COLE_2932

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UMA LEITURA PELAS IMAGENS DE “O HOMEM DA MULTIDÃO” DE EDGAR ALLAN POE CARLOS EDUARDO ALBUQUERQUE MIRANDA (FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA UNICAMP). Resumo Este trabalho apresenta uma leitura pelas imagens do conto “O Homem da Multidão” de Edgard Allan Poe. Para a realização desta leitura, nos colocamos ao mesmo tempo no papel de leitor contemporâneo, mergulhado em um universo audiovisual, e de investigador das origens do cinema enquanto desejo de duplicação do ‘real’ percebido. O caminho que percorremos considerou o ato de ler como sendo constituição e reconstituição de sentidos. Porém, nosso interesse é demonstrar os efeitos com que o autor marcou seu texto e não desvendar suas intencionalidades ou propor uma leitura correta do texto. Ao ler “O Homem da Multidão” investigamos os vestígios de uma arqueologia do cinema na literatura, ou seja, da arte da luz e da sombra que está ao mesmo tempo no leitor e no autor. Como leitores, utilizamos de nossa cultura visual contemporânea para identificar uma forma de composição específica que vai ao encontro das fantasmagorias no final do século XVIII e das lanternas mágicas do século XIX. Nosso objetivo é demonstrar como Poe, neste conto, compõe suas imagens literárias com a luz. O autor cria um narrador que persegue um andarilho fazendo–nos vê–lo de acordo com a iluminação que ele indicia no texto. Pelo fato do narrador também ser uma personagem o conto cria uma co–fusão semelhante à co–fusão que o cinema cria em nossas categorias mentais de interação com a realidade ao utilizar os códigos de realidade que apresenta em forma de luz e sombras nas telas. Somos levados, então, a acreditar na idiossincrasia do andarilho, pois o movimento da leitura nos dá um movimento semelhante ao que cinema nos propõe, ou seja, olharmos as figuras reais descritas e compostas pela luz e não a câmera que as narra. Palavras-chave: leitura, cinema, literatura. UMA LEITURA PELAS IMAGENS DE “O HOMEM DA MULTIDÃO” DE EDGAR ALLAN POE. “(...) ler é fazer-se ler e dar-se a ler”. (Goulemont, 1996:116) INÍCIO DA CONVERSA

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Livro de artigos sobre leitura, literatura

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  • UMA LEITURA PELAS IMAGENS DE O HOMEM DA MULTIDO DE EDGAR ALLAN POE CARLOS EDUARDO ALBUQUERQUE MIRANDA (FACULDADE DE EDUCAO DA UNICAMP). Resumo Este trabalho apresenta uma leitura pelas imagens do conto O Homem da Multido de Edgard Allan Poe. Para a realizao desta leitura, nos colocamos ao mesmo tempo no papel de leitor contemporneo, mergulhado em um universo audiovisual, e de investigador das origens do cinema enquanto desejo de duplicao do real percebido. O caminho que percorremos considerou o ato de ler como sendo constituio e reconstituio de sentidos. Porm, nosso interesse demonstrar os efeitos com que o autor marcou seu texto e no desvendar suas intencionalidades ou propor uma leitura correta do texto. Ao ler O Homem da Multido investigamos os vestgios de uma arqueologia do cinema na literatura, ou seja, da arte da luz e da sombra que est ao mesmo tempo no leitor e no autor. Como leitores, utilizamos de nossa cultura visual contempornea para identificar uma forma de composio especfica que vai ao encontro das fantasmagorias no final do sculo XVIII e das lanternas mgicas do sculo XIX. Nosso objetivo demonstrar como Poe, neste conto, compe suas imagens literrias com a luz. O autor cria um narrador que persegue um andarilho fazendonos vlo de acordo com a iluminao que ele indicia no texto. Pelo fato do narrador tambm ser uma personagem o conto cria uma cofuso semelhante cofuso que o cinema cria em nossas categorias mentais de interao com a realidade ao utilizar os cdigos de realidade que apresenta em forma de luz e sombras nas telas. Somos levados, ento, a acreditar na idiossincrasia do andarilho, pois o movimento da leitura nos d um movimento semelhante ao que cinema nos prope, ou seja, olharmos as figuras reais descritas e compostas pela luz e no a cmera que as narra. Palavras-chave: leitura, cinema, literatura.

    UMA LEITURA PELAS IMAGENS DE O HOMEM DA MULTIDO DE EDGAR ALLAN POE.

    (...) ler fazer-se ler e dar-se a ler.

    (Goulemont, 1996:116)

    INCIO DA CONVERSA

  • Goulemont (1996), interessado em compreender os jogos de conotao que a

    leitura produz, prope: ler constituir e no reconstituir sentido; ler dar e

    produzir sentido, no encontrar o sentido desejado pelo autor. Para ele, a leitura

    uma revelao pontual de uma polissemia do texto literrio (Goulemont, 1996:

    108). A anlise do leitor torna-se, portanto, pertinente, pois o leitor constitui um

    dos termos essenciais do processo de aprovao e de troca que a leitura.

    Neste trabalho o leitor sou eu. Professor e pesquisador da educao, preocupado

    com a inelegibilidade das imagens e a presena destas atravs das tecnologias de

    informao e comunicao na produo do conhecimento e no processo de ensino.

    Meu objetivo fazer-me ler e dar-me a ler. Este objetivo se insere na busca de

    articulaes possveis entre leitura e produo de texto e leitura e produo de

    imagens. Mesmo ciente da controvrsia do uso do termo leitura em relao s

    imagens e da importncia de uma dissertao mais profunda sobre a nossa

    faculdade de imaginao para abordar a articulao que proponho, frustro os

    leitores. Neste momento a apresentao de minha leitura mais o importante.

    No campo pedaggico, minha inteno foi explorar a cultura visual e/ou audiovisual

    imiscuindo-se na leitura de textos, pois me preocupa que nossa sociedade esteja

    perdendo a arte de pensar por imagens. (Campbell, 1990:63).

    Mas no sem conflito que esta leitura se apresenta. O prprio Goulemont (1996)

    preocupa-se em levar sua proposio de leitura a um limite extremo, pois, neste

    caso, o texto poderia se reduzir a um pretexto, que no desempenharia nenhum

    papel, por isso ele ressalva sempre importante perceber que o livro exige uma

    posio do leitor que o interpela. (Goulemont, 1996, 115). na tenso entre

    considerar o ato de ler como sendo constituio e reconstituio de sentidos que

    nossa leitura se constri. No nos interessa desvendar as intencionalidades do

    autor, mas julgamos importante detectar as marcas que este deixou em seu texto,

    marcas que me permitem imaginar aspectos de uma narrativa visual do conto.

    Dados biogrficos do poeta americano poderiam servir a este propsito, porm

    talvez mais significativo para nossa leitura seja o trabalho de arqueologia do

    cinema de Mannoni (2003) que demonstra de forma muito bem documentada que o

  • ambiente cultural de Poe, na primeira metade do sculo XIX, estava saturado de

    artefatos tecnolgicos de reproduo de imagens ticas, como lanternas mgicas,

    caixa de imagens e fantasmagorias. Em diversos crculos americanos e europeus no

    sculo XIX, j era familiar a arte de compor com a luz. Por isso, podemos nos

    arriscar a dizer que esta arte, chamada de pr-cinema por Mannoni (2003), est

    impregnada tanto no autor em sua poca quanto no leitor contemporneo.

    Goulemont (1996) afirma que o leitor, em sua relao com o texto, define-se por

    uma fisiologia, uma histria e uma biblioteca. Ao propor uma leitura pelas imagens

    do conto O Homem da Multido de Edgard Allan Poe[1], eu, como o leitor, defini-me nos trs campos mencionados por Goulemont. Minha fisiologia e minha histria

    fizeram parte da composio das imagens atravs da leitura, dado o fato da minha

    percepo das imagens literrias proposta por Poe terem a marca de um sujeito

    imerso na cultura visual contempornea. Fisiologia e histria foram tomadas aqui

    como duas dimenses da percepo de imagens. Segundo Benjamin (1993), a

    forma da percepo se transforma ao mesmo tempo em que se transforma seu

    modo de existncia, assim: O modo pelo qual se organiza a percepo humana, o

    meio em que ela se d, no apenas condicionado naturalmente, mas

    historicamente (Benjamin, 1993:169). Nesse sentido, posso dizer que junto com

    minha fisiologia e minha histria, participa da leitura no s minha biblioteca, na

    qual figuram outros textos de Poe e sobre Poe, como Sevcenko e Bachelard, mas

    tambm, que operei com minha filmoteca e minha fototeca, ou seja, com outras

    formas de construo da memria que compem minha cultura.

    O TEXTO DA LEITURA

    Poe mostra-nos em O Homem da Multido os tipos pelos quais as massas das

    grandes cidades, as multides, so constitudas. A indefinio fisiognomnica[2] da

    expresso facial de um velho leva o narrador a mergulhar nas correntezas da

    massa. Na impresso de impacto dos corpos, de contato tctil, as certezas sobre os

    tipos que a compem se dissolvem. um estado de esprito fisiognomnico que

    move o narrador atrs do velho.

  • Com a testa na vidraa, estava deste modo ocupado em perscrutar a massa,

    quando de repente apareceu um rosto [...] um rosto que imediatamente

    chamou e absorveu toda a minha ateno, por causa da absoluta

    idiossincrasia de sua expresso. (Poe, 1993: 29)

    No conto de Poe assistimos transformao do narrador, de observador diurno, da

    cidade solar, ao observador noturno, dos interiores da alma. Durante o dia, o olhar

    treinado do narrador identifica as expresses corpreas e faciais das almas da

    cidade, diverte-se em v-las, faz classificaes e as organiza conforme critrios

    sociais hierrquicos. Na cidade solar, o foco nico gerado pelo sol transmigra ao

    olhar do observador, recriando, em tipos, os corpos em movimento que a

    compem.

    medida que a noite avana, o narrador transforma-se no observador noturno,

    destinado aos movimentos de cmera, aproximaes em forma de zoom, closes e

    planos de conjunto, a composies de luz e sombras a partir de diversos focos.

    O narrador, encantado com o mar tumultuoso de cabeas humanas, observa

    detalhes das pessoas da multido: vesturios, gestos e expresses fisionmicas.

    Narra uma cidade diurna e uma cidade noturna Leva-nos ao cinema, que imagem

    e produto do viver urbano (Almeida, 1999: 158). Este conto nos fala da multido e

    dos habitantes urbanos, que se olham e que se deixam olhar, narra a cidade, pelas

    imagens fisiognomnicas da multido.

    Poe constri um narrador/cmera, pelos olhos do qual vemos a cidade, o escurecer

    urbano, as massas, o andarilho; as ruas, avenidas e praas por onde se passam as

    aes de uma perseguio fisiognomnica.

  • Nas primeiras tomadas do narrador/cmera o olhar est sobre um trip e enquadra

    grupos sociais hierarquizados partindo das elites comerciais e de altos

    funcionrios do Estado, descem na escala social, passando pelos baixos

    funcionrios at os trabalhadores manuais e os desempregados. Passam pela ris do

    narrador/cmera os tipos da cidade: da poro mais disciplinada das pessoas s

    mais grosseiras: jogadores, prostitutas, batedores de carteira, criminosos de

    sangue e de colarinho branco. So oito pginas de descrio de grupos sociais em

    um conto de cerca de vinte e uma pginas[3].

    Tempo/espao considervel para uma acomodao do olhar do espectador/leitor.

    Os grupos so caracterizados pelos movimentos dos olhos, das sobrancelhas, da

    boca; pelo jeito de andar, pelos movimentos das mos; pelas roupas e o modo de

    us-las. Nestas descries, posio social, costumes, valores, fisiologia, anatomia e

    traos de personalidade misturam-se compondo quadros explicativos da multido.

    Quando a cidade anoitece, entra em cena o observador noturno. Num primeiro

    momento o olhar continua sobre o trip, o que muda so efeitos de luz que

    permitem um exame individual de cada rosto. Porm, movido por um estado de

    esprito fisiognomnico, o narrador/cmera deixa de fazer apenas registros da

    multido e comea a perseguio ao andarilho de rosto idiossincrtico. Na cidade

    noturna, narrador/cmera compe com a luz dos lampies e com os reflexos destes

    as imagens do personagem andarilho. Poe apresenta em texto, o que cineastas,

    com sua cmera, apresentam em imagem um real percebido como raro e

    extraordinrio. Recordemos a descrio:

    Como eu tentasse durante o breve instante de meu inusitado estudo, formar

    uma anlise do que ela [a expresso] me transmitia, em minha mente

    despontavam, confusa e paradoxalmente, as imagens de imensa capacidade

    mental, cautela, indigncia, avareza, frieza, maldade, sede sanguinria,

    triunfo, alegria, terror excessivo, intenso - supremo desespero. Senti-me

    estranhamente desperto, maravilhado, fascinado. (Poe, 1993: 31)

    Poe compe as imagens literrias com a luz. Recordemos dois momentos do conto:

  • Mas medida que escurecia, a massa ia aumentando; e, quando os

    lampies j estavam todos acesos, dois fluxos densos e contnuos de gente

    corriam diante da porta. (Poe, 1993: 11-13)

    [...]

    medida que a noite avanava, avanava em mim o interesse pela cena;

    pois no s ia se alterando materialmente o carter geral da multido (suas

    feies mais amenas iam sumindo com a retirada gradativa da poro mais

    disciplinada das pessoas e as mais grosseiras surgindo em mais acentuado

    relevo, medida que a hora adiantada trazia toda espcie de infmia para

    fora da toca), como tambm os reflexos dos lampies de gs, antes

    enfraquecidos em sua disputa com o dia evanescente, tinham agora enfim

    alcanado a supremacia e derramavam sobre todas as coisas uma

    luminosidade ofuscante e cambiante. (Poe, 1993: 27-29)

    A luminosidade do anoitecer na cidade em composio com a luz dos lampies

    resulta em uma iluminao difusa. O ataque da luz dos lampies amenizado pela

    luz do dia evanescente que funciona como uma fonte de compensao de luz. As

    formas so, assim, amenizadas pelo baixo contraste. Podemos, ento, ir alm de

    interpretaes etnolgicas ou sociolgicas a respeito das mudanas na composio

    da multido. O relevo mais acentuado das faces dos grupos noturnos que tomam

    conta das ruas ao anoitecer dado, tambm, pela diminuio do efeito de difuso

    da luz durante o dia, que torna o ataque da luz dos lampies mais direto e duro.

    Quando o ataque da luz duro e direto temos sombras duras, o que intensifica o

    relevo. [4] A sensibilidade de Poe com relao luminosidade da e na cidade

    noturna possibilita-nos ver uma cidade grafada

    pela luz. Vejamos mais alguns trechos.

    Os efeitos fantsticos da luz me obrigavam a um exame individual de cada

    rosto; e ainda que a rapidez com que o mundo de luz borboleteava diante da

    janela me impedisse de lanar mais do que um olhar em cada semblante,

    mesmo assim parecia que, no peculiar estado de esprito em que me

  • encontrava, eu muitas vezes conseguia ler, at neste breve intervalo de um

    olhar, a histria de longos anos. (Poe, 1993: 29)

    E durante da perseguio ao andarilho:

    (...) Vestindo precipitadamente um sobretudo e apanhando meu chapu e

    minha bengala, me dirigi para a rua e abri caminho pela multido na direo

    que eu o vira tomar; pois ele j tinha sumido. Com alguma dificuldade

    finalmente eu o avistei, me aproximei e o segui de parte, mas

    cautelosamente, de modo a no chamar sua ateno.

    Eu tinha agora uma boa oportunidade de examinar a sua pessoa. Era de

    baixa estatura, muito magro e aparentemente muito frgil. Suas roupas

    estavam, no geral, imundas e rasgadas; mas passando ele de vez em

    quando pelo brilho de uma lmpada, percebi que sua roupa branca, ainda

    que suja, era de boa qualidade; e, se meus olhos no me enganaram,

    entrevi, por um rasgo do roquelaure[5] cuidadosamente abotoado e obviamente de segunda mo que o envolvia, um diamante e um punhal.

    (Poe, 1993: 33)

    O close, do narrador/cmera, no diamante e no punhal, composto quando o

    andarilho se aproxima de uma fonte de luz. Para a composio de um plano de

    detalhe, a luz de ataque e de compensao deve ser combinada e intensificada para

    que o plano detalhe no se torne demasiadamente sombreado. Poe intensifica a

    iluminao da cena para chamar nossa ateno para um detalhe no corpo do

    andarilho. Logo adiante, durante a perseguio, quando se faz necessrio, Poe

    muda o local e a luz. Vejamos:

    Uma segunda mudana de direo nos trouxe a uma praa esplendidamente

    iluminada e trasbordante de vida. O antigo jeito do desconhecido

    reapareceu. Seu queixo caiu sobre o peito, enquanto seus olhos se moviam

    desvairadamente por baixo das sobrancelhas franzidas, para todo lado, para

    os que o cercavam. (Poe, 1993: 37)

  • A iluminao forte e bem distribuda, ou seja, composta de vrias fontes de luz de

    ataque e de compensao, preenchem o enquadramento da praa. Tal iluminao

    permite uma alternncia equilibrada na composio de planos abertos, isto , de

    conjunto, e de planos de detalhe. Com o cenrio da praa de tal modo iluminado,

    Poe pode, ento, falar-nos sobre o ambiente, sobre o personagem e suas

    expresses fisionmicas, alternadamente. Nota-se que o gesto e a expresso do

    andarilho mudam em um ambiente iluminado. O queixo cado sobre o peito,

    combinado com a luminosidade alta da praa, coloca a cavidade dos olhos nas

    sombras provocadas pelas sobrancelhas franzidas. A composio cinematogrfica

    insinuada pelo contra-plano, pois o narrador/cmera est atrs do andarilho ao

    adentrarmos na praa. Somos levados a imaginar uma outra cmera em frente ao

    andarilho para visualizar o movimento dos olhos.

    Poe no compe com a luz apenas as imagens da cidade e dos locais por onde

    passam narrador/cmera e andarilho. A luminosidade compe tambm a alma e os

    humores internos do velho idiossincrtico, assim como a alma dos lugares por onde

    se passam as cenas. Vejamos esta ltima passagem:

    Era o mais repulsivo bairro de Londres, onde cada coisa revestida da pior

    marca da mais deplorvel pobreza e do crime mais desesperado. luz de

    um eventual lampio viam-se casas de madeira altas, antigas, titubeantes e

    atacadas por cupins, em tantas e to caprichosas direes que mal se

    apercebia entre elas algo parecido com uma passagem. Os paraleleppedos

    jaziam a esmo, arrancados de seus lugares pela grama crescendo solta.

    Uma imundcie horrvel apodrecia nas sarjetas entupidas. A atmosfera era

    toda repleta de desolao. No entanto, enquanto avanvamos, os rudos da

    vida humana ressurgiam clara e gradualmente, e afinal avistamos grandes

    bandos dos maiores marginalizados de um populacho londrino, cambaleando

    daqui e dali. O nimo do velho tremulou novamente, como uma lamparina

    prestes a expirar. Ele mais uma vez saiu andando a passos largos e

    elsticos. De repente, dobrou-se uma esquina, um claro de luz nos explodiu

    nos olhos, e nos deparamos com um dos imensos templos suburbanos da

    Intemperana um dos palcios do demnio, o Gim. (Poe, 1993: 45-47)

  • Poe um iluminador habilidoso. Como explicar uma descrio to minuciosa de um

    lugar em que as fontes de luz so poucas e esparsas? Lembremos que em uma

    passagem anterior do conto, chove: era agora noite escura, e uma espessa nvoa

    mida pairava sobre a cidade, logo desaguando uma chuva densa e pesada (Poe,

    1993: 33). Poas de gua refletem a luz dos lampies, aumentando a intensidade

    de luz na cena, criando uma segunda fonte de luz, difusa luz reflexa. Isto nos

    permite imaginar uma cena acinzentada e no de contrastes fortes entre claro e

    escuro, como um cenrio escuro de pontos esparsos de luz nos levariam a

    imaginar. Nos filmes e nas fotografias em branco e preto esta luz de compensao

    fundamental para que possamos distinguir profundidade de campo e suas formas.

    A profundidade de campo produzida pela iluminao de Poe permite no apenas

    postar o andarilho no cenrio, mas tambm entrar na atmosfera do lugar e

    mimetizar a alma do velho seu estado de nimo, uma lamparina prestes a

    expirar. O fluido vital dos lampies e o fluido vital do andarilho, o brilho mais forte

    de cada um anuncia seu esgotamento na direo viciosa da Intemperana. E, ao

    chegarmos neste antro a luz, o claro que explode nos olhos, antes cega do que

    permite ver.

    Como dissemos, Poe compe suas imagens literrias com a luz. Assim, Poe, com

    seu narrador/cmera, cria e persegue o personagem andarilho, fazendo-nos

    perceber aquilo que ele quer que seja percebido, e com uma determinada forma de

    percepo que nos conduz a compartilhar o estado fisiognomnico do narrador.

    Quase podemos dizer que Poe foto-grafa, compondo sua narrativa. Porm, o seu

    narrador/cmera tambm um personagem, e precisamente isso que provoca

    uma co-fuso no conto. Uma co-fuso tal como acontece no cinema, segundo

    Almeida (1994). Somos levados, ento, a acreditar na idiossincrasia do andarilho,

    pois o movimento da leitura nos leva a olhar o andarilho e no o narrador, assim

    como no cinema, que nos leva a olhar as figuras reais descritas e compostas pela

    luz e no a cmera que as narra. Vale a pena recordar as palavras de Almeida:

    O filme um produto, inveno de uma histria, uma sucesso no tempo de

    um espao-temporalidade circunscrita entre o incio e o fim de sua projeo.

    O material audiovisual, fsico, sensorial, humano, que presidiu sua

    produo, em todas as fases, at tornar-se um objeto para ser exibido, vai

  • nos aparecer como uma sucessividade sinttica. O filme circunscreve um

    espao de tempo e iluso em que as categorias mentais que utilizamos em

    nossa interao com a realidade l estaro confinadas e transformadas pelos

    cdigos da realidade cinematogrfica (ou televisiva). desta co-fuso que

    nasce a verossimilhana e sua conseqente absoro como realidade,

    verdade, pr-formando o que chamamos de nova oralidade. (...) O tempo do

    cinema e da televiso o tempo do futuro do pretrito, um isso teria

    acontecido que se transforma no presente do espectador, na fuso com o

    presente da projeo, uma construo metonmica do significado. (Almeida,

    1994: 47)

    fuso do leitor com o narrador que replica como uma cmera cinematogrfica a

    ao de perseguio, acrescenta-se a composio de imagens literrias grafadas

    pela luminosidade dos ambientes pelo qual o andarilho percorre. Esse o efeito de

    co-fuso. Essa a forma literria modelada por Edgar Allan Poe para enredar seu

    leitor no estado fisiognomnico sem soluo, pois em nenhum momento h uma

    descrio do rosto do velho andarilho. O rosto do andarilho, de uma expresso de

    absoluta idiossincrasia e que ao final do conto revela-se como modelo e gnio do

    crime profundo, uma face especular da cidade noturna percorrida durante a

    perseguio.

    PARCEIROS DE LEITURA

    Para Bachelard, Poe um dos raros escritores que trabalham no limite do devaneio

    e do pensamento objetivo, ou seja, numa regio confusa onde o sonho se alimenta

    de forma e de cores reais e onde a realidade esttica recebe uma atmosfera onrica.

    A comparao entre imagem flmica e imagem onrica conhecida. Podemos ver

    tambm nos comentrios de Bachelard como Poe d ao devaneio e ao sonho uma

    sucessividade sinttica:

    Se lermos Edgar Poe com necessrio vagar, tomando o cuidado de respeitar

    a dupla exigncia do sonho e da narrativa, aprenderemos a fazer sonhar a

  • mais clara inteligncia, aprenderemos tambm a despertar, para uma

    aventura contnua, o mais desatento e o mais episdico devaneio.

    (Bachelard, 1994: 107)

    Para Sevcenko, o conto de Poe praticamente no tem enredo e se sustenta graas

    a uma atmosfera extremamente densa de impresses e emoes que envolvem o

    narrador, arrastando-o a um comportamento compulsivo irreversvel:

    A fora propulsora da narrativa se concentra, portanto no jogo das

    disposies psicolgicas peculiares deste personagem [o narrador]. Ele por

    sua vez, transmite ao leitor uma sensao de estranheza e desconforto, na

    medida em que descreve situaes familiares aos habitantes de uma grande

    cidade, arrastando-as porm a uma profundidade de penetrao nos

    desvos do cotidiano que ultrapassa demais a superficialidade com que os

    olhares comumente percorrem a fisionomia das metrpoles. (Sevcenko,

    1985: 73)

    A acuidade tica do narrador de Poe mencionada por Sevcenko nos lembra o novo

    mundo descoberto pela cmera cinematogrfica segundo Bela Balzs:

    A cmera descobriu a clula-me das matrias vitais nas quais todos os

    grandes eventos so, em ltima instncia, concebidos: pois o maior pedao

    da terra no passa de um agregado de partculas em movimento. Um

    grande nmero de close-ups pode mostrar o instante mesmo em que o geral

    transformado em particular. O close-up no s ampliou como tambm

    aprofundou nossa viso da vida. (Balzs: 1983: p.90)

    Porm, nossa inteno no reivindicar origens de procedimentos cinematogrficos

    literatura. O ato de leitura um encontro de culturas e de formas de significao.

    Posso ver a luz, a cmera e a composies flmicas em Poe porque estes fazem

  • parte de minha fototeca, de minha filmoteca, de minha histria. Mas Poe deixou

    vestgios em uma forma de composio narrativa de perseguio que me permite

    inferir sua cultura tica, permeada por lanternas mgicas, caixas de imagens e

    fantasmagorias. No custa nada lembrar que o conto de Poe foi escrito um ano

    depois do registro oficial da inveno do daguerretipo.

    Em relao educao e mdia, esta proposio de leitura segue um caminho de

    busca pela compreenso da construo da memria visual compreender o

    audiovisual em seus procedimentos de produo de significados complexos;

    explorar as formas de percepo que nosso momento histrico nos proporciona e,

    chamar ateno para a construo de uma observao singular no ato leitura, sem

    a pretenso de ser nica e muito menos original.

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  • POE, Edgar A. O Homem da multido. Traduo de Dorothe de Bruchard. Edio Bilnge. Porto Alegre: Paraula, 1993, 51p.

    ____, E A. Histrias extraordinrias. Traduo de Jose Maria Machado. So Paulo: Clube do Livro, 1988. 216p.

    ____, E.A. Contos de terror, de mistrio e de morte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. 249p.

    SEVCENKO, N. Perfis urbanos Terrveis em Edgar Allan Poe. Revista Brasileira de Histria. V. 5 n. 8/9 set.1984/abr.1985. So Paulo: FFLCH/USP, p.69-83, 1985.

    [1] Conto de Poe foi publicado pela primeira Burtuns & the Casket em dezembro de 1840

    [2] Segundo Courtine & Haroche, a fisiognomonia se inscreve numa tradio em que: Civilidade e conversao so [portanto] artes, quer dizer habilidades. Com efeito, na idade clssica, as artes so disciplinas que pressupe um saber, mas que no so verdadeiramente cincias; que reclamam de quem as pratica prudncia e sabedoria, tacto e intuio, uma vez que o saber inseparvel da tica e da conduta pessoal na existncia social: a arte supe um clculo do eu, uma medida do outro, o sentido da circunstncia. Neste exerccio, o uso da linguagem, o cuidado na expresso no fazem calar o corpo; a aparncia, a boa presena e a postura devem harmonizar-se com a elegncia e a exatido do verbo. Um saber, uma tica e uma esttica da linguagem e do corpo que assim liguem a civilidade conversao. In COURTINE, Jean-Jacques & HAROCHE, Claudine. Histria do Rosto. Traduo de Ana Moura. Lisboa: Teorema, 1988, pp. 20-1.

    [3] Considerando a edio com que estamos trabalhando, conforme bibliografia.

    [4] Os comentrios sobre a luz tm como referncia o livro de Edgar Moura: MOURA, Edgar. 50 anos de luz, cmera e ao. So Paulo: SENAC So Paulo, 1999, 444p.

    [5] O roquelaure (aluso ao Duque do mesmo nome) era um casaco justo e que ia at os joelhos, usado pelos homens na poca de Louis XIV (cerca de 200 anos antes da poca do conto).