugar

que exibe filmes antigos sextas, à meia-noite. Quer ir?

- Quero, mas só se você prometer que vai me ensinar um dos golpes do

filme - acrescentei, feliz por termos resolvido a questão.

Resolvido mais ou menos, pensei enquanto nos despedíamos.

Li e eu começamos a nos ver fora da noite de jogos e das aulas. Ele era

um cavalheiro e nossos encontros eram sempre divertidos e

interessantes. Apesar de ter toda essa atenção, eu me sentia sozinha.

Não era o tipo de solidão que se curava ficando na companhia de outras

pessoas. Minha alma se sentia solitária. A noite era o pior momento,

pois eu tinha a sensação de que ele estava perto de mim, mesmo estando

de fato a um oceano de distância. Havia uma corda invisível amarrada

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em meu coração, nos conectando. Sua força implacável ficava tentando

me puxar de volta. Talvez um dia essa corda se desgastasse e por fim se

rompesse.

As aulas de wushu eram o escape perfeito para descarregar parte da

frustração que eu sentia com a minha vida. Os movimentos eram

precisos e não exigiam nenhuma emoção, o que era uma mudança bem-

vinda. Além disso, eu estava começando a me aprimorar. Meus braços e

pernas estavam mais definidos e eu também me sentia mais forte. Se

alguém me atacasse, talvez eu pudesse mesmo me defender, o que era

um pensamento encorajador. Quem precisava da proteção de um tigre?

Eu simplesmente daria um chute na cara do inimigo.

Como alunos, não deveríamos nutrir pensamentos assim, mas a maioria

das pessoas não tinha que encarar macacos kappa imortais querendo

devorá-las, como era o meu caso. Assim, eu me permitia visualizar

meus muitos possíveis oponentes e chutava com violência. Até Li

comentou que meus chutes estavam ficando mais fortes.

Li cumpriu sua parte no acordo e me ensinou um golpe que vimos no

filme. Ele me deixou praticar com ele, mas eu errava tudo e acabamos

caindo embolados no tatame, rindo.

- Kelsey, você está bem? Machuquei você?

Eu não conseguia parar de rir.

- Não, estou bem. Grande golpe, hein?

Li estava debruçado sobre mim, o rosto perto do meu.

- Nada mau. Agora eu tenho você exatamente onde queria.

De repente a atmosfera leve e alegre se desfez e foi substituída por uma

tensão densa e ansiosa. Ele aproximou um pouco mais o rosto do meu e

hesitou, observando minha reação. Fiquei paralisada e senti uma onda

de tristeza me cobrir. Afastando o rosto ligeiramente, fechei os olhos.

Eu não podia beijá-lo. A idéia era agradável, mas não a ponto de dar

aquele frio na barriga. Não parecia certo.

- Me desculpe, Li.

Ele me deu uma pancadinha de leve sob o queixo.

- Não se preocupe. Topa sair para tomar um milk-shake?

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Seus olhos estavam um pouco tristes, mas ele parecia determinado a

manter o clima descontraído entre nós e rapidamente desviou minha

atenção para outras coisas.

Em meio ao meu festival de encontros, o Sr. Kadam me trouxe boas

notícias. Ele havia decifrado uma parte importante da profecia de

Durga e me pediu que o ajudasse com a pesquisa, o que eu estava mais

do que disposta a fazer. Peguei um bloquinho e perguntei:

- O que o senhor tem para mim?

- As provas das quatro casas. O texto diz especificamente: uma casa de

cabaças, uma casa de mulheres sedutoras e uma casa de algum tipo de

criaturas aladas.

- Que tipo de criaturas aladas? - perguntei e engoli em seco.

- Ainda não sei.

- E a quarta casa?

- Parece que são duas casas com animais alados. Creio que um será uma

espécie de pássaro, porém, mais para o fim da profecia, também se

menciona metal ou ferro. O outro animal alado tem o símbolo de

"grande" ao lado e o mesmo símbolo se repete mais para o fim da

profecia. Quero que você pesquise todos os mitos que puder encontrar

que incluam passar por casas ou uma prova de casas e me informe sobre

o que descobrir.

- Pode deixar comigo.

- Ótimo.

A conversa então se voltou para coisas mundanas e, embora eu estivesse

feliz por ele me incluir na pesquisa, meu estômago se revirava com a

idéia de voltar à índia. Eu estava pronta para o perigo, a magia e o

sobrenatural, no entanto voltar também significava ter que encará-lo

novamente. Eu estava me saindo bem em meu propósito de levar uma

vida comum, mas, sob a superfície, onde podia esconder meus

sentimentos mais íntimos, alguma coisa se agitava. Eu me sentia

desconectada, fora de lugar. A índia me chamava, às vezes baixinho, às

vezes com um rugido, porém o chamado era constante e eu de vez em

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quando me perguntava se algum dia conseguiria me acomodar

novamente numa vida normal.

O Dia de Ação de Graças chegou e Sarah e Mike me convidaram para

seu banquete de tofu. Fiquei olhando para sua abundância de abóboras

e morangas festivas durante a refeição, tentando descobrir como

cabaças de aparência tão inofensiva poderiam vir a ser alguma coisa

perigosa, e o tempo todo me perguntava como elas se encaixariam na

busca seguinte. Era um dia frio e chuvoso, mas meus pais adotivos

tinham a lareira acesa. Para minha surpresa, alguns dos pratos

vegetarianos estavam de fato gostosos. Mas não consegui comer a torta

sem açúcar e sem glúten.

- E aí? Quais são as novidades? Algum gatinho na faculdade? - provocou

Sarah.

Ergui os olhos da torta de abóbora que eu espetava cautelosamente com

um garfo.

- E... bem... estou saindo com alguém - admiti, tímida. - Tem um cara

chamado Li e também tem o Jason. Não é nada sério. Saímos poucas

vezes.

Sarah ficou eufórica e tanto ela quanto Mike me importunaram com um

monte de perguntas que eu não tinha a menor vontade de responder.

Felizmente Jennifer também havia me convidado, assim como a Li, para

o jantar de Ação de Graças e consegui escapar da casa dos meus pais a

tempo de passar na de Jennifer. Ela morava numa bela casa em West

Salem. Levei uma torta de limão com suspiro, a primeira que eu havia

tentado fazer, e estava orgulhosa do resultado. Eu tinha deixado o

suspiro dourar só um pouquinho a mais, porém, tirando isso, parecia

boa.

Li ficou radiante quando me viu à porta. Ele me confessou que já havia

se empanturrado no jantar de sua família, mas que guardara o espaço da

sobremesa para a minha torta - e foi fiel à sua palavra. Li comeu metade

dela sozinho.

Jennifer também fizera uma torta de abóbora, uma de amora e um

cheese- cake. Peguei um pedacinho de cada e me senti no céu. Li soltou

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um gemido e se queixou de que sua barriga estava tão cheia que ele

teria que dormir ali mesmo. Os filhos de Jennifer pularam de alegria

com a idéia, sacudindo seus chapéus de peregrinos, mas se acalmaram

imediatamente quando ela colocou o DVD Charlie Brown e o Dia de Ação de Graças. Eu estava ajudando Jennifer a arrumar a cozinha quando ela perguntou:

- Me conta! Como estão indo as coisas com - ela sussurrou - Li?

- Hum, está tudo bem.

- Vocês estão ficando?

- É complicado...

Ela deu de ombros e franziu a testa diante da lava-louça.

- O cara de quem você nunca fala ainda está empatando o meio de

campo?

Interrompi na metade o gesto de secar com o pano de prato a travessa

do peru.

- Me desculpe se fui grosseira. Para ser sincera, é difícil falar sobre ele.

Mas o que você quer saber?

Ela pegou outro prato, esfregou com a bucha e o mergulhou na água de

enxágue.

- Quem é ele? Onde está? Por que vocês não ficaram juntos?

- Ele está na Índia. E não ficamos juntos porque... - eu sussurrei -

...porque eu o deixei.

- Ele a tratou mal?

- Não, não. Não foi nada disso. Ele era... perfeito. - Ele não queria que você voltasse?

- Não.

- Ele não quis vir com você?

O canto da minha boca se curvou num leve sorriso.

- Tive que implorar para que ele ficasse.

- Então eu não entendo. Por que você o deixou?

- Ele era... ele era... - Suspirei. - É complicado.

- Você o amava?

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Pousei na mesa a travessa que estava secando fazia cinco minutos e

torci a toalha nas mãos. Então respondi, baixinho:

- Amava.

- E agora?

- Agora... quando estou sozinha... às vezes tenho a sensação de que não

consigo respirar.

Jennifer assentiu e lavou mais louça. Os talheres retiniam suavemente

na água cheia de bolhas de sabão. Inclinando um pouco a cabeça, ela

perguntou:

- Qual é o nome dele?

Olhei melancólica para a janela da cozinha. Estava escuro lá fora e eu

podia ver meu reflexo, os ombros caídos e os olhos sem vida.

- Ren. O nome dele é Ren.

Dizer o nome dele machucava ainda mais meu coração partido. Senti

uma lágrima escorrer pelo rosto e tornei a olhar para a janela, bem a

tempo de vislumbrar o reflexo de Li, parado atrás de mim. Ele se virou e

saiu da cozinha, mas não antes que eu visse sua expressão. Eu o havia

magoado.

Jennifer estendeu a mão e apertou meu braço.

- Vá falar com ele. É melhor resolver as coisas logo.

Ela estava certa. Eu precisava conversar com Li.

Ele já deixara a casa. Enquanto eu pegava minhas coisas e agradecia,

Jennifer saiu da cozinha e acenou para que eu fosse.

Saí e o encontrei encostado em seu carro com os braços cruzados diante

do peito.

-Li?

-Oi.

- Lamento que você tenha ouvido aquilo.

Ele deixou escapar um suspiro profundo.

- Está tudo bem. Você me avisou antes de começarmos que seria difícil.

Acho que só tenho uma pergunta.

- Pode fazer.

Ele se virou para me encarar e olhou fundo em meus olhos.

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- Você ainda está apaixonada por ele?

- Eu... eu acho que sim.

Ele murchou visivelmente.

- Mas, Li, isso não tem importância. Ele ficou para trás. Está em outro

continente. Se quisesse tanto assim estar comigo, teria vindo atrás de

mim. Mas ele não está aqui. Na verdade, nem sequer telefonou. Eu só

preciso... de tempo. Um pouco mais de tempo para... deixar esses

sentimentos de lado. Eu quero poder fazer isso. - Estendi a mão e

segurei a dele. - Não é justo com você, eu sei. Você merece namorar

alguém que não tenha esse tipo de bagagem.

- Kelsey, todo mundo tem algum tipo de bagagem. - Ele chutou o pneu

do carro. - Eu gosto de você e quero que goste de mim. Talvez dê certo,

se formos devagar. Podemos aprender a ser amigos primeiro, por um

tempo.

- Isso basta para você?

- Vai ter que bastar. Não tenho outra opção, a não ser parar de sair com

você, e essa não é uma boa opção para mim.

- Então, vamos devagar.

Li sorriu e se inclinou para me beijar no rosto.

- Você vale a espera, Kelsey. E, só para registrar, o cara foi maluco de

deixar você partir.

Embora eu houvesse pegado pilhas de livros emprestados na biblioteca

e passado horas incontáveis na internet, ainda não encontrara qualquer

informação útil sobre a prova das quatro casas. Eu esperava que as

criaturas aladas nessa parte da busca fossem borboletas inofensivas, mas

por algum motivo duvidava que seria assim tão fácil. Pelo menos agora tínhamos uma pista sobre como o tema "ar" entraria na história, pensei.

Com a cabeça enfiada nos livros quase o tempo todo, o Dia de Ação de

Graças deu lugar rapidamente às festas do Natal. Podiam-se ver enfeites

luminosos em todos os bairros e nas vitrines das lojas. Continuei a sair

tanto com Li quanto com Jason e, em meados de dezembro, Li me levou

ao casamento de um primo.

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Nas últimas duas semanas eu vinha repetindo para mim mesma que eu

queria de verdade que as coisas dessem certo com Li, que seria bom se

eu lhe abrisse meu coração. Ele estava muito bonito quando foi me

pegar, vestindo um terno escuro. Meu coração se agitou quando o vi.

Talvez não com amor, mas pelo menos com alegria por estar com ele.

- Uau, Kelsey. Você está maravilhosa!

Eu havia vasculhado meu armário proibido e encontrado um vestido de

princesa cor de pêssego, feito de cetim e organza. A parte de cima era

um espartilho justo que se abria em uma saia de pétalas até o meio da

canela.

O casamento foi celebrado num clube campestre. Quando a cerimônia

chegou ao fim, surgiram dançarinos e músicos chineses e nós os

seguimos, como num desfile, até a área da recepção. Um dos músicos

tocava bandolim. Parecia o instrumento pendurado na parede da sala de

música do Sr. Kadam.

Guarda-sóis vermelhos, leques dourados e sofisticados origamis

decoravam o salão. Li explicou que tudo aquilo era tradicional em

casamentos chineses. A noiva usava um vestido vermelho e, em lugar

de caixas com presentes, os convidados davam ao casal envelopes

vermelhos com dinheiro.

Li indicou um grupo de garotos usando terno preto e óculos de sol.

Arregalei os olhos e tive que reprimir uma gargalhada quando percebi

que era o nosso grupo de jogo. Eles sorriram e acenaram para mim. Um

dos rapazes tinha uma grande valise presa ao pulso por uma algema.

- Por que estão vestidos assim? - perguntei. - E o que tem na valise?

Ele riu.

- Mil dólares em notas de um, novinhas em folha. Eles vão algemar a

valise ao noivo. É uma brincadeira. Meu primo fazia parte do grupo de

jogo até que o trabalho ocupou todo o tempo dele. Como é o primeiro a

se casar, ele leva a valise.

Fomos avançando na fila dos cumprimentos e Li me apresentou ao

primo e à noiva. Ela era baixinha, muito bonita e parecia tímida. Depois

disso nos sentamos à mesa do jantar, onde logo fomos acompanhados

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por todos os amigos de Li, que implicavam com ele por não usar os

óculos escuros também.

A noiva e o noivo celebraram uma cerimônia em que acendiam velas

em honra aos ancestrais e então o jantar foi servido: peixe,

simbolizando a abundância; uma lagosta inteira, representando a

plenitude; pato à Pequim, para a alegria e a felicidade; sopa de

barbatana de tubarão, para garantir a riqueza; talharim, para uma vida

longa; e salada de pepino-do-mar, para a harmonia conjugal. Li tentou

me fazer provar pãezinhos doces de semente de lótus, que

simbolizavam a fertilidade.

- Ah... obrigada - falei, hesitante -, mas essa eu vou passar.

Depois dos votos de felicidades de ambos os lados da família, o casal

dançou sua primeira música.

Li apertou minha mão e se levantou.

- Kelsey, me dá a honra?

- Claro.

Ele me girou pela pista de dança uma vez antes que seus amigos

começassem a se intrometer entre nós. Não consegui dançar mais do

que uma vez com Li. Algumas músicas depois, um bolo de três andares

foi trazido ao salão. A parte interna era alaranjada e a externa era

decorada com um glacê perolado com sabor de amêndoas e lindas

orquídeas de açúcar.

Quando Li me deixou em casa naquela noite, eu estava feliz. Eu gostava

de verdade de fazer parte do mundo dele. Eu o abracei e lhe dei um

beijo de boa-noite no rosto, e ele sorriu como se tivesse acabado de

ganhar um troféu de artes marciais.

Passei o dia de Natal com minha família adotiva. Bebericando chocolate

quente, fiquei observando as crianças abrirem os presentes. Sarah e

Mike me deram um conjunto de agasalho e calça de corrida. Eles

estavam sempre tentando me convencer a correr com eles. As crianças

me deram luvas e uma echarpe. Eu pretendia ficar com eles naquela

manhã e então passar o restante do dia com Li, que me pegaria às duas

da tarde para sairmos.

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O presente dele, uma coleção de filmes de artes marciais, estava na

mesinha de centro na minha sala de estar. Eu já tinha decidido que, se

ele não tentasse me beijar até o fim daquele encontro, eu o beijaria.

Tinha até pendurado um galho de visco na minha porta de entrada.

Uma parte irracional da minha mente dizia que talvez beijá-lo fosse a

chave para romper o elo que ainda sentia com o homem que eu

abandonara. Eu sabia que provavelmente não seria assim tão fácil, mas

aquele poderia ser o primeiro passo.

Fiquei pensando no encontro. As crianças brincavam com seus

presentes e os adultos estavam sentados perto da árvore de Natal,

ouvindo canções natalinas e conversando baixinho, quando a

campainha soou.

- Está esperando alguém, Sarah? - perguntei ao me levantar para atender

a porta.

- Deve ser um pacote do Sr. Kadam. Ele disse que você teria uma

surpresa.

Girei a maçaneta e abri a porta.

Parado na entrada da casa estava o homem mais lindo do planeta. Meu

coração parou e em seguida disparou num galope trovejante dentro do

meu peito. Olhos azul-cobalto ansiosos exploraram cada detalhe do

meu rosto. Rugas de tensão desapareceram de sua expressão e ele

respirou fundo, como um homem que tivesse estado debaixo d'água por

muito tempo.

Satisfeito, o anjo guerreiro sorriu suave e docemente e estendeu a mão

vacilante para tocar meu rosto. Senti o elo que nos unia fechar os dedos

em torno do meu coração e apertar, aproximando-nos. Envolvendo-me

com os braços, hesitante a princípio, ele encostou a testa na minha e

esmagou meu corpo de encontro ao seu. Então me embalou para a

frente e para trás e acariciou delicadamente meu cabelo. Suspirando, ele

sussurrou uma única palavra:

- Kelsey.

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5

Retorno Envolta em seus braços eu ouvia meus batimentos cardíacos. Quando

Ren me tocou, todas as emoções que eu vinha contendo transbordaram

e inundaram meu corpo, preenchendo lentamente o vazio em meu

peito.

Eu me senti desabrochar e crescer com novo alento. Ren era o sol e a

ternura que ele me dedicava era a água que proporcionava a vida. Uma

parte dormente de mim explodiu, viva e pulsante, estendeu raízes

profundas, abriu folhas verdes e espessas e disparou ramos anelados,

unindo-nos ainda mais.

Sarah chamou da cozinha, lembrando-me de que existia um mundo

além de nós dois.

- Kelsey? Kelsey? Quem é?

Voltando à realidade, eu me afastei. Ele me soltou, mas deslizou a mão

pelo meu braço e entrelaçou os dedos nos meus. Eu estava muda. Minha

boca se abriu para responder, mas não consegui falar uma palavra

sequer.

Ren notou minha dificuldade e anunciou sua chegada.

- Com licença. Vocês são o Sr. e a Sra. Neilson?

Tanto Mike quanto Sarah pararam o que estavam fazendo ao vê-lo. Ren

dirigiu-lhes seu sorriso arrasador e estendeu a mão.

- Olá. Sou o neto do Sr. Kadam, Ren.

Ele apertou calorosamente a mão de Mike e então a estendeu para

Sarah. Quando Ren voltou seu sorriso para ela, Sarah enrubesceu,

nervosa como uma adolescente. Saber que eu não era a única mulher a

ficar abobada quando ele estava por perto fez com que eu me sentisse

melhor. Ele exercia um efeito hipnótico sobre mulheres de todas as

idades.

- Oi, Ren - disse Mike. - Que coincidência. Ei, Kelsey, aquele tigre não

se...

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Eu me adiantei.

- Ah, é. Engraçado, não? - Olhei para Ren e o apontei com o polegar. -

Mas Ren na verdade é só o apelido dele. Seu nome mesmo é... Al. - Dei-

lhe um soco no braço. - Não é mesmo, Al?

Ele franziu as sobrancelhas, confuso.

- É, sim, Kelsey. - Então voltou-se novamente para Mike e Sarah. - Na

verdade, é Alagan, mas podem me chamar de Ren. Todos me chamam

assim.

A essa altura Sarah já havia se recuperado.

- Ren, por favor, entre e conheça as crianças.

Ele sorriu para ela novamente e disse:

- Eu adoraria.

Sarah respondeu reprimindo uma risadinha infantil e ajeitando o

cabelo. Ren se abaixou para pegar vários pacotes grandes que ele havia

empilhado junto à porta, enquanto eu seguia direto para a sala.

Enquanto Mike ajudava Ren, Sarah veio até mim e sussurrou:

- Kelsey, quando vocês dois se conheceram? Por um instante, pensei que

estivesse finalmente conhecendo Li. O que está acontecendo?

Fitei a árvore de Natal enquanto murmurava:

- É o que eu gostaria de saber.

Os homens entraram na sala, onde Ren tirou o sobretudo cor de carvão

e o pendurou numa cadeira. Ele vestia calça jeans e uma camisa polo

cinza de mangas compridas e zíper, que modelava seu peito e seus

braços.

- Quem é Li? - perguntou Ren.

- Como você... - Fechei a boca rapidamente. Eu havia me esquecido de

sua audição de tigre. - Li é... é... um cara... que eu conheço.

Sarah ergueu as sobrancelhas, mas não disse nada.

Ren me observou com atenção, esperou educadamente que eu me

sentasse e então se acomodou no sofá ao meu lado. No instante seguinte

as crianças estavam em cima dele.

- Eu trouxe presentes para vocês dois - disse, em tom conspiratório. -

Vocês podem abri-los juntos?

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As crianças fizeram que sim com a cabeça, sérias, e ele riu e entregou a

elas uma caixa grande. Elas a abriram freneticamente e tiraram dali uma

coleção de livros do Dr. Seuss. A princípio os livros me pareceram

estranhos. Peguei um deles e descobri por quê.

- Você comprou exemplares raros, da primeira edição! - sussurrei para

ele. - Para crianças? Devem valer milhares de dólares cada um! Ele prendeu uma mecha de cabelo atrás da minha orelha e se inclinou.

- Tenho em casa uma coieção igualzinha para você - sussurrou. - Não

seja ciumenta.

Meu rosto ficou vermelho vivo.

- Não foi isso que eu quis dizer.

Ele riu e pegou o presente seguinte. Mike olhava a todo instante pela

janela o carro de Ren.

- Ren, estou vendo que você dirige um Hummer.

Ren ergueu os olhos para Mike.

- Isso mesmo.

- Acha que pode me levar para dar uma volta? Quer dizer... sabe, eu

sempre quis andar num desses.

Ren esfregou o queixo.

- Claro, só não posso hoje. Tenho que me instalar em minha nova casa.

- Ah... você vai ficar aqui por um tempo?

- É o que pretendo fazer, pelo menos este semestre. Eu me matriculei

em algumas disciplinas na Western Oregon University.

- Bem, isso é ótimo. Vai freqüentar a mesma universidade de Kelsey.

Ren sorriu.

- É. Talvez a gente se esbarre por lá.

Mike voltou a atenção para o carro novamente com um grande sorriso

no rosto. Sarah me observava atenta. Tentei manter uma expressão

neutra, mas, por dentro, eu era um amontoado incoerente de perguntas.

O que ele está pensando? Vai ficar aqui? Onde? Vai para a faculdade comigo? O que eu vou fazer? Por que ele está aqui? Ren deslizou uma grande caixa para Sarah e Mike.

- Este é para vocês dois.

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Mike ajudou Sarah a abrir a embalagem e tiraram dali uma batedeira

vermelha novinha em folha, com todo tipo de acessórios que se pode

imaginar. Eu não ficaria surpresa se Sarah pudesse criar uma escultura

de gelo com aquela coisa. Ela começou a falar cheia de entusiasmo sobre

todas as coisas orgânicas e sem trigo que agora poderia fazer.

Ren pegou um pacote menor e o entregou a mim.

- Este é do Sr. Kadam.

Abri e encontrei exemplares encadernados em couro do Mahãbhãrata, da Índia, do Romance dos três reinos, da China, e de O conto de Genji, do Japão, todos traduzidos para o inglês. Também havia uma breve

carta me desejando feliz Natal.

Corri a mão sobre as capas de couro e planejei ligar para ele mais tarde e

lhe agradecer.

Ren me entregou outro presente.

- Este é de Kishan.

Sarah ergueu os olhos de sua batedeira e perguntou:

- Quem é Kishan?

- Kishan é meu irmão mais novo - respondeu Ren.

Sarah me lançou um olhar maternal de repreensão, ao qual reagi dando

de ombros timidamente. Eu não havia falado nem de Ren nem de

Kishan para ela, que devia estar se perguntando como eu poderia deixar

de lembrar de alguém como ele.

Desfiz o embrulho e encontrei uma caixinha de jóias da Tiffany's.

Dentro havia um delicado colar de ouro branco. O cartão havia sido

escrito à mão, com muito capricho:

Oi, Kells, Estou com saudade. Venha logo para casa. Achei que você fosse gostar de algo mais feminino para usar com meu amuleto. Também tem um presente extra na caixa, para o caso de você precisar. Kishan

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Deixei o cordão de lado e vasculhei a caixa. Encontrei um pequeno

cilindro envolto em papel fino. Desenrolando-o, um frio recipiente de

metal caiu na palma da minha mão. Era uma latinha de spray de

pimenta. Nele, Kishan havia colado uma imagem de um tigre com um

círculo cortado ao meio sobre o rosto. No alto, liam-se as palavras

"Repelente Contra Tigres" em letras grandes e negras.

Eu ri e Ren o tomou de mim. Depois de ler o rótulo, ele franziu a testa e

jogou a lata de volta na caixa. Abaixando-se, pegou mais um pacote.

- Este é meu.

Suas palavras me deixaram alerta. Olhei rapidamente para avaliar a

expressão de Mike e de Sarah. Mike parecia contente, alheio à tensão

que eu sentia, mas Sarah estava mais ligada e me observava com

atenção. Fechei os olhos por um segundo, rezando para que o que quer

que houvesse naquela caixa não motivasse um bilhão de perguntas.

Deslizei os dedos sob o elaborado papel de presente e desfiz o

embrulho. Levando a mão ao interior da caixa, senti algo de madeira

lisa e polida. Lá dentro havia um porta-jóias entalhado à mão.

Ren se inclinou na minha direção.

- Pode abrir.

Corri a mão nervosamente pela tampa e a abri com cuidado. Havia

fileiras de minúsculas gavetas, forradas com veludo, e dentro de cada

gavetinha uma fita de cabelo enrolada.

- As partes são soltas, está vendo?

Ele ergueu a seção superior e a seguinte. Havia cinco seções, com cerca

de 40 fitas por seção.

- Todas as fitas são diferentes. Não há nenhuma cor repetida e tem pelo

menos uma de cada um dos principais países do mundo.

Atônita, eu disse:

- Ren... eu... Levantei a cabeça. Mike não via nada de extraordinário na cena. Ele

devia achar que uma coisa assim acontecia todos os dias. Sarah olhava

para Ren com outros olhos. Suas expressões de suspeita e preocupação

haviam desaparecido.

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Com um pequeno sorriso de aprovação, ela disse:

- Parece que você conhece Kelsey muito bem, Ren. Ela adora fitas de

cabelo.

De repente Sarah pigarreou, pôs-se de pé e nos pediu que olhássemos as

crianças enquanto eles iam dar uma corridinha. Eles nos trouxeram

duas canecas de chocolate fumegante e desapareceram escada acima,

indo trocar de roupa. Embora eles se exercitassem sempre, em geral

faziam uma pausa no Natal. Será que ela estava tentando nos dar algum tempo a sós? Eu não sabia se devia abraçá-la ou implorar para que ficasse. A caixa ainda estava no meu colo e eu manuseava distraidamente uma

fita quando os dois saíram correndo pela porta com um aceno.

Ren tocou minha mão.

- Você não gostou?

Olhei dentro de seus olhos azuis e disse, a voz rouca:

- É o melhor presente que já ganhei.

Ele sorriu, radiante, pegou minha mão e depositou um beijo em meus

dedos.

Voltando-se para as crianças, perguntou:

- Quem quer ouvir uma história?

Rebecca e Sammy escolheram um livro e subiram no colo de Ren. Ele

envolveu cada um deles com um braço e começou a ler. Só empacou

numa palavra, mas as crianças o ajudaram, e a partir de então ele leu

certinho. Eu estava impressionada. O Sr. Kadam deve tê-lo ensinado a

ler inglês.

Ren convenceu Sammy a segurar o livro para ele e me agarrou com o

braço livre. Ele me puxou contra seu corpo, de modo que minha cabeça

descansasse em seu ombro. Então correu os dedos, provocante, para

cima e para baixo em meu braço.

Quando Mike e Sarah voltaram, levantei de um salto e comecei a

recolher minhas coisas numa louca correria. Nervosa, olhei para Ren e

o peguei me observando com o olhar ligeiramente divertido. Mike e

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Sarah nos agradeceram e me ajudaram a levar as coisas para o carro.

Ren também se despediu e ficou à minha espera do lado de fora.

Sarah me dirigiu um olhar que dizia: "Você tem explicações a dar,

mocinha." Então fechou a porta e nos deixou no frio de dezembro.

Estávamos finalmente sozinhos.

Ren tirou uma das luvas e traçou o contorno do meu rosto com os dedos

cálidos.

- Vá para casa, Kells. Não me faça perguntas agora. Este não é o lugar

apropriado. Vamos ter tempo suficiente mais tarde. Encontro você lá.

- Mas...

- Mais tarde, rajkumari. Ele tornou a colocar a luva e se encaminhou para o Hummer.

Quando foi que ele aprendeu a dirigir? Fiz a volta com meu carro e

fiquei observando o Hummer pelo retrovisor até eu virar numa rua

secundária e ele desaparecer do meu campo de visão.

Milhares de indagações martelavam minha cabeça e percorri a lista na

subida da colina. A estrada estava parcialmente coberta de gelo. Deixei

de lado as perguntas urgentes para me concentrar na direção.

Quando dobrei a curva e vi minha casa, percebi que alguma coisa estava

diferente. Levei um minuto para descobrir o que era: havia cortinas na

janela da outra casa geminada. Alguém havia se mudado para lá.

Estacionei na garagem e andei até a porta de entrada da outra casa. Bati,

mas ninguém respondeu. Girando a maçaneta, encontrei a porta

destrancada. A casa estava mobiliada quase da mesma maneira que a

minha, só que em cores mais escuras, mais masculinas. Quando vi o

velho bandolim descansando no sofá de couro, minhas suspeitas foram

confirmadas. Ren estava se mudando para aquela casa.

Fui até a cozinha, encontrei a despensa e a geladeira vazias e vi que na

parte inferior da porta dos fundos havia sido adaptada uma portinhola

grande demais.

Humm... isso não vai impedir a entrada de um ladrão. Ele pode rastejar e entrar. Mas acho que teria uma bela surpresa se tentasse roubar alguma coisa aqui.

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Corri para minha casa, fechando a porta, sem me dar ao trabalho de

olhar no segundo andar ou verificar o closet em busca das peças de grife

que eu sabia que encontraria por lá. Não havia a menor dúvida de que

Ren era meu novo vizinho.

Na verdade, eu tinha acabado de tirar os sapatos e o casaco quando ouvi

o que só podia ser o Hummer entrando na outra garagem. Eu o observei

pela janela. Ren era um bom motorista. De alguma forma conseguira

manobrar o veículo imenso entre os galhos salientes que poderiam

arranhar a pintura. Ouvi o ruído de seus passos no caminho congelado

enquanto ele se dirigia à minha porta.

Deixando-a aberta para ele, fui para a sala de estar, sentei-me na

poltrona reclinável com os pés dobrados sob o corpo e cruzei os braços

diante do peito. Eu sabia que os especialistas em linguagem corporal

diriam que essa era uma postura defensiva clássica, mas não me

importava.

Eu o ouvi fechar a porta, tirar o casaco e pendurá-lo. Então finalmente

entrou na sala. Ele estudou meu rosto por um breve momento e então

correu a mão pelo cabelo, sentando-se diante de mim. Seu cabelo estava

mais comprido do que na índia. Fios negros e sedosos caíam-lhe na testa

e ele os jogou para trás, irritado. Parecia maior, mais musculoso do que

eu me lembrava. Deve estar se alimentando melhor do que antes. Ficamos nos entreolhando em silêncio por vários segundos.

- Então... você é o meu novo vizinho - eu disse, por fim.

- Sim. - Ele suspirou suavemente. - Não consegui mais ficar longe de

você.

- Eu não sabia que você estava tentando ficar longe.

- Foi o que você me pediu. Eu estava tentando respeitar seu desejo.

Queria lhe dar tempo para pensar. Para clarear a mente. Para... ouvir

seu coração.

Eu certamente tivera tempo para pensar. Infelizmente, meus pensamentos continuavam confusos. Eu não havia conseguido raciocinar desde que deixara a Índia. E não tinha dado ouvidos ao meu

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coração desde que acordara ao lado de Ren em Kishkindha. Fazia meses que eu me desligara do meu coração. - Ah. Então seus sentimentos não... mudaram?

- Meus sentimentos estão mais fortes do que nunca.

Seus olhos azuis estudaram meu rosto. Ele afastou o cabelo dos olhos e

se inclinou para a frente.

- Kelsey, cada dia que você ficou longe de mim foi uma agonia. Eu fiquei

louco. Se o Sr. Kadam não tivesse me mantido ocupado cada minuto de

cada dia, eu teria tomado um avião na semana seguinte. Eu ouvia

pacientemente enquanto ele me instruía, mas só tenho seis horas como

humano. Como tigre, abri um caminho no tapete do meu quarto de

tanto andar de um lado para outro, hora após hora. Ele quase pegou um

rifle de caça para me aplicar um tranqüilizante. Nada me acalmava. Eu

estava sempre inquieto, um animal selvagem sem... sem sua fêmea.

Remexi-me, nervosa, e mudei de posição na cadeira.

- Eu disse a Kishan que precisava treinar para trazer minhas habilidades

de luta de volta ao padrão esperado. Lutávamos o tempo todo, tanto

como homens quanto como feras. Treinávamos com armas, garras,

dentes e com as mãos. Praticar com ele foi provavelmente a única coisa

que me manteve são. Eu desabava no tapete todas as noites,

ensangüentado, exausto, esgotado. Mas, ainda assim... podia sentir você.

Ele me fitou antes de prosseguir.

- Mesmo do outro lado do mundo eu muitas vezes acordava com o seu

cheiro à minha volta. Eu ansiava por você, Kells. Por mais que Kishan

me surrasse, a dor de perdê-la não diminuía. Eu sonhava com você e

estendia a mão para tocá-la, mas você estava sempre fora do meu

alcance. Kadam ficava me dizendo que era melhor assim e que eu tinha

coisas a aprender antes de poder vir para o Oregon. Ele devia estar

certo, mas não era o que eu queria ouvir.

- Mas, se você queria ficar comigo, então... por que não telefonou?

- Era o que eu queria fazer. Era uma tortura ouvir sua voz toda semana

quando você ligava para Kadam. Eu ficava esperando ao lado dele todas

as vezes, torcendo para que pedisse para falar comigo, mas você nunca

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pediu. Eu não queria pressioná-la. Queria respeitar seu desejo. Queria

que a decisão fosse sua. Que ironia. Tantas vezes eu quis perguntar por ele, mas não conseguia fazer isso. - Você ouvia as nossas conversas ao telefone?

- Ouvia. Tenho ótima audição, lembra?

- Sim. Então o que... mudou? Por que vir aqui agora?

Ren riu sarcasticamente.

- Foi graças a Kishan. Um dia, durante uma de nossas lutas, ele estava

acabando comigo, como sempre. A essa altura, eu nem me esforçava

mais para competir com ele. Eu queria que ele me machucasse. De

repente ele parou. Andou à minha volta e me olhou de cima a baixo.

Fiquei lá, parado, esperando que retomasse a luta. Então ele fechou a

mão e me deu o soco mais forte de que foi capaz.

- Meu Deus.

- Eu simplesmente recebi o golpe, sem nem me dar ao trabalho de me

defender. Em seguida, ele me socou com toda força na barriga. Eu me

recuperei e me levantei novamente diante dele, sem me importar. Ele

rosnou e berrou na minha cara.

- O que foi que ele disse?

- Muitas coisas, a maioria das quais prefiro não repetir. O que disse de

mais importante foi que eu precisava sair dessa e perguntou por que eu

não me levantava e fazia alguma coisa, já que estava tão infeliz.

-Ah.

- Ele zombou de mim, dizendo que o poderoso Príncipe do Império Mu-

julaain, o Sumo Protetor do Povo, o campeão da Batalha dos Cem

Cavalos, herdeiro do trono, fora abatido por uma garota. Gritou que não

havia nada mais patético que um tigre covarde lambendo suas feridas.

Mas a essa altura eu não estava nem aí para o que ele falava. Nada me

perturbou até ele me dizer que nossos pais ficariam envergonhados, que

eles haviam criado um covarde. Foi aí que tomei uma decisão.

- A decisão de vir aqui.

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- Sim. Decidi que precisava ficar perto de você. Decidi que, mesmo que

você só quisesse minha amizade, eu estaria mais feliz aqui do que na

Índia sem você.

Ren se levantou, ajoelhou-se e pegou minha mão.

- Decidi encontrá-la, me atirar aos seus pés e implorar para que tenha

misericórdia de mim. Vou aceitar o que você decidir. De verdade,

Kelsey. Só não me peça que fique longe de você outra vez. Porque... eu não posso. Como eu poderia resistir? As palavras de Ren penetraram as frágeis

barreiras em torno do meu coração. Eu tivera a intenção de erguer uma

cerca de arame farpado, mas o arame tinha pontas de marshmallow. Ele

passou facilmente por minhas defesas. Ren pousou a testa em minha

mão e meu coração de marshmallow se derreteu.

Passei os braços em torno de seu pescoço, abraçando-o, e sussurrei em

seu ouvido:

- Um príncipe da Índia nunca deve se ajoelhar e implorar por nada. Está

bem. Você pode ficar.

Ele suspirou e me apertou mais.

Eu sorri com ironia.

- Afinal, eu não ia querer que a sociedade protetora dos animais viesse

atrás de mim por maus-tratos a um tigre.

Ele riu.

- Espere aqui - disse e saiu pela porta que conectava nossas casas.

Voltou com um pacote amarrado com uma fita vermelha.

A caixa era comprida, fina e negra. Eu a abri e encontrei uma pulseira.

A corrente fina tinha um medalhão oval de ouro branco, dentro do qual

havia duas fotografias: Ren, o príncipe, e Ren, o tigre.

Eu sorri.

- Você sabia que eu ia querer me lembrar do tigre também.

Ren prendeu a pulseira em meu pulso e suspirou.

- Sabia, embora eu tenha um pouco de ciúme dele. Ele passa muito mais

tempo com você do que eu.

- Hum. Não tanto quanto antes. Sinto falta dele.

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Ele fez uma careta.

- Acredite em mim, você o verá muito nas próximas semanas.

Seus dedos quentes roçaram meu braço e meu coração acelerou. Ele

puxou meu braço até a altura de seus olhos, examinou o pingente e

depositou um beijo no pulso.

Os olhos de Ren brilharam, maliciosos, enquanto ele perguntava:

- Então... gostou?

- Gostei. Obrigada. Mas... - Minha expressão mudou, mostrando tristeza.

- Não comprei nada para você.

Ele me puxou e me abraçou pela cintura.

- Você me deu o melhor presente de todos: o dia de hoje. É o melhor

presente que eu poderia ter desejado.

Eu ri e provoquei:

- Nesse caso, que porcaria de embrulho que eu fiz.

- É, tem razão. E melhor eu embrulhar você devidamente.

Ren pegou a colcha da minha avó no encosto da poltrona e me enrolou

feito uma múmia. Eu me debati e gritei enquanto ele me pegava nos

braços e me punha no colo.

- Vamos ler alguma coisa, Kells. Estou pronto para outra peça de

Shakespeare. Tentei ler uma sozinho, mas tive muita dificuldade com a

pronúncia das palavras.

Pigarreei dentro de meu casulo.

- Como pode ver, meu captor, meus braços estão presos.

Ren se inclinou para fazer um carinho com o nariz em minha orelha e

de repente ficou rígido.

- Tem alguém aqui.

A campainha soou. Ren se levantou de um salto, me colocou em pé e

me livrou da colcha antes que eu pudesse piscar. Fiquei ali parada por

um instante, tonta e confusa. Então corei, constrangida.

- O que aconteceu com sua audição de tigre? - sibilei.

Ele sorriu para mim.

- Eu estava distraído, Kells. Você não pode me culpar. Está esperando

alguém?

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De repente me lembrei:

-Li!

-Li?

Fiz uma careta.

- Temos um... um encontro. Os olhos de Ren escureceram e ele repetiu baixinho:

- Você tem um encontro?

- Tenho... - respondi, hesitante.

Em minha mente disparavam pensamentos sobre o homem à minha

frente e o outro, diante da porta. Ren está de volta, mas o que isso significa? E o que eu devo fazer agora ?

A campainha tornou a soar. No mínimo eu sabia que não podia deixar

Li esperando.

Voltando-me para Ren, expliquei:

- Preciso ir agora. Por favor, fique aqui. Veja o que tem na geladeira e

faça um sanduíche. Volto mais tarde. Por favor, tenha paciência. E não... fique... zangado. Ren cruzou os braços diante do peito e estreitou os olhos.

- Se é isso que você quer que eu faça, é o que farei.

Suspirei com alívio.

- Obrigada. Estarei de volta assim que puder.

Calcei os sapatos e peguei o embrulho com a coleção de DVDs que

havia comprado para Li. Com os lábios apertados, Ren me ajudou a

vestir o casaco e foi para a cozinha. Ele se recostou na bancada com os

braços cruzados e ergueu as sobrancelhas. Dirigi-lhe um sorriso débil e

suplicante e segui para a porta da frente.

Senti uma pontada de culpa por ter um presente para Li e nenhum para

Ren, mas rapidamente descartei essa sensação e abri a porta, agindo

como se nada estranho estivesse acontecendo.

- Oi, Li.

- Feliz Natal, Kelsey - disse ele, completamente alheio ao fato de que

tudo em minha vida havia mudado mais uma vez.

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Meu encontro com Li não transcorreu como originalmente planejado.

Deveríamos ver um filme de artes marciais e depois ir para o jantar de

Natal na casa da Vó Zhi. Eu estava séria e meus pensamentos insistiam

em me levar de volta a Ren. Era difícil me concentrar em Li - ou em

qualquer outra coisa.

- O que foi, Kelsey? Você está muito quieta.

- Li, você se importa se pularmos o filme e anteciparmos o jantar?

Preciso dar alguns telefonemas quando chegar em casa. Quero desejar

feliz Natal a alguns amigos.

Li ficou decepcionado, mas replicou alegremente, como sempre.

- Ah. Claro. Isso não é problema.

Aquilo não era exatamente mentira. Eu pretendia ligar para o Sr.

Kadam mais tarde. Porém isso não me fez sentir nem um pouco melhor

por mudar nossos planos.

Na casa da Vó Zhi, os garotos estavam no meio de uma maratona de um

dia inteiro de jogos. Participei de alguns, mas estava distraída e tomei

decisões estratégicas ruins - tão ruins que até os rapazes comentaram.

- O que você tem, Kelsey? - perguntou Wen. - Nunca deixou que eu me

safasse com uma jogada como essa.

Sorri para ele.

- Não sei. Melancolia de Natal, talvez.

Eu estava perdendo feio, então Li pegou minha mão e me levou para a

sala a fim de trocarmos nossos presentes. Li e eu abrimos os pacotes ao

mesmo tempo.

Rasgamos os papéis e rimos muito por muito tempo. Havíamos

comprado exatamente o mesmo presente para o outro. Era uma

sensação boa aliviar parte da tensão que havia se acumulado.

- Parece que nós dois gostamos de DVDs de artes marciais - disse ele,

rindo.

- Desculpe, Li. Eu devia ter pensado mais.

Ele ainda estava rindo.

- Não se preocupe. É um bom sinal. Vó Zhi diria que é um sinal de boa

sorte na cultura chinesa. Significa que somos compatíveis.

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- É - eu disse, pensativa -, acho que sim.

Voltamos ao jogo depois de comer e joguei sem entusiasmo enquanto

pensava no que ele tinha dito. Li estava certo em muitos aspectos. Nós éramos compatíveis e provavelmente combinávamos mais do que Ren e

eu. Como Sarah e Mike, éramos pessoas normais. E Ren... não. Ele era

imortal e maravilhoso. Era perfeito demais.

Eu podia facilmente visualizar uma vida com Li. Seria cômoda e segura.

Ele seria médico e montaria um consultório num lugar tranqüilo.

Teríamos um casal de filhos e passaríamos as férias na Disney. As

crianças fariam aulas de wushu e futebol. Comemoraríamos as datas

festivas com os avós de Li e faríamos churrascos e convidaríamos todos

os seus amigos e esposas.

Uma vida com Ren era mais difícil de imaginar. Não parecia que

fôssemos feitos um para o outro. Era como combinar Ken com

Moranguinho. Ele precisava da Barbie. O que Ren faria no Oregon? Arranjaria um emprego? O que ele colocaria no currículo? Sumo Protetor e ex-Príncipe da Índia? Ficaríamos sócios de um parque temático de animais selvagens para que ele pudesse ser a principal atração nos fins de semana? Nada disso fazia sentido. Mas eu não podia

negar meus sentimentos por Ren - não mais. Era dolorosamente óbvio que meu coração rebelde ansiava por ele. E,

por mais que eu tentasse me convencer a me apaixonar por Li, a

verdade era que eu era sempre atraída de volta a Ren. Eu gostava de Li.

Talvez um dia pudesse até vir a amá-lo. Com certeza eu não queria

magoá-lo. Não era justo.

O que eu vou fazer? Depois de jogar mal por mais uma hora, Li me levou para casa. A noite

caía quando ele parou na entrada da garagem. Olhei para as janelas em

busca de uma sombra familiar, mas não vi nada. A casa estava escura. Li

me acompanhou até a porta.

- Ei, meus olhos estão me enganando ou é um visco que está pendurado

aí? - perguntou ele, apertando meu cotovelo.

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Olhei para cima, para o visco, e me lembrei de minha decisão de beijar

Li naquela noite. Isso parecia ter sido muito tempo atrás. Agora tudo

tinha mudado. Não tinha? E Ren? Podíamos mesmo ser só amigos? Eu deveria arriscar tudo e dar uma chance a Ren? Ou optar por algo seguro como Li? Como escolher?

Eu ficara em silêncio por muito tempo e Li esperava pacientemente por

minha resposta. Por fim, virei-me para ele e disse:

- É, sim.

Levei a mão ao seu rosto e beijei-o delicadamente nos lábios. Foi bom.

Não o beijo apaixonado que eu havia planejado, mas ainda assim ele

parecia feliz. Li tocou meu rosto e sorriu. Seu toque era agradável.

Seguro. Mas não chegava nem perto do que eu sentia com Ren. O beijo

de Li era uma partícula de poeira no Universo, uma gota perto de uma

cachoeira.

Como viver com alguma coisa tão comum quando já se teve algo tão excepcional? Acho que só aprendendo a acalentar as lembranças. Girei a chave na fechadura e abri a porta.

- Boa noite, Kelsey - gritou Li, feliz. - Até segunda.

Fiquei observando o carro se afastar e entrei em casa para encarar o

príncipe indiano que me esperava lá dentro.

6

Escolhas

Entrei e fechei a porta, deixando que meus olhos se ajustassem à

escuridão. Perguntei-me se Ren estaria na casa ao lado e ponderei se

deveria ou não esclarecer as coisas com ele aquela noite.

Cheguei à sala e arquejei baixinho quando avistei a forma familiar do

meu tigre branco de olhos azuis esparramado no sofá de couro. Ren

ergueu a cabeça e olhou diretamente em minha alma.

Lágrimas vieram-me aos olhos. Eu não havia me dado conta de que

sentira tanto a falta desse lado dele, o meu amigo. Ajoelhei-me diante

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do sofá, joguei os braços em torno de seu pescoço e deixei que grandes

lágrimas jorrassem, escorrendo pelo meu rosto até seu pelo branco e

macio. Acariciei sua cabeça e alisei suas costas. Ren estava ali.

Finalmente estava comigo. Eu não estava mais sozinha. De repente

percebi que ele devia ter se sentido assim também, ficando sem mim

todos esses meses.

Reprimi um soluço.

- Ren, eu... eu senti tanta saudade. Queria falar com você. Você é meu

melhor amigo. Eu só não queria limitar suas escolhas. Você consegue

entender isso?

Meus braços ainda envolviam com força seu pescoço quando senti que

ele se transformava. Seu corpo se metamorfoseou e logo seus braços

estavam em torno do meu corpo e eu me encontrava sentada em seu

colo. Sua camisa branca estava úmida das minhas lágrimas.

Abraçando-me com força, ele disse:

- Eu também senti saudade, iadala. Mais do que você imagina. E entendo

suas razões para partir.

- Entende? - murmurei de encontro à sua camisa.

- Sim. Mas quero que você entenda uma coisa também, Kells. Você não

limita minhas escolhas. Você é a minha escolha.

- Mas, Ren... - funguei.

Ele puxou minha cabeça de volta para seu ombro.

- Este homem, Li. Você o beijou?

Assenti silenciosamente contra seu peito. Não tinha sentido negar. Eu

sabia que ele devia ter ouvido através da porta.

- Você o ama?

- Somos amigos e gosto muito dele, mas com certeza não estou apaixo-

nada por ele.

- Então por que o beijou?

- Eu o beijei para... comparar, eu acho. Para analisar o que eu realmente

sentia por ele.

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Ren me pegou e me sentou no sofá ao lado dele. Ele estava se animando

com o assunto e eu não conseguia entender por quê. Esperava que ele

ficasse furioso, mas não estava nada zangado.

- Então é nesses encontros que vocês descobrem se gostam um do outro?

- É - respondi, hesitante.

- Você teve outros encontros ou esse é o primeiro?

- Com Li?

Ele ergueu uma sobrancelha.

- Houve outros?

- Sim.

Franzi a testa.

- Quantos? - quis saber ele.

- Três no total. Li, Jason e Artie. Se é que se pode contar Artie. Ren, por

que todas essas perguntas? Aonde você quer chegar?

- Só estou curioso em relação a rituais de corte modernos. O que você

fez nesses encontros?

- Fui ver alguns filmes, saí para jantar, fui a um casamento com Li e a

um jogo de futebol com Jason.

- Você beijou todos esses homens?

- Não! Só beijei Li e essa foi a primeira vez.

- Então Li é o seu preferido. - Ren começou a murmurar consigo

mesmo. Ficando de frente para mim, ele tomou minhas mãos nas dele. -

Kelsey, acho que você deve continuar com esses encontros.

Meu queixo caiu.

- O quê? - Estou falando sério. Fiquei pensando nisso enquanto você estava fora.

Você falou sobre me dar escolhas. Eu já fiz a minha, mas você ainda não

fez a sua.

- Ren, isso é loucura! Do que você está falando?

- Saia com Li ou Jason ou com quem mais você quiser e prometo que

não vou interferir. Mas também mereço uma chance. Quero que você

saia comigo também.

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- Você não entendeu como isso funciona, Ren. Não posso ficar saindo

com três ou quatro homens para sempre. O objetivo desses encontros,

ou melhor, do namoro, é a pessoa acabar ficando exclusivamente com

alguém com quem se identifica.

Ele sacudiu a cabeça.

- Você namora para encontrar a pessoa que você ama, Kelsey.

- Então você acha que eu devo dizer a Li: "A propósito, Ren está de volta

e ele achou que seria ótimo se eu saísse com vocês dois"? É isso? -

explodi.

Ele deu de ombros.

- Se Li não consegue lidar com um pouco de competição honesta, é

melhor você saber disso agora.

- Isso vai atrapalhar minhas aulas de wushu. - Por quê?

- Ele é o meu professor.

Ren sorriu.

- Ótimo. Vou com você. Quero conhecê-lo. Aliás, um pouco de

exercício vai me fazer bem.

- Ren, é uma turma de iniciantes. Não é apropriada para você e eu não

quero você lutando com Li. Prefiro que não vá.

- Serei um perfeito cavalheiro. - Ele inclinou a cabeça, me observando. -

Você tem medo de que eu seja a escolha óbvia?

- Não - respondi com irritação. - Estou mais preocupada que você vá

esmagá-lo.

- Eu não faria isso, Kelsey. Mesmo que quisesse, essa não seria a maneira

de conquistar o seu amor. Até eu sei disso. Então, vai sair comigo?

- Sair com você seria... difícil. - Por que é mais fácil com outros homens do que comigo? E não me

venha com a explicação do rabanete outra vez. Ela é ridícula.

- Porque - continuei baixinho -, se não desse certo com os outros

homens, eu poderia sobreviver sem eles.

Beijando-me os dedos, Ren me olhou com intensidade e disse:

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- Iadala, você nunca vai me perder. Eu sempre estarei perto de você. Me

dê uma chance, Kells. Por favor.

Soltei um suspiro e fitei seu lindo rosto.

- Vamos tentar.

- Obrigado. - Ele se recostou no sofá, muito satisfeito consigo mesmo. -

Então me trate como todos os outros caras.

Ah, sim. Sem problema. Basta tratar o homem mais perfeito e lindo na face da Terra, que por acaso é um antigo príncipe indiano que, por meio de uma maldição, se transformou em um tigre, como se ele fosse um cara comum. Nenhuma garota em seu juízo perfeito poderia sequer olhar para ele - mesmo sem saber tudo que eu sei - e pensar que ele era igual aos outros. Ele se inclinou para me dar um beijo no rosto.

- Boa noite, rajkumari. Ligo para você amanhã.

Na manhã seguinte o telefone tocou muito cedo. Era Ren me

convidando para jantar, nosso primeiro encontro oficial.

Eu bocejei, sonolenta.

- Onde você quer jantar?

- Não faço idéia. O que você sugere?

- Em geral o homem tem um lugar em mente quando telefona, mas vou

lhe dar um desconto dessa vez, já que você é novo nessa coisa de sair,

namorar e tudo mais. Eu sei aonde podemos ir. Use uma roupa casual e

me pegue às cinco e meia. Mas você pode me fazer uma visita mais cedo

se quiser.

- Vejo você às cinco e meia, Kells.

Andei à toa pela casa a maior parte do dia, vigiando nossa porta de

comunicação, mas Ren permaneceu teimosamente do seu lado. Eu até

fiz biscoitos com gotas de chocolate, esperando que o cheiro o atraísse

mais cedo, mas não funcionou.

Às cinco e meia em ponto ele bateu na minha porta da frente. Quando a

abri, ele me entregou uma rosa-chá e me ofereceu o braço. Estava

ridiculamente bem-vestido para um encontro casual, com uma camisa

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listrada cinza-escuro de mangas compridas e um colete esportivo

acolchoado de grife.

Lá fora, Ren abriu a porta do Hummer. O ar quente soprou das saídas

do sistema de aquecimento do carro quando ele deslizou as mãos pela

minha cintura e me levantou até o banco. Certificou-se de que o cinto

estava devidamente preso e perguntou:

- Para onde?

- Vou apresentá-lo ao orgulho do Noroeste. Vou levá-lo a Burgerville.

No caminho Ren me falou sobre todas as coisas que aprendera nos

últimos meses, entre as quais estava dirigir. Contou uma história

engraçada de quando seu irmão bateu acidentalmente o Jeep no

chafariz e depois o Sr. Kadam não quis deixar Kishan nem chegar perto

do Rolls-Royce.

- Kadam me instrui em todos os temas imagináveis - continuou Ren. -

Estou estudando política moderna, história mundial, economia e

administração. Aparentemente, viver durante séculos, somado aos

sábios investimentos feitos por Kadam, foi lucrativo. Somos muito ricos.

- Ricos?

- O suficiente para governar um país.

Fiquei boquiaberta.

Ren prosseguiu casualmente.

- Kadam estabeleceu contatos no mundo todo. São recursos bastante

valiosos e você ficaria surpresa com o número de pessoas importantes

que lhe devem favores.

- Pessoas importantes? Como quem?

- Generais, presidentes de grandes empresas, políticos dos principais

países do mundo, a realeza e até líderes religiosos. Ele é muito bem

relacionado. Mesmo que eu pudesse assumir a forma humana o dia

inteiro e passasse todas as horas com ele, não conseguiria nem chegar

perto de reunir todo o conhecimento que ele adquiriu ao longo dos

anos. Ele já era um conselheiro brilhante para o meu pai. Agora, porém,

não é nada menos que um gênio. Não existe recompensa na Terra que

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possa lhe pagar a lealdade que demonstrou para conosco. Eu só queria

que houvesse uma forma de expressar nossa gratidão apropriadamente.

No estacionamento do restaurante, Ren me ofereceu o braço. Eu o

aceitei e disse:

- Ser imortal tem seu preço. O Sr. Kadam parece muito solitário e isso é

algo que vocês três têm em comum. Vocês formam uma família.

Ninguém pode compreender o que você passou melhor do que Kishan e

o Sr. Kadam. Acho que a melhor coisa que podem fazer como

pagamento é oferecer a ele o mesmo nível de lealdade. Ele considera

você e Kishan como filhos e a melhor maneira de um filho honrar o pai

é ser o tipo de homem que o deixaria cheio de orgulho.

Ren parou, sorriu e inclinou-se para beijar meu rosto.

- Você é uma mulher muito sábia, rajkumari. Esse foi um excelente

conselho.

Quando chegou nossa vez na fila do Burgerville, Ren me deixou

escolher primeiro e em seguida pediu sete sanduíches enormes, três

porções de batata frita, um refrigerante grande e um milk-shake grande

de amora. Quando a atendente perguntou se era para viagem, ele

sacudiu a cabeça negativamente, confuso, e lhe disse que comeríamos

ali. Eu ri e disse à mulher que ele estava com muita fome.

Na máquina de refrigerante, Ren provou vários sabores. Observá-lo

descobrindo novos sabores e novos alimentos era muito divertido.

Enquanto comíamos, conversamos sobre a faculdade e minha pesquisa

inacabada para o Sr. Kadam sobre criaturas aladas e a prova das quatro

casas. Também lhe contei sobre Jason e meu encontro horrível com

Artie. Ren franziu a testa, sem entender por que alguém sairia com

Artie por vontade própria.

- Ele praticamente engana as garotas, forçando-as a sair com ele -

expliquei. - Mas é supercrítico e egocêntrico.

- Hum.

Ren desembrulhou seu último sanduíche e o olhou, refletindo.

Eu ri.

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- Está cheio, Tigre? Seria uma pena dispensar seu milk-shake de amora.

É o melhor do país.

Ele pegou outro canudo e o enfiou na tampa do copo de milk-shake.

- Aqui, divida comigo.

Dei um gole e Ren inclinou-se e sugou cerca de um terço de uma só

vez.

Depois de comer fomos até um parque ali perto e resolvemos dar uma

caminhada. Ren pegou um cobertor na mala do carro.

- Tenho permissão para segurar sua mão num primeiro encontro? -

perguntou Ren.

- Você sempre segura minha mão.

- Não num encontro.

Revirei os olhos, mas estendi a mão. Andamos pelo parque por um

tempo e ele me fez muitas perguntas sobre os Estados Unidos, sua

história e sua cultura. A conversa fluía facilmente. Tudo era novo e

fascinante para ele.

Paramos à beira de um lago. Ren se sentou, me puxou contra o seu

peito e me envolveu com os braços.

- Só estou tentando aquecê-la - disse, na defensiva, quando lhe lancei

um olhar significativo.

Ri com deboche.

- Esse é o truque mais velho do mundo.

Ren sorriu e roçou os lábios em minha orelha.

- Que outros truques eu deveria usar com você?

- Não sei por quê, mas acho que você vai descobri-los sozinho.

Apesar da minha brincadeira, ficar perto dele de fato me manteve

aquecida e ficamos conversando e observando a água iluminada pela lua

durante horas.

Ren queria saber tudo que eu tinha feito desde que saíra da Índia.

Queria ver as cachoeiras do Parque Silver Falls, assistir ao Festival de

Shakespeare, ir ao cinema e conhecer todos os restaurantes da cidade.

Depois que terminou de me interrogar sobre coisas a fazer e lugares a

visitar no Oregon, a conversa mudou.

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Ele me apertou mais forte e disse:

- Senti sua falta.

- Senti sua falta também.

- Nada foi igual depois que você partiu. A casa ficou sem vida. Todos

notaram. Não fui o único que sentiu saudade. Até Kadam ficou abatido.

Kishan dizia que o mundo moderno não tinha nada para lhe oferecer e

várias vezes ameaçou ir embora. Mas eu o peguei em mais de uma

ocasião escutando seus telefonemas também.

- Eu não queria tornar a vida de vocês mais difícil. Minha intenção era

tornar as coisas mais fáceis, contribuir para que sua adaptação de volta

ao mundo fosse um pouco menos complicada.

- Você não complica minha vida. Você a simplifica. Quando está perto,

sei exatamente onde eu deveria estar: ao seu lado. Quando você se vai,

apenas corro em círculos, confuso. Minha vida ficou desequilibrada.

Fora de foco.

- Então eu sou a sua Ritalina, é?

- O que é isso?

- Um medicamento que ajuda as pessoas a ter mais concentração.

- É, acho que é isso. - Ele se pôs de pé, me levantou em seus braços e

disse: - Não se esqueça: preciso de doses freqüentes.

Eu ri e lhe dei um beijo no rosto. Ren me pôs no chão, dobrou o

cobertor e voltamos para o Hummer com o braço dele em meu ombro.

Eu me sentia bem. Pela primeira vez em meses, sentia-me completa e

feliz.

Quando me acompanhou até a porta de minha casa, ele disse:

- Shubharatri, Kells. - O que isso quer dizer?

Ele me lançou um sorriso daquele tipo luminoso e de fazer tremer os

joelhos e depositou um beijo demorado na palma da minha mão.

- Quer dizer "Boa noite".

Confusa e ligeiramente frustrada, fui para cama.

Sentir-me confusa e ligeiramente frustrada tornou-se uma constante

nos encontros com Ren. Eu o queria por perto com uma freqüência

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muito maior, mas ele estava determinado a passar pelo que chamava de práticas de corte habituais. Isso significava me deixar sozinha a menos

que tivéssemos um encontro previamente marcado. Ele não me deixava

nem vê-lo como tigre.

Todos os dias ligava para saber se eu estava livre. Então me convidava

para o cinema, um jantar, um chocolate quente ou uma ida a uma

livraria. Quando determinava que o encontro havia chegado ao fim, ia

embora. Desaparecia completamente e pelo resto do dia eu não via nem

de relance sua figura listrada. Ele também se recusava a me beijar

dizendo que tinha muito o que pôr em dia. Mesmo estando do outro

lado da parede, eu sentia saudade do meu tigre.

Começamos a ler Otelo juntos. Até Otelo ser enganado por lago, Ren

gostou do personagem.

- Foi Otelo quem destruiu o amor dele e de Desdêmona, da mesma

maneira que Romeu. Isso não teve nada a ver com lago - comentou

Ren, pensativo. - Otelo não confiava na mulher. Se ele tivesse

simplesmente perguntado a ela o que acontecera com seu lenço ou o

que ela sentia por Cássio, teria descoberto a verdade.

- Otelo e Desdêmona não se conheciam há muito tempo - argumentei. -

Talvez não estivessem de fato apaixonados. Vai ver que seu único

vínculo verdadeiro eram as histórias que ele contava e suas aventuras

empolgantes. Não muito diferente de você, devo dizer.

Ren estava deitado com a cabeça no meu colo. Ele brincou com meus

dedos por um minuto, pensativo, e perguntou, hesitante:

- E por isso que você está comigo, Kelsey? Pela aventura? Está entediada

sentada aqui, lendo, quando poderíamos estar andando pela Índia à

procura de objetos mágicos e combatendo demônios?

Ponderei sobre a pergunta por um momento.

- Não. Eu gosto de estar com você, mesmo que a gente fique só comendo

pipoca e lendo.

Ele beijou meus dedos.

- É bom saber.

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Recomecei a ler, mas ele se levantou de um pulo e me arrastou para a

cozinha com uma súbita urgência de aprender a fazer pipoca de micro-

ondas.

Uma tarde eu estava tão desesperada para ver meu tigre que resolvi ir à

procura dele sem ter um encontro oficialmente marcado. Bati na porta

de comunicação e, não obtendo resposta, entrei na sala de estar de Ren.

Alguns pacotes fechados estavam empilhados sobre a bancada. Fui ao

andar de cima.

- Ren? - chamei, mas não obtive resposta.

Onde ele poderia estar?, pensei, enfiando a cabeça no escritório de Ren.

O notebook estava ligado e a tela tinha três janelas abertas.

Acomodando-me em sua confortável cadeira de couro, vi que a

primeira janela era do site de uma loja de roupas de grife e a segunda

era de um link para uma página de rituais de corte através dos tempos.

A terceira janela exibia uma série de e-mails do Sr. Kadam. Eu me senti

um pouco culpada lendo as mensagens de Ren, mas eram tão curtas

que, antes que me desse conta, já havia lido tudo.

De: [email protected]

Para: [email protected]

Assunto: Documentos

Ren,

A questão dos documentos está resolvida.

Kadam

De: [email protected]

Para: [email protected]

Assunto: Relocação

Ren,

A seu pedido, anexei um arquivo em caso de emergência.

Documentos? Relocação? O que eles estão aprontando? Com o mouse,

posicionei o cursor sobre o anexo. Com o dedo no botão, hesitei,

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ponderando até onde estava disposta a deixar a curiosidade me levar,

quando uma voz me fez dar um pulo.

- É apropriado pedir permissão antes de bisbilhotar documentos de

outras pessoas, você não acha? - perguntou Ren casualmente.

Minimizei a janela e me levantei. Ele parou no vão da porta, apoiando o

ombro no portal e mantendo os braços cruzados.

- Eu... eu estava procurando você e acabei me distraindo - murmurei.

- Estou vendo. - Ele fechou o notebook com delicadeza e apoiou o

quadril na mesa, me avaliando. - Eu diria que você encontrou mais do

que estava procurando.

Fitei os cadarços dos meus tênis por alguns segundos, mas rapidamente

encontrei uma centelha de irritação para amenizar a culpa e levantei a

cabeça.

- Você está escondendo coisas de mim?

- Não.

- Bem, tem algo importante acontecendo que você não quer me contar?

- Não - repetiu ele.

- Jure - eu disse baixinho -, faça um juramento real.

Ele tomou minhas mãos nas suas, fitou-me nos olhos e disse:

- Como o príncipe do Império Mujulaain, juro que não há aqui nenhum

motivo de preocupação. Se não acredita, pergunte a Kadam. - Ele

aproximou a cabeça um pouquinho mais de mim. - Mas o que eu quero

de verdade é a sua confiança. Não vou desmerecê-la, Kelsey.

- É melhor mesmo - enfatizei, cutucando-o no peito.

Ele levou meus dedos aos lábios, distraindo-me o bastante para que o

assunto de repente perdesse a importância.

- Não vou - prometeu ele e me conduziu de volta para casa.

A vertigem romântica desapareceu logo depois que ele saiu e eu me vi

furiosa com a facilidade com que ele me dobrava à sua vontade com um

simples toque.

As aulas de wushu recomeçavam na segunda-feira após o Natal e eu não

tinha a menor idéia do que diria a Li. Ren concordou em não ir no

primeiro dia para que eu pudesse conversar com Li primeiro. Não

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consegui me concentrar durante toda a aula e fiz um esforço tímido

para aprender as formas da mão. Não conseguia guardar os nomes. Os

únicos de que eu me lembrava eram garra de águia e macaco.

Depois da aula chegou a hora de enfrentar o problema. O que eu vou dizer? Ele vai me odiar. - Li, eu queria falar com você.

- Claro - disse ele, sorrindo.

Ele estava feliz e despreocupado. Eu me sentia justamente o oposto.

Estava tão nervosa que precisei me sentar em cima das mãos para que

elas parassem de tremer.

Li esticou as longas pernas no tapete e se apoiou na parede ao meu lado.

Depois de beber um grande gole de água, ele secou a boca e perguntou:

- E aí, Kelsey? O que foi?

- É... eu não sei bem como dizer isso, então acho que vou direto ao

ponto: Ren voltou.

- Ah. Eu estava me perguntando quando ele apareceria. Achei que não

fosse ficar longe de você para sempre. Então, você está rompendo

comigo... - disse ele com naturalidade.

- Bem, não, não exatamente. Olhe, Ren quer que eu continue saindo

com você, mas quer que eu saia com ele também.

- O quê? Que tipo de cara iria... espere... então você não está terminando

comigo?

Apressei-me em explicar:

- Não, mas vou entender se você não quiser mais me ver. Ele acha que

eu devo sair com vocês dois e então escolher.

- Bem, que atitude... esportiva da parte dele. E o que você acha disso?

Pus a mão em seu braço.

- Concordei em tentar, mas disse a ele que seria estranho e que você

nunca concordaria.

- E o que ele disse?

Suspirei.

- Disse que, se você não conseguisse lidar com um pouco de competição

honesta, era melhor eu saber agora.

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Li cerrou os punhos.

- Se ele acha que eu vou desistir e deixar o caminho livre para ele, está

enganado! Então vamos à competição honesta.

- Você está brincando? Está zombando de mim, não está?

- Meu avô me ensinou a estabelecer objetivos e então batalhar pelo que

quero e de jeito nenhum vou perdê-la sem lutar. Um homem que não

corre atrás da garota de que gosta e não luta por ela não a merece.

Fiquei pasma. Li e Ren eram farinha do mesmo saco, ainda que

estivessem separados por séculos.

- Ele está aqui na cidade? - perguntou ele.

- Não exatamente - suspirei. - Ele é meu vizinho.

- Então ele já tem a vantagem da proximidade.

- Você fala como se estivessem planejando invadir um castelo -

murmurei com ironia.

Ele ignorou meu comentário ou não o ouviu. Ajudou-me a levantar,

distraído, e me acompanhou até o carro.

Quando Li se debruçou em minha porta aberta, acrescentei:

- Ah, e ele também quer vir a uma aula de wushu. Li esfregou as mãos e

riu.

- Excelente! Vamos ver do que esse cara é capaz. Ele pode vir amanhã!

Diga que, como cortesia especial, não vou nem cobrar a taxa de

matrícula.

- Mas, Li, ele não está no mesmo nível que eu.

- Melhor ainda! O iniciante vai aprender uma ou duas coisinhas!

- Não. Você entendeu mal. Ele...

Li me beijou com força na boca, o que efetivamente me calou. Ele

sorriu e fechou a porta antes que eu pudesse concluir minha resposta.

Acenando, desapareceu na escuridão do estúdio.

No dia seguinte encontrei um bilhete escrito com capricho colado na

garrafa de suco de laranja na geladeira.

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De todas as formas de cautela, a cautela no amor é talvez a mais fatal para a verdadeira felicidade - Bertrand Russell

Suspirei, descolei-o da garrafa de suco e colei-o em meu diário. Liguei

para Ren, já que ele só queria me ver em encontros planejados, e

informei que ele estava convidado para a aula de wushu. Então lhe disse

com todas as letras o que achava daquela idéia. Ele fez pouco da minha

reação e afirmou que Li seria um excelente rival e que estava ansioso

para conhecê-lo.

Exasperada, desisti de tentar convencê-lo a esquecer aquela história e

bati o telefone. Ele ligou várias vezes naquele dia, mas ignorei o

telefone e tomei um demorado banho de banheira.

De noite, Ren tirou o Hummer da garagem e veio me pegar. Eu temia

muito, muito, muito ficar no mesmo ambiente com Li e Ren e não pude

deixar de sentir alívio por não estarmos avançados o bastante no wushu

para usar armas.

O corpo dele ocupou o vão da porta.

- Está pronta? Mal posso esperar pela minha primeira aula.

Meu silêncio mal-humorado não pareceu perturbá-lo nem um pouco e

ele falou sobre o começo das aulas na Western Oregon durante todo o

trajeto.

Chegamos alguns minutos atrasados. A aula já havia começado e

Jennifer estava fazendo o aquecimento em nosso canto. Ren caminhava

confiante ao meu lado. Com a cabeça baixa, entrei rapidamente, larguei

a bolsa no chão e tirei o casaco.

Olhei para Jennifer, que estava no chão alongando as pernas. Ela fez

uma pausa no meio de um movimento para olhar Ren. Seus olhos

praticamente saltavam das órbitas. O olhar de Li passou sobre minha

cabeça fixando-se em Ren, que o sustentou com atrevimento,

estudando Li como se o avaliasse em busca de fraquezas.

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Ren tirou o casaco, o que provocou um gritinho de Jennifer, agora

totalmente concentrada nos bíceps de bronze dourado de Ren. A

camiseta justa exibia seus braços e peitoral bem desenvolvidos.

Sibilei para ele baixinho:

- Pelo amor de Deus, Ren! Você vai deixar as mulheres com taquicardia!

Ele levantou as sobrancelhas, confuso.

- Kells, do que você está falando?

- Você! Você é... - desisti, aborrecida. - Deixe para lá.

Pigarreei.

- Desculpe interromper a aula, Li. Ei, pessoal, este é o meu convidado,

Ren. Ele é da Índia e está passando uns tempos aqui.

A boca de Jennifer se escancarou num grande e silencioso "Oh"!

Li me lançou um olhar interrogativo antes de voltar à aula. Ele nos fez

praticar chutes e posturas e pareceu bastante irritado quando viu que

Ren conhecia todos os movimentos. Li ordenou que formássemos

duplas e decidiu que Ren faria par com Jennifer enquanto ele

trabalharia comigo.

Ren voltou-se para Jennifer todo simpático e ela enrubesceu dos pés à

raiz dos cabelos. Estávamos praticando movimentos para derrubar o

oponente. Li demonstrou um em mim e então pediu que todos

tentássemos repetir. Ren já estava à vontade conversando com Jennifer,

gentilmente guiando-a pelo movimento, dando-lhe dicas e sugestões.

De alguma forma ele já a deixara completamente à vontade. Ren era

gentil e encantador. Quando ela tentou derrubá-lo, ele caiu de maneira

dramática e esfregou o pescoço, fazendo-a explodir em risadinhas.

Sorri e pensei: É, ele exerce esse efeito em mim também. Fiquei feliz

que ele estivesse sendo simpático com minha amiga. De repente me vi

caída de costas, fitando as luzes fluorescentes. Enquanto eu olhava Ren

e Jennifer, Li havia me derrubado com força. Eu não tinha me

machucado, só fui pega de surpresa. A expressão determinada de Li

imediatamente se transformou em arrependimento. - Desculpe, Kelsey. Machuquei você? Eu não queria...

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Antes que ele pudesse concluir seu pedido de desculpas, foi atirado no

tatame a alguns metros dali. Ren se ajoelhou, debruçando-se sobre

mim.

- Ele machucou você, Kells? Você está bem?

Zangada e constrangida, sibilei:

- Ren! Eu estou bem! Li não me machucou. Eu só não estava prestando

atenção. Acontece.

- Ele devia ter tomado mais cuidado - rosnou Ren.

- Estou bem - sussurrei baixinho. - E caramba! Você precisava atirá-lo

quase do outro lado da sala?

Ele resmungou e me ajudou a ficar de pé.

Li voltou correndo e ignorou Ren de propósito.

- Você está bem, Kelsey?

Pousei a mão em seu braço.

- Estou bem. Não se preocupe. Foi minha culpa. Eu me distraí.

- É. Você estava distraída. - Seus olhos correram para Ren brevemente. -

Belo golpe, mas gostaria de vê-lo tentar isso outra vez.

Ren abriu um sorriso.

- Quando quiser.

Li sorriu de volta e estreitou os olhos.

- Mais tarde, então.

Fiquei ao lado de Jennifer, que tremia de emoção. Ela abriu a boca para

fazer a primeira do que eu imaginava ser uma série de perguntas, mas

ergui um dedo no ar.

- Agora não. Eu só quero terminar esta aula. Prometo que depois lhe

conto o que está acontecendo.

- Promete? - ela articulou sem emitir som.

Assenti com a cabeça.

Jennifer passou o restante da aula observando-nos com atenção. Eu

podia ver sua mente trabalhando, enquanto ela ouvia com cuidado cada

comentário e avaliava cada olhar e toque casual. Li nos orientou a fazer

formas simples com as mãos pelo restante da aula e então nos dispensou

abruptamente.

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Ele e Ren pareciam travar uma competição de olhares. Ambos tinham

os braços cruzados, avaliando o outro com frieza. Acompanhei Jen até a

porta.

Ela apertou meu braço.

- Seu Ren é maravilhoso. Um espetáculo. Agora entendo por que você

teve tanta dificuldade em deixá-lo. Se eu fosse alguns anos mais jovem e

não vivesse um casamento feliz, eu o trancaria comigo e engoliria a

chave. O que você vai fazer?

- Ren quer que eu saia com os dois.

Jennifer ficou de queixo caído e eu me apressei a acrescentar:

- Mas ainda não vou tomar nenhuma decisão.

- Isso é tão emocionante! É melhor que minha novela favorita. Boa

sorte, Kelsey. Até segunda.

No carro, a caminho de casa, perguntei a Ren:

- Você e Li conversaram?

- Não muito. Vou freqüentar as aulas de wushu, mas tenho que pagar

um preço especial, que Li estipulou achando que eu não poderia pagar.

- Não gosto nada disso. Eu me sinto como uma criança num processo

litigioso de guarda compartilhada.

- Você pode sair com os dois ou romper com Li agora - replicou ele. -

Mas, para ser justa, deveria dar a Li pelo menos uma semana.

- Rá! Está tão certo assim que eu escolheria você? Li também é um cara

legal!

Ren esfregou o queixo e disse baixinho:

- É. Acho que sim.

Esse comentário me surpreendeu e fiquei em silêncio, pensando nisso a

caminho de casa. Ren me ajudou a saltar do carro, me deixou na porta e

desapareceu, como sempre.

Sair com Li, Ren e Jason ao mesmo tempo era ridículo. Era quase como

se eu estivesse cercada por cavaleiros lutando pela preferência da

donzela. Enquanto eles marchavam em suas armaduras de batalha,

afiavam as lanças e se preparavam para montar seus cavalos, eu refletia

sobre minhas opções. Tinha uma escolha, afinal de contas. Eu podia

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escolher o vencedor, o perdedor ou nenhum deles. O lado bom é que

isso me faria ganhar algum tempo.

Eu podia compreender a idéia de uma rivalidade romântica do ponto de

vista de Ren, pelo menos um pouco. No século em que ele nasceu os

homens provavelmente lutavam pelas mulheres. Certamente seu

instinto de tigre lhe dizia que afugentasse outros machos. O que me

surpreendeu foi a reação de Li. Quem iria imaginar que ele fosse chegar

a esse ponto?, pensei. Se Li houvesse terminado comigo, teria facilitado

muito meu papel nessa novela. Talvez os dois se matassem na disputa e

todos morressem no fim, como em Hamlet. Quando chegamos para a aula de wushu na segunda, Li e Ren pareciam

ter estabelecido um acordo tácito de não se olharem. A turma os

observava com cautela, mas, vendo que nada acontecia, todos acabaram

sossegando. Nem Li nem Ren fizeram par comigo.

Li se esforçava para me levar a restaurantes elegantes e planejar

piqueni- ques elaborados. Ren se contentava em ir à minha casa para ler

ou assistir a alguns filmes. Pipoca passou a ser seu lanche favorito.

Víamos filmes antigos e depois ele fazia milhões de perguntas. Ele se

divertiu com vários deles, especialmente Star Wars. Gostava de Luke e

achava que Han Solo era bad boy demais.

- Ele não é digno da princesa Leia - disse Ren, o que me deu uma

compreensão mais profunda sobre sua persona de "cavaleiro na

armadura brilhante".

Na noite de sexta, Ren e eu estávamos prestes a começar a ver outro

filme quando me lembrei de que havia marcado um encontro com

Jason. Eu disse a Ren que ele podia assistir ao filme sem mim. Ele

resmungou, pegou um pacote de pipoca e foi ligar o micro-ondas.

Quando desci com um vestido azul-escuro, sandálias de tiras e o cabelo

liso, Ren levantou-se bruscamente e deixou cair a tigela de pipoca no

chão.

- Por que está vestida assim? Aonde você vai?

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- Jason vai me levar para ver uma peça em Portland. Mas pensei que

você tivesse algum tipo de política de não interferência cavalheiresca

em relação aos meus encontros.

- Quando você se veste assim, posso interferir quanto quiser.

A campainha soou e, quando abri a porta, Ren se aproximou pelas

minhas costas e me ajudou a vestir o casaco. Jason se moveu para a

frente e para trás pouco à vontade. Seus olhos fuzilaram Ren.

- Ah, Jason, este é meu amigo Ren. Ele é da Índia e vai passar uns

tempos aqui.

Ren estendeu a mão e sorriu, destilando veneno.

- Tome conta direitinho da minha garota, Jason.

Havia decididamente um "senão" implícito no fim da frase. Jason

engoliu em seco.

- Arrã. Pode deixar.

Empurrei Ren de volta para dentro de casa e fechei a porta em sua cara.

Na verdade, era um alívio estar com Jason. Eu não sentia a pressão

intensa que agora sentia com Li e Ren. Não que eles estivessem me

pressionando. Ren, em particular, parecia ter uma paciência infinita.

Acho que isso vinha de sua metade tigre.

Jason me levou para ver O Rei Leão. Os figurinos e adereços eram

incríveis e eu me peguei desejando que Ren estivesse ali comigo em vez

de Jason. Ren teria adorado ver como os animais eram representados.

Depois do espetáculo a multidão se espalhou pela calçada do teatro. As

pessoas caminhavam devagar em todas as direções na rua, obrigando os

carros a avançar em perigosos solavancos. Uma senhora idosa deixou

cair seu programa da peça e estava se abaixando para pegá-lo quando

um carro dobrou a esquina.

Sem pensar, corri na frente da mulher e fiz sinal para que o carro

parasse. O motorista pisou no freio, mas não rápido o bastante. Minha

sandália de tiras ficou presa numa fenda do calçamento quando tentei

sair do caminho. O carro bateu em mim de raspão e eu caí.

Jason correu para me ajudar e o motorista saltou do carro. Eu não estava

ferida com gravidade. Meu vestido e meu orgulho é que haviam sofrido

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danos, mas, fora isso, eu só tinha alguns arranhões e machucados. Um

fotógrafo do teatro correu para bater algumas fotos. Jason posou

comigo, com meu vestido rasgado e o rosto sujo, e forneceu meu nome,

dizendo que eu era uma heroína e que salvara a mulher idosa.

Tirando com desgosto minha sandália com o salto quebrado, segui para

o carro. Jason, animado, falava do acidente e dizia que era bem provável

que minha foto saísse na revista do teatro.

Ele tagarelou sem parar durante todo o trajeto sobre o trimestre

seguinte na faculdade e a última festa a que fora. Quando parou diante

da minha casa, não abriu a porta para mim. Suspirei, pensando: O cavalheirismo está quase extinto nesta geração. Jason ficava olhando

para meu vestido rasgado e para as janelas. Provavelmente estava

apavorado pensando que Ren pudesse ir atrás dele por não ter tomado

conta de mim. Virei-me no assento para encará-lo.

- Jason, precisamos conversar.

- Claro. O que foi?

Suspirei de leve e disse:

- Acho que devíamos parar de sair. Não temos muito em comum. Mas

eu gostaria que a gente conservasse a amizade.

- Tem outra pessoa na jogada?

Os olhos dele dispararam para a porta da casa outra vez.

- Talvez sim.

- Arrã. Bem, se mudar de idéia, estarei por perto.

- Obrigada, Jason. Você é um cara muito legal. Um pouco medroso, mas ainda assim legal. Dei-lhe um beijo de boa-noite no rosto e ele se foi de bom humor. Não foi tão ruim. Da próxima vez não será fácil assim. Entrei em casa e

encontrei outro bilhete na bancada da cozinha, ao lado de uma tigela

cheia de pipoca.

Nunca se perde por amar. Perde-se por se refrear - Barbara DeAngelis

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Estou identificando um tema aqui. Peguei uma Coca diet, a pipoca e

subi lentamente os degraus, carregando minha sandália quebrada. Um a menos. Que venha o próximo.

7

Volta às aulas

Na manhã seguinte Ren ligou para ver se podíamos tomar o café da

manhã juntos e assistir a um filme. Eu disse que sim e desliguei o

telefone. Meu corpo estava um pouco dolorido da queda, então engoli

umas aspirinas e tomei um banho quente.

O cheiro de panquecas queimadas flutuava escada acima. Encontrei Ren

na cozinha. Fatias de bacon chiavam no fogão e ele batia ovos numa

tigela grande. Meu avental de babados estava amarrado em sua cintura.

Era uma visão e tanto.

- Por que não pediu minha ajuda, Ren? - perguntei, tirando a panqueca

queimada da frigideira.

- Eu queria fazer uma surpresa para você.

- Isso com certeza é uma surpresa. - Eu ri e assumi o fogão. - Para que a

manteiga de amendoim?

- Para fazer panqueca de banana com manteiga de amendoim, é claro.

Eu ri.

- É mesmo? Como foi que você conseguiu criar isso?

- Tentativa e erro.

- Muito bem. Mas você também tem que experimentar panquecas à

minha moda, com gotas de chocolate.

- Combinado.

Quando eu tinha uma pilha de panquecas alta o suficiente para

satisfazer Ren, nos sentamos para comer. Ele provou um grande pedaço.

- E então? O que acha?

- Excelente. Mas ficariam ainda melhores com manteiga de amendoim e

banana.

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Estendi a mão para pegar a calda, revelando um hematoma longo e

arroxeado no braço. Ren notou imediatamente e tocou meu braço com

cuidado.

- O que foi isso? O que aconteceu com você?

- O quê? Ah... isso. Tentei evitar que uma senhora fosse atropelada por

um carro que se aproximava e ele bateu em mim. Eu caí.

Ren se levantou do banco de um pulo e me examinou e cutucou,

apalpando meus ossos e movimentando minhas articulações com todo o

cuidado.

- Onde dói?

- Ren! É sério, eu estou bem. São só alguns cortes e arranhões. Ai! Não

aperte aí! - Dei um tapa nele. - Pare com isso! Você não é médico. São

só algumas contusões bobas. Além do mais, Jason estava lá comigo.

- Ele também foi atingido pelo carro?

- Não.

- Então não estava lá com você. Da próxima vez que eu encontrar esse

cara, ele vai ficar com umas contusões semelhantes para que possa saber

o que você sentiu.

- Ren, pare de fazer ameaças. Isso não importa mais. Eu disse a Jason que

não queria mais sair com ele.

Ren abriu um sorriso de satisfação.

- Ótimo. Mas o garoto ainda precisa aprender umas coisinhas.

- Ah, mas não é você que tem que ensinar a ele. Só por isso vou escolher

o filme. E já vou avisando: pretendo pegar o filme mais mulherzinha

que encontrar.

Ele grunhiu, resmungou alguma coisa sobre rivais, contusões e garotas e

voltou para suas panquecas.

Depois do café da manhã, Ren me ajudou a arrumar a cozinha, mas o

estressadinho ainda não estava livre de sua punição. Coloquei o filme,

sentei-me ao lado dele com um sorrisão na cara e esperei que começasse

a reclamar. O crescendo do tema de abertura de A noviça rebelde

começou e dei uma risadinha, sabendo que ele iria sofrer pelas próximas

horas. Só que... Ren adorou. Ele pôs o braço em meus ombros e ficou

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brincando com a fita na ponta da minha trança. E assoviou,

acompanhando as canções.

Fez uma pausa no meio do filme, foi buscar o bandolim e começou a

tirar a música. O bandolim tinha um som mais exótico que o violão no

filme.

- É lindo! - exclamei. - Há quanto tempo você toca?

- Comecei depois que você partiu. Sempre tive bom ouvido para música

e minha mãe costumava pedir que eu tocasse para ela.

- Mas você pegou "Edelweiss" muito rápido. Já tinha ouvido essa canção?

- Não. Mas eu sempre fui capaz de tocar as notas só de ouvi-las.

Ele começou a tocar "My Favorite Things" e então a música mudou,

tornando-se uma melodia triste porém bonita. Fechei os olhos, recostei

a cabeça no sofá e senti a música me transportar numa viagem. A

canção começou sombria e solitária, mas depois ficou doce e cheia de

esperança. Eu tinha a sensação de que meu coração batia no mesmo

ritmo da música. As emoções tomaram conta de mim à medida que a

canção contava sua história. O final era melancólico e triste. Tive a

sensação de que meu coração se partia. E foi aí que ele parou.

Abri os olhos.

- O que foi isso? Nunca ouvi nada assim!

Ren suspirou e pousou o bandolim com cuidado na mesa.

- Eu a compus depois que você viajou.

- Você fez isso?

- Fiz. O nome é "Kelsey". É sobre você... sobre nós. É a nossa história

juntos.

- Mas o final é triste.

Ele passou a mão nos cabelos.

- Foi assim que me senti quando você partiu.

- Ah. Mas nossa história ainda não chegou ao fim, não é?

Cheguei mais perto de Ren e envolvi seu pescoço com os braços.

Ele me apertou, pressionou o rosto em meu pescoço, sussurrou meu

nome e disse:

- Não. Certamente ainda não acabou.

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Tirei-lhe o cabelo da testa e disse baixinho:

- É linda, Ren.

Ele me abraçou bem apertado. Meu coração começou a bater mais

rápido. Olhei seus olhos azuis intensos, em seguida os lábios

perfeitamente esculpidos e quis que ele me beijasse. Ele aproximou

ainda mais a cabeça, mas parou antes que seus lábios tocassem os meus.

Estudou minha expressão, ergueu uma sobrancelha e se afastou.

- O que foi? - perguntei.

Ele suspirou e prendeu um cacho de cabelo atrás de minha orelha.

- Eu não vou beijá-la enquanto estivermos nesse processo de escolha. -

Seus olhos examinavam meu rosto enquanto ele continuava: - Quero

que você tenha a cabeça lúcida quando me escolher. Você fica toda

vulnerável quando a toco, quanto mais quando a beijo. Eu me recuso a

tirar vantagem disso. Uma promessa feita num momento de paixão não

é duradoura e eu não quero que você tenha dúvidas ou

arrependimentos em relação à sua escolha.

- Espere um instante - arquejei, incrédula. - Vamos ver se entendi: você

não vai me beijar porque acha que seus beijos me deixam tonta demais

para pensar com clareza? Que eu sou incapaz de tomar uma decisão

consciente se estiver embriagada de paixão por você?

Ele assentiu com cautela.

- Isso tem a ver com seus estudos antiquados de métodos de corte?

Porque muitas dessas sugestões estão desatualizadas...

- Sei disso, Kelsey. Eu só não quero pressioná-la de maneira alguma a

me escolher.

Furiosa, pulei do sofá e comecei a andar em círculos.

- Essa é a coisa mais maluca que já ouvi!

Fui até a cozinha pegar um refrigerante e percebi que não estava apenas

surpresa, estava com raiva, e parte da minha raiva vinha do fato de que

ele não estava muito longe da verdade. Eu ficava, sim, completamente

vulnerável sempre que ele me tocava.

De repente me senti como um peão num dos jogos de tabuleiro de Li.

Bem, as regras do jogo valiam para os dois. Decidi retaliar. Se ia haver

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uma guerra por mim, então por que eu também não podia lutar? As garotas têm um arsenal de armas inteiramente exclusivo, ponderei,

enquanto planejava minha estratégia de batalha. Daquele ponto em

diante, decidi que testaria a resistência dele. Eu faria Ren me beijar.

Coloquei meu plano imediatamente em ação. Voltamos ao filme e deitei

a cabeça em seu ombro, meus lábios a poucos centímetros dos dele, e

comecei a descrever pequenos círculos nas costas de sua mão. Minha

atitude deixou-o nervoso. Ele ficava se contorcendo e mudando de

posição, mas não me soltou nem se afastou.

Depois do filme Ren anunciou subitamente que nosso encontro tinha

chegado ao fim. Gostei disso. O equilíbrio de poder mudou. Corri os

dedos por seu bíceps volumoso, então tracei coraçõezinhos em seu

antebraço e fiz beicinho.

- Seu tempo como homem é tão curto. Não quer ficar comigo?

Ele tocou meu rosto.

- Mais do que quero respirar.

Não pude evitar. Colei meu corpo ao dele.

Ele me pegou e me sacudiu delicadamente.

- Eu não vou beijar você, Kelsey. Não quero que fique confusa em

relação ao que deseja. No entanto, se você optar por me beijar, não irei

me opor.

Afastando-me dele, rebati:

- Rá! Pode esperar deitado. - Pus as mãos nos quadris e sorri com ironia.

- Essa notícia deve ser um choque para um homem que sempre

consegue o que quer.

Ele deslizou as mãos pela minha cintura e me puxou para seu peito.

Então levou os lábios a centímetros do meu.

- Não... o que eu... mais quero. Ele hesitou por um instante, esperando que eu fizesse um movimento,

mas não fiz. Estava determinada a levá-lo a me beijar primeiro. Assim,

sorri e esperei. Estávamos presos numa silenciosa batalha de vontades.

Por fim, ele se afastou.

- Você é tentadora demais, Kelsey. O encontro terminou.

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De repente nada no mundo era tão importante para mim quanto vencer

essa guerrinha com Ren. Inclinando-me para ele, pisquei

inocentemente e, com a voz mais sedutora, perguntei:

- Tem certeza absoluta de que precisa ir?

Senti os músculos de seu braço se retesarem e a pulsação disparar. Ele

segurou meu rosto com uma das mãos. Querendo levá-lo ao limite,

coloquei a mão sobre a dele e depositei um beijo cálido em sua palma.

Acariciando sua palma com os lábios, eu o ouvi prender a respiração. Eu não fazia a menor idéia de que ele reagia dessa forma a mim. Isso vai ser mais fácil do que pensei. Apertei seu braço levemente e me encaminhei para a escada, sentindo

seus olhos em mim. Assumindo minha melhor personificação de

Scarlett O'Hara, virei-me uma última vez e disse:

- Bem... Tigre, se mudar de idéia, sabe onde me encontrar.

Deslizei os dedos pelo corrimão e continuei a subir os degraus.

Infelizmente ele não me seguiu. Eu imaginara Ren fazendo o papel de

Rhett Butler e, incapaz de se conter, me tomando nos braços e me

carregando escada acima numa dramática demonstração de paixão. No

entanto, Ren me lançou um olhar divertido e saiu, fechando a porta

silenciosamente.

Droga! Ele tem mais auto-controle do que imaginei. Não importava. Era apenas um pequeno contratempo. Passei o resto do

dia tramando... Como se pega um tigre muito velho e muito alerta de surpresa? Use as fraquezas dele: comida, artimanhas femininas, poesia e superproteção. O pobrezinho não tem a menor chance. Na manhã seguinte abri o lado do armário antes proibido, peguei um

cardigã azul-marinho e uma saia estampada, um cinto fino e botas

marrons de cano alto. Fiz escova no cabelo e caprichei na maquiagem,

especialmente no gloss cor de pêssego nos lábios.

Em seguida, preparei um sanduíche gigante para Ren - e coloquei um

bilhetinho de amor em cima dele. Os dois podem jogar o jogo da poesia, pensei, convencida.

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A alma que pode falar através dos olhos também pode beijar com o olhar. - Gustavo Adolfo Becquer

Quando ele veio me buscar para a faculdade, me olhou de cima a baixo

e disse:

- Você está linda, Kells, mas não vai funcionar. Já entendi qual é a sua.

Ele me ajudou a vestir o casaco e eu respondi inocentemente:

- Não sei do que você está falando. O que é que não vai funcionar?

- Você está tentando me fazer beijá-la.

Ergui o rosto para ele, sorrindo, e disse, acanhada:

- Uma garota não deve entregar todos os seus segredos, não é?

Ele se inclinou para mim, pressionou os lábios contra meu ouvido e

sussurrou numa voz aveludada:

- Muito bem, Kells. Guarde seus segredos. Mas estou de olho em você. O

que quer que esteja tentando fazer não vai funcionar. Eu ainda tenho

algumas cartas na manga também.

Ren me deixou sozinha a tarde toda. Enfiei outro bilhete em sua

mochila enquanto ele saía do carro para a aula de wushu. As almas se encontram nos lábios dos namorados. - Percy Bysshe Shelley

Estava sentada no chão me alongando quando o vi puxar o bilhete da

bolsa. Ele o leu algumas vezes e então ergueu os olhos e interceptou

meu olhar. Dirigi a ele um sorriso inocente e acenei alegremente para

Jennifer, que cruzava a sala.

De volta a casa, dentro da garagem, Ren abriu a porta do carro para

mim. Mas, em vez de me ajudar a saltar, ele se inclinou e grunhiu

suavemente.

Seus lábios roçaram a pele sensível sob minha orelha. Sua voz era

sedutora, perigosa.

- Vou logo avisando, Kelsey. Sou um homem extremamente paciente.

Fui treinado à exaustão a esperar o inimigo. Minha vida como tigre me

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ensinou que a persistência e a diligência sempre valem a pena.

Considere-se advertida, priyatama. Eu estou numa caçada. Já farejei seu

cheiro e nada vai me deter.

Ele se afastou e estendeu a mão para me ajudar a saltar. Eu a ignorei e

me dirigi à porta com as costas rígidas e as pernas trêmulas. Ouvi uma

risadinha na brisa enquanto ele desaparecia do seu lado da casa.

Ren estava me deixando maluca. Eu me sentia tentada a arrombar a

porta e me atirar em cima dele, mas me recusava a ceder. Eu iria

provocá-lo dessa vez. Faria com que ele pedisse clemência.

Logo descobri que a batalha de vontades entre mim e Ren havia

empurrado Li para o canto mais afastado de minha mente. Sempre que

estava com Li, meus pensamentos voavam para longe, ocupados em

planejar maneiras de seduzir Ren. Era tão óbvio que Li percebeu.

- Câmbio. Planeta Terra chamando Kelsey. Você vai notar minha

presença agora? - perguntou Li, tenso, uma noite, durante um de seus

filmes de artes marciais favoritos.

- Como assim?

- Kelsey, você está totalmente ausente nessa última semana. Sua cabeça

anda longe.

- Bem... é que voltei à faculdade agora e os trabalhos me distraem.

- Não são os trabalhos, Kelsey. É ele. Senti remorso imediatamente. Li não havia feito nada de errado e o

mínimo que eu podia fazer era lhe dar atenção.

- Desculpe, Li. Eu não tinha percebido que estava ignorando você. Tem

toda razão. Agora estou aqui com você, 100 por cento. Me fale de novo

por que esse filme é um clássico na categoria.

Li observou meu rosto por um momento e então começou a falar sobre

Punhos de serpente, com Jackie Chan. Eu estava interessada de verdade

e ele pareceu aliviado com isso.

O restante da noite correu tranqüilamente, mas eu sentia culpa em

relação a Li. Não estava lhe dando a atenção que ele merecia. O pior era

que eu queria que Ren estivesse assistindo ao filme conosco.

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Quando cheguei em casa aquela noite, já tarde, colei um bilhete no lado

de Ren da porta de comunicação.

Certa vez ele sugou Com um longo beijo, toda a minha alma através Dos meus lábios, como a luz do sol bebe o orvalho. - Alfred Lord Tennyson

Ren não havia me beijado em três semanas e eu achava que estava

fraquejando mais do que ele. Eu tinha tentado de tudo e ainda não

conseguira nem um selinho em meus lábios aflitos. Não tinha obtido

nenhum resultado em semanas de esforço. Eu agora era dona de uma

coleção completa de batons e brilhos labiais e já havia experimentado

cada um deles, sem nenhum efeito.

Na aula de wushu, ele tirou outro bilhete da bolsa, leu e ergueu uma

sobrancelha em minha direção. Esse era o mais ousado que eu lhe dera

e intencionalmente eu o deixara para o fim. Era minha última tentativa.

Dá-me um beijo e depois mais vinte; Em seguida soma mais cem a esses vinte; E mil a esses cem: assim continua a me beijar. Até esses mil a um milhão chegar; Triplica esse milhão, e estando terminado, Voltemos a nos beijar, como havíamos começado. - Robert Herrick

Ren não disse nada, mas me olhou de forma intensa e ardente. Com

audácia, sustentei seu olhar e senti uma centelha se acender entre nós,

formando um elo e abrindo um buraco no meu corpo, embora

estivéssemos em lados opostos da sala. Eu não conseguia tirar os olhos

dele e ele aparentemente estava sofrendo do mesmo mal.

De repente Li anunciou que iríamos treinar movimentos para derrubar

o oponente, o que ele havia evitado desde a primeira sessão com Ren.

Dessa vez Li e Ren iriam demonstrar os movimentos para os outros. Li

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instruiu que todos nos sentássemos junto à parede. Com relutância, Ren

rompeu o contato visual comigo e se posicionou de frente para seu

adversário.

Os dois homens andavam em círculos. Li fez o primeiro movimento,

um soco circular, para se exibir e se aproximar, mas Ren o bloqueou

elegantemente. Li mudou o peso do corpo para uma perna, deu uma

rasteira por trás dos joelhos e então desferiu um soco contra o peito de

Ren. Este se deslocou para a direita, fazendo com que a rasteira de Li

errasse o alvo, e usou a mão espalmada para bloquear o soco. Em

seguida, Li realizou uma elaborada manobra, plantou a mão no chão e

atacou com uma clássica tesoura. Ren agarrou o pé de Li e girou,

derrubando-o com força de barriga para baixo. Li rolou no chão,

afastando-se com raiva, e devolveu uma série de socos. Ren o bloqueou

no alto, embaixo e até por trás, neutralizando com eficácia os ataques de

Li.

Li percebeu que não progredia, então simulou um soco para agarrar o

braço de Ren e o puxou com força a fim de desferir-lhe um chute

contra o rosto, mas Ren o fez perder o equilíbrio e Li caiu novamente

no tatame. Ele se levantou com um salto, tornou a ficar de frente para

Ren e eles voltaram a se mover em círculos.

- Você quer mesmo continuar com isso? - perguntou Ren. - Já provou

que é um bom lutador.

- Não estou tentando provar nada. - Ele sorriu. - Só queria impedir que

você continuasse devorando minha garota com os olhos.

Ele disparou um soco duplo contra o peito de Ren, que simplesmente

agarrou-lhe os pulsos e os girou para fora. Li uivou e se afastou, para

voltar em seguida com um chute frontal no rosto de Ren.

Dessa vez Ren agarrou-lhe o calcanhar.

- Ela ainda não decidiu de quem ela é. - Ele ergueu os braços e

empurrou Li, virando-o de cabeça para baixo. - Mas, se fosse para

apostar, não consideraria suas chances muito boas.

Arquejei, ofendida e constrangida. Ren voltou-se para me olhar.

Vendo-o distraído, Li agarrou-lhe os braços por trás e forçou-os para

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cima, um movimento que imobilizaria a maioria das pessoas. Sem

sequer pestanejar, Ren subiu uma parede com Li ainda segurando seus

braços e girou no ar.

Quando caiu, virou os pulsos, revertendo suas posições. Os cotovelos de

Li agora se projetavam no ar enquanto Ren os forçava ligeiramente para

baixo. Quando Li arfou de dor, Ren o soltou. Li rodou e tentou dar uma

rasteira em Ren outra vez, mas Ren saltou sobre suas pernas, girou e

imobilizou Li com facilidade.

Jennifer me olhou, nervosa, e segurou minha mão. Li estava

descontrolado. Ele limpou a boca e rebateu:

- Deixe que eu me preocupe com as minhas chances.

Então ele rodou e chutou, atingindo o peito de Ren. O impacto lançou

ambos alguns passos para trás. Li provocou:

- Pelo menos eu não desisti dela nem deixei que partisse.

Os movimentos agora eram rápidos demais para que eu pudesse

distingui-los. Eu via socos, bloqueios de braço e de perna, giros com

recuo, chutes laterais e passos elaborados.

A certa altura, Ren correu para Li e deu uma complicada cambalhota no

ar, em posição encolhida, girou duas vezes e saltou por cima de Li.

Quando estava descendo, pousou as mãos nas costas de Li e usou seu

impulso para jogá-lo de cara no tapete. A turma começou a bater

palmas e dar vivas.

Ren pressionou a mão nas costas de Li, mantendo-o imóvel, e grunhiu

baixinho:

- Não. Mas é o que vai fazer. Ela é minha. Ren deixou que ele se levantasse e depois disso, Li se transformou num

touro enfurecido, partindo com tudo para cima de Ren. O suor escorria

de seu rosto e sua respiração estava pesada. Ele atacou com ainda mais

violência do que antes e Ren intensificou seu ritmo um pouco também.

Li finalmente estava conseguindo acertar uns golpes. Eu me sentia

mortificada por eles lutarem por mim. Em público. Ao mesmo tempo,

não conseguia tirar os olhos dos dois.

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Li era uma força a ser reconhecida. Era altamente habilidoso. No

entanto, ainda havia um mundo de diferença entre ele e Ren. Era quase

como se estivessem se movendo em duas velocidades diferentes.

Fiquei observando Ren lutar. Na verdade, teria sido impossível desviar

os olhos. Cada movimento era uma pintura. Eu me vi hipnotizada pelo

controle calculado e pelo poder que exibia. Era simplesmente

magnífico. Um lutador digno do tigre que era na maior parte do tempo.

Eu estava furiosa com sua audácia de me declarar sua propriedade na

frente de todos. No entanto, ao mesmo tempo, eu me sentia

emocionada por vê-lo me desejar tão ferozmente. Ele era de fato um

anjo guerreiro. Meu anjo guerreiro, pensei, possessiva.

Após cerca de 15 minutos de luta acirrada sem chegar a lugar algum, Li,

ofegando intensamente, dispensou a turma.

Tentei falar com ele, mas ele fez um gesto com a mão, me dispensando

também, e pegou uma toalha para cobrir a cabeça.

Li não ligou nem me chamou para sair na semana que se seguiu. Depois

da aula de wushu na sexta, ele pediu para falar comigo e disse a Ren que

me levaria para casa. Ren assentiu e foi embora em silêncio. Eles

vinham se tratando de maneira estranhamente civilizada desde a luta.

Li se sentou e deu um tapinha no tatame, indicando que eu me sentasse

ao lado dele.

- Kelsey, preciso perguntar uma coisa a você e quero que responda com

sinceridade.

- Claro.

- Por que você deixou Ren?

Eu me remexi, desconfortável.

- Eu o deixei porque... não éramos feitos um para o outro.

- Como assim?

Fiquei em silêncio por um momento e então respondi:

- São várias razões. A principal é que... é difícil explicar. Em primeiro

lugar, ele é lindo, e eu... não sou. Ele também é muito rico. Na verdade,

ele vem da realeza. E de uma cultura e de uma origem diferentes e não

namorou muito e...

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- Mas, Kelsey, nós dois também somos de culturas e origens diferentes, e

isso não a incomoda. A família dele não gosta de você?

- Não é isso. Os pais dele já morreram. O irmão gosta de mim. - Retorci

as mãos no colo. - Acho que tudo se resume ao fato de eu pensar que ele

vai acordar e descobrir que não sou uma princesa. Acredito que vai

ficar decepcionado se me escolher. É só uma questão de tempo antes de

perceber isso e me trocar por outra, por alguém melhor.

Li voltou-se para mim, incrédulo.

- Então você está me dizendo que o deixou porque achava que ele era

bom demais para você?

- Basicamente, sim. Ele teria ficado preso a mim e vivido infeliz.

- Ele age como se estivesse infeliz perto de você?

- Não.

- Kelsey, por mais que me doa dizer isso - começou Li, em tom reflexivo

-, Ren me parece uma pessoa muito cautelosa e ponderada. Durante

nossa luta, usei cada habilidade e truque sujo à minha disposição e ele

mal me acertava de volta. Ren estava em clara vantagem. A técnica dele

está além de qualquer coisa que eu já tenha visto. É como se ele tivesse

aprendido com todos os mestres antigos.

E provavelmente aprendeu. - Mesmo assim, durante a luta, ele recebia os golpes de forma que eu não

me machucasse. Isso mostra não só uma habilidade incrível, como uma

antecipação impressionante.

Dei de ombros.

- Eu já sabia que ele lutava bem.

- Não, você não está me entendendo. Para alcançar uma habilidade

assim, para lutar dessa forma, é preciso disciplina. Ele poderia ter me

esmagado, mas não fez isso. - Li riu com ironia. - Na metade do tempo,

ele não estava nem me olhando! Estava observando você, preocupado

com sua reação. Não estava nem prestando atenção no cara seriamente

empenhado em matá-lo.

- O que você está tentando me dizer, Li?

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- Estou tentando dizer que o cara está desesperadamente apaixonado por

você. Isso é óbvio para mim e para todo mundo. Se você o ama, precisa

dizer isso a ele. Seus temores de ser abandonada não combinam com a

personalidade dele. Como eu disse, ele é o tipo de homem que toma

uma decisão e se mantém firme. Não tem nada nele que me faça pensar

que não seja sincero.

- Mas...

Li tomou minhas mãos nas dele e me encarou.

- Kelsey. Ele só tem olhos para você. Baixei o olhar para nossas mãos.

- E quanto a não ser boa o bastante para ele, é justamente o contrário.

Ele é que não é bom o suficiente para você.

- Você está dizendo isso por dizer.

- Não. Não, não estou. Você é incrível, doce e linda e ele é um homem

de sorte por ter você.

- Li, por que está fazendo isso?

- Porque... eu gosto do cara, para ser sincero. Eu o respeito. E porque dá

para ver que o que você sente por ele é muito mais forte do que o que

sente por mim. Você é mais feliz com ele.

- Sou feliz com você também.

- Sim, mas não é a mesma coisa. Volte para ele, Kelsey. Está óbvio que

você o ama. Diga isso a ele. Dê-lhe uma chance. - Ele riu baixinho. -

Mas não se esqueça de dizer que fui superior ao abrir caminho. - Ele se

inclinou e me envolveu num abraço apertado. - Vou sentir saudade,

Kelsey.

Foi como se alguma coisa em mim desse um clique e minha perspectiva

de repente mudasse. Estava na hora de dispensar Li. Não era justo

continuar a submetê-lo a essa situação. Meu coração nunca seria dele;

bem no fundo, fazia algum tempo que eu sabia disso. Eu vinha usando-o

como uma muleta emocional. Meu relacionamento com ele havia se

tornado uma desculpa para que eu pudesse adiar o momento de encarar

Ren. Ficando ou não com Ren, eu sabia que esse tinha que ser o fim

para mim e Li.

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Emocionada, retribuí o abraço.

- Vou sentir saudade também. Você foi muito legal comigo. Nunca vou

me esquecer disso. Agradeça aos rapazes por me ensinarem a jogar.

- Claro. Vamos. - Ele se pôs de pé e me ajudou a levantar, me dando um

beijo na bochecha. - Vou levá-la para casa. E, Kelsey... diga a Ren que,

se um dia ele a deixar, eu vou atrás dele.

Eu ri, desolada.

- Desculpe por ter feito você passar por isso, Li.

Ele deu de ombros.

- Por você, valeu a pena. Acho que, se eu a houvesse pressionado

quando ele apareceu, você o teria escolhido de qualquer forma. Pelo

menos assim aproveitei sua companhia por mais um tempo.

- Não foi justo com você.

- Não dizem que no amor e na guerra vale tudo? Isso foi um pouco de

amor misturado a um pouco de guerra. Eu não teria perdido por nada.

Tomei sua mão nas minhas e a apertei.

- Um dia você vai fazer uma mulher muito feliz, Li. E espero que esse

dia chegue logo.

- Bem, se por acaso você tiver uma irmã gêmea por aí, vou querer

conhecê-la.

Eu ri, mas estava com vontade de chorar.

Li me levou até em casa. Fomos ambos em silêncio. Eu refletia sobre o

que ele tinha falado. Estava certo. Ren era uma pessoa cautelosa e

ponderada. Ele tivera séculos para pensar no que queria. Por alguma

razão, ele me queria. No fundo eu sabia que me amava e que nunca me

abandonaria. Também sabia que, se eu tivesse escolhido outro, Ren

estaria sempre por perto para cuidar de mim se eu precisasse dele.

Meus sentimentos por ele nunca estiveram em questão. Li tinha razão.

Eu devia dizer isso a Ren. Dizer que tinha tomado minha decisão.

Eu vinha tentando seduzir o homem havia várias semanas e agora que

eu ia finalmente ter o que queria, estava nervosa. Minha determinação

vacilava. De repente me senti vulnerável, frágil. Meus pensamentos

eram incoerentes. O que eu deveria dizer?

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Quando o carro parou, Li me encorajou mais uma vez.

- Diga a ele, Kelsey.

Ele me abraçou rapidamente e se foi.

Fiquei parada diante da porta de Ren durante vários minutos, pensando

no que iria dizer.

A porta se abriu e Ren saiu, parando ao meu lado. Seus pés estavam

descalços e ele ainda usava a camiseta e a calça branca do wushu. Ele

me dirigiu um olhar cheio de ansiedade e suspirou, infeliz.

- Me dizer o quê, Kells?

Num tom formal, perguntei:

- Você ouviu, né?

- Ouvi.

Seu rosto estava tenso, cauteloso. De repente percebi que ele achava

que eu ia escolher Li. Ele correu a mão pelos cabelos.

- O que você quer me dizer?

- Quero lhe contar que já fiz minha escolha.

- Foi o que imaginei.

Dei um passo à frente e passei os braços por seu pescoço, mas ele

permaneceu rígido. Fiquei na ponta dos pés para me aproximar de seu

rosto. Ele suspirou, me abraçou e me suspendeu. Aconchegou meu

corpo de encontro ao seu peito sólido como pedra, enquanto meus pés

pairavam vários centímetros acima do chão. Falei suavemente em seu

ouvido:

- Eu escolho você.

Ele se imobilizou... então afastou a cabeça para olhar meu rosto.

- Então Li...

- Está fora da jogada.

Ele me lançou um sorriso radiante que iluminou a noite escura.

- Então nós...

- Podemos ficar juntos.

Puxei sua cabeça para mim e o beijei suavemente. Surpreso, ele se

separou de mim para estudar meu rosto e então me apertou ainda mais

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e me beijou de volta. Seu beijo não era suave nem doce. Era ávido,

quente, ardente.

Existem muitos tipos de beijos. Há o beijo apaixonado de adeus - como

o que Rhett deu em Scarlett ao partir para a guerra. O beijo de "não

posso ficar com você, mas quero ficar" - como o de Super-Homem e

Lois Lane. Tem o primeiro beijo - delicado e hesitante, cálido e

vulnerável. E tem também o beijo de posse - que era como Ren me

beijava naquele momento.

Ia além da paixão, além do desejo. Seu beijo era cheio de ânsia,

necessidade e amor, como todos os outros beijos. Mas também era cheio

de promessas e juras, algumas doces e ternas, outras perigosas e

excitantes. Ren estava tomando posse de mim. Reivindicando o que era

seu.

Ele me agarrou audacioso como um tigre que captura sua presa. Não

havia como escapar. E eu não queria escapar. Eu teria morrido feliz em

suas garras. Eu era dele e ele se certificou de que eu soubesse disso. Meu

coração explodia com a floração de mil lindos lírios-tigres. E eu soube,

com uma certeza maior do que qualquer coisa que já havia sentido, que

nosso lugar era um ao lado do outro.

Ele finalmente ergueu a cabeça e murmurou de encontro aos meus

lábios:

- Até que enfim.

8

Ciúme

Ren tornou a me beijar e deslizou um braço sob meus joelhos. Ele

conseguiu me levar para dentro de casa e fechar a porta com o pé sem

desgrudar os lábios dos meus. Eu finalmente tinha meu momento Rhett

Butler. Ele se acomodou na poltrona, me aconchegou em seu colo,

agarrou minha colcha e me envolveu com ela.

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E me beijou por toda parte - cabelos, pescoço, testa, bochechas... mas

sempre voltava aos lábios, como se eles fossem o centro do Universo.

Suspirei baixinho e desfrutei da avalanche de beijos de Ren - beijos

sufocantes, beijos suaves, beijos sensuais, beijos que duravam um mero

segundo e beijos que duravam uma eternidade. Era fácil acreditar que

meu anjo guerreiro havia me capturado e me levado voando para o céu.

Um ronco profundo ecoou em seu peito.

Afastei a cabeça, rindo.

- Você está rosnando para mim?

Ele riu baixinho, girou a fita do meu cabelo entre os dedos e a puxou

delicadamente, soltando minha trança. Mordendo de leve minha

orelha, ele sussurrou uma ameaça:

- Você vem me deixando louco há três semanas. Tem sorte de eu apenas

rosnar.

Ele traçou um lento caminho de beijos descendo pelo meu pescoço.

- E isso significa que você virá aqui com mais freqüência? - eu quis

saber.

Ele falou, movendo os lábios de encontro à minha pele.

- Cada minuto do dia.

- Ah. Então... você não estava apenas me evitando?

Ele colocou o dedo sob meu queixo e virou meu rosto para o dele.

- Eu nunca iria evitá-la de propósito, Kells.

Ele fez um carinho na lateral do meu pescoço e na clavícula com a

ponta dos dedos, me distraindo.

- Mas fez isso.

- Porque foi lamentavelmente necessário. Eu não queria pressioná-la,

então me mantive afastado, mas estava sempre por perto. Podia ouvi-la.

- Ele afundou o rosto em meus cabelos soltos e suspirou. - E sentir seu

cheiro de pêssego e creme, o que me deixava maluco. Só que eu não me

permitia vê-la, a menos que você concordasse com um encontro.

Quando você começou a me provocar, pensei que fosse enlouquecer.

- Arrá! Então voeê ficou tentado.

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- Esse é o pior tipo de pralobhana, de tentação. Eu a teria dominado por

um momento, mas então acabaria por perdê-la. Evitar você era tudo

que eu podia fazer para não agarrá-la e sequestrá-la.

Era estranho. Agora que eu havia admitido em voz alta que queria estar

com ele, não me sentia nem um pouco tímida ou hesitante. Sentia-me...

liberada. Contente. Plantei dezenas de beijos em suas bochechas, em

sua testa, em seu nariz e, por fim, em seus lábios perfeitamente

esculpidos. Ele ficou imóvel enquanto eu percorria seu rosto com os

dedos. Ficamos por um longo momento nos entreolhando, seus lindos

olhos azul-cobalto presos aos meus, castanhos. Ren sorriu e meu

coração deu um pulo, sabendo que ele, em toda a sua perfeição, era

meu.

Deslizei as mãos de seus ombros para os cabelos, tirando-os da testa, e

disse baixinho:

- Eu amo você, Ren. Sempre amei.

Seu sorriso se abriu. Ele me apertou ainda mais nos braços e sussurrou

meu nome.

- Amo você, minha kamana. Se soubesse que você seria o prêmio que eu

conquistaria depois de séculos de cativeiro, teria suportado tudo

agradecido.

- O que quer dizer kamana?

- "O lindo desejo a que eu aspiro acima de todos os outros."

- Humm. - Pressionei os lábios de encontro ao pescoço dele e inspirei

seu cheiro cálido de sândalo. - Ren?

-Sim?

Ele enroscou os dedos em meu cabelo.

- Desculpe por ter sido tão idiota. Foi tudo culpa minha. Desperdicei

tanto tempo. Você me perdoa?

Seus dedos se aquietaram em meu cabelo.

- Não há nada para perdoar. Pressionei você cedo demais. Não a cortejei.

Não disse as coisas certas.

- Não. Nada disso. Você disse todas as coisas certas. Acho só que não

estava preparada para ouvi-las ou acreditar nelas.

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- Eu devia saber que não deveria apressá-la. Não fui paciente e um tigre

sem paciência fica sem jantar.

Eu ri.

- Você sabia que comecei a me sentir atraído por você antes mesmo de

você saber que eu era humano? Lembra-se de quando fiquei correndo

freneticamente de um lado para outro durante uma apresentação no

circo?

- Lembro.

- Pensei que você tivesse ido embora. Ouvi Matt dizer ao pai que uma

das garotas novas tinha partido. Achei que eles se referissem a você. Eu

precisava saber se você ainda estava lá. Você não foi à minha jaula

naquele dia e eu fiquei distraído, desanimado. Não pude sossegar até vê-

la na platéia.

- Bem, estou aqui agora e não vou deixá-lo, Tigre.

Ele grunhiu, me apertou e provocou:

- Não, não vai. Não vou deixá-la sair de perto de mim outra vez. Agora,

sobre todos aqueles poemas que você me deu... acho que alguns

merecem ser estudados em profundidade.

- Concordo plenamente.

Ele tornou a me beijar. Foi um beijo prolongado e doce. Suas mãos

seguravam o meu rosto e acho que meu coração chegou de fato a dar

uma cambalhota no peito. Ren afastou o rosto, beijou os cantos da

minha boca e suspirou profundamente. Ficamos agarradinhos até seu

tempo se esgotar.

Na noite seguinte preparei um jantar especial para Ren. Quando os

famosos conchiglioni recheados de minha mãe ficaram prontos, Ren

serviu uma porção gigante em seu prato, espetou um deles e mastigou,

feliz.

- Esta é uma das melhores coisas que já comi. Na verdade, só fica atrás

de manteiga de amendoim, chittaharini. - Fico feliz que goste da receita da minha mãe. Ei, você nunca me disse o

que chittaharini significa.

Ele beijou meus dedos.

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- Significa "a que cativa a minha mente".

- E iadala? - Querida.

- Como se diz "eu te amo"?

- Mujhe tumse pyarhai. - E "estou apaixonada"?

Ele riu.

- Você pode dizer anurakta, que significa que você "está se afeiçoando a"

alguém. Ou pode dizer que é kaamaart, que significa que você é uma

"jovem intoxicada com amor ou perdida de amor". Prefiro a segunda

forma.

Sorri, de modo afetado.

- Sei, sei. Tenho certeza de que você gostaria de anunciar que estou

bêbada de amor por você. Como se diz "meu namorado é bonito"?

- Mera sakha sundara. Limpei os lábios com um guardanapo e perguntei se ele gostaria de me

ajudar a fazer a sobremesa. Ren puxou a cadeira para que eu me

levantasse e me seguiu até a cozinha. Eu estava superconsciente de sua

proximidade, sobretudo porque a todo instante ele encontrava razões

para me tocar. Ao guardar o açúcar, acariciou meu braço. Quando

estendeu a mão para colocar a baunilha em cima da bancada, fez

carinho com o nariz no meu pescoço. Chegamos ao ponto em que

comecei a derrubar as coisas.

- Ren, você está me distraindo. Quero que me dê um pouco de espaço

para que eu possa terminar de preparar a massa.

Ele obedeceu, mas se manteve perto o bastante para que eu roçasse nele

ao guardar os ingredientes. Dei forma aos biscoitos, arrumei-os no

tabuleiro e anunciei:

- Agora temos 15 minutos até ficarem prontos.

Ele agarrou meu braço e me puxou para ele. Quando dei por mim, o

timer estava disparando e eu pulei de susto. Não sei como, mas eu tinha

ido parar em cima da bancada da cozinha presa num abraço

apaixonado. Uma de minhas mãos estava em seu cabelo, seus cachos

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sedosos enrascados em meus dedos, enquanto minha outra mão

aparentemente agarrara sua camisa de grife e estava lentamente

torcendo-a. A camisa recém-passada agora estava toda amassada.

Envergonhada, relaxei a mão incontrolável e gaguejei:

- Sinto muito pela camisa.

Ele pegou minha mão, pousou um beijo na palma e sorriu, malicioso.

- Eu não.

Eu o empurrei e saltei para o chão. Pressionando os dedos contra seu

peito, eu disse:

- Você é perigoso, rapaz.

Ele sorriu.

- Não é minha culpa que você esteja intoxicada por mim.

Fiz cara feia para ele, mas isso não o perturbou nem um pouco; ele

estava muito satisfeito consigo mesmo. Tirei os biscoitos do forno e me

virei para pegar o leite. Quando lhe entreguei o copo, Ren já havia

devorado um biscoito superquente e estava no segundo.

- Deliciosos! São de quê?

- De chocolate, com gotas de chocolate e recheio de manteiga de

amendoim.

- São a segunda melhor coisa que já provei.

Eu ri.

- Você disse a mesma coisa no jantar.

- Acabei de atualizar o ranking.

- Ah, é? Qual é o primeiro lugar agora? Ainda são as panquecas de

manteiga de amendoim?

- Não... você. Mas o páreo é duro. - Seu sorriso se turvou. - É hora de eu

me transformar, Kells.

Senti um leve tremor percorrer-lhe o braço. Ele me beijou docemente

mais uma vez e se metamorfoseou em tigre. Então seguiu para a escada,

subiu-a em dois saltos e se dirigiu para o meu quarto.

Ren se acomodou no tapete perto da minha cama enquanto eu vestia o

pijama no banheiro. Depois de escovar os dentes, ajoelhei-me ao lado

dele.

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Abraçando-lhe o pescoço, sussurrei:

- Mujhe tumse pyarhai, Ren. Ele começou a ronronar enquanto eu me cobria com o edredom. Eu não

via sua metade tigre desde que ele aparecera no dia de Natal e estava

com saudade. Abraçando-o, acariciei-lhe o pelo macio. Aconchegando-

me ao seu lado, usei suas patas como travesseiro e adormeci, em paz

pela primeira vez desde que deixara a Índia.

No sábado acordei em minha cama agarrada ao meu tigre branco de

pelúcia. Ren estava sentado numa cadeira posicionada ao contrário, a

cabeça descansando nos braços, me observando. Grunhi e cobri a

cabeça com o edredom.

- Bom dia, dorminhoca. Sabe, se queria tanto dormir com um tigre, era

só pedir. - Ele apanhou o tigre de brinquedo. - Quando comprou isto?

- Na semana que voltei.

Ele sorriu.

- Então sentiu a minha falta?

Suspirei e sorri.

- Como um peixe sente falta da água.

- É bom saber que sou tão necessário assim à sua sobrevivência. - Ele se

ajoelhou ao lado da cama e tirou o cabelo do meu rosto. - Eu já lhe disse

que você é a coisa mais linda de manhã?

Eu ri.

- Fala sério. Meu cabelo está todo desgrenhado e eu estou de pijama.

- Gosto de ver você acordar. Você suspira e começa a se remexer. Rola

para um lado e para outro algumas vezes e em geral murmura alguma

coisa sobre mim.

Ele sorriu.

- Então eu falo dormindo, é? - perguntei, apoiando-me no cotovelo. -

Isso é constrangedor.

- Eu gosto. Depois você abre os olhos e sorri para mim, mesmo quando

estou como tigre.

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- Que garota não iria sorrir quando você é a primeira coisa que ela vê? É

como acordar na manhã de Natal e encontrar o melhor presente que

você já ganhou.

Ele riu e beijou minha bochecha.

- Quero conhecer Silver Falls hoje, portanto levante esse esqueleto

preguiçoso da cama. Vou esperar você lá embaixo.

A caminho das cachoeiras, paramos em Salem para o café da manhã no

Whites, um pequeno restaurante que funcionava há décadas. Ren pediu

a especialidade da casa: batatas tipo roésti, ovos, salsicha, bacon e

molho, tudo misturado numa grande pilha. Eu nunca vira ninguém

terminar um prato daqueles, mas Ren comeu tudo e ainda roubou uma

torrada minha.

- Você está com um apetite e tanto - comentei. - Não tem comido

direito?

Ele deu de ombros.

- O Sr. Kadam contratou um serviço de supermercado, mas eu só sei

fazer pipoca e sanduíche.

- Por que não me contou? Eu teria cozinhado para você com mais

freqüência.

Ele pegou minha mão e a beijou.

- Eu queria mantê-la ocupada de outra forma.

A viagem foi linda. Quilômetros e quilômetros de fazendas de pinheiros

de ambos os lados da estrada serpenteante que levava a uma região

montanhosa e coberta de florestas.

Passamos o dia caminhando por South Falls, Winter Falls e Middle

North Falls e seguíamos para outras três cachoeiras. Estava frio e eu

havia esquecido minhas luvas. Ren imediatamente tirou um par de

luvas do bolso do casaco e as calçou em minhas mãos. Eram grandes

demais, mas forradas e quentes. O gesto me trouxe à lembrança o

encontro horrível com Artie. Ren e Artie eram como o dia e a noite.

Estávamos discutindo as diferenças entre as florestas da Índia e as do

Oregon quando um pensamento me ocorreu e interrompi o assunto:

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- Ren, durante todo o tempo em que saí com Li, você não sentiu nem

um pouco de ciúme?

- Senti muito ciúme. Fico enfurecido todas as vezes que alguém se

aproxima de você.

- Você não demonstrava isso.

- Quase fiquei louco. Não conseguia pensar com clareza. Quando outro

cara chega perto de você, tenho vontade de fazê-lo em pedaçinhos com

minhas garras. Mesmo que eu goste dele... como é o caso de Li. E

especialmente se não gosto... como Jason.

- Você não tem nenhum motivo para ter ciúme.

- Não tenho, agora. Jason recuou e eu tenho uma dívida de gratidão para

com Li por finalmente fazê-la reconhecer seus sentimentos.

- É, isso você deve mesmo a ele. Por falar nisso, ele disse que, se um dia

você me deixar, ele irá atrás de você.

Ren sorriu.

- Isso nunca vai acontecer.

Passando por uma clareira, percebi que ele erguia o nariz.

- O que você está farejando?

- Humm. Sinto cheiro de urso, onça-parda, cervo, vários cães, cavalos,

peixes, muitos esquilos, água, plantas, árvores, flores e você.

- Não o incomoda sentir os cheiros tão intensamente?

- Não. Você aprende a desativar todos os outros e se concentrar no que

quer sentir. E o mesmo com a audição. Se eu me concentrar, posso

ouvir pequenas criaturas escavando o solo, mas eu simplesmente

desativo esses sons.

Chegamos a Double Falls e ele me levou até uma pedra coberta de

musgo que servia como ponto de observação. Estremeci, batendo o

queixo, mesmo de casaco e luvas. Ren rapidamente tirou o próprio

casaco e o enrolou em meu corpo. Então me puxou de encontro ao seu

peito e me envolveu com os braços. Senti seu cabelo sedoso roçar

minha pele quando ele baixou a cabeça até meu rosto.

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- É quase tão lindo quanto você, priya. E muito melhor do que ter que

nos preocupar com kappa nos perseguindo ou árvores de agulhas

furando minha pele.

Virei a cabeça e beijei-lhe o rosto.

- Tem uma coisa de Kishkindha de que sinto falta.

- Verdade? O que é? Deixe-me adivinhar. Você sente falta das brigas.

- Brigar com você é divertido, mas fazer as pazes é melhor. Só que não é

disso que sinto saudade. Sinto falta de tê-lo perto de mim como homem

o tempo todo. Não me entenda mal, eu amo seu lado tigre, mas seria

bom ter um relacionamento normal.

Ele suspirou e apertou minha cintura.

- Não sei se um dia teremos um relacionamento normal.

Ren ficou em silêncio por um minuto e então confessou:

- Por mais que eu goste de ser humano, tem uma parte de mim que

anseia por correr livre na floresta.

Ri, envolta no calor de seu casaco.

- Posso até imaginar a expressão no rosto do guarda-florestal quando

visitantes disserem que viram um tigre branco correndo em meio às

árvores.

Ao longo das semanas seguintes estabelecemos uma rotina. Por decisão

mútua resolvemos suspender as aulas de wushu e tive que passar meia

hora ao telefone consolando Jennifer e encorajando-a a continuar sem

mim.

Ren queria estar comigo o tempo todo, mesmo como tigre. Ele gostava

de se esticar ao longo das minhas pernas enquanto eu estudava sentada

no chão.

À noite ele tocava bandolim ou praticava no violão que tinha

comprado. Às vezes cantava para mim. Sua voz era grave e profunda,

com uma ressonância quente e melódica. Seu sotaque era mais

acentuado quando ele cantava, o que eu achava hipnótico. Sua voz, por

si só, já era bastante poderosa, mas, quando cantava, ela me levava a um

transe. Ele sempre brincava com a imagem da fera acalmando a garota

selvagem com música.

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Às vezes eu não fazia nada, deixando-me apenas ficar sentada com sua

cabeça de tigre no meu colo, observando-o dormir. Acariciava-lhe o

pelo branco e sentia seu peito subir e descer. Ser tigre era parte dele e

eu me sentia confortável com isso. Agora, porém, que eu finalmente

aceitara que ele me amava, sentia-me dominada pelo desejo de estar

com ele. Era frustrante. Eu queria partilhar cada momento com ele. Queria ouvir

sua voz, sentir sua mão na minha e pousar meu rosto em seu peito

enquanto ele lia para mim. Estávamos juntos, mas não estávamos juntos. Ren passava a maior parte de suas horas como humano na

faculdade, o que deixava pouco tempo para nosso relacionamento. Eu

tinha fome dele. Podia falar com ele, mas ele não podia responder.

Rapidamente tornei-me especialista em ler expressões de tigres.

Eu me aconchegava a ele no chão todas as noites e todas as noites ele

me pegava no colo e me colocava na cama depois que eu adormecia.

Fazíamos os trabalhos da faculdade juntos, assistíamos a filmes, líamos.

Terminamos Otelo e passamos a Hamlet. Também mantínhamos

contato constante com o Sr. Kadam. Quando eu atendia o telefone, ele

conversava comigo sobre a faculdade e Nilima e me dizia que eu não

me entristecesse com o fato de minha pesquisa sobre a prova das quatro

casas ter se mostrado inútil. Era educado e me perguntava sobre minha

família adotiva, e também sempre pedia para falar com Ren.

Eu não estava tentando bisbilhotar, mas era óbvio que alguma coisa

estava acontecendo quando eles sussurravam e às vezes falavam em

híndi. De vez em quando eu ouvia termos estranhos: Yggdrasil, pedra

do umbigo e montanha de Noé. Depois que Ren desligava eu

perguntava sobre o que estavam conversando, mas ele apenas sorria e

me dizia que não me preocupasse, que estavam apenas discutindo

negócios ou numa teleconferência com outras pessoas que só falavam

híndi. Eu me lembrava do e-mail do Sr. Kadam sobre documentos e

suspeitava que Ren estivesse escondendo alguma coisa, mas depois ele

agia de forma tão natural e se mostrava tão genuinamente feliz por estar

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comigo que eu acabava esquecendo minhas preocupações, pelo menos

até o telefonema seguinte.

Ren começou a escrever breves poemas e bilhetes e a colocá-los em

minha bolsa para que eu os encontrasse durante as aulas. Alguns eram

poemas famosos e outros eram de sua autoria. Eu os colava em meu

diário e levava comigo o tempo todo uma cópia dos meus dois

prediletos.

Você sabe que está apaixonado quando vê o mundo nos olhos dela e os olhos dela em todos os cantos do mundo. - David Levesque Se um rei tivesse uma pérola inestimável Uma jóia que amasse acima de tudo Ele a guardaria num esconderijo Tirando-a de vista Temendo que outros a roubassem? Ou a exibiria, orgulhoso, Engastada num anel ou numa coroa De modo que o mundo lhe admirasse a beleza E visse a riqueza que ela trazia à sua vida? Você é a minha pérola inestimável. - Ren

Ler seus pensamentos e sentimentos mais íntimos quase compensava a

limitação de nosso tempo juntos. Quase.

Um dia, depois da aula de história da arte, Ren me surpreendeu

aparecendo por trás de mim.

- Como você sabia onde era a minha aula?

- Saí cedo hoje e segui seu rastro. Fácil como rastrear uma torta de

pêssego com chantili, que você prometeu fazer para mim mais tarde.

- Não me esqueci disso.

Ri e seguimos na direção do laboratório de idiomas para devolver um

vídeo.

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Atrás da mesa no laboratório estava Artie.

- Oi, Artie. Quero devolver um vídeo.

Ele empurrou os óculos nariz acima.

- Ah, sim. Eu já tinha me perguntado por esse vídeo. Está muito

atrasado, Kelsey.

- É. Eu peço desculpas.

Ele o deslizou para um espaço vago, que imaginei que ele vinha

observando havia semanas, enquanto ia enlouquecendo aos poucos.

- Ainda bem que você teve a integridade de devolvê-lo afinal.

- Certo. Eu tenho muita integridade. Até mais, Artie.

- Espere, Kelsey. Você não retornou minhas ligações, então imagino que

sua secretária eletrônica não esteja funcionando. Vai ser difícil encaixar

você, mas acho que estou disponível na próxima quarta.

Ele apanhou o lápis e a agenda e já estava escrevendo meu nome. Como ele podia ignorar o homem enorme atrás de mim?

- Olhe, Artie, estou saindo com outra pessoa agora.

- Acho que não pensou nisso com clareza, Kelsey. Nosso encontro foi

muito especial e senti uma conexão verdadeira com você. Tenho

certeza de que, se reconsiderasse, veria que devia estar saindo era comigo. - Ele lançou um rápido olhar para Ren. - Eu sou obviamente a

melhor opção.

- Artie! - exclamei, exasperada.

Ele empurrou os óculos novamente para cima e me olhou, tentando me

convencer com os olhos a ceder.

Nesse momento, Ren se interpôs entre nós dois. Artie, relutante,

afastou os olhos de mim e olhou para Ren com antipatia. Os dois

homens formavam um contraste tão gritante que eu não podia deixar de

compará-los. Enquanto Artie era flácido, cheio de papadas e barrigudo,

Ren era esguio e com peito e braços musculosos. E, tendo visto Ren sem

camisa, eu também podia garantir que ele tinha músculos abdominais

fantasticamente esculpidos. Poderia esmagar Artie no chão sem

qualquer esforço.

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Artie era branco e pálido e tinha braços peludos, nariz vermelho e

olhos lacrimosos. Ren era capaz de parar o trânsito. E tinha feito isso. Literalmente. Ele era um Adônis renascido em bronze dourado.

Freqüentemente eu via garotas tropeçarem na calçada e darem de cara

com árvores quando ele passava. Nenhuma dessas qualidades

intimidava Artie. Ele tinha uma auto-confiança extraordinária e se

manteve firme, inabalado pela aparência impressionante de Ren.

- E quem seria você? - perguntou Artie, com sua voz anasalada.

- Sou o homem com quem Kelsey está saindo.

A expressão de Artie era de incredulidade. Ele me olhou por trás de

Ren e disse com sarcasmo:

- Você prefere sair com esse bárbaro que comigo? Talvez eu tenha

julgado mal o seu caráter. Está claro que você faz escolhas questionáveis

baseadas puramente em impulsos lascivos. Pensei que fosse de um

calibre moral mais alto, Kelsey.

- Escute aqui, Art... - comecei.

Ren aproximou o rosto do de Artie e ameaçou em voz baixa:

- Nunca mais a insulte. A garota deixou sua posição clara. Se algum dia

eu souber que você voltou a persegui-la ou a alguma outra garota,

voltarei e tornarei sua vida muito desconfortável.

Ele espetou o dedo na agenda de Artie.

- Talvez seja melhor você escrever isso para não esquecer. Faça uma

anotação para si mesmo lembrando também que Kelsey nunca mais

estará disponível. Nunca mais. Eu jamais vira Ren dessa perspectiva. Ele podia ser letal. Se eu fosse

Artie, estaria tremendo de medo. Mas, como sempre, Artie estava

alheio a tudo que não fosse ele mesmo. E não viu o predador perigoso

espreitando por trás dos olhos de Ren. As narinas de Ren pareciam

dilatadas. Seus olhos estavam fixos no alvo e seus músculos, retesados.

Ele estava prestes a atacar. A destroçar. A matar. Pousei a mão em seu braço e a mudança foi instantânea. Ele deixou

escapar um suspiro tenso, relaxou a postura e cobriu minha mão com a

sua.

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Apertei seus dedos.

- Venha. Vamos embora.

Ele abriu a porta do carro para mim e, depois de verificar que o cinto

estava afivelado, inclinou-se e perguntou:

- Que tal um beijo?

- Não. Você não precisava ter sido tão ciumento. Não merece nenhum

beijo depois disso.

- Ah, mas você merece.

Ele sorriu e me beijou até que eu mudasse de idéia.

Ren se manteve quieto durante o trajeto até em casa.

- O que você está pensando? - perguntei.

- Estou pensando que talvez eu devesse comprar uma gravata-borboleta

e um pulôver de lã, já que você parece gostar tanto deles.

Eu ri e dei um soco em seu braço.

Mais tarde naquela semana vi Ren conversando com uma bonita garota

indiana. Ele estava sério e parecia um pouco perturbado. Eu me

perguntava quem seria aquela garota, quando senti alguém pôr a mão

em meu ombro. Era Jason.

- Oi, Kelsey. - Ele se sentou ao meu lado no degrau e seguiu meu olhar. -

Problemas no paraíso, hein?

Eu ri.

- Não. E aí? O que você tem feito?

- Pouca coisa - replicou ele, revirando a mochila e me entregando uma

revista de teatro. - Fique com uma cópia daquele artigo. O que tem uma

foto sua.

Na capa da revista havia uma foto de Jason comigo, de pé ao lado do

carro. Minha mão estava no braço da senhora enquanto ela me

agradecia. Eu estava horrível. Como se tivesse sido atropelada. Jason se levantou de repente.

- É... pode ficar com ela, Kelsey. Falo com você mais tarde - disse ele por

sobre o ombro quando Ren se aproximava.

Ren ficou olhando Jason se afastar.

- O que ele queria?

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- Engraçado, eu ia lhe fazer a mesma pergunta. Quem é a garota?

Ele mudou de posição, pouco à vontade.

- Venha. Vamos conversar sobre isso no carro.

Depois que deixamos o estacionamento, cruzei os braços e perguntei:

- Quem é ela?

Ele se assustou com o meu tom.

- O nome dela é Amara.

Esperei, mas ele não acrescentou mais nada.

- E... o que ela queria?

- O número do telefone dos meus pais... para que os pais dela pudessem

ligar para os meus.

- Para quê?

- Para combinar o casamento.

Meu queixo despencou.

- Você está falando sério?

Ren sorriu.

- Está com ciúme, Kelsey?

- É claro que estou. Você é meu! Ele beijou meus dedos.

- Gosto que você tenha ciúme. Eu disse a ela que já estava

comprometido, então não se preocupe, minha prema. - Isso é muito esquisito, Ren. Como ela pode querer propor casamento

se vocês nem sequer se conhecem?

- Ela não propôs casamento exatamente; propôs a idéia de casamento.

Em geral são os pais que cuidam disso, mas, nos Estados Unidos, as

coisas mudaram um pouco. Agora a situação é mais ou menos assim: os

pais selecionam potenciais parceiros e os filhos fazem sua escolha.

- Bem, você já passou por isso. Foi prometido a Yesubai. Você queria se

casar com ela? Seus pais a escolheram para você, certo?

Ele hesitou e falou com cuidado.

- Eu... aceitei o arranjo. Estava ansioso para ter uma esposa. Esperava ter

um casamento feliz, como o dos meus pais.

- Mas você a teria escolhido para esposa?

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- Não era uma escolha minha. - Ele sorriu, tentando me apaziguar. -

Mas, se isso a faz se sentir melhor, eu escolhi você, embora não

estivesse procurando ninguém.

Eu ainda não queria deixar o assunto de lado.

- Então você teria ido até o fim, embora não soubesse nada sobre ela?

Ele suspirou.

- O casamento era e ainda é diferente na cultura indiana. Quando você

se casa, tenta deixar seus pais felizes com alguém que tenha a mesma

formação cultural que você e que adote e mantenha as tradições e os

costumes importantes para sua família. São muitos os fatores a se

considerar, como educação, riqueza, casta, religião e local de origem.

- Então é como selecionar candidatos para a faculdade? Será que eu teria

sido aprovada?

Ele riu.

- É difícil dizer. Alguns pais acreditam que namorar um estrangeiro

desonra você para sempre.

- Quer dizer que o simples fato de namorar uma garota americana o

desonra? O que seus pais teriam dito sobre nós?

- Meus pais viveram numa época muito diferente.

- Ainda assim... eles não aprovariam.

- O Sr. Kadam é como um pai, de certa forma, e ele aprova você.

Deixei escapar um gemido.

- Não é a mesma coisa.

- Kelsey, meu pai amava minha mãe e ela não era indiana. Eles vinham

de culturas diferentes e tiveram que fundir tradições divergentes.

Mesmo assim, foram felizes. Se havia alguém naquela época capaz de

nos entender... eram eles. E os seus pais? Eles teriam gostado de mim?

- Minha mãe teria adorado você. Ela iria fazer biscoitos de chocolate e

manteiga de amendoim toda semana para o genro querido e dar

risadinhas todas as vezes que o visse, como Sarah faz. Meu pai nunca

achou que homem algum seria bom o bastante para mim. Ele teria

dificuldade em me deixar partir, mas também acabaria gostando de

você.

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Entramos na garagem e eu tive uma súbita visão de nós quatro sentados

na biblioteca dos meus pais, conversando sobre nossos livros favoritos.

Sim, eles teriam aprovado Ren com entusiasmo.

Sorri por um instante e então franzi a testa.

- Não me agrada a idéia de que haja outras garotas atrás de você.

- Agora você sabe como eu me senti. Por falar nisso, o que Jason queria

com você?

- Ah. Ele me deu isto aqui.

Entreguei-lhe o artigo quando entrávamos em casa. Ren se sentou e o

leu em silêncio enquanto eu preparava um lanche para nós. Depois

apareceu na cozinha com uma expressão preocupada no rosto.

- Kelsey, quando essa foto foi tirada?

- Há cerca de um mês. Por quê? Algum problema?

- Talvez não. Preciso ligar para Kadam.

Ele pegou o telefone e começou a falar em híndi. Sentei-me no sofá,

segurando sua mão. Ele falava rápido e parecia muito preocupado. A

última coisa que disse antes de desligar foi algo a respeito de Kishan.

- Ren, me conte. O que está acontecendo?

- Seu nome e sua foto estão nesta revista. É uma publicação pouco

importante, então talvez tenhamos sorte.

- Do que você está falando?

- Tememos que Lokesh possa rastreá-la até aqui.

- Ah. Mas isso não é difícil. Tenho matrícula na faculdade e carteira de

motorista - respondi, confusa.

- Alteramos tudo. O Sr. Kadam tem seus contatos. Ele providenciou para

que seus registros não combinem nome e foto. Você acha mesmo que

ele podia providenciar um passaporte em uma semana para que você

fosse para a Índia no verão passado?

- Não tinha pensado nisso. - Minha mente disparava com a nova

informação e a visão que tivera na índia do feiticeiro ávido por poder

voltou à minha memória. De repente, preocupada, eu disse: - Mas, Ren,

estou matriculada na faculdade com o meu nome e existem registros

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sobre mim no sistema de adoção que poderiam levar a Sarah e Mike. E

se ele os encontrar?

- O Sr. Kadam alterou esses dados também. Os registros do estado

oficialmente dizem que você foi emancipada aos 15 anos e todas as suas

faturas vão para uma conta oculta. Até a minha carteira de motorista é

falsa e estou registrado com um nome diferente. Kelsey Hayes

oficialmente freqüenta a Western Oregon, mas sua foto foi trocada de

forma que ele não possa identi- ficá-la. Não deixamos nenhum registro

do seu nome ligado à sua foto. Esses eram os documentos mencionados

no e-mail que você viu no meu computador.

- E quanto ao meu anuário da escola do ensino médio?

- Cuidamos disso também. Apagamos você dos registros oficiais. Se

alguém entrasse em contato com um antigo colega seu com um anuário

nas mãos poderia identificá-la, mas as probabilidades de isso acontecer

são pequenas. Teriam que verificar cada escola do país, supondo-se que

saibam em que país procurar.

- Então você acha que esse artigo significa...

- Que existe um registro pelo qual ele pode encontrá-la.

- Por que vocês dois não me contaram tudo isso antes?

- Não queríamos preocupá-la desnecessariamente. Nosso desejo era que

levasse uma vida tão normal quanto possível.

- E agora? O que vamos fazer?

- Se tudo correr bem, vamos terminar o período, mas, por via das

dúvidas, mandei buscar Kishan.

- Kishan está vindo para cá?

- Ele é um bom caçador e pode me ajudar a ficar de olho nas coisas. E

também teria menos distrações que eu.

- Ah.

Ren me puxou para ele e massageou minhas costas.

- Não vou deixar que nada aconteça a você. Prometo.

- Mas e se alguma coisa acontecer a vocá? O que eu posso fazer para

ajudar?

- Kishan vai me dar cobertura para que eu possa cuidar de você.

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9

Kishan

Sem nenhuma notícia de Lokesh e, felizmente, sem nada de anormal

acontecendo, relaxei o bastante para aproveitar o baile do dia dos

namorados. A noite seria divertida e todo o lucro seria revertido para o

Museu Ártico Jensen.

Ren pegou uma capa para roupa no meu armário e a pendurou na porta

do banheiro.

- O que é isto, Tigre? Acha que agora pode escolher o que vou vestir, é?

- Gosto de você com qualquer roupa. - Ele me puxou para um abraço

apertado. - Mas queria vê-la neste vestido. Vai usá-lo esta noite?

Bufei.

- Você provavelmente quer que eu o vista porque não o usei num

encontro com ninguém. Agora não suporta o vestido pêssego porque

diz que ele cheira a Li mesmo depois de ter sido lavado.

- O vestido pêssego fica lindo em você e eu o escolhi especialmente para

você. Mas tem razão. Ele me faz lembrar Li e eu quero que esta noite

seja apenas nossa. - Ele beijou meu rosto. - Venho buscá-la para jantar

em duas horas. Não me faça esperar demais.

- Não farei.

Ele encostou a testa na minha e acrescentou com ternura:

- Odeio ficar longe de você.

Depois que saiu, tomei um banho quente, enrolei uma toalha na cabeça

e vesti um roupão. Abrindo o zíper da capa para roupa, encontrei um

vestido de chiffon cereja com saia tipo sereia e mangas tulipa. Numa

caixa no chão encontrei sandálias altas de tiras no mesmo tom de

vermelho.

Suspirei. Que obsessão é essa que os homens têm com sandálias de tiras? Agora que eu tinha um bilhão de batons, encontrei facilmente um que

combinasse com o vestido. Passei um tempão com o modelador

enrolando o cabelo em cachos, que prendi no alto da cabeça com pentes

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engastados com pedras, deixando alguns cachos soltos na altura das

minhas orelhas. Passei maquiagem e tive até tempo de pintar as unhas

das mãos e dos pés com esmalte vermelho.

Ren tocou a campainha, tentando agir com formalidade. Eu a abri e

arquejei baixinho. Meu anjo guerreiro usava uma camisa branca com

colete cinza e gravata de cetim vermelho que combinava com meu

vestido. O paletó de seu smoking preto estava jogado casualmente sobre

o ombro e o cabelo lhe caía sugestivamente sobre o olho. Ele parecia

um modelo que tinha acabado de sair das páginas de uma revista de

moda.

De repente eu me senti, comparada a ele, uma menininha brincando de

vestir as roupas da mãe. Podia imaginar todas as garotas do baile

querendo estender a mão e tirar o cabelo de sua testa.

Ren sorriu e meu coração despencou até os pés, onde ficou se

debatendo como um peixe fora da água. A mão que vinha às costas

revelou um buquê de duas dúzias de rosas vermelhas. Ele entrou e as

colocou num jarro com água que já havia preparado.

- Ren! Você não pode esperar que eu vá a um baile com você assim! Já é

difícil o bastante quando se veste de maneira normal. - Não tenho idéia do que você está falando, Kelsey. - Ele estendeu a mão

e puxou levemente um dos meus cachos espiralados, prendendo-o atrás

da orelha. - Ninguém vai nem me notar com você ao meu lado. Está

absolutamente linda. Agora posso dar seu presente de dia dos

namorados?

- Você não precisava me dar mais nada, Ren. Acredite, você já é um pre-

sente e tanto.

Ele então tirou uma caixinha de jóias do bolso e a abriu. Havia um par

de brincos pendentes com diamantes e rubis, engastados em estrelinhas

de ouro.

- São lindos! - sussurrei.

Ele me ajudou a tirá-los da caixa. Gostei da sensação de tê-los pendendo

de minhas orelhas e batendo no rosto quando eu virava a cabeça.

Fiquei na ponta dos pés e o beijei.

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- Obrigada. Adorei.

- Por que razão estou vendo um "mas" em sua expressão?

- Esse "mas" é porque você não precisa comprar coisas caras para mim.

Fico perfeitamente feliz com coisas normais, comuns, como... meias.

- Meias não seriam um presente romântico - zombou ele. - Esta é uma

ocasião especial. Não estrague minha noite, Kells. Diga apenas que me

ama e que adorou os brincos.

Envolvi-lhe o pescoço com os braços e sorri para ele.

- Eu te amo. E... adorei os brincos.

Seu rosto se iluminou num sorriso dolorosamente belo e meu coração

mais uma vez deu um salto.

Peguei seu presente na mesa e entreguei a ele.

- É muito pobre, se comparado com os brincos e as rosas. Acontece que

é difícil presentear tigres ricos.

Ele rasgou o papel e lá estava meu presente simplório, um livro.

- É O conde de Monte Cristo - expliquei. - Fala de um homem acusado

injustamente e mandado para a prisão por muito tempo, até que escapa

e busca a vingança contra seus delatores. É uma história muito boa que

me fez pensar em você no cativeiro por centenas de anos. Pensei que

podíamos dar uma pausa em Shakespeare e quem sabe lê-lo juntos.

- E um presente perfeito. Você não só está me oferecendo uma nova

obra literária, o que sabe que aprecio, como também está me

oferecendo horas e horas de leitura a seu lado, que é o melhor presente

que poderia me dar.

Com uma tesoura, cortei um botão do buquê e o prendi em sua lapela.

Então saímos para jantar. Ren havia reservado uma sala privada num

restaurante.

Depois de acomodados à mesa e servidos por não menos que três

garçons exclusivos, sussurrei:

- Um restaurante normal teria sido perfeitamente bom para mim.

- Um restaurante normal é para onde centenas de homens estão levando

suas namoradas esta noite. Não é especial nem tem privacidade. Eu

queria você só para mim.

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Ren pegou minha mão e a beijou.

- É meu primeiro dia dos namorados com a garota que eu amo. Queria

vê-la brilhar à luz de velas. Por falar nisso...

Ele tirou uma folha do bolso de seu paletó e a entregou a mim.

- O que é isso? - Desdobrei o papel e reconheci sua letra. - Você

escreveu um poema para mim?

Ele sorriu.

- Escrevi.

- Pode ler para mim?

Ele assentiu e pegou a folha. Quando começou a ler, o timbre de sua

voz me aqueceu.

Acendi uma vela e observei a chama. Ela dançava e se retorcia Livre e rebelde. Cativou-me e cintilou em meus olhos. Quando passei a mão sobre ela, Agitou-se. A chama elevou-se e ardeu, mais quente. Quando afastei a mão, o calor diminuiu, Tornou-se mais fraco e se extinguiu. Estendi novamente a mão para desfrutar o calor. Será que queimaria? Formaria bolhas e inflamaria? Não! Formigava e aquecia, Queimando lentamente, rubro, Ateando-me fogo no corpo e na alma; Era luzidio, luminoso, radiante, O rubor do rosto dela. - Ren

Ele baixou a cabeça, como se estivesse constrangido com as belas

palavras. Eu me levantei e fui até o seu lado da mesa. Sentei-me em seu

colo e passei os braços por seu pescoço.

- É lindo.

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- Você é linda.

- Eu lhe daria um beijo agora, mas você ficaria todo sujo de batom e... o

que a garçonete iria pensar?

- Ela pode pensar o que quiser.

- Estou travando uma batalha perdida, não estou?

- Está. Pretendo beijá-la... muito, antes que esta noite acabe.

- Sei. Então é melhor eu começar. Você não acha?

- Eu diria que sim.

Nós nos beijamos e eu fiquei tão alheia a tudo que não fosse Ren que

não ouvi quando a garçonete voltou. Meu rosto enrubesceu.

Ren riu baixinho.

- Não se preocupe. Vou deixar uma boa gorjeta para ela.

A garçonete se aproximou de nossa mesa quando eu, constrangida, saía

do colo de Ren. Para meu desespero, a parte inferior do rosto dele

estava toda borrada de batom vermelho. Eu só podia imaginar como

estava o meu rosto. Ren não estava nem aí.

Corri até o banheiro para me ajeitar e antes pedi a ele que fizesse o

pedido do jantar. Quando voltei a comida já tinha chegado. Ren se

levantou para puxar minha cadeira quando me sentei e se inclinou para

encostar seu rosto no meu.

Brinquei, distraída, com meus brincos novos. Ren percebeu.

- Não gostou deles?

- São lindos, mas me sinto muito culpada por você gastar todo esse

dinheiro comigo. Acho que devia devolvê-los amanhã. Talvez eles o

deixem pagar apenas uma taxa de aluguel.

- Vamos falar sobre isso depois. Por ora, quero apenas aproveitar essa

visão.

Depois do jantar fomos para o baile. Ren me conduziu pela pista, me

girando de um lado para outro. Segurando-me bem perto dele, não

tirava os olhos de mim enquanto me rodopiava ao ritmo da música. Sua

beleza era tão cativante que eu tampouco conseguia tirar os olhos dele.

Ele assoviou, acompanhando uma canção chamada "My Confession".

Sorrindo, admiti:

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- Essa música descreve como me sinto em relação a você. Levei muito

tempo para reconhecer esse sentimento, mesmo para mim mesma.

Ele ouviu com mais atenção a letra da canção e então abriu um sorriso.

- Eu sabia quais eram seus sentimentos por mim desde aquele beijo antes

de sairmos de Kishkindha. O que a deixou louca de raiva.

- Ah, o que você achou que fosse esclarecedor?

- Foi esclarecedor porque foi ali que eu soube. Soube que seus

sentimentos por mim eram tão fortes quanto os meus por você. Não se

pode beijar um homem daquela forma sem estar apaixonada por ele,

Kells.

Ergui a mão para brincar com o cabelo em sua nuca.

- Então foi por isso que você ficou tão metido e seguro de si depois

daquele dia.

- Sim. Mas toda aquela petulância desapareceu depois que você foi

embora.

Sua expressão se tornou séria. Ele beijou meus dedos, pressionou minha

mão contra seu peito e pediu com intensidade:

- Prometa que nunca mais vai me deixar, Kelsey.

Olhei em seus olhos azul-cobalto e disse:

- Prometo. Eu nunca mais vou deixar você.

Seus lábios roçaram levemente os meus. De repente ele me dirigiu um

sorriso malicioso, afastou-me com um rodopio e me puxou de volta, me

apertando de encontro ao seu peito. Então deslizou o braço pelas

minhas costas e me baixou devagar. Levantando-me rapidamente,

começamos a nos mover seguindo o tango e Ren me conduziu com

suavidade no ritmo latino da canção.

Eu sabia que as pessoas deviam estar nos observando, mas, àquela

altura, não ligava. Ele conseguia executar os passos com habilidade,

embora eu não soubesse o que estava fazendo. A dança era ardente e

apaixonada e eu fui rapidamente dominada por ele e pela cadência da

melodia. Ele me envolveu numa onda de sensações físicas e mentais,

orquestrando a perfeita sedução.

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Quando a música chegou ao fim, Ren teve que me segurar, pois minhas

pernas estavam bambas como gelatina. Ele riu e fez carinho em meu

pescoço com o nariz, feliz com minha reação.

Depois de eu me recuperar o suficiente de seu torturante ataque aos

meus sentidos, eu disse:

- Eu achava que esse tipo de dança só existisse nos filmes. Onde você

aprendeu a dançar assim?

- Minha mãe me ensinou várias danças tradicionais e, desde então,

aprendi muitos movimentos por meio da observação. O Sr. Kadam falou

com Nilima e ela se tornou minha parceira de treino.

Franzi a testa.

- Não me agrada nem um pouco a idéia de você e Nilima dançando. Se

quiser praticar, é só me ensinar.

- Nilima é como uma irmã para mim.

- Mesmo assim.

- Está bem. Prometo nunca mais dançar com outra mulher. - Ele sorriu.

- Mas ainda gosto quando você fica ciumenta.

Voltamos a dançar uma música lenta e eu pus a cabeça em seu ombro,

fechei os olhos e me permiti desfrutar a sensação de estar em seus

braços. A música estava apenas na metade quando senti seu corpo

enrijecer e o vi olhar para trás de mim.

- Ora... ora... ora - uma voz sedosa e familiar nos interrompeu. - Um dia

da caça, outro do caçador. Creio que esta dança seja minha. Dei meia-volta.

- Kishan! Como estou feliz de ver você! E o abracei com entusiasmo.

O príncipe de olhos dourados me tomou nos braços, encostou o rosto

no meu e disse:

- Também estou feliz em vê-la, bilauta.

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10

Capangas

Kishan se afastou para dar uma boa olhada em mim.

- Senti saudade. Como meu irmão idiota está tratando você? - Em um

sussurro fingido, ele perguntou: - Você precisou usar o repelente de

tigres?

Eu ri.

- Ren está me tratando muito bem, apesar de eu ter dado a ele um

presente de dia dos namorados muito mixuruca.

- Ah, ele não merece mesmo nenhum presente. O que foi que ele deu a

você?

Ergui a mão para tocar um dos brincos.

- Estes. Mas são muito sofisticados para mim.

Kishan estendeu a mão e tocou levemente o brinco. Seu olhar lascivo de

pirata raptor de mulheres se dissolveu num terno sorriso que ergueu o

canto de sua boca.

- Mamãe teria aprovado - disse ele baixinho.

- Estes brincos foram da sua mãe? - perguntei a Ren, que assentiu. - Ren,

por que você não me disse?

- Não queria que se sentisse pressionada a usá-los caso não gostasse deles

- respondeu ele frivolamente. - Estão um pouco fora de moda.

- Você devia ter me contado que eram da sua mãe. - Deslizei os braços

por seu pescoço e o beijei. - Obrigada por me dar algo tão precioso para

você.

Ren me apertou mais e beijou meu rosto.

Ouvi um suspiro dramático às nossas costas.

- Argh, acho que o prefiro chorão e desesperado. Isso é tão meloso.

Ren grunhiu baixinho.

- Quem foi que o convidou?

- Você.

- Não para vir aqui. Como nos encontrou?

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- Desembarcamos em Salem e encontrei o convite para o baile na casa.

Pensei que, se havia uma festa, eu devia estar nela. Mas acho que todas

as garotas bonitas já têm par. Talvez... eu possa pegar a sua emprestada.

Kishan estendeu a mão, mas Ren se interpôs à minha frente e ameaçou:

- Por cima do meu cadáver.

Kishan arregaçou as mangas do suéter.

- Quando quiser, irmão. Vamos ver como se sai, Sr. Romântico.

Hora de intervir. Em minha voz mais doce, eu disse:

- Kishan, estamos bem no meio de um encontro e, embora eu esteja muito feliz em vê-lo, será que você se importaria de ir para casa agora?

Como pode ver, é mais uma coisa para casais do que uma festa. Não

vamos demorar e lá em casa tem ingredientes para preparar sanduíches

e uma bandeja gigante de biscoitos. Você se importa? Por favor?

- Muito bem. Eu vou. Mas só porque você está pedindo.

- E você está pedindo outra coisa - retrucou Ren.

Kishan deu um piparote na orelha de Ren e zombou:

- Isso mesmo. Vamos ver se você pode levar essa coisa para mim mais

tarde. Tchau, Kelsey.

Tive a forte sensação de que minha mão em seu braço foi a única coisa

que segurou Ren e o impediu de ir atrás do irmão. Ele ficou observando

até Kishan desaparecer de seu campo de visão, mas, mesmo depois,

pareceu não relaxar. Tentei trazer sua atenção de volta para mim.

- Ren. - Ele é muito abusado. Talvez tenha sido um erro chamá-lo aqui.

- Você confia nele?

- Depende. Confio nele na maioria das situações. A não ser...

- A não ser?

- A não ser com você. - Ah. Você não precisa confiar nele em relação a mim. Só tem que

confiar em mim. - Kells... - desdenhou ele.

- Estou falando sério. - Segurei-lhe o rosto entre as mãos de modo a

forçá-lo a olhar para mim. - Quero que você compreenda uma coisa.

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Talvez Yesubai tenha escolhido Kishan, mas eu escolhi você. É você

que eu quero. Não ele. - Suspirei. - Na verdade, eu tenho pena de

Kishan. Ele perdeu a pessoa que amava. É por isso que devemos

aproveitar ao máximo nosso tempo juntos. Nunca se sabe quando

alguém que você ama vai ser tirado de você.

Ele me abraçou por um instante, o rosto colado ao meu, enquanto

dançávamos uma música lenta, sabendo que eu não falava mais de

Kishan.

- Isso não vai acontecer conosco. Eu não vou deixá-la. Sou imortal,

lembra?

Sorri sem entusiasmo.

- Não é a isso que estou me referindo.

- Sei a que você está se referindo. - Ele provocou. - Mas precisei lutar

contra três homens para conquistá-la e não quero ter que enfrentar

meu irmão também.

Eu ri.

- Está exagerando, Tarzan. Você não precisou lutar contra ninguém.

Bem... exceto contra Li. E, de qualquer forma, meu coração já era seu, e

você provavelmente sabia disso.

- Eu saber e você saber são duas coisas bem diferentes. Fui um tigre

solitário por tempo demais. Mereço ser feliz com a mulher que amo. E

não vou deixar ninguém tirá-la de mim, muito menos Kishan.

Lancei-lhe um olhar severo. Ele suspirou e me girou.

- Vou tentar ser mais paciente com Kishan, mas ele sabe como me

irritar. E difícil demais me controlar, principalmente quando ele flerta

com você.

- Por favor, tente. Por mim.

- Por você, eu me submeteria a torturas excruciantes, mas não posso

tolerar vê-lo flertando com você.

- É você que eu amo. Vou dizer a ele que pare com isso. Mas tentem não

se matar enquanto ele estiver aqui, está bem? Nada de lutas de tigres.

Não se esqueça de que precisa dele aqui.

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- Certo, mas se ele continuar a se atirar aos seus pés, não respondo por

mim.

Depois de um momento, eu disse baixinho:

- Você não disse... que me ama também.

- Kelsey, "sou firme como a Estrela do Norte, cuja essência constante e

inabalável não encontra paralelo no vasto firmamento".

- César morreu, você sabe.

- Esperava que você não conhecesse essa.

- Conheço todas, Shakespeare.

- Então vou dizer simplesmente que te amo. Não há nada neste mundo

mais importante para mim do que você. Só me sinto feliz quando você

está por perto. Meu único propósito é ser o que você precisa que eu seja.

Isso não é poesia, mas vem do meu coração. Serve?

Dei um sorriso torto.

- Acho que sim.

Não ficamos muito mais tempo no baile, pois o humor de Ren havia

mudado, apesar de minhas brincadeiras, meus beijos e minhas

declarações de amor. Ele dançava comigo, no entanto sua mente estava

em outro lugar, e quando eu lhe disse que gostaria de ir para casa, ele

não se opôs.

Quando subíamos o caminho que levava à entrada da garagem, percebi

que as luzes estavam acesas na minha casa. Antes de entrarmos, Ren me

envolveu num abraço delicado e me beijou com ternura.

Ele encostou a testa na minha e disse:

- Este não é exatamente o final que planejei para nosso encontro

romântico.

- Ainda lhe resta uma hora. - Sorri e passei os braços em torno de seu

pescoço. - O que tinha em mente?

Ele riu.

- Na verdade eu estava planejando improvisar o restante, mas isso não

vai acontecer com Kishan por aqui.

Ren tornou a me beijar e ouvimos um comentário abafado, baixo

demais para que eu pudesse entender. Ele afastou os lábios dos meus e

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grunhiu baixinho, resmungou alguma coisa em híndi e abriu a porta

carrancudo.

Kishan estava assistindo à TV enquanto devorava uma quantidade

inacreditável de petiscos. Seis pacotes diferentes de pretzels, pipoca,

biscoitos, batatas chips e outras guloseimas variadas estavam espalhados

sobre a mesinha de centro, todos comidos pela metade.

- É repugnante - queixou-se Kishan. - Vocês não podiam ter terminado

de se beijar no baile para que eu não precisasse ouvir isso?

Ren me ajudou a tirar o casaco com um resmungo de irritação, antes

que eu seguisse para o andar de cima. Ele disse que subiria assim que

acomodasse Kishan. A parte do acomodasse me soou ameaçadora, mas

assenti com a cabeça, na esperança de que pelo menos tentariam ser

civilizados um com o outro.

Estava acabando de passar a blusa do pijama pela cabeça quando ouvi

Ren gritar:

- Você comeu todos os meus biscoitos de manteiga de amendoim?

Sacudi a cabeça. Dois tigres vivendo tão próximos vão me dar uma grande dor de cabeça. Sem ouvir a resposta de Kishan, decidi deixar que eles resolvessem a

questão sozinhos. Aninhei cuidadosamente os brincos de rubi na caixa

de fitas por segurança e pensei na mãe de Ren e Kishan. Tirei a

maquiagem e os pentes com pedras do cabelo, deixando os cachos

macios cascatearem pelas minhas costas.

Encontrei Ren descansando em minha cama, recostado na cabeceira. O

paletó de seu smoking estava jogado sobre uma cadeira e a gravata, com

o nó desfeito, pendia de seu pescoço.

Subi em seu colo e dei-lhe um beijo no rosto. Seus braços me

envolveram, puxando-me para mais perto, mas os olhos se mantiveram

fechados.

- Estou tentando lidar com Kishan, Kelsey, mas vai ser muito, muito

difícil.

- Eu sei. Onde ele vai dormir?

- Na minha cama, na outra casa.

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- E onde você vai dormir?

Ele abriu os olhos.

- Aqui. Com você. Como sempre faço.

- Humm, Ren, você não acha que Kishan vai tirar conclusões sobre... você sabe, nós estarmos juntos. Juntos mesmo?

- Não se preocupe com isso. Ele sabe que não estamos.

- Ren. Você está corando?

Eu ri.

- Não. Eu só não esperava falar sobre esse assunto.

- Você é realmente de outra época, Príncipe Encantado. Essa é uma

conversa importante.

- E se eu ainda não estiver pronto para essa conversa?

- É mesmo? Depois de 350 anos você ainda não está pronto para essa

conversa?

Ele grunhiu suavemente.

- Não me entenda mal, Kells. Estou mais do que pronto para ter essa

conversa, mas nós não vamos tê-la. Pelo menos não até que a maldição

tenha sido quebrada.

Meu queixo caiu.

- Você está dizendo o que acho que está dizendo? Que não poderemos

ficar juntos até sermos perseguidos por macacos e demônios imortais

por pelo menos mais três vezes, o que pode levar anos?

- Eu espero sinceramente que não leve todo esse tempo. Mas, sim. E isso

que estou dizendo.

- E você não vai ceder, não é?

- Não.

- Que maravilha! Então eu vou virar uma velha solteirona que mora

com dois gatos enormes!

- Você não vai virar uma velha.

- Quando você resolver ficar comigo já estarei velha, sim.

- Kelsey, você está dizendo que está pronta para tudo agora?

- Provavelmente não, mas e daqui a um ano? Ou dois? Vou acabar

ficando maluca.

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- Também não vai ser fácil para mim, Kells. O Sr. Kadam concorda que é

perigoso demais. Seus descendentes vivem por um tempo

excepcionalmente longo e ele acha que o amuleto é o responsável por

isso. Foi uma conversa constrangedora, mas ele disse que é melhor não

corrermos nenhum... risco desnecessário. Não sabemos como o amuleto

ou a maldição funcionam e, até sermos homens outra vez, por

completo, não posso me arriscar a que alguma coisa aconteça com você.

- O Sr. Kadam não matou a mulher, Ren - observei secamente.

- Não. Mas ele também não era um tigre.

- Está com medo de termos gatinhos? - provoquei.

- Nem brinque com isso - disse Ren, com uma expressão de pedra.

- Bem, então do que você tem medo? Quer fazer umas aulas?

Não pude evitar. O humor sarcástico de mamãe tomou conta de mim.

- Não! - disse ele revoltado. Eu ri. - Kelsey! Você não está levando isso a

sério.

- Claro que estou. Só que estou conversando sobre algo que me deixa

nervosa e em geral reajo ao nervosismo com humor e sarcasmo. Poxa,

Ren, você está falando de anos quando estou quase a ponto de atacá-lo agora. - Suspirei. - Acha mesmo que seria perigoso?

- A verdade é que não sei. Não sei como a maldição irá nos afetar. E não

vou colocá-la em risco. Portanto, podemos adiar essa conversa... pelo

menos por enquanto?

- Podemos - resmunguei. - Mas é bom você saber que tenho...

dificuldade em pensar com clareza perto de você.

- Humm - gemeu ele, pressionando os lábios em meu pescoço.

- E isso não ajuda em nada. - Suspirei. - Acho que vejo um monte de

banhos frios à minha espera no futuro.

Ren murmurou de encontro à minha pele:

- Para você e para mim. Você tinha dificuldade em pensar com clareza

perto dos seus outros namorados?

- Que namorados?

- Jason ou Li?

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- Sinceramente, não penso em Jason senão como um amigo. Li era um

bom amigo com potencial. Humm... isso é gostoso. Eles eram pessoas

interessantes e que eu quis conhecer melhor. Mas nunca foram meus

namorados. Eu não os amava como amo você e eles não faziam com que

eu me sentisse assim. - Gemi baixinho. - Não chegavam nem perto.

Ele traçou com beijos a linha do meu maxilar.

- E antes deles?

- Não. Não houve ninguém. Você é o meu primeiro... em tudo.

Ele ergueu a cabeça e me dirigiu seu sorriso devastador.

- Eu me sinto delirantemente feliz em ouvi-la dizer isso. - Ele juntou

meu cabelo sobre o ombro e depositou beijos ao longo da curva do meu

pescoço. - Só para registrar, Kells, você também é a minha primeira em

tudo.

Estremeci. Suspirando, ele me beijou docemente e me aconchegou de

encontro ao seu peito.

Brinquei com os botões de sua camisa e falei baixinho:

- Sabe, minha mãe conversou comigo sobre isso pouco antes de morrer.

Ela e papai torciam para que eu esperasse até o casamento, como eles

fizeram.

- Para mim, isso estava subentendido. No meu tempo, em meu país, os

relacionamentos casuais não existiam.

- Ah - provoquei -, então você acha que nosso relacionamento é casual?

- Não. Não para mim. - Ele inclinou a cabeça e observou minha

expressão atentamente. - E para você?

- Para mim também não.

- É bom saber.

Ele estendeu a mão, agarrou meu edredom e o ajeitou à nossa volta.

- Ren, o que você diria se eu quisesse esperar, você sabe, até lá.

Um sorriso iluminou seu rosto bonito.

- Até... o quê?

Mordi o lábio, nervosa.

- Até... você sabe. Seu sorriso se abriu ainda mais.

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- Isso é uma proposta de casamento? Quer o número do telefone do Sr.

Kadam para você pedir a permissão dele?

Bufei.

- Vá sonhando, Romeu! Mas, falando sério, Ren, se eu quisesse esperar,

isso... chatearia você?

Ele segurou meu rosto entre as mãos, olhou-me nos olhos e disse

simplesmente:

- Eu esperaria por você pela eternidade, Kelsey.

Suspirei.

- Você sempre diz a coisa certa.

Eu estava desfrutando o fato de estar ali agarradinha com ele quando

um pensamento dormente acordou em minha cabeça e me fez sentar na

cama.

- Espere um minuto! Sua primeira em tudo, hein? Isso não é exatamente verdade. O Sr. Kadam uma vez me disse que ele invadiu o Banho da

Rainha em Hampi, o que era um rito de passagem para rapazes. Você

não o acompanhou a Hampi em várias ocasiões?

Ren imobilizou-se.

- Bem, tecnicamente falando... Eu sorri e ergui uma sobrancelha, debochada.

- Sim, Ren? Meu amor? Você estava dizendo...

- Eu estava dizendo que, tecnicamente falando, sim, Kadam, Kishan e eu

invadimos o local. Mas só chegamos até a porta da frente e todas as

mulheres estavam dormindo. Não vimos nada.

Espetei meu dedo em seu peito.

- Está me dizendo a verdade, Lancelote?

- Esta é, 100 por cento, a mais absoluta verdade.

- Então, se eu perguntar a Kishan amanhã, ele vai confirmar sua

história?

- Claro que sim. - E então murmurou baixinho: - E, se não confirmar,

dou um soco na cara dele.

- É melhor que você esteja me falando a verdade, Ren. E não, você não

vai dar nenhum soco na cara de Kishan.

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- Só estou provocando você, Kells. Juro. Eu nunca olhei para outra que

não fosse você desde o primeiro dia em que leu para mim junto à jaula

do circo. No que diz respeito a Kishan, de qualquer maneira, ele merece

um soco por comer meus biscoitos.

- Amanhã faço mais para você. Não brigue com ele por causa disso,

ciumento.

Ri até que ele me calasse com os lábios.

No dia seguinte, durante a terceira omelete de Ren e a quarta de

Kishan, Ren anunciou que queria voltar a praticar wushu. Kishan bateu

palmas, deixando claro que mal podia esperar para surrar o irmão.

Eles alugaram um pequeno estúdio onde teríamos total privacidade, de

forma que ele e Ren pudessem me instruir. Não me ensinaram nenhum

movimento ou posição elaborados, mas me deram um curso intensivo

de Iniciação à Incapacitação de Seu Oponente. Nós todos achamos que

era melhor eu aprender alguns movimentos defensivos com a

possibilidade de Lokesh estar rondando por aí, assim como a de sabe-se

lá o quê estar à nossa espreita na próxima missão. Então nos alongamos

por alguns minutos e em seguida Ren começou sua aula, usando Kishan

para demonstrar.

- Lição número um. Se seu atacante estiver correndo em sua direção,

flexione os joelhos e espere até ele se aproximar. Então agarre-o pelo

braço, gire ao redor dele e trave os braços em seu pescoço. Se o sujeito

for grande, atinja-o no pescoço, sob a mandíbula.

Kishan correu para Ren e o atacou por trás. Então foi a minha vez. Ren

correu em minha direção e eu agarrei seu braço e pulei em suas costas.

Atirei os braços em torno de seu pescoço numa breve gravata, mas em

seguida estalei um beijo em seu rosto antes de pular para o chão.

- Ótimo. Lição número dois. Se o atacante tem mais habilidade nas artes

marciais que você, não lute com ele. Tente apenas incapacitá-lo. Mire o

estômago ou a virilha e soque ou chute o mais forte que puder.

Kishan voltou a atacar e começou uma complicada investida

empregando artes marciais. Reconheci um salto com chute no rosto,

com o joelho flexionado e um soco circular, mas ele também fez muitos

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outros movimentos complicados que eu desconhecia. Ren apenas

recuava, fugindo do alcance de Kishan, até que encontrou uma abertura

e socou Kishan com força no estômago. Kishan levantou-se

imediatamente e voltou ao ataque. Dessa vez, lutou com mais empenho

e derrubou Ren, que então desferiu um soco para o alto, parando a

poucos centímetros de incapacitar o irmão.

- Se tiver que escolher um ou outro, escolha a virilha. É muito mais

eficaz. Lição número três. Procure os pontos principais: olhos, pomo de

adão, ouvidos, têmporas e nariz. No caso dos olhos, ataque com dois

dedos, assim. Nas orelhas, use ambas as mãos e dê um telefone, isto é,

acerte ambos os ouvidos ao mesmo tempo, o mais forte que puder. Nos

outros pontos, aplique um golpe forte, com a mão espalmada.

Ren demonstrou cada um dos golpes e então sugeriu que praticasse nele

novamente. Pediu que eu o machucasse de fato, pois queria que a aula

fosse realista. Mas eu não conseguia me forçar a fazer isso.

Kishan grunhiu e se levantou, empurrando Ren e tirando-o do

caminho.

- Desse jeito, ela nunca vai aprender. Ela precisa de um ataque de

verdade.

- Não, você é bruto demais. Vai machucá-la.

- O que você acha que eles vão fazer com ela?

Pus meu braço no de Ren.

- Ele tem razão. Está tudo bem. Deixe Kishan tentar.

Ren concordou, relutante, e ficou encostado à parede.

Fiquei parada, nervosa, com as costas voltadas para Kishan, à espera do

ataque. Ele se aproximou de mim por trás, agarrou meu braço com força

e me fez girar. Suas mãos envolveram meu pescoço. Ele estava me

estrangulando. Ouvi um rugido feroz antes de Kishan ser lançado

contra a parede mais distante. Ren ficou parado diante de mim tocando

com carinho as marcas de dedos vermelhas em minha pele.

- Eu falei! - ele gritou com Kishan. - Você é bruto demais! Ela vai ficar

com hematomas no pescoço!

- É necessário ser bruto para ser realista. Ela precisa estar pronta.

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- Ren, eu estou bem. Deixe-o tentar outra vez. Tenho que me preparar

para que possa pensar com clareza durante um ataque. Você pode

precisar de mim para salvá-lo um dia.

Ele acariciou meu pescoço delicadamente e olhou para mim, indeciso.

Por fim assentiu e saiu do caminho.

Kishan correu para a outra extremidade do estúdio e gritou para mim:

- Não pense. Apenas reaja.

Virei-me para o outro lado a fim de esperar o ataque. Kishan estava

silencioso. Apurei os ouvidos tentando captar o som de seus passos, mas

não ouvi nada. De repente, seus braços me envolviam com força por

trás e ele me arrastava. Ele era forte demais. Estava me estrangulando.

Eu me debati, lutei e pisei com força em seu pé, tudo inutilmente.

Desesperada, inspirei com força e bati a cabeça contra o seu queixo.

Doeu. Muito. Mas ele reduziu a força dos braços o suficiente para que

eu escapasse dele, caindo no chão. Então me levantei subitamente, bati

meu ombro em sua virilha e soquei seu estômago com toda a minha

força.

Kishan caiu no chão, rolando. Ren soltou uma gargalhada alta e bateu

nas costas do irmão antes de ir até mim.

- Você pediu! Não pense. Apenas reaja. Pena que eu não tinha uma

câmera!

Eu tremia por causa do esforço. Tinha conseguido, mas sinceramente

não acreditava que pudesse lidar com mais do que um adversário. Como

eu poderia proteger Ren se mal conseguia cuidar de mim?

- Kishan vai ficar bem?

- Ele vai se recuperar. Só precisa de um minuto.

Ren estava entusiasmado com minha pequena vitória. Kishan ficou de

pé, fazendo careta.

- Essa foi boa, Kelsey. Se eu fosse um homem normal, ficaria no chão

por pelo menos 20 minutos.

Eu me sentia um pouco tonta.

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- Será que podemos parar por hoje? Minha cabeça está rodando. Acho

que preciso de uma aspirina. Lembrem-se de que eu não me recupero

tão rápido quanto vocês dois.

Ren ficou sério, apalpou minha cabeça e encontrou um grande galo se

formando. Ele insistiu em me carregar até o carro, embora eu pudesse

andar sem problemas. Quando chegamos em casa, ele me acomodou no

sofá, socou com força a barriga de Kishan, só para deixar claro o que

pensava, e foi para a cozinha pegar uma bolsa de gelo para a minha

cabeça.

Ao longo das duas semanas seguintes, enquanto praticávamos, comecei

a acreditar que poderia manter o auto-controle durante um ataque.

Kishan e Ren passaram a se alternar em rondas em torno da casa à

noite, certificando-se de que ninguém chegaria sorrateiramente e nos

surpreenderia.

Coloquei uma mochila de emergência debaixo do banco dianteiro da

picape GMC preta de Kishan, com roupas e outros itens de que

precisaria no caso de partirmos com pressa. Guardei nela minha colcha,

documentos de viagem, os brincos de rubi e Fanindra. Ren e Kishan a

encheram com dinheiro de vários países e acrescentaram uma bolsa de

roupas para eles também. Estacionaram a picape cerca de um

quilômetro e meio adiante na estrada principal e a cobriram com galhos

para camuflá-la.

Eu sempre usava meu amuleto e a pulseira com o medalhão de Ren,

mas me preocupava com minha caixa de fitas. Se tivéssemos que deixar

a cidade rapidamente, não queria que nada acontecesse com ela. Ren

sugeriu que, por segurança, enviássemos um pacote pelo correio para o

Sr. Kadam. Despachamos para a Índia minha caixa de fitas e vários

outros itens pessoais insubstituíveis.

Manter o estado de ânimo descontraído era difícil, pois todos sentíamos

que alguma coisa ruim estava para acontecer. Kishan agora se juntava a

nós nas noites de filmes e na maioria das vezes comia toda a pipoca, o

que irritava Ren. Ficávamos em casa quase todas as noites e eu

cozinhava. Kishan comia facilmente o dobro do que Ren comia, que já

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era muito. O rapaz do mercado que fazia a entrega devia pensar que

estávamos administrando uma pensão, a julgar pela quantidade de

comida que pedíamos toda semana.

Num sábado de março, sugeri um passeio à Tillamook e à praia. A

previsão era de um tempo atipicamente quente e ensolarado. A

probabilidade de o dia estar de fato quente e assim se manter era

mínima, mas as praias do Oregon eram lindas, mesmo com chuva. No

minuto em que prometi sorvete de chocolate com manteiga de

amendoim, Ren passou a apoiar a idéia.

Separamos biscoitos, chocolate e marshmallows para o lanche e

colocamos uma muda de roupa na traseira do Hummer. Dirigi até

Lincoln City e dobrei a direita, na rodovia 101, que corria ao longo do

litoral do Oregon. Era uma bela viagem e os dois tigres empinaram o

nariz para farejar o oceano quando abri um pouco as janelas. Mais tarde,

parei no Centro de Visitantes da Queijaria Tillamook e estacionei na

vaga mais distante do movimento.

- Encontro vocês lá dentro.

Vesti um casaco leve. Apesar da previsão de tempo bom, o céu estava

um pouco nublado, com raios de sol espiando através das nuvens

cinzentas apenas ocasionalmente. Ventava um pouco também, mas não

parecia que fosse chover antes do anoitecer. Entrei na loja e examinei a

variedade de queijos em exposição.

Ren entrelaçou os dedos nos meus. Usava um suéter azul-claro de capuz

com uma estampa de alguma espécie de dragão asiático que ia de um

ombro ao outro.

Levantei a mão para traçar as linhas do dragão.

- Onde você comprou isto?

Ele deu de ombros.

- Pela internet. Agora sou expert em compras on-line.

- Humm. Gostei.

Ele arqueou uma sobrancelha.

- Gostou?

- Sim. - Suspirei. - É melhor manter você longe do sorvete.

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Ele pareceu ofendido.

- Posso saber por quê?

- Porque você é quente o bastante para derretê-lo. As atendentes já

estão de olho em você.

- Bem, talvez você não tenha percebido o rapaz atrás do balcão. Ele

ficou muito desapontado quando entrei aqui.

- Você está mentindo.

- Não... não estou.

Espiei o rapaz atrás da caixa registradora. Ele estava nos observando.

- Provavelmente ele só quer ter certeza de que não estamos provando

amostras demais.

- Duvido.

Fomos até o balcão de sorvete onde senti o aroma de casquinhas de

waffle recém-saídas do forno. Kishan pediu uma casquinha e três bolas

com os sabores cheesecake de mirtilo, laranja com chocolate e root beer. - Uma combinação interessante, Kishan.

Ele sorriu para mim acima de sua casquinha gigante e deu uma mordida

imensa na bola de sorvete de cima. Ren era o próximo, mas parecia

estar com problemas.

- Estou dividido.

- Entre o quê?

- Chocolate com manteiga de amendoim e pêssego com creme.

- Você adora chocolate com manteiga de amendoim. Deveria ser uma

escolha fácil.

- Ah, é verdade. - Ele se inclinou para sussurrar: - Mas gosto mais de

pêssego com creme.

Ele me deu um beijo no rosto e pediu uma casquinha com duas bolas de

pêssego com creme.

Eu pedi uma casquinha com uma bola de chocolate com manteiga de

amendoim por baixo e uma do meu favorito, o especial da casa, por

cima, e prometi a Ren que ele poderia comer metade da minha

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casquinha. Acrescentei uma barra grande de chocolate com manteiga

de amendoim ao pedido e paguei a conta.

Dali era uma viagem curta até a praia. Como estava nublado e ainda

bastante frio, a praia encontrava-se deserta. Éramos apenas nós três, as

gaivotas e o rugido do oceano gelado.

A água azul fria e cortante encapelava-se, derramando-se pela areia

cinzenta e borrifando as grandes pedras negras. Era assim o oceano do

noroeste: lindo, frio e escuro. Muito diferente das praias da Califórnia e

da Flórida. À distância um barco de pesca passava lentamente.

Ren estendeu uma manta grande na areia e começou a fazer uma

fogueira. Logo, logo uma labareda crepitava e ele se sentou ao meu lado

no cobertor. Comemos, rimos e conversamos sobre vários estilos de

artes marciais: caratê, wushu, ninjútsu, kendo, aikido, shaolin, muay thai, tae kwon do e kempo. Ren e Kishan discutiram sobre que estilo usar em cada situação. Por

fim, se aquietaram e Ren me convidou para caminhar pela praia.

Tiramos os sapatos, demos as mãos e deixamos a água fria lamber nossos

pés descalços enquanto andávamos até as pedras negras, a cerca de um

quilômetro dali.

- Você gosta do mar? - perguntou ele.

- Gosto de observá-lo ou navegá-lo, mas nadar nele me dá medo.

- Por quê? Pensei que você adorasse as histórias sobre o oceano.

- E adoro. Existem alguns livros excelentes sobre o mar: Robinson Crusoé, Vinte mil léguas submarinas, A ilha do tesouro e Moby Dick. - Então por que você tem medo?

- Uma palavra: tubarões. - Tubarões?

- É. Parece que tenho que apresentá-lo ao filme Tubarão. - Suspirei. - Eu

sei, estatisticamente falando, que a maioria das pessoas que nadam em

praias não é comida por um tubarão, mas o simples fato de eu não poder

ver nada na água já me enche de pavor.

- Então não tem problema com as piscinas?

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- Não. Adoro nadar, mas vi programas de mais sobre tubarões na TV e

não me sinto tranqüila no mar.

- Talvez você pudesse gostar de mergulhar.

- Talvez, mas duvido.

- Gostaria de experimentar um dia.

- Fique à vontade.

- Sabe, estatisticamente falando, você tem muito mais probabilidade de

ser devorada por um tigre.

Ele tentou agarrar meus braços, mas corri, saindo de seu alcance.

- Não se o tigre não puder me pegar.

Saí correndo o mais rápido que pude e Ren riu e me perseguiu pela

areia, tentando agarrar meus calcanhares.

Ele me deixou escapar por algum tempo, apesar de eu saber que poderia

ter me dominado quando quisesse. Por fim, ele me pegou no colo e me

jogou sobre o ombro.

Eu não parava de rir.

- Vamos voltar, Tigre. A maré está subindo e deixamos Kishan sozinho

por muito tempo.

Ele me carregou de volta e me colocou sobre a manta.

Peguei os marshmallows para assá-los. Ren desafiou Kishan para uma

corrida, indo da manta até as pedras e voltando.

- Vamos lá, Kishan. O primeiro a voltar ganha.

- Ganha o quê?

- Que tal um sanduíche de biscoito com marshmallow e chocolate? -

sugeri.

Kishan sacudiu a cabeça.

- Que tal um beijo de Kelsey?

O rosto de Ren tornou-se sombrio.

Eu me aventurei:

- Ah, Kishan. Acho que essa não é uma idéia muito boa.

- É sim, Kelsey - insistiu Kishan. - Vai servir como motivação para ele se

esforçar. A menos que ele ache que vai perder.

- Eu não vou perder - grunhiu Ren.

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Kishan espetou o dedo no peito de Ren.

- No seu melhor dia você nem sequer veria minha cauda.

- Muito bem. Vamos lá.

- Rapazes, eu não acho...

- Já!

Ambos saíram correndo tão rápido que se transformaram quase num

borrão sobre a areia. Deixando os marshmallows de lado, levantei-me

para vê-los correr. Kishan parecia um relâmpago, mas Ren também era

rápido, indo logo atrás. Quando alcançaram a pedra, Ren fez uma

virada melhor e ganhou alguns centímetros de vantagem, que

conseguiu manter na volta. Mais ou menos na metade, Kishan estendeu

o braço, agarrou o capuz azul do suéter de Ren, puxou com força e o

empurrou na areia.

Ren girou e caiu, porém se levantou rapidamente e avançou, correndo

com fúria. Suas pernas se movimentavam mais rápido do que parecia

possível. A areia voava vários metros atrás dele, à medida que diminuía

a distância e emparelhava com Kishan. A corrida terminou com Kishan

ganhando por meio metro.

Ren estava furioso. Kishan riu e cutucou Ren para que saísse da frente e

o deixasse reivindicar seu prêmio.

Fiquei na ponta dos pés e dei um beijo no rosto de Kishan. Ren pareceu

se acalmar e começou a relaxar. Ele pegou uma pedra e a atirou no

oceano.

- Você só ganhou porque roubou - resmungou.

- Ganhei porque sei como ganhar - retrucou Kishan. - Roubar é

irrelevante. Você precisa aprender a fazer o que for necessário para

ganhar. Por falar nisso, esse não era o prêmio que eu tinha em mente.

Ele agarrou meu cotovelo, fazendo-me dar meia-volta, e me segurou

pelas costas, inclinando-nos num beijo teatral. Era muito mais drama

que substância, mas Ren ficou enlouquecido.

- Solte-a. Agora. Depois de Kishan me colocar de pé, recuei um passo e Ren se lançou de

encontro à barriga de Kishan, interrompendo sua gargalhada ao atirá-lo

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na areia. Eles rolaram pelo chão lutando e rosnando pelos 10 minutos

seguintes. Achei melhor não intervir. Parecia que lutar contra o outro

era um dos passatempos preferidos de ambos.

Quando finalmente encerraram a briga, nós comemos os biscoitos com

marshmallow e chocolate. Tirando o cabelo de Ren de sua testa e

alisando-o, eu disse:

- Você sabe que a única intenção dele era tentar irritá-lo.

- Ah, mas não era mesmo. Eu já disse: se ele continuar bancando o

engraçadinho com você, a trégua estará cancelada. Ei, isso é muito bom.

Humm, ficaria ainda melhor com...

- Manteiga de amendoim? - falamos os dois ao mesmo tempo.

Ele começou a plantar beijos melados por todo o meu rosto. Eu ri,

empurrei-o do meu colo e corri. Ele se pôs de pé num salto para me

pegar quando meu celular tocou. Era Jason.

- Oi, Jason. Tudo bom?

- Achei que você ia gostar de saber que uns caras estranhos apareceram

no campus ontem perguntando por você. Disseram que representam

um escritório de advocacia e que têm novidades sobre o testamento dos

seus pais.

- Ah. E como eram eles?

- Eram altos e vestiam uns ternos caros. Pareciam falar a verdade, mas

eu não disse nada a eles. Achei melhor consultar você primeiro.

- Muito obrigada por me avisar, Jason. Você fez bem em não dizer nada

a eles.

- Você está com algum problema, Kelsey? Está tudo bem?

- Tudo bem. Não se preocupe.

- Beleza. Até mais.

-Até.

Encerrei a ligação e olhei para Ren. Ele me encarou. Ambos sabíamos:

Lokesh havia me encontrado. Ouvi Kishan falando baixinho, me virei e

o vi em seu celular, provavelmente com o Sr. Kadam.

Começamos a arrumar tudo para voltar imediatamente. De repente a

atmosfera na praia havia mudado. Agora era sombria, escura e sinistra,

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quando antes era amistosa e segura. O céu parecia agourento e

ameaçador e estremeci com a brisa repentinamente fria.

Ren e Kishan concordaram que, se Jason não tinha dito nada aos

homens, era improvável que eles já houvessem encontrado nossa casa.

Resolvemos ir até lá, acertar umas últimas coisas e deixar o Oregon.

No caminho, liguei para Sarah e Mike e disse a eles que estava voltando

para a Índia.

- O Sr. Kadam fez uma descoberta importante e precisa da minha ajuda.

Ren irá comigo. Ligo assim que o avião pousar.

Telefonei para Jennifer e disse a mesma coisa. Ela ficou insinuando que,

se eu estava fugindo com Ren, devia lhe confessar. Por fim acreditou na

história e disse que passaria a informação a Li. Tomei o cuidado de não

mencionar a cidade nem quanto tempo ficaria fora. Tentei ser o mais

vaga possível.

Quando desliguei, Ren me assegurou que minha família estaria a salvo.

Disse que o Sr. Kadam havia providenciado férias surpresa para Sarah,

Mike e as crianças. Eles ganhariam uma viagem de três semanas com

tudo pago para o Havaí, mas somente se partissem imediatamente.

Seriam informados de que a viagem era um prêmio de sua marca

favorita de tênis de corrida.

Fiquei olhando os retrovisores durante todo o trajeto até em casa,

esperando que sedãs negros surgissem, vindo em disparada em nossa

direção, com homens inescrupulosos atirando contra nós. Dizer que eu

estava assustada era eufemismo. Eu havia enfrentado demônios e

macacos imortais, mas, por alguma razão, era completamente diferente

enfrentar bandidos do mundo moderno. Eu podia racionalizar que

demônios não eram reais; portanto, ainda que estivessem me

perseguindo, não chegavam a ser de fato uma ameaça. Mas homens de

verdade, que queriam seqüestrar, torturar e matar, pareciam muito mais

apavorantes.

Quando chegamos em casa, estacionei na garagem e esperei no carro até

os irmãos inspecionarem a casa. Voltando uns 10 minutos depois, Ren

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pôs os dedos nos lábios e, em silêncio, abriu minha porta. Ele havia

vestido roupas escuras, botas pesadas e um casaco preto.

- O que está acontecendo? - meus lábios formaram as palavras sem

pronunciá-las.

- Alguém entrou na casa. Na verdade, nas duas casas - sussurrou Ren em

resposta. - O cheiro deles está por toda parte, mas nada foi levado. Não

tem ninguém aqui agora, então suba e vista rapidamente uma roupa

escura e tênis de corrida. Depois nos encontre aqui embaixo. Kishan

está vigiando as portas. Vamos sair pelos fundos, pegar a picape de

Kishan e seguir para o aeroporto.

Assenti, entrei depressa na casa e subi a escada correndo. Lavei o rosto,

vesti uma calça jeans escura, um suéter preto de mangas compridas e

tênis. Peguei o casaco e encontrei-os lá embaixo. Kishan ia na frente,

enquanto atravessávamos furtivamente minha casa e entrávamos na de

Ren.

Tanto Kishan quanto Ren haviam se munido de armas da minha caixa

de wushu. O bastão tripartido tinha sido dobrado e estava preso no

cinto de Kishan, nas costas, e Ren havia enfiado um par de facas no

passador do cinto. Ren e eu continuamos a seguir Kishan, que nos

conduziu para fora da casa, seguindo para o meio das árvores.

Ele parava com freqüência para farejar o ar e examinar o solo.

Precisávamos caminhar cerca de um quilômetro e meio até a picape.

Cada ruído, cada estalo na floresta me assustava e eu girava o corpo com

freqüência, esperando um ataque. Sentia um formigamento nas costas,

como se estivéssemos sendo observados.

Depois de cinco minutos, Kishan estancou. Indicou com gestos que nos

abaixássemos e afundamos atrás de algumas samambaias. Havia alguém

em meio às árvores, movendo-se em silêncio, seguindo nosso rastro.

Até eu podia ouvi-lo, o que significava que estava perto.

- Precisamos sair daqui - murmurou Kishan. - Quando eu disser "agora",

vocês vão. - Alguns segundos de tensão transcorreram. - Agora -

sussurrou.

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Ele nos guiou floresta adentro num ritmo mais veloz. Eu tentava me

mover o mais silenciosamente possível, mas temia que quem quer que

estivesse nos seguindo pudesse me ouvir. Meus pés pareciam não

encontrar os pontos certos para pisar e várias vezes quebrei galhos e

escorreguei em lugares molhados enquanto corria. Chegamos a uma

clareira, onde Kishan se deteve e sibilou:

- Emboscada!

Demos meia-volta. O homem que nos seguia nos alcançou e bloqueou

nossa passagem. Kishan correu em sua direção, diminuindo

rapidamente a distância. Quando estava a poucos metros, Kishan puxou

o bastão e o brandiu acima da cabeça, para ganhar impulso. Eu achava a

arma pesada, mas nas mãos de Kishan ela girava como as hélices de um

helicóptero. Com um estalo, ele acertou as pernas do homem e o

derrubou, e então, dando um salto gigante, girou a arma e a acertou nas

costas e na cabeça do homem caído. Com um movimento rápido do

pulso, a arma dobrou-se, acomodando-se em sua palma, e ele tornou a

enfiá-la no cinto. O homem não se levantou.

Ren agarrou minha mão e me puxou enquanto corria. Parando num

pequeno bosque, ele me forçou a me esconder atrás de um tronco caído

e ordenou que eu não me mexesse, então voltou correndo para juntar-

se a Kishan, tomando posição não muito longe do irmão. Eu vi o

lampejo das facas quando Ren as sacou e as rodopiou habilmente

enquanto Kishan mais uma vez brandia o bastão. Os dois irmãos

perscrutavam a floresta, à espera.

Os outros homens haviam nos alcançado. O que aconteceu em seguida

não foi nada parecido com o que se vê nas aulas de artes marciais.

Aquilo era batalha. Guerra. Ren e Kishan pareciam dois supersoldados.

Seu rosto não demonstrava nenhuma emoção. Eles se moviam com

agilidade e eficiência. Não desperdiçavam energia. Movimentavam-se

em harmonia, como um par de dançarinos letais, Ren com as facas e

Kishan com o bastão. Entre eles, derrubaram pelo menos uma dúzia de

homens, no entanto outras dezenas surgiam em disparada do meio das

árvores.

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Ren golpeou um deles no pescoço com o cotovelo, provavelmente

esmagando-lhe a traquéia. Quando o homem se dobrou, Ren saltou

sobre suas costas, girou o corpo e chutou a cara do que vinha atrás dele.

Kishan era brutal. Quebrou o braço de um homem enquanto

simultaneamente chutava o joelho de outro. Pude ouvir o estalo

repugnante e o grito quando os dois desabaram no chão. Era como estar

no meio de um dos filmes de artes marciais de Li, só que ali o sangue e o

perigo eram reais.

Quando nenhum dos homens conseguia ficar de pé, os irmãos voltaram

correndo até mim.

- Há outros vindo para cá - disse Kishan, sem emoção.

Corremos. Ren me pegou e me jogou sobre o ombro. Mesmo com meu

peso retardando-o, ele ainda avançava mais rápido do que eu

conseguiria. Os irmãos corriam o mais rápido que podiam. Velozes,

porém silenciosos. De algum modo, eles sabiam onde pisar para evitar

fazer barulho. Kishan desacelerou e começou a correr atrás de nós,

assumindo uma posição no flanco. Continuamos assim por pelo menos

10 minutos. Calculei que estivéssemos distantes dos homens, mas, de

repente, ouvi silvos e estalos, à medida que alguma coisa atingia os

troncos das árvores à nossa volta.

Imediatamente, Ren e Kishan duplicaram sua velocidade e saltaram

atrás de um tronco caído, em busca de proteção.

- Eles estão atirando na gente? - sussurrei.

- Não - Kishan sussurrou de volta. - Pelo menos não com armas de fogo.

O ruído é diferente.

Ficamos ali em silêncio. Eu respirava com mais intensidade do que eles,

embora eles que tivessem corrido. Esperamos. Os dois irmãos tinham os

ouvidos atentos. Eu estava prestes a fazer uma pergunta, mas Ren levou

um dedo aos lábios, indicando que eu devia ficar calada. Eles usavam

sinais com as mãos para se comunicar. Eu observava com atenção, mas

não conseguia entender o que queriam dizer. Ren girou o dedo em

círculo e Kishan lhe passou o bastão, metamorfoseou-se no tigre negro e

se enfiou furtivamente entre as árvores.

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Apontei na direção em que Kishan havia desaparecido. Ren pressionou

a boca em meu ouvido e sussurrou numa voz que mal se podia ouvir:

- Ele está atraindo os homens.

Ren então me acomodou no oco da árvore e mudou de posição, de

forma que seu corpo agora cobria o meu.

Fiquei ali, tensa, meu rosto pressionado contra o peito de Ren por um

longo tempo. De repente ouvi um rugido terrível. Ren me envolveu

com os braços e sussurrou:

- Eles o seguiram. Estão a quase um quilômetro daqui agora. Vamos.

Ele pegou minha mão e começou a me levar novamente na direção da

picape escondida. Tentei ser o mais silenciosa possível. Vários minutos

depois, uma forma escura saltou diante de nós. Era Kishan. Ele voltou à

forma humana.

- Eles estão por toda parte. Levei-os o mais longe que pude, mas parece

que todo um regimento foi mandado em nosso encalço.

Dez minutos depois, Kishan parou e farejou o ar. Ren fez o mesmo.

Nesse momento, homens saltaram das árvores sobre nós; vários deles

desceram de arneses e cordas. Dois sujeitos me agarraram, afastando-me

de Ren, e me seguraram com força, enquanto cinco o atacavam. Ele

rugiu de fúria e se transformou em tigre. Os homens não pareceram

surpresos com isso. Kishan já havia assumido sua forma de tigre e

abatera vários de seus agressores.

Ren ergueu-se nas patas traseiras, lançou as dianteiras nos ombros de

um homem e rugiu em seu rosto. Então mordeu o pescoço e o ombro do

homem, empurrou-o para o chão e usou seu corpo como ponto de apoio

para se impulsionar e saltar no ar, as garras estendidas, e atacar dois

homens, atingindo-os no peito. Suas orelhas estavam coladas à cabeça, o

pelo eriçado, e de suas mandíbulas pingava sangue. A cauda subia e

descia como uma alavanca imediatamente antes de ele se arremessar no

ar outra vez, indo aterrissar nas costas de um sujeito que lutava com

Kishan. O simples peso de seu corpo tirou o agressor de ação.

Eu lutava, mas não conseguia nem me mover, pois os homens me

seguravam com força. Kishan rugiu. Um dos homens havia usado uma

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arma que tinha uma espécie de dispositivo de choque elétrico preso à

extremidade. O tigre negro girou, derrubou a arma no chão com a pata

e a partiu ao meio com o peso do corpo.

Rapidamente Kishan saltou sobre o homem que havia caído no chão e

mordeu-lhe o ombro. Depois, erguendo-o do chão com as mandíbulas

poderosas, sacudiu a cabeça com violência até o homem parar de se

mexer. Kishan então arrastou o corpo inerte por vários metros e, com

um movimento repentino da cabeça, arremessou-o nos arbustos. Em

seguida, ergueu-se nas patas traseiras, como um urso, e atacou os outros

homens que se aproximavam. O sangue gotejava de suas mandíbulas

quando ele rosnou feroz.

Ren tentava o tempo todo chegar até mim, mas os homens sempre se

interpunham entre nós. Aproveitei a distração temporária deles quando

Ren largou um homem aos nossos pés para chutar um de meus

agressores na virilha o mais forte que pude e dar uma cotovelada no

estômago do outro. Este se dobrou, mas manteve o aperto em meu

braço. Em seguida, ele me golpeou na têmpora e minha visão ficou

embaçada.

Ouvi o rugido terrível de Ren. Continuei lutando, mas me sentia tonta.

O homem me segurava à frente de seu corpo, como se eu fosse uma

isca. Ele provocava os tigres tratando-me com brutalidade. Eu sabia que

era para distrair os irmãos, o que infelizmente funcionou. Ren e Kishan

continuaram tentando abrir caminho até onde eu estava e olhavam o

tempo todo para mim, o que permitiu que uma quantidade maior de

homens se reunisse atrás deles.

Outros homens chegaram. Aparentemente tinham chamado reforços e

os recém-chegados portavam mais armas. Um deles sacou uma delas e

disparou contra Ren. Um dardo atingiu-o no pescoço e ele cambaleou.

Fui tomada de fúria e de repente minha visão clareou. Senti uma força

queimando meus membros. Bati a parte posterior da cabeça no nariz do

meu captor e tive a alegria de sentir a cartilagem quebrar. O homem

gritou e afrouxou o aperto o suficiente para que eu escapasse. Corri para

Ren. Ele assumiu a forma humana. Outro dardo o atingiu. Ele ainda

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estava de pé, mas seus movimentos eram muito mais lentos. Arranquei

os dardos de seu corpo.

Ele tentou me empurrar para trás dele.

- Kelsey! Para trás! Agora!

Um terceiro dardo o acertou na coxa. Ele cambaleou um pouco mais e

caiu apoiado num joelho. Vários homens o cercaram e, sabendo que eu

estava perto, ele recomeçou a lutar para mantê-los afastados de mim.

Kishan estava enfurecido, surrando um homem atrás do outro enquanto

tentava chegar até nós, mas outros continuavam a surgir. Ele estava

ocupado demais para me ajudar com Ren. Mal conseguia dar conta de se

defender. Tentei puxar os homens, para afastá-los de Ren, mas eles

eram grandes demais. Também eram lutadores profissionais, talvez

militares, então praticamente me ignoravam e se concentravam nos

dois alvos mais perigosos. Eu era apenas uma mosca irritante que eles

afugentavam com a mão. Se pelo menos eu tivesse uma arma. Eu estava desesperada. Tinha que haver alguma coisa que eu pudesse

fazer para proteger Ren. Ele liquidou o último homem perto de nós e

caiu de joelhos, arfando penosamente. Havia pilhas de corpos ao nosso

redor. Alguns mortos, outros feridos. Mais homens, porém, estavam

chegando. E eram muitos! Eu podia vê-los se aproximando sorrateiros,

os olhos fixos no homem esgotado ao meu lado.

O temor pela vida de Ren reforçou minha determinação. Como uma

mãe ursa protegendo o filhote, postei-me diante de Ren, decidida a

impedi-los de continuar avançando ou pelo menos a lhes dar um alvo

diferente contra o qual disparar. Havia mais de uma dúzia de homens

vindo em nossa direção, a maior parte empunhando armas. Um fogo

queimou em mim, uma necessidade de proteger o homem que eu

amava.

Meu corpo tremeu com energia, com poder. Virei-me para o sujeito

mais próximo e o encarei, ameaçadora. Ele ergueu a arma e eu levantei

a mão como defesa. Meu corpo queimava e senti uma lava derretida

subir pelo meu braço e alcançar a mão. As chamas se inflamaram e os

símbolos que Phet desenhara em minha mão reapareceram, reluzindo

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em tom carmim. Um raio explodiu dessa mão até o corpo do meu

agressor, elevando-o no ar e lançando-o contra uma árvore com força

suficiente para sacudi-la. O homem caiu curvado em sua base.

Sem tempo para questionar ou entender o que havia acontecido, virei-

me para enfrentar o agressor seguinte e o outro. Eu estava dominada

pelo ódio. Uma fúria fervia em mim. Minha mente gritava que ninguém

iria ferir aqueles que eu amava. Eufórica com meu poder, fui

derrubando-os um após o outro.

De repente senti uma fisgada no braço e outra no ombro. Parecia a

picada de uma abelha, mas, em lugar do fogo, era uma dormência que se

espalhava. O fogo em minha mão crepitou e se apagou e eu desabei no

chão diante de Ren. Ele repeliu um agressor, ainda lutando, embora

tivesse sido atingido por dardos várias vezes. Minha visão estava

escurecendo, meus olhos se fechando.

Ren me ergueu e eu o ouvi gritar:

- Kishan! Pegue-a!

- Não - murmurei incoerentemente.

O sussurro de seus lábios roçou meu rosto e então senti braços de ferro

prenderem meu corpo.

- Vá! Agora! - gritou Ren.

Eu estava sendo carregada rapidamente por entre as árvores, mas Ren

não nos seguia. Ele ainda lutava, enquanto os agressores fechavam o

cerco em torno dele. Tornou a se transformar em tigre. Eu o ouvi rugir

de fúria e dor e soube, em meio à névoa que tomava conta da minha

mente, que não era o sofrimento físico que o fazia gritar. Não poderia

ser, pois eu também o sentia. A dor horrível e dilacerante era porque eu

tinha sido tirada dele. Sem conseguir manter os olhos abertos, estendi a

mão e agarrei debilmente o ar.

- Ren! Não! - implorei, antes de despencar na escuridão.

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11

Regresso à Índia

O ronco grave de um motor me acordou. Minha cabeça latejava e eu

sentia um gosto estranho na boca. Parecia que algo estava muito errado;

minha mente ainda estava confusa. Eu queria despertar, mas sabia que,

do outro lado, um novo tipo de horror me aguardava, então me permiti

afundar um pouco mais de volta à escuridão e me deixei ficar ali,

covardemente. Eu precisava de alguma coisa em que me agarrar, uma

muleta em que pudesse me amparar a fim de reunir força suficiente

para encarar o que eu tinha pela frente.

Estava deitada numa cama. Senti os lençóis macios e estendi a mão,

hesitante. Uma cabeça peluda se esfregou em meus dedos. Ren. Ele

estava ali. Ele era a motivação de que eu precisava para me erguer da

escuridão e entrar na luz.

Abri os olhos.

- Ren? Onde estou?

Todo o meu corpo doía.

Um rosto bonito me olhou de cima.

- Kelsey? Como está se sentindo?

- Nilima? Ah, estamos no avião.

Ela pressionou um pano molhado e frio em minha testa e eu murmurei:

- Escapamos. Estou tão feliz.

Acariciei a cabeça do tigre. Nilima olhou brevemente para o tigre ao

meu lado e então assentiu.

- Vou buscar um pouco de água para você, Kelsey.

Ela saiu e tornei a fechar os olhos, pressionando a mão sobre minha

testa latejante.

- Tive tanto medo de você não conseguir - sussurrei. - Acho que agora

isso não tem importância. A sorte nos ajudou. Nunca mais vamos nos

separar. Prefiro ser capturada com você do que sermos separados.

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Deslizei os dedos por seu pelo. Nilima retornou trazendo água. Ela me

ajudou a sentar e eu tomei um grande gole de água. Esfreguei a toalha

molhada sobre os olhos e o rosto.

- Tome... também lhe trouxe aspirina - disse ela.

Engoli os comprimidos, agradecida, e tentei abrir os olhos mais uma

vez. Fitei o rosto preocupado de Nilima e sorri.

- Obrigada. Já me sinto melhor. Pelo menos, todos conseguimos escapar.

Isso é o que importa. Certo?

Olhei para o tigre. Não! Não! Comecei a arquejar, em busca de ar. Meus

pulmões se fecharam.

- Kishan? - supliquei com a voz áspera. - Onde ele está? Diga-me que

não o deixamos para trás! Ren? - gritei. - Ren? Você está aqui? Ren? Ren?

O tigre negro apenas me observava com olhos dourados e tristes.

Agarrei a mão de Nilima.

- Nilima, me fale! Ele está aqui?

Ela sacudiu a cabeça, as lágrimas enchendo seus olhos. Minha visão

tornou-se turva e percebi que eu também estava chorando.

Apertei sua mão, desesperada.

- Não! Precisamos voltar! Peça que dêem meia-volta. Não podemos

simplesmente deixá-lo lá! Não podemos!

Nilima não reagiu. Virei-me para o tigre.

- Kishan! Isso não está certo! Ele não deixaria você. Eles vão torturá-lo.

Vão matá-lo! Precisamos fazer alguma coisa! Não podemos deixar que

isso aconteça!

Kishan se transformou em homem e se sentou na beira da cama. Ele fez

um gesto com a cabeça para Nilima e ela nos deixou a sós.

Ele pegou minha mão e falou baixinho:

- Kelsey, não havia escolha. Se tivéssemos ficado para trás, não

conseguiríamos escapar.

Sacudi a cabeça, negando.

- Não! Poderíamos ter esperado por ele.

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- Não, não poderíamos. Eles me aplicaram tranqüilizantes também. Só

fui atingido uma vez e mal consegui chegar ao avião, apesar da minha

capacidade de recuperação. Acertaram-no pelo menos seis vezes. Fiquei

impressionado que ele ainda conseguisse ficar de pé. Ren lutou

bravamente e ganhou tempo para que pudéssemos escapar.

Agarrei-lhe a mão enquanto as lágrimas pingavam do meu queixo.

- Ele está...? - Solucei. - Eles o mataram?

- Acho que não. Eles não tinham outra arma além dos bastões com

dispositivos de eletrochoque e dardos tranqüilizantes. Aparentemente

suas instruções eram para nos capturar vivos.

- Não podemos deixá-los fazer isso, Kishan. Precisamos ajudá-lo.

- Vamos fazer isso. O Sr. Kadam já está trabalhando em sua localização.

Mas não vai ser fácil. Há séculos ele vem procurando Lokesh e o

homem consegue se esconder muito bem. Só tem uma coisa em nosso

favor. Ren não está com o amuleto, portanto Lokesh talvez esteja

disposto a sugerir uma troca: o amuleto por Ren.

- Ótimo. Daremos a ele o amuleto se pudermos ter Ren de volta.

- Vamos nos preocupar com isso quando chegar a hora, Kelsey. Neste

momento, você precisa descansar. Estaremos na índia daqui a algumas

horas.

- Fiquei desacordada tanto tempo assim?

- Você foi atingida duas vezes e ficou apagada por cerca de 15 horas.

- Eles o seguiram até o avião?

- Tentaram, mas o avião estava pronto para decolar. Jason

provavelmente salvou nossas vidas.

Pensei em Ren cercado por inimigos enquanto nós fugíamos e

engasguei com um soluço. Kishan se inclinou e me envolveu num

abraço, dando tapinhas em minhas costas.

- Sinto muito, Kelsey. Queria que houvesse sido eu, não Ren. Queria ter

tido força para tirar vocês dois de lá.

Minhas lágrimas caíram em sua camisa.

- Não foi culpa sua. Se você não estivesse lá, nós dois teríamos sido

capturados.

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Eu me empertiguei, fungando, e enxuguei os olhos na manga de minha

blusa.

Ele abaixou a cabeça para fitar meus olhos lacrimejantes.

- Eu lhe prometo, Kelsey, que vou fazer tudo que estiver a meu alcance

para salvá-lo. Ele ainda está vivo. Posso sentir isso. Vamos encontrar

uma saída e derrotar Lokesh.

Queria ter tanta certeza quanto Kishan de que poderíamos salvar Ren.

Assentindo com a cabeça, apertei sua mão e sussurrei que eu ficaria

bem. Ele perguntou se eu queria comer alguma coisa e, embora sentisse

nós retorcendo meu estômago, respondi que sim. Ele pareceu aliviado

ao se levantar para chamar Nilima.

Perguntei-me se ele estaria certo. Será que Ren ainda está vivo? Desde o

primeiro dia em que o vira no circo, formou-se uma estranha conexão

entre nós. Hesitante e frágil a princípio, foi se tornando cada vez mais

forte. Quando voltei para o Oregon, o elo se esticou e me puxava como

uma tira de elástico.

Ele me arrastava e tentava me levar de volta para ele. E, nos últimos

meses, à medida que nos tornávamos mais próximos, a conexão se

solidificou e se estreitou, formando uma liga de aço. Éramos parte um

do outro. Eu sentia sua ausência, mas o elo ainda existia. Ainda era

forte. Ele estava vivo. Eu sabia. Meu coração ainda estava ligado ao seu.

Isso me deu esperanças. Decidi que o encontraria a qualquer custo.

Nilima me chamou para comer alguma coisa. Ela serviu o jantar com

um copo de água com limão, que beberiquei lentamente enquanto

pensava no que poderia fazer para salvar Ren. Kishan havia voltado à

sua forma de tigre e descansava a meus pés. Seus olhos dourados me

observavam com tristeza e eu me inclinei para acariciar-lhe a cabeça,

assegurando-lhe de que ficaria bem.

Quando aterrissamos eu ainda não tinha a menor idéia de como

encontraria Ren, mas sabia que nunca mais me deixaria apanhar tão

despreparada. Da próxima vez que algo assim acontecesse, eu lutaria.

Agora que sabia que tinha esse... esse poder de raio dentro de mim, eu

iria praticá-lo. Também pediria a Kishan que continuasse a me treinar

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nas artes marciais, quem sabe até usando armas. Talvez o Sr. Kadam me

ensinasse também quando Kishan estivesse em sua forma de tigre. Eu

nunca mais deixaria que alguém que eu amasse fosse capturado. Não

enquanto eu ainda estivesse viva.

O Sr. Kadam nos recebeu no aeroporto particular.

- Srta. Kelsey, senti saudade - disse ele, me envolvendo num abraço.

- Também senti saudade do senhor.

Meus olhos queimavam com as lágrimas não derramadas, mas eu me

recusava a deixá-las cair.

- Venha. Vamos para casa. Temos muito para conversar.

Quando chegamos em casa, Kishan levou minha bolsa para o andar de

cima e me deixou sozinha com o Sr. Kadam na sala do pavão.

Os livros se acumulavam em pilhas altas na bela mesa de mogno; o

tampo normalmente organizado e limpo estava coberto por papéis.

Peguei alguns para examinar as anotações feitas na letra elegante do Sr.

Kadam.

- O senhor conseguiu desvendar a segunda profecia?

- Estou perto. Na verdade, é graças à senhorita que estou assim tão

perto.

Um ponto de referência que me confundiu inicialmente veio a ser a

cordilheira do Himalaia. Todo esse tempo eu vinha procurando uma

montanha, sem perceber que era uma cadeia de montanhas que eu

precisava encontrar. Graças ao seu relatório sobre o Himalaia e seus

padrões climáticos, pude abrir minha mente a essa possibilidade, o que

me levou a novas descobertas.

- Fico feliz por ter ajudado. - Pousei os papéis na mesa e perguntei

baixinho: - O que vamos fazer? Como vamos encontrar Ren?

- Vamos encontrá-lo, Srta. Kelsey. Não se preocupe. Existe até a chance

de ele conseguir escapar sozinho e nos telefonar.

Um pensamento cruzou a minha mente.

- Ele vai conseguir se transformar em homem se for capturado?

- Não sei. Antes, não conseguia, mas agora a senhorita quebrou parte da

maldição. Isso pode fazer alguma diferença.

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Endireitei os ombros.

- Sr. Kadam, quero que me treine. Quero que me instrua no uso das

armas e nas artes marciais. O senhor ensinou aos dois e quero que seja

meu instrutor também.

Ele me olhou pensativo por um minuto.

- Está certo, Srta. Kelsey. Será preciso disciplina e muitas, muitas horas

de prática para que se torne capacitada. Não espere conseguir fazer o

mesmo que Ren e Kishan. Eles foram treinados a vida toda e o tigre que

há neles os torna mais fortes.

- Tudo bem. Estou preparada para isso. Pretendo pedir a Kishan que

continue trabalhando comigo. Posso aprender mais depressa se praticar

com vocês dois.

Ele assentiu.

- Talvez seja o melhor. A senhorita irá aprender novas habilidades e isso

também vai ajudá-la a se manter ocupada. Eu ainda preciso dedicar

grande parte da minha atenção às pesquisas, mas vou reservar algum

tempo para treiná-la todos os dias. Também posso preparar séries para

que pratique sozinha e sugerir algumas coisas que pode aprender com

Kishan.

- Obrigada. Gostaria de ajudar com suas pesquisas também. Posso fazer

anotações. E ter um novo par de olhos ao seu dispor sempre é bom.

- Podemos começar hoje.

Assenti. Ele fez um gesto na direção das poltronas de couro e nos

sentamos.

- Agora me fale sobre esse novo poder que parece ter. Kishan me

explicou, mas quero ouvir o que aconteceu a partir do seu ponto de

vista.

- Bem, eu precisava proteger Ren e estava tão furiosa que acho que até

vi uma névoa vermelha à minha volta. Ele fora atingido com os dardos

e cambaleava, enfraquecido. Eu sabia que ele não resistiria muito mais.

Coloquei-me na frente dele para enfrentar os agressores. Estava

desesperada, pois eram muitos vindo para cima de nós. Uma espécie de

fogo começou a queimar em mim.

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- Qual era a sensação?

- Parecia... um jorro de força no centro do meu corpo, semelhante à

chama piloto de um aquecedor de água que se acende de repente. Meu

estômago se contraiu, como se para empurrar o calor para o meu peito.

Meu coração ardia e parecia que o sangue estava fervendo em minhas

veias. Tive a sensação de algo borbulhante percorrendo meu braço.

Quando chegou à mão, os símbolos que Phet pintou em hena

reapareceram e começaram a brilhar, vermelhos. Ouvi um ruído de

coisas se quebrando, estalos e estouros e então essa força se avolumou e

transbordou de mim. Um raio disparou de minha mão, ergueu um

homem no ar e o arremessou contra uma árvore.

- E esse poder funcionou várias vezes?

- Funcionou. Consegui abater diversos homens antes de ser atingida

com o tranqüilizante. Então o poder foi diminuindo.

- Os raios mataram os homens ou apenas os atordoaram?

- Espero que os tenham apenas atordoado. Não ficamos por lá tempo

suficiente para descobrir. Meu primeiro alvo, o homem que se chocou

contra a árvore, ficou bastante machucado, imagino. Eu estava

desesperada.

- Estou curioso para saber se é capaz de reproduzir o fenômeno quando

não está em perigo. Talvez possamos praticar. Também seria

interessante ver se a senhorita pode ampliar o alcance para incluir mais

de uma pessoa de uma vez e ver por quanto tempo consegue manter a

descarga.

- Também quero aprender a controlar a intensidade. Prefiro não matar

as pessoas - acrescentei.

- É claro.

- De onde o senhor acha que isso veio?

- Tenho uma... teoria. Uma das antigas histórias da Índia conta que,

quando os deuses Brahma, Vishnu e Shiva enfrentaram o rei demônio,

Mahishasur, não conseguiram derrotá-lo. Então juntaram suas energias,

que assumiram a forma de luz, e a deusa Durga emergiu dessa luz. Ela

nasceu para lutar contra ele.

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- Então Durga é feita de luz. O senhor acha que é por isso que tenho

esse poder?

- Sim. Existem também várias referências a um colar que ela usa e que

faísca como relâmpagos. Talvez essa corrente de poder resida na

senhorita.

- Isso é... Eu nem sei como me sinto em relação a isso.

- Imagino que deva ser desconcertante.

Fiz uma breve pausa e então confessei:

- Sr. Kadam, eu... estou preocupada com Ren. Não acho que eu seja

capaz de partir numa nova busca sem ele.

- Vocês dois se tornaram mais próximos então? - especulou o Sr. Kadam.

- Sim. Ele... eu... nós... Bem, acho que posso resumir dizendo que o amo.

Ele sorriu.

- Sabe que ele a ama também, não sabe? Ele não pensava em outra coisa

durante os meses em que ficaram separados.

- Ele sofreu?

- Desesperadamente. Kishan e eu não tivemos um só momento de paz

até ele viajar.

- Sr. Kadam, posso lhe fazer uma pergunta?

- E claro.

- Uma garota indiana se interessou por Ren e queria que seus pais

arranjassem um compromisso entre eles. Ren me disse que namorar

alguém que não seja da mesma cultura é considerado impróprio.

- Ah. O que ele lhe disse está correto. Mesmo nos tempos modernos,

esse costume ainda é seguido. Isso a incomoda?

- Um pouco. Não quero que o povo de Ren o renegue.

- Ele demonstrou preocupação quanto a isso?

- Não. Não pareceu dar importância. Disse que já tinha feito sua escolha.

O Sr. Kadam passou a mão pela barba curta.

- Srta. Kelsey, Ren dificilmente precisa da aprovação de alguém. Se ele

escolher ficar com a senhorita, ninguém irá fazer objeção.

- Talvez não na frente dele, mas pode haver... implicações culturais que

ainda não lhe ocorreram.

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- Ren está bastante ciente de todas as implicações culturais. Lembre-se

de que ele foi um príncipe muitíssimo bem treinado nos protocolos

políticos.

- Mas e se o fato de ficar comigo tornar sua vida mais difícil?

Ele me repreendeu levemente.

- Srta. Kelsey, posso lhe garantir que ficar com a senhorita é a única

coisa na longa vida de Ren a lhe trazer alento. A vida dele era cheia de

dificuldades e eu me arriscaria a dizer que obter a aprovação de outras

pessoas caiu muito em sua lista de prioridades.

- Ele me falou que os pais vinham de culturas diferentes. Por que eles tiveram permissão para se casar e ficar juntos?

- Humm, esta é uma história interessante. Para contá-la direito, eu teria

que lhe falar sobre o avô de Ren e Kishan.

- Eu adoraria saber mais sobre a família dele.

Ele se recostou na poltrona de couro e juntou as mãos sob o queixo,

formando um triângulo.

- O nome do avô de Ren era Tarak. Ele era um grande chefe militar que,

nos seus últimos anos, quis viver em paz. Cansara-se das rivalidades

entre os reinos. Embora seu império fosse o maior e seus exércitos, os

mais notáveis, ele enviou uma mensagem para vários outros chefes

militares que governavam territórios menores, convidando-os para uma

reunião de cúpula. Ofereceu a cada um deles uma parte de suas terras se

assinassem um pacto de não agressão e reduzissem seus exércitos. Eles

concordaram, pois o contrato traria a cada um deles grande riqueza e

muitas propriedades. O país exultou quando o rei chamou seus

exércitos de volta para casa e preparou uma grande festa de celebração.

Aquele dia foi feriado em todo o país.

- O que aconteceu depois?

- Cerca de um mês depois, um dos governantes que assinou o pacto

incitou os outros, dizendo-lhes que aquela era a hora de atacar e que,

juntos, eles poderiam governar toda a índia. Seu plano era primeiro

tomar as terras ancestrais de Tarak e, a partir dali, conquistar

facilmente os outros reinos menores.

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- Nossa! Que traição - comentei.

- De fato. Eles quebraram o juramento a Tarak e travaram uma batalha

feroz, sitiando a cidade dele. Muitos soldados do rei haviam se

aposentado e tinham recebido um pedaço de terra em troca de seus

anos de serviço. Com o exército reduzido pela metade, não podiam

derrotar as tropas unidas dos outros chefes militares. Felizmente Tarak

conseguiu enviar mensageiros para buscar ajuda.

- Aonde eles foram buscar ajuda?

- Na China.

- Na China?

- Mais especificamente no Tibete. As fronteiras da Índia com a China

naquela época não eram tão definidas como hoje e as trocas entre os

dois países eram comuns. Tarak tinha um bom relacionamento com o

Dalai-Lama da época.

- Espere aí. Ele pediu ajuda ao Dalai-Lama? Pensei que o Dalai-Lama

fosse um líder religioso.

- Sim, o Dalai-Lama era e é um líder religioso, mas a religião e as forças

militares tinham laços estreitos no Tibete, principalmente depois de

ganhar a atenção da família Khan. Séculos atrás, Gêngis Khan invadiu a

região, mas ficou satisfeito com o tributo que o Tibete lhe pagou, então

o deixou em paz. Após a morte de Khan, porém, seu neto, Ògedei Khan,

cobiçou aquelas riquezas e voltou para tomar posse do país.

Naquele momento Nilima entrou na biblioteca, trazendo-nos água com

limão. Ele agradeceu e continuou:

- Trezentos anos depois da invasão, Altan Khan construiu um mosteiro e

convidou monges budistas para ensinar o povo. A ideologia budista se

disseminou e, no início do século XVII, praticamente todos os mongóis

haviam se tornado budistas. Um homem chamado Batu Khan, outro

descendente de Gêngis Khan, que estava no comando dos exércitos

mongóis, foi enviado pelo Dalai-Lama para ajudar o avô de Ren quando

ele pediu ajuda.

Beberiquei minha água com limão.

- E o que aconteceu? Eles venceram?

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- Venceram. Os exércitos mongóis unidos aos do rei Tarak puderam

derrotar os aproveitadores. Tarak e Batu Khan tinham a mesma idade.

Ficaram amigos. Tarak, em gratidão, ofereceu-lhe jóias e ouro para

levar para o Tibete e Batu Khan ofereceu sua jovem filha para casar-se

com o filho de Tarak quando chegasse a hora. O pai de Ren, Rajaram,

devia ter uns 10 anos na época e a mãe tinha acabado de nascer.

- Então a mãe de Ren era descendente de Gêngis Khan?

- Não pesquisei a genealogia, mas supõe-se que haja algum parentesco.

Recostei-me na cadeira, admirada.

- Qual era o nome da mãe dele?

- Deschen.

- Como ela era fisicamente?

- Era muito parecida com Ren. Tinha os mesmos olhos azuis, cabelos

compridos e pretos. Era muito bonita. Quando chegou a hora de

celebrar o casamento, o próprio Batu Kahn levou a filha ao encontro de

Tarak e ficou para supervisionar a cerimônia. Rajaram não teve

permissão de ver a noiva antes do casamento.

- Eles tiveram um casamento indiano ou budista?

- Creio que foi uma combinação dos dois. Em um casamento indiano

típico há uma cerimônia de compromisso, uma festa com presentes de

jóias ou roupas e então uma cerimônia em que o noivo dá à noiva uma mangal-sultra, ou colar de casamento, que ela usa pelo resto da vida. O

processo todo dura cerca de uma semana. Em comparação, um

casamento budista é uma celebração pessoal, não religiosa. Poucas

pessoas são convidadas. Velas e incensos são queimados e oferecem-se

flores em um templo. Não há monges, sacerdotes ou votos de

casamento. Imagino que Rajaram e Deschen provavelmente tenham

seguido os costumes de um casamento indiano e talvez também tenham

feito oferendas a Buda.

- Quanto tempo levou para que percebessem que se amavam?

- Essa é uma pergunta que não sou capaz de responder, embora possa lhe

dizer que seu amor e seu respeito mútuos eram verdadeiramente

únicos. Quando os conheci, estavam muito apaixonados e o rei Rajaram

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com freqüência consultava a mulher sobre questões importantes do

Estado, o que era muitíssimo incomum na época. Eles criaram os filhos

para terem a mente aberta e serem receptivos a outras culturas e idéias.

Eram pessoas boas e governantes muito sábios. Sinto saudade dos dois.

Ren lhe falou sobre eles?

- Ele me contou que o senhor cuidou deles até a morte.

- É verdade. - Os olhos do Sr. Kadam ficaram úmidos e ele fixou o olhar

em algo que eu não podia ver. - Amparei Deschen quando o rei Rajaram

deixou este mundo e, mais tarde, segurei sua mão quando ela fechou os

olhos para sempre. - Ele pigarreou. - Foi quando ela me confiou o

cuidado de seus bens mais preciosos, os filhos.

- E o senhor vem fazendo mais por eles do que qualquer mãe poderia

pedir. O senhor é um homem verdadeiramente maravilhoso. Um pai

para eles. Ren me disse que nunca poderia retribuir tudo que o senhor

fez por ele.

O Sr. Kadam mudou de posição, constrangido.

- Isso não vem ao caso. Ele não precisa retribuir o que lhe dei de boa

vontade.

- E é exatamente isso que torna o senhor tão especial.

O Sr. Kadam sorriu e se pôs de pé para tornar a encher meu copo,

provavelmente a fim de desviar a atenção de si mesmo. Mudei de

assunto.

- Os pais de Ren e Kishan chegaram a saber que eles foram

transformados em tigres?

- Como a senhorita sabe, eu era o conselheiro militar do rei. Como tal,

era encarregado dos exércitos. Quando Ren e Kishan foram

amaldiçoados, eles tentaram entrar furtivamente no palácio à noite

como tigres. Mas não havia como eles entrarem para ver os pais porque

Rajaram e Deschen eram muito bem guardados, e Ren e Kishan teriam

sido mortos no ato. Nem mesmo tigres raros como eles poderiam entrar

no terreno do palácio. Em vez disso, vieram até mim. Minha casa ficava

perto do palácio, de modo que eu pudesse ser convocado a qualquer

hora.

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- O que o senhor fez quando os viu?

- Eles arranharam minha porta. Pode imaginar minha surpresa quando

abri a porta e deparei com um tigre negro e um branco sentados, me

fitando. A princípio, saquei a espada. O instinto militar é forte, porém

eles não reagiram. Ergui a espada acima da cabeça para golpear, porém

os dois ficaram lá calmamente sentados, observando, esperando. Por

alguns momentos pensei que estivesse sonhando. Vários minutos se

passaram. Abri mais a porta e recuei, mantendo a espada em punho.

Eles entraram em minha casa e sentaram-se no tapete.

A história era fascinante e eu prestava atenção a todos os detalhes. Ele

continuou:

- Ficamos nos olhando por horas. Quando fui chamado para comparecer

ao treinamento, dei uma desculpa, dizendo ao criado que não estava me

sentindo bem. Permaneci sentado na cadeira o dia todo, observando os

tigres. Eles pareciam estar à espera de alguma coisa. Quando a noite

chegou, preparei uma refeição e ofereci carne aos animais. Ambos

comeram e se deitaram para dormir. Fiquei acordado a noite toda,

vigiando-os. Eu havia condicionado meu corpo a suportar vários dias

sem dormir, assim me mantive vigilante, embora eles dormissem

inofensivos como gatinhos.

Bebi um gole da água com limão.

- O que aconteceu então?

- Pouco antes do amanhecer, algo mudou. O tigre branco se mexeu e se

transformou no príncipe Dhiren; o negro seguiu-lhe o exemplo e

tornou-se Kishan. Ren explicou rapidamente o que havia acontecido

com eles e na mesma hora solicitei uma audiência com os pais deles.

Expliquei que era imperativo que Rajaram e Deschen me

acompanhassem até minha casa, sem os guardas. Foi preciso muito

esforço para convencer sua guarda privada e somente a absoluta

confiança do rei em mim o levou a atender meu pedido.

O Sr. Kadam fez uma pausa para retomar o fôlego. Mas logo prosseguiu.

- Eu os levei até minha casa. Abri a porta e Deschen soltou um grito

quando viu os tigres. Rajaram postou-se diante da mulher para protegê-

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la. Estava muito aborrecido comigo. Implorei para que entrassem e lhes

disse que os tigres não fariam nenhum mal a eles.

- Posso imaginar o susto.

- Depois de finalmente convencê-los a fechar a porta, os dois irmãos

ergueram-se na forma humana diante dos pais. Restava-lhes muito

pouco tempo, então eles se transformaram em tigres e me permitiram

contar sua história. Nós cinco permanecemos o dia todo em deliberação

em minha casa. Mensageiros vieram dizer que um vasto exército

liderado por Lokesh estava se aproximando, já havia destruído vários

vilarejos e se encontrava a caminho do palácio.

- O que vocês decidiram fazer?

- Rajaram queria destruir Lokesh, mas Deschen o conteve, lembrando

que Lokesh talvez fosse o único meio de salvar os garotos. Deram-me

uma incumbência especial: partir dali com os tigres. Deschen não

suportava a idéia de se separar dos filhos, então foram tomadas

providências para que ela seguisse comigo sob o pretexto de que iria

visitar sua terra natal. Na realidade, fugimos para uma pequena casa de

veraneio perto da cachoeira onde você conheceu Kishan. Apesar dos

esforços de Rajaram, ele não conseguiu capturar Lokesh. Os exércitos

foram rechaçados por algum tempo, porém Lokesh parecia ganhar força

enquanto Rajaram a perdia. Alguns anos se passaram. Sem a mulher e

os filhos, Rajaram já não tinha vontade de ser rei. Deschen também

havia perdido o ânimo. Parecia não haver esperanças para seus filhos, e

seu amado marido estava distante, cuidando do império.

Que história triste, eu pensava, sem querer interrompê-lo.

- Mandei uma carta para Rajaram, relatando que Deschen estava

sofrendo. Com relutância, ele deixou o trono e entregou os negócios do

reino a um grupo de consultores militares. Ele tinha contado ao povo a

falsa história da morte de Ren e Kishan e explicara que a mulher fora

para a China em busca de consolo. Disse que precisava se ausentar por

um tempo para trazê-la de volta. Mas nunca retornou. Foi ao nosso

encontro na selva, levando um pouco de sua riqueza e os objetos mais

preciosos, para que os garotos pudessem conservar sua herança.

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- Foi quando Deschen morreu? - perguntei.

- Não. Na verdade, Deschen e Rajaram viveram vários anos mais.

Reunidos, viviam felizes, aproveitando cada minuto que tinham com os

garotos. Logo tornou-se óbvio que Ren e Kishan não estavam

envelhecendo. Eu passei a cuidar da família. Era o intermediário entre

eles e o mundo lá fora. Os garotos caçavam e nos levavam comida e

Deschen cultivava verduras e legumes. Com freqüência eu me

aventurava até a cidade para comprar mercadorias e ficar a par das

notícias.

- É bom saber que eles tiveram esse período de felicidade.

- É, sim. Mas, depois de vários anos, o pai de Ren adoeceu com o que

hoje suspeito ter sido uma doença renal. Sabíamos que Lokesh ainda

estava lutando contra o exército, mas que o povo Mujulaain continuava

resistindo. Grandes lendas estavam sendo contadas sobre a família real.

Eles se transformaram em mito. A história que lhe contei quando a

conheci no circo é a história como é contada hoje.

Ele bebeu um gole da água e limpou a garganta.

- Ren, por fim, me pediu que usasse seu amuleto. Na época, não

imaginávamos que efeitos teria sobre mim. Sabíamos apenas que era

poderoso e importante. Ele temia que, se um caçador o apanhasse, o

amuleto estaria perdido para sempre. Talvez fosse uma premonição,

pois logo depois ele foi capturado. - Ele parou para ver minha reação.

Meus olhos estavam arregalados. - Kishan o rastreou e descobri que ele

havia sido vendido para um colecionador em outra parte do país.

Retornei abatido. A captura de Ren foi o golpe final para seu pai e ele

morreu naquela mesma semana. Deschen entrou em profundo

desespero e parou de comer. Apesar dos esforços de Kishan e dos meus,

ela também morreu, menos de um mês após o marido.

- Quanta desgraça.

- Kishan ficou inconsolável com a morte da mãe e passou a permanecer

mais tempo na floresta. Alguns meses mais tarde, eu lhe disse que já era

hora de começar a procurar Ren. Ele me pediu que ficasse com o

dinheiro e as jóias. Que levasse o que fosse preciso para encontrá-lo.

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Levei uma parte, deixando os bens mais preciosos da família para que

Kishan tomasse conta. E iniciei minha busca.

- Pobre Kishan, sozinho no mundo.

- Como sabe, não consegui resgatar Ren. Estudei tudo o que havia ao

meu alcance a respeito de mitos e histórias sobre tigres e amuletos. Ao

longo dos anos, investi o dinheiro deles, que se multiplicou. Comecei

com o comércio de condimentos e então prossegui, comprando e

vendendo empresas até os garotos ficarem ricos. Durante aqueles anos,

casei-me e constituí família. Depois que deixei meus entes queridos,

segui Ren de localidade em localidade e passei muitas horas fazendo

pesquisas. Durante décadas procurei Lokesh e uma forma de quebrar a

maldição. Lokesh, após o fracasso de sua conquista do Império

Mujulaain, desapareceu misteriosamente e nunca reapareceu, embora

eu suspeitasse de que, como eu, ele ainda estivesse vivo. Isso nos leva à

senhorita e ao restante da história, que já conhece.

- Então, se Ren e Kishan viveram na floresta com os pais, como podem

não ter feito as pazes?

- Eles se toleravam por causa dos pais, mas evitavam assumir a forma

humana ao mesmo tempo. Na verdade, eu nunca mais os tinha visto

como homens juntos até você surgir. Foi um tremendo avanço

conseguir que Kishan voltasse e fizesse parte da família outra vez.

- Bem, Ren não torna as coisas muito fáceis para ele. É estranho. Tenho

a impressão de que eles se respeitam e até se amam, mas não conseguem

deixar as velhas feridas sararem.

- Graças à senhorita, já percorremos um longo caminho na direção da

cura de todos nós. Rajaram teria ficado encantado ao conhecê-la e

Deschen teria chorado aos seus pés por devolver a vida a seus filhos.

Não duvide nem por um só instante que esteja à altura desta família ou

de Ren.

Meu coração destroçado bateu com um som oco no peito. Doía pensar

nele, mas meus punhos cerraram em determinação.

- Então, por onde começamos? Pesquisa ou esgrima?

- Está pronta para inciar o treinamento físico?

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- Estou.

- Muito bem. Guarde suas coisas e me encontre na academia de

ginástica, lá embaixo, daqui a meia hora.

- Farei isso. Ah, Sr. Kadam? É bom estar em casa.

Ele sorriu para mim, piscou e então seguiu para o seu quarto.

Subi a escada e descobri que todas as coisas preciosas que eu havia

enviado pelo correio encontravam-se ali, sãs e salvas. Minha caixa de

fitas estava no banheiro. Meus livros e diários tinham sido colocados

numa prateleira, ao lado de fotos recém-emolduradas de minha família

e um vaso de lírios-tigre. A colcha de minha avó descansava ao pé da

cama e meu tigre branco de pelúcia aninhava-se entre um monte de

almofadas cor de ameixa.

Abri o zíper da bolsa e retirei Fanindra, desculpando-me por deixá-la

fora da batalha na floresta. Estaríamos mais bem preparados da próxima

vez. Coloquei-a na prateleira nova, sobre uma almofada redonda

forrada de seda.

Vesti rapidamente minhas roupas do wushu e desci os degraus, indo ao

encontro do Sr. Kadam. Kishan ouviu meus passos apressados e desceu

atrás de mim. Ele se acomodou num canto da sala, sobre o tatame,

pousou a cabeça nas patas e ficou observando, sonolento.

O Sr. Kadam já estava lá. Uma seção da parede estava aberta, exibindo

sua coleção de espadas. Ele se aproximou com dois bastões de madeira.

- Estes são chamados shinais e são utilizados na prática do kendo, que é

uma forma japonesa de esgrima. Use-os para praticar antes de passar às

armas de aço. Segure-o com ambas as mãos. Estenda o braço como se

fosse apertar a mão de alguém, então envolva a arma com os três dedos

de baixo e deixe o polegar e o indicador livres.

Tentei seguir suas instruções e, antes que eu me desse conta, o Sr.

Kadam já passava para o passo seguinte.

- Para avançar, pise com o calcanhar. Para recuar, pise com a ponta do

pé. Dessa forma estará sempre pronta e não distribuirá o peso de forma

errada.

- Assim?

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- Isso. Muito bom, Srta. Kelsey. Agora, o ataque. Quando alguém atacá-

la, jogue esta perna para trás, tire o corpo do caminho e erga a espada

para se defender, assim. Se alguém vier pelo outro lado, recue desta

forma.

Era complicado. Meus braços já estavam doendo e era difícil lembrar os

movimentos dos pés.

- Mais tarde passaremos a espadas mais pesadas para fortalecer seus

braços e ombros - continuou ele -, mas por ora são nos seus pés que

quero me concentrar.

O Sr. Kadam me fez treinar o movimento dos pés por uma hora, o

tempo todo me orientando. Eu começava a me mover seguindo um

ritmo e cruzava a academia para frente e para trás, simulando ataques,

avanços, recuos e movimentos de desvio. Enquanto eu praticava, o Sr.

Kadam observava, corrigindo meus movimentos de vez em quando e

citando instruções de esgrima, como:

"Saque a espada antes de travar combate com o oponente. Leva muito

tempo para fazer isso no meio da luta. E certifique-se de que seus pés

estejam sempre firmes e equilibrados."

"Não se estique demais! Mantenha os cotovelos dobrados e próximos ao

corpo."

"Lute para vencer. Procure as fraquezas do adversário e explore cada

uma delas. Não tenha medo de usar outras técnicas, se elas ajudarem,

como o poder de raio, por exemplo."

"É melhor sair do caminho que bloquear alguém. O bloqueio mina sua

força; sair do caminho consome menos energia."

"Saiba o comprimento de sua espada e calcule o da arma do oponente.

Então, mantenha uma distância na qual ele não possa facilmente

alcançá-la."

"Embora seja bom praticar com espadas grandes e pesadas, as mais leves

podem causar o mesmo dano. As grandes cansam você mais rápido

numa luta."

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Quando chegamos ao fim, eu estava suada e dolorida. Eu mantivera o shi- nai erguido todo o tempo em que praticara o movimento dos pés.

E, embora ele fosse leve, meus ombros estavam queimando.

O Sr. Kadam me encorajou a repetir o trabalho com os pés por uma

hora diariamente e disse que no dia seguinte me ensinaria mais.

Kishan se transformou em homem depois que eu havia descansado o

suficiente. Então praticou chutes e golpes de wushu comigo por mais

duas horas. Quando subi a escada até meu quarto, estava exausta. O

jantar tinha sido deixado ali sob uma redoma, mas resolvi tomar uma

chuveirada primeiro.

De banho tomado e pronta para ir para cama, ergui a tampa e encontrei

frango e legumes grelhados. Havia também um bilhete do Sr. Kadam

me convidando para ajudar com a pesquisa na biblioteca na manhã

seguinte. Terminei o jantar e andei até o quarto de Ren.

Estava tão diferente da primeira vez em que eu entrara ali... Um tapete

espesso cobria o chão. Sobre a cômoda havia livros, inclusive alguns dos

exemplares de primeira edição do Dr. Seuss que ele mencionara. Uma

edição de Romeu e Julieta em híndi estava gasta e com orelhas nas

pontas. Em um canto via-se um sofisticado CD player com vários CDs e,

na escrivaninha, um notebook e material de escrita.

Encontrei seu presente de dia dos namorados, o exemplar de O conde de Monte Cristo, e o enfiei debaixo do braço. Ele devia tê-lo mandado

no pacote com meus objetos especiais. Saber que ele o considerava

importante me fez sorrir. Uma de minhas fitas de cabelo estava

amarrada num pergaminho enrolado. Desfiz o laço e encontrei vários

poemas escritos por Ren numa língua que eu não sabia ler. Tornando a

enrolar as páginas e refazendo o laço, decidi tentar traduzi-los.

Abri o armário. Na última vez que eu estivera ali ele se encontrava

vazio, mas agora estava cheio de roupas de grife. A maioria nunca fora

usada. Encontrei um agasalho azul semelhante ao que ele usara na

praia. Tinha o seu cheiro - cachoeiras e sândalo. Joguei-o sobre o braço.

Quando voltei ao meu quarto, coloquei o pergaminho em minha mesa e

subi na cama. Eu tinha acabado de me acomodar debaixo do cobertor

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com o tigre branco de pelúcia e o agasalho quando ouvi uma batida na

porta.

- Posso entrar, Kelsey? Sou eu, Kishan.

- Claro.

Kishan enfiou a cabeça pela porta.

- Eu só queria dizer boa-noite.

- Tudo bem. Boa noite.

Vendo meu tigre branco, ele se aproximou para inspecioná-lo. Dirigiu-

me um sorriso torto e deu um piparote no nariz do tigre.

- Ei! Deixe o bicho em paz.

- Eu me pergunto o que ele achou disso.

- Se quer mesmo saber, ficou lisonjeado.

Ele sorriu por um momento e então ficou sério.

- Vamos encontrá-lo, Kells. Eu prometo. Assenti.

- Bem, boa noite, bilauta. Apoiei-me no cotovelo.

- O que significa isso, Kishan? Você nunca me disse.

- Significa "gatinha". Achei que, se somos os gatos, você tem que ser a

gatinha.

- Ah. Mas não diga mais isso perto de Ren. Ele fica com raiva. Ele sorriu.

- Por que você acha que eu digo? Até amanhã. Ele apagou a luz e fechou

a porta.

Naquela noite, sonhei com Ren.

12

De profecias e práticas

Era o mesmo sonho horrível que eu tivera antes. Estava escuro e eu

procurava alguma coisa desesperadamente. Entrei num quarto e

encontrei Ren amarrado num altar com um homem de túnica ametista

debruçado sobre ele. Era Lokesh. Ele ergueu a faca e a cravou no

coração de Ren. Saltei sobre Lokesh e tentei tirar-lhe a faca, mas era

tarde demais. Ren estava morrendo.

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- Kelsey, fuja! - Ren sussurrou para mim. - Saia daqui! Estou fazendo

isso por você!

Mas eu não conseguia correr. Não podia fazer nada para salvá-lo.

Simplesmente desabei encolhida no chão, sabendo que a vida sem Ren

não tinha sentido.

Então o sonho mudou. Também no escuro, ele estava sentado dentro de

uma jaula, como tigre. Lacerações ensangüentadas riscavam suas costas.

Eu me ajoelhei.

- Venha, Ren. Vamos tirar você daqui.

Ele se transformou em homem e tocou meu rosto.

- Não, Kelsey. Não posso ir. Se eu fizer isso, ele vai pegar você e eu não

deixarei que isso aconteça. Você não pode ficar aqui. Por favor, vá.

E me deu um beijo rápido.

-Vá!

Ele me empurrou para longe e desapareceu.

Andando em círculos, eu o chamei:

- Ren? Ren!

Vi uma figura através da névoa. Era Ren. Ele estava saudável, forte e

ileso. Ria enquanto conversava com alguém.

Eu toquei em seu braço.

-Ren?

Ele não me ouviu. Postei-me diante dele e acenei. Ele não podia me ver.

Riu e passou o braço pelo ombro de uma linda garota. Agarrei sua gola e

o sacudi, mas ele não sentia o meu toque.

-Ren!

Ele se afastou com a garota e me empurrou para o lado, como se eu

fosse apenas um obstáculo inútil. Comecei a chorar.

Um pássaro cantando lá fora me acordou. Eu havia dormido

profundamente, mas não me sentia descansada. Tinha sonhado a noite

toda com Ren, capturado, prisioneiro. E, em todas as situações em que

nos encontrávamos, ele sempre me afastava, fosse para me proteger ou

para se livrar de mim.

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Cinco semanas. Cinco breves e felizes semanas fora tudo que tivemos

juntos. Mesmo que eu contasse o tempo em que ele estava lá, mas só me

via nos encontros, nosso tempo no Oregon fora de apenas dois meses.

Não era suficiente. Não quando se está apaixonada por alguém. Por

alguma razão parecia que eu sempre perdia as pessoas que amava. Como iria viver sem ele?

E no entanto, ele estava junto a mim. Assim como meus pais. Eu os

sentia tão perto que às vezes quase podia tocá-los. O mesmo acontecia

com Ren, só que... mais forte. Tantas coisas estranhas haviam

acontecido comigo. Eu tinha uma cobra de estimação que também era

uma joia; quase fora comida por um macaco-cavalo-marinho-vampiro;

tinha um namorado que era um tigre na maior parte do tempo; e

aparentemente eu era capaz de disparar raios pela mão.

Eu estava tão arrasada pela captura de Ren que não conseguia nem

começar a lidar com meu poder de Thor. O que mais poderia acontecer comigo? Eu não queria pensar nisso porque, independentemente do que

eu imaginasse, a realidade seria muito pior.

Eu me vesti e desci para ajudar o Sr. Kadam. Ele estava ocupado,

trabalhando no computador.

- Bom dia, Srta. Kelsey. Se estiver pronta, tenho alguns mapas que

gostaria que verificasse para mim.

- Claro.

Ele abriu um mapa gigante da índia e deslizou em minha direção um

papel com a tradução da segunda profecia de Durga. Uma cabeça com

pelo escuro bateu em minha perna e eu me inclinei para lhe fazer um

carinho. Estava feliz por Kishan estar ali, mas não pude deixar de

desejar que fosse um tigre branco sentado ao meu lado.

- Bom dia, Kishan. Já tomou o café da manhã? Mais tarde, se o Sr.

Kadam tiver todos os ingredientes, vou fazer biscoitos para você.

Ele bufou e se acomodou aos nossos pés. Peguei a profecia e a li.

Procure suas oferendas antes de tudo Pois as bênçãos de Durga os esperam outra vez.

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Um lugar dos deuses dá início à sua busca Sob a glacial montanha azul de Noé. Deixe que o Mestre do Oceano unte seus olhos; Desdobre os antigos e sagrado pergaminhos. Ensine a sabedoria completa e aconselhe

Os portões do espírito ele controla. O paraíso aguarda; mantenha-se firme; E encontre a pedra do umbigo Que o levará as coração de todos Os tronos frondosos da história antiga. No topo da árvore do mundo está o prêmio aéreo.

Pegue arco e flecha, atire com precisão. Discos lançados e grandes disfarces Podem deter aqueles que perseguem Quatro casas seu espírito irão testar De pássaros, morcegos, cabaças e sereias. E, por último, olhe para o céu, Pois guardiões de ferro rodeiam, seu vôo. O povo da Índia será vestido E se erguerá, forte, por todo o globo.

- Humm - ponderei em voz alta. - Bem, as primeiras duas linhas são

óbvias. Temos que ir novamente a um templo de Durga. Disso já

sabíamos. Dessa vez, vamos levar as oferendas apropriadas.

- Sim. Compilei uma lista dos templos de Durga em toda a Índia, assim

como alguns que ficam em países próximos.

- Kishan, lembre-me de usar minha tornozeleira de sino.

O Sr. Kadam assentiu e se debruçou sobre suas anotações. Mordi o lábio

e pensei no dia em que Ren me dera a tornozeleira. Ele tinha me

implorado que ficasse, mas eu fui embora.

Que desperdício. Podíamos ter passado todos aqueles meses juntos se eu não tivesse sido tão teimosa. Eu daria qualquer coisa para voltar no

tempo. Agora Ren tinha sido levado prisioneiro e havia uma boa

possibilidade de que eu nunca mais pusesse os olhos nele.

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Tentando escapar de meus pensamentos tristes, tornei a me concentrar

na profecia de Durga.

- Montanha de Noé? É a cordilheira do Himalaia? Como o senhor

chegou a essa conclusão?

- Por causa da Arca de Noé.

- Mas Noé não desembarcou no monte Ararat?

- Você tem boa memória. Isso foi o que pensei a princípio também, mas

o monte Ararat fica na Turquia, não na índia. A localização da arca, no

entanto, tem sido motivo de intenso debate.

- Está certo, mas o que o levou ao Himalaia?

- Duas coisas me conduziram a essa hipótese. Primeira: não acredito que

o próximo item esteja oculto num lugar muito distante do continente

indiano. A profecia menciona que o item ajudaria o povo da Índia,

portanto não faria sentido estar tão longe. A segunda razão tem a ver

com a história de Noé. A Bíblia não é a única que descreve um grande

dilúvio. Na verdade, dezenas de culturas têm histórias de uma grande

enchente que cobriu a Terra. Pesquisei e cruzei referências de todos os

mitos de dilúvios. Tem Deucalião e Pirra da Grécia, a história do

Dilúvio Épico de Gilgamésh, Tapi dos Astecas e assim por diante. Uma

semelhança entre todos eles é que, quando as chuvas diminuíram, os

povos foram levados para terra seca.

- Ah, eu não sabia.

- Na índia existe o mito de que Manu salvou a vida de um peixe que, por

sua vez, lhe disse que o dilúvio estava chegando. Ele construiu um

barco e o peixe o arrastou até as montanhas. Muitos locais foram

sugeridos como ponto de desembarque, mas excluí vários deles por não

serem uma "glacial montanha azul". A montanha que faz mais sentido

para mim é...

- O monte Everest.

- Exato. Se tomarmos o relato ao pé da letra e presumirmos que a Terra

toda estava inundada, a superfície que primeiro apareceria seria a

cordilheira do Himalaia. Como o Himalaia "toca o céu", poderíamos

supor que a segunda busca em que embarcaremos esteja relacionada ao

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ar. Pássaros e outras criaturas voadoras também estão fortemente

presentes na profecia e o objeto que estamos procurado é chamado de

"prêmio aéreo".

- Monte Everest? O senhor não acha que Kishan e eu teríamos que...

- Não, não. Escalar o monte Everest é algo que somente um punhado de

pessoas corajosas já realizou. Eu não pensaria em submetê-los a essa

tentativa. O que estamos procurando é uma cidade no pé da montanha,

uma cidade com um mestre sábio. Tenho esperanças de que você possa

fazer uma lista das cidades possíveis e talvez pensar num lugar que

ainda não tenha me ocorrido.

- Parece que o senhor já pensou bastante no assunto.

- Pensei. Mas, como você mencionou antes, às vezes um novo par de

olhos pode ajudar.

O Sr. Kadam me entregou uma lista de cidades, que analisei uma a uma,

verificando-as no mapa. De fato, ele já havia riscado todas as cidades

dentro de um raio de várias centenas de quilômetros a partir do Everest.

O único local do mapa ainda não riscado era o norte do Everest, onde os

nomes estavam escritos em chinês.

- Sr. Kadam? Que cidade é esta? - perguntei, indicando um ponto.

- É Lhasa. Fica no Tibete, não na Índia.

- Bem, talvez o professor more lá, no outro lado do Himalaia, mas o item

que estamos procurando ainda esteja escondido na índia.

O Sr. Kadam imobilizou-se por um instante e então correu para pegar

um livro sobre o Tibete.

- Espere só um instante... um lugar dos deuses. - Ele abriu o livro e

consultou o índice. Passando as páginas rapidamente, começou a

murmurar para si mesmo: - Mestre do Oceano... portões do espírito...

isso... isso!

Fechou o livro bruscamente e me agarrou num breve abraço, os olhos

faiscando.

- É isso! Você conseguiu, Srta. Kelsey!

- O que foi que eu fiz?

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- Lhasa é a cidade "sob a montanha de Noé"! A tradução de seu nome é

"cidade dos deuses"!

- E quanto ao mestre que deverá nos mostrar coisas?

- Essa é a melhor parte! O Mestre do Oceano é provavelmente um dos

lamas. Possivelmente o próprio Dalai-Lama!

- O quê? Mas Lhasa não fica perto do oceano.

- Ah. Não se trata necessariamente de uma referência literal ao oceano.

Pode significar que sua sabedoria é tão profunda quanto o oceano ou

talvez que sua influência é tão vasta quanto o mar.

- Muito bem, então vamos para Lhasa e pedimos uma audiência com o

Dalai-Lama. - Acariciei o ombro do tigre negro. - Parece moleza, certo,

Kishan?

Ele bufou e ergueu a cabeça.

- É, isso pode ser um problema - murmurou o Sr. Kadam.

- O senhor por acaso tem um relacionamento próximo com o atual

Dalai-Lama? Do tipo que o avô de Ren tinha?

- Não. E o atual Dalai-Lama não mora no Tibete. Ele está vivendo no

exílio, na índia. A profecia indica claramente que precisamos ir para a

cidade "sob a montanha de Noé" e começar nossa busca a partir dali.

Diz que o Mestre do Oceano irá untar seus olhos, desenrolar

pergaminhos sagrados, passar-lhes sabedoria e possivelmente levá-los

ao portão do espírito.

- O que são esses portões?

- Os portões do espírito marcam entradas de templos no Japão. Dizem

que são portas entre o mundo secular e o mundo espiritual. Quando as

pessoas passam por elas, purificam-se e se preparam para a jornada

espiritual que irá acontecer adiante.

- Existem portões do espírito no Tibete?

- Não que eu saiba. Talvez eles tenham um significado diferente na

profecia.

- Ok. E quanto a essa pedra do umbigo?

- Ah, essa eu sei o que é. Acredito que isso signifique que vocês estão

procurando uma pedra ônfalo. Trata-se de pedras que representam o

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centro, ou o umbigo, do mundo e várias foram colocadas na região do

Mediterrâneo, a mais famosa das quais está abrigada no oráculo de

Delfos. Alguns estudiosos sugeriram que vapores gasosos eram

direcionados para o alto através da abertura da pedra e, quando um

vidente se punha sobre ela e inspirava o gás, ele teria uma visão.

Supunha-se que era uma forma de a humanidade se comunicar com os

deuses. Diz-se também que, quando uma pessoa segura a pedra, ela

pode ver o futuro. Existe uma pedra na Tailândia, uma na Igreja do

Santo Sepulcro em Jerusalém e outra é a pedra fundamental do templo

judaico na Cúpula ou Domo da Rocha.

- Qual é a sua aparência?

- Seu formato é semelhante a um ovo de pé com um buraco no alto e

desenhos entalhados na parte externa.

- Então encontramos essa pedra ônfalo e a seguramos ou aspiramos seus

vapores e ela nos levará a uma árvore do mundo?

- Correto.

- E a árvore?

- A árvore do mundo é outro tema bastante comum em muitas culturas

e mitos. Existe uma árvore que realiza desejos e que cuidou das

necessidades do povo da índia chamada Kalpavriksha. Ela floresceu

quando as pessoas eram sábias e boas, mas, quando a natureza da

humanidade mudou, a árvore tornou-se obscura.

- Humm.

- Em meus estudos sobre o Fruto Dourado, encontrei o registro de uma

árvore especial no templo de Kamakshi, no sul da Índia. Trata-se de

uma mangueira que produz quatro tipos de mangas, que se acredita

representem os quatro Vedas ou as castas. Na mitologia nórdica, existe a

história de uma árvore do mundo chamada Yggdrasil. Na mitologia

eslava e na finlandesa, eles escolheram um carvalho para representar a

árvore sagrada do mundo. Na cultura hindu, é uma figueira chamada

Ashvastha. Pode-se vê-la como a Árvore da Vida. Existem árvores

semelhantes mencionadas nas culturas da Coréia, da Mesoamérica, da

Mongólia, da Lituânia, da Sibéria, da Hungria, da Grécia...

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- Entendi. Então estamos procurando uma árvore especial. Pelo menos

sabemos de que tipo?

- Não. Todas as histórias usam exemplos de árvores comuns em suas

terras, mas a maior parte dos mitos se refere a uma espécie muito

grande, com aves descansando em seus galhos. Essas provas que são

mencionadas parecem se encaixar nesse tema.

- Resumindo, não comemos o fruto, certo?

Ele riu.

- Nem todos os mitos incluem frutos, mas você está absolutamente certa.

Há uma prova associada à maioria deles. Alguns até mencionam uma

serpente gigante em sua base. As folhas ligam a Terra ao céu e supõe-se

que as raízes desçam até o submundo.

- Bem, quanto a essas... provas. O senhor acha que vou encontrar

alguma coisa apavorante que tentará me devorar, como os kappai Ele ficou imediatamente sério.

- Espero que não, Srta. Kelsey. Na verdade, estou animado com a palavra

paraíso. Torço para que essas provas sejam mais um exercício mental do

que físico.

- Certo. Mas vou precisar ficar de olhos abertos para os guardiões de

ferro. Pelo que diz aí, temos que ascender ao topo para encontrar o

prêmio e passar por quatro provas. O que será que significa "o povo da

índia será vestido"? O senhor acha que isso se refere a roupas?

- Poderia ser um símbolo da realeza, suponho.

- Bem, parece que o senhor desvendou tudo ou pelo menos tudo o que

lhe foi possível. O próximo passo deve ser voltar ao templo de Durga.

Acha que vai dar certo sem Ren?

- Não custa tentar. Você disse que Ren precisou assumir a forma de tigre

antes de Durga aceitar sua oferenda, correto?

- Sim. Ela mencionou especificamente o relacionamento entre mim e

Ren.

- Então seria aconselhável ter um tigre em sua companhia. Vamos usar

Kishan em vez de Ren, se você estiver disposto, é claro.

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O tigre negro bufou em resposta, o que presumimos que significasse

"sim". Olhei para baixo e acariciei-lhe a cabeça.

- Espero que ela goste de pelo preto.

- Enquanto isso, vou dar alguns telefonemas para ver se consigo arranjar

uma audiência com alguém no Tibete ou talvez até mesmo com o Dalai-

-Lama aqui na Índia.

- Acha que isso vai funcionar? Que ele vai concordar em se encontrar

conosco?

- Não tenho a menor idéia.

- Mas não seria melhor esperar por Ren? Não deveríamos encontrá-lo

antes de sair à procura do próximo item?

- Srta. Kelsey, não creio que Ren acharia melhor esperarmos.

Honestamente, não estou tendo sucesso em localizá-lo e minhas

esperanças são de que quando vocês descobrirem o segundo item...

- Deparemos com uma visão outra vez.

- Exatamente.

- E que assim possamos descobrir onde Lokesh está, o que nos levaria até

Ren.

- Sim. Eu sei que é um tiro no escuro, mas talvez seja nossa única pista.

- Está certo. Eu irei.

Kishan grunhiu e assumiu a forma humana.

- Eu irei com você.

- Não se sinta obrigado a me acompanhar, Kishan.

- É claro que me sinto obrigado - disse ele, contrariado. - Ren me

incumbiu de tomar conta de você e é exatamente o que pretendo fazer.

Não sou nenhum covarde.

Peguei a mão dele.

- Kishan, eu nunca o considerei um covarde. E obrigada. Vou me sentir

muito mais segura com você por perto.

Seu rosto tenso relaxou e ele prosseguiu:

- Ótimo. Agora que isso está acertado, quer treinar por algumas horas?

- É uma boa idéia.

O Sr. Kadam nos dispensou.

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Vamos trabalhar juntos um pouco esta tarde, Srta. Kelsey, talvez

depois do almoço.

Fechado. Até mais tarde.

Encontrei Kishan no dojo depois de trocar de roupa. Ele treinou comigo

a habilidade de derrubar alguém muito maior que eu. Tive que praticar

nele várias vezes e então ele me submeteu a um circuito de

alongamento e musculação. Quando finalmente decidiu que nossa

sessão estava terminada, me deu um tapinha debaixo do queixo e disse

que estava orgulhoso de mim.

Exatamente quando eu me preparava para subir e almoçar com o Sr.

Kadam, Kishan se aproximou de mim correndo por trás e me jogou

sobre seu ombro. Ele subiu os degraus de dois em dois enquanto eu

socava suas costas. Ele ria.

Se não está preparada para se livrar de seu atacante, terá que sofrer

as conseqüências.

Ele me colocou na cadeira de frente para o Sr. Kadam e pegou alguma

coisa para comer.

Eu estava cansada e dolorida.

Não creio que tenha energia para outra sessão prática de esgrima, Sr.

Kadam. Kishan testou meus limites hoje.

Sem problema, Srta. Kelsey. Podemos praticar outra coisa. Vamos

experimentar sua habilidade com os raios.

Fiz uma careta.

E se foi apenas um acaso? Talvez tenha sido uma coisa isolada.

Talvez a senhorita sempre tenha possuído esse poder, apenas nunca

teve motivo para usá-lo - contrapôs.

Está bem, vou tentar. Só espero não atingir o senhor por acidente.

Sim. Tente evitar isso.

Terminamos o almoço e saímos da casa. Eu nunca havia pisado no

terreno anexo à propriedade. Degraus levavam até uma área do

tamanho de um campo de futebol americano cercada pela selva por

todos os lados. O Sr. Kadam havia arrumado fardos de feno com placas

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de alvo a diferentes distâncias, como os que se veem em torneios de

arco e flecha.

Quero primeiro tentar alvos estáticos e, se tiver sucesso, também

gostaria de tentar alvos móveis. Bem, você disse que estava furiosa e

que precisava proteger Ren. Que um fogo pareceu começar em sua

barriga e se mover até sua mão, correto? Quero que pense nisso e tente

recuperar essa sensação.

Fechei os olhos e me imaginei diante de Ren, enquanto ele cambaleava

atrás de mim. Deixei as emoções me dominarem novamente e visualizei

seus captores se aproximando. Uma centelha negra queimou em minha

barriga. Concentrei-me nela e a encorajei a se expandir.

Ela explodiu como uma bolha de lava, subindo, veloz, pelo meu corpo e

disparou pela minha mão. Uma luz espessa, branca e pulsante lançou-se

da minha palma na direção do primeiro alvo e o acertou. O alvo inteiro

explodiu como uma bomba incendiária, deixando apenas fragmentos

fumegantes de feno, que se consumiram, flutuando e enchendo o ar de

fuligem. Tudo que restou do alvo foi uma marca negra no chão.

Minúsculas espirais escuras de fumaça se ergueram, subindo para o céu,

e foram lentamente se dissipando.

O Sr. Kadam coçou a barba.

Uma arma muito eficaz.

Sim, mas não quero fazer isso com alguém. Não pareceu assim tão

destrutiva em pessoas.

Não vamos nos preocupar com isso por enquanto. Primeiro, vamos

trabalhar a distância. Passe para o próximo alvo e depois para o outro.

Explodi os dois alvos em sucessão sem nenhum declínio de intensidade.

Kishan, você faria a gentileza de dispor mais alvos? Dessa vez,

gostaria que ficassem mais distantes e lado a lado.

Kishan se dirigiu para a outra extremidade do campo e o Sr. Kadam

explicou:

Gostaria que você buscasse expandir seu alcance para englobar os

três alvos. Tente imaginar algo grande, como um elefante ou

dinossauro, e pense que precisa atingir toda a sua extensão.

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Ok, vou tentar.

Concentrei-me nos alvos na outra extremidade do campo enquanto

esperava que Kishan saísse do caminho. Estreitando os olhos por causa

do sol, disparei um raio e só atingi o alvo da extrema esquerda.

Está tudo bem. Tente de novo, Srta. Kelsey.

Dessa vez, concentrei-me em sustentar a descarga por mais tempo e

movi a mão em um arco, permitindo que o raio atingisse cada um dos

alvos.

Humm, adaptação interessante. Agora sabemos que pode mantê-lo.

Ele girou um dedo no ar, descrevendo um grande círculo, sinalizando a

Kishan que dispusesse os alvos novamente.

Tente outra vez. Mas agora concentre-se em ampliá-lo. Feche os

olhos por um instante e visualize um leque. Enquanto o raio deixa sua

mão, espalhe-o à sua frente, de modo que a descarga se expanda como

as extremidades de um leque.

Está bem, mas fique atrás de mim.

Ele assentiu e se moveu um pouco para trás. Estendi a mão à frente e

deixei o fogo percorrer o meu braço. Imaginei-me segurando o leque e

ergui a palma na direção dos alvos. A luz branca e espessa projetou-se

mais lentamente dessa vez. A medida que disparava, abri os dedos,

como se fosse um leque, impelindo o poder a se expandir. E

funcionou... bem demais. Eu não só removera os alvos, como também as

árvores de ambos os lados do campo. Kishan teve que se jogar no chão

para não ser atingido.

O Sr. Kadam chamou Kishan e me disse:

Muito bem! Com um pouco mais de prática, acho que a senhorita

será capaz de acertar exatamente o que quiser quando precisar. Amanhã

vamos praticar intensidade e ver se conseguimos reduzir a força do raio

a fim de incapacitar em vez de... hã...

Exterminar?

Ele riu.

Sim. É tudo uma questão de controle. Aposto que em breve

conseguirá ter esse domínio, Srta. Kelsey.

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Espero que esteja certo.

Gostaria que praticasse um pouco mais com Kishan nos próximos

dias. Pense apenas em acertar o alvo e ampliar seu alcance. Vou

trabalhar com a senhorita amanhã a concentração de seus níveis de

poder.

Certo. Obrigada.

As semanas voaram. Antes de que eu me desse conta, um mês e meio

havia se passado. Completei meu período na universidade à distância.

Os professores ficaram fascinados com a explicação do Sr. Kadam de

que havia encontrado um artefato raro e precisava da minha ajuda para

catalogá-lo. Ele lhes prometeu que eu escreveria um ensaio sobre a

peça.

Eu mal podia esperar para ouvir sobre o que escreveria. Fiz minhas

provas finais, o que me deu algo em que me concentrar que não fosse

Ren. O Sr. Kadam também deu uma desculpa junto à universidade por

Ren, dizendo que houve uma emergência familiar e que ele precisara

retornar à índia. O reitor pareceu muito compreensivo e disposto a

fazer o que pudesse para ajudar.

Depois de concluir os trabalhos da universidade, eu ajudava o Sr.

Kadam com as anotações no início da manhã e então treinava com

Kishan até a hora do almoço. A tarde era reservada para a prática com

armas. Kishan me ensinava a cuidar das armas e quais escolher nos

diferentes tipos de batalhas. Também me treinava no combate corpo a

corpo e em várias formas de derrubar adversários mais fortes.

No incício da noite eu praticava com o Sr. Kadam o meu poder do raio.

Agora eu já conseguia controlar a intensidade, de modo que não mais

destruía os alvos. Podia abrir um buraco no centro do alvo, como uma

seta. Ou podia atingir todos eles ao mesmo tempo e derrubá-los. Era

capaz de destruir todos ou apenas o que eu escolhesse.

Isso me dava uma sensação de poder, mas também era muito assustador.

Com esse tipo de força eu poderia fazer o papel de heroína ou de vilã, só

que, na verdade, eu não queria ser nenhum dos dois. Tudo que eu

queria era ajudar Ren e Kishan a quebrar a maldição... e ficar com Ren.

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À noite, sozinha, eu lia ou escrevia em meu diário. A casa era diferente

sem Ren. A todo instante eu esperava vê-lo de pé na varanda. Sonhava

com ele todas as noites. Ele estava sempre aprisionado, amarrado a uma

mesa ou numa gaiola. Todas as vezes que eu tentava soltá-lo ou resgatá-

lo, ele me detinha e me mandava embora.

Uma noite acordei de um dos meus pesadelos com Ren e saí da cama.

Peguei minha colcha e me dirigi para a varanda. Uma cabeça escura

descansava no banco de balanço e, por um instante, meu coração parou

de bater. Abri a porta de correr e saí. A cabeça se mexeu.

Kelsey? O que está fazendo acordada?

Meu pobre coração voltou ao estado de dormência.

Ah. Oi, Kishan. Tive um pesadelo. O que você está fazendo aqui

fora?

Durmo aqui fora com freqüência. Gosto de ficar ao ar livre e é mais

fácil ficar de olho em você.

Acho que estou bastante segura aqui. Duvido que você precise ficar

de olho em mim enquanto estivermos aqui.

Ele se moveu e me convidou para me sentar ao lado dele.

Não vou deixar nada de mau se aproximar de você, Kelsey. É minha

culpa o que aconteceu.

Não é, não. Você não poderia ter impedido.

Ele recostou a cabeça na almofada, fechou os olhos com força e esfregou

as têmporas.

Deveria ter sido mais alerta. Ren pensou que eu estaria menos

distraído que ele. A verdade é que eu provavelmente estava mais distraído. Teria sido melhor se eu nunca houvesse ido para os Estados

Unidos.

Confusa, perguntei:

Como assim? Por que está dizendo isso?

Ele olhou para mim. Olhos dourados penetraram os meus, como se

procurando a resposta a uma pergunta que ele não fizera. Então afastou

os olhos bruscamente, grunhiu e murmurou para si mesmo:

Eu nunca aprendo.

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Segurei sua mão.

Qual é o problema?

Ele me encarou novamente, com relutância.

Tudo o que aconteceu conosco foi culpa minha. Se eu não houvesse

me aproximado de Yesubai, nada teria mudado. Ela teria sido a princesa

de Ren e não haveria morrido. Você não estaria em perigo agora. Meus

pais teriam levado vidas normais. Todos à minha volta sofreram porque

não pude me controlar.

Pus a outra mão sobre a dele, aninhando-a entre as minhas. Ele virou a

dele e agarrou os meus dedos.

Kishan, você a amava, o que, segundo aprendi, era uma coisa muito

rara naquele tempo. O amor nos leva a fazer coisas malucas. Yesubai

queria ficar com você apesar de todas as implicações negativas. Aposto

que, mesmo que ela soubesse que sua vida seria abreviada,

provavelmente faria tudo de novo.

Não estou certo disso. Tive muito tempo para pensar sobre tudo.

Yesubai e eu mal nos conhecíamos. Nossos encontros secretos eram

muito breves e eu seria desonesto se dissesse que nunca suspeitei que

ela tenha agido como um peão no jogo do pai. Eu não sei se ela me

amava de verdade. De certa forma, acho que, se tivesse essa certeza,

então tudo teria valido a pena.

Ela tentou salvar vocês dois, não foi?

Ele assentiu.

Ela não teria ido contra o pai se não o amasse. Além disso, não vejo

como ela poderia ter resistido. Você é tão bonito quanto seu irmão. É

doce e encantador quando Ren não está por perto. Se ela não o amava,

então era louca.

Como ele não falou nada, continuei.

Também faz sentido porque, para mim, a única razão por que ela

poderia ter recusado Ren era se amasse você. Além disso, minha vida

teria sido muito mais triste sem Ren e você. - Apertei seus dedos. - Não

é culpa sua que essas coisas tenham acontecido. Lokesh é o responsável,

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não você. Ele provavelmente teria ido atrás de seus amuletos mesmo

que Yesubai não houvesse entrado na vida de vocês.

Fiz um pacto com o demônio, Kelsey. Quando você faz isso, deve

pagar um preço.

Você tem razão. Quando fazemos escolhas erradas ou tomamos

decisões ruins, precisamos sempre enfrentar as conseqüências. Mas se

apaixonar não é uma escolha ruim.

Ele deu uma risada autodepreciativa.

Para mim, é.

Não. Concordar em agir pelas costas do seu irmão é que foi a escolha

ruim, mas, no fim, você escolheu a sua família. Escolheu proteger e

ficar ao lado de Ren e ajudá-lo a escapar.

Ainda assim, foi um erro. Eu não deveria ter confiado em Lokesh.

Ficamos sentados, balançando em silêncio por um momento.

Errar é o que nos torna humanos - sussurrei. - E assim que

aprendemos. Minha mãe sempre dizia que cometer um erro não é ruim.

Ruim é se recusar a aprender com ele a fim de não repeti-lo.

Ele se inclinou para a frente e colocou a cabeça entre as mãos. Falou

baixinho, como se zombando de si mesmo.

Certo. Era de se esperar que eu aprendesse. Para não repetir a

história.

Você está correndo o risco de repetir a história? - provoquei. -

Andou batendo papo com Lokesh?

Eu mataria Lokesh sem hesitar caso nossos caminhos se cruzassem

novamente. Mas, se estou correndo o risco de repetir a história? Estou,

sim.

Você não vai trair seu irmão novamente.

Pelo menos não da maneira que você está pensando.

Suspirei.

Kishan, não quero que você passe todo o seu tempo livre tomando

conta de mim. Você está claramente obcecado pelo passado. Deveria

estar aproveitando sua nova vida. Saiu com alguém esses meses em que

esteve em casa? Fez aulas fora?

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Ele desviou os olhos.

Não é pelo passado que estou obcecado. - Ele soltou um suspiro. -

Estudar não me interessa muito. - Ele se pôs de pé e caminhou até o

parapeito da varanda. Debruçou-se e ficou olhando a piscina iluminada

lá embaixo. Suavemente, disse: - E parece que as únicas garotas por

quem me interesso... sempre pertencem a Ren.

Fitei suas costas, surpresa. Ele se virou e apoiou um lado do quadril no

parapeito. Ficou observando minha reação atentamente, a expressão

vulnerável e solene.

Você está falando sério? - gaguejei.

Sim. Estou falando sério. Sou um cara bastante franco e direto. Não

brinco com esse tipo de coisa.

Mas eu não entendo. No caso de Yesubai, posso compreender, com

seus olhos cor de violeta e os longos cabelos negros, mas certamente

você...

Kells, pare por aí. Não estou zombando de você nem fazendo

joguinho. Levei muito tempo para decidir se devia dizer alguma coisa.

Olhe, eu sei que você o ama e eu nunca pensaria em tentar tirá-la dele.

Pelo menos não quando sei que não tenho absolutamente nenhuma

chance. - Ele sorriu, sarcástico. - Não lido muito bem com a rejeição.

Cruzou os braços diante do peito.

Mas, sim. Se Ren não estivesse com você, eu faria tudo que estivesse

a meu alcance para tê-la em minha vida. Para conquistá-la.

Recostei-me no sofá, chocada.

Kishan. Eu... Ouça, Kelsey. Você... me acalma. Você conserta o que está destruído

e me dá a esperança de que eu posso voltar a ter uma vida. E, a despeito

do que possa pensar, você é tão linda quanto Yesubai. Eu sinto... - Ele

desviou os olhos, constrangido, e resmungou. - Que tipo de homem eu

sou? Como isso pôde acontecer comigo? Duas vezes! Eu mereço. Dessa

vez o vencedor é Ren. É justo. Agora fechamos o círculo. - Ele virou-se

novamente para mim. - Por favor, me perdoe. Não era minha intenção

preocupá-la com isso.

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Kishan era diferente quando Ren não estava por perto. Ele deixava sua

vulnerabilidade transparecer e não tentava encobri-la com a arrogância

e a fanfarronice que sempre exibia para irritar o irmão. Eu sabia que ele

estava sendo sincero. Suas palavras me afetaram profundamente. Elas

me entristeceram. Eu sabia que ele precisava se curar do passado tanto

quanto Ren. Decidi tentar tornar o clima mais leve.

Levantei-me e o abracei. Minha intenção era a de um abraço breve, mas

ele me segurou como se eu fosse sua única âncora para a humanidade.

Dei tapinhas em suas costas e me afastei. Então peguei sua mão e o

puxei de volta até o banco. Adotei a abordagem prática de minha mãe

diante de situações difíceis. Ela sempre dizia que a melhor coisa que se

pode fazer para oferecer apoio a uma pessoa é ser amigo e sincero.

Bem, Kishan, só para registrar, se Ren não existisse, eu namoraria

você sem pensar duas vezes.

Olhe, Kells, esqueça o que eu disse, está bem? - pediu Kishan. - De

qualquer modo, é inútil.

Sabe, eu nunca agradeci a você por ter socado Ren e feito com que

ele fosse atrás de mim no Oregon. Eu nunca teria reunido coragem

suficiente para voltar para ele.

Não me faça parecer o herói, Kells.

Mas você foi meu herói. Eu talvez nem estivesse com Ren se não

fosse por você.

Não me lembre disso. A verdade é que eu a queria de volta

provavelmente tanto quanto ele. Se Ren não fosse, eu teria ido atrás de

você para conquistá-la e talvez estivéssemos tendo uma conversa

inteiramente diferente agora.

Por um minuto deixei-me imaginar o que teria acontecido se Kishan

tivesse ido ao meu encontro no Natal, em vez de Ren. Dei-lhe um soco

de leve no braço.

Não se preocupe. Estou aqui agora. Provavelmente é só da minha

comida que você gosta. Faço um biscoito com gotas de chocolate e

manteiga de amendoim que é imbatível.

Certo... comida - eu o ouvi murmurar.

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Podemos ser amigos?

Eu sempre fui seu amigo.

Ótimo. Tenho um amigo e herói. Boa noite, Kishan.

Boa noite, bilauta. Da porta, eu me virei.

- E não se preocupe. Seus sentimentos devem ser temporários. Tenho

certeza de que quanto mais você me conhecer, mais irritante irei me

tornar. Possuo um lado rabugento que você ainda não viu.

Ele se limitou a erguer a sobrancelha, sem dizer nada.

Apesar de minha insistência de que ficaria bem sem que ele tomasse

conta de mim, era bom saber que havia um tigre dormindo na varanda.

O sono por fim me venceu. Pelo menos naquela noite, não tive mais

pesadelos.

13

O Templo de Vatsala Durga

Mantivemos nossa programação por mais duas semanas. Eu estava

ficando mais forte e me sentia confiante de que poderia me sair bem

numa luta. Não por causa de minha força física, mas pelo poder do raio.

Acabei dominando essa habilidade facilmente. Eu era capaz de arrancar

uma erva daninha do outro lado do campo sem danificar a grama ao seu

redor.

O Sr. Kadam passava a maior parte do tempo tentando achar Ren.

Desde que descobrimos que a cidade que procurávamos era Lhasa, o

restante da profecia se encaixou. O Sr. Kadam tinha certeza de que, se

começássemos nossa jornada ali, encontraríamos o que buscávamos.

Antes de partir, porém, tínhamos que fazer outra visita a um templo de

Durga.

Começaram a chegar caixas com diversos itens que usaríamos em nossa

viagem. O Sr. Kadam comprara roupas novas para mim. Botas de

montanhismo, 12 pares de meias de lã, suéteres de lã, casacos

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impermeáveis, luvas, camisetas de malha grossa e mangas compridas,

botas para neve brancas e com isolamento térmico, calças impermeáveis

e térmicas em vários modelos, diversos chapéus e gorros... Tudo isso

logo preencheu todo um lado do meu closet.

Depois que chegou o último pacote, que incluía óculos de sol, protetor

solar e outros vários artigos de toalete, segui para o andar de baixo.

Sr. Kadam, parece que o senhor vai me fazer escalar o Everest,

afinal. Quantas bolsas está querendo que eu leve?

Ele riu.

Venha cá, Srta. Kelsey. Tenho algo interessante para lhe mostrar.

O que é? Um casaco que vai me manter aquecida numa avalanche?

Não, não. Aqui.

Ele me estendeu um livro.

É Horizonte perdido, de James Hilton. Já leu? - perguntou.

Não. Nunca ouvi falar.

Alguma vez escutou o termo Shangri-lá?

Sim. Como o nome daquelas boates de filmes antigos de

Hollywood... Acho que existe um cassino em Las Vegas com esse nome.

Bem, encontrei uma ligação entre este livro e nossa busca. Tem

algum tempo agora para conversarmos sobre isso?

Claro. Só me deixe chamar Kishan.

Quando voltei, instalei-me confortavelmente na cadeira e Kishan se

ajeitou no chão à minha frente.

Horizonte perdido é um livro escrito em 1933, que descreve uma

sociedade utópica na qual os habitantes vivem por um tempo

excepcionalmente longo em perfeita harmonia uns com os outros. A

cidade se localizava na cordilheira de Kunlun, que é parte do Himalaia.

No entanto, o fato realmente interessante é que James Hilton baseou

sua história no antigo mito budista tibetano de Shambhala, cidade

mística isolada do restante do mundo e que guarda muitos segredos. No

mundo moderno, Shangri-lá passou a significar "um lugar de felicidade,

uma utopia, um paraíso".

Então vamos procurar Shangri-lá através do portão do espírito?

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Acredito que sim. Esse mito é fascinante. Vocês sabem que este livro

se baseia em diversas cidades famosas e suas histórias? Há ligações com

o Santo Graal, a Fonte da Juventude, o Eldorado, a Cidade de Enoch e a

Hiperbórea dos gregos. Todas essas narrativas se assemelham à história

de Shangri-lá. E em todas elas as pessoas procuram algo que vai lhes

conceder a imortalidade ou uma terra que abriga uma sociedade

perfeita. Até mesmo o Jardim do Éden tem muitos temas equivalentes -

a árvore, a serpente, o paraíso, belos jardins. Muitos buscaram esses

lugares, mas jamais os encontraram.

Que maravilha. Quanto mais aprendo, mais difícil parece a tarefa.

Talvez fosse melhor não saber tudo isso. Pode ser menos assustador.

Preferia que eu não tivesse lhe contado?

Suspirei.

Não, preciso saber. Ter uma referência é sempre útil. Então,

ninguém chegou perto de encontrar Shangri-lá?

Não. Não que as pessoas não tenham tentado. Encontrei uma

informação interessante. Parece que Adolf Hitler acreditava que

Shangri-lá detinha a chave para a perfeita raça mestra. Ele chegou a

enviar um grupo liderado por um homem chamado Ernst Schäfer numa

expedição ao Tibete em busca da cidade, em 1938.

- Ainda bem que não encontraram.

O Sr. Kadam me deu Horizonte perdido para ler e me avisou que

provavelmente partiríamos no fim da semana. Mantivemos nossa rotina

normal nos dias seguintes, só que eu estava nervosa. Havia passado por

algumas experiências assustadoras da última vez, mas tivera sempre Ren

comigo. Metade do tempo eu lutava ao lado dele e, na outra metade, eu

o beijava, porém, apesar de toda a confusão emocional, o tempo todo

me senti segura. Sabia que ele me protegeria contra os macacos

malignos e os kappa. Agora que uma nova aventura se apresentava diante de mim, desejava

tão desesperadamente que Ren estivesse comigo que sentia um vazio

doloroso. A única coisa que me fazia prosseguir era saber que estava

fazendo aquilo por ele. Eu não me permitia pensar que Ren pudesse não

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sobreviver às próximas semanas. Ele precisava resistir. A vida sem ele

não teria sentido.

No entanto, eu ainda iria até o fim por Kishan. Não podia abandoná-lo.

Não era do meu feitio. Eu sabia que ele daria o melhor de si para me

proteger e me sentia mais confiante em minhas próprias habilidades.

Mas não seria a mesma coisa sem Ren.

As horas se passavam sem trazer nenhuma pista para encontrá-lo.

Kishan já era melancólico o bastante por si só, portanto eu não

conversava com ele sobre o assunto. Era estranho falar de Ren com ele

desde que se declarara. E se eu falava com o Sr. Kadam sobre isso, ele se

mostrava culpado, mergulhava na pesquisa e parava de dormir sempre

que eu mencionava como era difícil ficar sem Ren.

Kishan e eu não tornamos a conversar sobre seus sentimentos em

relação a mim. De início, nosso relacionamento ficou um pouco

estranho, mas ambos ignoramos o assunto, até que as coisas se tornaram

mais naturais. Ele continuou a praticar artes marciais comigo todos os

dias.

Descobri que gostava cada vez mais dele. Havia semelhanças

indiscutíveis entre os irmãos, no entanto, muitas diferenças também.

Por exemplo, Kishan parecia mais cuidadoso do que Ren. Mostrava-se

disposto a conversar sobre qualquer assunto, mas era sempre lento nas

respostas. Suas opiniões eram sempre criteriosas. Também era severo

consigo mesmo e sentia-se imensamente envergonhado e se

recriminava por nossa situação.

No entanto, havia coisas que ele dizia, palavras que escolhia, que me

lembravam Ren. Era fácil conversar com Kishan, assim como com o

irmão. Até as vozes eram parecidas. Às vezes eu esquecia com quem

estava falando e o chamava de Ren. Ele dizia que era um engano

compreensível, mas eu sabia que isso o magoava.

A tensão pairou na casa durante toda a semana antes da viagem.

Finalmente chegou o dia da partida. Nossas malas foram colocadas no

Jeep. Com Kishan sentado no lugar de Ren, partimos. O Sr. Kadam

tinha documentos de viagem para todos nós e explicou que

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atravessaríamos três países diferentes. Espiei dentro de uma bolsa e vi

que meu passaporte e meus documentos agora estavam em nome de K.

H. Khan e traziam uma fotografia minha mais antiga, da época do

ensino médio.

Nosso destino era o Nepal, mais precisamente uma cidade chamada

Bhaktapur. Levamos dois dias só para atravessar a Índia e entramos no

Nepal pela fronteira Birganj-Raxaul. O Sr. Kadam teve que passar por

um longo processo de apresentação de papéis na fronteira e disse que

precisávamos mostrar o comprovante do Carnet de Passage en Douane -

documento alfandegário que nos concedia permissão de entrar

temporariamente com nosso veículo no Nepal.

Depois de nos instalarmos num hotel, deixamos Kishan tirando uma

soneca enquanto o Sr. Kadam me levou num riquixá para ver a torre do

relógio de Birganj.

Quando voltamos ao hotel, Kishan nos acompanhou no jantar num

restaurante ali por perto. O Sr. Kadam pediu chatamari para mim, um

tipo de pizza nepalesa com massa feita com farinha de arroz. Escolhi

ingredientes que eu conhecia para a cobertura. Ele pediu masu, que era

alguma carne ao curry com arroz. Sua escolha foi frango, mas também

havia a opção com carneiro ou búfalo, que eu nem sabia que existiam

no Nepal. Kishan comeu pulao de legumes, prato de arroz frito com

cominho e cúrcuma, masu de carneiro e thukpa, uma sopa com

macarrão.

No dia seguinte acordamos cedo para a viagem até Bhaktapur. Quando

chegamos, o Sr. Kadam nos instalou no hotel e depois caminhamos até a

praça principal. Passamos por um grande mercado que vendia dezenas

de artigos de cerâmica. Muitos deles eram pintados com tintas coloridas

sobre argila negra, o que parecia ser um material comum.

Outras bancas exibiam máscaras de animais, deuses, deusas e demônios.

Legumes, frutas e barracas de comida nos atraíram mais. Compramos o

famoso iogurte com mel, chamado juju dhau. Feito com leite de búfala,

levava também nozes, passas e canela.

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Deixamos a área do mercado e chegamos à praça principal, onde não

eram permitidos riquixás nem táxis. O Sr. Kadam disse que isso

mantinha a praça silenciosa, limpa e tranqüila. Enquanto andávamos,

ele explicou:

- Esta é a praça de Durbar. Ah, ali está o que procuramos: o Templo de

Vatsala Durga.

Dois leões de pedra guardavam a entrada do templo. A construção era

em formato de cone, como o Templo de Virupaksha, em Hampi, mas

tinha um pátio de tijolos ao redor. Duas grandes pilastras sustentavam

um sino gigantesco perto da construção.

- Sr. Kadam, eu não precisava usar minha tornozeleira de sino, afinal.

Tem um sino gigante ali em cima.

- Sim. Chama-se Sino de Taleju. É feito de bronze e está apoiado sobre o

pedestal do templo. Gostariam de conhecer a história do sino?

- Claro!

- Também é chamado de Sino que Late. Um dos antigos reis que

viveram aqui teve um sonho. As histórias variam, mas, nesse sonho, na

verdade um pesadelo, criaturas parecidas com cães atacavam as pessoas

durante a noite.

- Criaturas parecidas com cães? Tipo lobisomens?

- Ê bem possível. Em seu sonho, o único jeito de afugentar as criaturas e

salvar as pessoas era tocar um sino. O repicar do sino era tão alto e tão

forte que as criaturas as deixavam em paz. Quando o rei acordou,

imediatamente ordenou que um sino especial fosse feito. Esse foi o

poder do seu sonho. O sino foi fabricado e usado para indicar o toque

de recolher para os habitantes da cidade. Enquanto a população da

cidade obedecesse ao sinal do sino, acreditava-se que estaria a salvo.

Muitas pessoas ainda dizem que cães latem e uivam toda vez que o sino

toca.

- É uma boa história. - Dei uma cotovelada em Kishan. - Imagino se

funciona com tigres-homens.

Kishan segurou meu cotovelo, puxou-me mais para perto e provocou:

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- Não aposte nisso. Se um tigre for atrás de você, um sino não

conseguiria assustá-lo com facilidade. Os tigres são criaturas muito

focadas.

Algo me dizia que ele não estava falando da mesma coisa que eu.

Procurei desesperadamente mudar de assunto.

A maioria dos homens andando por ali usava chapéus altos. Perguntei

sobre aquilo ao Sr. Kadam e ele se lançou numa longa e detalhada

narrativa acerca da história da moda e das vestimentas religiosas.

- Sr. Kadam, o senhor é uma enciclopédia ambulante em qualquer

assunto imaginável. É muito útil tê-lo por perto e gosto muito mais de

ouvir o senhor do que ouvir qualquer outro professor que já tive.

Ele sorriu.

- Obrigada. Mas, por favor, fique à vontade para me repreender se eu

me empolgar num tema específico. É uma de minhas fraquezas.

- Se algum dia me entediar - eu disse, com uma risada eu aviso.

Kishan sorriu e usou meu comentário como desculpa para passar o

braço pelos meus ombros e acariciar minha pele.

- Posso garantir que eu também jamais vou entediá-la - provocou ele.

A sensação era gostosa, gostosa demais. Reagi com culpa, contorcendo-

-me sob seu braço pesado, para me livrar dele.

- Shh! Seu abusado! Nunca lhe ocorreu consultar a garota primeiro?

Kishan se inclinou e disse em voz baixa:

- Pode ir se acostumando.

Fechei a cara e tratei de me concentrar em nosso passeio.

Passamos a tarde toda nos familiarizando com a área e fizemos planos

de voltar ao templo ao entardecer, no dia seguinte. O Sr. Kadam usara

sua influência - ou sua carteira recheada - para conseguir que

entrássemos sozinhos depois que o local fechasse.

Veios de cor riscavam o céu, que escurecia ao chegarmos ao templo. O

Sr. Kadam nos acompanhou até os degraus na entrada e me deu uma

mochila com vários itens para serem usados como oferenda. Ela estava

repleta de diferentes objetos relacionados ao ar: diversos tipos de penas

de pássaros, um leque, a cauda de uma pipa, um balão com gás hélio,

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uma flauta de madeira, um avião de plástico movido a elástico, um

minúsculo barômetro, um barquinho a vela e um pequeno prisma que

transformava a luz em arco-íris. Também incluímos alguns pedaços de

frutas para dar sorte.

O Sr. Kadam me entregou Fanindra, que fiz deslizar no meu braço. Ela

havia se torcido numa posição de braçadeira, para que eu pudesse usá-

la, o que interpretei como um sinal de que queria ir comigo. Kishan e

eu subimos os degraus de pedra que levavam ao centro do templo.

Passamos entre os elefantes guardiões de pedra e depois pelos leões. A

estátua de Durga podia ser vista da rua, numa alcova muito acima de

nós. Eu temia que, se ela ganhasse vida como da última vez, alguém

passando pelas ruas de pedras pudesse vê-la.

Silenciosamente, Kishan e eu andamos por trás do prédio, contornando

o terraço de pedra cercado de pilares, e encontramos a escada circular

que levava ao topo do templo. Ele procurou minha mão. Estava escuro e

fresco do lado de dentro. As lâmpadas nos postes da praça iluminavam

de maneira fantasmagórica o corredor que levava à estátua. Kishan

andava a meu lado. Eu gostava muito dele, mas sentia falta da luz e do

calor que sempre pareciam emanar de Ren.

Entramos numa sala pequena e nos vimos diante de uma parede de

pedra. Eu sabia que a estátua de Durga se encontrava do outro lado,

iluminada pelas luzes da rua mais abaixo. Ela estava a cerca de 60

centímetros da parede externa do templo e podíamos ficar de qualquer

lado dela e continuar ocultos pelas sombras.

- Da última vez fizemos uma oferenda, tocamos o sino, pedimos

sabedoria e orientação e então Ren se transformou em tigre. Foi o que

pareceu funcionar.

- É só me dizer o que fazer.

Apresentamos nossas oferendas ligadas ao ar e as depositamos aos pés da

estátua antes de voltarmos para as sombras. Ergui o tornozelo, passei os

dedos da mão pelos sinos, fazendo-os tilintar, e sorri ao pensar em Ren.

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Afastamo-nos da parede e Kishan pegou de novo minha mão. Senti-me

grata por sua segurança. Apesar de já ter visto uma estátua de pedra

ganhar vida uma vez, eu ainda me sentia nervosa.

- Vou falar primeiro e depois será sua vez.

Ele concordou com a cabeça e apertou minha mão.

- Grande deusa Durga, viemos pedir sua ajuda novamente. Peço sua

bênção para irmos em busca do próximo prêmio que vai ajudar os dois

príncipes. Receberemos seu auxílio e sua sabedoria?

Voltei-me para Kishan e lhe fiz um sinal com a cabeça.

Ele permaneceu em silêncio por um instante e depois disse:

- Eu... não mereço sua bênção. - Olhou para mim e suspirou, infeliz,

antes de continuar. - O que aconteceu foi minha culpa, mas peço-lhe

que ajude meu irmão. Zele por sua segurança... por ela. Ajude-me a

protegê-la nessa viagem e a mantê-la longe dos perigos.

Ele olhou para mim em busca de aprovação. Fiquei na ponta dos pés,

beijei-lhe o rosto e sussurrei:

- Obrigada.

- Por nada.

- Agora, transforme-se em tigre.

Ele assumiu sua forma de tigre, seu pelo escuro quase desaparecendo

nas sombras. Um vento forte e gelado varreu o prédio e avançou pelas

escadas. Minha camiseta de manga comprida inflou. Mergulhei a mão

no pelo da nuca de Kishan e gritei acima do barulho do vento:

- Esta é a parte assustadora!

O vento levantou um turbilhão de pó e areia em torno de nós, enquanto

anos de poeira eram levantados de rachaduras e do chão. Apertei os

olhos e cobri a boca e o nariz com minha manga. Kishan me empurrou

até um canto da sala, abrigando-me das poderosas rajadas de vento

perto das janelas abertas do templo.

Eu estava encurralada entre ele e a parede, o que era bom, pois ele tinha

que enfiar as garras no chão para se manter de pé. Kishan pressionou

seu corpo contra o meu. Eu me ajoelhei e passei os braços ao redor do

pescoço de Kishan, escondendo o rosto em seu pelo.

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Entalhes antes ocultos por uma cobertura de pó começaram a aparecer.

O vento e a areia poliram o chão até parecer mármore. Passei um braço

em torno de uma pilastra para me ancorar e o outro ao redor de Kishan.

Algum tempo depois o vento cedeu e eu abri os olhos. A sala adquirira

uma aparência drasticamente diferente. Despido de sujeira e anos de pó,

o templo resplandecia. A lua nascente derramava sua luz dentro da sala,

iluminando-a de tal modo que ela parecia etérea e onírica. Na parede

dos fundos, atrás da estátua de Durga, surgira uma familiar marca de

mão. Kishan se transformou em homem e ficou de pé atrás de mim.

- E agora, o que acontece? - ele perguntou.

- Venha ver.

Puxei-o, coloquei a mão sobre a marca e deixei que a energia descesse

crepitando do meu braço para a parede. Um estrondo sacudiu a parede,

fazendo com que recuássemos. A parede girou 180 graus. Estávamos

agora de frente para a estátua de Durga.

Essa versão de Durga era semelhante à outra estátua que eu vira. Seus

muitos braços estavam abertos em leque e o tigre jazia a seus pés. Não

havia javali dessa vez. Ouvi o doce tilintar de sinos e então uma bela

voz disse:

- Saudações, jovem. Suas oferendas foram aceitas.

Todos os itens que depositáramos a seus pés tremeluziram e depois

desapareceram. A pedra cor de areia começou a se mover quando os

braços de Durga balançaram no ar. Os lábios de pedra ficaram cor de

rubi e sorriram para nós. O tigre rosnou e se sacudiu, livrando-se da

pedra como pó. A criatura espirrou e sentou-se aos pés da deusa.

Kishan foi cativado pela deusa. Ela tremeu delicadamente e uma brisa

suave percorreu o templo e soprou toda a poeira que havia sobre ela,

revelando-a como uma joia luminosa enterrada na areia. A pele de

Durga era macia, de um cor-de-rosa pálido, não de ouro como na

primeira vez que a vi. Ela relaxou os braços e ergueu uma das mãos para

tirar sua tiara dourada. Magníficos cabelos negros caíram sobre seus

ombros e suas costas.

Com voz metálica, ela disse:

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- Kelsey, minha filha, estou tão contente que você tenha tido sucesso na

busca do Fruto Dourado.

Ela se virou e olhou para Kishan. Inclinou a cabeça e ergueu uma

sobrancelha, parecendo confusa.

Levantando um braço delicado e rosado, fez um gesto na direção de

Kishan.

- Mas quem é este? Onde está seu tigre, Kelsey?

Corajosamente, Kishan deu um passo à frente e se curvou sobre a mão

estendida da deusa.

- Senhora, também sou um tigre.

Ele se transformou em tigre negro e voltou ao normal. Durga riu, um

som alegre que ecoou pelas paredes. Kishan sorriu para ela. Ela olhou

de volta para mim e notou a cobra enrolada em meu braço.

- Ah, Fanindra, meu bichinho.

Ela gesticulou, convidando-me a me aproximar, então dei alguns passos

à frente. A metade superior de Fanindra ganhou vida e ela estendeu o

corpo até a mão da deusa. Durga acariciou afetuosamente a cabeça da

cobra.

- Ainda há trabalho para você, minha querida. Preciso que fique com

Kelsey um pouco mais.

A cobra sibilou de leve e depois relaxou em meu braço, voltando à sua

forma inanimada, mas seus olhos verdes brilhavam suavemente como

jóias enquanto falávamos.

Durga voltou sua atenção para mim.

- Sinto você triste e perturbada, filha. Conte-me a causa de sua dor.

- Ren, o tigre branco, foi feito prisioneiro e não conseguimos encontrá-

lo. Esperávamos que a senhora nos ajudasse a localizá-lo.

Ela me dirigiu um sorriso triste.

- Meu poder é... limitado. Posso aconselhá-la sobre como encontrar o

próximo objeto, mas tenho pouco tempo para qualquer outra coisa.

Uma lágrima desceu pelo meu rosto.

- Mas, sem ele, encontrar os objetos não teria significado para mim.

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Ela estendeu a mão macia até meu rosto e enxugou uma lágrima

brilhante. Vi quando esta endureceu e se transformou num diamante

cintilante na ponta de seu dedo. Ela o deu a Kishan, que ficou

encantado com o presente.

- Você deve ter em mente, Kelsey, que a busca na qual eu a envio não

ajuda apenas seus tigres. Também ajuda toda a Índia. É vital que você

recupere os objetos sagrados.

Funguei e enxuguei os olhos na manga.

Ela sorriu para mim com doçura.

- Não se aflija, querida. Prometo que zelarei por seu tigre branco e o

protegerei do perigo e... oh... eu vejo. - Ela piscou e olhou para a frente,

como se visse algo que não víamos. - Sim... o caminho que você tomar

agora vai ajudá-la a salvar seu tigre. Guarde bem o objeto e não deixe

que ele ou o Fruto Dourado caiam em mãos erradas.

- O que devemos fazer com o Fruto Dourado?

- Por enquanto, ele deverá ajudá-la em sua jornada. Leve-o com você e

use-o com sabedoria.

- O que é o prêmio aéreo que procuramos?

- Para responder a essa pergunta, aqui está alguém que eu quero que

conheça.

Ela ergueu um dedo e apontou para o fundo da sala às nossas costas.

Estalidos ritmados chamaram a nossa atenção.

No canto iluminado pelo luar, uma mulher velha e enrugada estava

sentada num banco de madeira. Tufos de seu cabelo grisalho escapavam

de um lenço vermelho desbotado. Ela usava um vestido simples

marrom, de tecido rústico, com um avental branco. À sua frente havia

um pequeno tear. Observei em silêncio enquanto ela tirava bonitos fios

de um grande cesto trançado e os torcia ao redor da lançadeira. Esta

puxava os fios para a frente e para trás no tear.

Após um momento, perguntei:

- Vovó, o que a senhora está tecendo?

Ela respondeu numa voz gentil, mas cansada:

- O mundo, minha jovem. Eu teço o mundo.

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- Seus fios são lindos. Nunca vi cores como essas.

Ela deu uma risada estridente.

- Uso fios de teia de aranha para deixá-lo leve, asas de fada para fazê-lo

cintilar, arco-íris para torná-lo iridescente e nuvens para torná-lo

macio. Venha, sinta o tecido.

Segurei a mão de Kishan, puxando-o mais para perto, e então estiquei

meus dedos para tocar o material. Ele vibrou e estalou.

- É poderoso!

- Sim, há um grande poder aqui, mas preciso ensiná-la duas coisas sobre

a arte da tecelagem.

- E o que é, vovó?

- Estes fios longos e verticais são chamados de urdidura e os coloridos e

horizontais são chamados de trama. Os fios da urdidura são grossos,

fortes e normalmente simples, mas, sem eles, a trama não tem onde se

agarrar. Seus tigres se agarram em você; precisam de você. Sem você,

eles seriam levados pelos ventos do mundo.

Assenti com a cabeça, mostrando que entendera.

- O que mais a senhora precisa me ensinar?

Ela se inclinou para mais perto de mim e sussurrou com ar

conspiratório:

- Tecer com maestria produz tecidos excepcionais e eu teci fios

poderosos nesta peça. Um bom tecido deve ser versátil. Atender a

muitos propósitos. Este aqui pode recolher, criar e proteger. Guarde-o

bem.

- Muito obrigada, vovó.

- Mais uma coisa. Você deve aprender a dar um passo para trás e

visualizar a peça como um todo. Se focaliza apenas o fio que lhe é dado,

perde de vista o que ele pode vir a ser. Durga tem a capacidade de ver a

peça do início ao fim. Confie nela.

Assenti com a cabeça e ela continuou:

- Não se deixe abater quando o fio não servir ou parecer feio. Espere e

observe. Seja paciente e dedicada. A medida que os fios forem se

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torcendo e virando, vai começar a entender e verá o padrão por fim se

materializar em todo o seu esplendor.

Soltei a mão de Kishan para poder me aproximar da velha mulher.

Beijei-lhe a face suave e enrugada e lhe agradeci mais uma vez. Seus

olhos brilharam e a lançadeira voltou a se movimentar. Os estalidos

ritmados continuaram quando ela lentamente foi desaparecendo de

vista. Logo ouvíamos apenas os sons do tear e depois mais nada.

Viramo-nos para Durga, que afagava a cabeça de seu tigre e sorria para

nós.

- Vai confiar que cuidarei de seu tigre, Kelsey?

- Sim, vou.

Durga deu um sorriso radiante.

- Fabuloso! Agora, antes de me despedir de você, vou lhe conceder outro

presente.

Ela começou a girar as armas em seus braços e deteve-se no arco e

flecha. Levantou o arco e Kishan deu um passo à frente.

- Paciência, meu tigre de ébano. Tenho um presente para você também,

mas este... é para minha filha.

Ela me entregou um arco dourado de tamanho médio com uma aljava

de flechas de ponta dourada.

Fiz uma mesura.

- Muito obrigada, Deusa.

Ela voltou-se para Kishan e sorriu.

- Agora vou escolher algo para você.

Ele fez uma profunda reverência e sorriu sedutoramente para ela.

- Aceitarei com alegria qualquer coisa que me oferecer, minha linda

deusa.

Revirei os olhos.

Ela balançou a cabeça ligeiramente em reconhecimento e não pude ter

certeza, mas pensei ver uma covinha onde ela contraiu a boca num

breve sorriso.

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Olhei para Kishan, que estava sorrindo como um bobo, enfeitiçado por

Durga. Ele era lindo. Zeus não tinha romances com mortais? Hum, tenho que perguntar ao Sr. Kadam sobre isso quando voltarmos. Durga entregou a Kishan um disco dourado e ele pareceu encantado.

Teve até mesmo a ousadia de dar um beijo afetuoso nas costas de sua

mão. Tem alguém aí mestre em passar dos limites? Não fiquei com

ciúme, mas chocada por ele agir daquela maneira com uma deusa.

Os dois se olhavam, então pigarreei.

- Arrã. Então, existe algo mais de que precisamos saber antes de partir?

Estávamos pensando em Lhasa e no Himalaia. Procurar a Arca de Noé e

Shangri-lá.

Durga piscou e voltou ao assunto. Sua voz metálica ecoou.

- Sim... - Sua voz começou a sumir e seus braços retornaram à posição

anterior. - Cuidado com as quatro casas. Elas irão testá-la. Use o que

aprendeu. Quando conseguir o objeto, ele vai ajudá-la a fugir e a

encontrar quem você ama. Use-o para...

A deusa congelou. Sua pele macia enrijeceu-se, transformando-se em

pedra.

- Droga! Tenho que fazer as perguntas a ela primeiro da próxima vez!

O vento varreu a sala, a estátua começou a se mover e logo estava

novamente voltada para a rua.

- Alô? Terra chamando Kishan.

Ele ficou parado olhando até Durga desaparecer de vista.

- Ela é... excepcional!

Dei risada.

- É. Qual é o seu problema com mulheres inalcançáveis?

A luz se apagou dos seus olhos e ele visivelmente murchou. Fez uma

careta.

- Tem razão, Kelsey. - Ele riu de si mesmo, com sarcasmo. - Talvez eu

encontre um grupo de apoio.

Ri, mas em seguida fiquei triste.

- Desculpe, Kishan. Dizer isso não foi muito legal da minha parte.

Com um sorriso triste, ele estendeu a mão.

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- Não se preocupe, Kells. Ainda tenho você. Lembre-se, você é minha

urdidura e eu sou sua trama.

- Claro, claro. Vamos lá, tigre de ébano - provoquei. - Vamos encontrar

o Sr. Kadam.

Ele sorriu.

- Você primeiro, meu encanto.

Revirei os olhos de novo e comecei a descer os degraus.

- Não flertou o bastante com a deusa? Pode ir parando. Isso não

funciona comigo.

Ele riu e me seguiu escada abaixo.

- Então vou continuar tentando até encontrar algo que funcione.

- Não conte com isso, Casanova.

- Quem é Casanova?

- Deixe para lá.

A lua havia desaparecido por trás das nuvens e as paredes e o chão do

templo estavam cobertos com a mesma fuligem e o mesmo pó de

quando entramos. Kishan pegou de novo minha mão e saímos juntos

para a noite escura.

14

A Estrada da Amizade

Encontramos o Sr. Kadam do lado de fora do templo. Quando

perguntamos se tinha notado a estátua se movendo, ele respondeu que

não. Tampouco sentira o vento. Eu lhe disse que ele deveria ir conosco

da próxima vez. Ele sempre assumia a posição de vigia e afirmou que

achava que Durga só apareceria para mim e os tigres e que sua presença

poderia nos desviar de nossa trajetória.

- Evidentemente, se o senhor fosse conosco, cairia sob o encanto de

Durga, como aconteceu com Kishan - provoquei. - E então eu teria que

tirar os dois de sua letargia amorosa.

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Kishan fez cara feia para mim, enquanto o rosto do Sr. Kadam se

iluminou, encantado.

- Então a deusa é bonita?

- É normal - respondi.

Kishan começou a tagarelar.

- Sua beleza supera a de todas as outras mulheres. Os lábios de rubi, os

braços macios e os longos cabelos negros bastariam para fazer qualquer

homem perder o controle de suas faculdades.

- Ah, por favor! - desdenhei. - Que exagero! Ren nunca reagiu assim.

Kishan me encarou.

- Talvez Ren tivesse um motivo para olhar para outro lado.

O Sr. Kadam riu.

- Gostaria muito de conhecê-la, se fosse possível.

- Não custa nada tentar. O pior que pode acontecer é não acontecer

nada. Nesse caso, o senhor iria embora e nós tentaríamos de novo.

Quando chegamos ao hotel, mostramos ao Sr. Kadam nossas novas

armas. Kishan continuava falando que a deusa isso e a deusa aquilo, girando seu disco na luz para que o ouro cintilante refletisse nas paredes

do quarto do hotel. Escutei por algum tempo e ouvi o Sr. Kadam

explicar que o disco representava o sol, que era a fonte de toda vida, e

que o círculo simbolizava o ciclo de vida, morte e renascimento. Então

me desliguei, para não ouvir mais os constantes elogios de Kishan a

Durga e suas feições adoráveis e femininas, o que me dava náuseas.

Encostei-me no batente da porta que ligava os quartos dos dois, revirei

os olhos e, durante um intervalo no tributo de Kishan a Durga, ironizei:

- Você vai gritar como Xena quando lançar o disco? Não! Melhor que

isso! Vamos comprar uma saia de couro para você.

Os olhos dourados de Kishan se voltaram para mim.

- Espero que suas flechas sejam tão afiadas quanto sua língua, Kelsey.

Ele veio na minha direção. Não me movi, bloqueando-lhe a passagem,

mas ele simplesmente me segurou e me colocou de lado. Deixando as

mãos em meus braços por um instante, ele se inclinou e sussurrou:

- Talvez você esteja com ciúme, bilauta.

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Então fechou a porta de ligação entre os quartos, deixando-me sozinha

com o Sr. Kadam.

Perturbada, joguei-me numa cadeira e resmunguei:

- Eu não estou com ciúme.

O Sr. Kadam me olhou, pensativo.

- Não, não está. Pelo menos não da maneira que ele poderia esperar.

Eu me endireitei na cadeira.

- O que o senhor quer dizer?

- A senhorita o protege.

Resfoleguei.

- De quê? De suas próprias ilusões?

Ele riu.

- Não. É evidente que a senhorita se importa com ele. Quer que ele

encontre a felicidade. E, como Ren não está aqui, todo o seu instinto

maternal está focado em Kishan.

- Não acho que o que sinto por Ren seja maternal.

- Bem, é em parte, pelo menos. Lembra-se do que a tecelã lhe disse

sobre os diferentes fios?

- Sim. Ela disse que sou a urdidura.

- Exatamente. Os fios de Ren e Kishan se entrelaçam ao seu redor. Sem

sua força, o tecido não ficaria completo.

- Hum.

- Srta. Kelsey, sabe algo a respeito de leões?

- Muito pouco.

- O leão não caça sozinho. Sem a leoa, ele morreria.

- Não sei se estou entendendo.

- Estou dizendo que, sem a leoa, o leão morre. Kishan precisa da

senhorita. Talvez ainda mais do que Ren.

- Mas eu não posso ser tudo para os dois.

- Não estou pedindo que seja. Só estou dizendo que Kishan precisa de...

esperança. Algo a que se agarrar.

- Posso ser amiga dele. Até posso caçar para ele. Mas amo Ren. Não vou

desistir dele.

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O Sr. Kadam bateu de leve na minha mão.

- Uma pessoa amiga, alguém que se importe com ele, que o ame e que

não o deixe desistir de si mesmo, é disso que Kishan precisa.

- Mas não foi isso que o senhor fez por ele durante todos esses anos?

- Ah, sim. Claro. Mas um rapaz precisa de uma moça que acredite nele.

Não de um velho rabugento.

Levantei e o abracei.

- Velho e rabugento são duas palavras que eu nunca usaria para

descrevê-lo. Boa noite.

- Boa noite, Srta. Kelsey. Partiremos bem cedo amanhã, portanto

descanse bem.

Naquela noite sonhei com os dois irmãos. Eles estavam diante de mim e

Lokesh me ordenava que escolhesse qual deles viveria e qual morreria.

Ren sorriu, triste, e acenou com a cabeça na direção de Kishan. O rosto

de Kishan se contraiu e ele desviou o olhar de mim, sabendo que eu não

o escolheria. Eu ainda ponderava minha escolha quando a ligação do

serviço de despertador do hotel me acordou com um susto.

Arrumei minhas coisas e encontrei o Sr. Kadam e Kishan no saguão.

Dirigimos em silêncio por cerca de 20 quilômetros até Katmandu, a

maior cidade e capital do Nepal. Kishan e eu permanecemos no Jeep

enquanto o Sr. Kadam entrou num prédio para pegar os últimos

documentos de que precisávamos para a viagem pelo Himalaia.

- Kishan, eu queria pedir desculpas por ter agido como uma idiota

ontem. Se você quer se apaixonar por uma deusa, vá em frente.

Ele bufou.

- Não estou me apaixonando por uma deusa, Kells. Não se preocupe

comigo.

- Bem, ainda assim. Fui insensível.

Ele deu de ombros.

- As mulheres não gostam de ouvir os homens falarem sobre outras

mulheres. Foi rude da minha parte agir daquele jeito. Confesso que só

elogiei tanto a beleza dela para irritar você. Eu me virei no banco.

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- O quê? Por que você faria isso?

- Queria que você sentisse ciúme e, quando não sentiu, isso... me

aborreceu.

- Ah, Kishan, você sabe que eu ainda...

- Eu sei. Eu sei. Não precisa me lembrar disso. Você ainda ama Ren.

- Amo. Mas isso não significa que não me importe com você. Sou sua

urdidura também, lembra?

Seu rosto se iluminou.

- É verdade.

- Que bom. Não se esqueça disso. Vamos todos ter um final feliz, está

bem?

Estendi minha mão para ele, que a segurou entre as dele e sorriu.

- Promete?

Retribuí o sorriso.

- Prometo.

- Vou cobrar. Talvez eu devesse registrar isso por escrito. Eu, Kelsey, prometo a Kishan que ele terá o final feliz que procura. Devo definir os

termos para você agora?

- Ah, não. Prefiro deixar meio vago por enquanto.

- Tudo bem. Enquanto isso vou criar uma lista mental do que constitui

um final feliz e depois informo a você.

- Faça isso.

Ele beijou meus dedos com atrevimento, segurando-os com força

enquanto eu tentava livrar minha mão.

- Kishan!

Ele riu quando finalmente me soltou e então se transformou em tigre

antes que eu pudesse repreendê-lo.

- Covarde - murmurei, virando-me para a frente no banco.

Eu o ouvi rosnar baixinho, mas o ignorei.

Durante os minutos seguintes quebrei a cabeça tentando encontrar um

final feliz para Kishan. Àquela altura, meu próprio final feliz não estava

garantido. O melhor que pude encontrar foi a realização das quatro

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tarefas, para que os irmãos não precisassem mais ser tigres. Esperava

que, ao concluí-las, os finais felizes viessem por si mesmos.

O Sr. Kadam voltou e disse:

- Recebemos permissão para fazer o percurso da Estrada da Amizade até

o Tibete. Isso foi praticamente um milagre.

- Uau! Como o senhor conseguiu?

- Um alto funcionário do governo chinês me deve um favor. Ainda

assim, temos que respeitar as paradas turísticas e nos apresentar em

todos os postos ao longo do caminho para que eles possam ficar de olho

em nós. Partimos imediatamente. Nossa primeira parada é em Neyalam,

que fica a cerca de 150 quilômetros daqui. Devemos levar umas cinco

horas para chegar à fronteira da China com o Nepal.

- Cinco horas? Espere aí: 150 quilômetros? Isso dá aproximadamente 30

quilômetros por hora. Por que demora tanto?

O Sr. Kadam deu uma risadinha.

- Vai ver.

Ele me entregou o guia de viagem, o mapa e alguns folhetos para que eu

pudesse acompanhar e ajudá-lo no percurso. Eu pensava que as

montanhas Rochosas fossem imensas, mas, comparar o Himalaia às

Rochosas era como comparar as Rochosas aos montes Apalaches,

literalmente montanhas a montinhos de terra. Os picos estavam

cobertos de neve, embora estivéssemos no início de maio.

Geleiras rochosas elevavam-se diante de nós e o Sr. Kadam me disse que

a paisagem se transforma em tundra e depois em gelo permanente e

neve um pouco mais acima. As árvores eram pequenas e esparsas. A

maior parte do solo era coberta por gramíneas, arbustos anões e musgo.

Ele disse que havia algumas florestas de coníferas em outras partes do

Himalaia, mas passaríamos principalmente por pradarias.

Quando ele disse "Vai ver", não estava brincando. Estávamos subindo as

montanhas a cerca de 15 quilômetros por hora. A estrada não se

encontrava exatamente em boas condições e sacolejávamos e

desviávamos de buracos e às vezes de rebanhos de iaques e ovelhas.

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Para passar o tempo perguntei ao Sr. Kadam sobre a primeira empresa

que ele adquiriu.

- Foi a Companhia de Comércio da índia Oriental. A empresa foi

fundada antes de eu nascer, no início do século XVII, mas se tornou um

negócio muito grande èm meados do século XVIII.

- Que tipo de coisas o senhor comercializava?

- Ah, uma porção delas. Tecidos... seda, principalmente... chá, índigo,

especiarias, salitre e ópio.

- Sr. Kadam! O senhor era traficante de drogas? - brinquei.

Ele fez uma careta.

- Não na atual definição do termo. Lembre-se de que na época o ópio era

considerado um produto medicinal. E no início eu de fato transportava

a droga. Eu possuía diversos barcos e organizava grandes caravanas.

Quando a China proibiu o comércio do ópio, desencadeando as Guerras

do Ópio, parei de transportá-lo e concentrei a maior parte dos negócios

no comércio de especiarias.

- Ah, então é por isso que o senhor gosta tanto de moer os condimentos

que usa?

Ele sorriu.

- Sim, ainda gosto de procurar os produtos de melhor qualidade e usá-

los quando cozinho.

- Então o senhor sempre esteve no negócio de cargas.

- Acho que sim. Nunca pensei nisso dessa maneira.

- Tenho duas perguntas. O senhor ainda tem barcos? Sei que conserva

um avião daquela empresa, mas ficou também com algum barco? Seria

interessante. A segunda pergunta é: o que é salitre?

- O salitre também é conhecido como nitrato de potássio. Era usado para

fabricar pólvora e também é, ironicamente, um conservante de

alimentos. E, em resposta à sua outra pergunta, os meninos têm um

barco, mas não um dos meus barcos de transporte originais.

- Que tipo de barco?

- Um pequeno iate.

- Ah, eu deveria ter adivinhado.

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Paramos perto da fronteira entre China e Nepal, numa cidade chamada

Zhangmu, onde tivemos que preencher formulários novamente. Então,

após um dia inteiro dirigindo e percorrendo apenas um total de 155

quilômetros, chegamos a Neyalam e nos hospedamos numa pequena

pousada para pernoitar.

No dia seguinte subimos ainda mais. Um dos folhetos dizia que, ao fim

do dia, estaríamos acima dos 4 mil metros. Nessa parte da viagem,

vimos seis das mais importantes montanhas do Himalaia, incluindo o

monte Everest, e paramos para admirar a visão magnífica do monte

Xixapangma.

No terceiro dia comecei a me sentir um pouco enjoada e o Sr. Kadam

disse que podia ser efeito da altitude. Ele explicou que isso era comum

quando se viajava acima dos 3.500 metros.

- Deve passar. A maioria das pessoas melhora em algumas horas, mas

para outras pode demorar vários dias até o organismo se acostumar com

a alta altitude.

Suspirei e inclinei meu assento para trás, a fim de descansar a cabeça,

pois me sentia tonta. O restante do dia passou num borrão. Fiquei

decepcionada por não poder apreciar o cenário. Seguimos até Xigatse,

onde o Sr. Kadam e Kishan visitaram o mosteiro de Tashilumpo

enquanto eu permanecia no pequeno hotel em que nos hospedamos.

Quando eles voltaram trazendo meu jantar, virei para o outro lado e fiz

sinal para que fossem embora. O Sr. Kadam foi, mas Kishan ficou.

- Não gosto de vê-la doente, Kells. O que posso fazer?

- Acho que nada.

Ele me deixou sozinha por um minuto, mas logo voltou, pressionando

um pano úmido em minha testa.

- Olhe, trouxe um pouco de água com limão. O Sr. Kadam disse que

ajuda a hidratar.

Kishan me obrigou a beber o copo inteiro e depois me serviu outro da

garrafa de água que eles haviam comprado. Só me deixou parar depois

do terceiro copo.

- Como está sentindo agora?

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- Melhor, obrigada. Mas minha cabeça ainda está latejando. Tem

aspirina?

Kishan encontrou um pequeno frasco. Engoli dois comprimidos, sentei-

-me e coloquei os cotovelos sobre os joelhos, massageando as têmporas

com os dedos.

Ele me observou em silêncio por um instante e depois disse:

- Deixe-me ajudar.

Kishan me empurrou um pouco para a frente a fim de se posicionar

atrás de mim. Pôs as mãos quentes nas laterais da minha cabeça e

começou a massagear minhas têmporas. Depois de alguns minutos,

passou para o couro cabeludo e para a nuca, eliminando com a

massagem a rigidez resultante de três dias sentada imóvel num carro.

Quando ele chegou aos ombros, perguntei:

- Onde você e Ren aprenderam a fazer massagem? Os dois são muito

bons nisso.

Ele se deteve por um momento e depois lentamente recomeçou,

enquanto falava.

- Eu não sabia que Ren tinha feito massagem em você. Nossa mãe nos

ensinou. Ela recebeu treinamento especializado.

- Ah. Bem, é maravilhoso. Suas mãos são tão quentes... Minha dor de

cabeça quase desapareceu.

- Ótimo. Deite-se e relaxe. Vou massagear agora os braços e os pés.

- Não precisa. Estou melhor agora.

- Relaxe. Feche os olhos e deixe sua mente vagar. Nossa mãe nos

ensinou que a massagem pode levar embora as dores do corpo e do

espírito.

Ele começou a trabalhar no braço esquerdo e passou um bom tempo na

mão.

- Kishan, como foi ser um tigre por todos esses anos?

Ele ficou em silêncio durante um bom tempo. Abri um dos olhos e o

fitei. Ele tinha os olhos fixos no espaço entre meu polegar e o indicador.

Seus olhos dourados piscaram e ele olhou para o meu rosto.

- Pare de espiar, Kells. Estou pensando.

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Obediente, tornei a fechar os olhos e esperei pacientemente por sua

resposta.

- É como se o tigre e o homem estivessem sempre lutando um contra o

outro. Depois que meus pais morreram, Ren foi capturado e o Sr.

Kadam partiu à sua procura. Não havia motivo nenhum para ser

humano. Deixei o tigre assumir o controle. Foi quase como se eu o

estivesse observando à distância. Sentia-me completamente alienado do

meu ambiente. O animal dominava e eu não me importava.

Ele passou para os pés. No início senti cócegas, mas depois soltei um

profundo suspiro enquanto ele massageava meus dedos.

- Você deve ter se sentido tão solitário...

- Eu corria, caçava... e fazia tudo por instinto. Até hoje fico surpreso por

não ter perdido completamente minha natureza humana.

- Uma vez Ren me disse que estar longe de mim, estar sozinho, fazia

com que se sentisse mais como um animal que como um homem.

- É verdade. O tigre é forte e acho extremamente difícil manter um

equilíbrio, especialmente quando se é tigre a maior parte do dia.

- Hoje é diferente?

-É.

- Como?

- Estou recuperando minha natureza humana aos poucos. Ser tigre é

fácil; ser homem é que é difícil. Preciso interagir com pessoas, aprender

sobre o mundo e encontrar um modo de lidar com o passado.

- De certo modo, Ren teve mais sorte que você, embora você fosse livre.

Ele inclinou a cabeça e passou para meu outro pé.

- Por que você acha isso?

- Porque ele estava sempre com pessoas. Ele nunca se sentiu só como

você. Quero dizer, ele foi aprisionado, foi ferido, teve que trabalhar no

circo, mas ainda era uma parte da vida humana. Ainda teve a

oportunidade de aprender, embora de maneira limitada.

Ele riu com ironia.

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- Você se esquece, Kelsey, de que eu poderia ter posto fim à minha

solidão a qualquer momento e escolhi não fazê-lo. Ele era prisioneiro,

mas eu estava preso numa armadilha que eu mesmo preparei.

- Não entendo como pôde fazer isso consigo mesmo. Você tem tanto a

oferecer ao mundo.

Ele suspirou.

- Eu mereci ser punido.

- Você não mereceu ser punido. Precisa parar de pensar assim. Quero

que diga a si mesmo que é um homem bom e que merece ser feliz.

Ele sorriu.

- Tudo bem. Sou um homem bom e mereço ser feliz. Satisfeita?

- Por enquanto.

- Se isso a deixa feliz, vou tentar mudar minha postura.

- Muito obrigada.

- De nada.

Ele passou para o meu outro braço e começou a massagear a palma da

mão.

- E o que mudou para você? Conseguir de volta seis horas como homem

fez diferença suficiente para você desejar viver de novo?

- Não.

-Não?

- O que mudou minha perspectiva foi conhecer uma linda garota junto

de uma cachoeira que disse que sabia quem eu era e o que eu era.

-Ah.

- Foi ela quem me resgatou da minha pele de tigre e me trouxe de volta

à superfície. E, não importa o que aconteça... quero que ela saiba que

serei eternamente grato por isso.

Ele levantou minha mão e beijou a palma. Sorriu de modo encantador e

colocou meu braço de volta na cama.

Olhei em seus olhos dourados e sinceros e abri a boca para explicar

novamente que eu amava Ren. Sua expressão mudou. Ele assumiu um

ar de determinação e disse:

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- Shh. Não fale. Sem palavras de protesto esta noite. Eu lhe prometo,

Kelsey, que vou fazer tudo que puder para reunir vocês dois e tentar ser

feliz por você, mas isso não significa que será fácil deixar de lado meus

sentimentos.

- Tudo bem.

- Boa noite, Kells.

Ele me deu um beijo na testa, apagou a luz, saiu e fechou

silenciosamente a porta de ligação entre os quartos.

No dia seguinte eu me sentia melhor, contente por ter me recuperado

do enjôo. Paramos em Gyantse, que ficava a apenas duas horas de

distância, mas, como estava no trajeto turístico, esperava-se que os

turistas passassem o dia lá, então tivemos que fazê-lo também. O Sr.

Kadam disse que já estivera ali antes, que aquela costumava ser uma

cidade importante na rota de comércio de especiarias. Paramos para ver

o stupa Kumbum, onde funcionava uma escola de budismo tibetano, e

no almoço saboreamos pratos da culinária de Sichuan num restaurante

local. A cidade era bonita e foi gostoso sair do carro e caminhar um

pouco.

Passamos aquela noite em outro hotel, mas Kishan permaneceu a maior

parte do tempo como tigre, enquanto o Sr. Kadam tentava me ensinar a

jogar xadrez. Eu não conseguia absorver as regras do jogo. Depois que

ele me derrotou pela terceira vez num piscar de olhos, eu disse:

- Desculpe, acho que não sou boa em planejar minhas jogadas pensando

adiante. Um dia desses vou ensiná-lo a jogar Colonizadores de Catan.

Sorrindo, pensei em Li, em seus amigos e em Yó Zhi. Perguntei-me se

Li teria tentado entrar em contato comigo. O Sr. Kadam desligara todos

os nossos telefones e havia comprado celulares com números novos

assim que chegamos à índia. Disse que era mais seguro não contatar

ninguém no Oregon.

A cada duas semanas, aproximadamente, eu escrevia para meus pais

adotivos e lhes dizia que estávamos num lugar onde não havia sinal de

telefone celular. O Sr. Kadam enviava as cartas de locais distantes, de

modo que não havia como identificar de onde vinham. Nunca lhes dei

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um endereço para resposta, dizendo-lhes que estávamos sempre em

trânsito.

Eles usavam uma caixa postal para responder às minhas cartas e Nilima

pegava a correspondência e lia para mim ao telefone. O Sr. Kadam dizia

o que seria adequado eu incluir nas cartas. Também tinha algumas

pessoas vigiando discretamente minha família adotiva. Eles haviam

retornado das férias no Havaí, bronzeados e com lindas lembranças, e

encontraram a casa intacta. Felizmente, parecia que Lokesh não os

achara.

No quinto dia de viagem na Estrada da Amizade, paramos para ver o

lago Yamdrok. Seu apelido era lago turquesa, por razões óbvias. Ele

cintilava como uma joia brilhante contra o pano de fundo das

montanhas de picos cobertos de neve que o alimentavam.

O Sr. Kadam contou que o local era considerado sagrado pelo povo

tibetano, que freqüentemente fazia peregrinações ao lago. Eles

acreditavam que aquele era o lar de divindades protetoras que

cuidavam do lago e asseguravam que ele não secasse. Se secasse,

significaria o fim do Tibete.

Kishan e eu esperamos enquanto o Sr. Kadam conversava

animadamente com alguns pescadores locais que pareciam estar

tentando lhe vender o produto do trabalho do dia.

Quando voltamos para o carro, perguntei:

- Sr. Kadam, quantas línguas exatamente o senhor fala?

- Hum... Não tenho certeza. Conheço as principais necessárias para o

comércio com a Europa: espanhol, francês, português, inglês e alemão.

Posso me comunicar bem na maior parte dos idiomas da Ásia. Sou um

pouco fraco nas línguas da Rússia e nas escandinavas, não sei nada das

línguas africanas e só conheço cerca de metade dos idiomas falados na

índia.

- Metade? - perguntei, confusa. - Quantas línguas existem na Índia?

- Literalmente centenas, modernas e clássicas. Embora apenas cerca de

30 sejam oficialmente reconhecidas pelo governo indiano.

Eu o olhava, espantada.

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- Claro que só tenho um conhecimento superficial da maioria delas.

Muitas são dialetos locais que aprendi ao longo dos anos. O idioma mais

falado é o híndi.

Atravessamos mais dois desfiladeiros e finalmente começamos a descida

em direção ao planalto tibetano. O Sr. Kadam falava para manter minha

mente ocupada durante a descida pela montanha, pois eu estava me

sentindo um pouco enjoada.

- O planalto tibetano é chamado às vezes de Teto do Mundo, por causa

de sua imensa altitude. Tem, em média, 4.500 metros. É o terceiro local

menos povoado no mundo, sendo o primeiro a Antártica e o norte da

Groenlândia, o segundo. Abriga diversos lagos grandes de água salobra.

Suspirei e fechei os olhos, mas não ajudou.

Tentei me concentrar em outra coisa e perguntei:

- Sr. Kadam, o que é água salobra?

- A salinidade em massas de água vai de doce a salgada, passando por

salobra. Um lago salobro como, por exemplo, o mar Cáspio, fica num

ponto entre água salgada e água doce. Em geral, a água salobra é

encontrada em estuários onde um mar de água salgada encontra um rio

ou uma corrente de água doce.

Kishan rosnou baixinho e o Sr. Kadam interrompeu a aula.

- Veja, Srta. Kelsey. Estamos quase lá.

Ele estava certo e, após alguns minutos numa estrada normal, plana,

apenas um pouco esburacada, me senti muito melhor. Viajamos por

mais umas duas horas até a cidade de Lhasa.

15

Yin-yang

O Sr. Kadam conseguira marcar uma reunião com uma autoridade do

gabinete tibetano do Dalai-Lama, pois um encontro pessoal era

impossível. O Sr. Kadam tentou manter o motivo da visita vago para

não revelar a funcionários mais detalhes do que o necessário. Não era o

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ideal, mas teria que bastar. Conseguimos um horário na segunda-feira, o

que nos dava três dias de espera.

Para passar o tempo, o Sr. Kadam nos levou num passeio relâmpago

pelo Tibete. Vimos o mosteiro de Rongphu, o Palácio de Potala, o

Templo Jokhang, os mosteiros de Sera e Drepung e também fizemos

compras no mercado de Barkhor.

Gostei de visitar as atrações turísticas e de estar com Kishan e o Sr.

Kadam, no entanto, por dentro, a tristeza ainda me dominava. A dor

melancólica da solidão me invadia no fim do dia. Ainda sonhava com

Ren todas as noites. Embora confiasse que Durga cumpriria sua

promessa e cuidaria dele por mim, queria poder eu mesma estar com

ele.

No sábado o Sr. Kadam nos levou para fora dos limites da cidade a fim

de treinarmos com as novas armas. Ele começou com Kishan e o disco.

O disco era pesado demais para o Sr. Kadam, assim como fora a gada, mas parecia leve para Kishan e para mim.

Quando o Sr. Kadam voltou sua atenção para mim, eu estava pronta. Ele

me ensinou primeiro como encordoar o arco.

- A força que você usa para esticar a corda é o que determina o poder do

arco.

Ele tentou tensionar meu arco, mas descobriu que não conseguia.

Kishan o fez com facilidade. O Sr. Kadam olhou para o arco por um

minuto e pediu a Kishan que me ensinasse.

- Por que as flechas são tão pequenas? - perguntei.

- O comprimento das flechas é determinado pelo tamanho do arqueiro -

respondeu Kishan. - É o comprimento da puxada e o seu é bem

pequeno. Portanto, estas flechas devem lhe servir perfeitamente. O

comprimento do arco também é determinado por sua altura. Um

arqueiro não pode ter um arco que seja difícil de manejar.

Concordei com a cabeça.

Kishan continuou sua explicação das várias partes do arco, inclusive o

encaixe da corda, o descanso de flecha - onde ela fica apoiada e é

puxada para trás - e a corda. Por fim, chegou a hora de experimentá-lo.

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- Assuma a posição de tiro colocando seu pé não dominante cerca de 13

a 25 centímetros à frente - disse Kishan. - Mantenha as pernas afastadas

na direção dos ombros.

Segui suas instruções. Embora fosse mais difícil para mim do que para

Kishan, consegui dar conta do recado.

- Muito bem. Encaixe sua flecha e apoie-a no seu polegar com a pena

apontando para fora. Segure a corda com seus três primeiros dedos e

passe a flecha entre os dedos indicador e médio. Agora trave o braço do

arco e olhe para o alvo. Puxe até que seu dedo polegar toque sua orelha

e a ponta do seu dedo toque o canto da boca. Solte a flecha.

Ele demonstrou o processo inteiro algumas vezes e acertou duas flechas

numa árvore distante. Imitei seus movimentos. Quando cheguei à parte

da puxada, minha mão tremeu um pouco. Ele se posicionou atrás de

mim e guiou minha mão quando puxei a corda.

Quando eu estava na posição certa, ele disse:

- Ok, você está pronta. Agora mire e dispare.

Eu soltei e senti um estalo quando o arco disparou minha flecha com

um som vibrante. A flecha mergulhou na terra macia ao pé da árvore.

O Sr. Kadam exclamou:

- Muito bom! Uma primeira tentativa maravilhosa, Srta. Kelsey!

Kishan me fez repetir muitas vezes. Rapidamente desenvolvi habilidade

suficiente para atingir o tronco da árvore, como Kishan, embora não

exatamente no centro. O Sr. Kadam mostrou-se espantado com meu

progresso, que atribuiu ao meu treinamento com o poder do raio. Ele

logo notou que as flechas nunca acabavam e que em algum momento

desapareciam do alvo.

Kishan estava treinando com seu disco novamente quando fiz um

intervalo. Bebi um pouco de água enquanto o observava.

Apontando-o com um gesto da cabeça, perguntei ao Sr. Kadam:

- Como ele está se saindo com esse disco?

O Sr. Kadam riu.

- Tecnicamente, Srta. Kelsey, não é um disco. O disco é usado nas

Olimpíadas. O que Kishan está segurando é chamado de chakram. Tem

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a forma de um disco, mas, se olhar com cuidado, a borda externa é

afiada como uma navalha. É uma arma de arremesso. Na verdade é a

arma predileta do deus indiano Vishnu. É muito valiosa quando usada

por alguém com habilidade e Kishan, felizmente, foi treinado para usá-

la, embora não pratique há muito tempo.

A arma de Kishan era feita de ouro com diamantes incrustados no

metal, semelhante à gada. Tinha uma alça de couro curvada, como um

símbolo yin-yang. A borda metálica tinha cerca de cinco centímetros

de largura e era afiada. Fiquei olhando-o praticar e ele jamais pegava na

borda da lâmina. Ele agarrava o disco pela alça ou na parte interna do

círculo.

- Eles normalmente voltam assim? Como um bumerangue?

- Não, Srta. Kelsey. - O Sr. Kadam alisou a barba, pensativo. - Observe.

Está vendo? Mesmo que ele mire uma árvore, o disco abre um bom

corte denteado no tronco e depois gira de volta para Kishan. Nunca vi

isso antes. Em geral, pode ser manejando como uma espada numa luta

corporal ou pode ser arremessado à distância para neutralizar um

inimigo, mas permanece cravado no alvo até ser retirado.

- Parece que reduz a velocidade quando se aproxima dele.

Observamos mais alguns arremessos.

- Sim, creio que esteja correta. Ele desacelera na chegada para que

Kishan o apanhe com mais facilidade. Uma arma e tanto.

Mais tarde naquela noite, quando voltamos ao hotel, Kishan colocou

um jogo de tabuleiro sobre a mesa após o jantar. Eu ri.

- Vamos jogar ludo?

Kishan sorriu.

- Não exatamente. Este aqui se chama Pachisi, mas se joga da mesma

forma.

Tiramos as peças e montamos o tabuleiro. Quando viu o jogo, o Sr.

Kadam bateu palmas e seus olhos piscaram com um brilho competitivo.

- Ah, Kishan, meu jogo favorito. Lembra-se de quando jogávamos com

seus pais?

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- Como poderia me esquecer? Você derrotou meu pai, que suportou

bem, mas, quando derrotou minha mãe no último lance de dados, achei

que ela iria mandar decapitá-lo.

O Sr. Kadam alisou a barba.

- Realmente. Ela ficou bastante contrariada.

- Quer dizer que vocês jogavam isso naqueles tempos?

Kishan riu.

- Não assim. Jogamos a versão ao vivo. Em vez de peões, usávamos

gente. Construímos um tabuleiro gigante e montamos uma base a que

todos tinham que chegar. Era divertido. Os jogadores usavam nossas

cores. Papai preferia azul e mamãe, verde. Acho que você foi vermelho

naquele dia, Kadam, e eu, amarelo.

- E Ren, onde estava?

Kishan pegou uma peça e a girou, pensativo.

- Estava fora, numa viagem diplomática, e Kadam o substituiu.

O Sr. Kadam pigarreou.

- Isso mesmo. Se vocês não se importam, gostaria de ser vermelho de

novo, pois essa cor me deu sorte da última vez que joguei.

Kishan girou o tabuleiro para que o vermelho ficasse de frente para o

Sr. Kadam. Escolhi o amarelo e Kishan, o azul. Jogamos por uma hora.

Nunca tinha visto Kishan tão animado. Parecia um garotinho, sem as

preocupações do mundo sobre seus ombros. Podia facilmente visualizar

aquele homem sério, bonito e orgulhoso como o menino feliz e

despreocupado que cresceu para ficar à sombra do irmão mais velho,

amando-o e admirando-o, mas ao mesmo tempo sentindo que de algum

modo era menos importante, que de algum modo merecia menos. Ao

fim do jogo, Kishan e eu tínhamos deixado o Sr. Kadam na poeira. Só

restava um peão para cada um de nós e o meu estava mais perto da base.

No último lance, Kishan podia ter me eliminado para vencer o jogo. Ele

olhou para o tabuleiro por um momento, estudando-o cuidadosamente.

Os dedos do Sr. Kadam tamborilavam no lábio superior, curvado num

sorrisinho. Os olhos dourados de Kishan encontraram os meus

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rapidamente antes de ele apanhar seu peão e saltar sobre o meu,

passando para uma zona de segurança.

- Kishan, o que está fazendo? Você poderia ter me eliminado e vencido

o jogo. Não viu isso?

Ele se recostou na cadeira e deu de ombros.

- Acho que me passou despercebido. Sua vez, Kelsey.

- Impossível ter deixado passar isso - murmurei. - Então, azar o seu. -

Tirei 12 nos dados e segui direto até a base. - Ah! Derrotei os dois

grandes jogadores da versão viva!

O Sr. Kadam riu.

- Muito bem, Srta. Kelsey. Boa noite.

- Boa noite, Sr. Kadam.

Kishan me ajudou a guardar o jogo.

- Vamos lá, confesse - eu disse. - Por que entregou o jogo? Você não é

bom de blefe, sabia? Pude ler sua expressão. Você viu que podia acabar

comigo e deliberadamente me deixou passar. O que aconteceu com

aquela história de fazer o que fosse preciso para ganhar?

- Ainda faço o que for preciso para ganhar. Talvez, ao perder o jogo, eu

tenha ganhado algo melhor.

Eu ri.

- Ah, é? O que acha que ganhou?

Ele afastou o jogo para o lado da mesa e estendeu a mão para segurar a

minha.

- O que ganhei foi ver você feliz, como costumava ser. Quero ver seu

sorriso voltar. Você sorri e dá risada, mas isso não chega aos seus olhos.

Não a vi feliz de verdade nesses últimos meses.

Apertei a mão dele.

- É difícil. Mas, se Kishan, o amante das competições, está disposto a

entregar o jogo, então, por você, vou tentar.

- Ótimo.

Relutante, ele soltou minha mão e se levantou para se alongar.

Guardei o jogo na prateleira e disse:

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- Kishan, continuo a ter pesadelos com Ren. Acho que Lokesh o está

torturando.

- Também tenho sonhado com ele. Sonhei que me implorava para

protegê-la. - Ele sorriu. - Também me avisou para me comportar.

- É a cara dele dizer isso. Acha que é um sonho ou uma visão?

Ele balançou a cabeça.

- Não sei.

Pressionei as mãos sobre o jogo.

- Todas as vezes que tento salvá-lo ou ajudá-lo a fugir, ele me afasta

como se fosse eu quem estivesse em perigo. Parece real, mas como

podemos saber?

Kishan passou os braços ao meu redor e me abraçou por trás.

- Não tenho certeza, mas sinto que ele ainda está vivo.

- Sinto o mesmo. - Ele se virou para sair. - Kishan?

-Sim?

Sorri.

- Obrigada por me deixar vencer. E por se comportar... quase sempre.

- Ah, mas não se esqueça: esta é só uma batalha. A guerra está longe de

terminar e você vai descobrir que sou um adversário impiedoso. Em qualquer arena.

- Tudo bem - propus. - Então teremos uma revanche. Amanhã.

Ele se curvou ligeiramente.

- Mal posso esperar pelo desafio, bilauta. Boa noite.

- Boa noite, Kishan.

No dia seguinte, no café da manhã, pedi que o Sr. Kadam me falasse

sobre Dalai-Lama, budismo, carma e reencarnação. Kishan escutou em

silêncio, enroscando-se a meus pés na forma de tigre negro.

- Olhe, Srta. Kelsey, carma é a crença de que tudo o que você faz, tudo o

que você diz, toda escolha sua, afeta seu presente ou seu futuro. Aqueles

que acreditam em reencarnação vivem com a esperança de que, se

fizerem boas escolhas e sacrifícios na vida hoje, terão um futuro mais

feliz ou uma posição melhor na próxima vida. Já o darma diz respeito a

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manter a ordem no Universo e seguir as regras que governam toda a

humanidade nos hábitos civis e religiosos.

- Então, se seguir seu darma, você terá um bom carma?

O Sr. Kadam riu.

- Suponho que essa seja uma afirmativa correta. Moksha é o estado do

nirvana. Depois que se passa pelas provas que o mundo mortal oferece e

se ascende a um estado de consciência mais elevada, atinge-se a

iluminação ou moksha. Para essa pessoa, não há renascimento. Ela se

torna um ser espiritual e as coisas mundanas e transitórias não têm mais

importância. As paixões da carne perdem o sentido. A pessoa se funde

ao eterno.

- O senhor é uma espécie de ser eterno agora. Já experimentou moksha? Acha que é possível atingi-lo enquanto se está vivo?

- E uma pergunta interessante. - Ele se recostou na cadeira e refletiu por

um instante. - Apesar de meus muitos anos neste planeta, não, eu não

experimentei a iluminação espiritual total. No entanto, tampouco a

busquei.

Meu relacionamento com o divino talvez seja uma busca que ainda

preciso empreender. Não é, porém, a que eu desejo abraçar neste

momento. Em vez disso, que tal um passeio até o mercado?

Concordei com a cabeça, ansiosa para ver algo novo e me concentrar na

busca mais imediata a meu alcance. O mercado estava cheio de

produtos interessantes. Passamos por bancas vendendo estátuas de

Buda, incensos, jóias, roupas, livros, cartões-postais e malas -

semelhantes em propósito aos rosários católicos. Outros itens

interessantes que vimos à venda foram tigelas e sinos cantantes,

utilizados para produzir sons que ajudavam a concentrar as energias e

empregados também em certas cerimônias religiosas e durante a

meditação. Vi bandeiras de oração e thangkas tecidas ou pintadas. O Sr.

Kadam disse que os estandartes ensinavam mitos, mostravam

importantes eventos históricos ou descreviam a vida de Buda.

Na hora marcada, Kishan, o Sr. Kadam e eu fomos encaminhados ao

gabinete do Dalai-Lama. O fato de termos chegado tão longe era uma

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prova dos recursos do Sr. Kadam, pois, em geral, apenas dignitários

eram recebidos em seu gabinete. Encontramos um homem austero,

usando terno, que indicou que faria uma triagem inicial e que, se nosso

caso demonstrasse urgência suficiente, ele nos recomendaria a um

gabinete superior.

Ele nos convidou a sentar e fiquei contente por deixar o Sr. Kadam

enfrentar a entrevista. O homem fez diversas perguntas sobre nosso

propósito. O Sr. Kadam novamente respondeu de modo vago, dando a

entender que as respostas às perguntas dele não se destinavam aos

ouvidos de qualquer um. O homem ficou intrigado e o pressionou,

querendo respostas. Mas o Sr. Kadam disse que as informações que

precisávamos compartilhar deveriam ser ouvidas somente pelo Mestre

do Oceano.

Diante dessas palavras, notei uma ligeira mudança no olhar do homem.

A entrevista terminou e fomos conduzidos a outra sala, onde fomos

recebidos por uma mulher, que prosseguiu na mesma linha de

interrogatório. O Sr. Kadam repetiu as respostas anteriores,

educadamente, sem dar muitas informações.

- Somos peregrinos que solicitam uma audiência sobre um assunto de

grande importância para o povo indiano.

Ela deslizou a mão pelo ar.

- Explique, por favor. O que exatamente é de grande importância?

Ele sorriu e se inclinou para a frente.

- Estamos numa busca que nos trouxe ao grande país do Tibete. Somente

dentro destas fronteiras podemos encontrar o que procuramos.

- Vocês estão atrás de riquezas? Não vão encontrar nenhuma aqui.

Somos um povo humilde e nada temos de valor.

- Dinheiro? Tesouros? Nosso objetivo não é esse. Viemos em busca do

conhecimento que apenas o Mestre do Oceano detém.

Novamente, quando o Sr. Kadam mencionou o Mestre do Oceano,

nossa interlocutora fez uma pausa abrupta. Levantou-se e nos pediu que

aguardássemos. Meia hora depois fomos guiados até um santuário. As

acomodações eram mais humildes do que nas duas salas anteriores.

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Sentamo-nos em cadeiras de madeira antigas e bambas. Um monge de

ar reservado e nariz pontudo, vestido com uma túnica vermelha,

entrou. Olhou-nos com superioridade por um longo momento e depois

se sentou.

- Pelo que entendi, vocês desejam falar com o Mestre do Oceano.

O Sr. Kadam inclinou a cabeça numa confirmação silenciosa.

- Vocês não informaram seus motivos aos outros. Revelariam a mim?

- As palavras que eu lhe diria seriam as mesmas que disse aos outros -

respondeu o Sr. Kadam.

O monge assentiu bruscamente.

- Entendo. Então, lamento, mas o Mestre do Oceano não tem tempo

para recebê-los, especialmente por terem sido tão reticentes em relação

ao seu objetivo. Se o assunto que desejam discutir for considerado

importante o suficiente, sua mensagem será transmitida.

- Mas é muito importante que falemos com ele - eu me manifestei. -

Revelaríamos nossas intenções, mas é uma questão de confiar nas

pessoas certas.

Pensativo, o monge olhou para cada um de nós.

- Talvez respondam a uma última pergunta.

O Sr. Kadam assentiu.

O monge tirou um medalhão que usava ao redor do pescoço, entregou-

o ao Sr. Kadam e disse:

- O que vê?

O Sr. Kadam respondeu:

- Vejo um desenho semelhante em natureza ao símbolo yin-yang. O yin,

ou lado escuro, representa a mulher e o yang, o lado claro, representa o

homem. Os dois lados estão em perfeito equilíbrio e harmonia um com

o outro.

O monge assentiu como se esperasse essa resposta e estendeu a mão. Sua

expressão nada revelava. Eu sabia que ele ia nos mandar embora.

Apressei-me em intervir.

- Podemos ver o medalhão?

Sua mão deteve-se no ar antes de entregar o medalhão a Kishan.

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Kishan virou o medalhão, frente e verso, por um momento e sussurrou:

- Vejo dois tigres, um negro e outro branco, um perseguindo a cauda do

outro.

O monge apertou as mãos contra a mesa quando peguei o medalhão e

balancei a cabeça com interesse. Olhei rapidamente para o Sr. Kadam e

depois para o monge, que agora se inclinava para a frente, esperando

que eu falasse.

O medalhão era semelhante ao símbolo yin-yang, mas uma linha

dividia o objeto ao meio. O contorno do branco e do preto podia ser

identificado como gatos, então entendi facilmente por que Kishan

dissera que eram tigres, cada um com um ponto estrategicamente

posicionado, como se fosse um olho. As caudas se enroscavam no centro

e se retorciam, juntas, em torno da linha divisória.

Olhei para o monge.

- Vejo parte de uma thangka. Um fio longo e central, que é uma fêmea,

serve como urdidura, e os tigres branco e negro são machos e se

enrolam nela. Eles são a trama que completa o tecido.

O monge se inclinou um pouco mais.

- E como essa thangka é tecida?

- Com uma lançadeira divina.

- O que a thangka representa?

- A thangka é o mundo inteiro. O tecido é a história do mundo.

Ele se recostou na cadeira e passou a mão por sua calva. Devolvi-lhe o

medalhão. Ele o apanhou, olhou-o atentamente por um momento e o

pendurou no pescoço. Em seguida, se levantou.

- Vocês me dão licença por um instante?

O Sr. Kadam assentiu.

- Claro.

Não esperamos muito. A jovem que nos entrevistara mais cedo pediu

que a acompanhássemos. Assim fizemos e fomos acomodados em

quartos confortáveis. Nossas malas foram arrumadas no hotel e trazidas

para nós.

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Jantamos juntos, cedo, e depois o Sr. Kadam e Kishan se retiraram para

seus quartos. Não tendo nada melhor para fazer, fui para o meu

também.

Os monges me trouxeram chá de flor de laranjeira. Foi um sonífero

eficaz, porque logo peguei no sono, mas novamente tive sonhos

agitados com Ren. Neles, Ren começava a se desesperar.

Dessa vez ele se mostrou ainda mais protetor em relação a mim,

exigindo que eu o deixasse imediatamente. Dizia que Lokesh estava se

aproximando e que precisava que eu estivesse o mais distante dele

possível. O sonho parecia tão real que acordei chorando. Não havia

nada que eu pudesse fazer... Tentei me consolar com a promessa de

Durga de cuidar dele.

Na manhã seguinte, Kishan se juntou a mim no bufê do café da manhã.

Eu já estava no fim da fila, servindo-me de iogurte, quando o Sr. Kadam

entrou, parou atrás de mim e perguntou se eu havia dormido bem.

Menti, dizendo que sim, mas ele estudou minhas olheiras e bateu de

leve na minha mão, compreensivo. Sentindo-me culpada, afastei-me do

escrutínio do Sr. Kadam e esperei que o monge à minha frente

terminasse de colocar frutas em seu prato.

A mão do monge tremeu quando ele levantou uma fatia pequena e

escorregadia de manga da tigela. Deixou-a cair no prato e começou o

lento processo de pegar outra. Sem olhar para nós, o velho monge disse:

- Fui informado de que vocês desejam conversar comigo.

Imediatamente, o Sr. Kadam uniu as mãos, curvou-se e disse:

- Namastê, mestre.

Minha mão parou no ar, ainda segurando a colher de iogurte, e

vagarosamente me virei para fitar o rosto sorridente do Mestre do

Oceano.

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16

O Mestre do Oceano

O velho monge sorriu para mim, enquanto eu o olhava boquiaberta.

Felizmente o Sr. Kadam veio em meu socorro e, com delicadeza, me

guiou até uma das mesas.

Kishan já estava comendo, sem se incomodar se eu tinha passado

vergonha. Era de se esperar. Os tigres só pensam em duas coisas: comida e garotas. Em geral, nessa ordem. O Sr. Kadam pousou minha tigela sobre a mesa e puxou uma cadeira

para mim. Sentei-me e mexi meu iogurte, enquanto abservava

disfarçadamente o velho enrugado. Ele cantarolava baixinho,

continuando a encher o prato item a item. Quando terminou, sentou-se

à minha frente, sorriu e se pôs a comer ovos mexidos.

O Sr. Kadam comeu em silêncio. Kishan voltou ao bufê e tornou a

encher o prato. Mantive-me em silêncio e tomei meu suco. Estava

nervosa demais para comer e não sabia se era adequado falar ou fazer

perguntas, então apenas imitei o Sr. Kadam.

Muito tempo depois de nós três terminarmos o café da manhã, ainda

observávamos o Mestre do Oceano comer, levando à boca lentamente

uma pequena porção de cada vez e mastigando de forma metódica.

Quando por fim terminou, limpou a boca e disse:

- Sabem, minhas lembranças prediletas de minha mãe são de vê-la

enrolando os fios para tecer, de ajudá-la a cuidar das ovelhas e a mexer

o mingau do café da manhã. Sempre me lembro dela quando faço essa

refeição.

O Sr. Kadam assentiu, prudentemente. O Mestre do Oceano olhou para

mim e sorriu.

Torcendo para que não houvesse problema em falar, perguntei:

- Então o senhor cresceu numa fazenda? Pensei que os Lamas nascessem

para ser Lamas.

Ele voltou a cabeça em minha direção e respondeu alegremente:

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- Sim é a resposta a ambas as perguntas. Meus pais eram fazendeiros

pobres que cultivavam alimentos para o próprio sustento e vendiam o

pouco que sobrava no mercado. Minha mãe era uma tecelã que fazia

lindos tecidos. Meus pais me deram o nome de Jigme Karpo. Na época

não sabiam quem eu era. Tive que ser encontrado.

- Encontrado por quem?

- O regente está sempre procurando reencarnações de Lamas.

Normalmente ele tem uma visão que lhe mostra onde encontrar a nova

encarnação de certa pessoa e manda um grupo de busca. No meu caso,

sabiam que deviam procurar um sítio localizado numa colina com uma

roseira alta crescendo ao lado do poço. Depois de perguntar nos

arredores, encontraram minha casa e souberam que aquele era o lugar

certo. Itens de Lamas anteriores foram trazidos e apresentados a mim.

Peguei um livro que pertenceu ao Mestre do Oceano anterior. O grupo

de busca sentiu-se confiante, então, de que eu era a reencarnação

daquele Lama. Eu tinha 2 anos.

- E o que aconteceu com o senhor depois?

O Sr. Kadam interrompeu e deu um tapinha na minha mão.

- Estou curioso também, Srta. Kelsey, mas talvez ele tenha pouco tempo

para nós e devamos nos concentrar em outros assuntos.

- Ah, desculpe. Eu me deixei levar pela curiosidade.

O Mestre do Oceano se inclinou para a frente e agradeceu aos monges

que limpavam a mesa.

- Tenho alguns minutos para responder à sua pergunta, minha jovem.

Resumindo, fui levado da minha família e teve início minha formação

com um velho e gentil monge. Minha mãe teceu o material para a

minha primeira veste marrom. Então comecei a formação como um

monge noviço e rasparam minha cabeça. Mudaram meu nome e recebi

uma educação maravilhosa em todas as áreas, incluindo arte, medicina,

cultura e filosofia. Todas essas experiências me transformaram no

homem sentado à sua frente. Isso responde à sua pergunta ou minha

explicação gerou várias outras perguntas?

Eu ri.

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- Gerou várias outras.

- Ótimo! - Ele sorriu. - Uma mente com perguntas é uma mente aberta

ao entendimento.

- Sua infância e sua formação são muito diferentes das minhas.

- Imagino que a sua seja igualmente interessante.

- O que o senhor faz?

- Formo os Dalai-Lamas.

Olhei-o espantada.

- Educa o mestre?

- Sim. Formei dois deles. Sou muito velho, mas não somos tão

dessemelhantes. Tive a oportunidade de conhecer pessoas do mundo

inteiro e acho que todos somos fundamentalmente iguais. Formamos

uma única família humana. Talvez usemos roupas diferentes, a cor da

nossa pele seja diferente ou falemos línguas diversas, mas isso é só na

superfície. Todos temos sonhos e procuramos aquilo que nos trará a

felicidade verdadeira. Para conhecer o mundo todo, só precisei

aprender sobre mim mesmo.

Assenti com a cabeça.

O Sr. Kadam interveio.

- Como o senhor sabe, viemos em busca da sabedoria do Mestre do

Oceano. Temos uma tarefa a executar e pedimos sua orientação.

O monge arregaçou as mangas de sua túnica e se levantou.

- Então, venham. Vamos para um lugar que nos ofereça mais

privacidade.

Ele ficou de pé cautelosamente com o apoio de dois monges que se

posicionaram para caminhar ao seu lado, mas o Mestre do Oceano,

embora a passos lentos, caminhou sem ajuda.

- O senhor disse que formou dois Dalai-Lamas, então isso significa que

deve ter...

- Tenho 115.

- O quê? - indaguei, quase me engasgando.

- Tenho 115 anos e me orgulho muito disso.

- Nunca conheci alguém que tivesse vivido tanto!

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Logo me dei conta de que, na verdade, conhecia três homens que

tinham vivido mais e olhei para o Sr. Kadam, que sorriu e piscou para

mim.

O Mestre do Oceano não percebeu minha expressão estranha e

prosseguiu:

- Se um homem deseja fazer algo e possui paixão suficiente para

encontrar um meio de fazê-lo, ele consegue. Desejei viver uma vida

longa.

O Sr. Kadam olhou pensativamente para o monge e disse:

- Também sou mais velho do que aparento. Sinto-me humilde diante do

senhor.

O Mestre do Oceano se virou e segurou com força a mão do Sr. Kadam.

Seus olhos brilharam com alegria.

- Estar nos mosteiros entre os monges tem esse efeito. Mantém-me

humilde também.

Os dois riram. Então o seguimos por corredores cinzentos e sinuosos até

um salão com piso de pedra lisa e uma grande mesa polida. Quando

passamos a uma confortável área de descanso, ele indicou que

deveríamos nos sentar. Afundamos em poltronas macias, enquanto o

Mestre do Oceano puxava uma cadeira de madeira simples que estava

oculta atrás de sua mesa e sentava-se nela para conversar conosco.

Quando perguntei se ele não preferia uma cadeira mais confortável, ele

respondeu:

- Quanto mais desconfortável minha cadeira, mais provável que eu me

levante e me mantenha ocupado fazendo o que é preciso.

O Sr. Kadam acenou com a cabeça e começou:

- Obrigado por concordar em nos receber.

O monge sorriu.

- Não perderia isso por nada neste mundo. - Ele chegou para a frente,

com ar conspiratório. - Devo admitir que sempre tive curiosidade em

saber se a busca do tigre aconteceria nesta existência. Pensando bem,

nasci próximo à cidade de Taktser, que significa "tigre que ruge". Talvez

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estivesse em meu destino encontrar aqueles que devem fazer a jornada

nessa busca.

O Sr. Kadam perguntou, empolgado:

- Sabe sobre nossa busca?

- Sei. Desde antes da época do primeiro Dalai-Lama, a história dos dois

tigres vem sendo transmitida como uma tradição, em segredo. O

estranho medalhão é a chave. Quando este jovem disse ter visto dois

tigres, um negro e um branco, soubemos que provavelmente vocês

eram as pessoas certas. Outros viram gatos e muitas vezes identificaram

o tigre branco, mas ninguém identificou o gato negro como tigre e

certamente ninguém falou da linha central como ligada à divina tecelã.

Foi como soubemos que eram vocês.

- Então o senhor pode nos ajudar? - arrisquei.

- Sim, certamente, mas, primeiro, tenho um pedido a fazer.

O Sr. Kadam sorriu, mostrando-se à disposição.

- Claro. O que podemos fazer pelo senhor?

- Podem me contar sobre os tigres? Conheço o lugar que procuram e sei

como aconselhá-los, mas... os tigres nunca foram explicados e o papel

deles na busca foi mantido sob o mais profundo sigilo. O que sabem

sobre isso?

Kishan, o Sr. Kadam e eu nos entreolhamos. Kishan levantou uma

sobrancelha quando o Sr. Kadam assentiu de leve.

O Sr. Kadam perguntou:

- Esta sala é segura?

- Sim, claro.

O Sr. Kadam e eu nos viramos para Kishan. Ele encolheu os ombros

fortes, levantou-se e se metamorfoseou em tigre. O tigre negro piscou

os olhos dourados para o monge, deu um rugido baixo e sentou-se no

chão ao meu lado. Inclinei-me para coçar-lhe as orelhas escuras.

Surpreso, o Mestre do Oceano se recostou na cadeira. Depois coçou a

cabeça calva e riu, divertido.

- Obrigado por me confiarem esse presente impressionante!

Kishan retornou à forma humana e se sentou de novo na cadeira.

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- Eu não chamaria isso de presente.

- Não? E do que chamaria?

- De tragédia.

- Existe um ditado no Tibete que diz: "A tragédia deve ser utilizada

como fonte de força." - O monge levou um dedo à têmpora. - Em vez de

se perguntar por que isso aconteceu, talvez você devesse pensar por que

isso aconteceu com você. Lembre-se de que não conseguir o que se quer

às vezes é um maravilhoso golpe de sorte.

Ele voltou sua atenção para mim.

- E onde está o tigre branco?

- O tigre branco é o irmão de Kishan, Ren, que foi capturado por um

inimigo.

Ele inclinou a cabeça, refletindo.

- Muitas vezes o inimigo é o melhor professor de tolerância. E você,

minha cara? Como você entra nessa busca?

Ergui minha mão, virei-me e deixei que a força borbulhasse dentro de

mim. Ela fluiu pela minha mão e mirei a flor dentro de um vaso sobre a

mesa. Minha mão cintilou e um minúsculo ponto de luz disparou na

direção da flor, que brilhou por um instante antes de desaparecer numa

suave lufada de cinzas, caindo levemente sobre a mesa de madeira.

- Sou a linha central do medalhão dos tigres, a urdidura. Meu papel é

ajudar a libertar os dois. - Apontei para o homem silencioso à minha

direita. - E o Sr. Kadam é nosso guia e mentor.

O Mestre do Oceano não pareceu surpreso com meu poder. Contente

como um garotinho na manhã de Natal, ele aplaudiu.

- Muito bem! Maravilhoso! Agora deixe-me ajudá-los no que eu puder.

Ele ficou de pé, tirou o medalhão dos tigres do pescoço, onde havia

estado oculto pelas vestes volumosas, e o inseriu numa abertura em sua

estante. Um armário estreito se abriu e dali ele retirou um rolo de

pergaminho antigo, preservado num vidro, e um frasco com uma

substância verde e oleosa.

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Ele fez sinal para que nos aproximássemos. Quando rodeamos a mesa,

ele cuidadosamente virou o vidro contendo o pergaminho para mostrar

o que havia dentro.

- Este pergaminho existe há séculos e lista os sinais associados ao

medalhão dos tigres e aqueles que vêm reclamá-lo. Digam-me, o que

sabem sobre sua busca?

O Sr. Kadam mostrou-lhe a tradução da profecia.

- Ah, sim. O início deste pergaminho contém a mesma coisa, com

apenas algumas diferenças. Sua profecia diz que devo fazer três coisas

por vocês e é o que farei. Devo desenrolar os pergaminhos da sabedoria,

untar seus olhos e guiá-los ao portão do espírito. Este documento antigo

que estão vendo é o pergaminho que, segundo se diz, contém a

sabedoria do mundo.

- O que isso significa? - perguntei.

- Lenda, mito, histórias sobre a origem da humanidade: tudo isso se

baseia em verdades eternas e algumas dessas verdades estão contidas

aqui. Ao menos foi o que me contaram.

- O senhor não leu?

- Não, absolutamente. Na minha filosofia, não é necessário conhecer

todas as verdades. Parte do processo de iluminação é descobrir a

verdade por si mesmo através da introspecção. Nenhum dos Dalai-

Lamas anteriores leu este pergaminho. Ele não se destina a nós. Foi

mantido em segurança para ser entregue a vocês quando chegasse o

momento certo.

- Se o pergaminho foi passado e mantido em segredo pelos Dalai-Lamas,

então como chegou ao senhor? - perguntou o Sr. Kadam.

- O pergaminho e o segredo devem ser mantidos por dois homens.

Como o Dalai-Lama não sabe quem será seu sucessor, ele os confia ao

seu professor. Quando seu professor morre, ele os confia à reencarnação

daquele professor. Quando o Dalai-Lama morre, o professor

compartilha o segredo com o Dalai-Lama seguinte, para que o

pergaminho nunca se perca. Com o atual Dalai-Lama no exílio, a tarefa

cabe a mim.

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- O senhor quer dizer que esse pergaminho foi guardado durante séculos

para... nós?. - perguntei.

- Isso. Temos transmitido o segredo, assim como as instruções,

detalhando como encontraríamos aqueles a quem entregá-lo.

O Sr. Kadam se curvou para examinar o pergaminho no vidro.

- Espantoso! Não vejo a hora de examinar isto.

- O senhor não pode. Fui instruído de que o pergaminho não deve ser

lido até que o quinto sacrifício seja completado. Existe inclusive a

sugestão de que abri-lo antes causaria uma catástrofe gravíssima.

- Quinto sacrifício? - murmurei. - Mas, Sr. Kadam, nem sabemos ainda o

que será. - Voltei-me para o Mestre do Oceano. - Tudo o que sabemos

até agora é que são quatro sacrifícios e quatro presentes. Só

conheceremos o quinto muito mais tarde. Tem certeza de que seremos

bem-sucedidos em nossa busca sem ler o pergaminho?

O monge deu de ombros.

- Não cabe a mim saber. Meu dever é colocar isto sob seus cuidados e

cumprir minhas duas outras obrigações. Venha, sente-se aqui, jovem, e

deixe-me untar seus olhos.

Ele puxou uma cadeira para mim, aproximou-se com o frasco verde e

disse:

- Diga-me, Sr. Kadam, em seus estudos já deparou com um povo

chamado chewong?

O Sr. Kadam se sentou.

- Confesso que não.

Dei uma risadinha silenciosa. O Sr. Kadam não sabe algo? Seria isso possível? - Os chewong são da Malásia... um povo fascinante. Existe uma imensa

pressão sobre eles agora para que se convertam ao islã e se incorporem à

sociedade malaia. No entanto, muitos lutam por seus direitos, a fim de

manter sua língua e sua cultura. São um povo pacífico, não violento. Na

verdade, eles nem têm palavras para designar guerra, corrupção,

conflito ou punição em sua língua. Eles possuem muitas crenças

interessantes. Um princípio digno de nota diz respeito à propriedade

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comum. Eles acreditam ser perigoso e errado comer sozinho, por isso,

sempre compartilham suas refeições. Mas a crença que se aplica a vocês

diz respeito aos olhos.

Ansiosa, passei a língua pelos lábios.

- O que exatamente eles fazem com os olhos? Servem no jantar?

Ele riu.

- Não, nada parecido. Dizem que seus xamãs ou líderes religiosos têm

olhos frios, ao passo que a pessoa comum tem olhos quentes. Uma

pessoa com olhos frios pode enxergar mundos diferentes e discernir

coisas que estariam ocultas da visão comum.

O Sr. Kadam ficou intrigado e começou a fazer muitas perguntas,

enquanto meus olhos buscavam o líquido verde e oleoso que o monge

pingava sobre seus dedos de pele fina e ressecada.

- Devo avisar que não gosto de nada nos olhos. Meus pais precisavam me

segurar para pingar colírio quando eu tinha conjuntivite.

- Não se preocupe - disse o Mestre do Oceano. - Vou untar suas

pálpebras fechadas e compartilhar algumas palavras de sabedoria.

Relaxei consideravelmente e, obediente, fechei os olhos. Senti seus

dedos quentes tocarem minhas pálpebras. Eu esperava que o líquido

viscoso descesse pelo meu rosto, mas era espesso, mais como um creme,

e tinha um cheiro forte de remédio. O cheiro provocou coceira em meu

nariz e me lembrou da pomada que minha mãe friccionava em meu

peito para que eu respirasse mais facilmente quando adoecia. Minhas

pálpebras formigaram e ficaram geladas. Mantive-as fechadas enquanto

ele falava em tom suave.

- Meu conselho para você, minha jovem, é que o verdadeiro propósito

da vida é ser feliz. Em minha limitada experiência, descobri que,

quando nos importamos com os outros, nosso sentimento de bem-estar

é maior. Nossa mente fica em paz. Isso ajuda a eliminar qualquer medo

ou insegurança que possamos ter e nos dá força para enfrentar os

obstáculos que venhamos a encontrar. Além disso, quando precisar de

orientação, medite. Muitas vezes encontro respostas através da

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meditação. Por último, lembre-se de que o antigo ditado "o amor tudo

vence" é real. Quando damos amor, ele volta multiplicado.

Abri os olhos com cuidado. Não sentia dor nem desconforto, mas eles

estavam ligeiramente sensíveis. Agora era a vez de Kishan. Trocamos de

lugar e o monge molhou as pontas dos dedos mais uma vez. Kishan

fechou os olhos e a substância foi espalhada sobre suas pálpebras

fechadas.

- Agora você, tigre negro. Seu corpo é jovem, mas sua alma é velha.

Lembre-se: por mais dificuldades que você tenha que enfrentar e por

mais dolorosas que sejam suas experiências, jamais perca a esperança.

Perder a fé é a única coisa capaz de destruí-lo. Os lamas dizem: "Vencer

a si próprio e às suas fraquezas é um triunfo maior do que derrotar

milhares numa batalha."

Kishan não se mexia, os olhos fechados.

- Sua responsabilidade é ajudar a guiar sua família na direção certa. Isso

inclui tanto a família imediata quanto a família global. Boas intenções

não bastam para criar um resultado positivo; é preciso agir. Quando

você participar e se envolver ativamente, as respostas às suas perguntas

surgirão. Por último, assim como um grande rochedo não se perturba

com os golpes do vento, a mente do homem ponderado é firme. Ele

existe como um pilar, um apoio inabalável. Outros podem se agarrar a

ele, pois não vacilará.

O Mestre do Oceano recolocou a tampa no frasco e Kishan piscou,

abrindo os olhos. A substância verde desaparecera de suas pálpebras.

Ele se sentou ao meu lado e esticou a mão para tocar meu braço. O

homem que era o Mestre do Oceano, um grande lama do Tibete,

estendeu a mão para apertar a do Sr. Kadam, dizendo:

- Meu amigo. Sinto que seus olhos já foram abertos e que você já viu

mais do que posso imaginar. Deixo este pergaminho em suas mãos e

peço que venha me visitar de tempos em tempos. Gostaria de saber

como essa jornada termina.

O Sr. Kadam curvou-se com respeito.

- Ficaria extremamente honrado, mestre.

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- Muito bem. Agora, resta-me apenas uma tarefa, que é guiá-los ao

portão do espírito. - Ele explicou. - Os portões do espírito marcam a

fronteira entre o mundo físico e o espiritual. Quando os transpomos,

livramo-nos de matérias terrenas pesadas e nos concentramos nos

aspectos espirituais. Não toquem o portão até estarem prontos para

entrar, pois isso é proibido. Os portões conhecidos estão na China e no

Japão, mas há um no Tibete que foi mantido em segredo. Vou mostrá-lo

a vocês no mapa.

Ele chamou um monge e pediu-lhe que trouxesse um mapa do Tibete.

- O portão que vocês procuram é simples e humilde. Vocês devem

chegar até lá a pé e levar apenas provisões básicas, pois, para encontrar

o portão, precisam provar que caminham por fé. Ele é marcado com as

humildes bandeiras de oração dos nômades. A viagem não será fácil e

apenas vocês dois poderão ter acesso a ele. Seu mentor deverá ficar.

Ele nos mostrou um caminho por onde poderíamos iniciar a subida.

Engoli em seco ao reconhecer o local, apesar da minha incapacidade de

decifrar a língua. Monte Everest. Felizmente, parecia que o portão do

espírito não ficava no cume, mas a uma curta distância acima do limite

das neves eternas. O Sr. Kadam e o Mestre do Oceano conversaram

animadamente sobre o melhor percurso a fazer, enquanto Kishan

escutava, atento.

Como vou fazer isso? Tenho que conseguir. Ren precisa de mim. Encontrar esse novo lugar e o objeto era o que me ajudaria a encontrar

Ren, e nada iria me impedir, nem mesmo o enjoo da altitude ou uma

montanha congelante.

O pergaminho foi entregue ao Sr. Kadam, assim como os mapas e uma

explicação detalhada de como chegarmos ao portão do espírito. A mão

quente de Kishan segurou a minha.

- Kelsey, você está bem?

- Estou. Só um pouco assustada com a viagem.

- Eu também. Mas lembre-se de que ele disse que é preciso ter fé.

- Você tem fé?

Kishan refletiu.

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- Sim, acho que tenho. Pelo menos, mais do que tinha antes. E você?

- Tenho esperança. Isso é bom o bastante?

- Deve ser.

O Mestre do Oceano apertou nossas mãos calorosamente e se despediu,

ladeado por seus acompanhantes. Um monge nos guiou até os quartos

para que reuníssemos nossos pertences.

O Sr. Kadam passou o resto do dia envolvido nos preparativos da

viagem. Kishan e eu arrumamos uma bagagem leve, recordando o aviso

de levarmos poucas coisas. O Sr. Kadam determinou que não

levássemos comida ou água, sabendo que o Fruto Dourado nos

sustentaria. Ele me disse que testara as limitações do Fruto e que parecia

funcionar a uma distância de até 30 metros e que, embora não

produzisse água, podia nos prover com uma variedade de outras

bebidas. Ele recomendou chás quentes de ervas e bebidas sem açúcar

para permanecermos hidratados. Agradeci-lhe e embrulhei

cuidadosamente o Fruto em minha colcha antes de colocá-lo na

mochila.

Discutimos durante um bom tempo os prós e contras de uma barraca e

decidimos levar, em seu lugar, um grande saco de dormir. Eles acharam

que eu não conseguiria subir a montanha carregando uma barraca e que

eu precisava de espaço na mochila para as roupas de Kishan, para

Fanindra e todas as armas. Kishan teria que se transformar de tigre em

homem várias vezes, então precisaria de roupas quentes.

No dia seguinte fomos de carro até o sopé da montanha. Lá, o Sr.

Kadam caminhou conosco por algum tempo e depois nos abraçou

brevemente.

Disse que montaria acampamento ali e aguardaria ansioso nosso

regresso.

- Tenha muito cuidado, Srta. Kelsey. A viagem sem dúvida será difícil.

Guardei todas as minhas anotações em sua mochila. Espero ter me

lembrado de tudo.

- Tenho certeza de que se lembrou. Ficaremos bem. Não se preocupe.

Com sorte, estaremos de volta antes que o senhor perceba. Talvez o

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tempo pare, como em Kishkindha. Cuide-se. E se, por algum motivo,

não retornarmos, por favor, diga a Ren...

- Vocês vão voltar, Srta. Kelsey. Disso estou certo. É hora de partirem.

Até breve.

Kishan se transformou no tigre negro e começamos a subir a montanha.

Meia hora depois, voltei-me para olhar quanto já havíamos avançado. O

terreno plano se estendia até onde os olhos alcançavam. Acenei para a

pequena silhueta do Sr. Kadam, lá embaixo, e depois me virei, passei

entre duas pedras e dei o primeiro passo na trilha à frente.

17

Portão do espírito

Estremeci e dei um puxão em minhas luvas, ajustando-as mais para

cima nos pulsos. Passáramos a maior parte do primeiro dia subindo a

montanha e montamos acampamento perto de algumas rochas que

bloqueavam o vento. Quando paramos, foi com alívio que me livrei da

mochila e me alonguei.

Dei uma busca na área, juntando lenha para acender uma fogueira.

Após um jantar quente, graças ao Fruto Dourado, aconcheguei-me em

meu saco de dormir king size, completamente vestida. Kishan enfiou a

cabeça pela abertura e entrou em seguida. A princípio foi esquisito, mas

depois de uma hora eu me sentia extremamente grata pela pelagem

quente que me fez parar de tremer. Estava tão exausta que, apesar do

barulho do vento, consegui dormir.

Na manhã seguinte, para o café da manhã, usei o Fruto Dourado para

obter mingau de aveia quente com xarope de bordo e açúcar mascavo,

além de chocolate quente. Kishan quis ficar como tigre para se manter

aquecido, então lhe dei a opção de uma grande travessa cheia de bifes

malpassados de carne de caça ou um prato gigantesco do mesmo

mingau que eu comi e uma grande tigela de leite. Ele começou pela

carne, mas comeu também o mingau e tomou o leite, engolindo

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rapidamente. Juntei nossos pertences e arrumei-os na mochila antes de

partirmos de novo.

Nos quatro dias seguintes estabelecemos uma rotina. Kishan guiava o

caminho, eu providenciava as refeições com a ajuda do Fruto Dourado e

acendia a fogueira, depois dormíamos aconchegados, tigre e humana,

no grande saco de dormir, enquanto o vento uivava ao nosso redor. A

escalada era desafiadora. Se eu não viesse me exercitando com Kishan e

o Sr. Kadam, não estaria fisicamente preparada.

A subida não era difícil a ponto de exigir equipamento de

montanhismo, mas tampouco era um passeio no parque. Respirar ficava

mais complicado à medida que subíamos, pois havia menos oxigênio, e

por isso parávamos freqüentemente para beber algo e descansar.

Chegamos ao limite das neves no quinto dia. Mesmo no verão havia

neve no monte Everest. Era fácil avistar Kishan agora, mesmo à

distância. Um animal negro na neve branca não passava despercebido.

Ele tinha sorte de provavelmente ser uma das maiores criaturas ali. Se

fosse menor, seria caçado por predadores.

Será que existem ursos polares por aqui? Não, ursos polares vivem nos polos. Hum, talvez existam outros ursos ou pumas. Pé Grande? O Abominável Homem das Neves? Melhor não pensar nisso. Segui os rastros de Kishan e comecei a ficar atenta a pegadas. Quando

avistava rastros de pequenos animais na neve, tentava adivinhar quais

seriam. Alguns eram aves, evidentemente, mas outros eu não sabia se

poderiam ser coelhos ou pequenos roedores. Sem ver nada maior e

ficando entediada com esse jogo, relaxei e deixei a mente vagar

enquanto seguia Kishan.

As árvores estavam ficando esparsas e o terreno, rochoso. A camada de

neve era funda e respirar tornava-se cada vez mais difícil. Comecei a

ficar nervosa. Eu não achava que demoraria tanto para chegar ao portão

do espírito.

No sétimo dia, encontramos o urso.

Kishan afastara-se havia cerca de meia hora para procurar madeira e um

bom local para acamparmos. Eu devia seguir seu rastro e ele retornaria

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e me encontraria pelo faro. Na verdade, ele estaria de volta muito em

breve, pois nunca me deixava por mais de 30 minutos.

Eu caminhava lenta e penosamente, pisando em suas pegadas de tigre,

quando ouvi um urro estrondoso atrás de mim. Imaginei que Kishan

tivesse feito a volta e estivesse tentando chamar minha atenção. Virei-

me e me detive bruscamente, arquejando, apavorada. Um enorme urso

pardo vinha em minha direção, num galope de ataque. Suas orelhas

redondas estavam para trás. A boca aberta revelava os dentes afiados e

ele se aproximava, veloz. Era muito mais rápido que eu.

Gritei.

O urso parou a pouco mais de um metro de onde eu estava, ergueu-se

nas patas traseiras e rugiu para mim de novo, golpeando o ar com as

patas. Seu pelo desgrenhado estava molhado de neve. Os olhos

pequenos e negros me encaravam sobre o focinho comprido, enquanto

ele avaliava minha capacidade de luta. A pele ao redor da boca repuxou

quando sua mandíbula estremeceu, deixando à mostra um

impressionante conjunto de dentes que poderia me fazer em pedaços.

Rapidamente me joguei no chão, lembrando-me de uma história sobre

homens da montanha sobrevivendo na natureza selvagem. Ouvi que o

melhor a fazer durante um ataque de urso é se deitar no chão, ficar em

posição fetal e se fingir de morto.

Enrolei-me numa bola e cobri a cabeça com as mãos. O urso pôs as

patas dianteiras no chão e pulou um pouco, as patas triturando a neve,

enquanto tentava fazer com que eu me movesse para que pudesse

atacar. Ele golpeou minhas costas e ouvi o tecido rasgar quando acertou

a mochila, despedaçando o compartimento externo.

Por estar tão perto do urso, eu podia sentir o cheiro do seu pelo, que

trazia o odor de grama molhada, terra e água do lago. Seu hálito quente

cheirava levemente a peixe. Gemi e rolei um pouco. O urso mordeu a

mochila e apertou a pata dianteira na parte de trás da minha coxa para

me imobilizar. A pressão era intensa. Tive certeza de que meu fêmur ia

quebrar.

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E provavelmente teria quebrado se eu estivesse num solo mais

compacto. Por sorte, o peso da perna do urso apenas me afundou mais

na neve. Eu não sabia se ele estava defendendo seu território ou se

queria me comer. De uma forma ou de outra, logo estaria morta.

Nesse exato momento, ouvi o rugido de Kishan. O urso olhou para cima

e bramiu de volta, defendendo seu jantar. Virou-se para encarar o tigre

e arranhou fundo com suas garras a parte de trás da minha coxa e a

panturrilha da outra perna. Ofeguei de dor quando as garras de Freddy

Krueger, com quase 300 quilos por trás delas, rasgaram minha coxa e

panturilha. Mas a boa notícia era que o urso não tivera intenção de me

machucar. Havia sido só um tapinha de amor, avisando que já estaria de

volta.

Minhas pernas queimavam de dor e lágrimas rolavam pelo meu rosto,

mas permaneci o mais quieta possível. Kishan rodeou o animal por um

momento e então se lançou ao ataque. O tigre mordeu a pata dianteira

do urso, enquanto este enfiava as garras em seu dorso. Os animais se

afastaram o bastante para eu arriscar uma olhada nas minhas pernas.

Não consegui virar a cabeça o suficiente para ver os ferimentos, mas

grandes gotas de sangue manchavam de vermelho a neve.

O urso ficou de pé nas patas traseiras e rugiu. Depois se pôs de quatro,

aproximou-se um pouco e ficou de pé novamente. Kishan traçou um

semi-círculo fora do alcance do urso, que tentou atingi-lo com as patas

dianteiras duas ou três vezes, como se tentasse afugentá-lo.

Kishan se aproximou e o urso atacou. O tigre se chocou com o urso de

pé. Quando colidiram, o urso passou as patas dianteiras ao redor do

corpo de Kishan, atacando violentamente suas costas, dando-me uma

nova perspectiva da expressão "abraço de urso". Eles se rasgavam um ao

outro, numa fúria de dentes e garras. O urso mordeu a orelha de

Kishan, quase arrancando-a. Kishan afastou a cabeça, fazendo com que

ambos perdessem o equilíbrio. Os animais caíram e rolaram algumas

vezes, numa confusão de pelos negros e castanhos.

Então me recuperei o suficiente para me dar conta de que tinha uma

arma. Mas que idiota eu era. Que espécie de guerreira eu me tornara?

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Kishan agora estava rodeando o animal, tentando confundi-lo e cansá-

lo. Tirei vantagem da distância entre eles, levantei a mão e atingi o urso

no focinho com um pequeno raio. Não foi suficiente para feri-lo, mas o

bastante para afastá-lo de seu jantar em potencial. Ele se distanciou

num passo rápido, urrando de dor e frustação.

Rapidamente Kishan se transformou em homem e começou a avaliar os

ferimentos da minha perna. Ele retirou a mochila dos meus ombros e

em poucos segundos vestiu suas roupas de inverno. Em seguida

debruçou-se sobre mim. O sangue já estava congelando na neve. Kishan

rasgou uma camiseta ao meio e enrolou minha coxa e a panturrilha,

apertando bem.

- Me desculpe se doer, mas preciso mover você. O cheiro do seu sangue

pode atrair o urso de volta.

Ele se abaixou e me pegou com cuidado nos braços. Apesar de sua

delicadeza, minhas pernas ardiam. Gritei e não pude deixar de me

contorcer para tentar aliviar a dor. Pressionei meu rosto contra seu

peito e cerrei os dentes. Então, perdi a consciência.

Eu não sabia se havia dormido ou desmaiado. Na verdade, não

importava. Acordei deitada de bruços, junto a uma fogueira, com

Kishan examinando meus ferimentos. Ele rasgara outra camiseta e

limpava cuidadosamente minhas pernas com uma espécie de líquido

quente e malcheiroso que ele produzira com o Fruto Dourado.

Arquejei.

- Isso pinica! O que é?

- É um remédio à base de ervas para aliviar a dor, deter a infecção e

ajudar seu sangue a coagular.

- Não cheira muito bem. O que tem nele?

- Canela, equinácea, alho, hidraste, milefólio e algumas outras coisas

cujo nome eu não conheço em sua língua.

- Está doendo!

- Imagino que sim. Você precisa de pontos.

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Respirei fundo e comecei a lhe fazer perguntas para distrair minha

mente da dor. Arquejei quando ele começou a limpar minha

panturrilha.

- Onde você... aprendeu a fazer isso?

- Lutei em muitas batalhas. Sei um pouco como cuidar de ferimentos

como estes. A dor deve diminuir logo, Kells.

- Tratou de ferimentos antes?

- Sim.

- Pode... me contar como foi? - perguntei, gemendo. - Vai me ajudar a

me concentrar em outra coisa.

- Tudo bem.

Ele molhou o pano e continuou trabalhando em minha panturrilha.

- Kadam me levou com um grupo de sua infantaria de elite para conter

alguns bandidos.

- Do tipo Robin Hood?

- Quem é Robin Hood?

- Um personagem que roubava dos ricos para dar aos pobres.

- Não. Eram assassinos. Roubavam caravanas, violentavam mulheres e

depois matavam todos. Tornaram-se famosos numa certa região onde

havia muito comércio. Suas riquezas atraíram muitas pessoas ao grupo e

seu grande número causava muita preocupação. Eu estava estudando

teoria militar e aprendendo com Kadam como estabelecer uma

estratégia e entrar na guerra de guerrilha.

- Quantos anos você tinha?

- Tinha 16.

-Ai!

- Desculpe.

- Tudo bem - gemi. - Por favor, continue.

- Um grande grupo deles se achava escondido em algumas cavernas e

estávamos tentando encontrar um modo de expulsá-los quando fomos

atacados. Eles haviam construído uma saída secreta do esconderijo e nos

rodearam, matando nossas sentinelas. Nossos homens lutaram

bravamente e venceram os canalhas, mas vários de nossos melhores

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soldados foram mortos e muitos ficaram gravemente feridos. Eu tive o

braço deslocado, mas Kadam o colocou no lugar e ajudamos tantos

quantos pudemos.

- Nossa...

- Foi quando aprendi a fazer a triagem de batalha. Aqueles que podiam,

acompanhavam o cirurgião e o ajudavam a cuidar dos ferimentos dos

soldados. Ele me ensinou um pouco sobre plantas e suas propriedades

curativas. Minha mãe também entendia um pouco de botânica e tinha

uma estufa cheia de plantas, muitas das quais usadas em medicamentos.

Depois disso, sempre que eu saía para os combates, levava comigo uma

bolsa de medicamentos para ajudar quando fosse necessário.

- Parece um pouco melhor agora. Está latejando menos. E você? Seus

ferimentos estão doendo?

- Já estou curado.

- Isso não é justo - comentei, com inveja.

- Trocaria de lugar com você se pudesse, Kells - disse ele em voz baixa.

E continuou a limpeza cuidadosamente, envolvendo minha coxa e a

panturrilha em tiras finas de tecido e depois fixando-as com as ataduras

elásticas que o Sr. Kadam incluíra em nossa caixa de primeiros socorros.

Kishan me deu duas aspirinas e levantou minha cabeça para me ajudar a

beber água.

- Consegui parar o sangramento. Só um dos ferimentos me preocupa,

por ser mais profundo. Descansaremos esta noite e começaremos a

voltar amanhã. Terei que carregá-la, Kells. Acho que você não vai

poder andar. Seus ferimentos podem abrir e voltar a sangrar.

- Mas, Kishan...

- Não se preocupe com isso agora. Descanse e veremos como se sentirá

pela manhã.

Estendi a mão e a coloquei sobre a dele.

- Kishan?

Ele voltou seus olhos dourados para o meu rosto e me observou

atentamente, avaliando se eu sentia dor.

-Sim?

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- Obrigada por cuidar de mim.

Ele apertou minha mão.

- Quem dera eu pudesse fazer mais. Agora durma.

Fiquei cochilando intermitentemente, acordando quando Kishan

colocava mais lenha na fogueira. Não sabia como ele encontrara lenha

seca o bastante para queimar, mas não me dei ao trabalho de perguntar.

Ele pôs a panela com o líquido que usara para banhar meus ferimentos

junto das chamas a fim de mantê-lo aquecido. Eu estava confortável no

saco de dormir, deitada de bruços, e, em meio a um torpor, olhava as

chamas lamberem o fundo da panela. O cheiro de ervas do líquido

quente se espalhava pelo ar e eu cochilava e acordava.

A certa altura devo ter dormido mais profundamente, pois sonhei com

Ren. Ele se encontrava amarrado a um poste com as mãos atadas acima

da cabeça. Eu estava encostada numa parede atrás de outro poste, onde

Lokesh, que falava numa língua estranha e batia na mão com um

chicote, não podia me ver. Ren abriu os olhos e me viu. Ele não se

mexeu nem moveu um músculo sequer, mas seus olhos se agitaram.

Eles brilharam e rugas minúsculas surgiram dos lados. Sorri para ele e

dei um passo em sua direção. Ele balançou a cabeça ligeiramente. Ouvi

o estalo do chicote e congelei.

Ren arquejou de dor. Deixei correndo meu esconderijo, gritando, e

ataquei Lokesh, surpreendendo-o. Agarrei o chicote, mas não conseguia

arrancá-lo de sua mão. Ele era extremamente forte. O meu gesto era tão

inútil quanto o de um pássaro atacando uma árvore. Enquanto eu me

debatia e lutava, vi seu indisfarçável prazer ao me reconhecer.

A excitação febril alcançou seus olhos negros e brilhantes. Ele agarrou

minhas mãos e as torceu sobre minha cabeça e então chicoteou a parte

posterior de minhas pernas três vezes. Gritei de dor. Um rugido atrás de

mim atraiu sua atenção. Agarrei sua camisa e enfiei as unhas em seu

pescoço e no peito. Ele me sacudiu.

- Kelsey! Kelsey! Acorde!

Acordei sobressaltada.

- Kishan?

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- Você estava sonhando de novo.

Ele estava dentro do saco de dormir comigo. Delicadamente, soltou

meus dedos que agarravam com firmeza sua blusa.

Olhei para seu peito e seu pescoço e vi os arranhões feios e

ensangüentados. Delicadamente toquei um deles.

- Ah, Kishan, me desculpe. Está doendo muito?

- Tudo bem. Já estão cicatrizando.

- Não tive a intenção. Estava sonhando com Lokesh de novo. Eu... eu

não quero voltar, Kishan. Quero seguir em frente, continuar a procurar

o portão do espírito. Ren está sofrendo. Eu sei.

Para minha grande consternação, comecei a soluçar. Em parte por causa

da dor em minhas pernas e em parte por causa do estresse da viagem,

mas o motivo principal era porque eu sabia que Ren estava sofrendo.

Kishan mudou de posição e me abraçou.

- Shh, Kelsey. Vai ficar tudo bem.

- Isso você não sabe. Lokesh pode matá-lo antes de encontrarmos essa

porcaria de portão do espírito.

Eu chorava enquanto Kishan massageava minhas costas.

- Lembre-se de que Durga disse que cuidaria dele. Não se esqueça disso.

Solucei.

- Eu sei, mas...

- Sua segurança é mais importante do que a busca e Ren concordaria

com isso.

Ri, entre as lágrimas.

- Provavelmente sim, mas...

- Nada de "mas". Precisamos voltar, Kells. Quando estiver curada,

podemos tentar novamente. Temos um trato?

- Acho que sim.

- Ótimo. Ren tem sorte... de ser dono do coração de uma mulher como

você, Kelsey

Virei-me de lado para olhá-lo. O fogo ainda estava aceso e observei as

chamas dançarem em seus olhos dourados e preocupados.

Toquei seu pescoço já cicatrizado e disse:

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- E eu tenho sorte de ter dois homens tão maravilhosos na minha vida.

Ele levou minha mão aos lábios e beijou meus dedos.

- Sabe que ele não ia querer que você sofresse por ele.

- Nem que eu encontrasse consolo em você. Ele sorriu.

- Não mesmo.

- Mas você me consola. Obrigada por estar aqui.

- Não há outro lugar em que eu desejasse estar. Durma um pouco, bilauta. Ele me puxou para perto e me aninhou junto a seu peito. Experimentei

a sensação de culpa por me sentir confortada nos braços de Kishan, mas

rapidamente peguei no sono, sem outros incidentes.

Os dois dias seguintes de viagem foram curtos por necessidade. Tentei

caminhar sozinha, mas a dor era forte, então Kishan precisou me

carregar. Descemos de volta a montanha, andando devagar, parando

para descansar de vez

em quando, reservando a última hora para Kishan montar o

acampamento e cuidar de mim. A maioria dos meus ferimentos estava

cicatrizando, mas o mais profundo começara a supurar.

A pele ao redor se tornara vermelha, inchada e inflamada. Era evidente

que o ferimento estava piorando. Quando a febre chegou, Kishan

começou a se desesperar. Ele amaldiçoou o fato de só poder me carregar

durante seis horas do dia. Usou todos os remédios de ervas em que pôde

pensar. Infelizmente o Fruto Dourado não produzia antibióticos.

Uma tempestade nos atingiu e percebi vagamente que Kishan me

carregava através do granizo e da neve. O fato de não me movimentar

sozinha deixava-me mais suscetível ao frio. Eu estava congelando e

perdia e recobrava os sentidos, sem saber quantos dias haviam se

passado. A certa altura ocorreu-me a idéia de que talvez Fanindra

pudesse me curar, como em Kishkindha. Ela, porém, continuava rígida

e congelada. Eu sabia que o clima não estava exatamente propício a

cobras, mas talvez ela soubesse que eu ainda não estava à beira da

morte, apesar das aparências.

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Nós nos perdemos na tempestade, sem saber se estávamos voltando para

o Sr. Kadam ou seguindo na direção do portão do espírito. Kishan

estava constantemente preocupado em não me deixar dormir e por isso

conversava comigo enquanto andávamos. Eu não me lembrava muito

do que ele dizia. Deu-me uma aula sobre sobrevivência na natureza e

disse que era importante que nos mantivéssemos aquecidos,

alimentados e hidratados. Essas três coisas estavam relativamente

garantidas. Quando parávamos para passar a noite, ele me envolvia no

saco de dormir, deitava-se perto de mim para que seu corpo de tigre me

mantivesse quente e deixava que o Fruto Dourado fornecesse a comida

e a bebida de que necessitávamos.

Perdi o apetite quando adoeci. Kishan me forçava a comer e beber, mas

eu tremia e a febre me fazia sentir como se estivesse ora congelando ora

quente demais. Ele tinha que se transformar em homem com

freqüência para me manter coberta com o saco de dormir porque, com a

febre, eu tentava constantemente me descobrir.

Eu me sentia fraca agora e passava o tempo olhando para o céu ou para

o rosto de Kishan, enquanto ele falava de vários assuntos. O que ele

chamou de "arroz do mato" foi um tópico do qual me lembrei mais

tarde por ser nojento. Ele falou sobre como conseguira se manter

quando foi o único sobrevivente de uma batalha dentro do território

inimigo. Como não havia comida, ele comia arroz do mato, que na

verdade não era arroz, mas larvas brancas de cupins.

Resmunguei, mas estava sonolenta demais para mover os lábios e emitir

qualquer comentário. Não conseguia falar. Ele me olhou, preocupado, e

puxou um pouco mais o capuz sobre meu rosto para que a neve não

caísse diretamente sobre mim.

- Prometo que vou tirá-la daqui, Kelsey - sussurrou, inclinando-se em

minha direção. - Não vou deixá-la morrer.

Morrer? Quem falou em morrer? Eu não pretendia morrer, mas não

conseguia dizer isso a ele. Meus lábios pareciam congelados. Não posso morrer. Tenho que encontrar os próximos três itens e salvar meus

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tigres. Tenho que resgatar Ren da prisão de Lokesh. Tenho que terminar a faculdade. Tenho que... Adormeci. Sonhei que passava o dedo no vidro de uma janela congelada. Tinha

acabado de desenhar um coração com "Ren + Kelsey" no meio e

desenhara um segundo coração com "Kishan +..." quando alguém me

sacudiu, me acordando.

- Kells. Kells! Pensei que estivéssemos voltando, mas acho que

encontramos o portão do espírito!

Espiei pela abertura do capuz e olhei para cima, para um céu cinza-

ametista. Uma chuva de granizo gelada e dolorosa nos fustigava e eu

precisei apertar os olhos a fim de ver para onde Kishan apontava. No

meio de uma extensão nua e branca de neve encontravam-se duas

estacas de madeira. Enroladas em cada uma delas, viam-se longas cordas

de um material que tremulava na tempestade, como rabiolas de pipas.

Uma fileira de bandeiras coloridas estava presa em diferentes seções das

estacas. Algumas das cordas estavam atadas à estaca oposta. Outras se

achavam presas a anéis fixados no solo ou apenas balançavam soltas no

vento.

Umedeci os lábios com a língua e sussurrei:

- Tem certeza?

Felizmente sua audição de tigre era bastante aguçada. Ele se curvou,

apro- ximando-se do meu ouvido, e gritou mais alto que o barulho do

vento:

- Pode ser um monumento ou memorial criado por nômades, mas há

algo de diferente naquilo. Quero verificar.

Assenti, fraca, e ele me acomodou no saco de dormir perto de uma das

estacas. Passara a me carregar no saco de dormir para me manter mais

aquecida. Caí num sono profundo. Quando ele me acordou, não sabia se

haviam se passado horas ou segundos.

- É aqui mesmo, Kelsey. Encontrei uma marca de mão. A questão é:

devemos atravessá-lo ou voltar? Acho que devemos voltar e retornar

depois.

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Estendi a mão enluvada e toquei-lhe o peito. Sussurrei, sentindo o

vento engolir minhas palavras e dispersá-las assim que passavam pelos

meus lábios. Por sorte, ele as ouviu.

- Não... Não conseguiremos... achá-lo... de novo... muito difícil - eu

disse. - O Mestre do Oceano disse que... provássemos nossa... fé. É...

uma prova. Temos... que... ten... tentar.

- Mas, Kells...

- Leve-me... à... marca de mão.

Ele me olhou, com a indecisão travando uma batalha em seus olhos.

Cuidadosamente, esticou a mão enluvada e afastou os flocos de neve do

meu rosto.

Apertei a mão dele na minha.

- Tenha fé - sussurrei no vento.

Ele soltou um suspiro profundo e em seguida deslizou os braços sob

meu corpo e me carregou até a estaca de madeira.

- Aqui está. À esquerda da estaca, sob o tecido azul.

Vi do que ele falava e tentei tirar minha luva. Kishan me colocou de pé,

sustentando todo o meu peso num só braço. Puxou minha luva com a

outra mão e a enfiou em seu bolso. Depois guiou minha mão para

dentro da depressão fria esculpida na estaca. Agora que eu estava mais

perto, conseguia enxergar os entalhes intrincados por toda a madeira,

que tinha sido parcialmente coberta pela neve. Se estivesse me sentindo

melhor, teria adorado examiná-los, porém mal conseguia me sustentar

de pé sem Kishan.

Mantive a mão pressionada contra a madeira, mas nada aconteceu.

Tentei evocar o fogo em minha barriga, a centelha que fazia minha mão

brilhar, mas sentia-me entorpecida.

- Kishan.. n...não... consigo. Estou com... muito... fr... frio - balbuciei,

sentindo vontade de chorar.

Ele tirou as luvas, abriu o casaco, rasgou a camiseta que vestia por baixo

e pôs minha mão congelada sobre seu peito nu, cobrindo-a com a sua

mão quente. Seu peito estava quente também. Ele pressionou seu rosto

aquecido contra o meu rosto frio e, com a palma da mão, esfregou as

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costas da minha mão por alguns minutos. Ele falou, mas não entendi

suas palavras. Então virou-se para me proteger do vento e quase

adormeci protegida no casulo aconchegante que ele criara. Por fim,

afastou-se um pouco e disse:

- Pronto. Assim é melhor. Agora, tente outra vez.

Ele me ajudou a posicionar a mão. Senti uma pequena centelha de calor

formigando e a induzi a crescer. A força estava lenta e letárgica, mas foi

crescendo até a marca de mão brilhar. A estaca sacudiu e começou a

brilhar também. Algo aconteceu aos meus olhos. Um filtro verde cobriu

minha visão, como se eu tivesse colocado óculos escuros de lentes

verdes. Isso fazia com que o brilho de minha mão parecesse laranja-vivo

e ele viajava de uma estaca à outra, atravessando a rabiola de tecido.

O chão tremeu e fomos envolvidos numa bolha de calor. Fraca demais

para continuar, minha mão escorregou e tornei a desabar de encontro a

Kishan, que me pegou no colo novamente. Uma pequena bolha de

estática se formou entre as duas estacas e começou a crescer. As cores

mudavam dentro da bolha, inicialmente muito borradas para que fosse

possível distingui-las, mas foram crescendo e começaram e entrar em

foco. Ouvi um estouro e a imagem tornou-se nítida.

Vi a grama verde e um sol amarelo e quente. Rebanhos de animais

pastavam preguiçosamente em meio a árvores frondosas. De onde

estávamos, eu inalava o perfume de flores e sentia o sol em meu rosto,

embora o granizo gelado ainda caísse sobre mim. Kishan deu um passo à

frente, depois outro. Ele me carregou para o paraíso. Com a cabeça

recostada em seu braço, eu escutava o som da tempestade morrer. O ar

frio se tornou mais distante e depois partiu com um leve estalo. Foi

então que desmaiei.

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18

Coisas boas

Despertei ao amanhecer junto a uma fogueira crepitante. Kishan estava

aquecendo as mãos.

Virei-me e gemi.

-Oi.

- Oi. Como está se sentindo?

- Hum... Na verdade, melhor.

Ele resmungou.

- Seu ferimento começou a cicatrizar assim que chegamos a este lugar.

- Dormi por quanto tempo?

- Cerca de 12 horas. Você se curou aqui quase tão depressa quanto Ren e

eu do lado de fora.

Estendi as pernas e fiquei aliviada. A dor era ruim, mas uma infecção

era pior. Eu estivera de certa forma contando com o amuleto de Kishan

para me curar, mas não estava funcionando como o Sr. Kadam dissera.

Talvez o amuleto de Kishan fizesse algo diferente. Eu tivera sorte.

- Estou faminta. O que temos para o café da manhã? - perguntei.

- O que gostaria de comer?

- Que tal panquecas com gotas de chocolate e um copo bem grande de

leite?

- Parece bom. Vou querer o mesmo.

Kishan pediu ao Fruto Dourado que providenciasse nossa refeição,

agachando-se ao meu lado para comer. Ainda me sentia fraca e, quando

ele me puxou para mais perto, para que me apoiasse nele, não protestei.

Ao contrário, ataquei, contente, minhas panquecas.

- E então, Kishan, onde estamos?

- Não tenho certeza. Cerca de um quilômetro e meio além do portão do

espírito.

- Você me carregou?

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- Sim. - Ele pousou o prato e passou o braço ao meu redor. - Tive medo

de que você morresse.

- Aparentemente, meu retorno dos mortos é um tema recorrente nestas

cidades míticas.

- Espero que esta seja a última vez que você chega tão perto.

- Eu também. Obrigada. Por tudo.

- De nada. A propósito, parece que posso manter a forma humana aqui,

como Ren fez em Kishkindha.

- E mesmo? E como está se sentindo?

- Estranho. Não estou acostumado. Fico esperando o tigre assumir o

controle. Ainda posso me transformar se quiser, mas não sou obrigado a

isso.

- O mesmo aconteceu com Ren. Bem, aproveite enquanto durar. Ren

transformou-se de volta no instante em que deixamos Kishkindha.

Ele murmurou algo e começou a vasculhar a mochila.

- Pode me dar a profecia e as notas do Sr. Kadam? - pedi. - A primeira

tarefa é achar a pedra ônfalo, a pedra do umbigo, a pedra da profecia.

Quando olharmos dentro dela, ela nos mostrará onde encontrar a

árvore. A pedra parece uma bola de futebol americano apoiada numa

das extremidades com um buraco no topo.

- E como é uma bola de futebol americano?

- É meio ovalada.

Levantei-me com as pernas trêmulas.

- Não acha que devia descansar um pouco mais?

- Estou me sentindo bem descansada e, além disso, quanto mais rápido

encontrarmos a pedra, mais cedo resgataremos Ren.

- Tudo bem, mas avançaremos devagar. Está bem quente aqui. Não

gostaria de trocar as roupas de neve primeiro?

Olhei para minha calça rasgada.

- É melhor.

Kishan tirara meu casaco, mas eu estava suando com a calça térmica.

Ele já se trocara e agora usava calça jeans, botas de montanhismo e uma

camiseta preta.

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- Não enjoa de preto?

Ele deu de ombros.

- Eu me sinto bem assim.

- Hum.

- Enquanto você se troca, vou verificar a área e tentar encontrar uma

trilha para seguirmos. - Ele sorriu. - E não se preocupe. Não vou espiar.

- Acho bom.

Ele riu e se afastou andando pela grama, em direção ao início do

bosque. Enquanto eu mudava de roupa, examinei assombrada minha

calça rasgada. Aquele urso me pegou de jeito. Chequei a perna e a

panturrilha. Não havia mais nenhum ferimento. Nem uma cicatriz

sequer. A pele estava normal e rosada, como se nunca tivesse sido

machucada.

Quando Kishan voltou, eu já havia me lavado usando a melhor solução

que pude encontrar - uma panela de chá de rosas quente, cortesia do

Fruto Dourado, e uma camiseta. Joguei o restante do chá de rosas no

cabelo, escovei-o e o prendi numa trança que caía pelas minhas costas.

Eu já vestira uma camiseta de mangas compridas, calça jeans e botas de

montanhismo para combinar com Kishan quando ele gritou, avisando

de sua chegada, e entrou no acampamento. Ele me olhou de cima a

baixo com aprovação masculina e sorriu.

- Está rindo de quê?

- De você. Está com uma aparência muito melhor.

- Ah! O que eu não daria por um banho! Mas me sinto melhor.

- Encontrei um riacho que corre junto ao início do bosque com uma

trilha. Acho que pode ser um bom lugar para começarmos. Vamos?

Concordei com a cabeça enquanto ele colocava a mochila em seus

ombros e seguimos para as árvores. Quando chegamos ao riacho,

espantei-me com sua beleza. Flores maravilhosas brotavam junto a

pedras e troncos de árvores. Reconheci narcisos crescendo nas margens

e contei a Kishan a história da mitologia grega sobre o belo homem que

se apaixonou pelo próprio reflexo.

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Ele escutou, absorto, e ficamos os dois tão envolvidos com a história

que não notamos os animais. Estávamos sendo seguidos por criaturas da

floresta. Paramos e um par de coelhos veio, saltando, nos olhar com

curiosidade. Esquilos pulavam de árvore em árvore, aproximando-se,

como se quisessem escutar a história. Eles saltaram para um galho que

se curvou com seu peso e os trouxe para apenas alguns metros de nós. O

bosque estava cheio de criaturas. Vi raposas, cervos e pássaros de todas

as espécies. Ergui a mão e um belo cardeal vermelho pousou

delicadamente no meu dedo.

Kishan levantou o braço e um falcão de olhos dourados voou do topo da

árvore para se equilibrar em seu antebraço. Andei até uma raposa que,

destemida, observou minha aproximação. Esticando a mão, acariciei sua

cabeça peluda e macia.

- Estou me sentindo a Branca de Neve! É incrível! Que lugar é este?

Ele riu.

- O paraíso. Está lembrada?

Caminhamos o dia todo, escoltados às vezes por uma variedade de

animais. À tarde deixamos a floresta e encontramos cavalos pastando

num prado repleto de flores silvestres. Colhi algumas a fim de fazer um

buquê. Os cavalos vieram trotando para investigar.

Kishan deu-lhes maçãs de uma árvore próxima e eu trancei flores na

crina de uma linda égua branca. Eles andaram ao nosso lado por algum

tempo.

No início da noite avistamos uma estrutura no sopé de uma grande

colina. Kishan quis montar acampamento para que pudéssemos dormir

e explorar a área no dia seguinte.

Naquela noite, deitei-me de lado no saco de dormir com uma das mãos

sob o rosto e disse a ele:

- É como o Jardim do Éden! Jamais imaginei que um lugar assim

existisse!

- Ah, mas, se bem me lembro, havia uma serpente no jardim.

- Bem, se não havia uma aqui antes, agora há.

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Olhei para Fanindra. Suas dobras douradas ainda estavam duras e

imóveis, enquanto ela descansava perto da minha cabeça. Voltei-me

para Kishan, que atiçava o fogo com um galho.

- Não está cansado? Avançamos bastante hoje. Não quer dormir?

Ele me deu uma olhada rápida.

- Daqui a pouco.

- Ah, tudo bem. Guardarei um espaço para você.

- Kelsey, acho que seria prudente de minha parte dormir do outro lado

da fogueira. Você ficará bastante aquecida aqui, sozinha.

Olhei para ele, curiosa.

- É verdade, mas há bastante espaço, e prometo não roncar.

Ele deu uma risada nervosa.

- Não é isso. Sou homem o tempo inteiro agora e seria difícil para mim

dormir com você sem... abraçá-la. Dormir ao seu lado como tigre, tudo

bem, mas como homem é diferente.

- Ah, uma vez eu disse o mesmo para Ren. Você está certo. Deveria ter

pensado nisso e não deixá-lo numa posição desconfortável.

Ele bufou, irônico.

- Não estava preocupado em me sentir desconfortável, mas sim em me

sentir um pouco confortável demais. - Ah, tá. - Agora eu estava nervosa. - Então... é... quer ficar com o saco

de dormir? Posso usar minha colcha.

- Não. Estou bem, bilauta. Alguns minutos depois, Kishan acomodou-se do outro lado da fogueira.

Ele enfiou as mãos sob a cabeça e disse:

- Conte-me outra lenda grega.

- Certo. - Pensei por um momento. - Era uma vez uma bela ninfa,

chamada Clóris, que cuidava das flores e da primavera, ordenando aos

brotos das árvores que florescessem. Seus longos cabelos louros

cheiravam a rosas e estavam sempre enfeitados com uma grinalda de

flores. Sua pele era macia como pétalas de rosas. Seus lábios rosados

formavam o biquinho de uma peônia e suas faces se assemelhavam a

orquídeas em flor. Embora fosse amada por todos que a conheciam,

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Clóris desejava um companheiro, um homem que pudesse apreciar sua

paixão por flores e que desse à sua vida um sentido mais profundo.

- Continue - disse Kishan, quando fiz uma pausa.

- Uma tarde, ela cuidava dos copos-de-leite e sentiu uma brisa morna

soprar seu cabelo. Um homem entrou no prado e deteve-se, admirando

seu jardim. Ele era bonito, com cabelos escuros agitando-se ao vento e

usava uma capa púrpura. A princípio, não a viu; ela o observou de um

caramanchão coberto de folhas enquanto ele caminhava entre as flores.

Os narcisos levantaram a cabeça à sua aproximação. Ele apanhou entre

as mãos um botão de rosa para inalar sua fragrância e a flor abriu as

pétalas e desabrochou em sua palma. Os lírios estremeceram ao seu

toque e as tulipas curvaram seus longos caules em sua direção.

- Hum... E o que fez a mulher?

- Clóris ficou surpresa. Normalmente suas flores só reagiam a ela. As

hastes de lavanda tentaram se enroscar nas pernas dele quando passou.

Ela cruzou os braços e franziu a testa para elas. Os gladíolos todos se

abriram ao mesmo tempo, em vez de se alternarem como seria

esperado, e as ervilhas-de-cheiro dançavam para a frente e para trás,

tentando atrair a atenção dele. Ela arquejou de leve ao ver o flox tentar

desenterrar as próprias raízes. "Chega!", disse ela. "Comportem-se!" O

homem se virou e a viu oculta entre as folhas. "Pode sair", chamou.

"Não vou machucá-la." Ela suspirou, empurrou as gardênias para o lado

e saiu ao sol, os pés descalços pisando na relva.

Uma brisa suave soprou pelo jardim quando o homem inspirou de leve.

Clóris era mais linda que qualquer uma das flores que ele viera admirar.

Ele se apaixonou imediatamente por ela e caiu de joelhos à sua frente.

Ela implorou que ele se erguesse. O homem se pôs de pé e o vento

morno levantou sua capa e envolveu os dois em suas ondas púrpura.

Clóris riu e ofereceu-lhe uma rosa prateada. Sorrindo, ele arrancou as

pétalas, atirando-as no ar.

Como Kishan nada dizia, continuei a contar a história.

- De início, ela ficou aborrecida, mas então ele girou o dedo e as pétalas

formaram uma espiral ao redor deles, num túnel de vento. Ela bateu

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palmas, deliciada, ao ver as pétalas dançarem. "Quem é você?",

perguntou. "Meu nome é Zéfiro", ele respondeu. "Sou o vento do oeste."

Ofereceu-lhe a mão. Quando ela pousou sua mão na dele, ele a puxou

para si e a beijou. Acariciando seu rosto macio com a ponta dos dedos,

ele disse: "Há séculos viajo pelo mundo e você é a donzela mais linda

que já vi. Diga-me, por favor, qual é o seu nome?" Corando, ela

respondeu: "Clóris." Ele envolveu suas mãos pequenas com as dele e fez

uma promessa. "Voltarei na próxima primavera. Quero que seja minha

esposa. Se você me quiser." Clóris assentiu timidamente. Ele tornou a

beijá-la e a capa púrpura esvoaçou ao seu redor. "Até nosso próximo

encontro, no próximo ano, minha Flora." O vento o levou rapidamente

para longe.

Achei que tivesse escutado alguém se aproximar, mas meus sentidos me

enganaram. Retomei meu relato.

- Durante todo o ano ela se preparou para a chegada de Zéfiro. Seu

jardim estava mais belo do que nunca e as flores, mais felizes. Sempre

que pensava nele, sentia o beijo de sua brisa roçar-lhe o rosto. Na

primavera seguinte, ele voltou e encontrou sua linda noiva à espera, e

os dois se casaram cercados por milhares de florações. Tiveram um

casamento feliz. Ela cuidava dos jardins, enquanto a cada primavera o

vento oeste de seu marido espalhava suavemente o pólen. Seus jardins

eram os mais lindos, os mais famosos e pessoas vinham de todas as

partes do mundo admirá-los. Eles se adoravam e o amor deles era

generoso. Tiveram um filho chamado Carpo, que significa "fruto".

Fiz uma pausa.

- Kishan?

Ouvi um ronco leve vindo do outro lado da fogueira. Perguntei-me

quando ele pegara no sono e disse baixinho:

- Boa noite, Kishan.

Na manhã seguinte acordei com um som de mastigação acima da minha

cabeça. Olhei para cima e vi um corpo alto e amarelo, com círculos

negros, e sussurrei:

- Kishan, acorde!

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- Já estou acordado e vigiando, Kells. Não tenha medo. Ela não vai ma-

chucá-la.

- É uma girafa!

- É. E há alguns gorilas se movimentando naquelas árvores.

Virei-me devagar e vi uma família de gorilas apanhando frutas de uma

árvore.

- Vão nos atacar?

- Não estão reagindo como gorilas normais, mas só há um modo de

saber. Fique aqui.

Ele desapareceu entre as árvores, surgiu um momento depois na forma

de tigre e foi até a girafa. Ela piscou para ele seus olhos de cílios longos

e voltou calmamente a arrancar as folhas do alto das árvores com a

língua. O mesmo aconteceu quando ele seguiu na direção dos gorilas.

Eles o observaram preguiçosamente e tagarelaram entre eles. Então

voltaram ao seu café da manhã, mesmo quando ele se aproximou de um

dos bebês.

Kishan se transformou de novo em homem, olhando atentamente os

animais.

- Muito interessante. Eles não estão com medo de mim.

Comecei a desfazer o acampamento.

- Você perdeu suas roupas de montanhismo. Está de volta ao preto.

- Não perdi, não. Deixei-as entre as árvores. Já volto.

Depois do café da manhã, caminhamos até a grande estrutura que

tínhamos visto no dia anterior. Era imensa, feita de madeira e,

obviamente, muito antiga. Uma grande rampa apodrecida levava ao seu

interior. Quando nos aproximamos, exclamei:

- É um barco!

- Acho que não, Kells. É grande demais para ser um barco.

- É, sim, Kishan. Acho que é a arca!

- O quê?

- A Arca de Noé. Lembra-se de quando o Sr. Kadam falou sobre todos os

mitos do dilúvio? Bem, se esta de fato é a montanha onde Noé aportou,

então aquilo deve ser o que restou de seu barco. Vamos!

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Caminhamos até a imensa estrutura de madeira e espiamos lá dentro.

Eu queria subir e dar uma olhada, mas Kishan me advertiu.

- Espere, Kells. A madeira está podre. Deixe-me ir primeiro e fazer um

teste.

Ele desapareceu dentro da barriga escancarada da construção e surgiu

alguns minutos depois.

- Acho que é seguro o bastante, se você ficar bem atrás de mim.

Entrei atrás dele. Estava escuro, mas, nos lugares onde a madeira havia

caído do teto, aberturas irregulares deixavam a luz do sol entrar. Eu

esperava ver baias de alguma espécie para conter os animais, porém não

havia nenhuma. Havia, sim, alguns níveis com degraus de madeira, mas

Kishan achou que os degraus seriam perigosos demais. Peguei a câmera

e tirei algumas fotos para o Sr. Kadam.

Mais tarde, ao sairmos da relíquia de madeira, eu disse:

- Kishan... tenho uma teoria. Acho que a Arca de Noé realmente

aportou aqui e os animais que vimos são descendentes daqueles animais

originais. Talvez seja por isso que eles tenham um comportamento

diferente. O único lugar em que viveram foi aqui.

- Só porque um animal vive no paraíso não significa que ele não tenha

instintos. Eles são muito poderosos. O instinto de proteger o território,

de caçar o alimento e de... - ele olhou para mim propositalmente -

encontrar um companheiro pode ser irresistível.

Limpei a garganta.

- Certo. Mas a comida é abundante aqui e tenho certeza de que existem

muitos - gesticulei com a mão no ar - companheiros para todos.

Ele ergueu uma sobrancelha.

- Talvez. Mas como você sabe que é sempre assim? Talvez o inverno

venha numa época diferente aqui.

- Pode ser, mas acho que não. Vi flores crescendo que florescem na

primavera, mas também vi flores que florescem no outono. É estranho.

É como se reunisse o melhor de tudo. Os animais são todos perfeitos e

bem alimentados.

- Sim, mas não vimos nenhum predador ainda.

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- É verdade. Vamos manter os olhos abertos.

Peguei o caderno e comecei a categorizar o que tínhamos visto. O lugar

lembrava mesmo um paraíso e, aparentemente, Kishan e eu éramos os

únicos seres humanos ali. O aroma fresco de flores, maçãs, frutas

cítricas e grama pairava no ar. A temperatura estava perfeita - nem

quente demais, nem fria demais.

Parecia um jardim bem cuidado. Eu não via nada que se assemelhasse a

uma erva daninha. Seria impossível este tipo de terreno se manter naturalmente, pensei. Encontramos um ninho de pássaro perfeito, com

ovos azuis pintados. Os pais chilreavam alegremente, sem se

aborrecerem quando nos aproximamos para inspecionar os ovos.

Também fiz uma lista de todas as criaturas com que travamos contato.

No início da tarde, tínhamos visto centenas de animais diferentes que

eu sabia que não deveriam estar vivendo naquele meio ambiente -

elefantes, camelos e até cangurus.

Já perto do anoitecer avistamos nossos primeiros predadores - um

bando de leões. Kishan os farejou a quase dois quilômetros de suas

terras e decidimos olhar mais de perto. Ele me fez subir numa árvore

enquanto investigava. Por fim, ele voltou, com um olhar de espanto.

- Há um grande rebanho de antílopes perto do bando, mas eles estão

pastando ao lado dos leões! Vi uma leoa comendo algo vermelho, que

pensei ser carne, mas na verdade era uma fruta. Os leões estavam

comendo maçãs!

Comecei a descer. Kishan me pegou pela cintura e me levou até o chão.

- Então minha teoria estava correta. Aqui é realmente como o Jardim do

Éden. Os animais não caçam.

- Parece que você acertou. Ainda assim, gostaria de guardar certa

distância entre nós e os leões antes de acamparmos.

Mais tarde identificamos outros predadores - lobos, panteras, ursos e até

outro tigre. Eles não fizeram qualquer movimento contra nós. Na

verdade, os lobos eram tão amigáveis quanto cães e se aproximaram

para que os acariciássemos.

Kishan resmungou.

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- Isso é estranho... Me deixa nervoso!

- Sei o que quer dizer, mas... eu gosto. Queria que Ren pudesse ver este

lugar.

Kishan não respondeu, apenas me apressou para deixarmos os lobos e

seguirmos em frente.

Ao anoitecer nos deparamos com uma clareira cheia de narcisos no

meio de uma floresta. Tínhamos acabado de montar acampamento

quando ouvi a melodia doce e melancólica de uma flauta. Nós dois nos

imobilizamos. Era a primeira evidência de que havia pessoas ali.

- O que fazemos? - perguntei.

- Deixe-me ir ver.

- Acho que nós dois devíamos ir.

Kishan deu de ombros e rapidamente fui atrás dele. Seguimos as notas

persistentes do misterioso som e encontramos a fonte da música sentada

numa pedra elevada junto a um córrego, tocando uma flauta de bambu.

A criatura segurava o instrumento delicadamente entre as mãos e o

soprava de leve. Quando nos aproximamos, hesitantes, ela parou de

tocar e sorriu.

Seus olhos eram de um verde vivo, brilhando num lindo rosto. Seu

cabelo prateado, na altura dos ombros, caía solto. Dois pequenos chifres

castanhos e aveludados despontavam do alto de sua cabeleira brilhante,

lembrando um jovem cervo começando a desenvolver a galhada. Era

ligeiramente menor que um ser humano de altura mediana e sua pele

era branca, com um tom ligeiramente lilás. Estava descalço, mas usava

uma calça que parecia feita de um tecido que imitava couro. Sua camisa

de manga comprida era cor de romã.

Ele pendurou a flauta no pescoço e olhou para nós.

- Olá.

Kishan respondeu, cauteloso:

-Olá.

- Estava esperando sua chegada. Todos nós estávamos.

- Nós, quem? - perguntei.

- Eu, os silvanos e as fadas.

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Perplexo, Kishan acrescentou:

- Vocês estavam nos esperando?

- Ah, sim. Na verdade, há muito tempo. Devem estar cansados. Venham

comigo e eu lhes darei algo para beber.

Kishan continuou grudado no chão. Dei a volta por ele.

- Oi, meu nome é Kelsey.

- Muito prazer. O meu é Fauno.

- Fauno? Já ouvi esse nome antes.

- Ouviu?

- Sim! Você é Pã!

- Pã? Não. Eu sou Fauno. Pelo menos é o que minha família me diz.

Venham.

Ele se levantou, saltou sobre uma rocha e desapareceu na floresta, por

um caminho de pedras. Virei-me e segurei a mão de Kishan.

- Vamos. Confio nele.

- Eu não.

Apertei a mão dele e sussurrei:

- Está tudo bem. Acho que você daria conta dele.

Kishan aumentou a pressão em minha mão e deixou que eu fosse na

frente, seguindo nosso guia.

Seguimos Fauno através de árvores frondosas e logo ouvimos o riso

agudo de muitas pessoas. Ao nos aproximarmos da aldeia, percebi que o

som era algo que eu jamais ouvira gente produzir. Era sobrenatural.

- Fauno... o que são silvanos?

- São o povo das árvores, as ninfas das árvores.

- Ninfas das árvores?

- Sim. De onde vocês vêm não existe povo das árvores?

- Não. Também não temos fadas.

Ele pareceu confuso.

- Que tipo de gente sai de uma árvore quando ela se parte?

- Até onde sei, nenhum. Na verdade, acho que nunca vi uma árvore se

partir, a não ser quando um raio a atinge ou alguém a derruba.

Ele se deteve.

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- Seu povo derruba árvores?

- Na minha terra? Sim.

Ele balançou a cabeça com tristeza.

- Fico muito feliz de viver aqui. Pobres árvores! Eu me pergunto o que

será das futuras gerações.

Olhei para Kishan, que sacudiu a cabeça imperceptivelmente, antes de

recomeçarmos a andar.

Quando a noite caiu, passamos por baixo de um amplo arco repleto de

centenas de rosas trepadeiras em miniatura, em todas as variedades de

cor, e entramos na aldeia dos silvanos. Lanternas pendiam de

trepadeiras semelhantes a cordas, que desciam das maiores árvores que

eu já vira. As pequenas luzes dentro das lanternas pulavam para cima e

para baixo em suas casas de vidro, cada uma de uma cor viva e diferente

- rosa, prata, turquesa, laranja, amarelo e violeta. Olhando mais de

perto, vi que as luzes eram criaturas vivas. Eram fadas!

- Kishan! Olhe! Elas brilham como vaga-lumes!

As fadas pareciam grandes borboletas, mas seu brilho não vinha do

corpo. A luz suave emanava de suas asas coloridas, que se abriam e

fechavam preguiçosamente, enquanto as pequenas criaturas

permaneciam sentadas num suporte de madeira.

Apontei para uma delas.

- Elas são...

- Lâmpadas? São. Elas têm turnos de duas horas como lanterna, à noite.

Gostam de ler em serviço. Isso as mantém acordadas. Se dormirem, suas

luzes se apagam.

- Certo. Claro - murmurei.

Entramos com ele no povoado. Os pequenos chalés eram feitos de

plantas fibrosas entrelaçadas e se encontravam dispostos em círculo ao

redor de um trecho gramado. A área central havia sido preparada para

um banquete. Uma árvore gigantesca se erguia atrás de cada cabana; os

galhos se estendiam no alto, enlaçando seus ramos aos das árvores

vizinhas e criando assim um belo caramanchão verde acima de nós.

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Fauno segurou sua flauta e tocou uma melodia alegre. Pessoas graciosas

e delicadas começaram a sair de seus chalés e saltar de esconderijos em

meio à folhagem.

- Venham! Venham conhecer quem estávamos esperando! Estes são

Kelsey e Kishan. Vamos dar-lhes as boas-vindas.

Rostos radiantes se aproximaram. Todos tinham cabelo prateado e olhos

verdes como os de Fauno. Eram belos seres masculinos e femininos,

vestidos com roupas de tecidos finos cintilantes, nas cores vivas das

flores que brotavam por toda parte.

Fauno virou-se para mim:

- Gostariam de comer ou de tomar banho primeiro?

Surpresa, eu disse:

- Banho primeiro. Se não for problema.

Ele se curvou.

- Claro. Antrácia, Phiale e Deiopeia, por favor, levem Kelsey à lagoa de

banho feminina.

Três silvanas adoráveis timidamente se aproximaram de mim. Duas

delas pegaram minhas mãos, enquanto a terceira me guiou para fora da

clareira, floresta adentro. Kishan franziu a testa, obviamente aborrecido

com nossa separação, mas notei que ele foi logo levado embora também,

numa direção diferente.

As mulheres eram ligeiramente menores que Fauno, cerca de 20

centímetros mais baixas que eu. Minhas acompanhantes seguiram um

caminho iluminado por luzes coloridas de fadas até chegarmos a um

lago redondo, alimentado por um pequeno riacho. A água caía de

grandes pedras para pedras menores e depois para o lago, criando um

diminuto e oculto borrifo de água. Funcionava como uma grande ducha

constantemente aberta.

Elas tiraram minha mochila e desapareceram, enquanto eu despia o

restante das roupas e entrava no lago. A água estava

surpreendentemente quente. Uma rocha longa e submersa, conveniente

demais para ser natural, estendia-se ao longo do arco dentro do lago,

servindo de apoio para pisar e para sentar, quando se entrava na água.

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Depois que molhei o cabelo, as três ninfas voltaram trazendo tigelas

com líquidos aromáticos. Deixaram-me escolher a fragrância que mais

me agradava e me entregaram uma bola de musgo que funcionava como

bucha. Esfreguei minha pele com o sabonete perfumado, eliminando a

sujeira, enquanto Phiale ensaboava meu cabelo com três produtos

diferentes, fazendo-me enxaguá-lo a cada vez sob a pequena queda-

d'água.

As luzes de fada brilhavam calorosamente. Quando saí do lago e as

mulheres envolveram meu corpo e meu cabelo num tecido macio,

minha pele e meu couro cabeludo estavam formigando, e eu me sentia

relaxada e refrescada. An- trácia massageou minha pele com uma loção

perfumada, enquanto Phiale trabalhava em meu cabelo. Deiopeia

desapareceu brevemente e voltou com um belo vestido de tecido muito

leve, verde-pálido, bordado com flores cintilantes.

Estendi a mão para tocar o vestido.

- É lindo! O bordado é tão benfeito que as flores parecem reais.

Ela riu.

- Elas são reais.

- Não pode ser! Como vocês as prenderam no tecido?

- Não as prendemos. Elas cresceram nele. Pedimos que fossem parte

deste vestido e elas concordaram.

Antrácia perguntou:

- Não gostou?

- Eu amei! Ficarei muito feliz de usá-lo.

Todas sorriam e cantarolavam, contentes, enquanto me arrumavam.

Após terminarem, trouxeram um espelho prateado encaixado numa

moldura oval entalhada com flores entrelaçadas.

- O que acha, Kelsey? Satisfeita com sua aparência?

Fitei a pessoa no espelho.

- Esta sou eu?

Elas irromperam em risadinhas.

- Sim, claro. É você.

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Fiquei paralisada. A mulher descalça que me olhava do espelho tinha

grandes olhos castanhos de corça e pele clara e macia irradiando saúde.

Uma sombra verde cintilante intensificava meu olhar e meus cílios

estavam longos e escuros. Meus lábios brilhavam com gloss vermelho-

maçã e minhas bochechas estavam rosadas. O vestido verde em estilo

grego fazia com que eu parecesse mais curvilínea do que era. Era

drapeado nos ombros, preso na cintura e caía até o chão em longas

dobras. Meus cabelos estavam soltos e ondulados sobre as costas,

terminando logo acima da cintura. Eu não havia me dado conta de que

ele havia crescido tanto. Estava enfeitado com flores e asas de

borboleta.

As asas moveram-se ligeiramente. Haveria fadas segurando meu cabelo em feixes ondulados? - Uau! As fadas não precisam ficar no meu cabelo. Tenho certeza de que

prefeririam fazer outra coisa.

Phiale balançou a cabeça.

- Absolutamente. Elas se consideram honradas em segurar os cabelos de

alguém tão bonita quanto você. Elas dizem que seu cabelo é lindo e

macio, e que ficar nele é como descansar numa nuvem. Sentem-se

felizes quando podem servir. Por favor, deixe-as ficar.

Sorri.

- Tudo bem, mas só durante o jantar.

As três silvanas ficaram me enfeitando por mais alguns minutos e então

me declararam apresentável. Começamos a caminhar de volta à aldeia.

Pouco antes de chegarmos à área do banquete, Deiopeia me entregou

um buquê de flores perfumado.

- Hum... Não estou me casando nem nada parecido, certo?

- Casando-se? Ora, não.

- Quer se casar? - perguntou Phiale.

Fiz um gesto com a mão.

- Não, só perguntei por causa do lindo vestido e do buquê de flores.

- Esses são os costumes de casamento em sua terra?

- São.

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Deiopeia deu uma risadinha nervosa.

- Bem, se quisesse se casar, seu homem também está muito bonito.

As três moças recomeçaram com os risinhos e apontaram para a mesa

do banquete, onde Kishan estava sentado, evidentemente frustrado.

Elas saltitaram até a mesa antes de desaparecerem em meio ao grupo de

cabelos prateados. Precisava admitir que Deiopeia tinha razão. Kishan

estava mesmo muito bonito. Eles o haviam vestido com uma calça

branca e uma camisa azul, feita do mesmo material que o meu vestido.

Ele também tomara banho. Ri alto ao vê-lo olhar para as silvanas ao

redor, pouco à vontade, sentindo-se deslocado.

Ele deve ter me ouvido, pois ergueu os olhos e observou a multidão.

Seus olhos se iluminaram ao me ver, mas passaram direto, ainda

procurando. Kishan não me reconheceu! Ri de novo. Dessa vez, seus

olhos voltaram a mim e se detiveram. Erguendo-se devagar, caminhou

em minha direção. Olhou-me de cima a baixo, com um largo sorriso no

rosto, e soltou uma gargalhada.

Aborrecida, perguntei:

- Do que você está rindo?

Ele pegou minhas mãos nas dele e olhou nos meus olhos.

- De nada, Kelsey. Você é a criatura mais encantadora que já vi na vida.

- Ah. Obrigada. Mas por que você riu?

- Ri porque sou eu que tenho a sorte de vê-la assim, de estar com você

neste paraíso, enquanto Ren foi perseguido por macacos e lutou contra

árvores de agulhas. Obviamente, fiquei com a melhor busca.

- Sem dúvida. Pelo menos até agora. Mas proíbo você de provocá-lo com

isso.

- Está brincando? Meu plano é tirar uma foto sua e contar tudo para ele

nos mínimos detalhes. Aliás, fique bem aí.

Kishan desapareceu e retornou com uma câmera.

Franzi a testa.

- Kishan. - Ren iria querer uma foto. Pode acreditar. Agora, sorria e segure suas

flores.

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Ele tirou várias fotos, guardou a pequena câmera no bolso e pegou

minha mão.

- Você está linda, Kelsey.

Corei com o elogio, mas um sentimento de melancolia me invadiu.

Pensei em Ren. Ele teria adorado este lugar. Era uma cena saída

diretamente de Sonho de uma noite de verão. Ele teria sido o belo

Oberon para minha Titânia.

Kishan tocou meu rosto.

- A tristeza está de volta. Isso parte meu coração, Kells. - Ele se inclinou

e beijou meu rosto suavemente. - Você me daria a honra de me

acompanhar no jantar, apsaras rajkumari?

Tentei me animar e sorri.

- Sim, se você me disser do que acabou de me chamar.

Seus olhos dourados cintilaram.

- Eu a chamei de "princesa", "princesa das fadas" para ser exato.

Eu ri.

- Ah, é? E você? Como se chamaria?

- Eu sou o belo príncipe consorte, naturalmente.

Ele passou meu braço pelo dele e me ajudou a me acomodar à mesa.

Fauno sentou-se numa cadeira à nossa frente, ao lado de uma silvana

adorável.

- Posso apresentar-lhes nossa soberana?

- Claro - eu disse.

- Kelsey e Kishan, esta é Dríope, rainha dos silvanos.

Ela assentiu delicadamente e sorriu. Em seguida anunciou:

- Está na hora do banquete! Aproveitem!

Eu não sabia por onde começar. Travessas com delicados biscoitos finos

como renda e pães de mel estavam arrumadas ao lado de tortas de

limão, pratos com compotas de frutas, pequenas quiches e crepes de

canela. Servi-me de salada de folhas de dente-de-leão com frutas secas e

molho de limão, e de uma porção de galette de cogumelo, cebola e

maçã, com queijo stilton assado. Também foram trazidos pratos com

torta de ameixa, pãezinhos de mirtilo e bolinhos de abóbora com

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recheio de queijo cremoso, pães salgados com manteiga e geléias de

frutas.

Bebemos néctar de flores adoçado com mel e refresco de melancia.

Kishan me serviu uma minúscula cestinha de massa recheada com

framboesas e coberta com creme de leite fresco. Todos os alimentos

eram pequenos, exceto o prato final: um gigantesco bolo de morango.

Uma calda vermelha pingava pelos lados da massa branca, recheada

com morangos doces e creme leve. Coberto com chantili e polvilhado

com açúcar, foi servido acompanhado por leite.

Quando terminamos, inclinei-me para Kishan e disse:

- Não fazia idéia de que os vegetarianos comiam tão bem.

Ele riu e se serviu de mais uma fatia de bolo.

Limpei os lábios com o guardanapo.

- Fauno, posso lhe fazer uma pergunta?

Ele assentiu.

- Encontramos as ruínas da arca. Você sabe sobre Noé e os animais?

- Ah, está falando do barco? Sim, vimos o barco parar nas colinas e todos

os tipos de criatura emergiram dele. Muitas delas deixaram nosso reino

e entraram no seu mundo, inclusive as pessoas que estavam a bordo.

Algumas das criaturas resolveram ficar. Outras tiveram gerações de

descendentes e depois voltaram para nós. Concordamos em deixar que

todos ficassem se agissem de acordo com a lei da nossa terra: a de que

nenhum ser vivo pode machucar outro.

- Isso é... incrível!

- É mesmo maravilhoso que tantos animais tenham voltado para nós.

Aqui eles encontram paz.

- Assim como nós. Fauno... estamos procurando a pedra ônfalo ou pedra

do umbigo. Você já a viu?

Todos os silvanos sacudiram a cabeça e Fauno respondeu:

- Não, acho que não conheço essa pedra.

- E uma árvore gigante, com milhares de metros de altura?

Ele refletiu um pouco e depois sacudiu a cabeça.

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- Não. Se essa árvore ou essa pedra existem, encontram-se fora do nosso

reino.

- Quer dizer que estão no meu mundo?

- Não necessariamente. Há outras partes deste mundo que não

controlamos. Enquanto andarem por nossas terras, sob nossas árvores,

vocês estarão seguros, mas, uma vez fora do abrigo de suas copas, não

poderemos mais protegê-los.

- Entendo.

Afundei na cadeira, desapontada.

O rosto dele se iluminou.

- No entanto, talvez encontrem sua resposta se dormirem no Bosque dos

Sonhos. É um lugar especial para nós. Se temos uma pergunta difícil

que precisa de resposta ou se necessitamos de orientação, dormimos lá,

onde podemos descobrir a resposta ou sonhar com o futuro e perceber

que a pergunta não era tão importante afinal.

- Poderíamos experimentar?

- Claro! Levaremos vocês.

Um grupo de silvanas agitadas começou a tagarelar na outra ponta da

mesa.

- Que oportuno vocês terem vindo agora! Uma das árvores está se

partindo! - explicou Fauno. - Venham ver, Kelsey e Kishan! Venham

ver o nascimento de uma ninfa das árvores!

Kishan segurou minha mão enquanto Fauno nos guiava por trás de um

dos chalés. A aldeia inteira aguardava, murmurando baixinho, ao pé da

árvore.

Fauno sussurrou:

- Estas árvores estavam aqui antes da chegada de Noé e de seu barco de

animais. Elas deram à luz muitas gerações de silvanos. Cada chalé que

vocês estão vendo encontra-se na frente de uma árvore de família. Isso

significa que todos que vivem no chalé nasceram da árvore-mãe atrás

dele. Está chegando a hora. Olhem. Reparem como as outras árvores

lhe oferecem apoio.

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Ergui os olhos para o caramanchão frondoso e a impressão realmente

era de que os galhos apertavam os dedos folhosos da árvore que fazia

força. Ela emitia sons de madeira vergando e estalando, enquanto suas

folhas tremiam acima de nós.

As ninfas das árvores pareciam concentradas numa grande saliência

nodosa, próxima de um galho baixo. A árvore estremeceu quando o

longo galho se agitou. Após momentos intensos escutando os profundos

roncos da árvore e observando o tronco se expandir e contrair tão

devagar que eu não teria notado se não estivesse prestando atenção, o

galho de baixo se quebrou, separando-se do enorme tronco com um

estalo terrível.

O silêncio caiu sobre os presentes. O galho ficara pendurado, tocando o

solo perto de nós, preso apenas pela casca da árvore. Encaixada no

espaço onde a base do galho se unia ao tronco estava uma pequena

cabeça prateada.

Um grupo de silvanas se aproximou e começou a falar carinhosamente

com o pequeno ser descansando na árvore. Com todo o cuidado, elas o

levantaram e o envolveram numa manta. Um membro do grupo ergueu

o pequeno bebê silvano no ar e anunciou:

- É um menino!

Elas desapareceram dentro do chalé enquanto todos comemoravam.

Outro grupo de silvanos removeu cuidadosamente da árvore o galho

trêmulo e espalhou uma pomada sobre a marca oval no tronco onde o

galho estivera.

Os silvanos começaram a dançar em torno da árvore e fadinhas voaram

até seu topo e iluminaram todos os galhos com suas asas. Quando a

celebração terminou, já era tarde.

Enquanto Fauno nos acompanhava até o Bosque dos Sonhos, eu lhe

perguntei:

- Agora sabemos de onde vêm os silvanos, mas, e as fadas? Nascem das

árvores também?

Ele riu.

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- Não. As fadas nascem das rosas. Quando a flor envelhece e cai, nós a

deixamos no solo para produzir sementes. Um broto cresce e, quando

chega a hora, uma fada nasce com asas da cor da rosa.

- Vocês são imortais?

- Não, mas vivemos muito. Quando um silvano morre, seu corpo é

depositado nas raízes da árvore-mãe e suas lembranças se tornam parte

das futuras gerações. As fadas só morrem se sua roseira morre, então

podem viver por muito tempo, mas ficam acordadas apenas à noite.

Durante o dia, encontram uma flor para descansar e seu corpo se

transforma em orvalho da manhã. À noite, elas se transformam em

fadas novamente. Ah, chegamos. Este é o Bosque dos Sonhos.

Ele nos levara a uma área isolada. Parecia uma suíte de lua de mel de

fadas. Árvores altas sustentavam uma cama de folhas que pendia de

trepadeiras. Cestas de flores perfumadas achavam-se suspensas em cada

canto do bosque. Travesseiros e roupa de cama de tecido fino eram

bordados com trepadeiras espiraladas e folhas. Um grupo de fadas que

havia nos seguido assumiu seus postos nas lanternas.

- As quatro árvores grandes que sustentam o caramanchão marcam cada

qual uma direção: norte, sul, leste e oeste. Os melhores sonhos

acontecem quando a cabeça aponta para o oeste e você acorda com o sol

no leste. Boa sorte para vocês e bons sonhos.

Fauno sorriu e foi embora, levando duas fadas com ele.

Eu ainda estava de pé, constrangida.

- É... isso é um pouco embaraçoso.

Kishan fitava a cama como se ela fosse um inimigo mortal. Virou-se

para mim e curvou-se galantemente.

- Não se preocupe, Kelsey. Vou dormir no chão.

- Mas... e se o sonho couber a você?

- Você acha que faz diferença eu estar ou não na cama?

- Não faço idéia, porém, em todo caso, acho melhor deitarmos juntos.

Ele ficou tenso.

- Tudo bem. Mas vamos dormir um de costas para o outro.

- Combinado.

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Subi primeiro e afundei na cama e nos travesseiros de penas macias. A

cama balançava para a frente e para trás, como uma rede. Kishan

resmungou ao pôr de lado a mochila. Entendi apenas fragmentos de

frases. Algo sobre princesas das fadas, como ela espera que eu durma, é melhor que Ren agradeça, etc., etc. Abafei o riso e me virei de lado. Ele

puxou a coberta de tecido fino sobre mim e então senti a cama oscilar

quando ele se deitou ao meu lado.

Quando uma brisa agitou de leve meu cabelo, ouvi Kishan dizer:

- Mantenha o cabelo do seu lado, Kells. Faz cócegas.

Eu ri.

- Desculpe.

Puxei o cabelo por sobre o ombro. Ele resmungou um pouco mais, algo

sobre mais do que um homem pode agüentar, e se mexeu em silêncio.

Peguei no sono logo e tive sonhos nítidos com Ren.

Num deles, ele não me conhecia e se afastava de mim. Em outro, estava

rindo e feliz. Estávamos juntos de novo e ele me abraçava e dizia

baixinho que me amava. Sonhei com uma longa corda em chamas e um

colar de pérolas negras. Em outro sonho, eu estava debaixo dagua,

nadando ao lado de Ren, e estávamos cercados por cardumes de peixes

coloridos.

Apesar de os sonhos serem muito claros, não havia pista da pedra

ônfalo. Acordei decepcionada e descobri que estava dormindo cara a

cara com Kishan. Seu braço estava em volta de mim e sua cabeça pesava

sobre o meu cabelo, prendendo-me à cama.

Eu o sacudi.

- Kishan! Kishan! Acorde!

Ele me puxou para mais perto sem abrir os olhos.

- Shh, volte a dormir. Ainda não amanheceu.

- Já é de manhã, sim. - Empurrei-o na altura das costelas. - Hora de

acordar. Vamos!

- Está bem, querida, mas que tal um beijo antes? Um homem precisa de

motivação para sair da cama.

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- Esse tipo de motivação mantém um homem na cama. Não vou beijar

você. Agora, levante-se.

Ele acordou com um sobressalto. Confuso, resmungou e esfregou os

olhos.

- Kelsey?

- Sim, Kelsey. Com quem andou sonhando? Durga?

Ele parou e piscou algumas vezes.

- Isso não é da sua conta. Mas, para sua informação, sonhei com a pedra

ônfalo.

- Sonhou? E onde ela está?

- Não sei descrever. Vou ter que mostrar a você.

- Tudo bem.

Pulei da cama e ajeitei o vestido.

Kishan me observava e comentou:

- Você está mais bonita agora do que na noite passada.

Achei graça.

- Ah, com certeza. Eu me pergunto por que você sonhou com a pedra

ônfalo e eu não.

- Talvez porque você tenha ido para a cama ontem com perguntas

diferentes na cabeça.

Abri a boca mas não falei nada. Ele estava certo. Eu não pensara na

pedra antes de dormir. Meus pensamentos estavam todos concentrados

em Ren.

Ele me olhava, curioso.

- E com que você sonhou, Kells?

- Também não é da sua conta.

Ele estreitou os olhos e franziu a testa.

- Esqueça. Acho que posso imaginar sozinho.

Kishan seguiu à frente na caminhada de volta ao povoado dos silvanos.

A uma curta distância, ele parou e correu de volta para o Bosque dos

Sonhos.

- Já volto. Esqueci uma coisa - gritou por sobre o ombro.

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Quando voltou, Kishan estava com um sorriso de orelha a orelha, mas,

por mais que eu tentasse, não consegui que me contasse o que o deixara

tão feliz.

Coisas ruins ornamos o café da manhã com os silvanos outra vez e recebemos roupas

novas de presente. Ganhamos camisas leves, calças cáqui com um brilho

sutil e botas forradas. Perguntei se eram de couro e as pacíficas criaturas

não sabiam do que eu estava falando. Quando expliquei, pareceram

chocadas e disseram que nenhum animal jamais havia sido ferido ali em

sua terra. Disseram que as fadas teciam todas as suas roupas e que não

havia na Terra nenhum material tão fino, macio e bonito.

Concordei. Elas também acrescentaram que, se você estiver viajando

pela terra dos silvanos e pendurar roupas feitas por fadas no galho de

uma árvore à noite, as fadas limparão e consertarão as roupas enquanto

a pessoa dorme. Agradecemos os presentes e desfrutamos a refeição. Em

seguida Fauno apareceu carregando um recém-nascido.

- Antes de irem, gostaríamos de lhe pedir um favor - disse ele. A família

do novo bebê quer saber se você poderia escolher um nome para seu

filho.

- Tem certeza? - perguntei, confusa. - E se eu der um nome de que eles

não gostem?

- Eles ficarão honrados com qualquer nome que der à criança.

Antes que eu pudesse dizer mais uma palavra de protesto, ele colocou o

minúsculo bebê em meus braços. Um pequeno par de olhos verdes me

fitou do meio da manta macia. Ele era lindo. Eu o ninei e

instintivamente comecei a falar de forma amorosa com ele. Estendi um

dedo para tocar de leve seu nariz e a penugem macia e prateada em sua

cabeça. O bebê, muito mais ativo do que um recém-nascido humano,

estendeu a mão para agarrar um cacho do meü cabelo e o puxou.

Kishan delicadamente tirou meu cabelo do alcance da criança. Em

seguida jogou o restante do cabelo sobre meu ombro. Então tocou a

mão do bebê, que agarrou seu dedo.

- Ele tem força na mão - disse Kishan, rindo.

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- Tem, sim. - Olhei para Kishan. - Gostaria de chamá-lo de Tarak, em

homenagem a seu avô, se você não se importar.

Os olhos dourados de Kishan cintilaram.

- Acho que ele iria gostar de ter um xará.

Quando disse a Fauno que gostaria de chamar o bebê de Tarak, os

silvanos deram vivas. Tarak bocejou, sonolento, indiferente a seu nome

e começou a chupar o dedo.

Kishan passou o braço pelos meus ombros e sussurrou:

- Você vai ser uma boa mãe, Kelsey.

- Neste momento estou mais para tia. Aqui. Sua vez.

Kishan acomodou a criaturinha na curva de seu braço e falou baixinho

com ela em sua língua nativa. Fui trocar de roupa e trançar o cabelo.

Quando voltei, ele embalava o bebê adormecido nos braços e olhava,

pensativo, para seu rosto diminuto.

- Pronto para ir?

Ele me olhou com uma expressão terna.

- Claro. Vou trocar de roupa também.

Ele passou o bebê para a família. Antes de sair, roçou um dedo no meu

rosto e me dirigiu um sorriso. Seu toque era hesitante e doce. Quando

voltou, nos despedimos e pegamos nossa mochila, que agora continha

meu vestido de fada, vários pães de mel e um frasco de néctar de flores.

Então nos pusemos a andar, seguindo para leste.

Kishan parecia saber o caminho, portanto ia na frente. Com freqüência

eu o pegava me olhando com um estranho sorriso no rosto. Depois de

cerca de uma hora de caminhada, perguntei:

- O que deu em você? Está agindo diferente.

- Estou?

- Sim. Poderia dizer por quê?

Ele hesitou por um longo momento e então suspirou.

- Um dos meus sonhos foi com você. Você estava recostada numa cama,

cansada, mas feliz e linda. Tinha um menino recém-nascido de cabelos

escuros nos braços. Você o chamou de Anik. Era seu filho.

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- Ah. - Isso explica por que ele estava agindo diferente comigo. -

Havia... mais alguém lá comigo? - Havia, mas eu não conseguia ver quem.

- Sei.

- Ele parecia conosco, Kelsey. Quero dizer... ou ele era de Ren ou... era

meu.

O quê? Ele está dizendo o que acho que está dizendo? Imaginei um

doce bebezinho com os olhos azuis de Ren; num lampejo, os olhos mudaram de cor e se tornaram tão dourados quanto o deserto do Arizona. Mordi o lábio, nervosa. Isso não é bom. Será que Ren não vai

sobreviver? Será que, de alguma forma, vou ficar com Kishan? Eu sabia que Kishan gostava de mim, mas não conseguia imaginar um futuro no qual eu o escolhesse e não a Ren. Talvez não me fosse dada a opção. Preciso saber! - E você... hã... viu os olhos do bebê?

Ele fez uma pausa e olhou atentamente o meu rosto antes de dizer:

- Não. Os olhos dele estavam fechados. Ele estava dormindo.

- Ah.

Recomecei a caminhar. Ele me deteve e tocou meu braço.

- Uma vez você me perguntou se eu queria ter um lar e uma família. Eu

não pensava que fosse querer isso sem Yesubai, mas, vendo você

daquele jeito no meu sonho, com aquele bebezinho... sim. Eu quero.

Quero aquele bebê. Quero... você. Eu o vi e me senti... possessivo e

orgulhoso. Quero a vida que vi em meu sonho mais do que tudo, Kells.

Achei que você deveria saber disso.

Concordei, calada, e me senti pouco à vontade enquanto ele me

observava.

- Quer me contar o que você sonhou? - perguntou.

Sacudi a cabeça e brinquei com a bainha da minha camisa de fada.

- Não. Não mesmo.

Ele resmungou e seguiu adiante.

Um bebê? Eu sempre quis ser mãe e ter uma família, mas nunca

imaginei que teria dois homens - irmãos, ainda por cima - disputando

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minha atenção. Se Ren, por algum motivo, não sobreviver... não. Vou parar com essa linha de raciocínio agora mesmo. Ele vai sobreviver! Farei tudo o que puder para encontrar Lokesh. Se isso representa perigo para mim, que seja. Caminhamos a tarde toda, fazendo pausas para descansar ao longo do

percurso. Eu estava abalada com a confissão de Kishan. Não queria ter

que lidar com isso, não queria magoá-lo. Havia tantas questões não

resolvidas. As palavras se formavam em minha mente, no entanto eu

não parecia encontrar coragem para tocar no assunto.

Meu coração gritava que queria Ren, porém minha mente me lembrava

de que nem sempre conseguimos o que queremos. Eu queria meus pais

de volta também, e isso era impossível. Meus pensamentos

borbulhavam como água fervente, mas explodiam no vazio vaporoso

quando chegavam à superfície.

Não falamos muito durante o trajeto, exceto para dizer "Cuidado com

aquele tronco" ou "Não pise na poça". Estar com Kishan agora era

diferente, constrangedor. Ele parecia esperar alguma coisa de mim, algo

que era mais do que eu podia dar a ele.

Ele nos conduziu a uma série de morros e seguiu para uma pequena

caverna na base de um deles. Quando chegamos, espiei sua

profundidade sombria.

- Ótimo. Outra caverna. Não gosto de cavernas. Até agora minhas

experiências com elas não foram nada boas.

- Vai ficar tudo bem - replicou ele. - Confie em mim, Kells.

- Como quiser. Por favor, você primeiro.

Ouvi um zumbido que foi aumentando à medida que penetrávamos

mais na caverna. Estava escuro ali. Peguei minha lanterna e corri o

facho de luz pelo lugar. Pilares estreitos de luminosidade rompiam o

solo acima em vários lugares, iluminando as rochas e o chão. Alguma

coisa roçou meu rosto. Abelhas! A caverna estava cheia de abelhas. Das

paredes pendiam favos de mel. Era como se tivéssemos entrado numa

colmeia gigante. No meio da caverna, num pedestal, encontrava-se um

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objeto de pedra com um buraco no topo que não era muito diferente de

uma colméia.

- A pedra ônfalo!

Uma abelha desceu pela gola da minha camisa e me picou.

-Ai!

Esmaguei o inseto com a mão.

- Shh, Kells. Fique quieta. Elas vão nos incomodar menos se nos

movermos devagar e em silêncio e fizermos logo o que viemos fazer.

- Vou tentar.

As abelhas enxameavam, zangadas, à nossa volta. Precisei lançar mão de

toda a minha determinação para não afastá-las violentamente de mim.

Várias pousaram em minhas roupas, mas parecia que os ferrões não

conseguiam penetrar o tecido das fadas. Senti uma picada no pulso e

encolhi as mãos dentro das mangas compridas, mantendo as aberturas

fechadas. Aproximei-me da pedra e olhei lá dentro.

- O que eu faço? - perguntei.

- Tente usar seu poder.

Kishan havia sido picado várias vezes no rosto; na verdade, seu

supercílio já estava inchando. Libertei minhas mãos das mangas e

estremeci quando uma abelha aproveitou a oportunidade para subir

pelo meu braço. Coloquei as mãos nas laterais da pedra e instei o calor a

subir de minha barriga. Uma ardência disparou pelos meus braços até

chegar à pedra.

A pedra se tornou amarela, depois laranja e, em seguida, vermelho vivo.

Ouvi um som sibilante vindo de seu interior e senti o cheiro de fumaça.

Quando um gás opaco começou a encher a caverna, as abelhas foram se

tornando lentas e, por fim, tombaram no chão da caverna como jujubas

gordas e dormiram.

- Acho que talvez você tenha que aspirar os vapores, Kells, feito aqueles

oráculos de que o Sr. Kadam falou.

- Certo. Vamos lá.

Inclinando-me sobre a pedra, inspirei fundo. Vi estrelas cadentes e

cores. A imagem de Kishan tornou-se distorcida, com seu corpo

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retorcido e alongado. Então fui sugada por uma poderosa visão. Quando

acordei, estávamos novamente na selva e Kishan aplicava em minhas

picadas uma substância pegajosa e verde. Dizer que ela exalava um

cheiro forte seria um eufemismo. O fedor permeava meu cabelo,

minhas roupas e tudo à nossa volta.

- Argh! Que coisa nojenta! O que é isso?

Ele estendeu um frasco em minha direção.

- Os silvanos nos deram isso quando eu lhes disse que encontraríamos

muitas abelhas. Eles nunca ouviram falar de abelhas que picam, mas

usam este unguento nas árvores para reparar o dano quando um galho é

quebrado pelo vento. Acreditaram que ajudaria.

- Quando você contou a eles que iríamos a uma caverna de abelhas?

- Quando você estava trocando de roupa. Eles explicaram que essa

caverna ficava fora de seus domínios.

- O cheiro é horrível.

- Mas qual é a sensação?

- É... boa. Calmante e refrescante.

- Então imagino que você possa tolerar o cheiro.

- Acho que sim.

- Você conseguiu? Viu a árvore?

- Sim. Vi a árvore e as quatro casas e algo mais também.

- O que mais?

- Como você disse antes, tem uma serpente no jardim. Para ser

específica, é uma serpente muito grande enrolada na base da árvore,

impedindo que se tenha acesso a ela.

- É um demônio?

Refleti.

- Não. É só uma serpente excepcionalmente grande com um dever a

cumprir. Eu sei como chegar lá. Siga-me e no caminho decidiremos o

que fazer.

- Está bem. Antes, porém... você se importa?

Ele estendeu o unguento e comecei a espalhar a substância em seu

pescoço. Ele tirou a camisa para que eu tivesse acesso às picadas

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vermelhas e inchadas na parte superior de seu tórax e nas costas. Eu

rapidamente me coloquei atrás dele para esconder o rubor em meu

rosto. Embora tentasse não me demorar na tarefa, não pude deixar de

notar que sua pele cor de bronze era macia e quente.

Quando dei a volta, ele jogou o cabelo para trás, afastando-o do rosto

para que eu pudesse espalhar a substância viscosa e verde em suas

bochechas e na testa. Havia uma picada grande perto do lábio superior.

Toquei-a de leve.

-Dói?

Meu olhar subiu de seus lábios para os olhos. Ele me olhava de um jeito

que me fez corar.

- Sim - disse ele baixinho.

Era óbvio que não estava se referindo à picada, então eu não disse nada.

Podia sentir o calor de seu olhar no meu rosto enquanto eu terminava

rapidamente com seu lábio e queixo. Afastei-me dele o mais rápido

possível e recoloquei a tampa no frasco, mantendo-me de costas

enquanto ele vestia a camisa. Comecei a caminhar e ele me alcançou,

acompanhando meu ritmo.

Andamos por mais uma ou duas horas e montamos acampamento

quando o sol se punha. Naquela noite Kishan quis ouvir outra história,

então lhe contei uma das aventuras de Gilgamesh.

- Gilgamesh era um homem muito inteligente. Tão inteligente que

encontrou uma forma de entrar furtivamente no reino dos deuses.

Vestiu um disfarce e fingiu que estava incumbido de uma tarefa de

grande importância. Por meio de perguntas astutas, ele descobriu o

esconderijo da planta da eternidade.

- O que é a planta da eternidade?

- Não tenho certeza. Talvez fossem folhas de chá ou alguma coisa que se

colocava na salada ou na comida. Ou talvez uma erva ou até mesmo

uma droga, como o ópio, mas a questão é que ele a roubou. Quatro dias

e quatro noites ele correu sem parar nem para descansar a fim de

escapar da ira dos deuses. Quando descobriram que a planta havia sido

roubada, ficaram furiosos e anunciaram que haveria uma recompensa

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para quem conseguisse deter Gilgamesh. Na quinta noite, Gilgamesh

estava tão cansado que teve que se deitar para descansar, mesmo que

apenas por alguns instantes.

Tomei fôlego e continuei:

- Enquanto ele dormia, uma cobra em sua caçada noturna passou por ele

e encontrou a planta fragrante, que Gilgamesh havia colocado numa

pequena bolsa de pelo de coelho. Pensando ter conseguido facilmente

um coelho como jantar, a cobra engoliu a bolsa inteira. Na manhã

seguinte, tudo o que Gilgamesh encontrou foi a pele da cobra. Essa foi a

primeira vez que uma cobra trocou de pele. A partir daí, as pessoas

dizem que as cobras têm uma natureza eterna. Quando troca de pele,

ela morre e nasce de novo.

Fiz uma pausa. Kishan estava calado.

- Ficou acordado desta vez? - perguntei.

- Fiquei. Gostei dessa história. Durma bem, bilauta. - Você também.

Mas fiquei acordada por muito tempo. A imagem de um bebê de olhos

dourados me tirou o sono.

Levamos dois dias para encontrar o que eu estava procurando. Eu sabia

que a árvore ficava num vale amplo e que, se subíssemos entre dois

picos, nós a veríamos. Chegamos à base dos picos no primeiro dia e

passamos quase todo o segundo dia escalando. Num mirante, finalmente

olhamos para baixo.

Estávamos num ponto tão elevado que as nuvens obscureciam a visão.

O vento rompeu o manto das nuvens e o vale pareceu ser uma floresta

escura. As árvores eram tão altas que chegavam à altura da montanha.

Em minha visão da pedra ônfalo, eu tinha visto apenas uma árvore com

um tronco enorme.

Apesar de as coisas parecerem diferentes em minha visão, descemos

para o vale. A medida que prosseguíamos, fiquei chocada ao perceber

que o que eu estava vendo não era uma floresta com muitas árvores - e

sim os galhos de uma árvore gigantesca, uma árvore cujos galhos se

estendiam a uma altura maior que a montanha. Quando comentei isso

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com Kishan, ele me lembrou da pesquisa do Sr. Kadam. Peguei os

papéis na mochila e li enquanto andávamos.

- Ele diz aqui que é uma árvore do mundo gigante com raízes que

descem ao submundo e folhas que tocam o céu. Supõe-se que tenha

mais de 300 metros de largura e centenas de metros de altura. Acho que

é esta mesmo.

- Parece que sim - respondeu Kishan, simplesmente.

Quando por fim pisamos no solo gramado do vale, seguimos um galho

gigantesco até o tronco. Como o sol não conseguia penetrar a copa

densa acima, ali embaixo era escuro, frio e sossegado.

O vento soprava através das folhas imensas, que batiam nos galhos

como roupas no varal. Ruídos estranhos e apavorantes assaltavam

nossos ouvidos. Rangendo e gemendo, o vento encontrava maneiras de

soprar acima e através dos poderosos galhos, fazendo parecer que

estávamos andando em meio a uma floresta assombrada.

Kishan se aproximou de mim para segurar minha mão. Aceitei seu

gesto, grata, e tentei ignorar a sensação de estar sendo vigiada. Kishan

sentia o mesmo e disse que era como se estranhas criaturas estivessem

nos estudando de cima. Tentei achar graça.

- Imagine o tamanho das ninfas que nasceriam desta árvore.

Minha intenção fora fazer piada, mas a possibilidade de que isso

pudesse ser verdade fez com que nós dois olhássemos para cima,

desconfiados.

Horas mais tarde, finalmente alcançamos o tronco. Ele se estendia como

um enorme muro de madeira para além do nosso campo de visão. O

galho mais próximo estava a dezenas de metros de altura. Era alto

demais para que o alcançássemos e não tínhamos nenhum equipamento

de escalada.

- Sugiro que acampemos aqui na base e comecemos a contorná-la de

manhã bem cedo - disse Kishan. - Talvez possamos encontrar um galho

mais baixo ou uma forma de escalá-la.

- Parece bom para mim. Estou exausta.

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Ouvi um barulho de asas e fiquei surpresa ao ver um corvo negro

pousar no chão perto de nosso acampamento. Ele grasnou para nós e

bateu as asas ruidosamente ao levantar voo. Não pude deixar de pensar

que esse podia ser um mau agouro, mas preferi não expressar minhas

preocupações a Kishan.

Quando ele pediu uma história naquela noite, contei uma que havia

lido num livro que o Sr. Kadam me dera.

- Odin é um dos deuses do povo nórdico. Ele tem dois corvos chamados

Hugin e Munin. Corvos são ladrões notórios e esses dois corvos de

estimação eram enviados pelo mundo todo para roubar para Odin.

- O que eles pegavam?

- Ah, esse é o aspecto interessante. Hugin roubava pensamentos e

Munin, lembranças. Odin os mandava sair cedo pela manhã e eles

retornavam à noite. Empoleiravam-se nos ombros dele e sussurravam

em seus ouvidos os pensamentos e as lembranças que haviam roubado.

Dessa maneira, ele sabia tudo o que acontecia e as idéias e intenções de

todos.

- Seria conveniente tê-los numa batalha. Você saberia que movimentos

o inimigo planeja.

- Exatamente. E era o que Odin fazia. Mas um dia Munin foi apanhado

por um traidor. Quando Hugin voltou para sussurrar pensamentos na

mente de Odin, este imediatamente os esqueceu. Naquela noite, um

inimigo entrou furtivamente no palácio e derrotou Odin. Depois disso,

as pessoas deixaram de acreditar nos deuses. Hugin fugiu e ambos os

pássaros desapareceram. A lenda dos corvos de Odin é uma das razões

por que se acredita que ver um corvo é mau agouro.

- Kells, você tem medo de que o corvo roube suas lembranças? -

perguntou Kishan.

- Minhas lembranças são o que possuo de mais precioso agora. Eu faria

qualquer coisa para protegê-las, mas não, não tenho medo do corvo.

- Durante muito tempo eu teria dado qualquer coisa para ter minhas

lembranças apagadas. Pensava que, se pudesse esquecer o que

aconteceu, talvez eu fosse capaz de dar continuidade à minha vida.

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- Mas você não ia querer esquecer Yesubai, assim como eu não quero

esquecer Ren nem os meus pais. É triste lembrar, mas faz parte de quem

somos.

- Humm. Boa noite, Kelsey.

- Boa noite, Kishan.

Na manhã seguinte, quando arrumávamos as coisas para começar o dia,

percebi que a pulseira que Ren me dera havia desaparecido. Kishan e eu

procuramos por toda parte, mas não conseguimos encontrá-la.

- Kells, a câmera também sumiu, assim como todos os pães de mel.

- Ah, não! O que mais?

Ele olhou diretamente para o meu pescoço.

- O quê? O que foi?

- O amuleto sumiu.

- O que aconteceu? Como podemos ter sido roubados no meio do nada?

Como não senti alguém tirando coisas do meu corpo enquanto eu

dormia? - gritei, descontrolada.

- Desconfio de que tenha sido o corvo.

- Mas isso não é real! É só um mito!

- Você mesma disse que os mitos com freqüência se baseiam em fatos

reais. Talvez o corvo os tenha levado. Eu teria acordado se tivesse sido

uma pessoa. Um pássaro eu ignoro enquanto durmo.

- O que vamos fazer agora?

- A única coisa que podemos fazer. Prosseguir. Ainda temos nossas

armas e o Fruto Dourado.

- Sim, mas o amuleto!

- Vai ficar tudo bem, Kells. Tenha um pouco de fé, lembra? Como disse

o Mestre do Oceano.

- Para você é fácil falar. Não teve sua única fotografia de Yesubai tirada

de você.

Ele me olhou em silêncio por um momento.

- A única fotografia que já tive de Yesubai é a que tenho na mente.

- Eu sei, mas...

Ele colocou o dedo sob meu queixo e ergueu meu rosto.

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- Você tem uma chance de ter o homem de volta. Não se preocupe tanto

com a fotografia.

- Tem toda a razão. Vamos em frente, então.

Escolhemos seguir pela esquerda do tronco e começamos a caminhar. O

tronco era tão colossal que eu mal podia ver sua curva na distância.

- O que vai acontecer quando encontrarmos a serpente, Kells?

- Não é uma serpente perigosa. Ela simplesmente guarda a árvore. Pelo

menos foi assim que pareceu pela pedra ônfalo. Se a serpente sentir que

temos uma razão legítima para passar, ela vai nos liberar. Se não, vai

tentar nos deter.

Uma ou duas horas depois, eu corria o dedo ao longo da casca do tronco

quando ele se moveu.

- Kishan! Você viu isso?

Ele tocou o tronco.

- Não estou vendo nada.

- Ponha sua mão sobre ele. Sinta bem... aqui. Está vendo? A textura

muda. Aí! Outra mudança! Ponha sua mão sobre a minha. Consegue

sentir agora?

- Sim.

Uma seção do tronco de pouco menos de dois metros começou a se

mover. Outro segmento acima dele se moveu na direção contrária. Os

padrões pareciam familiares, mas eu não conseguia identificá-los. Era

confuso, assim como ver a árvore gigante e tomá-la por uma floresta

inteira. O vento redemoinhava à nossa volta, como se impelido por um

imenso fole. Uma forte sucção de ar, seguida por um vento forte, agitou

a grama curta e fez o pelo dos meus braços arrepiar.

Kishan olhou para cima e se imobilizou.

- Não se mexa, Kelsey.

O ar começou a se mover de forma mais intensa, como se o fole

estivesse sendo soprado mais depressa.

- O que foi, Kishan? - murmurei.

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Um ruído farfalhante soou atrás de mim. Parecia que alguém arrastava

uma sacola pesada sobre um monte de folhas. Ramos partiam, folhas

estremeciam e galhos gemiam. Ouvi uma voz profunda e sibilante.

- O que vocccêsss essstão fazendo na minha floresssta?

Virei-me lentamente e dei de cara com um gigantesco olho que não

piscava.

- Você é a guardiã da árvore do mundo?

- Sssssim. Por que vocccêsss essstão aqui?

Fui subindo, subindo e subindo o olhar. Agora eu sabia o que tinha

visto antes. A serpente gigante estava enroscada na árvore e os

segmentos de quase dois metros no tronco eram seu corpo, que estava

perfeitamente camuflado. Na verdade, enquanto eu observava, seu

corpo mudou de cor para combinar com o ambiente, como um

camaleão. Sua cabeça era tão grande quanto o Hummer de Ren e não

havia como saber qual era a extensão de seu corpo. Kishan deu um

passo à frente, parando ao meu lado e segurando minha mão. Percebi

que ele segurava o chakram com a outra mão.

- Estamos aqui para reivindicar o prêmio aéreo que descansa no topo da

árvore - declarei.

- Por que eu deveria deixá-lossss passssssar? Para que preccccisam do

Lenççççço Divino?

- O prêmio aéreo é um lenço?

- Ssssssssim.

- Bem, precisamos dele porque irá ajudar a quebrar a maldição lançada

sobre dois príncipes da índia e a salvar o povo de seu país.

- Quem sssão essssssesssss príncccccipesssss?

- Este é Kishan. Seu irmão, Ren, foi seqüestrado.

A serpente gigante lançou várias vezes a língua na direção de Kishan,

que resistiu à inspeção bravamente. Eu teria saído correndo.

- Eu não conheçççço essssses irmãosssss. Voccccêssss não podem

passssssssar.

A imensa cabeça começou a se virar enquanto o pesado corpo deslizava

pelo chão. Senti um movimento semelhante em meu braço e gritei:

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- Espere!

A serpente voltou-se para mim e baixou a cabeça para me ver melhor.

Fanindra esticou suas dobras e deslizou pela minha nuca. Então ergueu

a cabeça na direção do olho gigantesco e projetou a língua várias vezes

para fora.

- Quem é esssssa?

- O nome dela é Fanindra. Pertence à deusa Durga.

- Durga. Ouvi falar dessssssa deusa. Essssssa ssssserpente é dela?

- E. Fanindra está aqui para nos ajudar em nossa busca. A deusa Durga

nos enviou e nos forneceu armas.

- Essssstou vendo.

A guardiã examinou Fanindra por um longo momento, como se

ponderasse nosso destino. As duas serpentes pareciam estar se

comunicando silenciosamente entre si.

- Voccccêsss podem passssssar. Presssssinto que não esssstão mal-

intencccccionadossssss. Talvezzzzz vocêsssss tenham

ssssssuccccccessssssso. Talvezzzzzz ssssseja o ssssseu desssstino. Quem

sssssabe? Vocccccêssssss irão passssssar por quatro casassssss. A casa

dossssss pássssarosssss. A casa dasssss cabaççççassssssss. A casa dasssss

ssssssereiasssssss. E a casa dosssss morcccccegossssss. Tenham cuidado.

Para prosssssseguir, voccccccêssssss precccccisam fazer asssss

melhoressss esssssscolhasssss.

Kishan e eu fizemos uma mesura.

- Obrigada, Guardiã.

- Boa sssssorte para voccccêsssss.

A imensa serpente balançou o corpo pesado e a árvore enorme roncou.

A parte de seu corpo que estava enroscada no tronco se moveu,

separando-se e revelando uma passagem secreta e uma escada oculta.

Fanindra se enroscou na parte superior do meu braço e voltou a seu

estado dormente.

Kishan me puxou para a passagem. Tive tempo suficiente para

reconhecer que o chão estava coberto por serragem, quando a cobra

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deslizou. Seu corpo tornou a fechar a passagem, selando-nos na raiz

negra da gigantesca árvore do mundo.

20

As provas das quatro casas

Os olhos esmeralda de Fanindra começaram a brilhar e forneceram luz

suficiente para que Kishan pudesse pegar nossa lanterna. Um metro e

meio à nossa frente havia outro tronco de árvore que parecia tão sólido

quanto o externo - um tronco dentro do outro. Entre os dois, subia uma

escada em espiral. Ele pegou minha mão outra vez antes de

começarmos nossa subida. Os degraus tinham largura suficiente para

que andássemos lado a lado e profundidade bastante para que

pudéssemos parar e recuperar o fôlego ou mesmo dormir, se

precisássemos.

Subimos em um ritmo lento, parando com freqüência para descansar.

Era difícil dizer quanto já havíamos subido. Depois de várias horas,

encontramos uma espécie de porta. Era amarelo-alaranjada e tinha a

superfície irregular. Um talo tosco de madeira estava no ponto exato em

que deveria haver uma maçaneta. Encordoei meu arco e encaixei uma

flecha enquanto Kishan deixava seu chakram na posição de lançamento.

Ele se postou de um lado, pegou a maçaneta e empurrou a porta

lentamente enquanto eu deslizava um pé para dentro e esquadrinhava o

lugar à procura de atacantes. Não havia ninguém à vista.

Tratava-se de uma sala cheia de prateleiras que tinham sido entalhadas

nas paredes da árvore. Cobrindo as prateleiras e o chão, havia centenas

de cabaças, de todos os tipos e tamanhos. Algumas eram sólidas, outras,

ocas. Muitas tinham belos e elaborados desenhos e eram iluminadas por

velas que bruxuleavam em seu interior.

Algumas abóboras apresentavam entalhes muito superiores a qualquer

coisa que eu já tivesse visto no Halloween. Passamos por prateleira após

prateleira, admirando os desenhos. Algumas eram pintadas e

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envernizadas até cintilarem como pedras preciosas entalhadas. Kishan

estendeu a mão para tocar uma delas.

- Espere! Não toque em nada ainda. Esta é uma das provas. Precisamos

descobrir o que fazer. Espere um segundo enquanto consulto as

anotações do Sr. Kadam.

O Sr. Kadam nos fornecera três páginas de informações sobre cabaças.

Kishan e eu nos sentamos no chão de madeira polida e as lemos.

- Aqui tem muita coisa sobre onde certas cabaças se originaram e fatos

sobre como marinheiros procuravam sementes de determinadas

espécies para cultivá-las. Existe uma narrativa mitológica sobre barcos

feitos de cabaças. Também não acredito que se trate disso.

Kishan riu.

- E o que me diz desta aqui? Sobre cabaças e fertilidade? Quer

experimentar, Kells? Estou disposto a fazer o sacrifício, se você estiver.

Li o mito e encarei Kishan de olhos estreitados enquanto ele ria.

- Nos seus sonhos. Essa decididamente eu passo. - Virei a página. - Aqui

diz que atirar uma cabaça na água evoca monstros e serpentes

marinhos. Hum, não precisamos de nenhum desses.

- E quanto a este mito chinês aqui? Diz que um garoto se aproximando

da idade adulta devia escolher a cabaça que guiaria sua vida. Cada uma

delas continha algo diferente. Algumas eram perigosas; outras, não.

Uma inclusive guardava o elixir da juventude eterna. Pode ser que

tenhamos sorte. Talvez seja melhor escolher logo uma.

- Acho que escolher uma provavelmente é a coisa certa a fazer, mas

como saber qual delas?

- Não sei. Precisamos tentar. Eu começo. Mantenha a mira no que quer

que saia dela.

Kishan pegou uma cabaça simples em formato de sino. Nada aconteceu.

Ele a sacudiu, jogou-a para o alto e a bateu contra a parede... nada.

- Vou tentar quebrá-la.

Ele a atirou contra o chão e uma pera saiu rolando dela. Pegou a fruta e

deu uma mordida antes que eu pudesse avisá-lo de que talvez houvesse

algo de errado com ela. Quando Kishan finalmente prestou atenção em

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mim, a fruta já estava quase no fim. Ele desdenhou de meu aviso e disse

que o sabor era bom. A cabaça quebrada se dissolveu e desapareceu no

chão.

- Ok, minha vez.

Peguei uma cabaça redonda pintada com flores, ergui-a acima da cabeça

e a atirei ao chão. Uma serpente negra e sibilante surgiu dos pedaços

quebrados e imediatamente se enroscou para dar o bote em minha

perna. Antes que eu pudesse levantar a mão, ouvi um zumbido

metálico. O chakram de Kishan cravou-se no piso de madeira aos meus

pés, decepando a cabeça da serpente. Seu corpo e a cabaça partida se

dissolveram no chão.

- Sua vez. Talvez seja uma boa idéia nos ater às cabaças não decoradas.

Ele escolheu uma em forma de garrafa, que apresentou algo que parecia

leite. Adverti Kishan para que não o bebesse, pois podia não ser o que

parecia. Ele concordou, mas descobrimos que, se não o bebêssemos, a

cabaça seguinte não se partiria e a quebrada com o leite dentro não se

dissolveria. Ele bebeu o leite e continuamos.

Escolhi uma cabaça branca imensa e obtive luar.

Uma pequena e verrugosa produziu areia.

Uma alta e estreita criou uma linda canção.

Uma cabaça cinza e gorda, que parecia um golfinho, jogou água do mar

na perna de Kishan.

Minha escolha seguinte foi uma com formato de colher. Quando a

quebrei, uma névoa negra subiu e veio em minha direção. Eu corri, mas

ela me seguiu, dirigindo-se para minha boca e meu nariz. Não havia

nada que Kishan pudesse fazer. Eu a inspirei e comecei a tossir. Minha

visão nublou. Senti-me tonta e cambaleei. Kishan me segurou.

- Kelsey! Você está pálida! Como se sente?

- Nada bem. Acho que o conteúdo dessa era doença.

- Aqui. Deite-se e descanse. Talvez eu consiga encontrar uma cura.

Ele começou a quebrar as cabaças freneticamente enquanto eu

observava. Estremeci e comecei a suar, um escorpião saiu de dentro da

próxima e Kishan o esmagou com a bota. Em seguida, encontrou uma

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cabaça com vento, outra com peixe e uma que continha uma pequena

estrela que brilhava tanto que tivemos que fechar os olhos até que a luz

diminuísse e ela desaparecesse no chão.

Todas as vezes em que encontrava um líquido, Kishan corria para mim

e me fazia provar. Bebi néctar de frutas, água comum e um tipo de

chocolate quente escuro e amargo. Recusei-me a beber um que cheirava

a álcool, mas o esfreguei em minha pele para que a cabaça

desaparecesse.

As três seguintes continham nuvens, uma tarântula gigante, que ele

chutou para o canto da sala, e um rubi, que ele guardou no bolso.

Minha visão, a essa altura, estava escurecendo e Kishan ia ficando

desesperado. A próxima cabaça que ele escolheu tinha uma espécie de

pílula. Debatemos se eu devia tomá-la ou não. Eu estava tonta e fraca,

febril e coberta de suor. Era difícil respirar e meu coração estava

disparado. Entrei em pânico, certa de que, se não encontrássemos algo

logo, eu morreria. Mastiguei a pílula e a engoli. Tinha gosto de vitamina

para crianças e não me fez melhorar.

Duas outras cabaças continham queijo e um anel. Ele comeu o queijo e

colocou o anel no dedo. A seguinte tinha um líquido branco. Kishan

estava nervoso. Até onde sabíamos, podia ser um veneno que me

mataria imediatamente ou podia ser minha cura ou o elixir da eterna

juventude. Acenei para que ele se aproximasse.

- Vou beber. Me ajude.

Ele ergueu minha cabeça e inclinou a cabaça, o conteúdo derramando-

se entre meus lábios secos e rachados. O líquido escorreu pela minha

garganta enquanto eu me esforçava para engolir. Imediatamente

comecei a sentir a força retornar aos meus membros.

- Mais.

Ele segurava a cabaça com firmeza enquanto eu bebia. O sabor era

delicioso e me deu força suficiente para pegar a cabaça dele.

Envolvendo a forma arredondada com ambas as mãos, engoli o restante

do líquido em dois grandes goles. Sentia-me agora mais forte do que

quando tínhamos chegado ali.

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- Você parece bem melhor, Kells. Como está se sentindo?

Eu me levantei.

- Estou me sentindo ótima! Forte. Invencível até.

Ele soltou um suspiro trêmulo.

- Ótimo.

Olhei ao redor com a visão clara. Quase mais do que clara.

- Ei. O que é aquilo?

Empurrei algumas cabaças, tirando-as do caminho, e agarrei a alça de

uma cabaça grande e redonda com uma longa haste no topo.

- Tem um tigre entalhado no lado externo. Tente esta, Kishan.

Ele a pegou de minhas mãos e a atirou contra o chão. Lá dentro havia

um papel dobrado.

- É como um biscoito da sorte! O que ele diz?

- Diz: O recipiente oculto mostra o caminho. - O recipiente oculto? Talvez se refira a uma cabaça oculta.

- É muito fácil ocultar uma cabaça numa sala cheia de cabaças, Kells.

- É mesmo. Vamos procurar cabaças que estejam fora do caminho, no

fundo da sala ou enfiadas nos cantos.

Recolhemos um grupo de cabaças menores. Kishan tinha cerca de 10 e

eu, 4. Ele abriu seu grupo primeiro e obtivemos arroz, uma borboleta,

uma pimenta-malagueta, neve, uma pena, um lírio, um chumaço de

algodão, um camundongo, outra serpente da qual ele se livrou - poderia

ser inofensiva, mas melhor prevenir que remediar - e uma minhoca.

Desapontados, nos voltamos para o meu grupo. A primeira continha

linha, a segunda, sons de tambor, a terceira, aroma de baunilha e a

quarta, que tinha o formato de uma maçã pequena, não tinha nada.

Esperamos algum tempo e começamos a ficar nervosos, pensando que

um de nós ia ficar doente outra vez. A cabaça quebrada desapareceu

como as outras, o que significava que alguma coisa tinha acontecido.

- Será só isso? Está vendo alguma coisa? - perguntei.

- Não. Espere. Estou ouvindo algo.

Depois de um minuto, eu disse:

- E então? O que é?

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- Tem alguma coisa diferente nesta sala, mas não sei dizer o que é.

Espere. O ar! Ele está se movendo. Consegue sentir?

- Não.

- Espere um instante.

Kishan percorreu lentamente a sala, examinando prateleiras, paredes e

cabaças. Ele pousou a mão numa das paredes e se aproximou dela,

esbarrando em cabaças que rolaram e mudaram de lugar.

- Tem ar entrando por aqui. Acho que é uma porta. Me ajude a remover

estas cabaças.

Limpamos toda aquela parte da parede, deixando as prateleiras nuas.

- Não consigo mover esta aqui. Está presa.

Era uma cabaça minúscula, que parecia crescer da parede. Puxei e

empurrei, mas ela não cedeu. Kishan recuou um passo para ter uma

visão melhor e começou a rir. Eu ainda estava puxando a cabaça

pequenina.

- O que foi? Por que você está rindo?

- Afaste-se um segundo, Kells.

Saí do caminho e ele pôs a mão sobre a cabaça.

- Não sei o que você está tentando provar. Ela não se mexe.

Kishan girou e empurrou.

- É uma maçaneta, Kelsey.

Ele riu e abriu a seção da parede que agora era obviamente uma porta.

Do outro lado, encontramos mais degraus que levavam a um nível mais

alto no interior da árvore.

Ele estendeu a mão.

- Vamos?

Após algumas horas de subida, Kishan pediu que fizéssemos uma pausa.

- Vamos parar e comer alguma coisa, Kells. Não consigo acompanhá-la.

Eu me pergunto quanto tempo o efeito de sua bebida energética

especial vai durar.

Parei uns 10 passos à frente dele e esperei que me alcançasse.

- Agora você sabe como me sinto tentando acompanhar o ritmo de

vocês, tigres, o tempo todo.

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Ele grunhiu e tirou a mochila dos ombros. Então nos acomodamos

confortavelmente num degrau amplo. Ele abriu o zíper da mochila,

tirou o Fruto Dourado e o girou entre as mãos. Depois de pensar por um

momento, sorriu e falou em sua língua nativa. Uma grande travessa

tremeluziu e se materializou. O vapor que subia dos vegetais tinha um

aroma familiar. Franzi o nariz.

- Curry? Argh. Minha vez.

Pedi batata gratinada, tênder com calda de cereja, vagem com

amêndoas e pães com manteiga e mel. Quando meu jantar surgiu,

Kishan olhou meu prato.

- Que tal dividirmos?

- Não, obrigada. Não sou fã de curry.

Ele terminou rapidamente sua refeição e ficou tentando me fazer olhar

para monstros imaginários para que pudesse roubar bocados do meu

prato. Terminei dando metade de minha comida para ele.

Mais uma hora subindo degraus e o efeito do meu energético se

esgotou. Eu me senti exausta. Kishan me deixou descansar enquanto

procurava a casa seguinte. Quando voltou, eu estava escrevendo no

diário.

- Encontrei a próxima porta, Kells. Venha. Talvez seja melhor descansar

lá. Os empoeirados degraus circulares no interior do tronco da árvore

do mundo nos levaram a um chalé coberto com hera espessa e flores. Lá

de dentro, ouvia-se o tilintar de risadas.

- Tem gente lá dentro - sussurrei. - Vamos ter cuidado.

Ele assentiu e desamarrou o chakram preso ao cinto enquanto eu

encaixava uma flecha no arco.

- Pronta?

- Pronta - sussurrei.

Ele abriu a porta cuidadosamente e fomos recebidos pelas mulheres

mais lindas que eu já tinha visto. Elas ignoraram nossas armas e nos

deram boas-vindas à sua casa.

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Uma jovem belíssima, com cabelos castanhos compridos e ondulados,

olhos verdes, pele cor de marfim e lábios cor de cereja, vestida num

cintilante vestido rosa pálido, pegou o braço de Kishan.

- Pobrezinhos. Devem estar cansados depois dessa viagem. Entrem.

Vocês podem tomar um banho e descansar.

- Um banho me parece ótimo - disse Kishan, extasiado.

Ela não prestou a menor atenção em mim. Seus olhos estavam presos

aos de Kishan. Ela acariciou-lhe o braço, sussurrando algo sobre

travesseiros macios, água quente e refrescos. Outra mulher se juntou à

primeira. Era loura, tinha olhos azuis e usava um vestido prata com

brilhos.

- Isso, venha - chamou ela. - Você encontrará conforto aqui. Por favor,

siga-nos.

Elas já levavam Kishan dali quando protestei. Kishan se virou e um

homem se aproximou. Louro e de olhos azuis, com quase dois metros de

altura, exibindo o tórax nu, bronzeado e musculoso, dirigiu toda sua

atenção a mim.

- Olá. Bem-vinda ao nosso humilde lar. Minhas irmãs e eu raramente

temos visitas. Adoraríamos que vocês ficassem conosco algum tempo.

Ele sorriu para mim e eu corei intensamente.

- É... é muita generosidade sua - gaguejei.

Kishan fechou a cara para o rapaz, mas as garotas jogaram seu charme

piscando os longos cílios e o distraíram novamente.

- Kishan, não acho que...

Outro homem surgiu de trás de uma cortina. Este era ainda mais bonito

que o primeiro. Tinha cabelos e olhos castanhos e fiquei fascinada por

sua boca. Ele fez cara de triste e disse:

- Tem certeza de que não podem ficar conosco? Nem um pouquinho?

Adoraríamos ter companhia. - Ele suspirou dramaticamente. - A única

coisa que temos para nos manter ocupados é nossa coleção de livros.

- Vocês têm uma coleção de livros?

- Sim. - Ele sorriu e me ofereceu o braço. - Posso mostrá-la a você?

Kishan havia saído com as mulheres e resolvi olhar a coleção de livros.

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Racionalizei que, se os rapazes tentassem alguma coisa, eu poderia

atingi-los com raios.

Eles de fato tinham uma coleção de livros, que contava com muitos dos

títulos que eu amava. Na verdade, observando mais de perto, descobri

que eu conhecia todos. Eles me ofereceram petiscos.

- Aqui, prove uma dessas tortas. São incríveis. Nossas irmãs são

excelentes cozinheiras.

- Não, obrigada. Kishan e eu acabamos de comer.

- Ah, então talvez você queira se refrescar...

- Vocês têm um banheiro?

- Temos. Fica atrás daquela cortina ali. Também tem um chuveiro. Puxe

o ramo comprido e a água cairá das folhas da árvore. Vamos

providenciar refrescos e um lugar confortável para você descansar.

- Obrigada.

Estávamos obviamente na Casa das Sereias. O banheiro era de verdade,

felizmente, e aproveitei a oportunidade para tomar um banho e trocar

de roupa. Quando saí do banho, encontrei um longo vestido dourado

pendurado para mim. Era semelhante aos vestidos que as duas mulheres

usavam. Minhas roupas estavam rasgadas e ensangüentadas, então vesti

o traje dourado e pendurei minhas roupas de fada para ver se elas iriam

limpá-las mesmo na árvore do mundo.

Em silêncio, li as notas do Sr. Kadam sobre sereias. Passei os olhos pelas

sereias da Odisséia e pela história de Jasão e os Argonautas. Eu já

conhecia essas narrativas, mas ele também havia incluído informações

sobre ninfas do mar e tritões, os equivalentes masculinos das sereias.

Essas pessoas provavelmente estavam mais para ninfas das árvores do que para ninfas da água. Elas mantinham a beleza até morrerem. Podiam flutuar. Passar por pequenos buracos. Hum, essa é nova. Vida extremamente longa... às vezes invisíveis... momentos especiais são meio-dia e meia-noite. A meia-noite deve estar se aproximando. Elas podiam ser perigosas, causar loucura, síncope, letargia e paixão obsessiva. Uma batida suave na porta me arrancou do meu estudo.

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-Oi?

- Está pronta para sair, senhorita?

- Quase.

Olhei rapidamente o restante das anotações e guardei os papéis na

mochila. Os dois homens postavam-se diante da porta e me fitavam

como um par de cobras observando o ninho de um pássaro.

- Com licença.

Passei rapidamente entre eles, caminhei até o outro lado da sala e me

sentei no que parecia um pufe gigante coberto por uma pele macia. Os

homens me imitaram, sentando-se um de cada lado.

Um deles cutucou meu ombro.

- Você está muito tensa. Deite-se e relaxe. Esse assento se amolda ao seu

corpo.

Eles não aceitariam não como resposta. O de cabelos escuros me

empurrou para trás delicada mas insistentemente.

- Sim, é confortável. Obrigada. Onde está Kishan?

- Quem é Kishan?

- O homem com quem cheguei.

- Não percebi que havia um homem.

- Seria impossível perceber qualquer coisa depois que você entrou - disse

o outro homem.

- Isso mesmo. Concordo. Você é linda demais - afirmou o irmão.

Um deles começou a acariciar meu braço enquanto o outro massageava

meus ombros.

Eles indicaram uma mesa à nossa frente repleta de guloseimas.

- Quer experimentar uma fruta cristalizada? É deliciosa.

- Não. Obrigada. Ainda não estou com fome.

O homem que massageava meus ombros começou a beijar minha nuca.

- Você tem uma pele muito delicada.

Tentei me sentar, mas ele me pressionou de volta no pufe.

- Relaxe. Estamos aqui para satisfazer você.

O outro me entregou uma taça alta com um líquido vermelho e

borbulhante.

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- Que tal um suco de amora espumante?

Então ele pegou minha outra mão e começou a beijar meus dedos. Uma

penumbra toldou minha visão. Fechei os olhos por um momento e

meus sentidos se concentraram nos lábios beijando meu pescoço e nas

mãos quentes que massageavam meus ombros. O prazer enredou-se

pelo meu pescoço e eu, ávida, queria mais. Um dos homens beijou

minha boca. Aquilo não parecia certo. Alguma coisa estava errada.

- Não - murmurei fracamente e tentei afastá-los.

Mas eles não me davam trégua. Alguma coisa arranhava o fundo da

minha mente. Algo a que eu tentava me agarrar. Algo que me ajudaria a

me concentrar. A massagem nos ombros estava tão boa... Ele passou

para o pescoço, movendo o polegar em pequenos círculos. Foi quando

aquilo de que eu estava tentando me lembrar emergiu em minha

consciência.

Ren. Ele havia massageado meu pescoço daquela maneira. Visualizei

seu rosto. A princípio, ele me apareceu fora de foco, mas comecei a

listar mentalmente tudo aquilo que eu amava nele e a imagem se tornou

mais nítida. Pensei em seu cabelo, nos olhos, em como ele segurava

minha mão o tempo todo. Pensei nele com a cabeça deitada sobre meu

colo enquanto eu lia para ele, em seu ciúme, sua paixão por panquecas

de manteiga de amendoim e no fato de ele ter escolhido sorvete de

pêssego com creme porque fazia com que se lembrasse de mim. Em

minha mente, eu o ouvi dizer: "Mein tumse mohabbat karta hoon, iadala." - Mujhe tumse pyarhai, Ren - sussurrei. Alguma coisa estalou em minha cabeça e eu me sentei abruptamente.

Os homens fizeram beicinho enquanto tentavam me puxar de volta.

Então começaram a cantar em voz suave. Minha visão foi começando a

perder o foco outra vez, então cantarolei a canção que Ren escreveu

para mim e recitei um de seus poemas. Levantei-me. Os homens agora

insistiam que eu comesse alguma coisa ou bebesse um suco. Recusei.

Eles me levaram até uma cama macia. Eu me mantive firme enquanto

eles me puxavam, imploravam e me bajulavam. Elogiaram meus

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cabelos, meus olhos e meu lindo vestido e choraram, dizendo que eu

fora sua única visitante em milênios e que só queriam passar algum

tempo em minha companhia.

Recusando outra vez, insisti que precisávamos retomar nossa jornada.

Eles teimaram, pegaram minha mão e me puxaram na direção da cama.

Afastei-me deles e agarrei meu arco. Rapidamente, ajustei a corda e

encaixei uma flecha, então a apontei para o peito masculino mais

próximo, amea- çando-os. Os dois homens recuaram e um deles ergueu

a mão, num gesto de derrota. Eles se comunicaram silenciosamente e

então sacudiram a cabeça, com tristeza.

- Poderíamos fazê-la feliz. Você esqueceria todos os seus problemas. Nós

iríamos lhe dar amor.

Sacudi a cabeça.

- Eu amo outro.

- Você nos teria estimado com o tempo. Possuímos a habilidade de tirar

todos os pensamentos e substituí-los apenas por sentimentos de paixão e

prazer.

- Aposto que sim - repliquei, com sarcasmo.

- Somos solitários. Nossa última companheira morreu há vários séculos.

Nós a amávamos.

- Sim, nós a amávamos muito - confirmou o outro. - Ela nunca soube o

que era sofrimento nem por um só dia de sua vida conosco.

- Mas somos imortais e a vida dela passou rápido demais.

- Sim. Precisamos encontrar uma substituta.

- Sinto muito, garotos, mas eu não quero isso. Não tenho o menor

interesse em ser sua - engoli em seco - escrava do amor. E, além disso,

não desejo esquecer coisa alguma.

Eles me estudaram por um longo momento.

- Que seja então. Você está livre para ir.

- E quanto a Kishan?

- Ele deve fazer sua própria escolha.

Com isso, eles se transformaram numa fina coluna de fumaça, entraram

num nó da parede da árvore e desapareceram. Voltei ao banheiro para

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pegar minhas roupas de fada e fiquei encantada ao ver que elas haviam

sido limpas e consertadas.

Apanhando a mochila, voltei à sala. Em vez do quarto sedutor,

encontrei agora uma sala simples e vazia, com uma porta. Eu a abri, saí

da casa e acabei de volta na escada circular que espiralava no interior do

tronco da árvore do mundo. A porta se fechou atrás de mim. Estava

sozinha.

Tornei a vestir a calça e a camisa que as fadas haviam tecido para nós e

me perguntei quando ou se Kishan sairia dali. Seria muito melhor dormir naquela cama macia do que nos degraus duros de madeira. Mas, por outro lado, se eu tivesse ficado naquela cama, creio que não conseguiria dormir muito. Agradeci mentalmente a Ren por me salvar das ninfas das árvores e dos

homens-sereias ou o que quer que fossem. Completamente exausta, me

enrasquei no saco de dormir e adormeci. No meio da noite, Kishan

cutucou meu ombro.

-Ei.

Apoiei-me no cotovelo e bocejei.

- Kishan? Você ficou muito tempo lá.

- É. Não foi exatamente fácil me livrar daquelas mulheres.

- Sei o que quer dizer. Precisei ameaçar atirar naqueles caras para eles

me deixarem em paz. Na verdade estou surpresa que tenha conseguido

sair. Como foi que eliminou a influência delas sobre sua mente?

- Mais tarde eu falo sobre isso. Estou cansado, Kells.

- Está bem. Aqui, pegue minha colcha. Não vou sugerir que a gente

divida o saco de dormir. Chega de homens por hoje.

- Entendo perfeitamente. Obrigado. Boa noite, Kells.

Depois de acordar, comer e arrumar nossas coisas, continuamos subindo

os degraus da árvore do mundo. Uma luz brilhante cintilava adiante.

Surgiu um buraco no tronco e passamos para o lado de fora. Era bom

ver a luz do sol, mas os degraus agora não eram mais cercados. Agarrei-

me ao tronco, recusando-me a olhar para baixo.

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Kishan, por outro lado, estava fascinado pela altura em que nos

encontrávamos. Ele não conseguia ver o chão, apesar de sua

excepcional visão de tigre. Galhos gigantescos se estendiam da árvore.

Eram tão grandes que poderíamos ter caminhado por um deles lado a

lado sem perigo de cair. Kishan corria ao longo de alguns deles, de

tempos em tempos, para explorar. Eu me mantive o mais próximo

possível do tronco.

Depois de várias horas em nosso ritmo lento, parei diante de um buraco

escuro que levava de volta ao interior do tronco. Esperei Kishan voltar

de sua última exploração para entrarmos juntos ali. Essa parte do tronco

era mais escura e úmida. A água gotejava lá dentro, caindo de algum

ponto no alto. As paredes mudaram de lisas para lascadas e descascadas.

Nossas vozes produziam eco. Parecia haver uma grande fenda na

árvore, como se ela tivesse sido escavada.

- É como se essa parte da árvore estivesse morta - eu disse -, como se

tivesse sido danificada.

- Verdade. A madeira sob nossos pés está apodrecendo. Mantenha-se o

mais perto possível da parede do tronco.

Mais alguns minutos se passaram e os degraus cessaram sob um buraco

negro grande o suficiente para que passássemos por ele rastejando.

- Não tem mais nenhum lugar para ir. Devemos entrar?

- Vai ser bem apertado.

- Então me deixe ir primeiro, dar uma olhada - eu me ofereci. - Se

estiver bloqueado à frente, não tem necessidade de você passar por

aqui. Eu volto e tentamos encontrar outro caminho para o topo.

Ele concordou e trocou a lanterna pela mochila. Kishan me levantou e

eu me enfiei no buraco, engatinhando até a passagem começar a se

estreitar e se tornar mais alta. Naquele ponto, a única maneira de

prosseguir era ficar de pé e andar de lado, espremida. Em seguida, a

passagem tornou-se mais baixa e mais uma vez me pus de joelhos.

A passagem parecia de rocha. Uma grande pedra bloqueava a metade

superior da passagem. Eu me deitei de bruços, me espremi por baixo

dela e descobri que a passagem se abria numa grande caverna. Parecia

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que eu havia percorrido uns 30 metros, mas provavelmente não

chegava nem a 10. Imaginei que Kishan passaria ali por muito pouco.

- Tente vir - gritei.

Enquanto esperava por ele, percebi que o piso parecia esponjoso. Provavelmente madeira apodrecendo. As paredes eram cobertas por

algo que parecia uma crosta de mostarda escura. Ouvi uma ave batendo

as asas lá em cima e um grito suave. Ah, deve haver um ninho ali. Os

sons ricocheteavam dentro da árvore, tornando-se progressivamente

mais altos e mais violentos.

- Kishan? Depressa!

Ergui a lanterna, apavorada. Não conseguia ver nada, mas o ar

certamente estava se movendo. Parecia que bandos de aves estavam

batendo uns contra os outros na escuridão. Alguma coisa roçou em meu

braço e voou de repente. Se era uma ave, era das grandes.

- Kishan!

- Estou quase aí.

Eu podia ouvi-lo deslizando de barriga. Estava quase me alcançando.

Alguma coisa bateu as asas, vindo em minha direção. Talvez sejam mariposas gigantes. Desliguei a lanterna para deter as criaturas voadoras

e ouvi Kishan se aproximar.

Primeiro a mochila e depois sua cabeça emergiram. Acima de mim, algo

grande me assustou, batendo as asas freneticamente. Garras pontudas,

semelhantes a ganchos, envolveram meus ombros e os seguraram. Eu

gritei. Elas apertaram e, com um violento bater de asas e um grito alto e

agudo, fui erguida no ar.

Kishan rastejou rapidamente para fora do buraco e agarrou minha

perna, mas a criatura era forte e me arrancou de suas mãos. Eu o ouvi

gritar:

- Kelsey!

Gritei de volta e minha voz ecoou nas paredes. Eu estava bem no alto,

mas ainda podia distingui-lo vagamente lá embaixo. A criatura logo foi

cercada por outras de sua espécie e eu me vi envolvida numa massa

tremulante e ruidosa de corpos quentes. Às vezes, sentia pelo roçar

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minha pele, outras vezes uma membrana coriácea e, de quando em

quando, garras afiadas.

A criatura desacelerou, pairou e então me soltou. Antes que eu pudesse

gritar, aterrissei de costas com um ruído surdo. Apontei a lanterna, que

de alguma forma eu conseguira manter na mão durante o súbito vôo.

Temendo ver onde estava, mas determinada a descobrir, apertei o botão

e olhei.

A princípio, não consegui saber para onde estava olhando. Tudo que eu

podia ver eram massas de corpos marrons e pretos. Em seguida, percebi

que eram morcegos. Morcegos gigantes. Eu estava de pé numa saliência

com uma queda de dezenas de metros. Rapidamente recuei e me colei à

parede.

Kishan gritou meu nome e tentou ir na minha direção.

- Eu estou bem! - gritei. - Eles não me machucaram! Estou aqui em

cima, numa saliência!

- Segure-se, Kells! Eu estou indo!

Os morcegos pendiam de cabeça para baixo, observando o progresso de

Kishan com olhos negros piscantes. A massa de corpos estava em

constante movimento. Alguns andavam por cima dos companheiros até

encontrar uma posição melhor para se pendurar. Outros batiam as asas

antes de fechá-las coladas ao corpo. Alguns se balançavam para a frente

e para trás. Outros dormiam.

Eram ruidosos. Tagarelavam com cliques e estalidos enquanto se

penduravam e nos olhavam.

Kishan avançou por algum tempo, mas se viu sem saída e teve que

recuar. Ele tentou várias vezes escalar até onde eu estava, mas era

sempre frustrado. Depois da sexta tentativa, ele parou perto do buraco e

gritou para mim:

- É impossível, Kells. Não consigo subir aí!

Eu tinha acabado de abrir a boca para responder, quando um morcego

gigante falou.

- Iiiiiimpossíííível eleeee peeeensa - disse o animal, com estalidos, e

bateu as asas. - Eééé possíííível, Tiiigreee.

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- Você sabe que ele é um tigre? - perguntei ao morcego.

- Nóóóós o veeeeemos. Ouviiiimos. O espíííírito deleeeee está

partiiiiido.

- O espírito dele está partido? O que quer dizer com isso?

- Queeeer diiiiizer que eleeee supoooorta o sofrimeeeento. Eleeee

cuuuuura o própriiiiiiio remoooorso... eleeee resgaaata vocêêêê.

- Se ele curar o próprio remorso, ele vai me resgatar? Como ele pode

fazer isso?

- Eleeeee éééé como nóóóós. Metaaaade hooooomem e metaaaade

tiiiiiigre. Nóóóós sooooomos metaaaaade ave e metaaaade mamíííífero.

As metaaaaaaades deeeevem se uniiiiir. Eleeeee preciiiiisa abraaaaaçar o

tiiiiiiiigre.

- Como suas duas metades podem se unir?

- Eleeeee preciiiiisa aprendeeeeeeer.

Eu estava prestes a fazer outra pergunta quando vários morcegos

saltaram no ar e voaram para diferentes lugares na caverna, que se

assemelhava a um útero. Estalos rítmicos, que percebi serem seu sonar,

atravessaram o ar e bateram nas paredes. Eu podia até sentir as

vibrações em minha pele. Logo pequenas pedras embutidas nas paredes

começaram a brilhar. Quanto mais tempo os morcegos mantinham o

barulho, mais fortes se tornavam as luzes. Quando os morcegos

pararam, a caverna estava bem iluminada.

- Aaaas luuuuzes vão seeee apaaaaagar quaaaando o teeeempo deeeele

acaaaaabar. Eleeeee preciiiiisa ajuuuuudar vocêêêê antes diiiiiisso.

Deeeeeve uuuusar suuuuua metaaaade hooooomem e suuuuuua

metaaaade tiiiiiiigre. Diiiiiga iiiiisso a eleeeee.

- Certo. - Então berrei para Kishan lá embaixo: - Os morcegos dizem

que você tem que usar suas duas metades para me alcançar antes que as

luzes se apaguem novamente. Deve abraçar sua metade tigre.

Agora que as luzes estavam acesas, os perigos do caminho tornaram-se

óbvios. Uma série de formações semelhantes a estalagmites, mas com a

extremidade plana, erguia-se na caverna. Eram muito distantes entre si

para que um humano saltasse, mas um tigre talvez conseguisse.

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Kishan olhou para cima e atirou o chakram no ar. Enquanto a arma

subia, Kishan se transformou no tigre negro e saltou. Ele era rápido.

Prendi a respiração à medida que ele saltava velozmente de uma

formação para a outra, sem nem mesmo parar para se equilibrar.

Arquejei de pavor, sabendo que cada salto poderia significar sua morte.

Quando chegou à última, exagerou ligeiramente e agarrou a madeira

esponjosa com as garras, girando a cauda em busca de equilíbrio.

Ele mudou para a forma humana, pegou o chakram e o lançou

novamente para o alto. O local em que se encontrava era minúsculo,

mal dava para seus pés. Não havia nenhuma saliência para onde saltar

dali. Nada era próximo o bastante, nem mesmo para um tigre. Ele olhou

ao redor por um momento, calculando o próximo passo. De ponta-

cabeça, os morcegos piscavam e o olhavam com olhos arregalados de

seus poleiros. A iluminação começou a diminuir. Quanto mais escuro

ficasse, mais perigosa seria sua subida.

Eu sabia que Kishan podia ver no escuro melhor que eu, mas ainda

assim o caminho era muito traiçoeiro. Ele tomou uma decisão: agachou-

se, transformou-se no tigre negro e saltou no ar. Mas não havia nenhum

lugar onde pudesse aterrissar.

- Kishan! Não! - gritei.

Em pleno ar ele mudou para a forma humana e caiu. Inclinei-me de

braços para olhar por sobre a borda de minha pequena plataforma e

voltei a respirar quando o vi pendurado num longo ramo. Ele vinha

subindo lentamente por ele, colocando uma mão acima da outra, mas

ainda estava muito distante. Então pegou o chakram, segurou a perigosa

arma nos dentes e oscilou para a frente e para trás até conseguir agarrar

um pedaço protuberante de madeira na lateral da árvore. Subiu mais

um pouco e descansou por um minuto num minúsculo afloramento.

Depois de avaliar a situação, agarrou um novo ramo, saltou e se

balançou para a frente novamente.

Kishan fez uma série de manobras acrobáticas. Vi o homem se

metamorfosear em tigre e vice-versa pelo menos três vezes. A certa

altura, ele atirou o chakram, que girou na caverna, partiu um ramo e

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voltou voando para uma pata de tigre que de repente se transformou

em mão humana e o pegou. Com o chakram na boca novamente, ele se

balançou abaixo de mim, cruzando a caverna, e tomou impulso para o

outro lado a fim de me alcançar. Agarrou o galho que cortara para

completar a distância. Quando vinha em minha direção, vi que o galho

não era comprido o bastante e percebi que ele aterrissaria a pelo menos

três metros de mim.

Eu queria fechar os olhos, mas sentia que tinha que olhar enquanto

Kishan arriscava a vida para me alcançar. Kishan se balançou para trás e

tomou impulso novamente. Dessa vez, quando seus pés tocaram a

parede, ele atirou o chakram mais uma vez. Então agarrou o ramo com

os dentes, metamorfoseou-se rapidamente no tigre negro e tomou

impulso com suas poderosas patas traseiras. Em seguida, transformou-se

em homem, foi até onde o ramo podia levá-lo e então o soltou. Girando

no ar, mudou para a forma de tigre. Seu corpo negro se esticou em

direção à minha plataforma. Enquanto suas garras afundavam na

madeira perto dos meus pés e ele pendia suspenso no ar, o chakram

cravou-se na madeira a alguns centímetros da minha mão. As garras de

tigre se transformaram em mãos.

- Kishan!

Agarrei as costas de sua camisa e puxei o mais forte que pude. Ele rolou

para a saliência de madeira e ficou ali deitado, arquejando, durante

vários minutos. A luz havia diminuído ainda mais.

- Estáááá veeeendo? Eleeeee conseguiiiiiiiiu.

Seus braços tremiam e eu sequei as lágrimas de meu rosto.

- Sim. Conseguiu - eu disse baixinho.

Quando Kishan se sentou, agarrei-o num forte abraço e beijei seu rosto.

Ele me apertou por um momento antes de me soltar, relutante. Então

tirou o cabelo que me cobria os olhos.

- Lamento não ter trazido a mochila - desculpou-se.

- Está tudo bem. Não havia como trazê-la com tudo o que tinha para

fazer.

- Nóóóós vaaaaamos pegáááá-la.

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- Que pena que eles não puderam trazer você também - murmurei, com

sarcasmo.

- Tíííínhamos que tessssstáááá-lo. Eleeee se saiiiiiu muuuuuuito

beeeeeeem.

Um dos morcegos desceu para buscar a mochila. Depois a largou em

minhas mãos estendidas.

- Obrigada. - Toquei o braço de Kishan. - Você está bem?

- Estou. - Ele abriu um sorriso malicioso, apesar da exaustão. - Na

verdade, posso ser convencido a fazer tudo de novo em troca de um

beijo de verdade.

Soquei-lhe o braço de leve.

- Acho que um beijo no rosto foi suficiente, não concorda?

Ele grunhiu, sem expressar sua opinião.

- E agora? Como saímos daqui?

- Nóóós vaaaamos leváááá-los - disse um dos morcegos.

Dois deles se soltaram do teto e despencaram vários metros antes de

abrir bruscamente as asas. Então as bateram com força, ganhando

altitude, e pairaram acima de nós. Em seguida, desceram devagar. Pés

com garras prenderam meus ombros e apertaram.

- Manteeeeenhaaaaam-se imóóóóveis.

Ouvi a advertência e decidi que era um bom conselho a seguir.

Batendo as asas freneticamente, os morcegos levantaram voo, levando-

-nos cada vez mais alto na árvore. Não era um passeio divertido, mas eu

também reconhecia que isso nos pouparia várias horas de subida. Pensei

que fôssemos subir direto, verticalmente, mas, em vez disso, os

morcegos circulavam, ascendendo de forma lenta e constante.

Por fim, percebi que o ambiente estava ficando cada vez mais claro.

Distingui uma abertura, uma fenda que permitia que manchas

alaranjadas de luz do sol se movessem pelas paredes. Uma brisa fresca

roçou minha pele e senti o cheiro de árvore viva e nova, em vez do

odor podre e bolorento de fungos, amônia e plantas cítricas queimadas.

Nossos companheiros alados saíram pela abertura e, batendo as asas

ruidosamente, colocaram-nos com cuidado num galho. Os galhos ali

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eram mais finos, mas ainda assim fortes o bastante para que nós dois

caminhássemos neles.

Com um aviso final de "Fiiiiiquem aleeeertas", eles voaram de volta para

a árvore e nos deixaram por nossa própria conta.

- Kells, jogue a mochila para mim. Quero tirar essas roupas pretas e

calçar alguma coisa.

Atirei a mochila para ele e me virei para que ele pudesse trocar de

roupa.

- É. Que pena que suas roupas de fada se foram. Desapareceram no éter

do tigre. Era bom tê-las à mão. Felizmente o Sr. Kadam insistiu que

trouxéssemos uns dois calçados para você, por precaução.

- Kells? As roupas de fada estão na bolsa.

- O quê? - Virei-me e deparei com Kishan despido da cintura para cima

e desviei os olhos. - Como isso aconteceu?

- Não sei. Magia de fadas, eu acho. Agora vire para lá, a menos que

queira me ver trocar de roupa.

Com o rosto vermelho, virei-me rapidamente. O sol estava se pondo e

decidimos comer e descansar. Eu estava exausta, mas tinha medo de

dormir num galho, ainda que ele tivesse o dobro da largura de um

colchão kingsize. Eu estava sentada, imóvel, no meio do galho.

- Tenho medo de cair.

- Você está cansada. Precisa dormir.

- Não vou conseguir.

- Vou segurá-la. Você não vai cair.

- E se você cair?

- Gatos não caem de árvores, a menos que queiram. Venha cá.

Kishan me envolveu com um braço e apoiou minha cabeça com o

outro. Não pensei que fosse conseguir, mas dormi.

Na manhã seguinte, bocejei, esfreguei os olhos sonolentos e dei de cara

com Kishan me observando. Ele tinha um braço em torno da minha

cintura e minha cabeça descansava em seu outro braço.

- Você não dormiu?

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- Cochilei.

- Há quanto tempo você está acordado?

- Uma hora mais ou menos.

- Por que não me acordou?

- Você precisava descansar.

- Ah. Bem, obrigada por não me deixar cair.

- Kells, quero dizer uma coisa.

- O quê? - Apoiei o rosto em meu punho. - O que é?

- Você... você é muito importante para mim.

- Você também é muito importante para mim.

- Não. Não é isso que quero dizer. Quero dizer... eu sinto... e tenho

motivos para acreditar... que podemos vir a significar algo um para o

outro.

- Você já significa algo para mim.

- Certo, mas não estou falando de amizade.

- Kishan...

- Não existe a menor possibilidade, nem uma chance remota, de que

você possa um dia se permitir me amar? Você não sente absolutamente

nada por mim?

- É claro que sinto. Mas...

- Mas nada. Se Ren não estivesse na jogada, você consideraria ficar

comigo? Eu seria alguém de quem você poderia vir a gostar?

Coloquei a mão em seu rosto.

- Kishan, eu já gosto de você. Eu já o amo.

Ele sorriu e se aproximou um pouco mais. Em minha cabeça, os alarmes

começaram a disparar, dei uma guinada para trás e tive a sensação de

que estava caindo. Agarrei seu braço como se a minha vida dependesse

disso.

Ele me segurou com firmeza e observou o meu rosto. Certamente

percebeu meu olhar de pânico e reconheceu que não se devia ao fato de

ter perdido o equilíbrio. Kishan reprimiu suas emoções, recostou-se e

disse baixinho:

- Eu nunca a deixaria cair, Kells.

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Eu não estava lidando muito bem com aquilo e o melhor que pude lhe

dizer foi:

- Sei que não.

Ele me soltou e se levantou para providenciar nosso café da manhã.

Os degraus agora eram mais estreitos e contornavam a parte externa da

árvore. O tronco também era muito menor. Levávamos apenas 30

minutos para circundá-lo. Após algumas horas apavorantes nos degraus

que se estreitavam cada vez mais, deparamos com uma corda trançada

que pendia do que parecia ser uma casa na árvore.

Eu queria continuar subindo a escada, mas Kishan quis escalar a corda.

Ele concordou em subir pelos degraus por mais meia hora e, se não

encontrássemos nada, voltaríamos para a corda. Foi uma discussão

inútil no fim das contas porque, não mais do que cinco minutos depois,

os degraus tornaram-se apenas protuberâncias nodosas na lateral do

tronco da árvore, desaparecendo por completo em seguida.

Quando começávamos a descer até a corda, eu disse:

- Não creio que tenha força suficiente nos braços para subir toda essa

altura.

- Não se preocupe com isso. Eu tenho força suficiente para nós dois.

- O que exatamente você tem em mente?

- Vai ver.

Quando chegamos à corda, Kishan pegou a mochila de mim e a

pendurou em suas costas. Então fez sinal para que eu me aproximasse.

- O quê?

Ele apontou para o chão diante dele.

- O que você vai me obrigar a fazer?

- Você vai envolver meu pescoço com os braços e depois passá-los pelas

alças superiores da mochila.

- Está bem, mas não tente nada engraçado. Eu sinto muitas cócegas.

Kishan levantou meus braços, que envolveram seu pescoço, e me içou

do chão, deixando seu rosto muito perto do meu. Ele ergueu uma

sobrancelha.

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- Se eu tentasse alguma coisa, juro a você que não seria para arrancar

uma risada.

Ri de nervosa, no entanto seu rosto estava compenetrado, sério.

- Beleza. Vamos nessa - murmurei.

Senti seus músculos tensos quando Kishan se preparou para saltar, mas

ele olhou para baixo, para mim, e seu olhar parou em meus lábios. Ele

baixou a cabeça e depositou um beijo quente e suave na lateral da

minha boca.

- Kishan. - Desculpe. Não pude resistir. Você está presa e pelo menos dessa vez

não pode fugir de mim. Além disso, sua boca é tentadora. Você devia

ficar feliz por eu ter me segurado tanto assim.

- Sei.

Com isso, ele saltou no ar. Deixei escapar um gritinho com seu

movimento súbito. Devagar, ele começou a subir pela corda. Foi nos

içando aos poucos, pisando em galhos quando podia, às vezes mantendo

uma das mãos na corda e a outra num galho, para se equilibrar. O

tempo todo Kishan tomava cuidado para não me machucar. Sem contar

os solavancos, o fato de oscilar a centenas de metros de altura e de

darmos saltos capazes de revirar o estômago, eu me sentia bastante

confortável. Na verdade, estava um pouquinho confortável demais ficar

apertada junto ao corpo dele.

Parece que homens do tipo Tarzan são o meu fraco. Quando alcançamos a porta da casa na árvore, Kishan subiu um pouco

mais na corda e ficou parado, imóvel, enquanto eu cuidadosamente me

soltava dele e pulava para o piso de madeira. Então ele tomou impulso,

balançou-se e aterrissou com um floreio. Dava para ver que estava se

divertindo.

- Pare de se exibir, pelo amor de Deus. Você percebe a altura em que

estamos e que você poderia despencar para uma morte horrível a

qualquer momento? Está agindo como se esta fosse uma aventura

superdivertida.

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- Não faço a menor idéia da altura em que estamos - replicou. - E não

dou a mínima. Mas, sim, estou me divertindo. Gosto de ser homem o

tempo todo. E gosto de estar com você.

Ele envolveu minha cintura com as mãos e me puxou para perto de si.

- Ei - resmunguei, desembaraçando-me dele o mais rápido possível.

Eu não podia censurá-lo pela parte de ser humano e não sabia o que

dizer pela parte de estar comigo, então não falei nada. Sentamo-nos no

chão de madeira da casa da árvore e vasculhamos todas as anotações do

Sr. Kadam. Lemos todas elas duas vezes e esperamos, mas ainda assim

nada aconteceu na casa. Essa era supostamente a casa dos pássaros, mas

eu não via nenhum. Talvez estivéssemos no lugar errado. Comecei a me

sentir ansiosa.

- Olá? Tem alguém aqui? - minha voz ecoou.

O som de asas batendo e uma grasnada foram a minha resposta. No alto,

no canto da casa da árvore, vimos um ninho encoberto. Dois corvos

espiavam pela borda, vigiando-nos. Eles se comunicavam com um som

seco, um ruído que vinha do fundo de suas gargantas.

Os pássaros deixaram seu poleiro e circularam a casa, fazendo

acrobacias no ar. Deram saltos mortais e até voaram de cabeça para

baixo. Cada volta deixava-os mais perto de nós. Kishan soltou seu chakram e o ergueu como uma faca.

Pus minha mão sobre a dele e sacudi a cabeça levemente.

- Vamos esperar e ver o que eles fazem. - Voltei-me para eles. - O que

vocês querem de nós?

Os pássaros pousaram a alguns metros de onde nos encontrávamos. Um

girou a cabeça e me olhou com um olho negro. Uma língua também

negra surgiu do bico e provou o ar quando o pássaro se aproximou.

Ouvi uma voz áspera dizer:

- Querendinós?

- Você entende o que falo?

Os dois pássaros moveram a cabeça para cima e para baixo, parando de

vez em quando para alisar as penas.

- O que estamos fazendo aqui? Quem são vocês?

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Os pássaros, saltitando, aproximaram-se um pouco mais. Um deles disse

"Hughhn", e eu podia jurar que o outro disse "Muunann".

- Vocês são Hugin e Munin? - perguntei, incrédula e maravilhada.

As cabeças se moveram para cima e para baixo novamente. Eles

saltaram, chegando ainda mais perto.

- Vocês roubaram minha pulseira?

- E o amuleto? - acrescentou Kishan.

As cabeças fizeram que sim.

- Bem, queremos tudo de volta. Vocês podem ficar com os pães de mel.

Já devem tê-los comido mesmo.

Os pássaros grasnaram, estalaram os bicos sonoramente e bateram as

asas em nossa direção. Penas arrepiadas se inflaram, fazendo os pássaros

parecerem bem maiores do que eram.

Cruzei os braços na frente do peito.

- Não vão devolvê-los, hein? Isso é o que veremos.

Os pássaros, hesitantes, dançaram, aproximando-se ainda mais, e um

pulou para o meu joelho. Kishan ficou imediatamente preocupado.

Pus a mão em seu braço.

- Se eles são Hugin e Munin, sussurram pensamentos e lembranças nos

ouvidos de Odin. Podem querer se empoleirar em nossos ombros e nos

falar.

Aparentemente eu estava certa, pois no minuto em que inclinei a

cabeça para um lado, um dos pássaros bateu as asas e se acomodou em

meu ombro. Aproximou o bico de meu ouvido e esperei ouvi-lo falar.

Em vez disso, senti uma curiosa sensação, de algo sendo puxado em

mim. O pássaro bicou delicadamente alguma coisa em meu ouvido, mas

eu não senti nenhuma dor.

- O que você está fazendo? - perguntei.

- Pensamentosemperrados.

- O quê?

- Pensamentosemperrados.

Senti outro puxão, um estalido e então Hugin se afastou, saltitando,

com um fio diáfano, semelhante a uma teia, pendendo do bico.

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Cobri a orelha com uma das mãos.

- O que você fez? Roubou parte do meu cérebro? Fiquei com alguma

lesão cerebral?

- Pensamentos emperrados!

- O que isso significa?

O fio que pendia de seu bico se dissipou lentamente quando o pássaro

estalou o bico. Fiquei ali sentada, observando, boquiaberta de pavor, e

me perguntei o que havia sido feito comigo. Será que ele roubou uma lembrança? Vasculhei o cérebro tentando lembrar de todas as coisas

importantes. Procurei algum buraco, algum vazio. Se o pássaro tinha

mesmo roubado uma lembrança, eu não fazia a menor idéia de qual

poderia ser.

Kishan tocou minha mão.

- Você está bem? Como está se sentindo?

- Estou bem. É só...

Minhas palavras morreram quando notei uma mudança em minha

cabeça. Alguma coisa estava acontecendo. Algo se arrastava pela

superfície da mente, como um rodo sobre vidro ensaboado. Eu podia

sentir uma camada de confusão, desordem mental e sujeira, na falta de

uma palavra melhor, descascando como pele morta depois de uma

queimadura de sol. Era como se preocupações e medos aleatórios e

pensamentos melancólicos estivessem antes entupindo os poros da

minha consciência.

Por um momento pude ver tudo o que precisava fazer com perfeita

clareza. Eu soube que estávamos quase alcançando nossa meta. Soube

que haveria protetores ferrenhos guardando o Lenço. Soube o que era o

Lenço e o que ele era capaz de fazer. Naquele momento, soube como

iríamos usá-lo para salvar Ren.

Munin saltitava de um lado para outro diante de Kishan, esperando a

sua vez.

- Está tudo bem, Kishan! Vá em frente. Deixe-o pousar em seu ombro.

Não vai machucá-lo. Acredite em mim.

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Ele me olhou, duvidando, mas assim mesmo inclinou a cabeça para um

lado. Observei, fascinada, Munin bater as asas e pousar no ombro de

Kishan. O pássaro manteve as asas abertas, batendo-as preguiçosamente

enquanto cumpria sua tarefa no ouvido de Kishan.

- Munin está fazendo a mesma coisa com Kishan? - perguntei a Hugin.

O pássaro sacudiu a cabeça e mudou de um pé para o outro. Então

começou a alisar as penas.

- Então qual é a diferença? O que ele vai fazer?

- Espere para ver.

- Espere para ver?

O pássaro assentiu.

Munin saltou para o chão e segurou um fio negro e fino do tamanho

aproximado de uma minhoca. Então abriu o bico e o engoliu.

- Hum... isso parece diferente. Kishan? O que aconteceu? Você está

bem?

- Estou bem. Ele... ele me mostrou - respondeu Kishan baixinho.

- Mostrou o quê?

- Ele me mostrou minhas lembranças. Em todos os detalhes. Eu vi tudo

o que aconteceu. Vi tudo o que se passou comigo e com Yesubai

novamente. Vi meus pais, Kadam, Ren... tudo. Mas com uma grande

diferença.

Tomei sua mão na minha.

- Que diferença?

- Aquele fio negro que você viu... é difícil explicar, mas é como se o

pássaro tivesse tirado um par de óculos de sol muito escuros dos meus

olhos. Vi tudo como se passou de fato, como aconteceu de verdade. Não

mais apenas na minha percepção. Era como se eu fosse um observador

externo.

- A lembrança agora é diferente?

- Não é diferente... é mais clara. Pude ver que Yesubai era uma garota

doce que gostava de mim, mas que foi, sim, encorajada a me procurar.

Ela não me amava da mesma maneira que eu a amava. Tinha medo do

pai. Ela o obedecia em tudo, no entanto também estava desesperada

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para sair de casa. No fim, foi o pai quem a matou. Ele a empurrou

violentamente... com força suficiente para quebrar-lhe o pescoço.

Eu ouvia atenta, chocada também.

- Como pude não perceber seu medo, sua ansiedade? - Ele esfregou o

maxilar. - Ela os escondeu bem. Lokesh tirou vantagem de meus

sentimentos por Yesubai. Eu devia ter visto quem ele era desde o início,

mas estava cego, apaixonado. Como pude não enxergar isso antes?

- O amor às vezes leva a gente a fazer coisas malucas.

- E você? O que viu?

- Eu acho que tive o cérebro aspirado. Meus pensamentos estão mais

claros, assim como as suas lembranças. Na verdade, agora sei como

pegar o Lenço e o que vem em seguida. Mas vamos por partes.

Levantei-me de um salto e ergui o ninho enfiado no canto da casa da

árvore. Os dois pássaros pularam, grasnando com irritação. Eles voaram

até onde eu estava e bateram as asas no meu rosto.

- Sinto muito, mas a culpa é sua mesmo. Foram vocês que clarearam a

minha mente. Além disso, estas coisas são nossas. Precisamos delas.

Peguei a câmera, a pulseira e o amuleto no ninho. Kishan me ajudou a

colocar a pulseira e a corrente com o amuleto e enfiou a câmera na

mochila. Os pássaros me olhavam, zangados.

- Talvez possamos lhes dar outras coisas para compensar sua perda -

sugeri.

Kishan vasculhou a mochila e pegou um anzol, um bastão fosforescente

e uma bússola e os colocou no ninho. Depois de eu devolver o ninho ao

seu lugar, os pássaros voaram até lá para inspecionar seus novos

tesouros.

- Obrigada aos dois! Vamos, Kishan. Venha comigo.

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21

O Lenço da Divina Tecelã Depois de recuperar nossos tesouros no ninho, segui até uma corda

simples que pendia do teto de madeira. Quando a puxei, um ruído

chocalhante veio de cima da casa da árvore e um painel se abriu. Uma

escada então desceu até tocar o chão.

- A próxima etapa será a mais difícil - expliquei a Kishan. - Esta escada

leva aos galhos externos, que precisamos subir até alcançar o topo, onde

encontraremos o ninho de um pássaro gigante. É lá que está o Lenço,

assim como os pássaros de ferro.

- Pássaros de ferro?

- Sim, e teremos que lutar contra eles para pegar o Lenço. Espere um

segundo. - Corri rapidamente os olhos pela pesquisa do Sr. Kadam e

encontrei o que estava procurando. - Aqui. É contra isto que vamos

lutar.

A imagem da mitológica ave estinfaliana era assustadora o bastante sem

a descrição que ele havia incluído.

- "Terríveis aves carnívoras, com bicos de ferro, garras de bronze e

excrementos tóxicos" - leu Kishan. - "Em geral vivem em grandes

colônias."

- Não são uns amores?

- Fique perto de mim, Kells. Não sabemos se você pode cicatrizar aqui.

- Aliás, não sabemos se você também cicatriza aqui. - Sorri para ele. -

Mas vou tentar não deixá-lo sozinho por muito tempo.

- Engraçadinha. Você primeiro.

Subimos a escada e nos vimos num agrupamento de galhos tão

compactos que me faziam lembrar um daqueles brinquedos trepa-trepa

que se veem em parques infantis. Era fácil escalar - desde que eu não

pensasse na queda. Kishan insistiu em que eu fosse primeiro para que

ele pudesse me pegar se eu escorregasse, o que só aconteceu uma vez.

Meu pé deslizou numa parte molhada da madeira e Kishan o apoiou,

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com tênis e tudo, na palma de sua mão, alçando-me para cima outra

vez.

Após um bom tempo subindo, descansamos num galho com as costas

apoiadas no tronco, Kishan mais abaixo, eu mais acima. Ele me jogou

um cantil de limonada sem açúcar, que aceitei, agradecida. Enquanto o

esvaziava em grandes goles, percebi que o galho em que me encontrava

sentada estava um tanto danificado.

- Kishan, dê uma olhada nisso.

Uma pasta espessa e viscosa verde-amarelada espalhava-se na ponta do

meu galho e aparentemente havia corroído metade dele.

- Acho que estamos olhando para os excrementos tóxicos - observei,

com amargura.

Kishan franziu o nariz.

- E isso é velho, talvez de umas duas semanas atrás. O cheiro é horrível.

É ácido e amargo. - Ele piscou e esfregou os olhos. - Está queimando

minhas narinas.

- Acho que vamos precisar ficar atentos a bombas tóxicas, hein?

Agora que ele conhecia o cheiro das aves, podíamos farejá-las até o

ninho. Levamos mais uma hora subindo, porém finalmente chegamos a

um ninho gigantesco, descansando num entroncamento de três galhos.

- Uau, é imenso! Você acha que tem algum pássaro por perto?

- Não ouço nada, mas o cheiro está por toda parte.

- Ah, que sorte a minha ter um nariz de tigre por perto. Não estou

sentindo nada.

- Agradeça por isso também. Acho que nunca conseguirei esquecer este

cheiro.

- É justo que você tenha que lutar contra aves de cheiro desagradável.

Lembre-se de que Ren enfrentou os kappa e os macacos imortais.

Kishan resmungou e prosseguiu na direção do ninho gigante.

Excrementos antigos descoravam a superfície dos galhos da árvore,

enfraquecendo-os. Se pisássemos muito perto da substância, a superfície

do galho se esfarelava num pó branco e às vezes quebrava por completo.

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Fomos nos aproximando lentamente, confiando na audição de Kishan

para nos advertir da chegada das aves. O ninho tinha o tamanho de uma

grande piscina e era feito de galhos de árvore mortos da espessura do

meu braço entretecidos como uma cesta gigante. Escalamos até o topo e

saltamos para dentro do ninho.

Cinco imensos ovos descansavam no centro. Cada um teria sido

suficiente para encher uma banheira de hidromassagem. Cor de bronze

e reluzentes, refletiam a luz do sol em nossos olhos. Kishan bateu

levemente num deles e ouvimos um eco metálico e oco.

Circulei aquele ovo e arquejei. Eles descansavam sobre o material

diáfano mais lindo que eu já vira: O Lenço da Divina Tecelã! O tecido

parecia vivo. As cores se deslocavam e espiralavam em padrões

geométricos na superfície do lenço. Um caleidoscópio de azul-claro se

transformou em cor-de-rosa e amarelo, que então passaram a um verde

suave e dourado, e em seguida a ondas preto-azuladas como um corvo.

Era hipnótico.

Kishan esquadrinhou o céu e me assegurou de que a barra estava limpa.

Então ele se agachou a meu lado para examinar o Lenço.

- Vamos ter que rolar os ovos um por um, Kells. Eles são pesados.

- Tudo bem. Vamos começar por este.

Seguramos um ovo reluzente e o rolamos cuidadosamente para a lateral

do ninho. Então voltamos para o segundo. Encontramos uma pena

perto dele. Penas de aves normais eram leves, ocas e flexíveis. Esta era

mais longa que o meu braço, pesada e metálica. Kishan mal conseguia

movê-la e a borda era afiada como uma serra circular.

- Ai, isso não é bom.

Kishan concordou.

- É melhor nos apressarmos.

Estávamos rolando o terceiro ovo quando ouvimos um grito estridente.

Ao longe, uma ave vinha voando em direção ao ninho. Ela não parecia

nada feliz. Protegi os olhos com a mão para ter uma visão melhor. A

princípio parecia pequena, mas minha opinião sobre seu tamanho

mudou à medida que ela se aproximava velozmente. Asas poderosas

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sustentavam a criatura no ar enquanto ela atravessava as correntes

termais.

O sol atingiu o corpo metálico da ave gigante, que refletiu a luz, me

cegando. Agora estava muito mais perto e parecia ter dobrado de

tamanho. Ela emitiu um lamento desagradável. Um grito mais baixo

ecoou em resposta quando outra ave se juntou à primeira.

A árvore se sacudiu quando alguma coisa pousou num galho próximo.

Um pássaro gritou para nós e começou a se dirigir ao ninho. Como

sempre, Kishan postou-se à minha frente. Recuamos rapidamente,

mantendo o tronco às nossas costas.

Uma ave voou acima de nós. Era mais um monstro que uma ave. Dei

uma boa olhada nela quando mergulhou. Sua cabeça estava inclinada,

de modo que pudesse manter o olhar cravado em nós. Estimei que sua

envergadura de asa fosse de mais de 10 metros, ou cerca da metade do

comprimento do avião do Sr. Kadam. Empunhei o arco, preparei uma

flecha e estremeci quando seu grito agudo e estridente vibrou através

de meus membros. Minha mão estava trêmula ao disparar a flecha.

Errei o alvo.

O corpo da criatura parecia o de uma águia gigante. Fileiras de penas de

metal densas e sobrepostas cobriam o torso da ave e se tornavam

maiores ao longo das asas compridas e amplas. As penas tinham o

tamanho aproximado de uma prancha de surfe. As pontas das asas eram

afiladas e bem separadas. O pássaro de ferro batia as asas e abria as

penas da cauda para ajudar a frear e se lançar novamente para o céu.

Ele se movia como uma ave de rapina. Patas musculosas e fortes, com

garras afiadas, estiraram-se para nos agarrar em sua segunda passagem.

Kishan me empurrou de cara no ninho e o pássaro não conseguiu nos

pegar, mas apenas por poucos centímetros. Sua cabeça parecia um

pouco com a de uma gaivota com um bico robusto, comprido e adunco,

mas havia um gancho extra na mandíbula superior do bico, afiado de

ambos os lados, como uma espada de dois gumes.

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Um dos pássaros se aproximou e tentou nos bicar. Então ouvi um ruído

metálico quando as duas extremidades afiadas de seu bico se uniram

ruidosamente, como uma gigantesca tesoura.

Outro chegou perto demais e o atingi com um raio. A descarga atingiu o

peito da ave e refletiu, chamuscando o ninho a poucos centímetros de

onde Kishan estava.

- Cuidado, Kells!

Isso não estava indo nada bem.

- Meus raios apenas batem e voltam!

- Deixe-me tentar!

Ele lançou o chakram, arremessando-o pelo ar num amplo arco além da

ave.

- Kishan! Como você pode errar algo tão grande?

- Fique olhando!

Quando o chakram completou o arco e começou a retornar para

Kishan, atingiu o pássaro, atravessando uma asa metálica e produzindo

um som horrível, como o de uma broca numa chapa de metal. O

pássaro gritou e despencou centenas de metros até o chão, arrancando

galhos e ramos no caminho. A árvore se sacudiu violentamente quando

ele caiu.

Três outros pássaros rondavam o ninho agora e tentavam nos capturar

com garras ou bicos que se assemelhavam a facas. Encaixei outra flecha

no arco e mirei o pássaro mais próximo. A flecha o atingiu bem no

peito, mas tudo o que conseguiu foi deixá-lo irado.

Kishan mergulhou entre os ovos quando um pássaro tentou pegá-lo

com uma garra.

- Mire o pescoço ou os olhos, Kelsey!

Disparei outra flecha, atingindo o pescoço. A terceira acertou o olho. O

pássaro se afastou e então despencou, rodopiando como um avião

descontrolado antes de se despedaçar no chão. Agora eles estavam

furiosos de verdade.

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Mais pássaros chegaram. Pareciam inteligentes e astuciosos. Um atacou

Kishan, acuando-o na extremidade do ninho. Enquanto ele estava ali,

ocupado, um segundo pássaro se aproximou e o apanhou com as garras.

- Kishan!

Ergui a mão e mirei em seu olho. Dessa vez, o raio funcionou. A ave de

ferro gritou e soltou Kishan, que caiu com um baque surdo no ninho.

Fiz o mesmo com o outro pássaro, que se afastou, chamando,

enlouquecido, o restante do bando.

Corri até Kishan.

- Você está bem?

Sua camisa estava rasgada e ensangüentada. As garras da ave haviam

dilacerado ambos os lados de seu tórax e o sangue jorrava livremente.

Ele arquejou.

- Parece que tenho facas quentes sobre a pele, mas já está cicatrizando.

Não deixe que se aproximem de você.

A pele em torno dos cortes estava empolada e muito vermelha.

- Parece que as garras são cobertas por ácido - eu disse, solidária.

Ele arfou quando toquei de leve em sua pele.

- Vou ficar bem. - Ele se imobilizou. - Ouça. Elas estão se comunicando.

Estão voltando. Prepare-se para lutar.

Kishan se levantou para distraí-las enquanto eu me posicionava atrás

dos dois ovos restantes.

- Pensando bem, eu preferiria os macacos - gritou Kishan.

Estremeci.

- Vou lhe dizer uma coisa: vamos alugar os filmes King Kong e Os pássaros. Depois você decide.

Ele gritou enquanto corria do ataque de um pássaro.

- Você está marcando um encontro comigo? Porque, se estiver, isso

certamente vai ser um incentivo a mais para sair disso vivo.

- Se isso funcionar, está marcado.

- Estou dentro.

Ele atravessou correndo o ninho, saltou pela borda, virou em pleno ar e

pousou num galho que se projetava. Dali lançou o chakram, que se

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elevou no céu. O sol refletiu no disco dourado quando girou em torno

da árvore e passou no meio das 10 aves ou mais que circundavam o

topo.

Elas se dispersaram em todas as direções e tornaram a se agrupar. Eu

quase podia vê-las calculando a manobra seguinte. De repente, elas

mergulharam em nossa direção. Gritando, o bando atacou. Uma vez eu

vira um grupo de gaivotas exibir um comportamento violento de

perseguição em bando. Todas bicavam e acossavam um homem com um

sanduíche na praia até ele sair correndo, berrando. Elas eram

determinadas e agressivas, mas essas aves eram bem piores!

Elas arrancaram galhos das árvores para nos atacar. Mais da metade

delas mergulhou na direção de Kishan, que agilmente saltava de galho

em galho até estar de volta a meu lado, atrás dos ovos. As asas batendo

freneticamente em torno do ninho faziam o vento soprar em todas as

direções. Eu tinha a sensação de estar presa num redemoinho.

Kishan atirou o chakram repetidamente, arrancando a perna de uma

ave e cortando a barriga de outra antes de a arma retornar à sua mão.

Livrei-me de duas atravessando-lhe os olhos com flechas e ceguei mais

duas com meus raios.

- Você pode mantê-las longe de mim por um minuto, Kells? - gritou

Kishan.

- Acho que sim! Por quê?

- Vou mover os dois últimos ovos!

- Depressa!

Experimentei preparar uma flecha, infundi-la com a energia de um raio

e disparar. Ela atingiu uma ave no olho, fazendo explodir sua cabeça. O

torso carbonizado, fumegando, aterrissou com um estrondo, metade no

ninho e metade pendendo da borda. O ninho rachou e se inclinou

precariamente antes de tornar a se assentar. O impacto me atirou no ar,

como se eu estivesse num trampolim, e o impulso me lançou sobre a

beirada. Desesperada, estendi as mãos e me agarrei à borda enquanto

caía.

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Galhos ásperos arranharam minha pele à medida que eu lutava para

reduzir a velocidade da queda. Finalmente parei, atirei o braço acima da

lateral, mas escorreguei. O sangue escorria pelo meu braço. Trincando

os dentes de dor, enfiei os dedos e os pés entre os galhos em busca de

apoio. Quebrei várias unhas e arranhei pernas e braços, mas valeu a

pena. Não despenquei para uma morte horrível. Pelo menos, não

daquela vez.

Kishan havia se firmado melhor. Ele se equilibrou rapidamente e correu

para mim.

- Agüente firme, Kells!

Ele se deitou de bruços e estendeu a mão. Agarrou as minhas mãos e me

puxou até eu cair em cima dele.

- Você está bem? - perguntou.

- Estou.

- Ótimo.

Ele sorriu e me envolveu nos braços, quando viu alguma coisa no alto.

Então pôs uma das mãos atrás da minha cabeça e outra em minha

cintura e rolou diversas vezes até batermos de encontro ao fundo do

ninho, o seu corpo esparramado sobre o meu.

- Cuidado! - gritei.

Dois dos pássaros se curvavam sobre nós, tentando nos partir ao meio

com seus bicos metálicos. Agarrei um galho quebrado ali perto e o

enfiei no olho de um deles segundos antes de o animal estripar Kishan.

Então atingi o outro com um raio.

- Obrigado.

Sorri, orgulhosa da minha façanha.

- Sempre às ordens.

O ninho se deslocou. O peso da ave morta pendurada na borda era

grande demais. A ave estava caindo e levando o ninho com ela. Kishan

agarrou galhos de ambos os lados da minha cabeça.

- Segure-se! - gritou ele.

Passei os braços em torno de seu pescoço e me agarrei a ele enquanto o

ninho tombava vários metros no ar e rachava ao meio. Metade do

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ninho tombou com a ave morta e a outra metade - aquela em que

estávamos - equilibrou-se precariamente em dois galhos quase partidos.

Meu estômago se revirou quando o ninho e tudo à sua volta, inclusive

os galhos que nos seguravam, de repente despencaram mais um metro e

aterrissaram com um estrondo de tremer os ossos. Três dos ovos caíram

do ninho e se espatifaram nos galhos abaixo. Caímos no que restava do

ninho e rolamos até parar.

- Onde está o Lenço? - gritei.

- Ali!

O Lenço havia voado do ninho e pendia frouxo num galho quebrado

vários metros abaixo. Ele esvoaçava na brisa e provavelmente voaria de

novo a qualquer momento.

- Kells, depressa! Agarre minha mão. Vou descer você para que possa

alcançar o Lenço.

- Tem certeza?

- Tenho! Ande logo!

Ele segurou meu braço e me baixou. Eu não podia acreditar que Kishan

tinha toda essa força, mas ele enroscou o outro braço num galho e

sustentou o peso de nossos dois corpos com um só braço. Ainda não era

suficiente.

- Vou ter que descer mais! Pode segurar minha perna?

- Posso. Mas preciso subir.

Ele grunhiu e me puxou para cima, jogando-me para o alto como se eu

fosse uma mochila, e me pegou pela cintura quando eu começava a cair.

Arquejei e agarrei seu pescoço outra vez.

- O que eu faço?

- Primeiro... - Ele inclinou a cabeça e me beijou com força. - Agora

passe a perna esquerda pela minha cintura.

Eu o olhei, furiosa.

- Apenas faça o que estou dizendo!

Balancei para a frente e para trás, então consegui enganchar a perna

esquerda em sua cintura. Em seguida, ele soltou minha cintura e

agarrou minha perna. Era apavorante, mas eu acreditava que ele era

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forte o bastante para sustentar nós dois com apenas um braço.

Comparado a isso, ficar de pé nos ombros de Ren em Kishkindha tinha

sido brincadeira de criança.

Fiz uma careta, perguntando-me que insanidades me aguardavam nas

próximas duas tarefas. Mentalmente implorei aos galhos que seguravam

o ninho para que nos agüentassem um pouco mais, apenas o suficiente

para que eu agarrasse o Lenço. No fundo, eu esperava ouvi-los partir a

qualquer segundo, lançando-nos num mergulho para a morte.

Soltei o pescoço de Kishan e lentamente fiquei de cabeça para baixo,

segurando o cós de sua calça, depois sua perna e, por fim, seu pé.

Enquanto ele me abaixava eu resmungava:

- Por que eles não escolheram uma garota do Cirque du Soleil para essas

tarefas? Ficar pendurada de cabeça para baixo de um galho quebrado a

centenas de metros do chão é pedir demais de uma garota iniciante em wushu! - Kells?

- O quê?

- Cale a boca e pegue o Lenço.

- Estou tentando!

Estiquei-me mais e ouvi Kishan gemer.

- Só mais uns centímetros.

Sua mão deslizou deliberadamente da minha panturrilha para o

tornozelo, fazendo-me oscilar no abismo verde.

Apavorada, gritei o nome de Kishan e fechei os olhos por um segundo,

engoli em seco e balancei o corpo de volta na direção do Lenço. O

vento o arrancou do galho. Ele rodopiou no ar e passou por mim.

Agarrei-lhe a ponta no último segundo - pendurada de cabeça para

baixo, o sangue latejando em minha cabeça, as pontas dos dedos

agarrando desesperadamente o Lenço, com Kishan mal sustentando nós

dois - e tive uma visão.

O dossel verde oscilando vertiginosamente diante dos meus olhos

esmaeceu até se tornar branco e eu ouvi uma voz.

- Kelsey. Srta. Kelsey! Está me ouvindo?

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- Sr. Kadam? Sim, eu estou ouvindo!

Vi o vago contorno de uma barraca atrás dele.

- Estou vendo sua barraca!

- E eu posso ver a senhorita e Kishan.

- O quê?

Olhei para trás e vi a imagem borrada de Kishan agarrando a perna de

meu corpo pendurado de cabeça para baixo no ar. O Lenço pendia

precariamente, enganchado num de meus dedos. Eu o ouvi gritando,

como se estivesse a uma grande distância.

- Kelsey! Agüente firme!

A vaga silhueta de outra pessoa vinha surgindo.

- Não diga nada - instruiu o Sr. Kadam. - Não o deixe incitá-la a falar.

Apenas preste atenção a cada detalhe... qualquer coisa pode nos ajudar a

encontrar Ren.

- Está bem.

O medalhão do Sr. Kadam brilhava, vermelho. Olhei para o meu e vi

que também reluzia no mesmo tom. Quando tornei a erguer os olhos, a

imagem da outra pessoa se materializou.

Lokesh. Ele vestia um terno. O cabelo escuro estava alisado para trás e

percebi que usava vários anéis. Seu medalhão também cintilava,

vermelho, e era muito maior que os nossos.

Seus olhos ardilosos cintilaram quando ele sorriu.

- Ah! Eu vinha me perguntando quando tornaria a vê-la. - Ele falava

educadamente, como se estivéssemos nos reencontrando num chá da

tarde. - Você me custou muito em tempo e recursos, minha querida.

Eu o observava em silêncio e me encolhi enquanto ele me avaliava de

forma perturbadora.

Lokesh então falou baixinho, ameaçador:

- Não temos tempo para as sutilezas do jogo, como eu gostaria, então

serei direto. Quero o medalhão que você está usando. Você o trará para

mim. Se fizer isso, vou deixar seu tigre viver. Se não... - Ele tirou uma

faca do bolso e testou seu gume num polegar. - ...vou encontrá-la,

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cortar sua garganta... - Ele me olhou diretamente nos olhos e concluiu a

ameaça: - ...e arrancá-lo de seu pescoço sangrento.

- Deixe a jovem fora disso - interveio o Sr. Kadam. - Eu irei ao seu

encontro e lhe darei o que quer. Em troca, você liberta o tigre.

Lokesh voltou-se para o Sr. Kadam e abriu um sorriso desagradável.

- Eu não o reconheço, meu amigo. Estou interessado em saber como

você adquiriu o amuleto. Se quiser negociar, pode entrar em contato

com meu escritório em Mumbai.

- E que escritório seria esse, meu amigo?

- Encontre o prédio mais alto de Mumbai. Meu escritório fica na

cobertura.

O Sr. Kadam assentiu e Lokesh continuou a dar instruções. Enquanto

eles

falavam, estudei o cenário enevoado que havia surgido por trás de

Lokesh. Memorizei o máximo de detalhes que pude. Um homem falava

com ele, mas Lokesh não lhe dava atenção.

O criado atrás de Lokesh tinha cabelos negros penteados para a frente,

formando um coque no topo, logo acima da linha onde começa o

cabelo. Ao longo de sua testa, via-se uma linha de tatuagens que se

pareciam com as palavras em sânscrito da profecia. De peito nu, o

homem usava colares de contas, feitos à mão, de várias voltas. Suas

orelhas eram furadas em diversos lugares, com argolas douradas. Ele

puxava outro homem e o indicava com gestos.

O segundo homem encontrava-se mais atrás com a cabeça pendendo

para baixo. G cabelo preto emaranhado e imundo cobria seu rosto.

Sangrando e machucado, ele lutava para se soltar das mãos do sujeito

que o segurava. O criado gritou e puxou o homem para a frente, até que

ele cambaleou e caiu de joelhos. Em seguida, ele o esbofeteou e puxou

seus ombros para trás. Quando o homem ferido ergueu o rosto, o cabelo

caiu para um lado e eu me vi fitando penetrantes olhos azul-cobalto.

Tomada pela emoção, dei um passo à frente e gritei:

- Ren! Ele não me ouviu. Sua cabeça pendeu até o peito e eu comecei a chorar.

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Alguém, no entanto, me ouviu - Lokesh. Ele estreitou os olhos e girou

bruscamente para ver o que eu estava olhando. Tentou falar com seus

criados, mas eles não o ouviam. Ele se voltou para mim e, pela primeira

vez, estudou as imagens tênues por trás do meu ombro. Tudo já estava

desaparecendo. Eu não sabia dizer se Lokesh havia reconhecido Kishan

ou não. Fiquei imóvel, torcendo para que visse apenas a mim.

Lokesh de fato concentrou sua atenção em mim. Ele indicou Ren com

um gesto e, com falsa simpatia, estalou a língua.

- Deve ser terrivelmente doloroso para você vê-lo assim. Sabe, cá entre

nós, ele grita por você quando eu o torturo. Infelizmente para o tigre,

ele vem sendo muito pouco cooperativo quanto ao seu paradeiro. - Ele

deu uma risadinha. - Não me diz nem seu primeiro nome, embora eu já

o saiba. É Kelsey, não é?

Lokesh observou minha expressão atentamente, esperando que eu

deixasse escapar uma pista.

- Isso está se tornando uma espécie de ponto de impasse entre nós -

continuou ele em sua ironia cortante. - Os lábios do príncipe são tão

bem cerrados que ele não confirma nem sequer o seu nome. Devo dizer

que já esperava por isso. Ele sempre foi muito teimoso. Mais lágrimas?

Que triste. Ele não vai poder resistir para sempre, você sabe. A dor por

si só já deveria tê-lo matado a essa altura.

Eu somente escutava, atenta a tudo.

- Por sorte, seu corpo parece bastante resistente. - Ele me observou pelo

canto do olho enquanto limpava uma sujeira microscópica sob as unhas.

- Tenho que admitir que gosto bastante de torturá-lo. É o melhor de

ambos os mundos vê-lo sofrer tanto como homem quanto como animal.

A extensão dos requintes a que posso chegar não tem precedentes. Ele

sara tão rapidamente que até mesmo eu me vejo incapaz de testar seus

limites. No entanto, eu lhe asseguro que estou me empenhando ao máximo. Mordi minha mão trêmula para abafar um soluço e olhei para o Sr.

Kadam. Ele sacudiu a cabeça discretamente, me indicando que ficasse

quieta.

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Lokesh sorriu com sarcasmo.

- Talvez, se você apenas confirmasse seu nome, eu pudesse dar a ele uma

breve... trégua. Um simples gesto de confirmação seria suficiente. É

Kelsey Hayes, não é?

A advertência do Sr. Kadam atravessou meus pensamentos. Foi

necessária toda a minha determinação, porém mantive os olhos focados

em Ren. As lágrimas escorriam pelo meu rosto, mas eu não me mexi,

nem mesmo olhei para Lokesh.

Ele ficou irado.

- Certamente, se você gostasse dele, iria poupá-lo de um pouco de dor,

aliviar sua agonia. Não iria? Talvez eu estivesse errado em relação a seus

sentimentos. Estou certo de que não errei em relação aos dele. Ele não

fala absolutamente nada de você, mas, nos sonhos, chama por sua

amada. Será que não é por você que ele suplica?

Sua voz começou a desaparecer.

- Ah, muito bem. Os dois irmãos nem sempre foram felizes no amor,

não é mesmo? Talvez seja hora de livrá-lo de seu sofrimento. Tenho a

impressão de que eu estaria lhe fazendo um favor.

Não pude evitar. Gritei:

-Não!

Ele ergueu as sobrancelhas e tornou a falar, mas suas palavras soaram

baixo demais para que eu as ouvisse. Quando nós três já não podíamos

ouvir o que o outro falava, o Sr. Kadam voltou-se para mim. Lokesh

gesticulava, mas eu o ignorei, concentrando minha atenção no Sr.

Kadam, cuja imagem foi se tornando branca. Enxuguei as lágrimas

quando ele sorriu, solidário, e então piscou para mim um segundo antes

de desaparecer.

De repente o branco se tornou verde. O sangue latejava em minha

cabeça.

Kishan gritava para mim:

- Kelsey! Kelsey! Volte!

Felizmente, eu ainda segurava o Lenço.

- Peguei! - gritei. - Me puxe, Kishan!

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- Kelsey! Cuidado!

Um pássaro gritou acima de nós. Virei-me, vi a abertura negra da

garganta metálica e tive uma visão de perto e em primeira mão de seu

bico-tesoura de dois gumes, verde e coberto de azinhavre. Disparei um

raio para dentro da abertura e a ave se afastou grasnando, com fumaça

saindo do bico.

Com um potente grunhido, Kishan me puxou para cima. Agarrei sua

cintura e me segurei com toda força. Ele me soltou, acreditando que eu

teria força muscular suficiente para me segurar nele. Envolvi seu corpo

com os braços, agarrando meus pulsos para trancar meus braços em sua

cintura, e apertei o Lenço nas mãos. Ele se lançou sobre a borda do

ninho partido e me ajudou a subir. Seus braços tremiam de fadiga.

Kishan sentou-se e inspecionou meus membros.

- Kells, você está bem? O que aconteceu com você?

- Outra visão. - Ofeguei. - Falo sobre isso mais tarde.

Nós nos abaixamos quando um pássaro gritou ali perto. Peguei nossa

mochila e guardei o arco e a aljava, que por magia havia se reabastecido

com flechas douradas, e também o Lenço e o chakram. - Muito bem. E agora? - perguntou ele.

- Agora nós damos o fora daqui. Venha.

Descemos até alcançar distância suficiente para que as aves não mais

nos vissem. Ainda podíamos ouvi-las rondando a árvore e gritando

umas para as outras, mas quanto mais descíamos, menos audíveis se

tornavam os ruídos. Logo não mais as escutaríamos.

- Kells, pare. Precisamos descansar um pouco.

- Tudo bem.

O Fruto Dourado criou algo rápido para comermos e bebermos e Kishan

insistiu em me examinar em busca de ferimentos. Ele parecia bem. Seus

machucados já haviam cicatrizado, mas eu tinha alguns cortes feios nos

braços e nas pernas. Eu também estava sarando, porém várias unhas

minhas estavam quebradas e ensangüentadas e debaixo de uma delas

havia uma farpa comprida que Kishan tirou com cuidado.

- Isso vai doer. Farpas e espinhos são os maiores inimigos dos tigres.

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- Sério?

- Nós nos esfregamos nos troncos das árvores e os arranhamos para

marcar território e às vezes comemos porcos-espinhos. Um tigre

inteligente os ataca de frente, mas às vezes eles conseguem se virar. Já

tive espinhos de porco-espinho em minhas patas e eles doem e

inflamam. E se quebram quando ando. Um tigre não consegue arrancá-

los, então eu tinha que esperar até poder me transformar em homem

para puxá-los.

- Ah! Eu me perguntava por que Ren estava sempre se esfregando nas

árvores na selva. Mas os espinhos não acabam saindo sozinhos?

- Não. Na verdade, eles se curvam, formando um círculo, e ficam na

pele.

Tampouco se dissolvem. Isso pode acontecer com as farpas, mas não

com os espinhos. Eles podem permanecer no corpo do tigre a vida toda.

É o que faz alguns deles se tornarem predadores do homem.

Incapacitados, eles não podem mais caçar presas rápidas. Eu já até

encontrei alguns tigres que haviam morrido de fome por terem sido

feridos por porcos-espinhos.

- Bem, então o sensato seria não mais comer porcos-espinhos.

Kishan sorriu.

- Mas são deliciosos.

- Argh. - Arquejei. - Ai!

- Está quase saindo. Pronto. Saiu.

- Obrigada.

Ele limpou meus piores arranhões com lenços umedecidos com álcool e

então cobriu o que podia com ataduras.

- Acho que aqui você vai cicatrizar mais rápido que o normal, mas não

tão rápido quanto eu. E melhor descansarmos.

- Descansaremos quando chegarmos lá embaixo.

Ele suspirou e esfregou a testa.

- Kells, levamos dias para chegar aqui em cima. Vai levar dias para

descermos tudo.

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- Não, não vai. Tenho um atalho. Quando os corvos clarearam minha

mente, vi o que o Lenço pode fazer. Só precisamos ir até um galho.

Eu podia ver que Kishan estava temeroso, mas ainda assim me seguiu.

Caminhamos até a extremidade de um galho comprido.

- E agora? - perguntou.

- Observe.

Segurei o Lenço na palma das mãos e disse:

- Um paraquedas para dois, por favor.

O Lenço se retorceu, retesou-se e foi se esticando, depois se dobrou

várias vezes. Dos quatro cantos, soltaram-se fios que se prolongaram e

foram se trançando, formando cintos e cordames. Por fim, o Lenço

parou de se mover. Havia se transformado numa grande mochila com

dois arneses.

Kishan olhava para ela, incrédulo.

- O que você fez, Kelsey?

- Você vai ver. Ponha-a nas costas.

- Você disse paraquedas. Acha que vamos sair daqui saltando de para-

quedas?

- Acho.

- Não sei, não.

- Ah, vamos lá. Tigres não têm medo de altura, têm?

- A questão aqui não é a altura. A questão é estar numa árvore

extremamente alta e lançar nossos corpos no nada sustentados por um

tecido estranho que agora você afirma que é um para-quedas.

- É. E vai funcionar.

- Kelsey. - Tenha fé, como disse o Mestre do Oceano. O Lenço faz outras coisas

legais também. Eu conto a você na descida. Kishan, confie em mim.

- Eu confio em você. Só não confio nesse tecido.

- Bem, eu vou saltar. Você vem comigo ou não?

- Alguém já lhe disse que você é teimosa? Era teimosa assim com Ren?

- Ren teve que lidar com teimosia e sarcasmo, portanto considere-se um

cara de sorte.

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- Sim, mas pelo menos ele ganhava uns beijos por seus esforços.

- Você também ganhou alguns beijos.

- Não voluntários.

- E verdade. Você os roubou.

- Beijos roubados são melhores que nada.

Arqueei a sobrancelha.

- Você está começando uma discussão comigo só para amarelar?

- Não. Não estou amarelando. Muito bem. Se você insiste nisso, por

favor, me explique como funciona.

- É fácil. Nós nos prendemos com as correias, saltamos o mais longe

possível da árvore e puxamos a corda. Pelo menos eu espero que seja

assim que funcione - murmurei baixinho.

- Kelsey. - Não se preocupe. E a maneira como devemos descer. Eu sei que vamos

conseguir.

- Certo.

Ele se prendeu ao arnês enquanto eu punha nossa mochila na frente do

peito. Então me aproximei de Kishan.

- Hum... você é alto demais para mim. Talvez eu possa ficar num galho

mais acima.

Olhei ao redor procurando alguma coisa em que subir, mas Kishan

envolveu minha cintura com as mãos e me levantou. Ele me

aconchegou perto de seu peito enquanto eu me prendia na outra parte

do arnês do Lenço.

- Obrigada. Muito bem. Então o que você precisa fazer é me carregar,

correr e saltar do galho. Consegue fazer isso?

- Com certeza - respondeu secamente. - Pronta?

- Sim.

Ele me apertou junto ao corpo.

- Um... dois... três!

Kishan correu cinco passos e se lançou no vazio.

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22

Saída O vento gritava à nossa volta enquanto mergulhávamos em queda livre

pelo céu, girando como a casa de Dorothy no centro do tornado. Kishan

conseguiu nos estabilizar numa posição de bruços. Ele segurou meus

pulsos e abriu nossos braços em um arco. Menos de um segundo após

nos estabilizarmos, ouvimos um grito acima de nós. Um pássaro de

ferro estava em nosso encalço.

Kishan ergueu meu braço esquerdo no ar e demos uma violenta guinada

para a direita, ganhando velocidade. O pássaro nos seguiu. Kishan

ergueu nossos braços direitos e oscilamos para a esquerda. O pássaro

agora estava em cima de nós.

- Segure-se, Kells! - gritou Kishan.

Ele puxou nossos braços de volta e inclinou nossa cabeça para baixo.

Disparamos adiante como uma bala. O pássaro dobrou as asas e

mergulhou conosco.

- Vou nos virar! Tente atingi-lo com um raio! Pronta?

Assenti e Kishan nos fez girar no ar. Agora estávamos de costas para o

chão e eu tinha uma excelente visão da barriga do pássaro.

Rapidamente, disparei uma sucessão de raios e consegui irritá-lo o

suficiente para nos livrar dele. Errei o olho, mas acertei o bico. O

pássaro não gostou nada disso, bateu asas e se afastou, gritando, furioso.

- Segure-se!

Kishan tornou a nos virar e nos estabilizou mais uma vez. Ele puxou o

cordão de abertura e ouvi o tecido deslizando ao ser liberado no vento.

Com um estalido, quando ele se abriu o paraquedas do Lenço se abriu e

se inflou. Kishan apertou os braços em minha cintura e desacelerou

nossa descida. Então me soltou para agarrar os batoques e controlar as

linhas direcionais.

- Tente mirar no estreito entre as duas montanhas! - berrei.

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O grito horrível que ouvimos indicava que os pássaros haviam nos

encontrado. Três deles começaram a nos rondar, procurando nos

prender com as garras e os bicos. Tentei usar meu poder do raio, mas

era muito difícil atingi-los nos olhos dessa distância. Em vez disso, abri

a mochila e peguei o arco.

Kishan adernou para a esquerda e eu disparei uma flecha. Ela passou

zumbindo acima da cabeça de um dos pássaros. A segunda flecha

acertou-lhe o pescoço e, imbuída com o poder do raio, eletrocutou o

pássaro, que despencou, ferido. Um outro nos atingiu com sua asa

afiada, fazendo-nos rodopiar, mas consegui irritá-lo o suficiente para

que se afastasse, voando em outra direção.

O terceiro pássaro foi esperto. Ele circundou minha linha de visão a fim

de permanecer atrás de nós o máximo possível. Quando atacou, abriu

um grande buraco no tecido com as garras. O paraquedas danificado

nos lançou em outra queda livre. Kishan tentou nos guiar, mas o vento

sacudia violentamente o velame rasgado.

De repente o paraquedas começou a se consertar sozinho. Os fios se

entrelaçavam de um lado a outro no tecido até parecer que o Lenço

jamais havia sido danificado. Quando ele se inflou novamente, Kishan

puxou o batoque para nos conduzir na direção correta.

O pássaro furioso reapareceu e conseguiu se esquivar de minhas flechas.

Seus gritos estridentes foram respondidos por outros.

- Temos que pousar!

- Estamos quase lá, Kells!

Pelo menos uma dezena de aves vinha a toda velocidade em nossa

direção. Teríamos sorte se sobrevivêssemos tempo o bastante para

alcançar o solo. O bando circulava, gritando, batendo as asas e estalando

os bicos.

Estávamos quase lá. Se pudéssemos agüentar mais alguns segundos...

Um pássaro veio direto para cima de nós. Ele era rápido e não o vimos

até o último momento. A criatura abriu o bico para nos partir em dois.

Eu podia quase ouvir o ruído dos meus ossos sendo triturados,

imaginando a ave de metal me cortando ao meio.

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Disparei várias outras flechas, mas errei todas. O vento de repente nos

virou e eu nada podia fazer na nova posição. Kishan manobrou o

paraquedas, conduzindo o velame numa perigosa descida e numa curva

fechada. Fechei os olhos e senti um solavanco quando nossos pés

tocaram a terra sólida.

Kishan deu alguns passos, correndo, e então me empurrou de cara na

grama. Ele se deitou em cima de mim enquanto freneticamente nos

livrava do cordame.

- Mantenha a cabeça abaixada, Kells!

O pássaro estava bem em cima de nós. Ele deu uma bicada no

paraquedas e puxou, partindo-o ao meio. Encolhi-me ao ouvir o ruído

medonho do tecido especial sendo rasgado. Frustrado, o pássaro largou

o para-quedas e nos circundou, preparando-se para outro ataque.

Kishan se libertou, pegou o chakram na mochila e o lançou, enquanto

eu me agachava e recolhia as dobras do paraquedas.

- Por favor, se reconstitua.

Nada aconteceu. Kishan tornou a atirar o chakram. - Uma ajudinha aqui, Kells!

Lancei algumas flechas e, com o canto do olho, vi o tecido se mover. Ele

começou a se reconstituir, lentamente a princípio e, em seguida, cada

vez mais rápido. Então encolheu, voltando ao tamanho original.

- Distraia-os mais um pouco, Kishan. Eu sei o que fazer!

Peguei o tecido e disse:

- Recolha os ventos.

Os desenhos foram substituídos, as cores mudaram e o Lenço cresceu.

Retorcendo-se sobre si mesmo, ele se inflou e se esticou, criando uma

grande sacola que se abriu na brisa. Uma forte rajada de vento atingiu

meu rosto e fluiu para o interior da sacola. Quando ele perdeu

intensidade, outro vento me fustigou o corpo por trás e começou

também a encher a sacola. Logo, ventos vindos de todas as direções

estavam me castigando. Eu me sentia golpeada por todos os lados e mal

conseguia segurar a sacola cheia de ventos poderosos.

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Por fim, as rajadas cessaram, de modo que eu não sentia nem mesmo a

mais leve brisa, mas a sacola se agitava com violência. Kishan estava

cercado por 10 pássaros e mal conseguia mantê-los à distância com o chakram. - Kishan! Fique atrás de mim!

Ele levou o braço para trás e, com um poderoso impulso, soltou o chakram. Enquanto a arma girava no ar, ele correu para mim, agarrou a

sacola do outro lado e pegou o chakram segundos antes de ele me

decapitar.

Ergui uma sobrancelha enquanto ele sorria.

- Muito bem. Pronto? - gritei. - Um, dois, três!

Abrimos a sacola e liberamos todos os ventos de Shangri-lá na direção

dos pássaros. Três deles foram lançados contra a montanha enquanto os

outros dispararam na direção da árvore do mundo, tentando

desesperadamente escapar do tumulto.

Quando os ventos cessaram, a sacola vazia pendeu flácida entre nós.

Kishan me olhava, sem acreditar.

- Kelsey. Como você... - disse ele, antes de sua voz falhar.

- Lenço, por favor.

A sacola se moveu e se contorceu, tornou-se azul-clara e dourada, e

então encolheu, transformando-se novamente em Lenço. Eu o enrolei

no pescoço e joguei a ponta sobre o ombro.

- A resposta é: não sei. Quando Hugin e Munin clarearam nossa mente,

eu me recordei de histórias e mitos que já ouvira antes. Lembrei-me de

coisas que a Divina Tecelã nos contou e também de especulações do Sr.

Kadam. Ele tinha me contado a história de um deus japonês chamado

Fujin, que controlava os ventos e os carregava numa sacola. Eu também

sabia que esse tecido era especial, como o Fruto Proibido.

- Hum.

- Talvez tudo estivesse em minha mente todo o tempo ou talvez Hugin

tenha soprado essas coisas em meus pensamentos. Não tenho certeza.

Sei que o Lenço pode fazer mais alguma coisa, algo que vai nos ajudar a

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salvar Ren, mas temos que sair daqui antes que os pássaros retornem. Aí

então eu mostro a você.

- Tudo bem, mas primeiro tem uma coisa que eu preciso fazer.

- O que é?

- Isto.

Ele me puxou de encontro ao seu corpo e me beijou. De verdade. Sua

boca se movia sobre a minha com paixão. O beijo foi rápido, turbulento

e voraz. Ele me apertava, uma das mãos apoiando minha cabeça

enquanto a outra me segurava com firmeza pela cintura. Ele me beijou

ferozmente, com uma impulsividade a que eu não podia pôr fim, do

mesmo jeito que não é possível deter uma avalanche.

Se você é apanhado numa avalanche, tem duas escolhas: ficar parado e

tentar bloqueá-la ou se entregar, rolar com ela e torcer para chegar vivo

lá embaixo. Assim, rolei com o beijo de Kishan. Por fim, ele levantou a

cabeça, me rodopiou e deu um jubiloso grito de vitória que ecoou nos

morros ao redor.

Quando finalmente me colocou no chão, precisei recuperar o fôlego.

Ar- quejando, perguntei:

- Qual foi o motivo disso?

- Só estou feliz por estar vivo!

- Certo. Mas da próxima vez guarde seus lábios para si mesmo.

Ele suspirou.

- Não fique aborrecida, Kells.

- Eu não estou aborrecida. Eu... eu não sei o que pensar sobre isso.

Aconteceu tudo rápido demais para que eu sequer reagisse.

Um sorriso maroto iluminou seu rosto.

- Prometo ir mais devagar da próxima vez.

- Que próxima vez?

Ele franziu ligeiramente a testa.

- Não precisa fazer uma tempestade por causa disso. É só uma reação

natural ao fato de ter escapado por pouco da morte. E como quando os

soldados voltam da guerra e agarram uma garota para beijar assim que

desembarcam.

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- É, talvez, mas a diferença é que esta garota estava no barco com você -

repliquei, com ironia. - Fique à vontade para agarrar qualquer garota

que quiser quando voltarmos à terra, marinheiro, mas esta aqui não

quer saber de agarramento.

Ele cruzou os braços diante do peito.

- É mesmo? Suas mãos estavam bem ativas, se quer saber.

- Se minhas mãos estavam em você - devolvi, indignada -, era para

empurrá-lo!

- Se é isso que você precisa dizer a si mesma para ter a consciência limpa

no fim do dia, tudo bem. Você só não quer admitir que gostou. - Humm, deixe-me ver. Tem razão, Casanova. Eu gostei, sim. Quando

acabou?

Ele sacudiu a cabeça.

- Você é teimosa. Não é de admirar que Ren tenha tido tantos

problemas.

- Como você ainda se atreve a mencionar seu irmão?

- Quando vai encarar os fatos, Kells? Você gosta de mim.

- Não estou gostando tanto assim de você agora! Será que podemos

voltar para o portão do espírito e esquecer essa conversa?

- Sim. Mas vamos retomar o assunto mais tarde.

- Quem sabe no dia que Shangri-lá congelar.

Ele apanhou a mochila e sorriu.

- Posso esperar até lá. Você primeiro, bilauta. - Ladrão de beijos - murmurei. Ele sorriu com malícia e ergueu uma sobrancelha. Andamos durante

várias horas. Kishan tentava conversar comigo, mas eu, teimosamente,

me recusava a notar sua existência.

O problema com o que aconteceu entre nós era... que ele não estava

errado. A essa altura, eu havia passado mais tempo com ele do que com

Ren e vínhamos vivendo sob o mesmo teto havia meses. Tínhamos

atravessado Shangri-lá, passando dias e noites juntos nas últimas

semanas.

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Um contato diário assim cria um nível de proximidade, uma...

intimidade entre duas pessoas. Kishan estava apenas mais disposto do

que eu a reconhecer esse fato. Não era de surpreender que ele, que já

admitira sentir algo por mim, estivesse começando a se sentir

confortável em expressar esses sentimentos. A questão era que isso não

me aborrecia tanto quanto deveria. Beijar Kishan não era como beijar

Artie ou Jason, nem mesmo Li.

Quando beijei Li, eu me senti no controle. Tampouco era como beijar

Ren. Ren era como uma incrível cachoeira na selva - espumando e

reluzindo à luz do sol. Ele era um paraíso exótico à espera de ser

descoberto. Kishan era diferente. Kishan era um rio tempestuoso e

turbulento - rápido, imprevisível e não navegável mesmo para o mais

hábil dos aventureiros. Os irmãos eram ambos maravilhosos,

fascinantes e poderosos, mas beijar Kishan era perigoso.

Perigoso não como com os homens-sereia; com esses simplesmente

parecia haver alguma coisa errada. Se eu fosse honesta comigo mesma,

não acharia ruim beijar Kishan. Na verdade, era bom, como uma versão

mais selvagem e ardente de Ren. Com Kishan, era como se eu houvesse

literalmente pegado um tigre pelo rabo e ele estivesse pronto a me

atacar e me arrastar. Não era uma idéia de todo desagradável e essa era a

parte que me perturbava.

É claro, estou separada há muito tempo do meu namorado, eu tentava

racionalizar meus sentimentos. Kishan é a segunda melhor opção e eu

só estou com saudade do meu tigre. Tenho certeza de que é só isso. Deixei que esses pensamentos me confortassem enquanto

caminhávamos. Como Ren, Kishan tinha um talento para usar seu charme para se livrar

dos problemas mais difíceis. Em pouco tempo ele me fez esquecer

completamente que estava chateada com ele.

Quando o fim da tarde se transformou em crepúsculo, decidimos

montar acampamento para passar a noite. Eu estava exausta.

- Você fica com o saco de dormir, Kells.

- Não precisa. Veja isto.

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Tirei o Lenço do pescoço e disse:

- Uma tenda grande, um saco de dormir, dois travesseiros macios e uma

muda de roupa para cada um de nós, por favor.

O Lenço se deslocou e se moveu; os fios começaram a tecer. Eles se

trançaram, criando cordas grossas, que disparavam em várias direções e

se enrascavam em galhos fortes de árvores próximas. Depois que as

cordas estavam amarradas com firmeza, o Lenço criou um teto, paredes

e um piso para a tenda. Ela era suspensa por duas linhas entrelaçadas na

árvore acima. Em vez de fechadas por um zíper, as abas da abertura

eram amarradas com um cordão.

Enfiei a cabeça lá dentro.

- Venha, Kishan.

Ele me seguiu e entrou na espaçosa tenda. Ficamos observando

enquanto os fios coloridos continuavam a tecer um espesso saco de

dormir e dois travesseiros macios. Quando terminou, eu tinha um saco

de dormir verde e dois travesseiros brancos. Uma muda de roupa para

cada um descansava sobre eles. Kishan estendeu o antigo saco de

dormir ao meu lado enquanto eu afofava um dos travesseiros.

- Como ele escolhe a cor? - perguntou.

- Acho que depende do humor do Lenço ou talvez do que você pede. A

tenda, o saco de dormir e os travesseiros, todos parecem ter o aspecto

que deveriam ter. O Lenço muda de cor por conta própria. Percebi isso

enquanto caminhava.

Kishan saiu para trocar de roupa na selva enquanto eu vestia peças

limpas e pendurava minhas roupas de fada num galho do lado de fora.

Quando ele voltou, eu estava bem aconchegada em meu saco de dormir

e tinha virado de lado para evitar conversas.

Ele entrou em seu saco de dormir e pude sentir seus olhos dourados

fixos em minhas costas por vários e tensos minutos.

Por fim, ele grunhiu e disse:

- Bem... boa noite, Kells.

- Boa noite, Kishan.

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Eu estava exausta e caí no sono imediatamente, deslizando direto para

um novo sonho.

Sonhei com Ren e Lokesh, a mesmíssima cena de minha última visão.

Ren estava sentado no canto ao fundo de uma jaula num quarto escuro.

Seu cabelo estava imundo e emaranhado e eu quase não percebi que era

ele até que abrisse os olhos e me fitasse. Eu reconheceria aqueles olhos

azuis em qualquer lugar.

Seus olhos tinham um brilho constante no escuro, como safiras

reluzentes. Aproximei-me dele furtivamente, guiada por eles, fitando-

os como um marinheiro desesperado olha o farol numa noite escura de

tempestade.

Quando alcancei a gaiola, Ren piscou, como se me visse pela primeira

vez. Sua voz soava áspera, como a de um homem com sede.

- Kells?

Fechei os dedos em torno das grades, desejando ser forte o bastante para

quebrá-las.

- Sim, sou eu.

- Não consigo vê-la.

Por um momento de pavor, temi que Lokesh o houvesse cegado.

Ajoelhei-me diante da j aula.

- Assim está melhor?

- Está.

Ren se arrastou pelo chão, aproximando-se mais, e envolveu minhas

mãos com as dele. As nuvens se abriram e o luar tremeluziu através de

uma minúscula janela, lançando seu brilho suave no rosto dele.

Arquejei, chocada, e as lágrimas encheram meus olhos.

- Ah, Ren! O que foi que ele fez com você?

O rosto de Ren estava inchado e roxo. Sangue escorria pelos cantos da

boca e um corte profundo ia de sua testa até a bochecha. Estendi um

dedo e toquei sua têmpora delicadamente.

- Ele não conseguiu tirar a informação que queria de você e resolveu

descontar a raiva em mim.

- Eu... eu... sinto... tanto.

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Minhas lágrimas molharam sua mão.

- Priyatama, não chore. Ele pressionou a mão no meu rosto. Virei e beijei-lhe a palma.

- Não posso suportar vê-lo assim. Estamos vindo buscar você. Por favor,

por favor, agüente um pouco mais.

Ele baixou os olhos, como se sentisse vergonha.

- Não sei se consigo.

- Não diga isso! Nunca diga isso! Eu estou indo. Sei o que fazer. Sei como

resgatá-lo. Você precisa permanecer vivo. Não importa como! Ren, me

prometa!

Ele suspirou dolorosamente.

- Ele está perto demais, Kells. Cada segundo que Lokesh me tem aqui

significa que você está em perigo. Você se tornou uma obsessão para

ele. A todo momento ele tenta extrair informações suas de minha

mente. Ele não vai parar. Não vai desistir. Ele... ele vai me subjugar.

Logo. Se fosse apenas a tortura física, acho que eu poderia agüentar, mas

ele está usando magia negra. Está me enganando. Causando alucinações.

E eu estou tão... cansado. - Então conte a ele. - Minha voz tremeu. - Conte a ele o que ele quer

saber e talvez ele o deixe em paz.

- Nunca contarei a ele, prema. Eu solucei.

- Ren. Eu não posso perder você.

- Eu estou sempre com você. Meus pensamentos estão em você. - Ele

pegou um cacho do meu cabelo e o levou aos lábios. Então inspirou

profundamente. - O tempo todo. - Não desista! Não quando estamos tão perto!

Seus olhos se desviaram.

- Tem uma opção que eu poderia considerar.

- Qual é? Que opção?

- Durga - ele fez uma pausa - ofereceu proteção, mas seu preço é alto

demais. Não vale a pena.

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- Sua vida vale qualquer coisa! Aceite! Não pense duas vezes. Você pode

confiar em Durga. Faça o que ela pede! Qualquer que seja o preço, não

importa, desde que você sobreviva.

- Mas, Kelsey...

- Shh. - Pressionei a ponta do dedo delicadamente sobre seus lábios

inchados. - Faça o que for preciso para sobreviver, está bem?

Ele deixou escapar um suspiro entrecortado e me olhou com olhos

brilhantes e desesperados.

- Você precisa ir. Ele pode voltar a qualquer momento.

- Não quero deixar você.

- E não quero que você vá. Mas é preciso.

Resignada, virei-me para partir.

- Espere, Kelsey. Antes de ir... você me dá um beijo?

Enfiei as mãos entre as grades e toquei levemente seu rosto.

- Não quero lhe causar mais dor.

- Não tem importância. Por favor. Me beije antes de ir.

Ele se ajoelhou à minha frente, arquejando ao pôr o peso no joelho, e

então passou as mãos trêmulas pelas grades e me puxou para mais perto.

Suas mãos deslizaram e tomaram o meu rosto entre elas e nossos lábios

se encontraram entre as grades de sua jaula. Seu beijo foi quente, suave

e breve demais. Senti o gosto das minhas lágrimas. Quando se afastou,

ele me dirigiu um sorriso doce e torto entre os lábios partidos.

Encolheu-se de dor ao recolher as mãos. Foi então que percebi que

vários dedos seus estavam quebrados.

Recomecei a chorar. Ren enxugou uma lágrima do meu rosto com o

polegar e recitou um poema de Richard Lovelace.

Quando o Amor com asas livres Paira dentro de meus portões, E minha divina Altea vem Para sussurrar junto às grades; Quando me vejo enroscado em seu cabelo E agrilhoado ao seu olho,

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As aves que brincam no ar Não conhecem tamanha liberdade. Muros de pedra não constituem prisão, Tampouco barras de ferro uma jaula; Mentes puras e quietas tomam isso Como a habitação do eremita; Se tenho liberdade em meu amor E em minha alma sou livre, Só os anjos, que planam acima, Desfrutam da mesma liberdade. Ele encostou a testa na grade.

- A única coisa que eu não poderia suportar é se ele machucasse você. Isso eu não vou permitir. Não vou deixar que ele a encontre, Kelsey.

Aconteça o que acontecer.

- O que você quer dizer?

Ele sorriu.

- Nada, minha querida. Não se preocupe. - Ele recuou para apoiar o

corpo alquebrado na parede da jaula. - É hora de ir, iadala. Levantei-me para ir, mas parei à porta quando ele chamou:

- Kelsey?

Virei-me.

- Não importa o que aconteça, por favor lembre-se de que a amo, hridaya patni. Prometa que irá se lembrar.

- Eu vou me lembrar. Prometo. Mujhe tumse pyarhai, Ren.

- Agora vá.

Ele sorriu debilmente e então seus olhos mudaram. O azul se esvaiu e

eles se tornaram cinzentos, baços e sem vida. Talvez fosse um truque da

luz, mas chegava a quase parecer que Ren havia morrido. Dei um passo

hesitante para trás.

-Ren?

Sua voz suave replicou:

- Por favor, vá, Kelsey. Vai ficar tudo bem.

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-Ren?

- Adeus, meu amor. - Ren!

Alguma coisa estava acontecendo e não era nada bom. Senti algo se

partir. Arquejei em busca de ar. Alguma coisa estava muito errada. A

conexão que eu sentia entre nós era quase tangível, como uma corrente

de metal. Quanto mais próximos ficávamos, mais forte era a conexão.

Ela me estabilizava, me conectava a ele como um fio de telefone, mas

algo havia danificado o cabo.

Senti a ruptura e pontas afiadas e serrilhadas perfuravam e rasgavam

violentamente meu coração, como facas quentes atravessando a

manteiga. Gritei e me debati. Pela primeira vez desde que pusera os

olhos no meu tigre branco, eu estava sozinha.

Kishan me sacudiu, me arrancando da névoa do sonho.

- Kelsey! Kelsey! Acorde!

Abri os olhos e comecei a chorar lágrimas novas, que se derramavam no

meu rosto e seguiam as trilhas deixadas pelo sonho. Abracei Kishan e

solucei. Ele me colocou no colo, me apertando, e me acariciou as costas

enquanto eu chorava inconsolavelmente por seu irmão.

Devo ter dormido em algum momento, pois acordei enrolada em meu

saco de dormir com os braços de Kishan ao meu redor. Minha mão

fechada pressionava meu rosto e meus olhos estavam fechados de tão

inchados.

- Kelsey? - sussurrou Kishan.

- Estou acordada - murmurei.

- Você está bem?

Minha mão seguiu involuntariamente para o buraco oco e dolorido que

eu sentia no peito. Uma lágrima escorreu do canto do meu olho.

Enterrei a cabeça no travesseiro e comecei a respirar fundo para me

acalmar.

- Não - eu disse sem forças. - Ele... se foi. Alguma coisa aconteceu.

Acho... acho que Ren pode estar morto. - O que aconteceu? Por que acha isso?

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Expliquei o sonho a ele e tentei descrever minha conexão rompida com

Ren.

- Kelsey, é possível que tudo isso seja apenas um sonho, um sonho muito

perturbador, mas nada mais que um sonho. Não é raro ter sonhos

violentos quando se passa por uma experiência traumática, como a luta

que tivemos com os pássaros.

- Talvez. Mas eu não sonhei com os pássaros.

- Mesmo assim, não podemos ter certeza. Lembre-se de que Durga disse

que o protegeria.

- Eu me lembro. Mas foi tão real. - Não tem como ter certeza.

- Talvez tenha.

- O que você está pensando?

- Acho que devíamos fazer outra visita aos silvanos. Talvez possamos

dormir no Bosque dos Sonhos e eu consiga enxergar o futuro. De

repente eu vejo se podemos salvá-lo ou não.

- Acha que isso vai funcionar?

- Os silvanos disseram que, se eles têm um problema grave para

resolver, vão até lá em busca de respostas. Por favor, Kishan. Vamos

tentar.

Kishan enxugou uma lágrima do meu rosto com o polegar.

- Está bem, Kells. Vamos procurar Fauno.

- Kishan, mais uma coisa. O que significa hridaya patni?

- Onde você ouviu isso? - perguntou com delicadeza.

- No sonho. Ren me disse isso antes de nos separarmos.

Kishan se levantou e saiu da tenda. Eu o segui e o encontrei fitando a

distância. Seu braço estava apoiado num galho de árvore. Sem se virar,

ele disse:

- É a forma carinhosa como nosso pai chamava nossa mãe. Significa...

"esposa do meu coração".

Foi um longo dia de caminhada para chegar à aldeia dos silvanos. Eles

não cabiam em si de alegria por nos ver e quiseram dar uma festa. Eu

não tinha vontade de celebrar. Quando perguntei se podíamos dormir

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no Bosque dos Sonhos novamente, Fauno me assegurou de que tudo o

que possuíam estava à minha disposição. As ninfas das árvores me

serviram um jantar leve e me deixaram sozinha num de seus chalés até

o cair da noite. Kishan percebeu que eu queria ficar sozinha e comeu

com os silvanos.

Quando a noite caiu, ele voltou com um visitante.

- Quero que você veja quem está aqui, Kells.

Ele segurava a mão de um garotinho de cabelos prateados dando os

primeiros passos.

- Quem é este?

- Você pode dizer seu nome à moça bonita?

- Talque - disse o menino.

- Seu nome é Talque? - perguntei.

O rosto meigo do menininho sorria para mim.

- Na verdade, o nome dele é Tarak.

- Tarak? - arquejei. - É impossível! Ele parece já ter quase 2 anos!

Kishan deu de ombros.

- Ao que parece, os silvanos amadurecem rapidamente.

- Incrível! Tarak, venha aqui e me deixe ver você.

Estendi os braços e Kishan o encorajou a ir em frente. Tarak deu alguns

passinhos desajeitados em minha direção antes de cair no meu colo.

- Você agora é um menino tão grande! E tão bonito também! Quer

brincar? Veja isto.

Peguei o Lenço em meu pescoço e ficamos olhando o caleidoscópio de

cores cambiantes. Quando o menininho o tocou, a impressão de uma

minúscula mão rosa apareceu no tecido antes de desaparecer num

turbilhão de amarelo.

- Bichinhos de pelúcia, por favor.

O tecido deslocou-se, dividiu-se e se transformou em bichinhos de

pelúcia de todo tipo. Kishan se sentou ao meu lado e brincamos com

Tarak e a coleção de bichos de pelúcia. A dor aguda em meu coração

diminuiu enquanto eu ria com a pequena criança silvana.

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Quando Kishan apanhou o tigre de pelúcia e ensinou a Tarak a forma

correta de grunhir, ele ergueu os olhos para mim. Nossos olhares se

encontraram e ele piscou. Agarrei sua mão, apertei-a e lhe disse

movendo os lábios sem emitir som: "Obrigada."

Kishan beijou meus dedos, sorriu e disse:

- Tia Kelsey precisa dormir um pouco. É hora de levar você de volta

para sua família, rapazinho.

Ele pegou Tarak no colo, colocou-o nos ombros e disse baixinho:

- Volto já.

Reuni todos os bichinhos e disse ao lenço que não precisávamos mais

deles. Fios começaram a girar no ar e se entreteceram, voltando à forma

anterior. No momento em que acabavam, Kishan retornou.

Ele se agachou, segurou-me pelo queixo e ergueu meu rosto para exa-

miná-lo.

- Kelsey, você está exausta. Os silvanos prepararam um banho para você.

Tome um banho de imersão antes de dormir. Encontro você no Bosque,

está bem?

Assenti e deixei as três mulheres silvanas me levarem até a área de

banho. Dessa vez elas estavam quietas, deixando-me com meus

pensamentos enquanto delicadamente ensaboavam meu cabelo e

esfregavam uma loção perfumada em minha pele. Elas me vestiram com

um roupão de seda antes que uma fada de asas cor de laranja me guiasse

até o Bosque dos Sonhos. Kishan já estava lá e havia tomado a liberdade

de criar uma rede com o Lenço Divino.

- Não está interessado em dividir a suíte de lua de mel novamente, pelo

que estou vendo - brinquei.

Ele estava de costas para mim enquanto testava um nó da rede.

- Só pensei que seria melhor... - Ele deu meia-volta e me lançou um

olhar poderoso, ardente. Seus olhos dourados se dilataram e ele se

apressou em se ocupar com os nós de novo. Limpando a garganta, disse:

- Decididamente, é melhor você dormir sozinha desta vez, Kells. Ficarei

confortável aqui.

Estremeci e tentei fingir que o olhar de Kishan não havia me afetado.

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- Como quiser.

Kishan se acomodou na rede, deitado de costas, com as mãos atrás da

cabeça. Ele me observava ajeitando os lençóis.

- Você está muito... linda - eu o ouvi dizer baixinho.

Voltei-me para ele, ergui um braço e deslizei a mão pelo roupão de seda

azul com mangas compridas. Eu sabia que meu cabelo pendia em ondas

flexíveis e que minha pele pálida brilhava depois da vigorosa esfregação

e das loções borbulhantes das silvanas. Talvez eu estivesse bonita, sim,

mas me sentia oca por dentro. Eu estava esgotada até o âmago.

- Obrigada - disse mecanicamente enquanto subia na cama.

Fiquei acordada olhando as estrelas durante muito tempo. Pude sentir

os olhos de Kishan em mim quando enfiava a mão sob o rosto e

finalmente mergulhava no sono.

Não sonhei com nada. Não com Ren, nem comigo mesma, tampouco

com Kishan ou com o Sr. Kadam... Sonhei com o vazio. Uma grande

escuridão preenchia a minha mente, um vácuo. Um espaço sem formas,

sem profundidade, sem abundância e sem nenhuma felicidade. Acordei

antes de Kishan. Sem Ren, minha vida não tinha nenhum significado.

Era oca e inútil. Era isso que o Bosque dos Sonhos estava tentando me

dizer. Eu havia perdido coisas de mais.

Quando meus pais morreram, foi como se duas árvores imponentes

houvessem sido derrubadas. Ren tinha entrado em minha vida e

preenchido a paisagem vazia do meu coração, fazendo-o cicatrizar. A

terra seca fora substituída por grama macia, árvores de sândalo

maravilhosas, trepadeiras de jasmim e rosas. Bem no centro de tudo

havia uma fonte de água cercada por lírios-tigres, um lindo lugar onde

eu podia me sentar e sentir afeto, amor e paz. Agora a fonte estava

estilhaçada, os lírios arrancados, as árvores derrubadas e simplesmente

não restava solo para cultivar mais nada. Eu estava estéril, desolada -

um deserto incapaz de sustentar a vida.

Uma brisa suave balançava meu cabelo e soprava alguns fios no meu

rosto. Eu não me dei ao trabalho de puxá-los para o lado. Não ouvi

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Kishan se levantar. Só senti a ponta de seus dedos roçar em meu rosto

quando ele ergueu os fios e os prendeu atrás da orelha.

- Kelsey?

Não respondi. Meus olhos fitavam o céu do amanhecer que ia se

iluminando.

- Kells?

Ele deslizou as mãos sob o meu corpo e me levantou. Então se sentou na

cama e me aninhou junto ao seu peito.

- Kelsey, por favor, diga alguma coisa. Fale comigo. Não suporto vê-la

desse jeito.

Ele me embalou por um tempo. Eu podia ouvi-lo e lhe responder em

minha mente, mas me sentia desconectada do ambiente, do meu corpo.

Senti uma gota de chuva no meu rosto e o susto me acordou, me trouxe

à superfície. Ergui a mão e enxuguei a gota.

- Está chovendo? Não pensei que chovesse aqui.

Ele não respondeu. Outra gota caiu em minha testa.

- Kishan?

Olhei para ele e percebi que não eram gotas de chuva, mas lágrimas.

Seus olhos dourados estavam cheios de lágrimas.

Perplexa, levei a mão ao seu rosto.

- Kishan? Por que você está chorando?

Ele sorriu debilmente.

- Pensei que a tivesse perdido, Kells.

-Ah.

- O que você viu que a levou para tão longe de mim? Você viu Ren?

- Não. Não vi nada. Meus sonhos estavam cheios de uma escuridão fria.

Acho que isso significa que ele está morto.

- Não. Eu não acredito nisso, Kells. Eu vi Ren em meus sonhos.

A vitalidade retornou aos meus membros.

- Você o viu? Tem certeza? - Sim. Estávamos num barco, discutindo.

- Poderia ser um sonho do passado?

- Não. Estávamos num iate moderno. No nosso iate.

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Sentei-me mais ereta.

- Você tem certeza de que o sonho se passava no futuro?

- Tenho.

Eu o abracei e beijei-lhe as bochechas e a testa, alternando os beijos

com "Obrigada! Obrigada! Obrigada!".

- Espere, Kells. A questão é que, no sonho, estávamos discutindo sobre...

Eu ri, agarrei sua camisa e o sacudi levemente, enlouquecida e tonta de

alívio. Ele estava vivo! - Não quero nem saber sobre o que estavam discutindo. Vocês dois sem-

pre discutem.

- Mas acho que devia contar a você...

Saltei de seu colo e comecei a me mexer rapidamente, recolhendo

nossas coisas.

- Conte mais tarde. Agora não temos tempo. Vamos embora. O que

estamos esperando? Um tigre precisa ser resgatado. Venha!

Eu corria de um lado para outro com uma energia insana. Uma

determinação desesperada e febril tomava conta da minha mente. Cada

minuto que nos demorássemos significava mais dor para aquele que eu

amava. O sonho com Ren havia sido real. Eu não teria elaborado

palavras novas em híndi por minha própria conta, principalmente um

termo carinhoso que seu pai usava

com sua mãe. Eu estivera com ele de alguma forma. Eu o havia tocado,

beijado. Alguma coisa havia partido nossa conexão, mas ele ainda estava

vivo! Poderia ser salvo. Na verdade, ele seria salvo! Kishan tinha visto o

futuro!

Os silvanos prepararam um café da manhã suntuoso, mas nós pegamos

alguns itens para a viagem, dissemos adeus, apressados, e seguimos de

volta para o portão do espírito. Levamos dois dias de caminhada rápida

para chegar ao portão, seguindo as instruções dadas pelos silvanos.

Kishan falou muito pouco durante a viagem e eu estava profundamente

mergulhada em pensamentos sobre como encontrar Ren para tentar

descobrir por quê.

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Depois de chegar ao portão, pedi ao Lenço Divino que criasse novos

trajes de inverno para nós e, após trocarmos de roupa, evoquei meu

poder de raio e coloquei a mão na depressão entalhada na lateral do

portão. Minha pele brilhou, tornando-se translúcida e rosada enquanto

o portão tremeluzia e se abria. Olhamos um para o outro e de repente

eu me senti triste - como se estivéssemos nos despedindo. Kishan tirou

a luva e pousou a palma quente em meu rosto, estudando-o, sério. Eu

sorri e o abracei.

Eu tivera a intenção de ser breve, mas ele me envolveu com os braços e

me deu um abraço apertado. Desvencilhei-me, desajeitada, tornei a

colocar a luva e transpus o portão, passando para um dia ensolarado no

monte Everest. Minhas botas de inverno esmagaram ruidosamente a

neve branca e cintilante no momento em que Kishan passava pelo

portão e se transformava no tigre negro.

23

A caminho de casa

Depois de atravessarmos o portão, voltei-me para observar a terra de

Shangri-lá desaparecer num redemoinho de cores. A luz vermelha que

pulsava no entalhe da mão desapareceu e o portão do espírito retomou

sua aparência anterior - dois postes altos de madeira, com longos

cordões de bandeiras de oração soprando na brisa.

Pisquei várias vezes e esfreguei os olhos levemente. Alguma coisa

estava grudada nos meus cílios. Com cuidado, soltei uma película verde

transparente, que se desprendeu de cada olho como um par de lentes de

contato.

Kishan parecia estar preso na forma de tigre e provavelmente ficaria

assim por algum tempo, como acontecera com Ren depois de

Kishkindha. Ele piscou os olhos repetidamente para mim e pude ver a

película verde se soltando de um olho.

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- Fique parado. Tenho que tirar isso ou vai incomodá-lo por todo o

caminho.

Tirei a película de um olho e em seguida do outro. Levei muito tempo,

mas fiquei orgulhosa por ter conseguido. O Mestre do Oceano dissera

que, ao deixarmos Shangri-lá, as escamas se soltariam de nossos olhos e

poderíamos ver o mundo real outra vez. Eu não esperava que suas

palavras fossem tão literais assim.

Ajustei a mochila nos ombros e comecei a íngreme descida até o

acampamento do Sr. Kadam. O sol brilhava, porém ainda estava frio. Eu

sentia uma energia abrasadora me impelindo adiante. Não queria parar

para descansar, embora Kishan claramente quisesse que eu parasse.

Encorajei-o a prosseguir e só paramos quando já estava escuro demais

para enxergarmos ao nosso redor.

Desde que Hugin me ajudara a desemperrar meus pensamentos, minha

mente havia se tornado límpida, clara. Eu elaborei um plano. Sabia

como salvar Ren. A única coisa que eu não sabia era onde encontrá-lo.

Esperava que o Sr. Kadam descobrisse algo sobre a cultura ou a

localização do povo que tínhamos observado na visão.

Os traços físicos que eu percebera talvez não fossem suficientes, mas era

tudo que tínhamos. Se alguém podia saber por onde começar a

procurar, essa pessoa era o Sr. Kadam. Eu também esperava que o

tempo houvesse parado, ou pelo menos desacelerado, enquanto

estávamos em Shangri-lá. Tinha certeza de que Ren seria torturado

durante cada momento que estivesse nas mãos de Lokesh. Era

insuportável pensar que ele devia estar sentindo dor, ainda mais

durante os muitos dias que tínhamos passado no mundo além do portão

do espírito.

Naquela noite fiquei deitada acordada em nossa tenda por muito tempo,

pensando em minha estratégia e analisando-a do maior número de

ângulos que me era possível. Eu não permitiria que Lokesh levasse

nenhuma outra pessoa. Não haveria nenhuma troca por Ren. Iríamos

salvá-lo e todos nós voltaríamos para casa.

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Na manhã seguinte Kishan acordou e assumiu a forma humana. Eu

rapidamente providenciei-lhe trajes próprios para a neve e ele se vestiu

na tenda enquanto eu arrumava o café da manhã. Ele logo se juntou a

mim vestindo suas roupas novas: uma camiseta de malha cor de

ferrugem que se ajustava ao seu corpo sob o agasalho impermeável

preto, calça preta com elástico nos tornozelos, luvas, meias grossas de lã

e botas para neve. Avaliei sua aparência e me dei os parabéns pelo bom

trabalho.

Descobrimos que obter o Lenço dera a Kishan outras seis horas livre de

seu eu tigre. Tínhamos agora cumprido metade de nossa missão. Os

tigres podiam assumir a forma humana durante 12 horas por dia.

Embora eu estivesse com pressa, Kishan me lembrou de que levaríamos

pelo menos dois dias inteiros para descer a montanha. Quando

montamos acampamento na segunda noite, decidi que era hora de

conversar com ele sobre meu plano de resgate e mostrar-lhe o que mais

o Lenço podia fazer.

Depois de nos acomodarmos na tenda convenientemente feita pelo

Lenço, abri o zíper do saco de dormir e o estendi no chão. Encorajei-o a

se sentar diante de mim, antes de pegar o Lenço.

- É o seguinte: o Lenço pode fazer várias coisas. Ele pode se tornar ou

criar qualquer coisa feita de tecido ou de fibras naturais. Ele não precisa

reabsorver o que cria. Até pode fazer isso, mas também pode deixar o

objeto para trás e, nesse caso, a criação perde a magia do tecido. O

Lenço também pode ser modelado para recolher os ventos como na

história da sacola do deus japonês Fujin. A terceira coisa para que ele

pode ser usado é... para mudar a aparência.

Mudar a aparência? Como?

Você já viu um mágico tirar um coelho da cartola ou transformar

um pássaro em uma pena?

Alguns mágicos visitavam a corte de vez em quando. Um deles

transformou um camundongo em um cachorro.

Isso! É parecido. Trata-se de uma ilusão. Um truque feito com luz e

espelhos.

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Como isso funciona?

Lembra que a Divina Tecelã disse que havia poder na tecelagem?

Ela não só cria as roupas da pessoa, como também pode fazê-lo se

parecer com ela. O segredo é: é preciso ser específico e capturar em sua

mente exatamente com quem você quer se parecer. Vou experimentar.

Observe e me diga se funciona.

Disfarce, por favor... Nilima - eu disse.

O Lenço cresceu, tornando-se um longo pedaço de tecido negro

cintilante com cores espiralando rapidamente por toda a peça. Ele

resplandecia, como se enfeitado com lantejoulas que vinham

brevemente à superfície e depois desapareciam. A luz se refletia e se

movia pela tenda como milhares de prismas disparando arco-íris em

todas as direções.

Enrolei o tecido em torno do meu corpo, cobrindo-me toda, inclusive

cabelo e rosto. Minha pele ficou quente e começou a formigar. As cores

em turbilhão eram iridescentes e iluminavam o pequeno espaço no qual

eu me sentava envolta no manto quente em que o Lenço havia se

transformado. Era como assistir ao meu show de laser particular.

Quando o brilho diminuiu, me desenrolei e olhei para Kishan.

E então?

Ele estava boquiaberto, em choque.

Kells? Sim.

Você... você está até falando como Nilima. Está vestida como ela.

Olhei para baixo e descobri que estava usando um vestido de seda azul-

-claro que ia até os joelhos. Minhas pernas estavam nuas.

Acabei de perceber. E estou congelando!

Kishan pôs seu casaco em mim. Então pegou minha mão e a examinou.

Sua pele se parece com a dela. Suas unhas estão compridas e

pintadas. Inacreditável!

Estremeci.

Ok. Demonstração feita. Estou congelando de verdade. - Tornei a

me enrolar no tecido e disse: - De volta a mim mesma, por favor. - As

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cores começaram a espiralar novamente e, após um longo minuto, me

desenrolei do tecido e voltei à minha aparência. - Agora experimente

você, Kishan. Não temos espelho. Quero ver quanto isso é fiel.

Certo. - Ele pegou o lenço das minhas mãos e disse: - Disfarce... Sr.

Kadam.

Ele se enrolou todo no tecido. Quando o retirou um minuto depois, eu

me vi sentada diante do Sr. Kadam. Ele estava exatamente como eu o

vira da última vez. Estiquei o dedo e toquei em sua barba aparada.

Uau! Você está igualzinho a ele! - Apalpei a bainha da calça. -

Parece de verdade. E uma réplica perfeita!

Ele tocou o próprio rosto e passou a mão no cabelo bem rente.

Espere um instante! Você está com o amuleto dele! Parece real?

Ele tocou o amuleto e apalpou a corrente.

Parece real, mas não é.

Como assim?

Usei um amuleto a maior parte da minha vida e, quando o dei a

você, podia sentir sua ausência. Este aqui não me parece real. Não

parece ter poder. Também é mais leve e a superfície é ligeiramente

diferente.

Humm, interessante. Não sei se posso sentir o poder do meu.

Estendi a mão e toquei o amuleto no pescoço dele e então comparei

com o meu.

Acho que o que você está usando é feito de algum tipo de tecido.

E mesmo? - Ele o esfregou entre os dedos. - Tem razão. A superfície

é ligeiramente diferente. Você não consegue mesmo sentir o poder do

amuleto?

Não.

Bem, se o usasse por tantos anos quanto eu, sentiria.

Talvez seja algo que somente vocês, tigres, possam sentir, por

estarem tão intimamente associados a ele.

Talvez. Teremos que perguntar sobre isso ao Sr. Kadam.

Kishan voltou à sua aparência.

Então, qual é exatamente o seu plano, Kells?

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Ainda não elaborei todos os detalhes, mas pensei que talvez

pudéssemos personificar os guardas de Lokesh e entrar onde quer que

estejam mantendo Ren.

Você não pretende fazer uma troca, então? Um amuleto em troca de

Ren?

Não se pudermos evitar. Gostaria que este fosse o último recurso. O

grande problema do plano é que não sei onde Ren está sendo mantido

prisioneiro. Eu lhe contei que vi Ren em minha visão, mas também vi

uma pessoa que tenho esperanças de que o Sr. Kadam possa identificar.

Identificar como?

O cabelo e as tatuagens dele eram singulares. Nunca vi nada parecido.

É um tiro no escuro, Kells. Identificar de onde é o criado não

significa necessariamente saber se é lá que Lokesh está mantendo Ren.

Eu sei, mas é tudo que temos para prosseguir.

Muito bem, então temos um como. Só precisamos de um onde.

Exato.

No dia seguinte finalmente ultrapassamos o limite das neves e

continuamos a descer em ritmo acelerado. Kishan havia dormido como

tigre, então caminhou comigo como homem durante quase todo o dia, o

que nos deu a oportunidade de conversar. Ele contou que se sentia

sufocado sendo forçado a voltar à forma de tigre. Como Ren, agora que

sentira o gosto de ser humano, ansiava por isso desesperadamente.

Tentei fazê-lo ver que 12 horas eram muito melhores que 6. Agora ele

podia dormir como tigre e passar a maior parte de suas horas acordado

como homem, mas ainda assim ele se queixava. Durante um intervalo

na conversa, eu disse:

Kishan?

Ele resmungou ao escorregar um pouco morro abaixo no cascalho solto.

- Diga.

Quero que você me conte tudo o que sabe sobre Lokesh. Onde você

o conheceu? Como ele é? Me fale sobre a família, a mulher, a história

dele. Tudo.

Está bem. Para começar, ele não veio de uma linhagem real.

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Como assim? Pensei que fosse rei.

Ele era, mas não começou assim. Quando o conheci, era um

conselheiro real. Ele havia ascendido rapidamente a um posto de

autoridade. Quando o rei morreu de maneira inesperada, sem deixar

descendentes, Lokesh assumiu a posição de rei.

Provavelmente tem uma história muito interessante aí. Eu adoraria

saber como aconteceu sua ascensão ao poder. Todos simplesmente o

aceitaram como o novo rei? Houve algum protesto?

Se houve, ele logo reprimiu quaisquer movimentos de insatisfação e

se pôs a formar um poderoso exército. Seu reino havia sido sempre

muito pacífico e nunca tínhamos enfrentado problemas com eles até

Lokesh assumir o poder. Mesmo então ele era sempre muito cauteloso

com minha família. Pequenos conflitos irrompiam entre nossos

exércitos, dos quais ele sempre afirmava não ter conhecimento. Agora

achamos que ele estava reunindo informações, pois os conflitos sempre

aconteciam em áreas militares estratégicas. Ele os descartava como mal-

entendidos sem importância e nos assegurava de que iria repreender os

sobreviventes.

Sobreviventes? Como assim?

Os conflitos sempre resultavam na morte de soldados seus. Ele os

usava como ferramentas descartáveis. Exigia-lhes lealdade e eles a

davam... até mesmo sacrificando suas vidas.

E ninguém da sua família jamais suspeitou de nada?

Se alguém desconfiava dele, era o Sr. Kadam. Ele era o chefe dos

militares na época e achava que havia mais coisas ali do que soldados confundindo suas ordens. Ninguém mais, porém, suspeitava de Lokesh.

Ele era muito encantador quando nos visitava. Sempre assumia um

comportamento humilde quando estava perto de meu pai, mas o tempo

todo estava friamente planejando nossa derrocada.

Quais são as fraquezas de Lokesh?

Acho que ele conhece mais as minhas fraquezas do que eu as dele.

Imagino que maltratasse Yesubai. Segundo o que nos contou, sua

mulher havia morrido muito antes de o conhecermos. Yesubai nunca

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falava da mãe e nunca me ocorreu perguntar. Até onde sei, não lhe

resta nenhum parente, nenhuma descendência, a menos que tenha se

casado de novo depois. Ele almeja o poder. Isso pode ser uma fraqueza.

Ele almeja dinheiro? Poderíamos comprar a liberdade de Ren?

Não. Ele usa dinheiro apenas como meio de obter mais poder. Não dá

a mínima para jóias ou ouro. Ele pode até dizer o contrário, mas eu não

acreditaria. Ele é um homem ambicioso, Kelsey.

Sabemos alguma coisa sobre as outras partes do amuleto? Como, por

exemplo, onde ele as conseguiu?

A única coisa que sei sobre o amuleto é o que meus pais nos

contaram. Eles disseram que as partes do amuleto eram usadas por

cinco chefes militares e que foram transmitidas como herança ao longo

dos séculos. A família de minha mãe tinha uma parte e a de meu pai

tinha outra. Foi assim que Ren e eu ficamos cada um com uma parte. A

que você usa era da mamãe e Kadam usa a do papai. Não tenho a menor

idéia de como Lokesh adquiriu as outras três partes. Eu nunca ouvira

falar de outras partes do amuleto até Lokesh mencioná-las. Ren e eu

usávamos nossas partes sob a roupa como peças de herança de família

cuidadosamente protegidas.

Talvez Lokesh tenha encontrado uma lista das famílias a que elas

foram confiadas... - ponderei.

Talvez. Mas nunca ouvi falar de tal lista.

Seus pais sabiam que os amuletos eram poderosos?

Não. Não até sermos transformados em tigres.

Vocês não tiveram um antepassado que viveu muito tempo, como o

Sr. Kadam?

Não. Nossa família era prolífica de ambos os lados. Havia sempre um

rei jovem a quem passar o amuleto e era uma tradição nossa fazer isso

quando o garoto completava 18 anos. Nossos antepassados tiveram vidas

mais longas que o normal, mas a expectativa de vida então era bem mais

curta que hoje.

Infelizmente nenhuma dessas informações nos dá uma pista de

alguma das fraquezas de Lokesh.

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Talvez dê, sim.

Como? - perguntei.

Ele ambiciona o poder acima de todas as coisas. Como está

perseguindo as partes do amuleto a qualquer custo, então essa é sua

fraqueza.

O que você está querendo dizer?

Acabamos de ver o Lenço criar uma réplica do amuleto quando

assumi a forma do Sr. Kadam. Se ele pegar a réplica, achará que venceu.

Mas não sabemos se a réplica pode ser tirada da pessoa ou não.

Mesmo que possa, não sabemos quanto tempo dura.

Kishan deu de ombros e disse:

Testaremos quando voltarmos.

É uma boa idéia.

Tropecei numa pedra e Kishan me segurou. Ele me sustentou apenas

por um instante a mais que o necessário, sorriu e tirou o cabelo do meu

rosto.

Estamos quase lá. Podemos continuar ou você precisa descansar? -

perguntou com desvelo.

Posso continuar.

Ele me soltou e tirou a mochila dos meus ombros.

Kishan, eu queria agradecer por tudo o que você fez em Shangri-lá.

Eu não teria conseguido sem você.

Ele jogou a mochila num ombro e parou, me observando por um

minuto.

Você não achou que eu a deixaria ir sozinha, achou?

Não, mas me sinto grata por ter tido você comigo.

Gratidão é tudo o que vou ganhar, não é?

O que mais você esperava?

Adoração, devoção, afeto, paixão ou simplesmente a confissão de

que me acha irresistível.

Desculpe, Don Juan. Vai ter que viver com minha eterna gratidão.

Ele suspirou teatralmente.

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Acho que esse é um começo tão bom quanto qualquer outro. Que

tal então nos considerarmos quites? Nunca lhe agradeci por ter me

convencido a voltar para casa. Eu... descobri muitas coisas de que gosto

no fato de estar em casa.

Sorri para ele.

Feito.

Ele passou o braço pelos meus ombros e continuamos a caminhar.

Eu me pergunto se vamos encontrar aquele urso outra vez - refletiu

Kishan.

Se o encontrarmos, dessa vez devo conseguir mantê-lo à distância.

Não pensei em usar meu poder naquele momento. Sou uma guerreira

de meia-tigela.

Você lutou muito bem contra os pássaros. - Ele sorriu. - Eu iria para

a guerra com você a qualquer hora. Vou lhe contar sobre a ocasião em

que deixei minha espada em casa.

Ele beijou minha testa e recordou tempos mais felizes.

Ao anoitecer pudemos ver ao longe uma pequena fogueira na base da

montanha. Kishan me assegurou de que aquele era o acampamento do

Sr. Kadam. Contou que podia sentir o cheiro dele na brisa. Ele segurou

minha mão no último quilômetro, dizendo que podia ver melhor no

escuro do que eu - mas eu suspeitava de que esse não fosse o único

motivo. Quando chegamos mais perto, fui capaz de distinguir a sombra

do Sr. Kadam no interior da barraca.

Aproximei-me e disse:

Ô de casa! Tem vaga para um casal de estranhos errantes?

A sombra se moveu e o zíper da barraca deslizou.

Srta. Kelsey? Kishan?

O Sr. Kadam saiu da barraca e me prendeu num forte abraço. Então ele

se virou para dar um tapinha nas costas de Kishan.

Vocês devem estar congelando! Entrem. Vou fazer um chá quente.

Deixem-me pegar uma chaleira para pôr no fogo.

Sr. Kadam, não precisa fazer isso. Temos o Fruto Dourado, lembra?

Ah, sim. É verdade.

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E temos mais uma coisa também.

Tirei o Lenço cor de ametista do pescoço e isso o fez mudar para

turquesa.

Almofadas macias, por favor, e poderia tornar a barraca um pouco

maior? - perguntei.

Os fios cor de turquesa imediatamente se deslocaram e se esticaram.

Vários deles teceram grandes almofadas de várias cores e outro pedaço

se separou e começou a dar laçadas na extremidade da barraca. Alguns

momentos depois pudemos nos sentar confortavelmente em grandes

almofadas numa tenda que havia dobrado de tamanho. O Sr. Kadam

observava em silêncio, fascinado, os fios atarefados.

Tive certa dificuldade para tirar o casaco. Kishan me ajudou e fez um

carinho no meu braço. Empurrei sua mão para longe, mas ele se limitou

a sorrir e se reclinar nas almofadas.

Ele funciona como o Fruto Dourado só que criando coisas tecidas? -

perguntou o Sr. Kadam.

Lancei um olhar de advertência a Kishan e respondi:

É por aí.

"O povo da Índia será vestido" - murmurou o Sr. Kadam.

É... acho que poderíamos mesmo vestir o povo da Índia com isso.

Engraçado que isso não tenha me ocorrido antes. Espere um pouco. A profecia não falava algo sobre "grandes

disfarces" também?

O Sr. Kadam remexeu alguns papéis e encontrou uma cópia da profecia.

Sim. Aqui diz: "Discos lançados e grandes disfarces podem deter

aqueles que perseguem." É a isso que você está se referindo?

Eu ri.

Sim, isso faz sentido então. Sabe, o Lenço Divino pode fazer umas

outras coisinhas também, além de criar roupas e tecer coisas. Pode

reunir os ventos, como a sacola do deus Fujin.

Semelhante à sacola de ventos que Odisseu recebeu de Éolo? -

replicou o Sr. Kadam. - A sacola de couro de Ulisses amarrada com um

fio de prata?

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Sim, mas não é couro. No entanto, o fio de prata funcionaria.

Talvez enviado por um dos deuses do vento? Vayu? Striborg?

Njord? Pazuzu?

Não se esqueça de Bóreas e Zéfiro.

Vocês podem falar uma língua que eu entenda, por favor? -

interrompeu Kishan.

O Sr. Kadam riu.

Desculpe. Fiquei empolgado por um instante.

Quer mostrar a ele agora, Kishan? - perguntei.

Claro.

O Sr. Kadam se inclinou para a frente.

Mostrar o quê, Srta. Kelsey?

O senhor vai ver.

Kishan pegou o Lenço Divino, murmurou "Disfarce" e o girou em torno

de seu corpo. O tecido se alongou e se tornou preto com cores em

torvelinho.

Quero ver se funciona sem que eu diga um nome em voz alta, como

o Fruto Dourado - disse ele sob as dobras do tecido.

Boa idéia - respondi.

Quando Kishan afastou o Lenço do rosto, eu não estava preparada para

o que vi. Era Ren. Ele assumira a forma de Ren. E deve ter visto a

aflição em meu rosto.

Eu sinto muito. Não queria chocar o Sr. Kadam mostrando a ele o

próprio rosto.

Está tudo bem. Só desfaça isso depressa, por favor.

Foi o que ele fez e o Sr. Kadam ficou lá sentado, estupefato. Eu não

conseguia falar. Ver Ren sentado ali - mesmo sabendo que, na verdade,

era Kishan - foi extremamente difícil. Tive que reprimir todas as

emoções que emergiram.

Kishan rapidamente tomou a palavra e explicou:

Com o Lenço, podemos assumir a forma de outras pessoas. Kelsey se

transformou em Nilima e eu em você. Precisamos testar seu alcance e

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tentar diferentes formas para podermos entender as habilidades e as

limitações de disfarce do Lenço.

Simplesmente... incrível! - exclamou o Sr. Kadam. - Kishan, posso?

Claro.

Ele jogou o Lenço para o Sr. Kadam. A cor do tecido mudou assim que

seus dedos o tocaram, primeiro assumindo um tom mostarda-

amarronzado e depois mudando para verde-oliva.

Acho que ele gosta do senhor - brinquei.

Ah... imaginem as possibilidades. Quantas pessoas o Fruto Dourado

e este tecido glorioso poderiam ajudar? Tanta gente sofrendo com a

escassez de alimentos e roupas para proteger do frio... e não apenas na

índia. Esses são presentes verdadeiramente divinos.

Deixei-o examinar o Lenço enquanto eu pedia ao Fruto Dourado que

nos preparasse chá de camomila com creme e açúcar. Kishan não

gostava muito de chá, então ganhou um chocolate quente com canela e

creme batido.

Quanto tempo ficamos fora? - perguntei.

Pouco mais de uma semana.

Rapidamente calculei em minha mente quantos dias ficamos na

montanha.

Ótimo. Nosso tempo em Shangri-lá não contou.

Quanto tempo vocês dois ficaram em Shangri-lá, Srta. Kelsey?

Não tenho certeza, mas acho que foram quase duas semanas. - Olhei

para Kishan. - Confirma?

Ele assentiu em silêncio e bebericou seu chocolate.

Sr. Kadam, quando podemos partir?

Podemos ir ao amanhecer.

Quero chegar em casa o mais rápido possível. Precisamos nos

preparar para salvar Ren.

Podemos atravessar a fronteira e entrar na índia pela província de

Sikkim. Vai ser muito mais rápido do que passar pelo Himalaia de novo.

Quanto tempo isso levará?

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Depende da rapidez com que passarmos pela fronteira. Se não

houver problemas, talvez uns poucos dias.

Ótimo. Temos muito para lhe contar.

O Sr. Kadam bebia seu chá e me olhava, pensativo.

Você não tem dormido direito, Srta. Kelsey. Seus olhos estão

cansados.

Ele fez contato visual com Kishan e então deixou a xícara de lado.

Acho que devíamos deixá-la dormir. Temos um longo trajeto à

frente e podemos conversar na estrada.

Concordo - interpôs Kishan. - Esses últimos dias foram difíceis para

você. Descanse um pouco, bilauta. Terminei meu chá.

Acho que sou minoria. Muito bem. Então vamos todos dormir e

assim poderemos partir mais cedo amanhã.

Usei o Lenço para fazer outro saco de dormir e travesseiros para todos

nós. Adormeci ao som tranqüilo de Kishan e o Sr. Kadam conversando

baixinho em sua língua nativa.

No dia seguinte demos início à nossa viagem de volta. Passamos pela

alfândega e então percorremos aproximadamente metade do caminho

para casa antes de parar num hotel em Gaya. Nós três nos alternamos

dirigindo e tirando um cochilo no banco de trás. Na vez de Kishan, o Sr.

Kadam ficou de olho nele, ainda receoso por causa do acidente com o

Jeep na Índia.

No caminho contamos ao Sr. Kadam tudo sobre nossa jornada. Comecei

com o monte Everest e o urso. Kishan falou sobre ter me carregado ao

transpor o portão do espírito e da caminhada pelo paraíso.

O Sr. Kadam ficou fascinado pelos silvanos e fez dezenas de perguntas.

Enquanto eu dirigia, ele tomava notas. Queria realizar um registro

detalhado de nossa jornada. Ouvia atentamente e escrevia página após

página em sua refinada caligrafia. Fez muitas perguntas específicas

sobre as provas das quatro casas e sobre os pássaros de ferro guardiões,

assentindo com a cabeça, como se esperasse que isso ou aquilo

ocorresse.

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No hotel nos sentamos a uma mesa e lhe mostramos as fotos que Kishan

havia tirado da Arca de Noé, da árvore do mundo, dos silvanos e das

quatro casas. O registro visual nos ajudou a lembrar de mais detalhes e o

Sr. Kadam pegou novamente o caderno e recomeçou a escrever.

Kishan me mostrou a câmera e perguntou:

O que é isto?

Virei-a em diferentes ângulos e ri.

É um dos olhos de Hugin. Está vendo? Ali está o ninho.

Kishan passou mais algumas imagens.

Por que você não levou uma câmera para Kishkindha?

Dei de ombros, mas o Sr. Kadam explicou:

Eu não queria sobrecarregá-la com um número excessivo de objetos

pesados. Ela precisava de água e comida.

Kishan grunhiu e disse:

Com certeza vou querer uma cópia desta aqui, apsaras rajkumari. Ele me entregou a câmera. Era uma foto minha no vestido de tecido

fino com "fivelas de fadas". Eu parecia uma princesa de pele reluzente e

olhos brilhantes. Meu cabelo caía em ondas suaves pelas costas e dava

para ver uma fada cor-de-rosa espiando por trás de um cacho do cabelo.

O Sr. Kadam olhou sobre meu ombro.

Está muito bonita, Srta. Kelsey.

Kishan riu.

Você devia tê-la visto pessoalmente. Muito bonita não faz jus a ela.

O Sr. Kadam riu e foi pegar sua bolsa no carro.

Kishan apoiou o quadril na mesa. Juntou as mãos, ergueu um dos

joelhos e me olhou com a expressão séria.

Na verdade, eu diria que nunca vi nada mais bonito.

Arrastei os pés, nervosa.

Bem, é sempre impressionante quando a pessoa se arruma. Um

tratamento de beleza de fadas iria causar comoção nos salões.

Ele segurou delicadamente meu cotovelo e me virou para ele.

Não foi um tratamento de beleza que a fez ficar linda. Você é

sempre linda. A maquiagem somente realçou o que já estava lá. - Ele

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ergueu meu queixo com um dedo e me olhou nos olhos. - Você é uma

mulher maravilhosa, Kelsey.

Kishan pôs as mãos quentes em meus braços nus e os esfregou com

carinho. Ele me puxou para mais perto. Seus olhos desceram para

minha boca. Quando ele baixou os lábios até poucos centímetros dos

meus, eu deliberadamente pressionei as mãos contra seu peito e adverti:

Kishan. Gosto da maneira como você diz meu nome.

Por favor, me solte.

Ele ergueu a cabeça, suspirou e disse baixinho:

Ren... é um homem de sorte, muita sorte. Com relutância, ele retirou as mãos dos meus braços e foi até a janela.

Eu me ocupei recolhendo artigos de toalete e um pijama. Kishan me

observou em silêncio por um minuto e então anunciou:

Acho que também preciso de um tratamento de beleza. Um banho

quente está me chamando.

Ainda nervosa, eu disse:

E, eu também. Um banho quente vai ser magnífico.

Ele ergueu uma sobrancelha.

Quer ir primeiro?

Não, pode ir.

Seus olhos faiscavam ao me fitar.

Seria sensacional se você me dissesse que queria economizar agui.

Kishan! - exclamei, indignada.

Ele piscou para mim.

Não achei mesmo que quisesse. Mas não se pode culpar um homem

por tentar.

A volta do Sr. Kadam me poupou de dar uma resposta a ele.

No segundo dia o Sr. Kadam e eu comparamos anotações sobre a visão

de Lokesh. Ele também notara o criado tatuado ajudando Lokesh e

achava que sua aparência era singular o bastante para que rastreássemos

a origem do homem. O Sr. Kadam também havia planejado investigar

discretamente o escritório de Lokesh em Mumbai.

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O ar estava tão úmido e abafado do lado de fora que provavelmente

poderíamos ter enchido nossas garrafas de água apenas pendurando-as

na janela. Passamos por templos com cúpulas douradas e pessoas

trabalhando nos campos, atravessamos rios caudalosos e estradas

inundadas, mas eu só conseguia pensar em chegar até Ren. Na verdade,

a única coisa que interrompia meus pensamentos em Ren era Kishan.

Alguma coisa havia mudado entre nós em Shangri-lá e eu não sabia

exatamente o que fazer a esse respeito. Ter passado todas aquelas

semanas com Kishan não ajudava. Ele estava indo além do flerte e

começando a fazer investidas sérias. Eu havia esperado que ele perdesse

o interesse.

De início acreditara que quanto mais ele me conhecesse, menos gostaria

de mim. Mas aparentemente eu exercera o efeito oposto nele. Eu o

amava, mas não da mesma maneira que ele se sentia em relação a mim.

Eu aprendera a confiar nele. Ele havia se tornado um bom amigo, só

que eu estava apaixonada por seu irmão. Se eu tivesse conhecido Kishan

antes de Ren, as coisas talvez fossem diferentes. Mas não fora assim.

Os pensamentos ficavam me importunando enquanto seguíamos no

carro. Fora apenas sorte eu ter conhecido Ren primeiro? Termos tido a oportunidade de nos apaixonar? E se Kishan houvesse ido atrás de mim nos Estados Unidos e não Ren? Será que eu teria feito uma escolha diferente? A verdade era que eu não sabia. Kishan era um homem muito atraente,

tanto por fora quanto por dentro. Havia algo nele, algo que faria

qualquer garota querer abraçá-lo e mantê-lo assim para sempre. Ele era

solitário. Estava procurando um lar, alguém que o amasse, assim como

Ren. Precisava de alguém que o aceitasse e deixasse o tigre errante e

perdido descansar. Eu podia facilmente me ver como essa pessoa. Podia

me ver me apaixonando por ele e sendo feliz ao seu lado.

Mas aí pensava em Ren, que tinha as mesmas qualidades que eu amava

em Kishan. Ren também precisava de alguém para amá-lo, para sossegar

o tigre inquieto. Mas Ren e eu combinávamos de forma tão mais

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natural... como se ele fosse feito especialmente para mim. Ele era tudo

que eu poderia desejar embrulhado num pacote estonteante.

Ren e eu tínhamos muito em comum. Eu adorava a maneira como ele

me dava apelidos carinhosos. E como cantava para mim e tocava violão.

Adorava como ele ficava entusiasmado em ler Shakespeare e como

gostava de assistir a filmes e torcer pelos mocinhos. E adorava o fato de

ele não trapacear, mesmo que fosse para ganhar a garota que ele ama.

Se eu nunca tivesse conhecido Ren, se tivesse sido Kishan na jaula do

circo, eu sentia que poderia ser feliz com ele também. Mas como Ren

me amava e queria estar comigo, eu nunca poderia ser convencida a

olhar Kishan com outros olhos. Ren preenchia meu mundo mesmo

quando não estava presente.

Para Ren não havia nuances de cinza. Ele era o gato branco e Kishan, o

negro, literalmente. O problema era que eu não via Kishan da mesma

maneira que Ren o via. Kishan também era um herói. Ambos haviam

sido feridos. Ambos haviam sofrido. E Kishan merecia um final feliz

tanto quanto Ren.

Ao volante, Kishan olhava no retrovisor interno de tempos em tempos,

me observando.

Eu mordia o lábio, pensativa, quando ele disse:

Um tostão por seus pensamentos.

Corei e respondi:

Só estava pensando em salvar Ren.

Então deliberadamente me virei no banco de trás e cochilei.

Quando o carro finalmente parou na entrada da garagem, Kishan me

acordou com gentileza:

Chegamos em casa, bilauta.

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Confissões Eu me sentia tão feliz por estar de volta em casa que poderia ter

chorado. Kishan levou nossa bagagem para dentro e rapidamente

desapareceu. O Sr. Kadam também pediu licença para consultar alguns

de seus contatos. Sozinha, resolvi tomar um banho quente e demorado

e pôr as roupas para lavar.

De pijama e chinelo, fui até a lavanderia e coloquei um monte de peças

na máquina. Não sabia o que fazer com as roupas de fada. Decidi

pendurá-las na varanda durante a noite, só para ver se havia alguma

fada no mundo real. Então percorri a casa tentando descobrir o que os

outros estavam fazendo.

Encontrei o Sr. Kadam na biblioteca, ao telefone. Eu ouvia apenas

metade da conversa. Ele olhou para mim e puxou uma cadeira para que

eu me sentasse ao lado dele.

Sim. Claro. Entre em contato comigo o mais rápido possível.

Correto. Mande tantos quantos forem necessários. Manteremos contato.

Ele desligou o telefone e se virou para mim. Brincando com meu cabelo

molhado, perguntei:

Quem era?

Um homem que trabalha para mim e que tem muitos talentos

extraordinários. Um dos quais é se infiltrar em grandes organizações.

O que ele vai fazer para a gente?

Vai começar a investigar quem trabalha no escritório na cobertura

do edifício mais alto de Mumbai.

O senhor não está pretendendo ir até lá pessoalmente, está? Lokesh

iria capturá-lo também!

Não. Lokesh mostrou mais sobre si mesmo do que descobriu sobre

nós. Você notou o terno dele?

Para mim parecia um terno qualquer.

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Não é. Seus ternos são feitos sob medida na Índia. Apenas dois

estabelecimentos em todo o país se especializaram em ternos caros

como aquele. Mandei meus homens descobrirem um endereço.

Sacudi a cabeça e sorri.

Sr. Kadam, alguém já lhe disse que o senhor é extremamente

observador?

Ele sorriu.

Talvez uma ou duas vezes.

Bem, fico muito feliz por ter o senhor do nosso lado. Estou

impressionada! Eu nem sequer pensei em olhar as roupas dele. E quanto

ao criado?

Tenho algumas suspeitas sobre seu lugar de origem. Com base nas

contas, no cabelo e na tatuagem, devo poder delimitá-lo amanhã. Por

que a senhorita não faz um lanche e vai para a cama?

Tirei um bom cochilo no carro, mas um lanche vai cair bem. O

senhor me acompanha?

Creio que sim.

Levantei-me rapidamente.

Ah, quase esqueci! Trouxe uma coisa para o senhor!

Encontrei minha mochila no pé da escada e peguei dois copos e dois

pra- tinhos na cozinha. Coloquei um prato e um copo diante do Sr.

Kadam e abri a mochila.

Não sei se a massa ainda está comestível, mas o néctar deve estar.

Ele se inclinou para a frente, curioso.

Abri os deliciosos pacotes dos silvanos e coloquei várias iguarias

delicadas em seu prato. Infelizmente o pequeno pacote de biscoitos

finos polvilhados de açúcar havia se transformado em migalhas. Mas os

outros itens ainda pareciam frescos e deliciosos, como em Shangri-lá.

O Sr. Kadam avaliou os minúsculos petiscos de vários ângulos,

admirando o trabalho artístico. Então provou cuidadosamente uma galette de cogumelo e uma diminuta tortinha de framboesa enquanto

eu explicava que os silvanos eram vegetarianos e que adoravam coisas

açucaradas. Tirei a rolha de uma cabaça alta e despejei o néctar doce e

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dourado em sua xícara. Kishan entrou e puxou uma cadeira perto de

mim.

Ei! Por que não fui convidado para o chá dos silvanos? - brincou ele.

Deslizei meu prato para Kishan e fui buscar outro copo. Rimos e

desfrutamos de um momento de tranqüilidade enquanto saboreávamos

rolinhos de abóbora com manteiga de nozes e minitortas de maçã, de

queijo e de cebola.

Bebemos até a última gota de néctar e ficamos encantados ao ver que o

Fruto Dourado era capaz de produzir mais.

A única coisa que poderia ter tornado esse momento melhor teria sido

partilhá-lo com Ren. Prometi a mim mesma que descreveria por escrito

cada iguaria deliciosa que tínhamos comido em Shangri-lá para que

pudesse saboreá-las novamente com Ren usando o Fruto Dourado,

depois que ele fosse resgatado.

Ficamos acordados até tarde naquela noite. Kishan se transformou em

tigre e dormiu aos meus pés enquanto o Sr. Kadam e eu líamos livros

sobre as tribos rurais da Índia. Por volta das três da manhã, virei uma

página no quinto livro que pegara e encontrei a foto de uma mulher

com uma tatuagem na testa.

Sr. Kadam, dê uma olhada nisto.

Ele se sentou na poltrona de couro ao meu lado. Passei-lhe o livro para

que ele pudesse estudar a mulher.

Sim. Este é um dos grupos em que pensei. São os baigas.

O que o senhor sabe sobre eles? Onde vivem?

São uma tribo indígena quase sempre nômade, que evita associações

fora de suas comunidades. Eles caçam e coletam alimentos, preferindo

não cultivar o solo. Acreditam que trabalhar a terra prejudica a Mãe

Natureza. Que eu saiba existem dois grupos deles: um em Madhya

Pradesh, na região central da índia, e outro em Jharkhand, que fica no

leste do país. Creio que tenho um livro que oferece mais detalhes sobre

sua cultura.

Ele examinou várias prateleiras até encontrar o volume certo. Então se

sentou ao meu lado e abriu o livro.

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É sobre os adivasis. Deve haver mais informações sobre os baigas aqui.

Inclinei-me para coçar a orelha de Kishan.

O que são os adivasis?

Trata-se de um termo que classifica todas as tribos nativas em

conjunto, mas não as diferencia entre si. Várias culturas se enquadram

no termo adivasis. Aqui temos os irulas, oraons, santals e - ele passou

mais uma página - os baigas.

Ele encontrou o capítulo que estava procurando e correu o dedo pela

página enquanto lia partes importantes numa taquigrafia verbal.

Praticam agricultura de corte e queima. Famosos pelas tatuagens. Dependem da selva para o sustento. Empregam remédios antigos e mágicos. Artesanato de bambu. Ah! Aqui está exatamente o que

procuramos, Srta. Kelsey. Os homens baigas usam o cabelo comprido e o prendem num coque. O homem segurando Ren se encaixa nessa

descrição. Mas o que complica tudo é o fato de que é quase impossível

um baiga deixar sua tribo para servir alguém como Lokesh. Mesmo que ele pagasse bem?

Isso não teria importância. O estilo de vida deles é centrado na tribo.

Não haveria nenhuma razão para que ele deixasse seu povo. Não está

dentro de suas normas culturais. São um povo simples e franco. E

improvável que um dos baigas tenha se juntado aos exércitos de Lokesh.

Ainda assim, merece uma investigação. Vou começar meu estudo das

tribos baigas amanhã. Agora é hora de dormir, Srta. Kelsey. Eu insisto.

Está muito tarde e nós dois precisamos ter a mente descansada.

Assenti e devolvi os livros que tirara das estantes de sua biblioteca. Ele

apertou meu ombro.

Não se aflija. Tudo vai dar certo no final. Eu sinto isso. Já fizemos um

grande progresso. Kahlil Gibran disse: "Quanto mais fundo o sofrimento

cava em seu ser, mais alegria você pode conter." Sei que passou por

muitas grandes dores, mas também tenho a impressão de que sua vida

guardará muitas alegrias, Srta. Kelsey.

Sorri.

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Obrigada. - Eu o abracei e sussurrei de encontro à sua camisa: - Não

sei o que faria sem o senhor. Durma um pouco também.

Dissemos boa-noite e o Sr. Kadam desapareceu em seu quarto enquanto

eu subia a escada. Kishan me seguiu até meu quarto e parou diante da

porta de vidro que dava para a varanda, esperando que eu o deixasse

sair. Quando deslizei a porta, abrindo-a, ajoelhei-me ao lado dele e

acariciei-lhe as costas.

Obrigada por me fazer companhia.

Ele pulou no banco de balanço e imediatamente adormeceu. Subi na

cama e abracei com força meu tigre branco de pelúcia, esperando

preencher o vazio dentro do meu peito com pensamentos sobre Ren.

Acordei por volta das 11 horas. O Sr. Kadam estava ao telefone e

desligou assim que me sentei diante dele.

Acho que a sorte nos sorriu, Srta. Kelsey. Em minha investigação dos

baigas, não encontrei nada de extraordinário a respeito da tribo

localizada em Madhya Pradesh. A tribo do leste da índia, porém, parece

estar desaparecida.

Como assim, desaparecida?

Em geral há pequenos vilarejos perto das tribos baigas que têm

contato com elas de tempos em tempos. Esses encontros com freqüência

se devem a controvérsias a respeito de desmatamento ou várias outras

disputas. A tal tribo parece ter se transferido recentemente e não foi

encontrada. Eles são nômades e se deslocam, mas esse é o período mais

extenso que ficaram sem contactar os habitantes locais.

Que estranho...

Os baigas agora têm seus limites demarcados por lei e não podem se

deslocar tão livremente quanto no passado. Vou fazer mais pesquisas

hoje. Também tenho alguns contatos que podem fotografar a área por

satélite e encontrar a tribo em sua localização atual. Se o caso merecer

mais atenção, informarei você e Kishan. Vocês dois passaram por uma

provação e tanto nas últimas semanas, portanto quero que descansem

hoje. Não há nada que possam fazer até eu conseguir mais informações.

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Vão nadar, assistir a um filme ou saiam para comer. Vocês dois

merecem um descanso.

O senhor tem certeza de que não há nada que eu possa fazer? Não

consigo relaxar de verdade sabendo que Ren está sofrendo.

Ficar se preocupando com ele não vai fazê-lo sofrer menos. Ele

também iria querer que descansasse. Vamos encontrá-lo logo. Não se

esqueça de que conduzi soldados à batalha muitas vezes e, se aprendi

uma coisa, foi que todas as tropas endurecidas pela guerra precisam de

descanso e lazer, inclusive a senhorita. Reservar um tempo para relaxar

é muito importante ao bem-estar mental de todos os soldados. Portanto,

fora daqui. Não quero ver nenhum de vocês dois antes do anoitecer.

Sorri para ele e bati continência.

Sim, senhor general. Transmitirei suas instruções a Kishan.

Ele também bateu continência.

Cuide disso.

Eu ri e saí à procura de Kishan.

Encontrei-o no dojo praticando artes marciais e me sentei no último

degrau da escada para assistir por alguns minutos. Ele executou uma

série complexa de saltos e rodopios aéreos que teria sido impossível se

ele não tivesse a força de um tigre. Ele a concluiu aterrissando a meio

metro de mim e me encarando com um sorriso brincalhão.

Eu ri.

Sabe, se você e Ren fossem para as Olimpíadas poderiam ganhar

várias medalhas de ouro. Em ginástica olímpica, atletismo, lutas, no que

quisessem. Ambos receberiam milhões de dólares em patrocínio.

Não preciso de milhões de dólares.

Haveria um monte de garotas bonitas bajulando você.

Ele me dirigiu um sorriso maroto.

Só preciso de uma garota bonita me bajulando e ela não está

interessada. Então, o que está fazendo aqui embaixo? Quer se exercitar?

Não. Queria saber se você quer ir nadar um pouco. O Sr. Kadam nos

mandou relaxar hoje.

Ele pegou uma toalha e secou o rosto e a cabeça.

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Nadar, é? Talvez sirva para me esfriar um pouco. - Ele olhou por

trás da toalha. - A não ser que você esteja planejando usar biquíni.

Ri com desdém.

Nem pensar. Não sou de usar biquíni.

Ele fingiu um suspiro profundo e teatral.

Que pena. Muito bem, encontro você na piscina.

Subi ao quarto e coloquei meu maiô vermelho, vesti o roupão e saí para

a varanda.

Kishan havia vestido uma bermuda de surfista e estava prendendo a

rede de vôlei na piscina. Eu tinha acabado de jogar o roupão numa

espreguiçadeira e experimentava a água com o pé quando senti uma

coisa fria nas costas.

Ai! O que você está fazendo?

Fique parada. Você precisa de filtro solar. Sua pele é tão branca que

vai ficar com queimaduras.

Ele cobriu eficientemente minhas costas e meu pescoço com o protetor

e começava a espalhá-lo nos meus braços quando o detive.

Posso terminar o serviço, obrigada - eu disse, estendendo a mão

para o frasco.

Joguei um pouco da loção na mão e espalhei nos braços e nas pernas.

Tinha cheiro de coco.

Kishan sorriu, olhou para minhas pernas e piscou:

Leve o tempo que quiser.

Quando ele voltou, depois de ir pegar a bola e algumas toalhas no

armário da piscina, eu tinha acabado.

Que tal uma partida de vôlei? - perguntou.

Você vai acabar comigo.

Eu fico na parte funda. Isso vai me deixar mais lento.

Acho que podemos tentar.

Ele deu um passo em minha direção.

Espere um segundo.

O que foi?

Ele sorriu, travesso.

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Você esqueceu um lugar.

Onde?

Bem aqui.

Ele aplicou uma gota gigante de filtro solar no meu nariz e gargalhou.

Seu bobo!

Levei a mão ao nariz para tentar espalhar o protetor.

Eu faço isso por você - disse ele.

Deixei as mãos caírem ao lado do corpo enquanto seus dedos

espalhavam com delicadeza a loção no meu nariz e nas bochechas. O

toque a princípio era inocente, mas então sua disposição mudou. Ele

diminuiu a distância entre nós. Seus olhos dourados estudavam meu

rosto. Respirei fundo e corri.

Dei alguns passos e mergulhei como uma bala de canhão na parte funda

da piscina, molhando Kishan e tudo que estava por perto.

Ele riu e mergulhou atrás de mim. Gritei e nadei debaixo d'água,

passando para o outro lado da rede. Quando tirei a cabeça da água, não

o vi. Uma mão agarrou meu tornozelo e me puxou para baixo. Depois

de eu voltar à superfície novamente, tossindo e tirando o cabelo dos

olhos, Kishan saltou ao meu lado, jogou o cabelo para trás com um

movimento da cabeça e riu enquanto eu tentava empurrá-lo.

Ele não se moveu, naturalmente, então atirei água nele, dando início a

uma guerra. Logo tornou-se dolorosamente óbvio que eu estava

perdendo. Seus braços não pareciam se cansar e, vendo que onda atrás

de onda afogava minhas patéticas tentativas, pedi um tempo.

Ele parou o bombardeio, feliz, e, usando os braços, tomou impulso e

saiu da piscina para ir pegar a bola. Começamos a jogar e fiquei

encantada ao ver que finalmente havia encontrado um jogo em que eu

parecia ter uma vantagem.

Depois de eu dar uma cortada na bola pela terceira vez, ganhando mais

um ponto, Kishan perguntou:

Onde aprendeu a jogar? Você é muito boa!

Eu nunca tinha jogado na água, mas jogava razoavelmente bem na

quadra do colégio. Quase entrei para a equipe da escola, só que isso foi

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no ano em que meus pais morreram. No ano seguinte eu não estava tão

interessada assim em jogar, mas ainda é meu esporte favorito. Eu

também era boa no basquete, porém não tinha altura suficiente para ser

competitiva. Vocês praticavam esporte?

Na verdade não tínhamos tempo para os esportes. Tínhamos

competições de arco e flecha, lutas e alguns jogos como ludo, mas

nenhum esporte em equipe.

Ainda assim você pode ver que estou ganhando por muito pouco,

embora você esteja na parte funda e nunca tenha jogado.

Kishan agarrou a bola no ar e caiu na água. Quando emergiu, estava

bem à minha frente, do outro lado da rede. Ele a ergueu e passou

nadando debaixo dela. Meus pés mal tocavam o fundo da piscina,

deixando apenas meu rosto fora da água. Nossas cabeças estavam

praticamente niveladas. Ele ainda estava a um metro de distância e

estreitei os olhos, perguntando-me o que ele pretendia fazer. Ele me

observou por um momento e me dirigiu um sorriso travesso. Preparei-

me para outra guerra de água erguendo meus braços.

Num instante Kishan estava ao meu lado. Ele deslizou os braços em

torno de minha cintura, puxou-me para ele, sorriu com malícia e disse:

O que posso fazer? Sou muito competitivo.

E então me beijou.

Fiquei paralisada. Nossos lábios estavam molhados. O gosto de cloro era

forte e a princípio ele não se mexeu, então daria na mesma se eu

estivesse beijando o azulejo frio na lateral da piscina. Em seguida,

porém, ele apertou minha cintura, deslizou as mãos, acariciando-me as

costas nuas, e inclinou a cabeça.

De repente, o que não passava de um toque molhado e clorado se

transformou num beijo muito real de um homem que absolutamente não era Ren. Os lábios de Kishan se aqueceram e se moveram sobre os

meus de uma forma prazerosa. Prazerosa o bastante para que eu me

esquecesse de que não queria beijá-lo e me visse correspondendo.

Minhas mãos pararam de empurrá-lo e eu agarrei seus braços fortes.

Sua pele era lisa e quente.

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Ele respondeu com entusiasmo, passando um braço pela minha cintura

para me esmagar de encontro ao seu peito, enquanto a outra mão subia

pelas minhas costas nuas para segurar a parte posterior da minha

cabeça. Pelo mais breve dos momentos, deixei-me aproveitar seu

abraço. Mas então me lembrei de tudo e, em vez de me deixar feliz,

como devem fazer os beijos, esse me deixou triste.

Interrompi o beijo e me afastei um pouco. Kishan manteve o braço em

minha cintura e pôs um dedo sob meu queixo, erguendo meu rosto a

fim de que eu o olhasse. Então estudou minha expressão em silêncio.

Meus olhos se encheram de lágrimas. Uma rolou pelo rosto e caiu em

sua mão.

Ele esboçou um sorriso.

Não foi exatamente a reação que eu esperava.

Relutante, ele me soltou e eu saí nadando, indo me sentar num degrau

da piscina.

Nunca afirmei ser uma especialista em beijos, se é a isso que se refere.

Não estou falando do beijo.

Está falando do que, então?

Ele não disse nada.

Abri os dedos da mão e a coloquei sobre a superfície da água, deixando

que ela fizesse cócegas em minha palma. Sem olhar para ele, perguntei

baixinho:

Alguma vez eu lhe dei razão para esperar mais?

Ele suspirou e jogou o cabelo para trás, infeliz.

Não, mas...

Mas o quê?

Levantei a cabeça. Grande erro.

Kishan parecia vulnerável. Meio desesperado e esperançoso ao mesmo

tempo. Querendo acreditar, porém sem ousar fazê-lo. Dava a impressão

de estar zangado, frustrado e insatisfeito. Seus olhos dourados estavam

cheios de desespero e anseios, no entanto também brilhavam com

determinação.

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Mas... não consigo deixar de pensar que talvez Ren tenha sido

levado por uma razão. Que talvez seu destino sempre tenha sido ficar comigo. A única razão de Ren ter sido levado foi haver se sacrificado para

salvar nossas vidas - repliquei mordaz. - E assim que você o retribui?

Vi o ferrão de minhas palavras feri-lo. Era fácil culpar Kishan, mas eu

estava mais perturbada com minha reação a ele. Eu me sentia

incrivelmente culpada por ter deixado aquele beijo acontecer. Minha

acusação era tanto contra ele quanto contra mim. O fato de eu ter

gostado do beijo fazia com que eu me sentisse ainda pior.

Ele nadou até a lateral da piscina e apoiou as costas na parede.

Você acha que eu não me importo? Acha que eu não sinto nada por

meu irmão? Pois eu sinto. Apesar de tudo o que aconteceu, preferia que

eu tivesse sido levado. Você teria Ren. Ren teria você. E eu receberia o

que mereço.

Kishan! Estou falando sério. Você acha que se passa um dia sequer sem que

eu me odeie pelo que fiz? Pelo que sinto?

Estremeci.

Você acha que eu queria me apaixonar por você? Eu me mantive

longe de você! Dei a ele a chance de ficar com você! Mas tem outra

parte de mim que pergunta: e se? E se não fosse para você ficar com

Ren? E se você fosse a resposta às minhas preces, e não às dele!

Ele me observava do outro lado da piscina. Mesmo dessa distância, eu

podia ver que ele estava sofrendo.

Kishan, eu...

E antes que diga qualquer coisa, quero avisar que não desejo sua

compaixão. E melhor você não dizer nada do que tentar me dizer que

não gostou ou que só sente amizade por mim.

Não era isso que eu ia dizer.

Ótimo. Então você admite que gostou? Que existe química entre

nós? Que você se sente atraída por mim?

Você precisa que eu admita isso?

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Ele cruzou os braços na frente do peito.

Sim. Acho que preciso.

Ergui os braços no ar.

Está bem! Admito. Eu gostei. Temos química. Sim, eu me sinto

atraída por você. Foi bom. Na verdade, foi tão bom que me fez esquecer

completamente de Ren por cerca de cinco segundos. Está feliz agora?

Estou.

Mas eu não.

Estou vendo. - Ele me avaliou do outro lado da piscina. - Então tudo

o que tive foram cinco segundos?

Para ser honesta, provavelmente está mais para 30.

Ele bufou. Os braços ainda estavam cruzados diante do peito, mas agora

ele exibia um sorrisinho de homem muito satisfeito consigo mesmo.

Suspirei, infeliz.

Kishan, eu...

Ele me interrompeu:

Você se lembra de quando escapamos da casa das sereias em Shangri-

lá?

Lembro.

E de que você disse que conseguiu escapar porque pensou em Ren?

Assenti.

Bem, eu consegui escapar porque pensei em você. Você ocupou

meus pensamentos e o feitiço das sereias desapareceu. Não acha que isso

significa alguma coisa? Não poderia significar que talvez nós estejamos

destinados a ficar juntos? A verdade, Kells, é que venho pensando em

você há muito tempo. Desde que nos conhecemos não consigo tirá-la da

cabeça.

Uma lágrima rolou pelo meu rosto e eu disse baixinho:

Sinto muito por tudo que aconteceu. Sinto muito por tudo que você

passou. E sinto ainda mais por qualquer sofrimento que eu esteja lhe

causando. Não sei o que dizer, Kishan. Você é um cara maravilhoso.

Maravilhoso demais. Se a situação fosse outra, eu provavelmente ainda

estaria ali beijando você.

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Quando pus a cabeça entre as mãos, ele mergulhou e nadou até onde eu

estava. Eu o ouvi ficar de pé e olhei para o seu rosto. A água escorria

por seu tórax de bronze. Ele era mesmo um homem lindo. Qualquer

garota teria sorte de ter um cara como ele.

Ele estendeu a mão.

Então venha aqui e me beije.

Sacudi a cabeça.

Eu não... Eu não posso. - Suspirei, com tristeza. - Olhe, tudo o que

sei é que eu amo Ren. E ficar com você, por mais tentador que seja, não

é algo que eu possa fazer. Não posso dar as costas para ele. Por favor,

não me peça isso.

Saí da piscina e enrolei uma toalha em volta do corpo. Ouvi um ruído

na água e senti sua proximidade enquanto ele também se enxugava.

Kishan me virou para ele, me forçando a olhá-lo nos olhos.

Você precisa saber que isso não é uma competição com ele. Não há

segundas intenções. Não é uma simples atração. - Ele deslizou os

polegares no meu rosto e o segurou com ambas as mãos. - Eu amo você,

Kelsey.

Ele deu mais um passo à frente.

Coloquei a mão em seu peito quente e disse:

Se você me ama mesmo, não me beije de novo.

Eu me mantive firme e esperei sua resposta. Não foi fácil. Eu tinha

vontade de sair correndo, de me refugiar no quarto, mas precisávamos

resolver isso entre nós.

Ele ficou ali, parado, respirando profundamente. Baixou os olhos e eu

pude ver lampejos de emoção cruzando seu rosto. Então ele voltou a

olhar para mim, aquiesceu e disse:

Não vou prometer que nunca mais a beijarei, mas prometo não

beijá-la a menos que tenha certeza de que não há mais nada entre você

e Ren.

Eu estava prestes a protestar, mas ele prosseguiu, tocando meu rosto de

leve:

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Não sou o tipo de homem que reprime os sentimentos, Kells. Não

fico sentado no quarto me consumindo de tristeza, escrevendo poemas

de amor.

Não sou um sonhador. Sou um lutador. Sou um homem de ação e vou

precisar de todo o meu autocontrole para não lutar por isso. Quando é

preciso fazer alguma coisa, eu faço. Quando sinto alguma coisa, eu tomo

uma atitude. Não vejo nenhum motivo para que Ren mereça ter a

garota dos seus sonhos e eu não. Não me parece justo isso acontecer

comigo duas vezes.

Pus a mão em seu braço.

Você tem razão. Não é justo. Não é justo que você tenha tido que

ficar comigo noite e dia nas últimas semanas. Não é justo pedir que

deixe de lado seus sentimentos. Não é justo pedir que seja meu amigo.

Mas o fato é que preciso de você. Preciso de sua ajuda. Preciso de seu

apoio. E, principalmente, preciso de sua amizade. Eu não teria

sobrevivido um só dia em Shangri-lá sem você. Tampouco creio que eu

possa resgatar Ren sem você. Não é justo lhe pedir isto, mas estou

pedindo. Por favor, preciso que você me esqueça.

Ele olhou para a casa, refletindo por um momento, e em seguida se

voltou para mim. Tocou meu cabelo molhado e, insatisfeito, disse:

Está certo. Eu vou recuar, mas não estou fazendo isso por ele e

certamente não por mim. Estou fazendo por você. Lembre-se disso.

Assenti silenciosamente e o vi caminhar, altivo, em direção à varanda.

Meus joelhos fraquejaram e eu me deixei cair na espreguiçadeira.

Passei o resto do dia no meu quarto, estudando textos sobre os baigas. A

toda hora tinha que reler parágrafos. Eu me sentia dividida,

despedaçada. Estava confusa. Era como se alguém houvesse me pedido

para escolher quem viveria: o pai ou a mãe. Qualquer escolha que eu

fizesse me tornaria responsável pela morte do outro. Não era uma

questão de escolher a felicidade; era uma questão de escolher o

sofrimento. Quem eu faria sofrer?

Eu não queria que nenhum deles sofresse. Minha felicidade era

irrelevante. Isso não era como romper com Li ou Jason. Ren precisava

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de mim, ele me amava. Mas Kishan também. Não era uma escolha fácil,

não havia qualquer solução que satisfizesse os dois. Empurrei os livros

para o lado, peguei um dos poemas de Ren e um dicionário de híndi-

inglês. Era um dos poemas que ele escrevera após a minha partida da

índia. Levei muito tempo para traduzir, mas valeu a pena.

Estou vivo? Posso respirar Posso sentir Posso saborear Mas o ar não enche meus pulmões Todas as texturas são ásperas E os sabores, sem graça Estou vivo? Posso ver Posso ouvir Posso perceber Mas o mundo é preto e branco As vozes soam metálicas e fracas O que percebo é confuso e fora de lugar Quando você está comigo O ar se precipita em meu ser Me enche de luz E felicidade Sinto-me vivo! O mundo é cheio de cores e sons Os sabores seduzem meu paladar Tudo é macio e fragrante Percebo o calor de sua presença

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Sei quem eu sou e o que quero Eu quero você. Ren Uma lágrima gigante caiu com um ruído no papel. Eu rapidamente o

tirei do alcance das lágrimas. Apesar das palavras sinceras de Kishan e

da confusão que era meu relacionamento com ele, havia uma coisa que

eu não podia negar: eu amava Ren. De todo o coração. A verdade era

que, se Ren estivesse aqui, se ele estivesse comigo, isso não seria um

problema.

Quando ele estava comigo, eu também sabia quem eu era e o que eu

queria. Mesmo sem a conexão forte, eu podia sentir meu coração se

expandindo com suas palavras. Podia imaginá-lo recitando-as, sentado à

sua mesa, e escrevendo-as.

Se eu precisava de uma resposta, ela estava em meu coração. Quando eu

pensava em Kishan, sentia confusão e afeto misturados a um bocado de

culpa. Com Ren, eu me sentia aberta e iluminada, livre e

desesperadamente feliz. Eu amava Kishan, mas estava apaixonada por

Ren. A forma como isso acontecera era irrelevante. O fato era que tinha

acontecido.

Como Kishan dissera, a essa altura eu havia ficado mais tempo com ele

do que com Ren. Não era de surpreender que tivéssemos nos

aproximado. Mas Ren tinha meu coração nas mãos, que batia apenas

porque o próprio Ren cuidava dele.

Eu estava determinada a ser gentil com Kishan. Estava familiarizada

com o sofrimento. O Sr. Kadam tinha razão ao dizer que Kishan

também precisava de mim. Eu tinha que ser firme com ele e fazê-lo

entender que ele era meu amigo. Que eu podia ser qualquer coisa que

ele precisasse que eu fosse, exceto sua namorada.

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Eu me sentia melhor. Ler o poema de Ren me reequilibrou. Eu também

experimentava os sentimentos dos quais ele falava. Enfiei o poema em

meu diário e desci para jantar com Kishan e o Sr. Kadam.

Kishan ergueu uma sobrancelha quando sorri para ele. Ele voltou para

seu jantar e, ignorando-o, também peguei meu garfo.

O peixe parece delicioso, Sr. Kadam. Obrigada.

Ele fez um gesto com a mão, dispensando o agradecimento, inclinou-se

para frente e disse:

Que bom que chegou, Srta. Kelsey. Tenho novidades.

25

O resgate de Ren

Minha boca ficou seca enquanto eu engolia o peixe. Tossi e Kishan

deslizou um copo com água na minha direção. Bebi o líquido frio,

limpei a garganta e perguntei com nervosismo:

Que novidades?

Encontramos a tribo dos baigas e tem alguma coisa errada ali. A

tribo está localizada numa área da selva distante de outras aldeias. Mais

distante do que eles jamais estiveram nos últimos 100 anos. Mais

distante, na verdade, do que a lei permite que eles cheguem. Mas o mais

estranho é que as imagens de satélite mostram que existe tecnologia

perto deles.

Que tipo de tecnologia? - indagou Kishan.

Há alguns veículos grandes estacionados perto da aldeia e os baigas

não usam carros. Uma estrutura de tamanho considerável foi construída

próximo ao vilarejo também. É muito maior do que qualquer coisa que

os baigas tenham tradicionalmente construído. Acredito que se trate de

um complexo militar.

Ele empurrou o prato para o lado.

Relatórios mostram que também há guardas armados vigiando a

floresta. É como se estivessem defendendo a tribo de um ataque.

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Mas quem atacaria os baigas vindo da floresta? - perguntei.

Pois é. Quem? - replicou o Sr. Kadam. - Não há conflitos

acontecendo entre os baigas e qualquer outro grupo. Eles não têm

guerreiros e não possuem nada de valor aos olhos do mundo exterior.

Não existe qualquer razão para que temam um ataque. A menos que

esperem que ele venha na forma de... - ele olhou para Kishan - ...um

tigre.

Kishan grunhiu.

Parece que você de fato encontrou alguma coisa.

Mas por que os baigas? - perguntei. - Por que não manter Ren na

cidade ou num complexo militar convencional?

O Sr. Kadam pegou alguns papéis.

Acho que sei por quê. Telefonei para um amigo que é professor de

história antiga na Universidade de Bangalore. Já tivemos grandes

debates sobre os reinos da antiga índia. Ele sempre fica fascinado pelos

meus... insights. Estudou os baigas a fundo e partilhou alguns fatos

interessantes comigo. Primeiro, eles têm muito medo de espíritos do

mal e de feiticeiros. Creem que todos os eventos negativos, como

doenças, uma colheita perdida, uma morte, sejam causados por espíritos

malignos.

Ainda não entendia aonde o Sr. Kadam queria chegar, mas não o

interrompi.

Eles acreditam em magia e reverenciam seu gunia, ou curandeiro,

acima de todas as coisas. Se Lokesh tiver demonstrado algum tipo de

magia, é provável que façam qualquer coisa que ele pedir. Eles se

consideram guardiões ou zeladores das florestas. É muito possível que

Lokesh os tenha persuadido a se mudar, convencendo-os de que a

floresta estava em perigo, e que tenha colocado os guardas ali para

protegê-la. Outra coisa que ele mencionou e que achei muito

interessante é que há rumores de que o gunia dos baigas seja capaz de

controlar tigres.

O quê? - arquejei. - Como pode ser?

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Não tenho muita certeza, mas de alguma forma eles são capazes de

proteger suas aldeias contra ataques de tigres. Talvez Lokesh tenha

encontrado a verdade no mito.

O senhor acha que eles estão usando algum tipo de magia para

manter Ren lá?

Não sei, mas certamente parece que vale a pena investigar, ou

melhor, nos infiltrar.

Então o que estamos esperando? Vamos lá!

Preciso de algum tempo para elaborar um plano, Srta. Kelsey. Nosso

objetivo é tirar todos de lá vivos. Falando nisso, creio que devo

informar a vocês que meus informantes desapareceram. Os homens que

mandei investigar o escritório na cobertura do edifício mais alto de

Mumbai sumiram. Eles não entraram em contato comigo e temo o pior.

O senhor acha que estão mortos?

Eles não são do tipo que se deixa apanhar vivo - replicou ele,

sombriamente. - Não vou permitir que outros homens morram por esta

causa. A partir de agora estamos por nossa própria conta. - Ele olhou

para Kishan. - Estamos novamente em guerra com Lokesh.

Kishan cerrou o punho.

Desta vez não vamos fugir com o rabo entre as pernas.

Certamente.

Pigarreando, eu disse:

Isso é ótimo para vocês dois, mas eu não sou uma guerreira. Como

podemos vencer, sendo só nos três contra todos os homens dele?

Kishan pôs a mão sobre a minha.

Você é uma guerreira tão boa quanto qualquer um com quem eu

tenha lutado, Kells. Mais corajosa até do que muitos que conheci. Em

outras situações em que estávamos em número muito menor o Sr.

Kadam já elaborou estratégias que decidiram a batalha com facilidade.

Se há uma coisa que aprendi em meus muitos anos de vida, Srta.

Kelsey, é que o planejamento cuidadoso pode quase sempre criar um

resultado positivo.

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E não se esqueça - interveio Kishan - de que temos muitas armas à

nossa disposição.

Assim como Lokesh.

O Sr. Kadam, dando tapinhas em minha mão, disse:

Nós temos mais. Ele pegou uma foto de satélite e uma caneta vermelha e começou a

circular itens de interesse. Então me entregou um pedaço de papel e

uma caneta.

Vamos começar?

Primeiro, registramos numa coluna nossos recursos, sugerindo todas as

maneiras como cada um deles podia ser empregado. Algumas das idéias

eram tolas e outras tinham valor. Anotei tudo o que nos ocorreu, sem

saber o que poderia vir a ser conveniente.

O Sr. Kadam fez uma estrela no mapa, onde pensava que Ren poderia

ser encontrado. Ele achava que os planos mais simples eram os mais

fáceis de seguir e nosso plano era bem direto: iríamos nos infiltrar,

encontrar Ren e sair. Mesmo assim, o Sr. Kadam fez questão de analisar

o plano a partir de várias perspectivas.

Ele se preparou para todas as eventualidades. Fez dezenas de perguntas

começando com "E se": E se Kishan não puder entrar no complexo por ser um tigre? E se houver armadilhas para tigres na selva? E se houver mais soldados do que pensamos? E se não pudermos entrar pela selva? E se Ren não estiver lá? Ele elaborou um plano separado para superar cada um desses obstáculos

e ainda assim chegar a um resultado bem-sucedido. Em seguida

combinou os problemas e ajudou Kishan e eu a ensaiar em nossos

papéis. Tínhamos que lembrar como nossos papéis mudariam

dependendo dos contratempos que surgissem.

O Sr. Kadam também organizou treinamentos práticos. Tivemos que

testar os limites do Fruto Dourado e do Lenço Divino, assim como

vários movimentos complicados usando nossas armas. Ele nos fez

treinar a maior parte do dia no combate corpo a corpo e praticar várias

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técnicas simultaneamente. Quando nos liberou no primeiro dia, eu

estava exausta. Cada músculo doía, meu cérebro estava cansado e eu me

encontrava coberta de xarope de bordo e felpa de algodão - um teste

combinado do Fruto com o Lenço que deu errado.

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Depois de dizer boa-noite, subi esgotada a escada, tirei Fanindra do

braço e a coloquei em cima do travesseiro. O Sr. Kadam tinha um plano

para ela, mas ela não se movera quando ele o explicou.

Não sabíamos se ela faria alguma coisa, mas eu iria levá-la de qualquer

forma. Fanindra salvara minha vida vezes suficientes para merecer, pelo

menos, estar presente na ação. Observei suas espirais douradas se

moverem e se retorcerem até ela se acomodar numa posição circular,

com a cabeça apoiada no topo da espiral. Seus olhos cor de esmeralda

brilharam por um momento e então ficaram escuros.

Alguma coisa tremulou do lado de fora da janela. Minhas roupas de

fada! Parecia que não havia mesmo fadas por ali. As roupas ainda

pareciam íntegras, mas agora precisavam ser lavadas na máquina.

Joguei-as no cesto de roupa suja antes de entrar no chuveiro para um

banho quente. À medida que meus músculos doloridos foram

relaxando, deixei meus pensamentos se demorarem em coisas triviais,

como ponderar se deveria lavar as roupas de fada em água fria ou

quente. O chuveiro me relaxou até eu quase adormecer ali, de pé.

O Sr. Kadam nos treinou por quase uma semana antes de achar que

estávamos prontos para procurar a aldeia baiga.

Nós três nos encontrávamos ao pé de uma grande árvore na selva

escura. Passamos o Lenço Divino de mão em mão e assumimos a

aparência que tinha sido atribuída a cada um.

Pouco antes de o Sr. Kadam se transformar, ele sussurrou:

- Vocês sabem o que fazer. Boa sorte.

Enrolei o Lenço Divino em seu pescoço, dei um nó e sussurrei:

- Não se deixe apanhar numa armadilha.

Silenciosamente, ele adentrou a selva.

Kishan me abraçou e também partiu. Seus passos eram silenciosos. Logo

me vi na selva escura completamente sozinha. Preparei o arco e deslizei

Fanindra pelo braço enquanto esperava o sinal.

Um rugido alto ecoou pela selva seguido pelos gritos de vários homens.

Era o sinal que eu estava esperando. Segui entre as árvores na direção

do acampamento a pouco menos de meio quilômetro dali. Quando me

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aproximei, peguei o Fruto Dourado e murmurei instruções. Minha

tarefa era tomar as duas torres de vigilância nos limites do

acampamento e os holofotes.

As luzes primeiro. Esquadrinhei a área e reconheci os vários prédios.

Tínhamos estudado as imagens de satélite até todos nós termos o layout

memorizado. As cabanas dos baigas eram organizadas num semi-círculo

mais perto dos limites da selva, Ficavam atrás dos bunkers militares e de

um agrupamento de jipes resistentes a minas. Ou seja: seriam

extremamente difíceis de tomar.

As cabanas eram de palha e grandes o bastante para uma ou

possivelmente duas famílias morarem nela. Eu não queria atingi-las.

Elas se transformariam facilmente numa bola de fogo.

O centro de comando tinha quatro compartimentos, cada um deles do

comprimento aproximado de um semirreboque, porém duas vezes mais

alto. Eles eram agrupados em pares e feitos de algum tipo de liga

metálica. Pareciam resistentes. Duas torres de vigilância erguiam-se,

uma de cada lado do acampamento. Três guardas vigiavam a área do

topo de cada torre, enquanto dois homens montavam guarda abaixo.

Próximo à torre sul, vi um poste alto com uma grande antena

parabólica na extremidade. Contei quatro holofotes, sem incluir os dois

refletores presos às torres de vigia.

Eu deveria encontrar o gerador, mas não o vi. Talvez esteja escondido numa das cabanas baigas. Decidi que teria que eliminar as luzes uma

por uma. Ergui a mão e apontei. O calor inundou meu braço até minha

mão brilhar, vermelha, no escuro. A energia disparou numa longa

explosão branca. Primeiro um e em seguida os outros três holofotes

espocaram e explodiram quando meu raio os atingiu.

Alguém entrou num dos veículos e acendeu as luzes. O jipe roncou e

engasgou. A gasolina provavelmente havia sido absorvida pelo pão de ló

que, com a ajuda do Fruto, eu usara para encher os tanques. O sistema

elétrico, porém, ainda funcionava e faróis potentes varriam as árvores à

minha procura. Voltei meu raio em sua potência máxima para o

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veículo, porque sabia que seria difícil destruí-lo, enviando um impulso

de energia ultradenso através da palma da minha mão.

Meu raio atingiu o carro com uma explosão ensurdecedora que lançou o

veículo 10 metros no ar. Ele explodiu, tornando-se uma bola de fogo, e

despencou em cima de outro, aterrissando com um ruído agudo de

metal retorcido. Disparei contra outro; dessa vez o veículo rolou,

virando três vezes e indo parar de lado de encontro a uma árvore

imensa. Depois disso, levei apenas alguns segundos para extinguir os

outros refletores.

Em seguida eu precisava desabilitar as duas torres. Eram construções

simples, se comparadas aos outros edifícios. Quatro suportes de

madeira, um nível mais alto que o posto de comando, eram encimados

por uma estrutura semelhante a uma caixa e equipados com três

homens e um refletor. A única maneira de subir era através de uma

escada de madeira simples, provavelmente criada pelos baigas.

A essa altura soldados haviam localizado minha posição. Lanternas se

agitavam em minha direção, tentando me identificar. Disparei algumas

flechas douradas e ouvi um grunhido e um baque quando um corpo

bateu no chão. Eu precisava sair dali. Ouvi um silvo quando dardos

atravessaram os arbustos nos quais eu estava escondida. Eles devem ter instruções para nos pegar vivos. Corri na escuridão. Os olhos de Fanindra brilhavam suavemente,

proporcionando luz apenas suficiente para que eu alcançasse minha

próxima posição. Agachada atrás de um arbusto, evoquei meu poder de

raio outra vez e destruí a torre mais próxima. Ela explodiu como uma

bomba gigante de fogo que iluminou a área. Assustadas, as pessoas

corriam em todas as direções.

Segui para a outra torre, correndo abertamente em meio à multidão.

Escondi-me entre dois edifícios quando um grupo de soldados passou

correndo e eliminei alguns por trás. O Sr. Kadam gritava para as

pessoas, convocando-as e pedindo sua ajuda na batalha. Sua atitude

teatral me fez sorrir. Plantei a gada no ponto em que ele a encontraria e

prossegui.

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De volta ao trabalho. Esquivei-me pela sombra de um edifício e avaliei

a outra torre. Eu precisava destruir a antena parabólica também.

Encaixei uma flecha, então a infundi com o poder do raio e a disparei.

Ela bateu com um ruído na parabólica e chiou, estalando com

eletricidade antes de explodir. A essa altura os soldados na segunda

torre haviam deduzido que eu era seu alvo. Saltei para trás de algumas

caixas quando eles voltaram suas armas para mim. Ouvi o ruído de

vários dardos atingindo a área onde eu estivera segundos antes.

Meu coração batia forte de medo. Se eles me acertassem com um dardo

seria o meu fim. Eu não poderia ajudar Kishan nem encontrar Ren.

Ouvindo gritos de homens à minha procura, reuni coragem e encaixei

outra flecha. A flecha dourada cintilou ao luar e tremeluziu quando a

infundi com o poder do raio. Dessa vez eu estava perto demais do meu

alvo e, quando a explosão da torre sacudiu o complexo, o deslocamento

de ar me lançou para cima. Ao cair, minha cabeça bateu contra o

edifício. Pedaços pesados de madeira da torre destruída choveram e

vários dos fragmentos em chamas me atingiram quando fiquei de pé.

Com cuidado, toquei a parte posterior do meu crânio. Estava sangrando.

Um soldado saltou sobre mim. Rolamos pelo chão. Eu o soquei na altura

do estômago e me pus de pé num salto. Quando ele começou a se

levantar também, saltei em suas costas, como Ren me ensinara, e tentei

cortar sua passagem de ar. Ele lutou para se livrar de mim apenas

brevemente antes de se virar e me esmagar contra uma pedra. Bati a

cabeça com força e senti um fio molhado de sangue escorrer da têmpora

para o rosto.

Fiquei imóvel contra a pedra, arfando, exausta, tonta e sangrando. O

soldado se levantou, sorriu e estendeu as mãos para me estrangular.

Ergui a mão, estreitei os olhos para o seu rosto enegrecido de fuligem e

disparei um raio que o atingiu no peito. Ele voou alguns metros para

trás, bateu no centro de comando e deslizou para o chão numa posição

sentada, com a cabeça pendendo pesadamente sobre o peito.

Agora eu precisava encontrar Ren. Corri vacilante entre algumas

cabanas e, quando outro soldado veio atrás de mim, mergulhei para o

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lado, caí e rolei. No instante em que ele disparou um tranqüilizante,

ergui-me apoiada num joelho e o tirei da jogada com um choque rápido.

A porta do edifício principal estava guardada por dois soldados em

alerta de batalha. Quando me aproximei, eles falaram várias palavras

numa língua diferente. Assenti e um deles usou sua chave para me

deixar entrar. Livrei-me facilmente dessa vez. Eu era um rosto familiar

e eles não tinham me visto em ação.

Passei por eles e entrei em silêncio. A porta se fechou atrás de mim e se

trancou automaticamente. Ignorei o problema, calculando que abriria

caminho com um raio mais tarde. Minha cabeça latejava na têmpora,

mas, fora isso, eu dera sorte. Tinha vários arranhões e cortes feios nos

braços e nas pernas, uma pancada séria na cabeça e devia estar com

machucados no corpo todo, porém nada que ameaçasse minha vida.

Esperava que o Sr. Kadam e Kishan estivessem se saindo tão bem

quanto eu.

O interior do centro de comando estava escuro. Eu me encontrava

numa área de armazenamento cheia de caixas e suprimentos. Passei

furtivamente pela outra seção e encontrei as barracas para os soldados.

Estranho foi quando dobrei uma esquina e encontrei a pessoa que eu

estava personificando. A expressão perplexa logo mudou quando

ataquei. Uma breve explosão de luz iluminou a sala e a criatura caiu no

chão.

Apesar de o edifício ser pouco mobiliado, eu tropeçava em caixas no

escuro enquanto verificava sala após sala. Finalmente os olhos verdes de

Fanindra brilharam de modo que eu pudesse ver o ambiente com mais

clareza. A área foi iluminada com a luz de sua visão noturna especial e

eu pude distinguir praticamente tudo. Ouvi Lokesh e Kishan em outra

sala. A situação ali estava se tornando mais tensa. O tempo se esgotava.

Segundo nossos treinamentos, a essa altura eu já deveria ter encontrado

Ren.

Se eu houvesse desativado o gerador, poderia ter poupado tempo; mas,

em vez disso, tive que destruir as luzes uma por uma e lutar contra mais

soldados do que esperara. O plano teria que ser modificado. Eu

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precisava chegar a Kishan primeiro. Felizmente o Sr. Kadam havia nos

preparado para essa eventualidade. Com relutância, abandonei minha

procura por Ren e fui em busca de Kishan.

Segui para os fundos do centro de comando e escalei várias caixas até

me encontrar empoleirada no alto. Era uma sala grande, parecendo um

armazém. Prateleiras de metal guardavam armas e suprimentos de todos

os tipos. Uma pilha de corpos de soldados indicava que Kishan tivera

sucesso em tirar de atividade os guardas de Lokesh. Agora, porém,

Lokesh o havia encurralado em seu escritório particular.

Era luxuoso para os padrões militares. Um tapete espesso cobria o chão.

Uma mesa imponente encontrava-se a um canto e numa das paredes

vários monitores de TV exibiam flashes de cenas do caos que acontecia

do lado de fora do complexo. Em outra parede viam-se muitos

equipamentos e dispositivos eletrônicos. Parecia o interior de um

submarino. A parede era coberta com interruptores e monitores. Várias

luzes vermelhas piscavam em silêncio e imaginei que fossem alarmes de

algum tipo.

Três lâmpadas penduradas zumbiam acima, tremeluzindo de vez em

quando, como se o complexo estivesse perdendo sua força. Uma caixa

de vidro perto da mesa continha várias armas reluzentes, representando

cada era de batalha. Kishan estava desempenhando bem seu papel.

Encaixei uma flecha e esperei que ele recuasse um pouco para que eu

tivesse uma boa chance de tiro. Arrogante e excessivamente confiante,

Lokesh prosseguia, tentando intimidar Kishan a fazer o que ele queria.

Lokesh não estava usando farda como seus soldados. Vestia um terno

preto e uma camisa de seda azul. Parecia mais jovem que o Sr. Kadam,

mas seus cabelos estavam ficando grisalhos nas têmporas e estavam

penteados para trás, lustrosos, num estilo de chefão da máfia moderno.

Notei outra vez que ele usava anéis em cada dedo e que os girava

casualmente enquanto falava. Um comentário odioso chamou minha

atenção.

- Posso dilacerar você com uma simples palavra, mas gosto de ver as

pessoas sofrerem. E ter você aqui é um presente especial que venho

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esperando por muito, muito tempo. Não posso imaginar o que estava

tentando fazer. Você não tem a menor chance de vencer. Mas devo

dizer que estou impressionado com a maneira como enfrentou meus

guardas especiais. Eles eram altamente treinados.

Kishan sorriu maliciosamente enquanto rodavam em círculos.

- Não o bastante.

- É. - Lokesh riu. - Talvez eu pudesse convencer você a trabalhar para

mim. Você tem muitos talentos e eu sou um homem que recompensa

bem aqueles que me servem. Naturalmente, também devo avisar que

aplico punições mortais àqueles que me desafiam.

- Não estou procurando emprego neste momento e alguma coisa me diz

que o nível de satisfação entre seus empregados é muito baixo.

Kishan correu para cima de Lokesh, girou no ar e lhe acertou um chute

bem no meio da cara.

Lokesh cuspiu sangue. Ele sorriu quando uma linha carmesim escorreu

de sua boca. Limpando-a com um dedo, ele o esfregou no lábio inferior,

lambeu e deu uma gargalhada. Parecia gostar da dor. Estremeci de

repulsa.

- Isso tudo está muito divertido - continuou ele -, mas já chega dessa

brincadeira. Você tem um amuleto e eu tenho o poder dos outros três.

Me dê o seu e depois pode pegar o tigre e ir embora. Não que eu vá

deixar vocês irem longe, porém vou lhes dar uma chance assim mesmo.

Isso vai tornar a caçada muito mais divertida.

- Acho que vou embora com o tigre e o amuleto. E, aproveitando, acho

que vou matá-lo e pegar o seu também.

Lokesh deu uma risada ensandecida.

- Você vai me dar o que eu quero. Na verdade, logo vai se arrepender de

ter desdenhado de minha oferta generosa. Em questão de instantes você

vai me oferecer tudo o que eu quiser só para cessar a dor.

- Se você quer tanto assim o amuleto, então por que não vem aqui pegá-

-lo? Vamos ver se luta tão bem quanto faz ameaças. Ou será que agora

deixa a luta para outras pessoas... seu velho?

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O sorriso desapareceu da boca de Lokesh e ele ergueu as mãos. A

eletricidade faiscava entre seus dedos.

Kishan saltou de novo na direção de Lokesh, no entanto foi detido por

uma barreira invisível. Lokesh começou a murmurar encantamentos,

abriu as mãos e levantou os braços. Objetos soltos na sala se ergueram

no ar e começaram a rodopiar num redemoinho, movendo-se cada vez

mais rápido. Lokesh lentamente juntou as mãos e o redemoinho se

aproximou de Kishan. Os objetos giravam em torno dele e começaram a

atingi-lo. Uma tesoura abriu um talho em sua testa, mas ele começou a

cicatrizar imediatamente.

Lokesh viu a ferida se fechar e fitou o amuleto com cobiça.

- Me dê o amuleto! É meu destino unir todas as partes!

Kishan começou a agarrar os itens maiores e esmagá-los entre a palma

das mãos.

- Por que você não tenta tirá-lo do meu cadáver? - gritou ele.

Lokesh riu, um som terrível de puro deleite.

- Como quiser.

Ele bateu as mãos e as esfregou uma na outra. O chão começou a

tremer. As caixas onde eu me encontrava oscilaram precariamente.

Kishan havia caído no chão e estava sendo bombardeado por uma

tempestade de objetos, como grampeadores, tesouras e canetas, assim

como itens maiores, como gavetas de arquivo soltas, livros e monitores

de computador.

Eu tremia de pavor. Aquele homem me aterrorizava mais do que

qualquer coisa que eu já houvesse enfrentado. Eu preferia correr de

uma horda de kappa a olhar nos olhos dele. O mal escoava dele em

ondas, enegrecia tudo ao seu redor. Sua escuridão me sufocava. Embora

ele ainda não tivesse consciência da minha presença, eu tinha a

sensação de que dedos negros e nevoentos abriam caminho em minha

direção, me procurando para me estrangular e arrancar a vida do meu

corpo.

Ergui minha mão trêmula e disparei um raio. Eu o errei por uns 30

centímetros e ele estava tão concentrado em Kishan que nem viu o

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traço de luz passar atrás dele. Mas percebeu o impacto em seu

mostruário de armas e provavelmente deduziu que era uma

conseqüência do terremoto que ele havia causado. O vidro explodiu. Os

cacos passaram a fazer parte do redemoinho e começaram a cortar

Kishan. Logo juntou-se a eles um bombardeio letal de armas. Lokesh ria

de prazer enquanto via Kishan ser rasgado por cacos de vidro e em

seguida se curar. Um pedaço grande entrou em seu braço e ele o

arrancou. O sangue jorrou e se juntou ao redemoinho.

Eu estava morta de medo. Minhas mãos tremiam. Eu posso fazer isso! Tenho que firmar a mão! Kishan precisa de mim! Ergui a flecha e mirei

no coração de Lokesh.

Enquanto isso, ouvia as pessoas gritando lá fora. Deduzi que eram os

aldeões e que as coisas estavam correndo de acordo com o planejado. Se

não, Kishan e eu logo estaríamos numa situação ainda mais crítica. Ouvi

uma pancada fortíssima e sorri aliviada. Eu sabia que era o Sr. Kadam.

Nada, além da gada, poderia provocar um ruído como aquele. O edifício

se sacudiu em suas fundações. O tempo era um fator decisivo. Se eles

estavam atacando o edifício, isso significava que todos os soldados

haviam sido cercados e dominados. O Sr. Kadam era de fato eficiente.

Ou isso ou Lokesh havia abusado desse pobre povo o suficiente e eles já

se encontravam à beira da rebelião.

Disparei minha flecha direto no coração de Lokesh, mas ele se virou no

último segundo, quando finalmente ouviu a pancada da gada, e a flecha

cravou-se fundo em seu ombro. O redemoinho que cercava Kishan de

repente parou e todos os itens despencaram no chão numa chuva

traiçoeira. Um pesado cofre de metal caiu no pé de Kishan; ele grunhiu

e empurrou o volumoso objeto. Eu tinha certeza de que seu pé estava

quebrado.

Lokesh se virou com fúria e me encontrou. A eletricidade disparava de

seus dedos e sua respiração congelou o ar, enviando uma rajada gelada

em minha direção. Fiquei paralisada e senti o sangue se tornar denso,

congelando em meu corpo. Arfei, mais aterrorizada do que jamais

estivera em toda a minha vida.

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- Você!

Seu grito me deu arrepios. Cuspindo ameaças no que ele presumia que

fosse a minha língua, arrancou a flecha ensangüentada e começou a

cantar de forma monótona. A flecha de repente veio voando em minha

direção. Num movimento inconsciente de auto-preservação, meu fogo

interno me aqueceu o suficiente para que eu pudesse me mexer. Minhas

mãos se ergueram para cobrir o rosto, mas a flecha parou em pleno ar, a

centímetros do meu nariz. Estendi a mão e ela caiu devagar em minha

palma. Frustrado, Lokesh bateu as mãos e esfregou-as malevolamente

para fazer oscilar a caixa sobre a qual eu me encontrava. Desabei no

chão, batendo em várias quinas afiadas no caminho. Gemi e tirei as

caixas de cima de mim. Meu tornozelo estava torcido e preso debaixo

de uma caixa e meu ombro estava seriamente machucado.

Kishan pegou o chakram, que estivera escondido sob a camisa, e o

atirou na direção das luzes no teto. A sala mergulhou na escuridão

quando ouvi o zumbido metálico da arma atravessando o ar. Ele lançou

o chakram mais algumas vezes, mas não conseguia atingir Lokesh com

ela pois ventos súbitos açoitavam o ar, fazendo o disco mudar de

direção. Arrastei-me com dificuldade até um novo esconderijo. Kishan

pegou o chakram e saltou sobre Lokesh. Os dois caíram no chão numa

luta vigorosa.

Lokesh gritou, chamando seus soldados; sua voz era alta e parecia ser

carregada pelo vento para o acampamento lá fora. Eu podia ouvi-la

amplificada, como se ele estivesse falando num microfone, mas os seus

soldados estavam todos presos agora. Ninguém veio em seu socorro. Os

dois rolaram em minha direção. Lokesh murmurou algumas palavras

até que um colchão de ar surgiu como uma bolha entre os dois,

lançando Kishan para trás e permitindo que Lokesh pudesse se pôr de

pé novamente.

Levantei-me e ergui a mão. Meu braço inteiro tremia enquanto eu

tentava reunir coragem. O fogo não vinha. Eu me sentia fria por dentro,

como se o fogo dentro de mim houvesse sido abafado. Lokesh virou a

cabeça instantaneamente quando viu meu gesto. Ele riu diante de meu

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esforço patético e recomeçou a murmurar. Fiquei rígida. Não conseguia

me mover. Uma lágrima rolou pelo meu rosto e se congelou.

Kishan aproveitou a distração de Lokesh e agarrou-lhe o braço,

girando-o para trás das costas. Num instante tinha o chakram

pressionado na garganta de Lokesh. A lâmina reluzente entrou na carne

macia, liberando fios de sangue que fluíram pela arma e pingaram na

camisa de seda azul de Lokesh.

Lokesh grunhiu e murmurou baixinho:

- Você quer que ele morra? Posso matá-lo num instante. Posso congelar

o sangue dele para que o coração pare de bater.

Kishan olhou para mim e se deteve. Ele poderia ter decapitado Lokesh

com um leve movimento do pulso, mas parou e eu vi as emoções

cruzarem seu rosto. Ele se conteve por minha causa. Lokesh deu uma

risada áspera, respirando pesadamente em seu esforço. Um baque

profundo sacudiu as paredes enquanto o Sr. Kadam e os aldeões

continuavam a bater no edifício, tentando derrubá-lo.

Lokesh tornou a ameaçar:

- Se não me soltar, eu vou matá-lo. Decida agora!

O brilho da ira ardia em seus olhos, um fogo latente que não podia ser

extinto.

Kishan o soltou. Gemi por dentro, pois não podia me mover. Tínhamos

quase vencido. Agora estávamos à mercê de um monstro.

Lokesh logo tornou a murmurar e Kishan se viu preso no mesmo

controle imobilizante que eu. Lokesh se ajeitou e cerimoniosamente

espanou o pó das lapelas do paletó. Pressionou um lenço branco limpo

na garganta, que sangrava. Então riu, aproximou-se de Kishan e deu-lhe

tapinhas carinhosos no rosto.

- Aí está. É sempre melhor cooperar, não é? Está vendo quanto é inútil

você me enfrentar? Talvez eu tenha subestimado você um pouco.

Certamente você acaba de me proporcionar a melhor luta que tive em

séculos. Vou aguardar ansioso o desafio de dobrar seu espírito.

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Ele tirou uma faca muito antiga e de aspecto maligno do bolso interno

do paletó e a agitou quase amorosamente diante do rosto de Kishan.

Aproximou-se e correu-lhe o lado cego pela bochecha.

- Esta lâmina é a mesma que usei há muitos anos em seu príncipe. Está

vendo como a mantive em excelentes condições durante todos esses

anos? Você poderia me chamar de velho tolo e sentimental. Eu esperava

secretamente vir a usá-la outra vez e terminar o que comecei muitos

anos atrás. Não é bem apropriado que eu a use em você também? Talvez

tenha sido poupada exatamente para esse propósito.

Ele fez uma pausa breve antes de continuar:

- Bem, por onde devo começar? Uma bela cicatriz deixaria seu rosto um

pouco menos atraente, não é? Naturalmente, terei que tirar o amuleto

primeiro. Eu vi como ele consegue curar. Esperei tanto tempo por essa

parte. Você não faz idéia de quanto ansiei por sentir o poder que ela

possui. E triste saber que você não estará por aqui para apreciar o que

fará por mim.

Ele ficou brevemente amuado.

- É uma pena que eu não tenha tempo para uma cirurgiazinha

experimental. Eu adoraria lhe dar umas lições de disciplina. A única

coisa que iria me proporcionar mais prazer que correr minha faca na

sua pele seria desfigurar você diante do seu príncipe. Ainda assim, ele

irá apreciar a minha obra.

Eu estava com medo. Se já não estivesse congelada, teria ficado

paralisada de pavor. Não importava quanto eu estivesse preparada.

Lutar contra alguém verdadeiramente maligno não era uma coisa fácil.

As aves, os macacos e os kappa estavam todos apenas cumprindo sua

missão. Eles protegiam os presentes mágicos e eu aceitava isso. Mas

encarar Lokesh e vê-lo brandir aquela faca contra a garganta de Kishan

era terrível demais.

Eu me desliguei quando ele começou a falar em desmembrar Kishan

pedaço a pedaço. Era nauseante. Se eu pudesse, teria vomitado. Eu

simplesmente não podia conceber alguém tão cruel. Queria ter podido

cobrir meus ouvidos. Meu pobre Ren fora torturado por esse demônio

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psicopata durante meses. Meu coração se encolheu com esse

pensamento.

Lokesh tinha a persona traiçoeira do Imperador Palpatine misturada à

crueldade sádica de Hannibal Lecter. Ele desejava o poder a qualquer

preço, como Lorde Voldemort, e exibia a brutalidade de Ming, o

Impiedoso, que, como ele, havia matado a própria filha. Meu corpo

tremia. Eu não podia vê- -lo machucar Kishan. Não suportaria isso.

Ele agarrou o queixo de Kishan e estava prestes a cortar-lhe o rosto

quando percebi que, mesmo que eu não pudesse me mover, o Fruto

Dourado ainda faria seu trabalho. Pedi a primeira coisa que me passou

pela cabeça: balas duras. E balas duras eu recebi. Uma tempestade delas.

Quebraram monitores e uma das janelas. O estrondo que provocavam

golpeava meus tímpanos enquanto caíam dentro do centro de comando.

Pareciam milhares de bolas de gude despencavam num lago de vidro e

tudo se estilhaçava e quebrava à nossa volta. Kishan e eu oscilamos e

caímos, bombardeados por uma rajada do doce duro. Foi a mochila que

me salvou de quebrar o pescoço. Tinha certeza de que Kishan havia se

machucado outra vez. Felizmente ele sarava com rapidez. Eu me

sentiria grata se ao menos um de nós saísse dessa vivo.

Em pouco tempo cada centímetro do chão estava coberto por uma

camada de uns 30 centímetros das balas. Lokesh foi atingido com força

suficiente para perder o equilíbrio e cair. Ele disparou vários palavrões

em sua língua enquanto tentava se recuperar e descobrir de onde vinha

aquela tempestade. Então deu-se conta de que a faca havia desaparecido

e começou a vasculhar em meio às balas para encontrá-la. Kishan e eu,

a essa altura, estávamos quase enterrados.

O edifício se sacudiu mais uma vez e uma parte da parede desmoronou

perto de nós. Lokesh conseguiu se levantar com dificuldade depois de

encontrar a faca. Ele agarrou o amuleto em torno do pescoço de Kishan

e o puxou até a corrente se partir, deixando um vergão vermelho na

pele.

Lokesh se debruçou sobre Kishan brevemente e tocou o rosto dele com

a faca.

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- Vamos nos encontrar de novo - ele sorria horrivelmente - em breve.

Lokesh deslizou a faca da bochecha de Kishan até a garganta, traçando

uma trilha de sangue que deixaria uma horrível cicatriz, mas não

mataria. Então, com um ruído doloroso, Lokesh se afastou, caminhando

com dificuldade em meio às balas até um botão escondido na parede.

Um painel se abriu e ele desapareceu.

Alguns aldeões acompanharam o Sr. Kadam até o escritório e correram

para nos ajudar a levantar. O corte de Kishan já ia se fechando, mas sua

camisa estava suja de sangue. O talho havia sido profundo. Ouvi o

ronco de um motor e um ruído rascante quando um veículo arrancou

de sob o edifício e saiu em disparada pela estrada de terra que partia da

aldeia. Eu poderia ter usado o Fruto Dourado para parar o motor, mas

optei por não fazê-lo.

Eu me sentia envergonhada, mas não queria enfrentá-lo outra vez. Eu

queria que ele fugisse. Esperava não vê-lo nunca mais. Fiquei ali,

imóvel, me repreendendo por ser tão covarde. Eu era fraca. Se pudesse

me mover, teria ido choramingar no canto da sala, me escondendo.

Lokesh era poderoso demais. Não conseguiríamos vencer.

O melhor que poderíamos desejar seria evitá-lo. Eu sabia que Kishan e

o Sr. Kadam ficariam decepcionados comigo. Grande guerreira! Pássaros

de ferro gigantes? Sem problema. Kappa? Eu tinha Fanindra e Ren.

Macacos? Algumas mordidas e machucados não me matariam. Mas

Lokesh? Eu me acovardei e fugi diante do inimigo. Queria poder

entender por que estava reagindo dessa forma. Ele era um monstro. Só

mais um para enfrentar. Mas esse monstro tinha um rosto humano. De

alguma forma, isso parecia pior.

Após algum tempo, o feitiço que Lokesh havia usado em Kishan e em

mim desapareceu. Tentamos acordar nossos membros dormentes,

esfregando-os. Quando Kishan havia se recuperado suficientemente,

abriu caminho através das balas duras para me ajudar. O Sr. Kadam

dava instruções aos aldeões enquanto Kishan me apoiava, por causa de

meu tornozelo torcido, e me ajudava a procurar Ren. Fanindra decidiu

despertar e ajudar na busca. Ela se moveu e cresceu.

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Baixei o braço para que ela escorregasse para o chão e a cobra abriu

caminho entre caixas de armas e sacolas de suprimentos. De repente se

deteve e experimentou o ar com a língua, perto de uma área que parecia

um beco sem saída. Suavemente, ela deslizou sob algumas caixas e

Kishan as inspecionou mais de perto. Descobriu que eram uma

arrumação falsa e tirou-as do caminho. Atrás, havia uma porta trancada.

Tivemos tempo apenas de ver a cauda dourada de Fanindra

desaparecendo por baixo. Kishan tentou forçá-la.

Acabei empregando meu poder do raio para explodir a fechadura,

depois de vários segundos desenvolvendo a capacidade de usá-lo

novamente. Pensar em Ren ainda sofrendo foi o que finalmente me fez

vencer meu congelamento interno.

A porta se abriu e as narinas de Kishan se dilataram. Lá dentro o cheiro

doce e abafado de sangue e suor humano permeava tudo. Eu sabia onde

estava. Já estivera ali. Era a câmara onde Lokesh havia torturado Ren.

Instrumentos terríveis pendiam das paredes e encontravam-se dispostos

sobre mesas cirúrgicas reluzentes. Fiquei paralisada de horror ao olhar

todas aquelas coisas e imaginar a dor que Lokesh havia imposto ao

homem que eu amava.

Instrumentos cirúrgicos modernos espalhavam-se sobre bandejas, ao

passo que itens mais antigos empilhavam-se nos cantos e pendiam de

ganchos. Não pude me conter. Estendi a mão e toquei as extremidades

gastas de um chicote. Em seguida esfreguei o cabo de um grande malho

e comecei a tremer ao imaginá-lo quebrando os ossos de Ren. Várias

facas, de diferentes comprimentos e larguras, pendiam enfileiradas.

Vi madeira, parafusos, pregos, alicates, picadores de gelo, tiras de couro,

uma focinheira de ferro, uma furadeira moderna, colares com pregos,

um torno que poderia ser usado para esmagar qualquer membro que

fosse ali colocado e até mesmo um maçarico. Eu tocava os itens

brevemente ao passar e chorava com amargura. De alguma forma, tocá-

los era a única coisa que eu podia fazer para tentar compreender como

essa experiência devia ter sido para ele.

Kishan pegou meu braço com delicadeza.

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- Não olhe para isso, Kelsey. Olhe apenas para mim ou mantenha os

olhos voltados para o chão. Você não precisa fazer isso. Seria melhor

esperar lá fora.

- Não. Tenho que estar aqui, por ele. Preciso fazer isso.

- Então fique ao meu lado.

A jaula de Ren ficava no canto mais distante e eu mal pude distinguir

uma forma subjugada lá dentro e uma cobra reluzente enrascada perto

dela. Depois de recolher Fanindra e lhe agradecer, recuei e explodi o

cadeado. Então me aproximei e abri a porta.

- Ren? - chamei suavemente.

Ele não respondeu.

- Ren? Você está... acordado?

A forma se moveu ligeiramente e um rosto pálido e abatido se voltou

para mim. Seus olhos azuis se estreitaram. Ele olhou para Kishan. Seus

olhos se arregalaram e ele se aproximou da abertura. Kishan o chamou

com um gesto e ofereceu a mão para ajudar.

Cauteloso, ele estendeu a mão trêmula para agarrar a grade na

extremidade da jaula. Seus dedos haviam sido quebrados recentemente

e estavam ensangüentados. Meus olhos se encheram de lágrimas e

minha visão se turvou enquanto eu recuava para lhe dar passagem.

Kishan deu um passo à frente para ajudá-lo. Quando Ren enfim se

levantou, eu arquejei. Ele fora espancado não tinha muito tempo. Eu já

esperava por isso. Seus ferimentos estavam cicatrizando.

O que me chocou foi o fato de ele estar tão esquelético. Lokesh estava

matando Ren de fome. Provavelmente também estava desidratado. Seu

corpo forte estava magro, muito mais do que eu imaginaria que ele

poderia ficar. Os olhos azuis brilhantes estavam circundados por

depressões escuras. As maçãs do rosto estavam salientes e o cabelo

escuro e sedoso pendia pegajoso e sem vida. Ele deu um passo em

minha direção.

- Ren? - eu disse e lhe estendi a mão.

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Ele estreitou os olhos, cerrou o punho e o brandiu com uma explosão de

energia que eu não esperava que ele ainda tivesse. Senti uma dor aguda

no maxilar e depois mais nada, enquanto meu corpo tombava no chão.

26

Baigas

Percebi movimento e acordei, abrindo os olhos para um dossel verde-

escuro. Kishan me carregava pela selva. Ele tinha novamente sua

verdadeira aparência, o que, devo admitir, era um alívio. Eu não me

sentira confortável vendo-o em seu disfarce.

- Kishan? Aonde estamos indo?

- Shh. Relaxe. Estamos seguindo os baigas selva adentro. Temos que ir

para o mais longe possível do acampamento.

- Quanto tempo fiquei desacordada?

- Umas três horas. Como está se sentindo?

Toquei levemente o maxilar.

- Como se um urso tivesse me dado um soco. Ele está... bem?

- Está desorientado. Os baigas o carregam numa maca improvisada.

- Mas ele está bem?

- Relativamente bem.

Ele falou baixinho em outra língua com o Sr. Kadam, que se aproximou

para examinar meu rosto e levar um cantil aos meus lábios. Bebi

devagar, engolindo dolorosamente, enquanto movia o maxilar o

mínimo possível.

- Você pode me pôr no chão, Kishan? Acho que posso andar.

- Está bem. Apoie-se em mim se precisar.

Ele baixou com cuidado minhas pernas até o chão e me firmou quando

oscilei, tentando recuperar o equilíbrio. Manquei um pouco com meu

tornozelo torcido, mas Kishan resmungou e logo me pegou no colo

outra vez. Recostei-me em seu peito e senti meu corpo inteiro doer.

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Escoriações me cobriam quase por completo e eu mal conseguia mover

o maxilar.

Éramos parte de uma longa procissão. Os baigas avançavam silenciosa e

sinuosamente entre as árvores. Eu nem conseguia ouvir seus passos.

Dezenas de pessoas passavam e assentiam numa demonstração de

respeito ao nos contornarem. Nem as mulheres nem as crianças faziam

barulho. Eles não emitiam um só sussurro, enquanto se moviam como

fantasmas através da selva escura.

Quatro homens grandes carregavam uma maca com uma forma

prostrada. Quando passaram por nós, estiquei o pescoço para poder vê-

lo. Kishan ajustou o passo atrás deles para que eu pudesse ver a forma

inerte de Ren. Ele me endireitou facilmente e me abraçou um pouco

mais forte, me apertando contra seu peito com uma expressão

indecifrável.

Andamos por mais uma hora. Ren dormiu o tempo todo. Quando

chegamos a uma clareira, um baiga idoso se aproximou do Sr. Kadam e

humildemente prostrou-se diante dele. O Sr. Kadam voltou-se para nós

e disse que os baigas acampariam para passar a noite. Fomos convidados

para seus festejos comemorativos.

Imaginei se não seria melhor nós continuarmos em direção ao nosso

ponto de encontro, mas decidi seguir a liderança do Sr. Kadam. Ele era

o estrategista militar e, se pensava que era seguro, provavelmente era.

Na verdade, era reconfortante deixar alguém assumir o comando.

Também não faria mal deixar Ren dormir um pouco mais antes de

prosseguirmos.

Ficamos observando os baigas montarem acampamento. Eles eram

extremamente eficientes, mas estavam sem a maior parte de seus

suprimentos. O Sr. Kadam teve pena deles e usou o Lenço Divino para

criar acomodações para cada família. Minha atenção se desviou para

Ren. Os homens o carregaram para uma tenda no momento em que o

Sr. Kadam me chamou.

Kishan, vendo-me aflita, disse que iria ver como Ren estava. Colocou-

me com cuidado perto do Sr. Kadam e então seguiu na direção da tenda.

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Ele insistiu que seria melhor que eu ficasse com o Sr. Kadam, mas não

explicou por quê.

Quando ele se afastou, o Sr. Kadam perguntou se eu usaria o Fruto

Dourado para criar um banquete para os baigas. Eles precisavam ser

alimentados. Vários estavam passando fome também. Lokesh os

obrigara a permanecer no acampamento e usar sua magia para manter

Ren contido. Eles não caçavam havia muito tempo. O Sr. Kadam me

deu instruções e então usou o Lenço Divino para criar um tapete

espesso em que toda a tribo pudesse se sentar.

Tirei o Fruto Dourado da mochila e comecei a criar os pratos que ele

pedira. Arroz com cogumelos, manga picada misturada a outras frutas

locais, cujos nomes eu esperava ter pronunciado corretamente, peixe

assado, salada verde, legumes grelhados e, como extra, acrescentei uma

torta gigante de morango com recheio de creme bavaroise e chantili,

como a que havíamos comido em Shangri-lá. O Sr. Kadam ergueu uma

sobrancelha, mas não disse nada.

Ele convidou os baigas a se sentarem e a compartilhar do banquete.

Kishan logo voltou e sentou-se ao meu lado. Ele sussurrou que os baigas

estavam cuidando bem de Ren. Enquanto todos se acomodavam, tentei

pedir licença para ficar com Ren. Quando me levantei, Kishan segurou

meu braço com firmeza, sussurrou que eu deveria ficar perto do Sr.

Kadam e enfatizou novamente que Ren ficaria bem. Ele parecia estar

dizendo a verdade, portanto fiquei. O Sr. Kadam começou a falar na

língua deles. Esperei pacientemente que terminasse seu discurso e

continuei olhando na direção das tendas, esperando ter um vislumbre

de Ren.

Quando o Sr. Kadam terminou, duas jovens baigas percorreram o

perímetro do círculo, lavando as mãos de cada pessoa com água de flor

de laranjeira. Quando já haviam lavado as mãos de todos, imensas

tigelas de comida passaram de mão em mão. Não havia pratos ou

utensílios. O Fruto Dourado poderia tê-los criado, mas o Sr. Kadam

queria o banquete à moda dos baigas. Pegamos alguns punhados,

comemos e então passamos a vasilha para a próxima pessoa. Eu não

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estava com muita fome, mas Kishan não iria pegar a tigela até que eu

tivesse comido pelo menos um punhado de cada tipo de comida.

Quando a comida completou o círculo e todos já haviam se servido de

uma porção, as tigelas correram o círculo novamente. Esse processo

continuou até toda a comida acabar. Usei meu cantil para limpar as

mãos e tentei ter paciência quando os baigas passaram ao ritual

seguinte. Quando sussurrei para Kishan que o fator tempo era crucial,

ele disse que tínhamos o bastante e que Ren precisaria de algumas horas

para se recuperar.

Os baigas começaram a celebrar de fato. Surgiram instrumentos

musicais. Eles cantaram e dançaram. Duas mulheres se aproximaram de

mim com tigelas de um líquido preto e falaram. O Sr. Kadam traduziu:

- Elas estão perguntando se você gostaria de fazer uma tatuagem em co-

memoração à vitória de seu marido sobre o maligno.

- Com quem eles acham que sou casada?

O Sr. Kadam corou.

- Eles acreditam que você seja minha mulher.

- Eles não acham que sou um pouco jovem para o senhor?

- E uma prática normal na tribo mulheres muito jovens se casarem com

homens mais velhos e mais sábios. Eles a viram usar o Fruto Dourado e

acreditam que você seja uma deusa, minha companheira.

- Entendi. Bem, agradeça-lhes por mim, mas vou me lembrar muito bem

dessa vitória sem ajuda. Só por curiosidade, o que, ou quem, eles acham

que Kishan é?

- Acreditam que ele seja nosso filho e que viemos aqui para resgatar

nosso outro filho.

- Então eles acham que tenho dois filhos adultos?

- As deusas podem permanecer jovens e bonitas para sempre.

- Quem dera.

- Mostre-lhes sua mão, Srta. Kelsey.

- Minha mão?

- A que tem o desenho de hena. Faça-a brilhar para que eles possam ver

as marcas.

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Ergui a mão e evoquei meu poder de raio. Minha mão brilhou,

iluminada por dentro. A pele se tornou translúcida e o desenho de hena

apareceu - vermelho num fundo branco.

O Sr. Kadam falou algo breve com as duas mulheres e felizmente elas

fizeram uma reverência e me deixaram em paz.

- O que o senhor disse a elas?

- Eu lhes disse que já havia lhe dado uma tatuagem de fogo para que se

lembrasse do episódio. Elas acreditam que a tatuagem deixa a mulher

mais bonita. Não teriam compreendido se eu tivesse dito que não queria

que sua pele fosse tatuada. Todos os homens baigas desejam uma esposa

com tatuagens intrincadas.

Os baigas dançavam e celebravam. Um dos homens era um engolidor de

fogo. Assisti ao espetáculo, impressionada com sua habilidade, mas

estava com dor e exausta. Encostei-me em Kishan, que me abraçou, me

dando apoio. Devo ter dormido um pouco, pois quando acordei o

engolidor de fogo havia encerrado sua exibição. Todos observavam um

movimento nas tendas. Fiquei imediatamente alerta. Ren surgiu,

acompanhado por um baiga de cada lado. Eles haviam banhado seus

ferimentos e ele vestia uma saia de linho enrolada no corpo, deixando o

peito nu.

Ren mancava, mas parecia muito melhor. Embora ainda graves, seus

ferimentos estavam se recuperando. Alguém havia lavado seus cabelos e

os penteado para trás. Seus olhos abarcaram o cenário à sua volta e

pousaram em nós três. Rapidamente seu olhar passou pelo Sr. Kadam e

por mim, indo se fixar em Kishan. Um sorriso torto iluminou o rosto de

Ren quando ele se aproximou de Kishan, que se levantou para

cumprimentá-lo e oferecer apoio.

Meu coração começou a bater loucamente. Ren abraçou o irmão,

batendo de leve em suas costas.

- Obrigado por me salvar e me mandar a comida. Ainda não pude comer

muito, mas me sinto... bem. Ou, pelo menos, melhor.

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Ren sentou-se perto de Kishan e começou a falar em sua língua nativa.

Tentei fazer contato visual, mas ele não parecia interessado em falar

comigo.

Por fim, limpei a garganta e perguntei:

- Quer comer mais alguma coisa?

Seus olhos se dirigiram brevemente a mim.

- Agora não, obrigado - ele disse com educação e se voltou para Kishan.

O Sr. Kadam deu tapinhas em minha mão enquanto o gunia dos baigas

se aproximava. Ele se ajoelhou diante do Sr. Kadam e falou

rapidamente. Então se pôs de pé e bateu palmas. Um baiga se ajoelhou

diante de Ren e curvou-se até o chão. Era o mesmo homem que eu vira

em minha visão do Lenço, o homem que havia machucado Ren. Ren

estreitou os olhos para o homem, que logo baixou o olhar, disse várias

palavras e puxou uma faca da camisa.

O Sr. Kadam traduziu:

- Por favor, me perdoe, nobre cavalheiro. Lutei contra o demônio o máximo que pude, mas ele machucou minha família. Minha mulher e meus filhos estão mortos. Nada me restou. A menos que o senhor restaure minha honra, vou deixar a tribo e morrer sozinho na selva. Estendendo uma das mãos, o homem cuidadosamente desfez seu coque.

O cabelo negro e comprido caiu do alto de sua cabeça, amontoando-se

em seu colo. Com mais duas palavras, ele moveu a faca para cima,

através dos cordões que prendiam o cabelo, tosquiando seu longo e

bonito rabo de cavalo. Então apanhou com reverência o cabelo cortado,

curvou a cabeça até o chão e, com as mãos abertas, ofereceu-o a Ren.

Ren olhou para o homem por muito tempo, assentiu e estendeu as

mãos, as palmas para cima, a fim de aceitar o cabelo cortado. Em

seguida disse algumas palavras, as quais o Sr. Kadam traduziu para mim

mais uma vez:

- Eu aceito sua oferta. Nós todos sofremos nas mãos do demônio. Nós iremos puni-lo pelos crimes cometidos, inclusive pelo ato imperdoável de destituí-lo de sua família. Suas ações contra mim estão perdoadas. Eu devolvo sua honra. Siga com sua tribo e encontre a paz.

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O homem depositou o cabelo nas mãos de Ren e se afastou. Em seguida

o gunia mandou trazer duas bonitas moças baigas diante de nós. Elas se

ajoelharam diante de Ren e Kishan. Suas mãos delicadas permaneceram

em seu colo enquanto elas olhavam com recato para o chão.

As mulheres tinham lindos cabelos pretos compridos e lustrosos, e

traços delicados. A cintura fina era acentuada por cintos estreitos feitos

de pedra polida. Eram curvilíneas de uma forma que eu jamais seria.

Ambas tinham delicadas tatuagens ao longo dos braços e das pernas,

que desapareciam sob a bainha das saias finas que usavam, fazendo com

que eu me perguntasse quanto de seus corpos era tatuado. Eu podia ver

por que as tatuagens eram consideradas atraentes. Não eram do tipo que

se veem nos Estados Unidos. Não havia águias gigantes nem "Amo a

Minha Mãe" num coração.

Essas tatuagens eram minúsculas. Redemoinhos, argolinhas, arabescos,

espirais, flores, folhas e borboletas enfeitavam seus membros como a

borda elegante da moldura de um quadro ou os adornos de um livro

medieval. As tatuagens acentuavam os traços das lindas jovens e

realçavam sua beleza, transformando-as em criaturas extraordinárias,

mágicas. O gunia falou, apontando primeiro para uma garota, depois

para a outra.

Ren se levantou, desajeitado, e abriu um largo sorriso. Eu o olhei, ávida.

Sabia que o meu disfarce o impedira de me reconhecer e o levara a me

agredir. Agora tudo que eu queria fazer era abraçá-lo e tirá-lo dali.

Infelizmente, todos tínhamos papéis a desempenhar. Ele caminhou,

mancando, mas com dignidade, ao redor das duas garotas. Então pegou

a mão de uma delas, beijou-a e sorriu para ela. Franzi as sobrancelhas,

confusa. Ela sorriu timidamente para Ren. Kishan parecia chocado, ao

passo que o Sr. Kadam exibia uma expressão sombria.

- O que foi? - sussurrei. - O que está acontecendo?

- Espere só um momento, Srta. Kelsey.

Kishan se levantou e falou baixinho com Ren, que cruzou os braços e

indicou as duas mulheres outra vez. Kishan começou a discutir em voz

baixa com o irmão. Ele olhou para mim e então para o Sr. Kadam, como

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que pedindo ajuda. Ren parecia mais confuso do que zangado. Ele disse

alguma coisa que soou como uma pergunta. Em resposta, Kishan fez um

gesto, inflexível, e apontou para o gunia. Ren riu, tocou o cabelo da

garota, esfregou-o entre os dedos e disse alguma coisa que a fez rir.

- Essas duas garotas também estão pretendendo cortar o cabelo? -

perguntei.

O Sr. Kadam franziu a testa.

- Não. Não creio.

Kishan fez uma reverência para o gunia e as duas mulheres, disse

algumas palavras e então voltou as costas para Ren, sentando-se ao meu

lado outra vez. Ren sorriu para a garota, deu de ombros e tornou a

sentar-se perto de Kishan.

- Sr. Kadam! O que acabou de acontecer?

Ele pigarreou.

- Ah, sim... parece que os baigas querem oferecer aos nossos dois filhos a

condição de membros permanentes da tribo.

- Ótimo. Que mal pode haver nisso?

- Para se tornarem membros, devem se casar com mulheres baigas. Essas

duas irmãs se ofereceram a nossos nobres filhos.

- Ah. - Franzi a testa, confusa. - Então por que Kishan e Ren estavam

discutindo?

- Estavam discutindo sobre... se deviam ou não aceitar.

- E por que Ren estava tocando o cabelo daquela mulher?

- Eu... realmente não sei dizer.

O Sr. Kadam se virou de lado, obviamente relutante em continuar a

conversa.

Pensei no que eu tinha visto e então cutuquei Kishan.

- Kishan, se você quer uma esposa baiga, tudo bem. Se isso vai deixá-lo

feliz, então vá em frente - sussurrei. - As duas são muito bonitas.

Ele resmungou baixinho.

- Eu não quero uma esposa baiga, Kells. Explico depois.

Agora eu estava mais confusa ainda e ligeiramente enciumada, mas

descartei essa sensação lembrando a mim mesma que diferentes culturas

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interpretam gestos de maneiras diferentes. Decidi deixar o assunto de

lado e assistir às festividades. Quando a celebração chegou ao fim, eu

cochilava com a cabeça no ombro do Sr. Kadam.

Kishan me acordou.

- Kells? Venha. Hora de irmos.

Ele me puxou, me ajudando a ficar de pé, e colocou minha mochila nos

próprios ombros antes de dar instruções a Ren, que parecia feliz em

fazer o que quer que Kishan lhe dissesse para fazer. O Sr. Kadam se

despediu dos baigas, que se acomodaram para passar a noite enquanto

nós prosseguíamos na direção de nosso ponto de encontro.

O Sr. Kadam ligou um sofisticado dispositivo militar. Era um relógio de

pulso com uma tela de vídeo do tamanho de um baralho de cartas que

carregava imagens de satélite enquanto andávamos. O aparelho não só

mostrava nossa longitude e latitude atuais, como mantinha um registro

de quantos quilômetros ou milhas tínhamos que percorrer para chegar

ao nosso destino.

Ren se transformou em tigre. Kishan disse que isso o ajudaria a se

recuperar mais depressa. Ele seguiu trotando atrás de nós três. Tentei

voltar a andar, porém meu tornozelo estava inchado, do tamanho de

uma toranja. O Sr. Kadam o envolveu com uma atadura elástica antes

de comermos, deu-me ibuprofeno para reduzir o inchaço e me fez

elevar o pés, mas eu precisava de gelo. O local ainda latejava. Kishan me

deixou andar um pouco porque eu estava teimando, no entanto insistiu

que eu usasse seu braço como apoio. Ren passou perto de mim, no

entanto, quando estendi a mão para tocar sua cabeça, ele rosnou

baixinho. Kishan rapidamente se colocou entre nós dois.

- Kishan? O que há de errado com ele?

- Ele não está... em seu estado normal, Kells.

- É como se ele não me conhecesse.

Kishan tentou me consolar:

- Ele provavelmente está reagindo a você como um animal ferido. Tem a

ver com autoproteção. Perfeitamente natural.

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- Mas quando vocês dois foram feridos na selva antes, eu cuidei de

vocês. Nenhum dos dois tentou me machucar ou me atacar. Vocês

sempre souberam quem eu era.

- Ainda não sabemos o que Lokesh fez com ele. Tenho certeza de que

ele vai sair dessa à medida que seus ferimentos forem se curando. Até

lá, quero que você fique sempre perto de mim ou do Sr. Kadam. Um

tigre ferido é uma criatura muito perigosa.

- Está bem - concordei, relutante. - Não quero causar a ele nenhuma dor

além daquela que ele já está sentindo.

Depois de me permitir mais alguns minutos dolorosamente lentos de

caminhada, Kishan me pegou no colo. Quando protestei, dizendo que o

deixaria exausto, ele zombou, afirmando que poderia me carregar

durante dias sem se sentir cansado. Dormi em seus braços enquanto

andávamos pela selva. Quando paramos, ele me colocou com delicadeza

no chão. Oscilei e os braços de Kishan em meus ombros foram a única

coisa que me mantiveram em pé.

- Sr. Kadam, que lugar é este?

- É uma represa artificial chamada Maithan. Nosso transporte deve

chegar em breve.

Logo depois ouvimos o barulho de hélices quando um pequeno avião

sobrevoou o ponto onde estávamos, seguindo para o lago. Corremos

para a margem coberta de seixos e observamos o avião aterrissar na

água lisa e iluminada pela lua. O Sr. Kadam acenou com uma luz de

neon e entrou no lago escuro. Kishan me conduziu para lá, mas hesistei,

olhando o tigre branco.

- Não se preocupe, Kells. Ele sabe nadar.

Kishan esperou que eu fosse na frente. A água estava fria e serviu para

aliviar a dor em meu tornozelo. Enquanto o avião deslizava,

aproximando-se da margem, mergulhei até o pescoço e comecei a

nadar. O Sr. Kadam já estava de pé nos flutuadores do avião, segurando-

se na porta. Ele se inclinou e agarrou minha mão, me ajudando a subir.

Nilima sorriu para mim do assento do piloto e indicou com a mão o

lugar ao seu lado.

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Desculpando-me por molhá-la, acomodei-me enquanto Kishan

embarcava e então observei o tigre branco nadando. Ao se aproximar

do avião, Ren voltou à forma humana e subiu, ocupando o assento perto

de Kishan, no fundo. O Sr. Kadam fechou a porta e afivelou o cinto de

segurança na poltrona ao lado da minha.

- Segurem-se todos - advertiu Nilima.

Um súbito deslocamento nos impulsionou adiante quando as hélices

aceleraram ruidosamente. Ganhamos velocidade, quicamos na água

algumas vezes e então alcançamos o céu noturno. Ren havia mudado

mais uma vez para a forma de tigre. Ele fechara os olhos e descansava a

cabeça no colo de Kishan. Sorri brevemente para Kishan. Ele retornou

meu olhar em silêncio e olhou pela janela.

O Sr. Kadam nos cobriu com um cobertor. Descansei a cabeça em seu

ombro molhado e adormeci ao ronco monótono de nosso hidroavião.

27

Histórias de guerra Acordei quando o avião aterrissou na água de um pequeno lago, que

aparentemente era adjacente à propriedade de Ren e Kishan. Nilima

desligou os motores e Kishan saltou para o píer e prendeu as cordas a

fim de segurar a aeronave. O Jeep estava estacionado ali perto.

Àquela altura, minhas roupas estavam quase secas, sujas e muito

desconfortáveis. O Sr. Kadam me ofereceu a oportunidade de trocá-las,

dizendo que poderia criar roupas novas com o Lenço Divino, mas

recusei quando ele mencionou que estávamos a apenas 10 minutos de

casa.

O Sr. Kadam dirigiu, enquanto os garotos se acomodaram na traseira e

Nilima se apertou comigo no banco da frente. Ren permanecia como

tigre e parecia contente apenas quando Kishan estava por perto. Em

casa, o Sr. Kadam sugeriu que eu tomasse uma ducha quente e dormisse,

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mas o dia já estava amanhecendo e, embora eu estivesse exausta, queria

conversar com Ren.

A única coisa que me convenceu a deixá-lo foi a pressão que tanto o Sr.

Kadam quanto Kishan fizeram sobre mim. Ren ainda precisava de

tempo para se curar e seria melhor que ele se mantivesse como tigre por

enquanto, argumentavam eles. Concordei em tomar banho logo, mas

disse-lhes que desceria logo em seguida para ver como ele estava.

Kishan me carregou até o quarto, me ajudou a tirar os sapatos e

removeu a atadura elástica. Então me deixou no banheiro, fechando a

porta silenciosamente ao sair.

Minhas mãos estavam trêmulas. Manquei até o chuveiro e liguei a água

quente. Ele está aqui! Em segurança! Conseguimos. Vencemos Lokesh e não perdemos ninguém. Eu me sentia nervosa. Quando entrei embaixo

da água, perguntei-me o que deveria dizer primeiro para Ren. Tinha

tantas coisas para lhe contar. Meu corpo doía. Eu sentia uma fisgada no

ombro que fora atingido por uma caixa pesada e agora estava ficando

roxo.

Tentei tomar um banho rápido, mas cada movimento era uma agonia.

Eu não havia sido talhada para isso. Rolar no chão e na sujeira não era

para mim. Ocorreu-me o pensamento de que eu deveria ter sentido dor

em Kishkindha e Shangri-lá. Eu deveria estar muito machucada depois

da batalha com os pássaros. Eu me curara lá. Rapidamente. A não ser

pela mordida do kappa, eu me curara nesses lugares mágicos.

Ren parecia estar se recuperando, mas eu imaginava que suas feridas

não fossem apenas físicas. Ele passara por tanta coisa... Eu não sabia

como ele tinha conseguido sobreviver, porém me sentia extremamente

grata por isso. Teria que agradecer a Durga por ajudá-lo. Ela certamente cumpriu sua promessa. Manteve meu tigre em segurança. Fechei a torneira, saí do chuveiro e lentamente vesti meu velho pijama

de flanela. Eu queria me apressar, mas até escovar o cabelo doía.

Trancei-o, impaciente, e manquei a uma velocidade de lesma até a

porta do quarto. Encontrei Kishan do outro lado, me esperando, com as

costas apoiadas na parede e os olhos fechados.

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Ele também tomara um banho e trocara de roupa. Sem nenhuma

palavra, me pegou nos braços e me carregou para o andar térreo, para a

sala do pavão. Acomodou-me na poltrona de couro perto do Sr. Kadam

antes de se sentar de frente para mim, ao lado de Nilima. Ren ainda

estava na forma de tigre, deitado aos pés de Nilima, enquanto eles

conversavam baixinho.

O Sr. Kadam, dando tapinhas no meu braço, disse:

- Ele ainda não mudou, Srta. Kelsey. Talvez tenha ficado como homem

tempo demais.

- Tudo bem. O importante é ele estar aqui agora.

Fiquei olhando meu tigre branco. Ele havia erguido a cabeça

brevemente quando entrei na sala e então deitou-a de novo sobre as

patas e fechou os olhos. Eu não podia deixar de me sentir decepcionada

por ele não estar deitado perto de mim. O simples fato de tocar-lhe o

pelo já teria sido reconfortante, mas então eu me repreendi: Eu deveria estar mais preocupada com ele do que comigo. Eu não fui torturada meses a fio. O mínimo que posso fazer é não pressioná-lo. Nilima queria saber de tudo que acontecera e o Sr. Kadam achou que

seria uma boa idéia se todos partilhássemos nossas histórias de modo

que pudéssemos ouvir as diferentes partes de nossa aventura. Nilima

concordou em preparar a comida e pediu minha ajuda. Kishan queria

ficar com Ren, que parecia estar dormindo. Disse que era melhor deixar

os tigres adormecidos quietos, por enquanto.

Ele me carregou até a cozinha e me colocou numa banqueta antes de

voltar para a biblioteca. Nilima separou ingredientes para fazer

omeletes e rabanadas e me atribuiu a tarefa de ralar o queijo e picar

cebolas e pimentões. Trabalhamos em silêncio por um tempo, mas

percebi que ela me olhava.

- Estou bem, Nilima, de verdade. Não precisa se preocupar comigo. Não

sou tão frágil quanto Kishan me faz parecer.

- Ah, não é isso. Não acho que você seja nada frágil. Na verdade, acho

que você é uma pessoa muito corajosa.

- Então por que está me olhando tanto?

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- Você é... especial, Srta. Kelsey.

Ri o máximo que meu maxilar dolorido me permitiu.

- Como assim?

- Você é mesmo o centro. E o que mantém esta família unida. Meu avô

estava tão... desesperado antes de você aparecer. Você o salvou.

- Acho que o Sr. Kadam está muito mais habituado a me salvar.

- Não. Nós nos tornamos uma família quando você se tornou parte de

nossas vidas. Embora exista perigo, ele nunca se sentiu tão realizado e

feliz como quando você está aqui. Ele a ama. Todos eles a amam.

Constrangida, eu disse:

- E você, Nilima? Quer mesmo essa vida maluca? Em algum momento

você desejou uma vida livre de espionagem e perigos?

Ela sorriu enquanto colocava óleo na frigideira e punha quatro fatias de

rabanada para fritar.

- Meu avô precisa de mim. Como posso abandoná-lo? Eu não poderia

deixá-lo sozinho e sem amparo. Também tenho minha família, é claro.

Meus pais me perguntam por que ainda não me casei e por que sou tão

dedicada à minha carreira. Eu lhes digo que fico feliz em servir. Na

verdade, eles não compreendem, mas aceitam. Vivem confortavelmente

graças à ajuda do meu avô.

- Eles sabem do parentesco que têm com ele?

- Não. Isso eu não contei a eles. Levou muito tempo para que meu avô

me confiasse seu segredo. Eu não o partilharia sem o seu conhecimento.

Ela bateu os ovos, acrescentou um pouco de creme de leite e começou a

fazer a primeira omelete. Havia alguma coisa confortadora e acolhedora

em estar na cozinha, preparando a comida com outra mulher.

- Agora que você está aqui - disse Nilima -, vejo que ele talvez

finalmente encontre descanso. Talvez ele possa enfim deixar de lado

suas preocupações, sua grande responsabilidade com os príncipes.

Tenho muito orgulho de contar com um antepassado assim tão

abnegado e me sinto honrada por conhecê-lo.

- Ele é uma pessoa muito nobre. Eu não conheci nenhum dos meus avôs.

Teria tido muito orgulho de tê-lo como avô também.

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Ficamos em silêncio enquanto terminávamos de preparar a refeição.

Pedi néctar de flor adoçado com mel como bebida e fatiei o melão.

Nilima terminou de preparar os pratos, colocou-os numa grande

bandeja e a carregou para a sala do pavão. Kishan voltou para me pegar

e o Sr. Kadam juntou-se a nós um instante depois. O tigre branco

ergueu a cabeça e farejou.

Coloquei um prato gigante de ovos no chão diante dele. Ele começou a

lamber o prato imediatamente, empurrando os ovos de um lado para

outro até conseguir de alguma forma abocanhá-los. Aproveitei a

oportunidade e lhe fiz um carinho na cabeça, coçando atrás de suas

orelhas. Ele não rosnou dessa vez e inclinou a cabeça para a minha mão.

Então devo ter tocado em algum ponto sensível, pois seu peito roncou

baixinho.

Tentei tranquilizá-lo.

- Está tudo bem, Ren. Eu só queria dizer oi e dar seu café da manhã.

Sinto muito se o machuquei.

Kishan se inclinou para a frente e disse:

- Kells, por favor. Afaste-se.

- Eu vou ficar bem. Ele não vai me machucar.

Meu tigre branco se levantou e se aproximou de Kishan. Isso me doeu.

Não pude deixar de me sentir traída, como se o bichinho de estimação

da família tivesse se voltado contra mim e tentado morder minha mão.

Eu sabia que estava sendo irracional, mas suas atitudes me feriam. Ele

pôs uma pata de cada lado do prato e me fitou até eu baixar os olhos.

Então ele retomou seu café da manhã.

O Sr. Kadam acariciou minha mão e disse:

- Vamos saborear nossa refeição e partilhar com Nilima o que

aconteceu. Tenho certeza de que Ren também gostará de ouvir.

Assenti e empurrei a comida de um lado para outro no prato. De

repente, estava sem fome.

- Descemos de paraquedas numa clareira a alguns quilômetros do

acampamento dos baigas e andamos até lá - começou Kishan. - Um ex-

piloto que costumava trabalhar para o Sr. Kadam nas Linhas Aéreas

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Tigre Voador concordou em nos deixar lá. Ele nos levou num daqueles

antigos aviões militares da Segunda Guerra Mundial, que mantém em

boas condições.

Nilima assentiu, bebericando o néctar.

Kishan esfregou o maxilar.

- O sujeito devia ter pelo menos 90 anos. A princípio duvidei que o

homem idoso ainda fosse capaz de pilotar, mas ele certamente provou

sua habilidade. A queda foi suave e sem esforço, apesar do fato de

Kelsey quase não ter saltado.

- Não foi igual ao treinamento - objetei, em minha defesa.

- Você saltou três vezes durante o treinamento e também comigo em

Shangri-lá e em todas as vezes se saiu bem.

- Aquilo era diferente. Era de dia e eu não tinha que... que guiar. Ele explicou:

- Durante o treinamento, saltamos em dupla. - Frustrado, ele levantou a

voz. - Você sabia que era só pedir. Eu teria saltado com você, mas você

teimou que tinha que fazer aquilo sozinha.

- Bem, se você não tivesse sido tão... abusado no salto em dupla...

- E se você não fosse tão paranóica com medo de que fosse tocá-la...

- Não teria nenhum problema! - dissemos os dois ao mesmo tempo.

Minha voz soou aguda, em pânico, enquanto eu fuzilava Kishan com o

olhar.

- Podemos prosseguir, por favor?

Kishan estreitou os olhos, lançando-me um olhar que dizia que

continuaríamos essa discussão mais tarde.

- Como eu disse, Kelsey quase não saltou a tempo. Kadam foi o primeiro

e então tive que forçar Kelsey antes que perdêssemos o timing do salto.

- Forçar é mesmo a palavra correta - murmurei. - O que fez foi me

arrastar com você.

Ele me fitou significativamente.

- Você não me deu outra opção.

Ele me oferecera, sim, uma opção. A opção de deixar tudo para lá, esquecer Ren e fugir com ele. Era isso ou saltar do avião sozinha.

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Eu não tinha muita certeza se ele estava falando sério ou apenas

tentando me fazer saltar. Eu acabara de abrir a boca para lhe dar um

sermão sobre a distância apropriada, quando ele grunhiu, zangado,

agarrou minha mão e saltou.

- Depois que chegamos à clareira - ele continuou assumimos nossos

disfarces e seguimos caminhos separados. Eu assumi a aparência de

Kelsey, usando uma réplica de seu amuleto.

- Eu assumi a aparência do criado baiga - acrescentei. - Por falar nisso,

foi muito desconfortável vê-lo sendo eu, Kishan.

- Foi igualmente desconfortável ser você. Minha missão era procurar

Lokesh e mantê-lo ocupado, então me escondi atrás de um edifício até

ouvir o sinal: um rugido de tigre.

O Sr. Kadam o interrompeu.

- Esse era eu, disfarçado de tigre. Corri pela floresta para disparar

algumas armadilhas e atrair os soldados.

- Certo - disse Kishan. - Kelsey começou a explodir coisas, o que

afugentou qualquer soldado retardatário, e assim não encontrei quase

nenhuma resistência para entrar no acampamento. Encontrar Lokesh

foi outra história. Tive que tirar de combate seu cerco de guardas

altamente treinados. Eliminei vários com o chakram e desativei as luzes

antes que eles sequer me vissem. Depois disso usei minha aparência em

meu beneficio.

Desconfiada, perguntei:

- Como exatamente você usou a minha aparência em seu benefício?

Kishan abriu um largo sorriso.

- Agi como uma mulher. Eu entrei na sala tropeçando, fingi surpresa e

medo e pedi a todos aqueles homens grandes e fortes que me

protegessem, dizendo que havia um louco tentando me matar com um

disco dourado. Você sabe, pisquei os olhos e flertei com eles. Coisas de

mulher.

Cruzei os braços e fuzilei Kishan com o olhar.

- Sei. Por favor, continue.

Kishan suspirou e correu a mão pelos cabelos.

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- Antes que você fique toda ofendida, que é sua reação padrão a mim,

pode parar, porque sei o que está pensando.

Cruzei os braços sobre o peito.

- É mesmo? E o que é que eu estou pensando?

- Que eu estou tentando estereotipar as mulheres, você em particular. -

Ele ergueu as mãos, exasperado. - Você não é assim, Kells. Eu só estava

jogando com as cartas que me foram dadas e tentando usar todos os

meus recursos!

- Tudo bem quando você usa os seus próprios recursos, mas não quando

está usando os meus!

- Ótimo! Da próxima vez irei como Nilima!

- Ei! - disse Nilima. - Não quero ninguém usando os meus recursos.

- Talvez seja melhor continuarmos a história - interveio o Sr. Kadam.

Kishan fez cara feia e começou a resmungar sobre mulheres em

operações militares e que da próxima vez iria sozinho.

- Eu ouvi isso. Você teria sido mutilado por Lokesh sem mim.

Eu sorri, irônica.

- De fato. Cada pessoa foi vital para o nosso sucesso - disse o Sr. Kadam.

- Vou passar para a minha parte e você conclui mais tarde, Kishan.

Ele se recostou na cadeira e cruzou os braços sobre o peito.

- Por mim, tudo bem.

O Sr. Kadam começou contando a Nilima como era libertador ser tigre.

- O poder do tigre está além de qualquer coisa que eu imaginara. Como

não sabíamos se o Lenço Divino funcionava apenas com disfarces

humanos, tínhamos testado antes a transformação em um animal.

Parece que podemos mudar para a forma de Kishan ou de Ren, mas

nenhum outro animal. Quando chegamos, assumi a forma do tigre

negro de Kishan. E então a Srta. Kelsey enrolou o Lenço em meu

pescoço antes de nos separarmos.

Ele recuperou o fôlego antes de continuar.

- Corri pela selva e encontrei várias armadilhas com isca. Ativei duas

delas, o que acionou alarmes, e logo ouvi o passo dos soldados em

minha perseguição. Eles disparam armas, mas fui mais rápido. A certa

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altura, um grupo achou que havia me encurralado. Estavam prestes a

disparar quando me transformei em homem, o que os deixou chocados

e me deu um momento para acionar a armadilha. Puxei uma corda

presa a um naco de carne e os soldados foram erguidos no ar numa

grande rede. Deixei-os pendurados na árvore e corri de volta ao

acampamento para a segunda fase do plano. Quando cheguei ao

acampamento, a Srta.Kelsey já havia destruído uma das duas torres de

vigilância. Os aldeões corriam para todos os lados, temendo por suas

famílias. Fiquei atrás de uma árvore e mudei de aparência mais uma

vez.

Nilima se inclinou para a frente.

- Em que se transformou dessa vez?

- Assumi a forma de um deus baiga chamado Dulha Dao, que, segundo

eles, ajuda a evitar doenças e acidentes. Reuni as pessoas à minha volta

e lhes disse que estava ali para ajudá-las a vencer aquele estranho. Elas

ficaram mais do que felizes em cooperar para derrubar a casa do maligno. A Sra. Kelsey deixara a gada num local discreto para que eu a

pegasse. Normalmente, ela é pesada para mim, mas, quando a manejei

como Dulha Dao, a arma se tornou leve. Com a ajuda dos aldeões,

derrubamos a parede e incapacitamos os homens de Lokesh.

- Como era sua aparência? - perguntou Nilima.

Ele corou, então eu intervim.

- Ah, o Sr. Kadam estava muitíssimo bem como Dulha Dao. Ele parecia

um dos homens da tribo, só que mais alto, mais corpulento e muito

bonito. O cabelo era comprido e cheio e parte dele estava envolta num

coque no alto da cabeça, com a outra parte descendo pelas costas.

Nilima sorriu com a minha descrição.

- Era musculoso e seu belo tórax, assim como o rosto, era coberto por

tatuagens. Estava de peito nu, usando pesados colares de contas e

descalço, vestindo uma saia envelope. Parecia amedrontador, mas de

um jeito bom. Principalmente, imagino, quando estava brandindo a gada.

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Quando terminei minha descrição, todos me olhavam e Nilima ria

abertamente.

- O que foi? - perguntei, constrangida. - Está bem. Parece que eu acho

atraentes os homens indianos corpulentos. O que há de errado nisso?

Kishan tinha a testa franzida. O Sr. Kadam parecia... satisfeito e Nilima

dava risadinhas.

- Absolutamente nada, Srta. Kelsey. Sei que eu teria pensado a mesma

coisa - disse ela.

O Sr. Kadam pigarreou.

- Sim... bem... agradeço a descrição lisonjeira, de qualquer forma. Faz

muito tempo que uma mulher não me acha... corpulento.

Então eu comecei a rir e Nilima me acompanhou.

- Todos prontos para continuar? - perguntou o Sr. Kadam.

- Sim - respondemos em uníssono.

- Como eu ia dizendo, as pessoas se juntaram a mim e amarramos todos

os guardas. Então seguimos para o centro de comando. As portas eram

fortificadas e estavam trancadas. Revistamos os homens à procura da

chave, mas não encontramos nenhuma. Foi mais fácil eu abrir um

buraco na parede do que derrubar aquelas portas. Finalmente entrei no

complexo e encontrei Kelsey e Kishan prostrados no chão e Lokesh em

nenhum lugar à vista. A sala estava cheia de uma espécie de doce.

- Balas duras - acrescentei.

- Como isso aconteceu? - perguntou Nilima.

- Eu tinha que fazer alguma coisa e o Fruto Dourado era a única arma a

que eu podia ter acesso, então pedi uma tempestade de balas duras.

- Muito inteligente. Essa nunca praticamos. Parece que funcionou bem -

comentou o Sr. Kadam.

- Não teria funcionado por muito tempo. Lokesh se recupera

rapidamente. A única coisa que o levou a fugir foi o senhor. O senhor e

os baigas salvaram o dia.

- Então Lokesh tinha o poder de congelar vocês?

- Tinha.

- Você percebeu algum outro poder dele?

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- Sim.

- Ótimo. Vamos falar sobre isso mais tarde.

- Está bem. Vou escrever sobre tudo o que aconteceu enquanto está

fresco em minha memória.

- Muito bom. Continuando, depois que Kishan e Kelsey encontraram

Ren, os baigas quiseram deixar o acampamento quanto antes. Pegaram

tudo o que podiam carregar e seguiram em fila selva adentro. Nós os

acompanhamos em parte porque eu me sentia responsável por levá-los

para o mais longe possível de Lokesh e em parte porque eles seguiram

na direção que precisávamos ir. Pouco antes de partirmos, Ren apanhou

uma faca e perfurou a pele de seu braço.

Inclinei-me para a frente.

- Para quê?

- Para remover um dispositivo de rastreamento que Lokesh havia

colocado ali.

Olhei para o meu tigre branco com simpatia. Seus olhos estavam

fechados, mas as orelhas se moviam para a frente e para trás. Ele estava

ouvindo.

- Seguimos com os baigas, fizemos um banquete com eles e partimos

logo depois que lhe enviei o sinal, Nilima.

- O senhor representa uma divindade muito bem - brinquei.

- Bem, parece que eles acreditaram que nós quatro éramos divindades.

Se eu tivesse visto as coisas que eles viram, também teria acreditado

nisso.

- Eles realmente usaram magia para manter Ren preso?

- Quando falei com eles sobre isso, o gunia afirmou que tem, sim, poder

sobre os tigres e que usou sua magia para manter Ren lá. Ele pode criar

uma espécie de barreira em torno do acampamento a fim de proteger a

aldeia contra ataques de tigres. No entanto, ele disse que há alguns dias

o feitiço foi alterado para atrair tigres para a aldeia. Parece que os

soldados haviam sido importunados por ataques de tigres durante toda a

semana.

- Ah, então foi por isso que Kishan conseguiu entrar?

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- Parece que sim.

- Isso significa que Ren poderia ter saído?

- Possivelmente, mas Lokesh também parece ter poderes próprios.

Presumo que usar os baigas para conter Ren fosse apenas um plano B

para o caso de ele estar distraído demais para incapacitar Ren.

- Ele é horrível - eu disse baixinho. - Ren era seu prêmio máximo, seu

troféu. Que ele esperou e caçou durante séculos. Não o teria deixado

escapar.

- Acho que ele perdeu o interesse em Ren - interveio Kishan. - Ele está

atrás de outra pessoa agora.

O Sr. Kadam sacudiu a cabeça discretamente.

- De quem? - perguntei.

Ele não respondeu.

- De mim, não é? - perguntei, sem emoção.

Por fim, Kishan falou, dirigindo-se ao Sr. Kadam.

- E melhor que ela saiba para que esteja preparada. - Virando-se para

mim, disse: - Sim. Ele está determinado a ir atrás de você, Kells.

- Por quê? Isto é, por que ele está atrás de mim?

- Porque ele sabe como você é importante para nós. E porque... você o

derrotou.

- Aquela não era eu. Era você.

- Mas ele não sabe disso.

Kishan me lançou um olhar significativo.

Gemi baixinho e ouvi apenas parcialmente quando Kishan começou a

descrever nossa briga com Lokesh. Eu só comentava quando Kishan

esquecia alguma coisa.

Ren agora nos observava e ouvia atentamente o que dizíamos. Coloquei

meu prato com a comida intacta no chão, esperando que ele estivesse

interessado. Ele me observou com curiosidade e então se levantou e se

aproximou alguns passos.

Por fim, comeu os ovos, mas empurrou as rabanadas de um lado para

outro, sem conseguir colocá-las na boca. Com cautela, usei meu garfo

para apanhar uma fatia grossa. Ele a puxou delicadamente do garfo e a

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engoliu de uma só vez. Fiz o mesmo com a outra. Depois de lamber o

prato, deixando-o limpo, Ren se deitou perto de Kishan e começou a

lamber o açúcar das patas.

Kishan ficara quieto e, quando ergui os olhos, vi que me observava.

Seus olhos se enrugaram nos cantos com um leve toque de tristeza.

Desviei o olhar. Ele franziu a testa e recomeçou a falar. Quando chegou

à parte em que Lokesh ameaçou me matar, fazendo parar meu coração,

eu o interrompi e esclareci:

- Lokesh não estava falando de mim.

- Estava sim, Kells. Ele devia saber quem você era. Ele disse: "Vou matá-

-lo, parar o coração dele."

- Sim, mas por que você, disfarçado como Kelsey, estaria preocupado comigo, em meu disfarce de criado baiga? Ele disse matá-lo, não matá-la. Ele pensou apenas que eu fosse um traidor.

- Mas a ameaça de Lokesh matar você foi a razão de eu ter parado.

- Pode ter sido essa a razão de você soltá-lo, mas ele não estava me

ameaçando.

- Então quem ele estava ameçando?

Olhei para baixo, para o tigre branco, e senti meu rosto se inflamar.

- Ah - disse ele, vagamente. - Ele estava ameaçando Ren. Gostaria de ter

entendido isso.

- Sim, ele estava ameaçando Ren. Ele sabia que eu não faria nada para

prejudicá-lo.

- Claro que você não faria.

- O que está insinuando? E o que você quis dizer ao afirmar que gostaria

de ter entendido isso? Que não teria parado?

- Não. Sim. Talvez. Eu não sei o que teria feito. Não posso prever como

teria reagido.

O tema de nossa discussão aguçou os ouvidos do tigre. Ele olhou para

mim.

- Bem, então fico feliz que você tenha entendido mal. Caso contrário,

Ren talvez não estivesse aqui neste momento.

Kishan suspirou.

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- Kelsey. - Não! É bom saber que você estaria disposto a sacrificá-lo!

O Sr. Kadam se remexeu na cadeira.

- Não teria sido uma decisão fácil para ele, Srta. Kelsey. Ensinei aos dois

garotos que, embora cada indivíduo seja de grande importância, às

vezes é necessário fazer sacrifícios pelo bem de todos. Se ele tivesse a

oportunidade de livrar o mundo de Lokesh, sua primeira reação teria

sido pôr fim à vida do tirano. O fato de ele ter se contido fala da

profundidade da emoção que sentia no momento. Não faça mau juízo

dele.

Kishan se inclinou para a frente, juntando os dedos, e fitou o chão.

- Eu sei quanto ele significa para você. Estou certo de que teria tomado a

mesma decisão se soubesse que Lokesh estava falando de Ren e não de

você.

- Tem certeza disso?

Ele ergueu os olhos para os meus e trocamos pensamentos silenciosos.

Ele sabia o que eu estava perguntando. Havia mais em minha pergunta

do que o Sr. Kadam e Nilima percebiam. Eu estava perguntando a

Kishan se ele conscientemente deixaria o irmão morrer para se

assegurar de que teria a vida que queria ter. Seria fácil para ele ocupar o

lugar de Ren, caso o irmão não estivesse mais aqui. Eu estava lhe

perguntando se ele era esse tipo de homem.

Kishan me estudou, pensativo, por alguns segundos e então, com

absoluta sinceridade, disse:

- Eu prometo a você, Kelsey, que irei protegê-lo com a minha vida até o

fim dos meus dias.

Seus olhos dourados brilharam e perfuraram os meus. Ele falava sério e

eu de repente percebi que ele havia mudado. Não era o mesmo homem

que eu encontrara na selva um ano antes. Perdera a atitude cínica,

rabugenta e triste. Era um homem lutando por sua família, por um

propósito. Ele nunca mais cometeria o mesmo erro que cometera com

Yesubai. Olhando em seus olhos, eu soube que, independentemente do

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que acontecesse em nosso futuro, eu poderia contar com ele para

qualquer coisa.

Pela primeira vez desde que o conhecera, vi o manto de um príncipe

cair sobre seus ombros. Ali estava um homem que se sacrificaria pelos

outros. Ali estava um homem que cumpriria seu dever. Ali estava um

homem que reconhecia suas fraquezas e se esforçava para superá-las.

Ali estava um homem me dizendo que eu poderia escolher outro e que

ele cuidaria de nós e nos protegeria, mesmo que isso lhe partisse o

coração.

- Eu... peço desculpas por duvidar de você - gaguejei. - Por favor, me

perdoe.

Ele me dirigiu um sorriso triste.

- Não há nada para perdoar, bilauta. - Posso continuar a história a partir daqui? - perguntei baixinho.

- Por que não? - respondeu ele.

A primeira coisa que contei a Nilima foi como usei o Fruto Dourado

para deter os veículos, enchendo os tanques de gasolina com pão de ló,

e as armas, obstruindo-as com cera de abelha. O problema era que isso

só funcionara nas armas e nos carros que eu podia ver. Fora por isso que

Lokesh conseguira escapar em seu carro e os homens que eu não podia

ver ainda tinham armas que funcionavam.

Descrevi a chuva de balas duras, como Lokesh escapara e como

Fanindra nos levara até Ren. Então falei sobre o encontro comigo. Contei a ela que havia me disfarçado como o criado baiga que estava

ajudando Lokesh, provável motivo por que Ren me deu um soco na

cara. Expliquei que o criado havia sido forçado a trabalhar com Lokesh

e que tinha tosquiado o cabelo como sinal de arrependimento,

oferecendo-o a Ren ao implorar por seu perdão.

Descrevi em grande detalhe o banquete baiga e contei a Nilima sobre as

duas mulheres que foram oferecidas como esposas para os meus filhos. Ela revirou os olhos e se solidarizou comigo enquanto bebia seu néctar.

Acrescentei que parecia que Kishan queria uma das irmãs como esposa,

mas Ren havia discutido com ele.

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Kishan fez cara feia.

- Eu lhe disse que não foi isso que aconteceu.

- Então o que foi que aconteceu?

Pelo canto do olho, peguei o Sr. Kadam mais uma vez sacudindo a

cabeça discretamente e voltei-me rápida para ele.

- O que foi agora? O que vocês dois não querem me dizer?

O Sr. Kadam mais que depressa tentou me tranqüilizar.

- Nada, Srta. Kelsey. É só que - ele fez uma pausa, pouco à vontade - foi

considerado muito rude de nossa parte rejeitar as mulheres e os garotos

estavam tentando demonstrar sua relutância a fim de apaziguar os

líderes da tribo.

-Ah.

O Sr. Kadam e Kishan se fitaram. Kishan desviou o olhar com uma

expressão de desagrado, irritação e impaciência. Olhei para Nilima, que

parecia confusa. Ela observava o Sr. Kadam com atenção.

- Está acontecendo alguma coisa estranha aqui - eu disse - e me sinto

muito cansada para tentar descobrir o que é, mas tudo bem. Na

verdade, não ligo mesmo para as duas mulheres. O assunto já foi

encerrado. Temos Ren de volta e isso é tudo que importa.

Nilima pigarreou e se levantou. Reuniu a louça e estava levando a

bandeja para a cozinha, para lavá-la, quando Ren decidiu assumir a

forma humana. Todos na sala se imobilizaram. Ele nos olhou, um de

cada vez, e então sorriu para Nilima.

- Posso ajudá-la com isso? - perguntou educadamente.

Ela fez uma pausa e sorriu, assentindo com a cabeça. Todos nós o

fitamos, em expectativa, esperando que falasse conosco, mas, em vez

disso, ele ajudou Nilima a levar tudo para a cozinha em silêncio. Nós o

ouvimos perguntar a ela se gostaria de ajuda com a louça. Ela disse que

cuidaria disso sozinha e indicou que os outros, referindo-se a nós,

provavelmente gostariam de conversar com ele um pouco. Ele entrou

na sala, hesitante, e avaliou a expressão de nós três.

Então se sentou perto de Kishan e disse em voz baixa:

- Por que tenho a sensação de estar diante da Inquisição Espanhola?

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- Só queremos nos assegurar de que você está realmente bem - disse o

Sr. Kadam.

- Estou relativamente bem.

Suas palavras pairaram no ar e imaginei que o restante de sua frase fosse

para um homem que foi torturado durante meses. Eu me arrisquei:

- Ren, eu sinto... tanto. Não devíamos tê-lo deixado lá. Se eu soubesse

naquele momento que tinha o poder do raio, poderia tê-lo salvado. Foi

minha culpa.

Ren estreitou os olhos e me estudou.

- Você não teve culpa de nada, Kells - Kishan me contradisse. - Ele a

empurrou para mim. Foi tudo decisão dele. Queria que você ficasse em

segurança. - Ele fez um gesto de cabeça para Ren. - Diga a ela.

Ren olhou para o irmão como se este estivesse falando alguma coisa sem

sentido.

- Eu não me lembro do episódio da mesma forma que você - observou

ele -, mas se é o que diz...

Ren deixou que suas palavras morressem e me olhou com curiosidade,

mas não de uma forma positiva. Era como se eu fosse uma criatura

estranha e nova que ele encontrara na selva e ainda não se decidira se

devia me devorar ou brincar me jogando de uma pata para outra. Ao me

estudar abertamente, ele franziu o nariz, como se farejasse alguma coisa

desagradável, e então falou com o Sr. Kadam:

- Obrigado por me salvar. Eu deveria saber que traçaria um plano para

me libertar.

- Na verdade, foi a Srta. Kelsey quem teve a idéia de que eu

personificasse uma divindade. Sem o Lenço Divino que ela e Kishan

foram buscar, não teríamos conseguido resgatar você. Eu não tinha a

menor idéia de onde encontrá-lo. Somente por meio da visão, na qual

estava o criado baiga, conseguimos descobrir onde Lokesh estava

mantendo você. E apenas com as armas que nos foram dadas por Durga

fomos capazes de dominar os guardas.

Ren assentiu e sorriu para mim.

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- Parece que tenho com você uma dívida de gratidão. Obrigado por seus

esforços.

Alguma coisa estava errada. Ele não parecia o Ren que eu conhecia. Sua

atitude em relação a mim era fria, distante. Kishan nem olhava para

Ren.

Ficamos todos ali, sentados em silêncio. A tensão, densa, propagava-se

entre nós. De repente me vi invejando Nilima, que estava na cozinha.

Havia certamente um problema no ar e em nada ajudava ver os três

homens ali me olhando com perguntas e preocupação nos olhos.

Primeiro eu precisava falar com Ren. Depois que tivéssemos nos

entendido, eu passaria para Kishan.

Ergui as sobrancelhas significativamente para o Sr. Kadam e ele enfim

compreendeu minha mensagem não dita. Ele pigarreou e anunciou:

- Kishan, você se importa de me ajudar a mudar um móvel de posição no

meu quarto? E pesado demais para que eu o levante sozinho.

Ren se levantou e disse:

- Eu não me importo de ajudar. Kishan pode ficar.

O Sr. Kadam sorriu.

- Por favor, sente-se e descanse um pouco mais. Kishan e eu damos

conta e acredito que a Srta. Kelsey gostaria de falar com você sozinho.

- Eu acho que ainda não é seguro... - começou Kishan.

Meus olhos estavam fixos em Ren.

- Está tudo bem, Kishan. Ele não vai me machucar.

Kishan se levantou e encarou Ren, que assentiu e disse:

- Não vou machucá-la.

Kishan suspirou, me pegou com cuidado e me acomodou no sofá, perto

de Ren. Antes de sair, ele avisou:

- Estarei por perto. Se precisar de mim, é só gritar. - Então voltou-se

para Ren e ameaçou: - Não a machuque. Estarei de ouvidos atentos.

- Você não vai ficar ouvindo nossa conversa - eu disse.

- Vou, sim.

Fechei a cara. Kishan me olhou enquanto saíam, mas eu o ignorei.

Finalmente eu estava sozinha com Ren. Tinha tantas coisas para dizer a

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ele... só que não sabia como agir. Seus olhos azul-cobalto me avaliavam

como se eu fosse um pássaro estranho que de repente pousasse em seu

braço. Esquadrinhei seu rosto bonito e então falei:

- Se não estiver muito cansado, gostaria de conversar com você um

minuto.

Ele deu de ombros.

- Como quiser.

Acomodei minha perna com cuidado na almofada de modo a ficar de

frente para ele.

- Eu... eu senti tanto a sua falta. - Ele ergueu uma sobrancelha. - Tenho

tanta coisa para lhe dizer que não imagino nem por onde começar. Sei

que está cansado e provavelmente ainda sente dor, portanto serei breve.

Queria dizer que sei que você precisa de tempo para se recuperar e que

entendo se preferir ficar sozinho agora. Mas estou aqui se precisar de

mim.

Respirei fundo e continuei:

- Posso ser uma boa enfermeira, mesmo que você seja rabugento. Vou

lhe trazer canja e biscoitos de chocolate com manteiga de amendoim.

Vou ler Shakes- peare ou poemas ou o que você quiser. Podemos

começar com O conde de Monte Cristo. - Tomei sua mão entre as

minhas. - Por favor, é só você me dizer do que precisa e terei prazer em

providenciar.

Ele retirou a mão delicadamente e disse:

- É muita gentileza sua.

- Isso não tem nada a ver com gentileza. - Aproximei-me dele e segurei

seu rosto entre as mãos. Ele respirou fundo quando eu disse: - Você é

meu porto seguro. Eu te amo.

Eu não queria pressioná-lo, mas precisava dele. Tínhamos ficado

separados por muito tempo e finalmente ele estava aqui e eu podia tocá-

lo. Inclinei-me para a frente e o beijei. Ele ficou rígido, surpreso. Meus

lábios se uniram aos seus e senti a umidade das lágrimas em meu rosto.

Envolvi seu pescoço com os braços e deslizei para mais perto até estar

quase sentada em seu colo.

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Um de seus braços estava esticado, apoiado no sofá, atrás de nós, e sua

outra mão descansava em sua coxa. Ele parecia distante. Não me

abraçou nem correspondeu ao meu beijo. Beijei-lhe o rosto e enterrei o

rosto em seu pescoço, inalando seu cheiro morno de sândalo.

Depois de um momento, eu me afastei e deixei os braços caírem,

desajeitados, no meu colo. Sua expressão de surpresa permaneceu. Ele

tocou os próprios lábios e sorriu.

- Esse, sim, é o tipo de boas-vindas que um homem gosta de receber.

Eu ri, delirante de felicidade por ele estar de volta. Livrei-me das

dúvidas e preocupações, percebendo que ele provavelmente só

precisava de algum tempo para voltar a se sentir uma pessoa normal

antes de poder fazer parte de um relacionamento outra vez. Ele gemeu

de dor e eu me afastei para lhe dar mais espaço. Ele pareceu bem mais à

vontade depois disso.

- Posso lhe fazer uma pergunta? - disse ele.

Tomei sua mão nas minhas e beijei sua palma. Ele observou minha

atitude, intrigado, e retirou a mão.

- Claro que pode - respondi.

Ele estendeu a mão, puxando de leve minha trança, e girou a fita entre

os dedos.

- Quem é você?

28

O pior aniversário de todos os tempos Com um patético risinho nervoso, eu o repreendi:

- Isso não tem graça, Ren. Como assim quem sou eu?

- Por mais que eu aprecie suas proclamações de devoção eterna, acho

que você deve ter batido a cabeça ao lutar com Lokesh. Ou me

confundido com outra pessoa.

- Confundido você com outra pessoa? Não mesmo. Você é Ren, não é?

- Sim. Meu nome é Ren.

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- Certo. Ren. O cara por quem estou loucamente apaixonada.

- Como pode declarar seu amor por mim se eu nunca havia posto os

olhos em você?

- Você está com febre? - perguntei, tocando sua testa. - Tem alguma

coisa errada? Será que você bateu a cabeça?

Examinei seu crânio com os dedos, à procura de alguma protuberância.

Ele retirou delicadamente minhas mãos de sua cabeça.

- Eu estou bem, hã... Kelsey, não é? Não tem nada errado com a minha

cabeça e eu não estou com febre.

- Então por que não se lembra de mim?

- Provavelmente porque nunca a vi antes.

Não. Não. Não. Não. Não. Não! Isso não pode estar acontecendo! - Nós nos conhecemos há quase um ano. Você é meu... meu namorado.

Lokesh deve ter feito alguma coisa! Sr. Kadam! Kishan! - gritei.

Kishan entrou correndo na sala, como se sua cauda estivesse pegando

fogo. Ele empurrou Ren, enfiando-se entre nós. Rapidamente me pegou

no colo e me colocou na cadeira mais distante de Ren.

- O que foi, Kells? Ele machucou você?

- Não, não. Não foi nada disso. Ele não me conhece! Ele não se lembra

de mim!

Kishan desviou os olhos, com sentimento de culpa.

- Você sabia! Você sabia disso e escondeu de mim?

O Sr. Kadam entrou na sala.

- Nós dois sabíamos.

- O quê? E por que não me contaram?

- Não queríamos assustá-la. Pensamos que pudesse ser apenas um

problema temporário que se resolveria sozinho quando ele ficasse bom-

explicou o Sr. Kadam.

Apertei o braço de Kishan.

- Então, com as mulheres baigas...

- Ele queria aceitá-las como esposas - explicou Kishan.

- E claro. Agora tudo faz sentido.

O Sr. Kadam sentou-se perto de Ren.

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- Você ainda não consegue se lembrar dela?

Ren deu de ombros.

- Eu nunca tinha visto esta jovem até ela, ou Kishan, eu acho, surgir

diante da minha jaula e me resgatar.

- Isso! Uma jaula. Foi numa jaula que nos vimos pela primeira vez.

Lembra? Você estava no circo. Era um tigre de circo e eu desenhei você

e li para você. Eu ajudei a libertá-lo.

- Lembro do circo, mas você nunca esteve lá. Lembro que eu mesmo me

soltei.

- Não. Você não podia. Se tivesse a capacidade de se libertar, por que

não teria feito isso séculos antes?

Ele franziu a testa.

- Não sei. Tudo de que me lembro é de sair da jaula, ligar para Kadam e

ele ir até lá para me trazer para a índia.

O Sr. Kadam o interrompeu.

- Você se lembra de ir ver Phet na selva? De discutir comigo sobre levar

a Srta. Kelsey com você?

- Eu me lembro de discutir com você, mas não sobre ela. Eu discutia

sobre ir ver Phet. Você não queria que eu perdesse meu tempo, mas eu

achava que não havia outro jeito.

Perturbada e emotiva, eu disse:

- E quanto a Kishkindha? Eu estava lá com você também.

- Eu me lembro de estar sozinho.

Confusa, perguntei:

- Como pode ser? Você se lembra do Sr. Kadam? E também de Kishan? E

de Nilima?

- Sim.

- Então só não reconhece a mim?

- Parece que sim.

- E quanto ao baile do dia dos namorados, a luta com Li, os biscoitos de

chocolate com manteiga de amendoim, os filmes a que assistimos, a

pipoca, o Oregon, as aulas na faculdade, a ida à Tillamook? Tudo isso

simplesmente... desapareceu?

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- Não exatamente. Eu me lembro de lutar com Li, de comer biscoitos, da

Tillamook, de filmes e do Oregon, mas não me lembro de você.

- Quer dizer que você foi para o Oregon sem nenhum motivo?

- Não. Fui para cursar a faculdade.

- E o que você fazia no tempo livre? Quem estava com você?

Ele franziu a testa, como se estivesse se concentrando.

- Ninguém a princípio e depois Kishan.

- Você se lembra de lutar com Kishan?

- Sim.

- Por que estavam lutando?

- Não consigo me lembrar. Ah, espere! Biscoitos. Brigamos por causa de

biscoitos.

As lágrimas afloraram aos meus olhos.

- Isso é uma piada cruel. Como uma coisa dessas pode ter acontecido?

O Sr. Kadam se levantou e deu tapinhas em minhas costas.

- Não sei. Talvez seja apenas uma perda de memória temporária.

- Acho que não - funguei, irritada. - E muito específico. É só de mim

que ele não se lembra. Foi Lokesh quem fez isso.

- Suspeito que a senhorita esteja certa, mas não vamos perder as

esperanças. Vamos lhe dar tempo suficiente para se recuperar de seus

ferimentos antes de nos preocuparmos demais. Ele precisa descansar e

podemos tentar apresentá-lo a coisas que irão lhe reativar a memória.

Enquanto isso vou entrar em contato com Phet para ver se ele tem

algum medicamento herbáceo que nos ajude neste caso.

Ren ergueu uma das mãos.

- Antes que vocês todos me submetam a testes, ervas e viagens pelos

caminhos da memória, eu queria ter algum tempo para mim.

Com isso, ele deixou a sala. Mais lágrimas encheram meus olhos.

- Acho que eu também quero ficar um pouco sozinha - gaguejei e saí

mancando.

Quando cheguei à escada, após um avanço dolorosamente lento, fiz

uma pausa. Agarrei o corrimão com força, minha visão embaçada pelas

lágrimas. Senti uma mão em meu ombro e me virei para enterrar o

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rosto molhado no peito de Kishan, soluçando. Eu sabia que não era

justo procurar consolo em Kishan e chorar por seu irmão, mas não pude

evitar.

Ele passou os braços sob meus joelhos e me pegou no colo. Segurando-

me junto ao peito, ele me carregou escada acima. Depois de me deitar

na cama, foi até o banheiro, voltou com uma caixa de lenços de papel e

a colocou na mesinha de cabeceira. Kishan murmurou algumas palavras

em híndi, tirou o cabelo do meu rosto, depositou um beijo em minha

testa e me deixou sozinha.

No fim da tarde, Nilima veio me ver.

Eu estava sentada numa poltrona no meu quarto, agarrada ao meu tigre

de pelúcia. Passara o dia chorando e dormindo. Ela me abraçou e se

sentou no sofá.

- Ele não me reconhece - murmurei.

- Dê um tempo a ele. Aqui, eu trouxe um lanche para você.

- Não estou com fome.

- Você também não comeu nada no café da manhã.

Fitei-a com os olhos lacrimejantes.

- Não consigo comer.

- Tudo bem.

Ela foi até o banheiro e voltou com minha escova de cabelo.

- Vai ficar tudo bem, Srta. Kelsey. Ele está de volta e vai se lembrar de

você.

Ela desfez a minha trança e começou a escovar meu cabelo em

movimentos longos e suaves. Aquilo me confortou e me fez lembrar da

minha mãe.

- Acha mesmo que ele vai?

- Acho. E mesmo que não recupere a memória, com certeza vai se

apaixonar por você outra vez. Minha mãe tem um ditado que diz assim:

"Um poço fundo nunca seca." Os sentimentos dele por você são

profundos demais para desaparecerem completamente, mesmo numa

época de estiagem como esta.

Ri em meio às lágrimas.

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- Eu gostaria de conhecer sua mãe.

- Quem sabe um dia?

Ela me deixou sozinha então e, sentindo-me melhor, desci lentamente

ao primeiro andar.

Kishan andava de um lado para outro na cozinha. Ele parou quando

entrei e me ajudou a caminhar. Cobri com filme plástico os pratos com

a comida intocada que Nilima levara para mim, colocando-os na

geladeira.

- Seu tornozelo parece melhor - disse ele após uma breve inspeção.

- O Sr. Kadam me fez colocar gelo e ficar com o pé para cima o dia todo.

- Você está bem? - perguntou.

- É. Vou ficar bem. Não foi o reencontro que eu esperava, mas é melhor

do que achá-lo morto.

- Vou ajudar você. Podemos trabalhar com ele juntos.

Dizer isso deve tê-lo magoado. Mas eu sabia que ele faria isso. Ele

queria que eu fosse feliz e, se me ajudar a me reconcilar com Ren me

fizesse feliz, ele não pouparia esforços.

- Obrigada. Agradeço muito.

Dei um passo em sua direção e quase caí. Ele me segurou e me puxou,

hesitante, para os seus braços. Ele esperava que eu o empurrasse como

se tornara hábito para mim ultimamente, porém, em vez disso, eu o

abracei.

Ele acariciou minhas costas, suspirou e beijou-me a testa. Nesse

momento Ren entrou na cozinha. Fiquei rígida enquanto ele nos

olhava, esperando que reagisse ao fato de Kishan me tocar, mas ele nos

ignorou completamente, pegou uma garrafa de água e saiu sem dizer

palavra.

Kishan ergueu meu queixo com o dedo.

- Ele vai recuperar a memória, Kells.

- Certo.

- Quer assistir a um filme?

- Parece uma boa idéia.

- Ótimo. Mas um filme de ação. Nada daqueles seus musicais.

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Eu ri.

- Ação, é? Algo me diz que você iria gostar de Indiana Jones. Ele passou o braço pela minha cintura e me ajudou a andar até a sala de

cinema da casa.

Só voltei a ver Ren tarde da noite. Ele estava sentado na varanda

olhando a lua. Eu me detive, perguntando-me se ele não queria ficar

sozinho. Então concluí que, se quisesse, era só me pedir que o deixasse.

Quando abri a porta de correr e saí do quarto, ele inclinou a cabeça,

mas não se moveu.

- Incomodo? - perguntei.

- Não. Gostaria de se sentar?

- Sim.

Ele se levantou e educadamente me ajudou a me sentar diante dele.

Examinei o rosto de Ren. Suas contusões haviam quase desaparecido e o

cabelo fora lavado e cortado. Vestia roupas de grife casuais, mas os pés

estavam descalços. Arquejei quando os vi. Ainda estavam roxos e

inchados, o que significava que haviam sido terrivelmente machucados.

- O que ele fez com seus pés?

Seus olhos seguiram o meu olhar e ele deu de ombros.

- Ele os quebrou repetidamente até parecerem sacos de feijão inchados.

- Ah - eu disse, perturbada. - Posso ver suas mãos?

Ele as estendeu e eu as peguei delicadamente nas minhas, examinando-

as com cuidado. A pele dourada estava intacta e os dedos, longos e

retos. As unhas, que mais cedo estavam arrancadas e cheias de sangue,

agora se mostravam inteiras e saudáveis. Virei-lhe as mãos e olhei a

palma. Exceto por um talho na parte interna do braço que terminava no

pulso, pareciam sem danos. Uma pessoa normal que tivesse tido as mãos

quebradas em tantos lugares provavelmente ficaria aleijada. No

mínimo, os nós dos dedos reparados estariam inchados e enrijecidos.

Traçando o talho levemente com o dedo, perguntei:

- E isto aqui?

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- Isto foi de um experimento em que ele tentou drenar todo o sangue do

meu corpo para ver se eu sobreviveria. A boa notícia é que sobrevivi.

Mas ele ficou bastante aborrecido por ter sujado a roupa toda de sangue.

Ele tirou as mãos das minhas bruscamente e estendeu os dois braços ao

longo do encosto do banco.

- Ren, eu...

Ele ergueu uma das mãos.

- Não precisa se desculpar, Kelsey. Não foi culpa sua. Kadam me

explicou tudo.

- O que ele disse?

- Disse que Lokesh estava na verdade atrás de você, que queria o

amuleto de Kishan que você usa agora e que, se eu não tivesse ficado

para trás para lutar, ele teria apanhado nós três.

-Ah.

Ele se inclinou para a frente.

- Fico feliz que ele tenha me levado e não a você. Você teria morrido de

uma forma horrível. Ninguém merece morrer assim.

- Você foi muito nobre.

Ele deu de ombros e olhou para as luminárias da piscina.

- Ren, o que ele... fez com você?

Ele se voltou para mim e baixou o olhar até meu tornozelo inchado.

- Posso? Assenti.

Ele ergueu minha perna delicadamente e a colocou em seu colo. Tocou

a contusão arroxeada de leve e enfiou uma almofada debaixo do pé.

- Sinto muito que você tenha se machucado. E uma pena que não se

cure tão rápido quanto nós.

- Você está se esquivando da minha pergunta.

- Algumas coisas neste mundo não devem ser ditas. Já é ruim o bastante

que uma pessoa tenha conhecimento delas.

- Mas falar ajuda.

- Quando eu me sentir pronto para falar, contarei a Kishan ou a Kadam.

Eles estão calejados por batalhas. Já viram muitas coisas terríveis.

- Eu também estou calejada por batalhas. Ele riu.

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- Você? Não, você é frágil demais para ouvir as coisas por que passei.

Cruzei os braços.

- Não sou assim tão frágil.

- Me desculpe. Eu a ofendi. Frágil não é a palavra certa. Você é... pura

demais, inocente demais, para ouvir essas coisas. Não vou contaminar

sua mente com pensamentos sobre o que Lokesh fez.

- Mas isso pode ajudá-lo.

- Você já sacrificou o bastante por mim.

- Tudo o que você passou foi para me proteger.

- Eu não me lembro disso, mas, se pudesse lembrar, tenho certeza de

que ainda me recusaria a lhe contar tudo.

- Provavelmente. Você pode ser muito teimoso.

- É. Certas coisas nunca mudam.

- Você está se sentindo bem para rever algumas lembranças?

- Podemos tentar. Por onde você quer começar?

- Por que não começamos do início?

Ele assentiu e eu lhe falei sobre a primeira vez que o vi no circo e sobre

o trabalho que eu fazia com ele. Disse como ele escapou da jaula e

dormiu no feno e eu me culpei por não ter trancado a porta. Contei-lhe

sobre o poema do gato e sobre o desenho dele que fiz em meu diário. O

estranho era que ele se lembrava do poema. Até o declamou para mim.

Quando terminei, uma hora havia se passado. Ele ouvira com atenção e,

no fim, assentiu com a cabeça. Parecia muito interessado em meu

diário.

- Posso lê-lo? - perguntou.

Mudei de posição, desconfortável.

- Acho que talvez ajude. Tem uns poemas seus nele e é um bom registro

de quase tudo que fizemos. Talvez reavive alguma coisa na sua

memória. Mas é melhor se preparar para muito sentimentalismo

feminino.

Ele ergueu uma sobrancelha e eu me apressei a explicar:

- Nós não tivemos um início romântico e tranqüilo. No começo eu o

rejeitei, então mudei de idéia, depois o rejeitei novamente. Não foi a

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melhor das decisões, mas pensei que soubesse o que estava fazendo na

ocasião.

Ele sorriu.

- "Em tempo algum teve um tranqüilo curso o verdadeiro amor."

- Quando você leu Sonho de uma noite de verão? - Não li. Estudei um livro de frases famosas de Shakespeare na escola.

- Nunca me contou isso.

- Ah, finalmente alguma coisa que eu sei e você não. - Ele suspirou. -

Essa situação é muito confusa para mim. Peço desculpas se a magoo.

Não é a minha intenção. O Sr. Kadam me contou que você perdeu seus

pais. É verdade?

Assenti com a cabeça.

- Imagine se não conseguisse se lembrar de seus pais. Se tivesse ouvido

histórias de um homem e uma mulher que se dissessem seus pais, mas

que fossem estranhos para você. Eles teriam lembranças de você

fazendo coisas de que você não se lembrava e teriam expectativas em

relação a você. Acalentariam sonhos para o seu futuro, sonhos

diferentes do que você talvez imagine para si mesma.

- Seria muito difícil. Eu provavelmente duvidaria do que estavam me

dizendo.

- Exato. Principalmente se tivesse sido torturada física e mentalmente

por meses a fio.

- Entendi.

Eu me levantei, meu coração se partia mais uma vez. Ren tocou minha

mão quando passei.

- Não é minha intenção ferir seus sentimentos. Posso imaginar muitas

coisas piores do que me dizerem que tenho uma namorada doce e gentil

da qual não consigo me lembrar. Só preciso de tempo para me

acostumar à idéia.

- Ren? Você acha... quer dizer, existe alguma possibilidade... será que

você pode aprender... a me amar novamente?

Ele me olhou pensativo por um instante e disse:

- Eu vou tentar.

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Assenti, em silêncio. Ele soltou minha mão e eu me fechei em meu

quarto.

Ele vai tentar. Uma semana se passou com pouca ou nenhuma melhora. Ele não

conseguia se lembrar de nada a meu respeito, apesar dos esforços de

Kishan, do Sr. Kadam e de Nilima. Começou a perder a paciência com

todos, exceto com Nilima, com quem ele gostava de ficar. Imaginei que

ela o importunasse menos com aquela história. Ela não me conhecia tão

bem quanto os outros e falava de coisas de que ambos se lembravam.

Fiz todos os pratos de que ele gostava no Oregon, inclusive meus

biscoitos de chocolate com manteiga de amendoim. Na primeira vez

que os comeu ele pareceu gostar, mas depois expliquei o significado

daqueles biscoitos e, na segunda vez, ele demonstrou menos

entusiasmo. Não queria que eu ficasse decepcionada pelo fato de ele

comer e isso não estimular sua memória. Kishan aproveitou sua

relutância e acabava sozinho com cada fornada que eu assava. Parei de

cozinhar logo depois disso.

Uma noite desci para jantar e deparei com todos me olhando, ansiosos,

na sala de jantar, que estava enfeitada com bandeirolas cor de pêssego e

marfim. Um grande bolo de várias camadas descansava no centro de

uma mesa lindamente decorada.

- Feliz aniversário, Srta. Kelsey! - exclamou o Sr. Kadam.

- É meu aniversário? Esqueci completamente!

- Quantos anos está fazendo, Kells? - perguntou Kishan.

- Hã... 19.

- Ah, ela ainda é um bebê, hein, Ren?

Ren assentiu e sorriu educadamente.

Kishan me deu um abraço.

- Fique sentada aqui enquanto vou pegar os presentes.

Kishan me ajudou a me sentar e então saiu para buscar os presentes. O

Sr. Kadam havia usado o Fruto Dourado para me oferecer meu prato

favorito: cheeseburger, batatas fritas e um milkshake de chocolate.

Cada um pôde escolher seus pratos favoritos também e todos rimos e

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comentamos a escolha dos outros. Era a primeira vez que eu ria em

muito tempo.

Depois que terminamos o jantar, Kishan anunciou que era hora da

entrega dos presentes. Abri o pacote de Nilima primeiro. Era um frasco

de perfume francês muito caro, que fiz passar de mão em mão.

Kishan cheirou e resmungou:

- O perfume natural dela é muito melhor.

Quando o frasco chegou a Ren, ele sorriu para Nilima e disse:

- Eu gosto.

O sorriso fácil desapareceu do meu rosto.

Em seguida, foi a vez do presente do Sr. Kadam. Ele deslizou um

envelope sobre a mesa e piscou para mim quando enfiei o dedo sob a

aba para abri-lo. Dentro havia a foto de um carro.

Eu a ergui.

- O que é isto?

- É um carro novo.

- Não preciso de um carro novo. Tenho o Porsche em casa.

Ele sacudiu a cabeça com tristeza.

- Não tem mais. Eu o vendi, assim como a casa, através de outra

organização. Lokesh sabia dela e poderia rastreá-la até nós, então achei

melhor não deixar vestígios.

Agitei a foto no ar e sorri.

- E que tipo de carro o senhor decidiu que eu preciso desta vez?

- Nada de mais, de verdade. Só um veículo para levá-la daqui para ali.

- Qual é o carro?

- Um McLaren SLR 722 Roadster.

- E muito grande?

- É um conversível.

- Cabe um tigre nele?

- Não. Só tem lugar para dois, mas os garotos agora são humanos pela

metade do dia.

- Custa mais de 30 mil dólares?

Ele se remexeu e tentou se esquivar:

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- Sim, mas...

- Quanto mais?

- Muito mais.

- Muito quanto? - Uns 400 mil a mais.

Meu queixo caiu.

- Sr. Kadam!

- Srta. Kelsey, eu sei que é uma extravagância, mas quando o dirigir verá

que vale cada centavo.

Cruzei as mãos diante do peito.

- Não vou dirigi-lo. Ele pareceu ofendido.

- Aquele carro foi feito para ser dirigido.

- Então que o senhor o dirija. Eu fico com o Jeep. Ele pareceu tentado.

- Se isso a deixa feliz, podemos partilhá-lo. Kishan bateu palmas.

- Mal posso esperar.

O Sr. Kadam sacudiu o dedo em sua direção.

- Ah, não! Você não. Vamos comprar para você um belo sedã. Usado. - Eu sou um bom motorista! - protestou Kishan.

- Precisa praticar mais. Eu os interrompi, rindo.

- Está bem. Quando o carro chegar, falaremos mais sobre ele.

- O carro já está aqui, Srta. Kelsey. Está lá na garagem. Talvez possamos

dar uma volta mais tarde.

Seus olhos brilhavam de entusiasmo.

- Está bem, somente o senhor e eu. Obrigada pelo meu presente

extraordinário e maravilhosamente extravagante.

Ele assentiu, feliz.

- Muito bem. - Eu sorria. - Estou pronta para o próximo presente.

- Abra o meu - disse Kishan.

Ele me entregou uma grande caixa branca amarrada com uma fita azul

de veludo. Eu a abri, tirei o delicado papel e toquei um tecido azul

sedoso. Eu me levantei e tirei o macio presente da caixa.

- Ah, Kishan! É lindo!

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- Mandei fazer igual ao vestido que você usou no Bosque dos Sonhos.

Obviamente o Lenço não pôde copiar as flores de verdade entremeadas

no tecido e em vez disso incluiu flores bordadas.

Delicadas flores azuis com caules e folhas de um verde suave corriam ao

longo da bainha e pela lateral até a cintura, e então continuavam do

outro lado até o ombro. Fadas aladas púrpura e laranja empoleiravam-se

nas folhas.

- Obrigada! Eu adorei!

Eu o abracei e lhe dei um beijo no rosto. Seus olhos dourados cintilaram

de prazer.

- Obrigada a todos!

- Hã... ainda tem o meu presente. Mas certamente não é tão interessante

quanto esses outros.

Ren empurrou um presente embrulhado às pressas em minha direção e

não viu meu sorriso tímido, pois olhou para as próprias mãos.

O pacote continha algo mole e macio.

- O que será? Deixe-me adivinhar. Um gorro e luvas? Não, eu não

precisaria disso aqui na Índia. Ah, já sei, um lenço de seda!

- Abra para que possamos ver - disse Nilima.

Rasguei o papel de presente e pisquei algumas vezes.

O Sr. Kadam se inclinou para a frente.

- O que foi, Srta. Kelsey?

Uma lágrima rolou pelo meu rosto e rapidamente a enxuguei com o

dorso da mão e sorri.

- É um par de meias muito lindo.

Voltei-me pare Ren.

- Obrigada. Você devia saber que eu estava precisando.

Ren assentiu e empurrou o resto de comida de um lado para outro no

prato. Nilima pressentiu que havia alguma coisa errada, apertou meu

braço e disse:

- Quem quer bolo?

Abri um sorriso luminoso, tentando aliviar a atmosfera.

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Nilima cortou o bolo enquanto o Sr. Kadam adicionava bolas gigantes

de sorvete a cada prato. Agradeci aos dois e comi um pedaço de bolo.

- É de pêssego! Nunca tinha comido bolo de pêssego. Quem o fez? O

Fruto Dourado?

O Sr. Kadam estava ocupado servindo mais uma bola perfeita de

sorvete.

- Na verdade, Nilima e eu que fizemos - disse ele.

- O sorvete - eu sorri - é de pêssego e creme também?

O Sr. Kadam riu.

- É. Na verdade, é da fábrica que você adora. Tillamook, se não estou

enganado.

Comi outro pedaço do bolo.

- Bem que reconheci o sabor. E minha marca de sorvete favorita.

Obrigada por pensar em mim.

O Sr. Kadam sentou-se para saborear seu pedaço e disse:

- Ah, bem, não foi idéia minha. Isso está planejado há muito... - Suas

palavras morreram quando ele percebeu seu erro. Então tossiu,

constrangido, e gaguejou: - Bem, basta dizer que não foi idéia minha.

- Ah.

Ele prosseguiu, pouco à vontade, tentando me distrair de chegar à

conclusão de que meu antigo Ren havia planejado uma festa de

aniversário de pêssegos e creme para mim com meses de antecedência.

O Sr. Kadam começou a me falar sobre o pêssego como símbolo de vida

longa na China e representação de boa sorte.

Eu me desliguei do que ele dizia. O bolo de repente ficou preso na

minha garganta. Bebi um pouco de água para fazê-lo descer.

Ren empurrava o sorvete de pêssego pelo prato.

- Ainda temos aquele sorvete de chocolate com manteiga de amendoim?

Não sou muito fã de pêssego com creme.

Levantei a cabeça e o olhei com choque e decepção. Ouvi o Sr. Kadam

lhe dizer que estava no freezer. Ren empurrou a sobremesa de pêssego

para o lado e saiu da sala. Eu fiquei ali sentada, imóvel, o garfo a meio

caminho da boca.

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Esperei. Logo senti a onda avassaladora de dor me arrastar. No meio do

que deveria ser o céu, cercada pelas pessoas que eu amava, celebrando o

dia do meu nascimento, eu vivia meu próprio inferno. Meus olhos se

encheram de lágrimas. Pedi licença, me levantei e saí rapidamente.

Kishan também ficou de pé, confuso.

Tentando inutilmente infundir entusiasmo na voz, perguntei ao Sr.

Kadam se podíamos dar a volta de carro no dia seguinte.

- É claro - disse ele baixinho.

Subindo a escada, ouvi Kishan ameaçar Ren. Desconfiado, ele

perguntou:

- O que foi que você fez?

- Eu não sei - foi a resposta sussurrada de Ren.

EPÍLOGO

Desprezada

No dia seguinte acordei determinada a tentar fazer o melhor com o que

tinha. Não era culpa de Ren. Ele não sabia o que fazia nem por que doía

tanto em mim. Ele não se lembrava do que dissera sobre meias nem de

qual era o meu cheiro nem de escolher pêssegos e creme em lugar de

chocolate com manteiga de amendoim. É só uma porcaria de sorvete! Quem se importa?

Ninguém se lembrava dessas coisas. A não ser eu. Saí para dar uma volta

no luxuoso conversível com o Sr. Kadam e tentei me sentir feliz

enquanto ele discorria sobre as características do automóvel. Eu fingia

participar, mas por dentro me sentia entorpecida. Estava desesperada.

Tinha a sensação de estar interagindo com um dublê de Ren. Ele

parecia o meu Ren e até podia falar como ele, mas faltava a centelha.

Alguma coisa estava fora do lugar.

Eu havia planejado me exercitar com Kishan quando chegasse em casa,

portanto troquei de roupa e atravessei a lavanderia, descendo a escada

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até o dojo. Parei quando ouvi vozes discutindo. Não era minha intenção

ficar escutando, mas ouvi meu nome e não consegui sair dali.

- Você a está magoando - disse Kishan.

- Acha que não sei disso? Eu não quero magoá-la, mas não vou ser

coagido a sentir algo que não sinto.

- Você não pode pelo menos tentar?

- É o que venho fazendo.

- Já vi você dar mais atenção a uma bola de sorvete do que a ela.

Ren soltou um suspiro exasperado.

- Olhe, tem alguma coisa... perturbadora nela.

- Como assim?

- Na verdade, não sei descrever. É só que, quando estou perto dela... mal

posso esperar para me afastar. É um alívio quando ela não está presente.

- Como pode dizer isso? Você a amava! Era mais apaixonado por ela do

que já foi por qualquer coisa em toda a sua vida!

Ren falou com calma.

- Não consigo me imaginar sentindo isso por ela. Ela é legal e bonitinha,

mas é um pouquinho nova demais. Pena que não era por Nilima que eu

estava apaixonado.

Kishan respondeu indignado.

- Nilima! Ela é como uma irmã para nós! Você nunca demonstrou

nenhum sentimento especial por ela!

- É mais fácil ficar na companhia dela - Ren replicou baixinho. - Ela não

me olha com aqueles olhos castanhos enormes cheios de mágoa.

Os dois irmãos ficaram em silêncio por um minuto. Eu havia mordido o

lábio com força e senti o gosto de sangue, mas a dor não me afetava.

- Kelsey é tudo que um homem pode desejar - Kishan falou com

intensidade. - Ela é perfeita para você. Ela ama poesia e fica feliz

ouvindo-o cantar e tocar seu violão por horas a fio. Esperou meses para

que você fosse atrás dela e arriscou a vida repetidamente para salvar

esse seu pelo branco sarnento. Ela é doce, amorosa, afetuosa e linda, e o

faria imensamente feliz.

Fez-se uma pausa. Então ouvi Ren dizer, incrédulo:

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- Você está apaixonado por ela.

Kishan não respondeu de imediato, mas, quando falou, sua voz era

praticamente um sussurro e quase não pude ouvi-lo.

- Nenhum homem em seu juízo perfeito não estaria, o que prova que

você não está em seu juízo perfeito.

- Talvez eu me sentisse grato a ela e tenha permitido que ela acreditasse

que a amava - disse Ren, pensativo -, mas não sinto isso por ela agora.

- Acredite em mim. Não era gratidão o que você sentia por ela. Você se

consumiu por ela durante meses. Andou de um lado para outro em seu

quarto até fazer um buraco no tapete. Escreveu milhares de poemas de

amor descrevendo a beleza dela e quanto você se sentia infeliz depois

que ela se foi. Se não acredita em mim, vá até seu quarto e leia você

mesmo.

- Já li.

- Então qual é o seu problema? Eu nunca o vi mais feliz em sua porcaria

de vida do que quando estava com ela. Você a amava e era verdadeiro.

- Eu não sei! Talvez o fato de ser torturado repetidamente tenha causado

isso. Talvez Lokesh tenha plantado alguma coisa no meu cérebro que a

destruiu para sempre em minha memória. Quando ouço seu nome ou

sua voz, eu me encolho. Fico na expectativa de sentir dor. Eu não quero

isso. Não é justo com nenhum de nós. Ela não merece que mintam para

ela. Mesmo que eu pudesse aprender a amá-la, a tortura ainda estaria lá,

no fundo da minha mente. Todas as vezes que olho para ela, vejo

Lokesh me interrogando, sempre me interrogando. Me machucando

por causa de uma garota que eu não conhecia. Não posso fazer isso,

Kishan.

- Então... você não a merece.

Houve uma longa pausa.

- Não, acho que não.

Mordi minha mão para reprimir um soluço e arquejei. Eles me ouviram.

- Kells? - chamou Kishan.

Subi os degraus correndo.

- Kells! Espere!

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Ouvi Kishan me seguindo e subi a escada o mais rápido que pude. Eu

sabia que, se não corresse, um deles me alcançaria. Batendo a porta da

lavanderia ao passar, disparei pelo outro lance de escada, entrei no meu

banheiro e fechei a porta. Rastejei para dentro da banheira vazia e

puxei os joelhos até o queixo. Uma variedade de batidas soou na porta -

algumas gentis, algumas insistentes e ásperas, outras que mal se ouviam.

Todos pareceram se revezar. Até mesmo Ren. Por fim, eles me

deixaram em paz.

Levei a mão ao peito. O elo entre nós havia se quebrado. O lindo buquê

de lírios-tigres que eu havia cultivado com todo o cuidado desde a

ausência de Ren secou. Meu coração estava devastado por uma seca

impiedosa. Uma a uma, as pétalas macias e perfumadas murcharam e

caíram.

Por mais que eu as adulasse, podasse, regasse ou cortasse, nada

conseguiria salvá-las. Era inverno. Os caules enfraqueceram. As flores

se consumiram. Pétalas velhas, ressecadas, foram esmagadas até se

tornarem pó e então foram levadas por um vento forte. Tudo que restou

foram alguns tocos marrons - uma triste lembrança de um arranjo que

já fora precioso e inestimável.

Mais tarde naquela noite, saí do meu quarto, calcei meus tênis e peguei

as chaves do meu carro novo. Sem que me vissem, deixei a casa em

silêncio e escorreguei para o assento de couro macio. Disparando pela

estrada com a capota baixada, segui até chegar a um mirante no topo de

uma colina que dava para o vale amplo e arborizado lá embaixo.

Reclinando o assento, me recostei, olhei as estrelas e pensei nas

constelações.

Meu pai uma vez me falara sobre a Estrela do Norte. Ele tinha dito que

os marinheiros podiam sempre contar com ela, que ela nunca falhava.

Estava sempre lá, sempre digna de confiança. Qual era mesmo o outro nome por que era conhecida? Ah, Polaris. Procurei a Ursa Maior, mas

não consegui encontrá-la. Lembrei-me de papai explicando que ela só

era visível no hemisfério norte. Ele dizia que não havia nenhuma

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constelação como ela no hemisfério sul. Tratava-se de um fenômeno

celestial único.

Ren certa vez dissera que era tão constante quanto a Estrela do Norte.

Ele havia sido minha Polaris. Agora eu não tinha um centro. Nenhum

guia. Senti o desespero, sorrateiro, ir tomando conta de mim

novamente. Então uma voz minúscula dentro de mim, com um humor

sarcástico semelhante ao da minha mãe, me lembrou: Só porque você não pode ver a estrela, não significa que ela não esteja lá. Talvez esteja oculta da visão por um tempo, mas pode ter certeza de que ela ainda brilha em algum lugar. Talvez algum dia eu encontrasse aquela centelha novamente. Talvez eu

desperdiçasse minha vida à sua procura. Eu estava à deriva num oceano

de solidão. Um marinheiro sem uma estrela para seguir. Será que eu

poderia ser feliz sem ele? Eu não queria nem considerar essa

possibilidade.

Eu já tinha vivido a perda. Meus pais haviam partido. Ren... se fora.

Mas eu ainda estava ali. Ainda tinha coisas a realizar. Tinha um

trabalho a fazer. Eu já havia conseguido uma vez e podia conseguir de

novo. Atravessaria a dor e seguiria com a vida. Se eu pudesse encontrar

o amor ao lado de alguém no caminho, que fosse. Se não pudesse, então

faria o melhor possível para ser feliz sozinha. Eu tinha sofrido sem Ren

antes e sofreria outra vez agora, mas sobreviveria.

Não tenho como negar que o amei e ainda o amo, refleti, mas existem muitas razões para ser feliz. O Mestre do Oceano afirmou que o propósito da vida é ser feliz. A Divina Tecelã me disse que não me deixasse abater quando o padrão não parecesse adequado. Ela disse que eu deveria esperar, observar e ser paciente e dedicada. Os fios da trama da minha vida estão todos misturados e embolados. Não sei se um dia vou conseguir desembaraçá-los. Neste momento o tecido da minha existência está muito mal-ajambrado. A única coisa que posso fazer é me agarrar à fé, acreditando que um dia verei a luz daquela estrela brilhante novamente. Uma vez eu disse a Ren que nossa história não tinha acabado.

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E não acabou.

Ainda não.

AGRADECIMENTOS

Como sempre, gostaria de agradecer a meu grupo inicial de leitores.

Minha família - Kathy, Bill, Wendy, Jerry, Heidi, Linda, Shara, Tonnie,

Megan, Jared e Suki. E os amigos - Rachelle, Cindy, Josh, Nancy, Heidi

Jo, Alyssa e Linda.

Meus calorosos agradecimentos à minha editora/consultora/conselheira

na índia, Sudha Seshadri, que também se tornou minha amiga e ama

meus tigres tanto quanto eu.

Sou eternamente grata a meu marido, que lê fielmente cada capítulo em

voz alta à medida que eu os escrevo. Sem suas intervenções na

pontuação, ninguém mais compreenderia o texto. Ele é meu maior fã e

meu maior crítico.

Um obrigada especial a meu irmão Jared e sua mulher, Suki, que

pacientemente descreveram, e até demonstraram, todos os movimentos

de artes marciais, de modo que eu pudesse descrever melhor as cenas de

luta.

Também quero expressar meu apreço por Tsultrim Dorjee, assistente no

Escritório de Sua Santidade Dalai-Lama, por me permitir usar citações

dos Dalai-Lamas.

Obrigada à minha primeira equipe de editores na Booksurge,

Rhadamanthus e Gail Cato, pelo trabalho árduo, e meu sincero

reconhecimento a todos na Booksurge, pois, sem o seu trabalho, meus

tigres jamais teriam chegado ao livro impresso.

Agradecimentos muito cordiais a meu agente, Alex, por seus esforços

em meu favor. Seus conhecimentos foram extremamente necessários e

muito apreciados.

Um imenso obrigada e os mais calorosos votos à Equipe do Tigre na

Sterling, especialmente Judi Powers, e uma salva de palmas para minhas

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maravilhosas editoras e amigas Cindy Loh e Mary Hern, que tornaram

este livro o melhor possível.

Finalmente, obrigada a todos os meus fãs que lêem e relêem

incansavelmente, obcecados ao ponto de suas mães terem que esconder

o livro de vocês. Vocês sabem quem são. São todos loucos e

maravilhosos! Obrigada por todos os e-mails carinhosos e pelas cartas

de apoio e estímulo.