Coisas Imediatas

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    coisasimediatas[1996-2004]

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    Heitor .erraz Mello

    Coisas imediatas[1996-2004]

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    1996 Ateli editorial1997, 2002 7Letras2001 Moby Dick

    2004 Heitor .erraz Mello

    MELLO, Heitor .erraz

    Coisas imediatas / Heitor .erraz Mello/ Rio deJaneiro: 7Letras, 2004

    ISBNCOLEOGUIZOS: 85-7577-096-9

    ISBN

    Viveiros de Castro Editora LtdaR Jardim Botnico 674 sl 417Rio de Janeiro RJ CEP 22461-000

    2004

    (21) 2540-0130/0037editora@7letrascombrwww7letrascombr

    Equipe de produo

    Isadora TravassosMarlia Garcia

    Valeska de Aguirre

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    Sumrio

    PR-DESPERTO (2004)Pr-desperto pgina13A catedral se impe (s 17h45) 14Dois nadadores 15Mscara, ou um quebra-cabea? 16Oficina mecnica 17Um problema de imagem 18gua branca 19

    .rancisco 20O pescoo da miss Japo 21A escada no vcuo 22No te disse que era capaz? 23Os olhos do guar 24Saturno 25Walking the dog 26Happy-hour 27Nossas microbiografias 28Prolapso 29Conversa no banco 30Outras panes 31Caso de famlia 32Velrios 33

    HOJECOMOONTEMAOMEIO-DIA (2002)

    Escolho s vezes um objetivo para minhas caminhadas 37A forma de uma cidade 38O homem especial 39Galeria a cu aberto 40Leiteria Mineira 41Viaduto 42Minha rua 43Minha casa 44Entre a delegacia e o convento 45

    Morte no cabide 46Ningum 47Trs irms bandeirianas 48O lago secreto 49Explicao 50.errolho 51Arco de proteo 52

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    Antes da pedra 53A cicatriz 54Burrice cicatriz 55Dois lados 56Paralisia 57Perspectiva da volta 58Mofo 59Mula sem cabea 60O primeiro morto 61Vspera 62Como uma cortina de flores 63As distncias 64

    Engano e perfdia 65Empenho 66.im do amor 67Artigos de casa 68Prevertiana 69Ela amava as coisas 70Leite talhado 71Smoke poem 72

    Na medida certa 73Apario repentina 74Espelho 75Agradecimentos: 76

    GOETHENOSOLHOSDOLAGARTO e outros poemas (2001)

    lbum de famlia 79Conversa de me e filho 80

    Lembrana de um velho 81Sombras 82Mos 83Meio-dia 84A cidade navega 85Anjo de pedra 86Goethe nos olhos do lagarto 87Ladeiras 88Parada de So Sebastio do Paraso 89

    A MESMANOITE (1997)

    Galo 93Onde o ncleo 94Cidade morta 95Dentaduras duplas 96

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    Signo 97Noite no quintal 98Mais uma vez Prados 99.ico 100Sono 101Pequena prece 102Noturno 1 103Noturno 2 104Noturno 3 105Noturno 4 106Noturno 5 107Insnia 108

    Matria de insnia 109A velha casa 110Viso 111Sexta-feira 112Amar-amaro 113Estrangeiro 114Manh de dezembro 115Tardinha breve 116

    A janela 117A morte do vizinho 118As maritacas 119Paisagem 120Outros resduos 121S/ttulo 122Noves fora 123Praia do Chapu Virado 124Poema de 88 126

    Depois do filme 127Balada do Aniversrio 128Sem profisso 129

    RESUMODODIA (1996)

    Poeta 133Jardim 134Lenda 135O sapo 136Procisso 137Memria 138Homem morto: 139Um prdio 140Infncia 141Casa 142

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    Uma italiana 143Noite 144Quatro cantos 145O quarto 146O deus 147Noturno 148Quarto de costura 149Todas as manhs 150A velha teia das cidades 151Atibaia 152Prados 153Depois de Guignard 154

    O casamento 155Encontro 156Concha 157Roda 158Amarelinha 159Rua Jos Bonifcio 160As bailarinas 161.im de tarde 162

    Clair de Lune 163

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    (e aqui souJos, Leovigildo, Heitor,homem urbano em geral)

    CARLOSDRUMMONDDEANDRADE

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    PR-DESPERTO[2004]

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    Yo soy un hombre que trabaja en su casaYo tengo que convivir con las toallas mojadas,con los telfonos que no contestan,con los discos compactos tirados en la salaY aunque te parezca bromayo puedo escribir un poema,contestar el telfono,y llamar la atencin a una de mis hijas,todo a la vezEntonces la vida cotidianano slo es una celebracin,la vida familiar es una vidade convivencia permanente,a veces angustiante y torturante,pero siempre, claro,capitaneada por el amor

    ANTONIOCISNEROS

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    PR-DESPERTO

    Certa modstia de alguns quartos de hotel, a rotina dascortinas fechadas vazando pouca luz, apenas o embaci-ado da luz dentro dos olhos pr-despertos Pela ma-nh, o meio-sono irriga imagens de um quarto antigo,um hotel antigo, sem banheiro no quarto, apenas umapia branca de bordas brancas Projetadas no teto, as

    sombras de galhos e de um tanque de lavar Apenasum quarto antigo contrapondo-se ao quarto deste ou-tro hotel com a fumaa da caldeira: a mquina do ho-tel funcionando Sonho que caminho pela rua, noencontro os paraleleppedos de outras ruas, o prazerou desprazer momentneo dos paraleleppedos soltos

    Crianas de uniforme fazem algazarra entrando e sain-do de tneis de plstico Caminho pela rua com a sen-sao de que estou sem um dos meus sapatos, de quecaminho meio-descalo Olho novamente para meusps: sim, os dois ps esto calados

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    A CATEDRALSEIMPE (S 17H45)

    O que observo deste 9 andarde um prdio comercialem So Paulo, na alamedaMinistro Rocha Azevedo

    o lils de um fim de tarde

    em contraste com o resduodourado do sol se pondoem algum lugar, atrs dos prdios

    a forma de uma catedralque se desenha no asfalto mido

    com suas agulhas espichadaspelos pneus dos carros

    O que observo com o corpolevemente fora da janela que o dia acaba do lado de foracontra a continuidade do mercrio

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    DOISNADADORES

    Nem chegamos ao fim apenas uma pedra modelava suas costasassim comoem suas costasuma seqncia de estrelas modelavaou tatuava

    a constelao de escorpioPoderia abrir os olhospor um momento abrir os olhosmareadosde maresiaa areia aderindo aos ps

    Poderiaolhar o ntido de uma pintura nativacom o mnimo pesqueiro ao fundorecm-acordadofora do ritmo das ondasSim,poderia chegar mais fundoe onda e corpo e pedra e marresultariamnuma arrebentao

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    MSCARA, OUUMQUEBRA-CABEA?

    A dor adormeceentre os travesseiros a dor a falta de experincia,de forma,com que se diga dorNo se compreende onde di

    o que e por que diH um certo agitar de asasentre falsas folhagensTudo impreciso desde o incio:os olhos negrosos cabelos negros

    no sentem a dornem sabem da doro seu preoDentro do carrodiante da esttua do velhoempedernidocom sua ampulheta irritante(o olhar escondidoda coruja estilizada na pedra)a dor se instalouvagavaga taquicardia que no se sabeSabe-se apenas

    que a experincia no se acumulouno se depositou(e a dora verdadeira dorse desmascara)

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    O.ICINAMECNICA

    1A vida mecnica corria pelos dedos Entortava os dedos.urava os dedos O leo espesso dos dias corria pelosdedos Entortava os dedos .urava os dedos

    2

    Morou no Rio, comprou mquina fotogrfica, cabiano bolso da cala .otografou o Cristo pela metade,antes de colocarem a cabea A chegada do hidroavioJahu Amigos na praia Amigos sentados numa pedra,em roupas de banho, tocando violo numa praia emNiteri

    3.otografou com a mquina fotogrfica sua prpriaduplicao sobrepondo sua imagem sobre outra suaimagem, entregando a si mesmo o mesmo jornal do dia

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    UMPROBLEMADEIMAGEM

    Ele gostaria de segurar o tempono como a ampulheta do velhoentre as mosmas apenas segurar o rostoque o tempo havia reveladodiante de seus olhos

    No apenas o rosto, mas as coxaso jeans e a comissura dos lbiosque logo fugiriam pela porta.lores cresceriam por convicoem vasinhos de flores nos beirais das janelase os siriris voltariam com o tempo seco

    o calor atpico em pleno inverno

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    GUABRANCA

    Tento acompanhar meus passosolhar para baixode cabea baixaa crista baixae o silncio que percorre folhagenssecas

    quase sempre secasSe fosse mais velhofalaria de roubo e peculatoe da vontade de entender o que aconteceMas acompanhoo desespero dos peixes

    que deslizame se desmontamembaixo do meu tnisAlgumas manhs so assimarrastando pedras no parquequando noatrs de meu filhoque corre atrs de uma bolaat o lago espessoe sem reflexosucessivamente

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    .RANCISCO

    Debaixo de seu chapu verdevoc esconde os olhoso rostoenquanto vasculha na areia da praiaalgum palito de sorvetealguma concha

    algo que possa rapidamente ser transformadopelas palavras que acabam de chegarH um limite tcitoentre esteiras e guarda-sismas que voc desconhecee j revira

    sob o olhar assustado de um garotoe sua meo baldinho amarelo de guaque agora tambm seuDebaixo de seu chapu verde(que usamos para encontr-lo)o limite a extenso de todos os espaose a onda pode subir ou baixaro susto o caldo

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    O PESCOODAMISS JAPO

    De manho sol entrou por aquela porta aliatravessou todo o corredorlevantou uma constelao de poeirae foi iluminar a fotografia que estava escondidano fundo

    na ltima parede

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    A ESCADANOVCUO

    (de um poema de Adlia Lopes)

    A casaj foi derrubadamas ainda restano espao

    sem tijolosentre criese tapumesa escada que sobe parao vcuoque range ao pesodo corpoO tempo no contao tempo perdidoentre o primeiroe o ltimo degrauConta somentea escada

    como deve ser atada ao chodesatada ao cu

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    NOTEDISSEQUEERACAPAZ?

    Havia um festival de salmo .lores rpidasE eu estava com raiva de algum que me disseque eu no passava de um velho,com manias arqueadas de velhoNuma noite, mudei todos os quartos de lugar,e passei a madrugada montando a estante de livros

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    OSOLHOSDOGUAR

    Os olhos do guar do outro lado da janeladesorientam o tempoe a mulher de casaquinho pretoque se despede com um aceno

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    SATURNO

    p/Cludia

    Diante do espelhoela se fixa em algum detalheque no perceboTudo que a cerca

    um detalhe que fogee se fixa longe um vincoa dobra saturniana do lenol

    Ou apenas isso:um nico fio brancoque brilhafuriosamentena densidadede seus cabelos pretos

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    WALKINGTHEDOG

    Mal me levantotomo o caf-da-manhe penso no co,corpo de feltrolargado na estradaMal me levanto

    e j me sintoensanduichadoesborrachadoesprimidoe reduzidoao olhar do co fugindo

    atravessando a ruacom direitode cidadecomo os de Jude Stefan ou seria embaladoliofilizadocomo no rquiem de Ruy Belo?Com os sentimentos atoladosem coisas imediatasdeixo o coseja de umou de outroAs coisas imediatas

    (em conflito permanente)me levam para o carro

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    HAPPY-HOUR

    p/ Tarso de Melo

    daqui que eu falo,de nenhum outro lugar

    da luz de mercrio,

    do vidro fum, do abajuraceso no prdio em frentee que se torna to ntidoque quase se isoladentro da janela

    daquiapesar de eu mesmosentir que me faltoe me falto tantoque nem sei se sou euou a saudade que no consola

    daqui,onde perteno,entre um bloqueio e outrode fora e de dentro

    deste lugar,quando a tarde baixaentre coisasreplicadas

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    NOSSASMICROBIOGRA.IAS

    s vezes acontecedo acasoinconfortvelabrir uma brechana rasteira do presentee alguma imagem

    que estava presase libertarDo silncioescapa um rumorde risos e vozes(talvez na ponte

    sobre um velho ribeiro)e braos longos e desajeitadosde um garotalonga e desajeitadase acomodam sob as coxase outra garotaesconde a timidezde uma gargalhadacolocando a mo na boca

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    PROLAPSO

    No caminho de voltaapalpando o peito, o pnicode uma dor incertacomo se fosse angina pectoris

    Ou apenas l de dentro

    soando o alarma invisvel a vida um adeusinho

    Na enfermaria, vocfez todos os exames,

    e aguardou o diagnsticono conta gotas do soro

    .ulminado: sem saberse haveria um logo depois(na sala, com os filhos) ou nem tempoda cabea cair para o lado

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    CONVERSANOBANCO

    p/Marcos Siscar

    No se sabe onde ela se encontraou onde a encontraremosse com as mos metidas no bolso

    ou a capa preta cobrindo o rostoNunca pergunte por ela:quando voc a pressenteno como ela , mas apenas comose projeta no presenteCria aquela sensao de vcuode escada aberta, de morto-vivosem projeto imediatoEla se projetasem qualquer outro objetivo dar uma volta no parquesentar num banco de cimentoas mos no joelho

    e observarpatos e gansos se bicaremdentro e fora da lagoa escura

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    OUTRASPANES

    Tudo parece uma besteira,a experincia diluda no cotidiano,at que vemuma dor de cabea

    uma ressaca de tudo:

    o amor, a memria e outras funesinevitavelmentese perdem

    e o corpo procura um pontode fuga, um lugar

    onde se resguardarcomo se acobertasse um crime

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    CASODE.AMLIA

    Tudo se torna folclricoo trgico familiar caindo no risona gargalhadaa morte numa escada de bardepois de um briga estpidaperde o sentido

    como os acontecimentosa preocupaoa dor

    Essas coisas acontecemos episdios no so reconstitudos

    como crimes nos jornais:os rfos no choram a morte trgica do paio sangue no penetra as escadarias de azulejo apaga-se, como o nomemastigadonuma conversa de cozinha

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    VELRIOS

    Como se eu imaginasse: como seria no dia em quevoltasse, ou melhor, algo mais recorrente, a idia deque as coisas so imutveis logo aps, ou mesmo scu-los aps, as deixarmos onde estavam? As coisas e aspessoas No dia em que retornasse, elas estariam tal equal a minha espera e, depois disso, enquanto eu esti-

    vesse ali, elas existiriam, se colocariam em movimento(algumas at morreriam, velhas e cansadas da mesmaposio, enfim libertas dessa priso da minha mem-ria, ou da memria que eu fao delas) Seria assim:novamente eu passaria pelo Velrio da Quarta ParadaEncontraria as mesmas pessoas me aguardando para o

    velrio do meu av paterno Um pequeno vu, cheiode micro-furos, cobriria seu rosto, a linha da testa, asalincia do nariz, os cabelos raros brancos As facesafundadas, sem ar O ar de fora tambm se encontrariaparado J observei isso: quanto mais olhamos e vela-mos nossos mortos, fixamente, o ar em volta tambmpra Primos circulam pelos corredores brancos com ocheiro estufante de flores Primos que envelhecerammuito enquanto eu permaneci o mesmo O trilhoamarelo dos dentes O cabelo acaju A loja de produ-tos religiosos Obras de reparo na piscina da academiaO p que foi descascando, descascando at ser ampu-tado e j era o incio de um cncer de pele Mas isso foi

    num outro velrio, de uma tia que morreu de infec-o generalizada, aos 79 anos Isso foi num outro vel-rio Nunca faa promessas para defuntos Ele saiu, foiao bar, tomou uma pinga e voltou Estava um poucogrogue E fica difcil retornar ao incio, ao como seria,

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    como seria se eu retornasse mesma cidade onde esti-ve h muitos anos No fao promessas Seria possvelencontr-los todos parados dentro do tempo como ago-ra se encontram em minha memria, ou na memriaque fao deles Todos estticos numa mureta baixa, decolunas baixas e speras, de cimento spero, todos en-costados, ou sentados na borda, enquanto embaixo cor-re a gua rala de um ribeiro

    *

    Envelheci muito Lembrar j no tem mais serventia

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    HOJE COMO ONTEM AO MEIO-DIA[2002]

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    para Cludia, Chico e Isabel

    Afinal, meu velho, so trinta anoshoje como ontem ao meio-dia

    .RANCISCOALVIM

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    ESCOLHOSVEZESUMOBJETIVOPARAMINHASCAMINHADAS

    (desentranhado de Posie:de Jacques Roubaud)

    Escolho s vezes um objetivo para minhas caminhadasSigo por uma rua cujo nome me seduziu

    Sigo por uma rua que algum indicou para minha[coleo de ruas particulares, minha caderneta de ruasUma rua sem alegria uma rua calma uma rua abstrata

    [uma rua carregada de signosUma rua acariciada pelas rvores, com pssaros retrteisUma rua que s tenha canto de rua uma rua sem

    [nmerosuma rua lotada de carros estacionadosuma rua com escadasuma rua plana uma rua baixaUma rua inverossmel uma rua tranqila uma rua

    [crpulaTrs ruas pretas,

    duas ruas brancasExamino o desenho das caladas, suas fraturasConto vasos de flores, lavanderias e janelas

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    A .ORMADEUMACIDADE

    Tenho acompanhado a cidade:contemplo-a do altodo teto

    o hospitalsilncio de pedra cortado por sirenes

    E os doentes? Silncio

    Do altoa cidade circulare a nica mulher sombraperna

    janela

    um gato reconhece a runae no desceme olha de longeme esquadrinhae no desce

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    O HOMEMESPECIAL

    O homem especial caminha na hora do almooEntra num restaurante e procura um lugarde onde possa ver a rua atravs da imensa vidraaO homem especial mastiga a comidae v a rua que passa em frenteondulaes de cabeas

    e a esgrima de guarda-chuvas e jornaisO homem especial come caladodestroa uma torta de morangos a hora especial de sua torta de morangose nvoas de caf

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    GALERIAACUABERTO

    O pequeno comrcio persistentea tudo transforma em 1,99as lonasos cadeados perfiladosforam gerados sem muito custocomo se sempre estivessem ali

    naquele trecho de ruacom cartes telefnicos.alar com quem? ondemora a mulherdo estrangeiro que acorda?A tnica

    de lixo preto cobre meu corpoEis-me aquicada dia mais moovendendo brinquedose guarda-chuvas velho prncipede um pas chuvoso

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    LEITERIA MINEIRA

    Com po petrpolistorrada secatorrada americanaenquanto Sofia no chegaenquanto Sofia no divisel da frente a mesa do fundo

    aveia com ovomaizena com um ovocremogema com um ovoe pea um conselhoe fale de um livrocom gestos e xcara de ch

    a xcara de ch de volta ao piresentre uma gota e outra gotadelicadamente sorvidasTorrada com melMingau sem ovo?Antes que Sofia cheguee fale e tome delicada seu cha esperapede uma torrada Petrpolisa demorapede uma torrada francesae uma gorjeta fora da nota

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    VIADUTO

    Agora seique no deveria terolhado comoquem espiaaquelas janelassucessivas

    que se vdo alto do viadutoaquela mulherque arqueadacosturava em silncio(um silncio que

    no pedia meus olhosinvasivos)aquelecara sem camisanuma penso baratalimpando a canetade lata na esquadriada janela e quenum relanceolhou a rualogo abaixo

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    MINHARUA

    Em trs quarteiresseis sales de belezauma delegacia

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    MINHACASA

    Minha casa um refgioDe noitequando o sono no chegavou at o porto para fumar um cigarroO homem protegidosob uma pequena marquise de uma garagem

    fala sozinhoigual ao meu filho quando brincaO homem imita conversase revolve uma sacola de supermercadoAfasto-me do poema que os olhos espiespoderiam indicar

    Refugio-me entre artigos da casaretirando preosAquele homem sob a marquisepermanece inabordvel

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    ENTREADELEGACIAEOCONVENTO

    Entre a delegacia e o convento de freirasa intermitncia de sirenes e rostos(o que se banha na torneira de uma casa vaziae o que no se banha na torneira de uma casa vaziae esfrega o nariz na manga da camisa)Esta rua tem olhos espessos

    sob o arco complexo da sobrancelhaTalvez seja melhor no persistirA durao de cada atode cada movimento de rosto curtaA respirao curtaA distncia at a morte curta

    Todas essas horas so curtas e aguardam a[invarivel sireneque estoura vermelha e azul no muro das casas

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    MORTENOCABIDE

    p/Vanderlei

    H pouca realidadenum morto preso a um cabideum mortoque j no est no corpo

    e apenas a roupaque vestia pouco antes de morrerAs pernas de suas calasbalanam no vento, balanamdentro de uma noiteque abandonou o dia

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    NINGUM

    Preso dentro do sonoo peso enorme da cabea que tenta um giroas pernas enganchadas na grade do beroda noite que se altera por uns poucos, muitos pssarosDo lado de fora os gatos em posio de unhaschoram mais alto que meu filho

    Os gatos arranhados fora do sonoas pernas como num gesso de GiacomettiOs gatos de luz sem luzMe levanto atordoadoouono tem ningum

    Meu filho dormeMinha mulher dormeOs gatos somem

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    TRSIRMSBANDEIRIANAS

    Janana,que lindos olhos, Janana,neles caberia a noite,todas as noitesNos olhos de Yara,o sol,

    todos os diasE nos olhos de Moemacaberiam os meus somente os meus

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    49/169

    [49]

    O LAGOSECRETO

    Tua cabana entre duas camaso esconderijo secretoas crianas cavam buracosno cho(uma, satisfeita, diz quefez o lago Titicaca a outra

    procura um balde de gua)Pelos buracos fugiram 19 presosque estavam nas celas do 23 DPOs helicpteros sobrevoamnossa casa, voam baixo,com metralhadoras suspensas

    Meu irmo morreu em cima da rvoreAs crianas se escondemdentro de tneis de lataProcuro a senha (uma data)

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

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    [50]

    EXPLICAO

    No sei explicaro que me motivoua colocar fogonaquele pinheiroem frente de casa

    No era a belezada chuva vermelhaNem a necessidade de calornuma manh sem abrigo

    Havia um fsforo

    uma caixa de fsforos

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

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    [51]

    .ERROLHO

    O vento pe barriganas cortinas faz um corpointeiro se desprender da janela

    Com o vento essas coisas

    podem acontecercom as bochechas do ventotudo pode acontecer

    Recolho os olhosimpossveis

    no desejo de me arremetercontra o ar das cortinas

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

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    [52]

    ARCODEPROTEO

    Assim passam os diaso estalido montono dos trituradoresA cabea cheia desse rumor que no se sabe bemde onde vemCinza cinza cinza cinzaalterando os guarda-chuvas com grande variedade

    A esgrima da esquina era por um pedao de po?por um gole de chuva?As grades de proteo j no permitem vere barram os ouvidos moucosO menino de colo segura nas grades com as duasmos

    e sorri de uma folha que estala na rvore

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

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    ANTESDAPEDRA

    Antes de dormir, meu filho brinca na camacutuca meus olhos, a salincia sobre a plpebracavuca orelhas, nariz e bocaRepete o jogo num divertimento de embaloAntes de dormir, fecho a porta, confiro janelasA mariposa sobre a mesa azul parece uma pedra

    Sopro sobre elaAs asas se movimentamum poucoacertando-se com a resistncia do ventoe retornamcoisa entre coisas

    uma pedraMeu filho volta-se para o lado e dorme (caminho s[escuras)

    A mariposa sobre a mesaA mariposa morta sobre a mesatalvez no durma

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

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    [54]

    A CICATRIZ

    De repenteera uma curvade ruauma noitecheia de interrogaescomo tantas outras

    escorpioera a cicatrizno cu

    No sei se era dorou simples

    contentamento de quemcaminha e topacom a constelaoa mesma que regeo dia do nascimento

    A cicatriz de quemse agacha para lavar os psna bacia velhade alumnio e deparacom a marca do tempoe um punhadode estrelas

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

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    BURRICECICATRIZ

    Memria zerozerada desde o incioesqueceu o que foi lidopalavras que aprendeunum caderno com desenhosO exerccio de matemtica

    era um caramanchoderramado na pginacolchetes e chaveschaves e colchetesA memria aprisionadaonde? onde no h trao

    nem cicatriz

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

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    DOISLADOS

    Era um ptioum ptio entre janelas e cascalhos do choUm homem chega de lambreta e diz que ele estmuito doente preciso rezar muitoUm garoto atravessa o ptio

    abrindo caminho entre os cascalhos do cho e afileira de janelasJ no se pode ver o movimento dentro do quartoO padre com asas de urubu levantando-se da cadeiraA lambreta arranca por uma alamedarepetindo berros de urubu

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

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    [57]

    PARALISIA

    Depois de todos os esforoscontinuou o empurra-empurraforam parar mais longenum difcil acessoA estrada de terra passa diantede um hospital municipal

    com algumas janelas acesasNa fotografiaele estava na frente de um bar fechadotinha trabalhado na obraTalvez tenha sido depoispouco tempo depois

    que morreria na cozinhamastigando a couve do almooQuando telefonam:a saudade e a netinha que nasceu(a cabea era uma gelia)Um frio no ouvidoaquele bar fechadoe a bolinha de tnis na mo

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

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    [58]

    PERSPECTIVADAVOLTA

    A perspectiva a de um carrono a de um carro estacionadoas horas contando no bilhete azulUm carro em movimento numa cidade chuvosaeternamente chuvosaalagada

    onde as ruas contamde modo diferenteOs irmos sentados na porta de uma mercearia debairroOs irmos doentesele e ela sempre doentes e de culos verdes

    mentalmente doentesquando o carro passa em frenteA imagem se confunde entre as mos na direoa janela molhada e os dois irmos doentes na portada merceariaSorriem para algum que est foraDentro do carroo observador annimocomo de dentro do nibus ou num txialgum que volta para trazer presentesmostrar os filhosa perspectiva oblqua do carro a chuva

    em movimento

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

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    [59]

    MO.O

    Mal acomodado em bancos azuiso bairro passa num relanceele no sabia de onde vinhanem para onde iaO aougue de 1922a mercearia vizinha

    Houve pocaem que os bancos eram vermelhoscomo as carnes expostas em ganchosEram vermelhose no cicatrizavamo corte dos estiletes

    O pai e seus filhostodos velhosculos fundos de garrafatodos velhosinfantilizados pela doenaUma pomba caminhava na frenteenxotada pela bengalaMudaram a cor dos bancospintaram a fachada do aougueSeu Andr morreuDona Preciosa morreuAs carnes pelo lado de foraenchem-se de moscas

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

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    [60]

    MULASEMCABEA

    A coisa se passou em Poos quando ainda era muito[criana

    Depois que a sombra de uma velha bruxaapareceu refletida na parede do quarto do hoteltudo poderia acontecerE foi assim que atrs de um muro alto

    num terreno baldioo relincho de uma mula-sem-cabea retiniu na noitee vibrou nas caladas

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    61/169

    [61]

    O PRIMEIROMORTO

    O primeiro mortoestava estendido numa tosca mesa de madeirano poro escuro da Santa Casa

    Morava na Banheirae tinha parado de beber

    para no dar mais desgosto aos filhos

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

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    [62]

    VSPERA

    Uma caixa escuraroxo manto que a recobresem clarinetas ou requintas

    S o sussurro de sandliaslixando as pedras

    da rua

    Aprendemos a carreg-lasobre os ombrosA fora dos braos resistemao peso morto

    ao rubi que escorregapelo rosto polido

    A noite se fecha por dentroenquanto a cera das velas queima as mos di, como dio resduo que brilhanessa correnteza desfiguradalentamente

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    63/169

    [63]

    COMOUMACORTINADE.LORES

    A manh tinha o horrvel cheiro de sanguecouro e cabea de boi mortoOs lenis eram sperose o colcho era duroNo havia vaga nos hotise algum me indicou esse lugar

    no final da estradacom um cachorro na portaComo cheguei aquidepois de ter viajado noite inteiraa procura de uma cidadeda qual s me lembrava da fumaa

    protegendo os telhados?Na janelauma cortina de floresdisfarava a paisagem do matadouroe alguma coisa comondoas de tempo se abriamininterruptas

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    64/169

    [64]

    ASDISTNCIAS

    H muita distnciaentre um homem e uma mulheras costas grudadasna areia da praianuvens velozescomo pernas numa maratona

    ou aros invisveisde bicicletaspelas montanhas francesasAs distncias cronometradaspelo corredor de uma casaenquanto a fria

    deixa registros doloridosna areia da praiaO homem sonhaA mulher tambm:a inscrio nas nuvense nas ondasque ainda podem correr

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    65/169

    [65]

    ENGANOEPER.DIA

    Essas mulheres poderiam estar aqui ou em outro lugarPor exemplo, quando saem da academia com roupa

    [de ginsticanada escondem, nada revelam dos seios redondos

    [e intactosOs mamilos respingando na janela do carro

    A mida luz de uma marquiseVoltam para casa cansadas da chuvaAtravessam a ruaabraam-se pela cintura numa determinao de gestosem abandono ou engano

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

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    [66]

    EMPENHO

    Um colar de prolasacondicionado numa caixa de madeiraescondida atrs do armrioEssa mgoa como as traasri, ri o quartoEnterrei meus amigos no quintal

    num buraco que Janana cavoumeus amigos me traram nessa horaem outras horas, mesmas horasque a boca do peixe engoliuEmpenho esse colar de prolasque minha mulher ganhou do primeiro marido

    essa mgoa de amigos

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    67/169

    [67]

    .IMDOAMOR

    Tenho passado no noites inteirasfora de casacomo gostariamas parte delase no seise pelo fim do amor

    ou to somentepela calma incessante que ele traze minha alma no contentaQuem disse que filho para sempre?Um dia se voAi de voc se esperar

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    68/169

    [68]

    ARTIGOSDECASA

    Domingo chuvosoA persiana aberta pela metadepara entrar um pouco de luzGotas batem aqui e alimolham o tecladoEsta hora

    igual a tantas horasaqui dentroali foraum corredor que atravessao tempomeu tempo de rixas

    O amor entra no banhosai do banhoveste as sandliase volta para cama

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    69/169

    [69]

    PREVERTIANA

    Um guarda-chuvacai no cho de braos abertosUm homem sonhaem partir e a mulhertem uma furiosavontade de viver

    Enquanto a moque alisa o seiol vermelha que palpitaalisa o pescooe o tronco marcadopelo canivete do beijo

    pela lembrana do fsfororiscado no escuro

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

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    [70]

    ELAAMAVAASCOISAS

    Ela amava as coisascom muita delicadezaEla amava os vasosas xcaras as toalhasEla amava os brinquedosos aparelhos eltricos

    os secadores de cabeloseus cabeloscom muita delicadezaComo as florese a chuva interminvelno ptio

    interminvel como seu amoro amor que ela sentiae era fortepelas coisas da casaos pequenos detalhesda sala em ordemO cheiro de lavandacreme de lavanda para pelecaf com leite pela manhpo e manteigaEla amava as coisase hoje me inclino no ventoe a vejo saindo

    sem as coisas que ela amava

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    71/169

    [71]

    LEITETALHADO

    Bebo leite de lataMANUELBANDEIRA

    Estragou-se o domingocomo o leite talhado numa pequenapanela sobre o fogo

    da cozinhaO poeta Manuel Bandeirausava uma panelinhaonde cabia o leite certo para uma xcara de leitealgo como 200 ml de leiteum quinto de uma garrafa de leite

    quando o leite ainda vinha em garrafas de vidroDepois o leite passou a ser vendido num saco plsti-couma teta plsticaque se contorcia nas mose hoje temos o leite A e B em garrafas de plsticoe o leite UHT

    o que significa dizer Ultra Alta Temperaturano qual envasado em segundosnuma caixa de papelo forrada por dentrocom material assptico

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    72/169

    [72]

    SMOKEPOEM

    A fumaaque sobe do cigarronuma salamal-iluminada

    roa o nariz

    tateia os olhose logo desaparecena sombra

    As idias se recolhemabsortas na fumaa

    Aqui, perdoem,no h nenhum pensamento

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    73/169

    [73]

    NAMEDIDACERTA

    Procuro um cinzeiropreciso muito desse cinzeirode vidrosuas trs pequenas depressesonde apio o cigarroenquanto nado

    na inconseqente fumaaEsse cinzeiro ajuda a comporo ambientea janela que d para o ptioNo um deus de vidronem nada que o transcenda

    a piscina de cinzaso arquivo mortodas descobertas pessoais

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    74/169

    [74]

    APARIOREPENTINA

    (de um texto de Naum Gabo)

    Uma estrela cadente cortando o escurotraa a respirao da noitecomo o tempo breve da luz numa agulhaou a tesoura que desliza sobre o pano num quarto de

    costurasImagens que no tenho como alcanarA estranha dor na perna amputada e a respirao dosonho recorrente:baratas entrando e saindo por uma fenda no teto

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    75/169

    [75]

    ESPELHO

    Antes de sairconheo o itinerrio que a cada manh repitoque todas manhs refao

    Um itinerrio que o tempo no abordapor este canto

    esta margem de calada

    Repito fraturas de cimentodomesticadas pelo sapato

    Conheo o itinerrio

    o rosto por dentro do armrio

    (apenas uma nova mancharevela que outras rvoresnasceram no calamentoentregues ao acaso)

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    76/169

    AGRADECIMENTOS:

    Bolsa Vitae de Artes

    Zuca SaldanhaCarlito AzevedoRevista Inimigo RumorManuel da Costa Pinto

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    77/169

    GOETHE NOS OLHOSDO LAGARTO e outros poemas

    [2001]

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

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    Para Cludia e .rancisco

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    79/169

    [79]

    LBUMDE.AMLIA

    Entoele se sentounum banquinhoajeitouo chapu de feltrocolocou o filho

    mais velhoao seu ladoem pe se deixou fotografarEntoela se sentou

    no murinhoda casaesticou o vestidocobrindo os joelhossorriupara a lentee tambmse deixou fotografar

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    80/169

    [80]

    CONVERSADEMEE.ILHO

    Morreu na cozinhamastigando a couvedo almoo

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    81/169

    [81]

    LEMBRANADEUMVELHO

    Desde queo puseram sentadonuma brechaque haviano muro do cemitrioo tempo comeou

    a fazer pequenosestragosno manto de pedrana ampulhetade pedrana mo direita

    e no braoestendido esquerda

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    82/169

    [82]

    SOMBRAS

    Ao menos, dentro da igreja, h sombra(ADLIA LOPES)

    Gostava de entrarna igrejana hora do almoo

    o centro apinhadode corposo sol batendonas vidraasas vidraas batendonos meus olhos

    e dentro da igrejatudo era silncioescurido e frioo olho aindaembaadodo choquee como quem acorda

    num cantoum santocom o rostoerguido para o cue nos seus po brao amputado

    de um ex-voto

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    83/169

    [83]

    MOS

    as mesmas que envelhecerame foram como galhossaindo do prumo

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    84/169

    [84]

    MEIO-DIA

    Na hora do almooo sol do meio-diarecortaum tringulona sombraonde o operrio

    em frentecome sua marmitae toma um refrescode laranja as mquinasparadas

    do a impressode que elese acomodanum ventrede luz

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    85/169

    [85]

    A CIDADENAVEGA

    (desentranhado de umaentrevista de Chico Alvim)

    Tenho a sensaode estar no marventa muito

    as casas rangemvoc est num bondee de repenteuma gaivotapassa ao lado

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    86/169

    [86]

    ANJODEPEDRA

    Apenas um anjo de pedra bem ao lado do tmuloas asas com marcas de bala e o rosto completamente

    [desfigurado(Nilza viu no jornal que os vizinhos tm reclamadodos tiroteios que ocorrem durante a noite

    [no cemitrio)

    Ento, sento no quintal da casa de meus avse a boca escura do barraco me lembra o anjo

    [de pedrameu av e suas ferramentas de trabalho

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

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    [87]

    GOETHENOSOLHOSDOLAGARTO

    Ningum olhou para cimapara cima, digo, para o morroque cercava a casapara o morro que guardavaa pedra, a pedra que escondiaum lagarto, um lagarto que tinha

    nos olhos o demnio do medoa pedra desabou do morroo lagarto se esgueiroue a empregada viu dois olhosbrilharem no meio da mata

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

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    [88]

    LADEIRAS

    p/ Guido Campos

    tempo de subira ladeira amoldaro p que j se esquecia

    sentir que a solado sapato um couroa forma exata do p

    e se ajusta poucoa pouco forma antigado paraleleppedo

    se ajusta como seencontrasse no choo que no mais existia

    um certo prazerirregular de quem andase mistura, se funde

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    89/169

    [89]

    PARADADE SO SEBASTIODO PARASO

    (de um verso de Haroldo de Campos)

    Ningum caminhapor essas ruasningum aparece numa janela

    num mnimo rasgode portapara olhar o nibuspassandode madrugada(a cidade se reduz a umaruauma nicarua friade lmpadasamarelas)O alto-falante silenciosoespera o sol

    nos olhos do boipara a primeira orao

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

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  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    91/169

    A MESMA NOITE[1997]

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    92/169

    Aos amigos da Von Martius

    Clara manh, obrigado,

    o essencial viver!

    CARLOS DRUMMONDDE ANDRADE

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    93/169

    [93]

    GALO

    Tenho dado cabeadas,cometido erros, crimesde tolice e descuro

    A vida perdeu suas flores,perfume agressivo

    rebentando o muro

    A janela se abre em abismode tanto britar angstiaprpria de morituro

    Do fundo algum grita(trs vezes o galo canta) por onde me apuro?

    010495

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    94/169

    [94]

    ONDEONCLEO

    Onde o ncleoque tanto ansiava?

    talvez uma cidadeengolida pelo mapa

    ou pela prpria runade suas fachadas

    talvez aindaa palma da mode linhas confusas

    (outro mapade obscuro destino)

    onde o ncleoque bombeia estes olhoseste sentimentocada vez mais confuso?

    talvez floresbagagensdescarregadas em bairro novo

    1096

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    95/169

    [95]

    CIDADEMORTA

    Elas vivem em mimcomo cidades enrodilhadasuma cutucando a outraatravs de uma janelauma fachada cansadaou o cheiro to comum

    nos finais de tardede ensolarado outono

    Ouo mesmo daquivozes de um meninome mostrando na sala

    o assoalho velhomarcado pelo tempopelos ps do seu ave num cochicho:aqui moram os mortos

    Posso estar distantedividido por uma estradaum mata-burroo edifcio alto quando menos esperoas duas se desenrolame uma vira outra

    outra antiga e jamais

    010497

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    96/169

    [96]

    DENTADURASDUPLAS

    Os primeiros dentesprocuravam sua sepulturanos telhados

    E l ficaramcravados no espao

    170397

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    97/169

    [97]

    SIGNO

    Todo dia, esperoum pouco maisSe caminho pela rua,nenhuma pedra,calada irregular,solavanco de memria

    e estrelas reconduzidasao cu posto

    170397

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    98/169

    [98]

    NOITENOQUINTAL

    p/ Noeli Pomeranz

    A noite no fundo do quintallembra o cinema de sombras na paredevento no arbusto sacudindo medo(formas de bruxas noturnas

    terror de mula-sem-cabea)

    o fundo da noiteestampado na memria

    me puxa pelos ps

    300397

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    99/169

    [99]

    MAISUMAVEZ PRADOS

    So os sinos,so os sinos de igreja que no meio da noiteme atormentam

    So as escadas espiraistalhadas em pedra e traio

    a janela do quarto,retngulo de madeira,aberta de madrugadae um lobo-guarcomo guarda-noturno

    So os sinos da igrejaou o grito desesperadode uma requintaanunciando os dias escoados

    240693

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    100/169

    [100]

    .ICO

    Sabendo-me defuntocom todas barbas de molhoacompanho o dobre sineiropela escada

    em caracol de pedra

    Na extrema-unomeus passos escavampouco maisseus degraus

    So sculos arrastados

    em arenoso silncio

    190991

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    101/169

    [101]

    SONO

    Tudo vai revertendoem sono forteImpulso de fugapara o pas vrioda insolncia do sol,da tempestade

    temperada em sonhoO sono vai correndoardilosotodas as formas,dentes,olhos por fora

    E o corao pradiludo no copo dguaao lado

    230696

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    102/169

    [102]

    PEQUENAPRECE

    J no peo muito coisaalm deste vento, desta luasem grandes mistrios nem tumultos:simplesmente ficar envolvidoconfusosem que nada mais nos una

    300995

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    103/169

    [103]

    NOTURNO 1

    O corao no sabe por que pulsanem os olhos o que olhamA noite avana com todo seu pesoesmagando cu e desejos

    J sem luz,

    a noite condensa os contrrios

    190196

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    104/169

    [104]

    NOTURNO 2

    A lua tamanhano mais seduz

    Para sossego do corpoo cu ausnciacompleta de luz

    J no consigoo olho complacente:

    pureza dor,incomunicvel morte dos sentidos

    240196

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    105/169

    [105]

    NOTURNO 3

    Ausncia de mare montanhas Ausncia

    de corpoque entrebraosse insinue

    de peleterra molhada e nua(aberta)

    Ausncia de abismo

    e horizonte Ausnciade algo maisou estas mos vazias

    240196

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    106/169

    [106]

    NOTURNO 4

    Vnuscada vez mais distante cu sufocado de nuvens

    Olhosprocuram uma brecha

    rastro provvelde provvel avio

    Vnus dissimuladaacima de tudoacima de todos

    Vnus distanteno horizonteno colo discretodo mar

    250196

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    107/169

    [107]

    NOTURNO 5

    Apenas a lmpadame retira da solidome devolve a este cantodeitado no sof

    .echo os olhos com fora

    tento deslig-ladesligar-me

    Apenas os olhos rivais da noite se acostumam

    solido e desnudam

    290196

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    108/169

    [108]

    INSNIA

    A vida incomodaeste vaso sem floresfora do lugar

    estas vozesrepentinas

    risos, gemidos,altas horas

    incomodam:

    febril armadilha

    deixando nos olhosum duplo incndio

    130197

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    109/169

    [109]

    MATRIADEINSNIA

    Recolhe-se nos nervos,matria de insnia mulher, lua de ningum,recostada na soleira

    Ao fundo, falso lusco-

    fusco espalha-se na paredefundindo nos olhosuma dupla imagem

    Ultrapassa a prpria mulher,o batente da barriga

    onde reside o desejoe a dissoluo dos ossos

    Parece mais meia-luanum meio-vestido frescorecortada sutilmente pelasmile memria do sol

    Todo corpo recostadooferecido em parntese(fechado em parntese)fluindo nas plpebras

    E s de olh-la, no relance,pego desapercebido,revela, alm da fuso,o ltimo suspiro do umbigo

    200297

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    110/169

    [110]

    A VELHACASA

    Havia sempre no passadoo momento de grande gargalhadaCorramos pela casacomo duas crianase sacudamos os leniscom nossos corpos

    Tnhamos em comuma admirao da luae um certo jeito de olhar o mundoE mesmo hoje no passadoem que j nos encontramos distantesainda corremos pela casa

    pela casa desabitadaE s

    290697

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    111/169

    [111]

    VISO

    Escuto os sapatossocando as pedrasdo corredornuma pronuncia particular

    Eis que avanam

    passo a passoe saias danamsem embarao

    Vo pisandocom tanta fora

    em mim que eles pisam

    Vo marcandocom tanta fora

    no corredorno passa ningum

    210596

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    112/169

    [112]

    SEXTA-.EIRA

    p/Paulinha

    Calcanhares pontudoscaminham pelo andar de cimaCalcam angstiavontade de mudar de nome

    endereode vida

    nessa ilhade paredes brancasRobinson urbanodiante da fatalidade

    irremediavelmente s

    060797

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    113/169

    [113]

    AMAR-AMARO

    Me desfao de qualquer conclusoou expectativa

    A manh avana desfazendo-seda insniae de todos rudos (seriam estrelas,

    sntese em campo spero?)

    A ansiedade no me convmdeixo todas notas pendentes

    (no fundo da xcara

    raspo o melado caf dociamargo amaramaro

    insolvel)

    011196

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    114/169

    [114]

    ESTRANGEIRO

    O caf tomado na esquina meio de ladono balcoa ponto de observara manh que se reproduze se mistura

    em pernas rpidas

    O caf pago no caixa troco, obrigado, cigarro na bocade mais uma manh

    mais uma manhtrocando olharesmedindo gestos somos todos estrangeirosnesta cidadeneste corpo que acorda

    070697

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    115/169

    [115]

    MANHDEDEZEMBRO

    (de um poema de Valry)

    Ponto ignoradodos astrosdo vo retilneo dos avies

    da multidodas saias (coxasqueimadas de sol)

    (dentro desse pontooutros pontos ignoradosdo prprio crculo)

    Estiradona cama depois do banho,do caf,da falta de idias ponto pleno

    de sol(ignorado sol)

    061296

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    116/169

    [116]

    TARDINHABREVE

    Quando esticado no sof da salabaforando cigarros e cafmos vazias, olhosescavando paredes

    Nenhum passado

    me serve de consolo(fragmentos de uma tardee bicicletas)

    Nada que reponhapor um segundo

    o tamanho exato do solna aspereza dos dias

    240397

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    117/169

    [117]

    A JANELA

    p/Carlito

    A janela se entregapara a paisagemno tem como dom-la

    somente a enquadra

    enquadra o vo rpidodo pssaro da tardeque leva consigo, no bico,os ltimos raios do sol

    atravs da janelaquadriculada de vidrosa luz brinca na camamuda de lugar os livros

    eu mesmo transito

    entre o olhar pra forae o olhar pros mveis:a parede de dentro

    A janela cria pinturasque vivem poucas horas

    e nunca se incomodapois a vida transitria

    260397

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    118/169

    [118]

    A MORTEDOVIZINHO

    A morte assimEsvaziam sua casa,levam todos seus mveis,o quadro na parede

    roubam sua sombra

    todo rudo

    fica somentea memriacativa na janelase chego em casa

    240397

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    119/169

    [119]

    ASMARITACAS

    Repara,amiga,

    neste final de tarde:maritacasatacam o cunuma conversa

    que jamais compreenderemos

    como jamais compreenderemosasas agitadasque se banhamde lenis

    290697

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    120/169

    [120]

    PAISAGEM

    Os lenis criamondulaes de mararmam no espao do quartomontanhas barrocas

    Toda uma noite consumida

    em que o amor surgepor indecifrveis sonhossacudindo esta natureza convulsiva

    110397

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    121/169

    [121]

    OUTROSRESDUOS

    .ica um par de brincosem cima da cmoda.ica um elstico soltocomo retrato, na gaveta

    .ica a marca da cabea

    deitada no travesseiro(s vezes um fio de cabelopara restitu-la em silncio)

    .ica a lua a meia-lua que banal comparei

    ao seu sorriso (lembra?)

    .ica voc que caminhaSeu corpo indeciso mudae mudo se desmembra

    190897

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    122/169

    [122]

    S/TTULO

    Como se opor runaquando ela se desenha no ar?So fragmentos, no de corpo,memria formando paisagensComo deter aqui mesmoo sofrimento que se avizinha

    sem pedir licenaperdo,e a tudo desmoronacom a fora, porm silenciosa,dos grandes bombardeios? Sou fraco, sempre soube disso

    E rumino, pois tambm sou bicho,as gramas desordenadasdesse jardimfeito de amor e espao

    210797

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    123/169

    [123]

    NOVES.ORA

    p/Joo ngelo Oliva Neto

    Eram nove, nove musascada uma no seu quadro,olhando-me de dia,rindo-se de mim noite

    Eram nove como nove vidas(como se de sobra restassem duas)cada uma exercitavaas ramagens do desejo

    Eram nove, dezoito mosque acenavam distantesde minhas poucas, duas mosplidas e sem linhas

    E o mais que quisesse,e o mais que queria (eram nove,

    nove!), sorriam estampasna minha vida vazia

    291096

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    124/169

    [124]

    PRAIADO CHAPU VIRADO

    (legenda de foto para Mrio de Andrade)

    Na praia do Chapu Virado(quando estou tristecorro os olhos nesta imagem)

    a onda quebrandose confunde com os dentes ondas e dentesou dentes e ondas?

    Na praia do Chapu Virado(nunca fui ltalvez jamais ireinem sei se hoje existea praia do Chapu Virado assim sonoracomeo de balada)

    Na praia do Chapu Viradoo sorriso se quebrade ponta a ponta corpo esticado na gua todo delcia de espuma todo onda estridente

    Na praia do Chapu Virado(no importa onde estejano Litoral Norteou banhando na Bahia)

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    125/169

    [125]

    sempre me lembrareicom ingnua alegriado corpo estiradonas ondas do risonas guas da praiaPraia do Chapu Virado

    120297

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    126/169

    [126]

    POEMADE 88

    Depois do filme olhos negros chove na Paulista

    O carro espirra a poaDentro desvio a vista

    para um ponto anterior o mundo no tem graa

    As imagens se recompemsilenciosas ato entorpecer de carne e de ossos

    Normalmente do carros acompanho os sinais quemudam de cor no solo mido da avenidae paro quando vermelho

    Normalmente do carroacompanho s a cmera que despregae soltaentre vidros, a direo,as gotas, o limpador de parabrisas,entre os olhos que vo e vm,vo e vm as cenas do filme, de mim,

    e do amorque costuma ser perigoso

    1988

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    127/169

    [127]

    DEPOISDO.ILME

    p/Augusto Massi

    Quando, depois do filme,volto de carro pela avenida(ainda mida de chuva,ainda mida de imagens)

    outra cmera se abreem descontnua linha de luze entre um farol e outro paro, tudo vermelho

    novo filme passa a rodardentro deste tnel de cenasque a janela enquadrae ao mesmo tempo barra:

    pequena mo inofensivaque num gesto de quase vo

    arrebenta o vidro nos olhose rebobina falsos recortes

    191196

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    128/169

    [128]

    BALADADO ANIVERSRIO

    p/ Cristina .ino

    No culpo o retratoequilibrando o meninoque engraxa sapatosque volta da escola

    de azul e branco

    No culpo a ampulhetaapostando corridano meio da ruaem veloz bicicleta

    No culpo o caminhofazendo mudanasmudando os amigosapertando o quartotrocando o ptio

    das aventuras

    No culpo ningumnem mesmo o cigarrofumado escondido

    201196

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    129/169

    [129]

    SEMPRO.ISSO

    Logo diro afoitos que ele no largao p da infncia

    que seus olhosse esquadrinham

    por janelas enormes

    que vive cruzadoentre duas, trscidades e um mapa

    que a firmeza da mocedeu para a tremedeirade fumante convicto

    que em pouco tempoembrenhou-se numa prosamais de bar que poesia

    Mas o que esperarde um homem comumcarteira assinada?

    Que ele deve no banco,

    na pia batismalna confederao das almas?

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    130/169

    [130]

    Nada se deve esperar as batatas da perna latejamde tanta rua engolida

    e ele manco,manco no verso,manco na vida

    010497

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    131/169

    RESUMO DO DIA[1996]

    Resumo do dia

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    132/169

    A Manuel da Costa Pinto

    e Rodrigo Lacerda

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    133/169

    [133]

    POETA

    Acabou o flegoE o corao j desgastadode tanto metaforiz-lobate

    sem convico

    O verso por tempome bastou

    Toda a vidaera para o branco ocioso do papel

    Acabou o flego

    e no me basto a mim mesmo

    Sento A cabea vaziade qualquer palavraPenso repetido,nunca houve esforo em pensarAmo uma mulhere isso problema meu

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    134/169

    [134]

    JARDIM

    Estou cansado, largomalas e culosBagagem esparramadasem ordem ou lgica

    No fixo olhares

    em objetos que passamViravolta numainterrogao

    No me interrogoRepouso a cabea

    nas razes da rvore,mas no h descanso

    Olhos e orelhasse aferram s formigas,ao corpo,ao jardim onde pastam idias

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    135/169

    [135]

    LENDA

    Por aqui andou um fantasmaque socava o cho com ps durosEra lenda que velho nenhum contava:h muito perderam a voze calam at a prpria memriasem interesse

    E tenho que passar a noiteconcha de orelha na terraescutando as batidas distintasdo fantasma que socava o cho

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    136/169

    [136]

    O SAPO

    A mo mal-educada procura o desenhoalguns traos ficam no papel as runas de uma capela

    o esqueleto distorcido de uma cidade as linhas estampadas no brancocomo o couro de sapo

    atravessado na estrada de terra

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    137/169

    [137]

    PROCISSO

    Naquela pequena caixaos ossos talvez chacoalhemcomo num desenho animadoNo houve banda, nenhum dos santosque sempre voltam pelas ruasMas os domingos retornavam

    nas ripas de uma cadeira de varandaconsumidos numa viagem antigaEnquanto meus olhos resumiamo radioso sol de maio

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    138/169

    [138]

    MEMRIA

    (de um poema de Dante Milano)

    No rosto do morto,s olheirasO soco do destino,

    o sono arrastado,tudocomo ltima memria

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    139/169

    [139]

    HOMEMMORTO:

    s a barba indiferentecontinua crescendoem torno do matoe da memria

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    140/169

    [140]

    UMPRDIO

    Nenhum lembrana o sol batendo no prdiona sacada altade alta fuligemna pequena reacercada de brinquedos

    onde procuro meu pai,minha me e meu irmo

    E tudo em voltaentramado na pedra silncio e memria

    fugindo pela mo

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    141/169

    [141]

    IN.NCIA

    Nem mesmo a rvore, um dia nave,conteve os brinquedos que foram seus galhos

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    142/169

    [142]

    CASA

    Meu irmo tocava pianona tarde azul e o resto de solpunha um brilho novonos mveis e vasos

    Um brilho

    que no sustenta meia voltano relgio da cozinha

    Meu irmo tocava pianoe eu no pensava em nadanem no brilho

    se desfazendo nos ponteiros

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    143/169

    [143]

    UMAITALIANA

    Concentra o cabelobranco num leno estampadode flores

    Logo pela manhmistura o leite na polenta

    e o sol brasileiroentre folhas no quintal

    Concentrava o cabelobranco Cuidadosamente,A gente podia ver

    A vida estalandode seus olhos

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    144/169

    [144]

    NOITE

    Como compor esta,outra noite,clara e quente,escura e fria?

    Quadro-negro de mil clculos

    suicidas,homicidas,astronmicos

    Esta meia sombrade pouca viso

    desalinha cabelose verdades enquanto a noitese condensana estrela da manh

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    145/169

    [145]

    QUATROCANTOS

    Na garagemcarros relinchamlnguas de fora

    Um barpendura sua lmpada

    no feltro verdeda mesa de jogo

    O quarto se abrecomo uma janela antigapara escutar o choro

    de um beb desmamado

    A fbrica o latidode cachorros e mquinas

    Algum canto do mundo a essa hora me sacode inteiro

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    146/169

    [146]

    O QUARTO

    O quartomveis disfarama parede

    apagam a infnciaembutida

    nos braos quentesde uma russa

    O quartoa janela abertaa lua abrupta na hora

    em que descansamos homens

    O quartosem cartazes na paredee o meu jeito de tiraros culos

    O quartosem hspedese sapatosS o quarto

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    147/169

    [147]

    O DEUS

    Quando a noite s o barulhode um galo desreguladoe o apito distante de um guarda-noturno

    Nesta horaem que os corpos procuram a ausncia

    to necessriae a dorum ponto-de-vista

    Procuroem cada canto do quarto

    olhos de treinada coruja o deus que me pronuncia

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    148/169

    [148]

    NOTURNO

    Noite despenteada o mundo transitriose desarruma

    A luarecolhe mulheres

    E no tumulto do quartoo sonho interrogaarruna os desejos

    Noite fracanoite em frangalhos

    lenol sacudidopela manh

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    149/169

    [149]

    QUARTODECOSTURA

    No quarto escuroa mquina de costuracmplice dos sonhosroda seus ferrosrefazendo a cada noiteo diabo torto

    sem dramasa matria mopedo rasgado dos dias

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    150/169

    [150]

    TODASASMANHS

    Todas as manhsso violentas descarregam luzespeixeslonas em barracas de feira:atravessam

    pupilascom fora-brilho de facadescosturando rastrosdaquele sonhomorte imaginria

    meteoros de vidaque circulavam repletoscom a brevidadede todas as manhs do mundo

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    151/169

    [151]

    A VELHATEIADASCIDADES

    (de um verso de Alcides Vilaa)

    Existe um certo rumorde estrelas desdobradasem janela pequena

    movimentando estrada

    Lmpadas fracas e velastateiam no escuroonde o ronco do motordesperta bois e cavalos

    Telhados ganham relevoUm homem e sua sacolaO barro matriaque pe o sol em p

    Olhos no sustentam

    o cinema do nibus que no forma enredoe desintegra-se no p

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    152/169

    [152]

    ATIBAIA

    O sapo que engole no susto ah! lua

    ou este galo que devolvea montanha balofa

    e o p de manga carregadode coraes de boi

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    153/169

    [153]

    PRADOS

    Prados, casca de noz que cabeno seu prprio ribeiro que cabe na mona palma da mo (com ouronas unhas) de seu velho escravo

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    154/169

    [154]

    DEPOISDE GUIGNARD

    Ela cantou que do galinheirofez uma garagemque do fogo a lenhafez azulejos

    Tudo belezura,

    tudo chiqu s uma chuva midaum frio de entrar nos ossosmudam a paisagem:

    So neblinas dodas

    dissolvendo o morro

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    155/169

    [155]

    O CASAMENTO

    Nossa Senhora do Rosrio:a primeira namoradapsiu!est se casando

    e o filho j dorme

    em sua barriga

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    156/169

    [156]

    ENCONTRO

    Na boca de pedrade um extinto ribeiroespero a sapariaque no vem

    O cheiro de madeira

    queimando, onde?num fogo a lenhanuma lareira, onde?

    No so as mesmas casasnem mesmo a lngua

    nem mesmo as constelaesgirando no mapa

    As duas cidades no estono mesmo meridianoDe uma, o mediterrneoDe outra, as montanhas

    Mas por que os sapos que fascinao os sapos! espero surgirdessas vinhas de .itou?

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    157/169

    [157]

    CONCHA

    A conchalembrana do que foi marSem areia, sem gua,sem barcos caindo no poente

    orelha sem corpo,

    telefone sem fio?Concha bivalvefendida em sua memria

    Na palma da morefao seu mar

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    158/169

    [158]

    RODA

    p/Z Antonio

    Apenas a roda sabedo ferro a enferrujada msica

    Apenas a roda sabedo boi o estalo de msculos

    Apenas a roda sabeda festa a solido mais rstica

    Apenas a roda sabeda lua do sol do escudoda composio antiga

    Apenas a roda rangenos meus olhos cheios de oh

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    159/169

    [159]

    AMARELINHA

    Meninos brasileiros brincamde Cu-Infernoquadrados a giz desenhadosno choA pedra cai os pspulam

    um passo certo o Cuum passo torto o Inferno

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    160/169

    [160]

    RUA JOS BONI.CIO

    Reparaesta moa

    como despojada:

    Seus seioscasulampomboscinzentos

    Banha-se

    toda nua(no altodoprdio)em guamudade fonte

    mas jamaismergulha

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    161/169

    [161]

    ASBAILARINAS

    Quatro meninasdepressinha pela escada rolanteQuatro meninasgesticulam o que o verbo no alcana

    Os seios pequenos pulsam

    e por trsos coraes estabanados pulsamos seios pequenos

    Quatro meninasdepressinha

    no vago do metrgesticulam ansiosas e contentesnos olhos de quem as espia

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    162/169

    [162]

    .IMDETARDE

    Transitam mais carrose empregadas com saquinhos de po

    Trs meninas conversama pressa de seus coraese exerccios de casa

    (uma delas tem os olhos puxadose o pretexto para todos os meus vcios)

    Na tristeza do elevadorsubo sem ser reparado

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

    163/169

    [163]

    CLAIRDE LUNE

    p/Armando .reitas .ilho

    Estava na hora da morteo mundo constrangido pediaatirava pedras contraa parede da memria

    culos, xcaras, vasosdissimulavam o passado cativoMuito sensataa morte repousavaem branca superfcie de lua

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

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    (autobiografia sumria

    de Adlia Lopes 3)

    Os meus gatos j deixaram hmuito tempo de brincar com asminhas baratas A Oflia tem dozeanos, seis meses e sete dias OGuizos, segundo o Dr Morais,tem 9 anos Entretanto gatosmorreram, gatos desapareceramEstou a escrever isso nocomputador e no sei do Guizosh trs dias

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

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    1 COISASIMEDIATAS, heitor ferraz2 .UNDOSPARADIASDECHUVA, annita costa malufe3 PRIMEIROASCOISASMORREM, diego vinhas

    4 alexandre artigas5 leonardo martinelli

  • 7/29/2019 Coisas Imediatas

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