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UMA LEITURA PELAS IMAGENS DE O HOMEM DA MULTIDO DE EDGAR ALLAN POE CARLOS EDUARDO ALBUQUERQUE MIRANDA (FACULDADE DE EDUCAO DA UNICAMP). Resumo Este trabalho apresenta uma leitura pelas imagens do conto O Homem da Multido de Edgard Allan Poe. Para a realizao desta leitura, nos colocamos ao mesmo tempo no papel de leitor contemporneo, mergulhado em um universo audiovisual, e de investigador das origens do cinema enquanto desejo de duplicao do real percebido. O caminho que percorremos considerou o ato de ler como sendo constituio e reconstituio de sentidos. Porm, nosso interesse demonstrar os efeitos com que o autor marcou seu texto e no desvendar suas intencionalidades ou propor uma leitura correta do texto. Ao ler O Homem da Multido investigamos os vestgios de uma arqueologia do cinema na literatura, ou seja, da arte da luz e da sombra que est ao mesmo tempo no leitor e no autor. Como leitores, utilizamos de nossa cultura visual contempornea para identificar uma forma de composio especfica que vai ao encontro das fantasmagorias no final do sculo XVIII e das lanternas mgicas do sculo XIX. Nosso objetivo demonstrar como Poe, neste conto, compe suas imagens literrias com a luz. O autor cria um narrador que persegue um andarilho fazendonos vlo de acordo com a iluminao que ele indicia no texto. Pelo fato do narrador tambm ser uma personagem o conto cria uma cofuso semelhante cofuso que o cinema cria em nossas categorias mentais de interao com a realidade ao utilizar os cdigos de realidade que apresenta em forma de luz e sombras nas telas. Somos levados, ento, a acreditar na idiossincrasia do andarilho, pois o movimento da leitura nos d um movimento semelhante ao que cinema nos prope, ou seja, olharmos as figuras reais descritas e compostas pela luz e no a cmera que as narra. Palavras-chave: leitura, cinema, literatura.
UMA LEITURA PELAS IMAGENS DE O HOMEM DA MULTIDO DE EDGAR ALLAN POE.
(...) ler fazer-se ler e dar-se a ler.
(Goulemont, 1996:116)
INCIO DA CONVERSA
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Goulemont (1996), interessado em compreender os jogos de conotao que a
leitura produz, prope: ler constituir e no reconstituir sentido; ler dar e
produzir sentido, no encontrar o sentido desejado pelo autor. Para ele, a leitura
uma revelao pontual de uma polissemia do texto literrio (Goulemont, 1996:
108). A anlise do leitor torna-se, portanto, pertinente, pois o leitor constitui um
dos termos essenciais do processo de aprovao e de troca que a leitura.
Neste trabalho o leitor sou eu. Professor e pesquisador da educao, preocupado
com a inelegibilidade das imagens e a presena destas atravs das tecnologias de
informao e comunicao na produo do conhecimento e no processo de ensino.
Meu objetivo fazer-me ler e dar-me a ler. Este objetivo se insere na busca de
articulaes possveis entre leitura e produo de texto e leitura e produo de
imagens. Mesmo ciente da controvrsia do uso do termo leitura em relao s
imagens e da importncia de uma dissertao mais profunda sobre a nossa
faculdade de imaginao para abordar a articulao que proponho, frustro os
leitores. Neste momento a apresentao de minha leitura mais o importante.
No campo pedaggico, minha inteno foi explorar a cultura visual e/ou audiovisual
imiscuindo-se na leitura de textos, pois me preocupa que nossa sociedade esteja
perdendo a arte de pensar por imagens. (Campbell, 1990:63).
Mas no sem conflito que esta leitura se apresenta. O prprio Goulemont (1996)
preocupa-se em levar sua proposio de leitura a um limite extremo, pois, neste
caso, o texto poderia se reduzir a um pretexto, que no desempenharia nenhum
papel, por isso ele ressalva sempre importante perceber que o livro exige uma
posio do leitor que o interpela. (Goulemont, 1996, 115). na tenso entre
considerar o ato de ler como sendo constituio e reconstituio de sentidos que
nossa leitura se constri. No nos interessa desvendar as intencionalidades do
autor, mas julgamos importante detectar as marcas que este deixou em seu texto,
marcas que me permitem imaginar aspectos de uma narrativa visual do conto.
Dados biogrficos do poeta americano poderiam servir a este propsito, porm
talvez mais significativo para nossa leitura seja o trabalho de arqueologia do
cinema de Mannoni (2003) que demonstra de forma muito bem documentada que o
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ambiente cultural de Poe, na primeira metade do sculo XIX, estava saturado de
artefatos tecnolgicos de reproduo de imagens ticas, como lanternas mgicas,
caixa de imagens e fantasmagorias. Em diversos crculos americanos e europeus no
sculo XIX, j era familiar a arte de compor com a luz. Por isso, podemos nos
arriscar a dizer que esta arte, chamada de pr-cinema por Mannoni (2003), est
impregnada tanto no autor em sua poca quanto no leitor contemporneo.
Goulemont (1996) afirma que o leitor, em sua relao com o texto, define-se por
uma fisiologia, uma histria e uma biblioteca. Ao propor uma leitura pelas imagens
do conto O Homem da Multido de Edgard Allan Poe[1], eu, como o leitor, defini-me nos trs campos mencionados por Goulemont. Minha fisiologia e minha histria
fizeram parte da composio das imagens atravs da leitura, dado o fato da minha
percepo das imagens literrias proposta por Poe terem a marca de um sujeito
imerso na cultura visual contempornea. Fisiologia e histria foram tomadas aqui
como duas dimenses da percepo de imagens. Segundo Benjamin (1993), a
forma da percepo se transforma ao mesmo tempo em que se transforma seu
modo de existncia, assim: O modo pelo qual se organiza a percepo humana, o
meio em que ela se d, no apenas condicionado naturalmente, mas
historicamente (Benjamin, 1993:169). Nesse sentido, posso dizer que junto com
minha fisiologia e minha histria, participa da leitura no s minha biblioteca, na
qual figuram outros textos de Poe e sobre Poe, como Sevcenko e Bachelard, mas
tambm, que operei com minha filmoteca e minha fototeca, ou seja, com outras
formas de construo da memria que compem minha cultura.
O TEXTO DA LEITURA
Poe mostra-nos em O Homem da Multido os tipos pelos quais as massas das
grandes cidades, as multides, so constitudas. A indefinio fisiognomnica[2] da
expresso facial de um velho leva o narrador a mergulhar nas correntezas da
massa. Na impresso de impacto dos corpos, de contato tctil, as certezas sobre os
tipos que a compem se dissolvem. um estado de esprito fisiognomnico que
move o narrador atrs do velho.
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Com a testa na vidraa, estava deste modo ocupado em perscrutar a massa,
quando de repente apareceu um rosto [...] um rosto que imediatamente
chamou e absorveu toda a minha ateno, por causa da absoluta
idiossincrasia de sua expresso. (Poe, 1993: 29)
No conto de Poe assistimos transformao do narrador, de observador diurno, da
cidade solar, ao observador noturno, dos interiores da alma. Durante o dia, o olhar
treinado do narrador identifica as expresses corpreas e faciais das almas da
cidade, diverte-se em v-las, faz classificaes e as organiza conforme critrios
sociais hierrquicos. Na cidade solar, o foco nico gerado pelo sol transmigra ao
olhar do observador, recriando, em tipos, os corpos em movimento que a
compem.
medida que a noite avana, o narrador transforma-se no observador noturno,
destinado aos movimentos de cmera, aproximaes em forma de zoom, closes e
planos de conjunto, a composies de luz e sombras a partir de diversos focos.
O narrador, encantado com o mar tumultuoso de cabeas humanas, observa
detalhes das pessoas da multido: vesturios, gestos e expresses fisionmicas.
Narra uma cidade diurna e uma cidade noturna Leva-nos ao cinema, que imagem
e produto do viver urbano (Almeida, 1999: 158). Este conto nos fala da multido e
dos habitantes urbanos, que se olham e que se deixam olhar, narra a cidade, pelas
imagens fisiognomnicas da multido.
Poe constri um narrador/cmera, pelos olhos do qual vemos a cidade, o escurecer
urbano, as massas, o andarilho; as ruas, avenidas e praas por onde se passam as
aes de uma perseguio fisiognomnica.
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Nas primeiras tomadas do narrador/cmera o olhar est sobre um trip e enquadra
grupos sociais hierarquizados partindo das elites comerciais e de altos
funcionrios do Estado, descem na escala social, passando pelos baixos
funcionrios at os trabalhadores manuais e os desempregados. Passam pela ris do
narrador/cmera os tipos da cidade: da poro mais disciplinada das pessoas s
mais grosseiras: jogadores, prostitutas, batedores de carteira, criminosos de
sangue e de colarinho branco. So oito pginas de descrio de grupos sociais em
um conto de cerca de vinte e uma pginas[3].
Tempo/espao considervel para uma acomodao do olhar do espectador/leitor.
Os grupos so caracterizados pelos movimentos dos olhos, das sobrancelhas, da
boca; pelo jeito de andar, pelos movimentos das mos; pelas roupas e o modo de
us-las. Nestas descries, posio social, costumes, valores, fisiologia, anatomia e
traos de personalidade misturam-se compondo quadros explicativos da multido.
Quando a cidade anoitece, entra em cena o observador noturno. Num primeiro
momento o olhar continua sobre o trip, o que muda so efeitos de luz que
permitem um exame individual de cada rosto. Porm, movido por um estado de
esprito fisiognomnico, o narrador/cmera deixa de fazer apenas registros da
multido e comea a perseguio ao andarilho de rosto idiossincrtico. Na cidade
noturna, narrador/cmera compe com a luz dos lampies e com os reflexos destes
as imagens do personagem andarilho. Poe apresenta em texto, o que cineastas,
com sua cmera, apresentam em imagem um real percebido como raro e
extraordinrio. Recordemos a descrio:
Como eu tentasse durante o breve instante de meu inusitado estudo, formar
uma anlise do que ela [a expresso] me transmitia, em minha mente
despontavam, confusa e paradoxalmente, as imagens de imensa capacidade
mental, cautela, indigncia, avareza, frieza, maldade, sede sanguinria,
triunfo, alegria, terror excessivo, intenso - supremo desespero. Senti-me
estranhamente desperto, maravilhado, fascinado. (Poe, 1993: 31)
Poe compe as imagens literrias com a luz. Recordemos dois momentos do conto:
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Mas medida que escurecia, a massa ia aumentando; e, quando os
lampies j estavam todos acesos, dois fluxos densos e contnuos de gente
corriam diante da porta. (Poe, 1993: 11-13)
[...]
medida que a noite avanava, avanava em mim o interesse pela cena;
pois no s ia se alterando materialmente o carter geral da multido (suas
feies mais amenas iam sumindo com a retirada gradativa da poro mais
disciplinada das pessoas e as mais grosseiras surgindo em mais acentuado
relevo, medida que a hora adiantada trazia toda espcie de infmia para
fora da toca), como tambm os reflexos dos lampies de gs, antes
enfraquecidos em sua disputa com o dia evanescente, tinham agora enfim
alcanado a supremacia e derramavam sobre todas as coisas uma
luminosidade ofuscante e cambiante. (Poe, 1993: 27-29)
A luminosidade do anoitecer na cidade em composio com a luz dos lampies
resulta em uma iluminao difusa. O ataque da luz dos lampies amenizado pela
luz do dia evanescente que funciona como uma fonte de compensao de luz. As
formas so, assim, amenizadas pelo baixo contraste. Podemos, ento, ir alm de
interpretaes etnolgicas ou sociolgicas a respeito das mudanas na composio
da multido. O relevo mais acentuado das faces dos grupos noturnos que tomam
conta das ruas ao anoitecer dado, tambm, pela diminuio do efeito de difuso
da luz durante o dia, que torna o ataque da luz dos lampies mais direto e duro.
Quando o ataque da luz duro e direto temos sombras duras, o que intensifica o
relevo. [4] A sensibilidade de Poe com relao luminosidade da e na cidade
noturna possibilita-nos ver uma cidade grafada
pela luz. Vejamos mais alguns trechos.
Os efeitos fantsticos da luz me obrigavam a um exame individual de cada
rosto; e ainda que a rapidez com que o mundo de luz borboleteava diante da
janela me impedisse de lanar mais do que um olhar em cada semblante,
mesmo assim parecia que, no peculiar estado de esprito em que me
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encontrava, eu muitas vezes conseguia ler, at neste breve intervalo de um
olhar, a histria de longos anos. (Poe, 1993: 29)
E durante da perseguio ao andarilho:
(...) Vestindo precipitadamente um sobretudo e apanhando meu chapu e
minha bengala, me dirigi para a rua e abri caminho pela multido na direo
que eu o vira tomar; pois ele j tinha sumido. Com alguma dificuldade
finalmente eu o avistei, me aproximei e o segui de parte, mas
cautelosamente, de modo a no chamar sua ateno.
Eu tinha agora uma boa oportunidade de examinar a sua pessoa. Era de
baixa estatura, muito magro e aparentemente muito frgil. Suas roupas
estavam, no geral, imundas e rasgadas; mas passando ele de vez em
quando pelo brilho de uma lmpada, percebi que sua roupa branca, ainda
que suja, era de boa qualidade; e, se meus olhos no me enganaram,
entrevi, por um rasgo do roquelaure[5] cuidadosamente abotoado e obviamente de segunda mo que o envolvia, um diamante e um punhal.
(Poe, 1993: 33)
O close, do narrador/cmera, no diamante e no punhal, composto quando o
andarilho se aproxima de uma fonte de luz. Para a composio de um plano de
detalhe, a luz de ataque e de compensao deve ser combinada e intensificada para
que o plano detalhe no se torne demasiadamente sombreado. Poe intensifica a
iluminao da cena para chamar nossa ateno para um detalhe no corpo do
andarilho. Logo adiante, durante a perseguio, quando se faz necessrio, Poe
muda o local e a luz. Vejamos:
Uma segunda mudana de direo nos trouxe a uma praa esplendidamente
iluminada e trasbordante de vida. O antigo jeito do desconhecido
reapareceu. Seu queixo caiu sobre o peito, enquanto seus olhos se moviam
desvairadamente por baixo das sobrancelhas franzidas, para todo lado, para
os que o cercavam. (Poe, 1993: 37)
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A iluminao forte e bem distribuda, ou seja, composta de vrias fontes de luz de
ataque e de compensao, preenchem o enquadramento da praa. Tal iluminao
permite uma alternncia equilibrada na composio de planos abertos, isto , de
conjunto, e de planos de detalhe. Com o cenrio da praa de tal modo iluminado,
Poe pode, ento, falar-nos sobre o ambiente, sobre o personagem e suas
expresses fisionmicas, alternadamente. Nota-se que o gesto e a expresso do
andarilho mudam em um ambiente iluminado. O queixo cado sobre o peito,
combinado com a luminosidade alta da praa, coloca a cavidade dos olhos nas
sombras provocadas pelas sobrancelhas franzidas. A composio cinematogrfica
insinuada pelo contra-plano, pois o narrador/cmera est atrs do andarilho ao
adentrarmos na praa. Somos levados a imaginar uma outra cmera em frente ao
andarilho para visualizar o movimento dos olhos.
Poe no compe com a luz apenas as imagens da cidade e dos locais por onde
passam narrador/cmera e andarilho. A luminosidade compe tambm a alma e os
humores internos do velho idiossincrtico, assim como a alma dos lugares por onde
se passam as cenas. Vejamos esta ltima passagem:
Era o mais repulsivo bairro de Londres, onde cada coisa revestida da pior
marca da mais deplorvel pobreza e do crime mais desesperado. luz de
um eventual lampio viam-se casas de madeira altas, antigas, titubeantes e
atacadas por cupins, em tantas e to caprichosas direes que mal se
apercebia entre elas algo parecido com uma passagem. Os paraleleppedos
jaziam a esmo, arrancados de seus lugares pela grama crescendo solta.
Uma imundcie horrvel apodrecia nas sarjetas entupidas. A atmosfera era
toda repleta de desolao. No entanto, enquanto avanvamos, os rudos da
vida humana ressurgiam clara e gradualmente, e afinal avistamos grandes
bandos dos maiores marginalizados de um populacho londrino, cambaleando
daqui e dali. O nimo do velho tremulou novamente, como uma lamparina
prestes a expirar. Ele mais uma vez saiu andando a passos largos e
elsticos. De repente, dobrou-se uma esquina, um claro de luz nos explodiu
nos olhos, e nos deparamos com um dos imensos templos suburbanos da
Intemperana um dos palcios do demnio, o Gim. (Poe, 1993: 45-47)
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Poe um iluminador habilidoso. Como explicar uma descrio to minuciosa de um
lugar em que as fontes de luz so poucas e esparsas? Lembremos que em uma
passagem anterior do conto, chove: era agora noite escura, e uma espessa nvoa
mida pairava sobre a cidade, logo desaguando uma chuva densa e pesada (Poe,
1993: 33). Poas de gua refletem a luz dos lampies, aumentando a intensidade
de luz na cena, criando uma segunda fonte de luz, difusa luz reflexa. Isto nos
permite imaginar uma cena acinzentada e no de contrastes fortes entre claro e
escuro, como um cenrio escuro de pontos esparsos de luz nos levariam a
imaginar. Nos filmes e nas fotografias em branco e preto esta luz de compensao
fundamental para que possamos distinguir profundidade de campo e suas formas.
A profundidade de campo produzida pela iluminao de Poe permite no apenas
postar o andarilho no cenrio, mas tambm entrar na atmosfera do lugar e
mimetizar a alma do velho seu estado de nimo, uma lamparina prestes a
expirar. O fluido vital dos lampies e o fluido vital do andarilho, o brilho mais forte
de cada um anuncia seu esgotamento na direo viciosa da Intemperana. E, ao
chegarmos neste antro a luz, o claro que explode nos olhos, antes cega do que
permite ver.
Como dissemos, Poe compe suas imagens literrias com a luz. Assim, Poe, com
seu narrador/cmera, cria e persegue o personagem andarilho, fazendo-nos
perceber aquilo que ele quer que seja percebido, e com uma determinada forma de
percepo que nos conduz a compartilhar o estado fisiognomnico do narrador.
Quase podemos dizer que Poe foto-grafa, compondo sua narrativa. Porm, o seu
narrador/cmera tambm um personagem, e precisamente isso que provoca
uma co-fuso no conto. Uma co-fuso tal como acontece no cinema, segundo
Almeida (1994). Somos levados, ento, a acreditar na idiossincrasia do andarilho,
pois o movimento da leitura nos leva a olhar o andarilho e no o narrador, assim
como no cinema, que nos leva a olhar as figuras reais descritas e compostas pela
luz e no a cmera que as narra. Vale a pena recordar as palavras de Almeida:
O filme um produto, inveno de uma histria, uma sucesso no tempo de
um espao-temporalidade circunscrita entre o incio e o fim de sua projeo.
O material audiovisual, fsico, sensorial, humano, que presidiu sua
produo, em todas as fases, at tornar-se um objeto para ser exibido, vai
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nos aparecer como uma sucessividade sinttica. O filme circunscreve um
espao de tempo e iluso em que as categorias mentais que utilizamos em
nossa interao com a realidade l estaro confinadas e transformadas pelos
cdigos da realidade cinematogrfica (ou televisiva). desta co-fuso que
nasce a verossimilhana e sua conseqente absoro como realidade,
verdade, pr-formando o que chamamos de nova oralidade. (...) O tempo do
cinema e da televiso o tempo do futuro do pretrito, um isso teria
acontecido que se transforma no presente do espectador, na fuso com o
presente da projeo, uma construo metonmica do significado. (Almeida,
1994: 47)
fuso do leitor com o narrador que replica como uma cmera cinematogrfica a
ao de perseguio, acrescenta-se a composio de imagens literrias grafadas
pela luminosidade dos ambientes pelo qual o andarilho percorre. Esse o efeito de
co-fuso. Essa a forma literria modelada por Edgar Allan Poe para enredar seu
leitor no estado fisiognomnico sem soluo, pois em nenhum momento h uma
descrio do rosto do velho andarilho. O rosto do andarilho, de uma expresso de
absoluta idiossincrasia e que ao final do conto revela-se como modelo e gnio do
crime profundo, uma face especular da cidade noturna percorrida durante a
perseguio.
PARCEIROS DE LEITURA
Para Bachelard, Poe um dos raros escritores que trabalham no limite do devaneio
e do pensamento objetivo, ou seja, numa regio confusa onde o sonho se alimenta
de forma e de cores reais e onde a realidade esttica recebe uma atmosfera onrica.
A comparao entre imagem flmica e imagem onrica conhecida. Podemos ver
tambm nos comentrios de Bachelard como Poe d ao devaneio e ao sonho uma
sucessividade sinttica:
Se lermos Edgar Poe com necessrio vagar, tomando o cuidado de respeitar
a dupla exigncia do sonho e da narrativa, aprenderemos a fazer sonhar a
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mais clara inteligncia, aprenderemos tambm a despertar, para uma
aventura contnua, o mais desatento e o mais episdico devaneio.
(Bachelard, 1994: 107)
Para Sevcenko, o conto de Poe praticamente no tem enredo e se sustenta graas
a uma atmosfera extremamente densa de impresses e emoes que envolvem o
narrador, arrastando-o a um comportamento compulsivo irreversvel:
A fora propulsora da narrativa se concentra, portanto no jogo das
disposies psicolgicas peculiares deste personagem [o narrador]. Ele por
sua vez, transmite ao leitor uma sensao de estranheza e desconforto, na
medida em que descreve situaes familiares aos habitantes de uma grande
cidade, arrastando-as porm a uma profundidade de penetrao nos
desvos do cotidiano que ultrapassa demais a superficialidade com que os
olhares comumente percorrem a fisionomia das metrpoles. (Sevcenko,
1985: 73)
A acuidade tica do narrador de Poe mencionada por Sevcenko nos lembra o novo
mundo descoberto pela cmera cinematogrfica segundo Bela Balzs:
A cmera descobriu a clula-me das matrias vitais nas quais todos os
grandes eventos so, em ltima instncia, concebidos: pois o maior pedao
da terra no passa de um agregado de partculas em movimento. Um
grande nmero de close-ups pode mostrar o instante mesmo em que o geral
transformado em particular. O close-up no s ampliou como tambm
aprofundou nossa viso da vida. (Balzs: 1983: p.90)
Porm, nossa inteno no reivindicar origens de procedimentos cinematogrficos
literatura. O ato de leitura um encontro de culturas e de formas de significao.
Posso ver a luz, a cmera e a composies flmicas em Poe porque estes fazem
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parte de minha fototeca, de minha filmoteca, de minha histria. Mas Poe deixou
vestgios em uma forma de composio narrativa de perseguio que me permite
inferir sua cultura tica, permeada por lanternas mgicas, caixas de imagens e
fantasmagorias. No custa nada lembrar que o conto de Poe foi escrito um ano
depois do registro oficial da inveno do daguerretipo.
Em relao educao e mdia, esta proposio de leitura segue um caminho de
busca pela compreenso da construo da memria visual compreender o
audiovisual em seus procedimentos de produo de significados complexos;
explorar as formas de percepo que nosso momento histrico nos proporciona e,
chamar ateno para a construo de uma observao singular no ato leitura, sem
a pretenso de ser nica e muito menos original.
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[1] Conto de Poe foi publicado pela primeira Burtuns & the Casket em dezembro de 1840
[2] Segundo Courtine & Haroche, a fisiognomonia se inscreve numa tradio em que: Civilidade e conversao so [portanto] artes, quer dizer habilidades. Com efeito, na idade clssica, as artes so disciplinas que pressupe um saber, mas que no so verdadeiramente cincias; que reclamam de quem as pratica prudncia e sabedoria, tacto e intuio, uma vez que o saber inseparvel da tica e da conduta pessoal na existncia social: a arte supe um clculo do eu, uma medida do outro, o sentido da circunstncia. Neste exerccio, o uso da linguagem, o cuidado na expresso no fazem calar o corpo; a aparncia, a boa presena e a postura devem harmonizar-se com a elegncia e a exatido do verbo. Um saber, uma tica e uma esttica da linguagem e do corpo que assim liguem a civilidade conversao. In COURTINE, Jean-Jacques & HAROCHE, Claudine. Histria do Rosto. Traduo de Ana Moura. Lisboa: Teorema, 1988, pp. 20-1.
[3] Considerando a edio com que estamos trabalhando, conforme bibliografia.
[4] Os comentrios sobre a luz tm como referncia o livro de Edgar Moura: MOURA, Edgar. 50 anos de luz, cmera e ao. So Paulo: SENAC So Paulo, 1999, 444p.
[5] O roquelaure (aluso ao Duque do mesmo nome) era um casaco justo e que ia at os joelhos, usado pelos homens na poca de Louis XIV (cerca de 200 anos antes da poca do conto).