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Por quase duzentos anos, as platéias de todo o mundo têm vibrado com a ópera A flauta mágica, de Mozart. O fascínio exercido pela maravilhosa história de Papagueno, o homem-pássaro, pela sinistra ameaça da Rainha da Noite e sua rivalidade com Sarastro, e sobretudo pelos amores e provações do Príncipe Tarmino e da Princesa Pamina no Reino da Sabedoria fez desta fábula uma das mais apreciadas no mundo da fantasia.

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PRÓLOGOSobreosHalflingsdeAtlas-Alamésios

Noprincípio era serpente, emais tarde foidito entreoshomensqueoclãdaserpentesurgiuprimeiroeajudouasmãosdosCriadoresadar formaaoshomens. Seja como for, naquelesdias os que traziamosangue da Serpente não eram conhecidos como Halflings, mas comoHomensou,também,FilhosdoMacaco.

Naquelesprimeirosdias,assimfoidito,nocentrodoAno,quandoo Sol inicia seu retorno, na Noite da Grande Escuridão, o Senhor daSerpentecopulounoGrandeRitualcomaSacerdotisadaNoite.AssimfoiqueosanguedaSerpente(todosodiziamnaquelesdias)penetrounoclãdaCasadaNoiteenosanguedasacerdotisa.Aprimeiraentreassacerdotisas,quenaquelesdiaseramchamadasdeFilhasdaLuaedasEstrelas,passouaserconhecidacomoRainhadaNoite;ou,maistarde,comoRainhaEstrela.

EdesdequeoclãdaSerpenteelevou-seàsalturasdopensamentoedainteligênciaconscientedoshomens,emsuavaidadedecriação,osreis-sacerdotes da Casa do Sol produziram outros Halflings. Elescriaramaraçadasfocasedosgolfinhos,paradesceremàsprofundezasdos oceanos e trazerem ostras para asmesas, pérolas para adornar aguirlandadaRainhaEstrelaeacoroadosSacerdotes-Sol;elestambémreuniampeixesparaasredesdospescadores.

MaistardecriaramaraçadosPássarosnaesperançadequeteriamservosquevoariam, levandomensagensentresuascidades;masnistofalharam,poisaraçadosPássarosfoi tãoelaboradaeestruturadaquesuasasasnãopodiamsuportá-los.(OsCriadorestinhamdecididoque,antes de mais nada, todos os Halflings deveriam ser a imagem esemelhança dos homens.)Além disso, o clã dos Pássaros era apenasparcialmenteinteligente;algunsdelestinhamtalentosuficienteparasetornarem cantores e músicos nas cortes da Rainha Estrela e dosSacerdotes-Sol.Entretanto,aexperiêncianãofoiumsucesso,e,àépocade nosso conto, poucos eram os membros da raça dos Pássaros quepermaneciamemAtlas-Alamésios.

Também criaram Halflings da raça dos Cães, na esperança deterem servos da maior confiança; e nisto foram extremamente bem-

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sucedidos,poisosmembrosdaraçadosCãeseraminteligentes,porémnãomuito,jáquesuamaiorfelicidadeconsistiaemserviràquelesqueamavam. Também criaram o clã dos Gatos; mas estes eramdemasiadamente rebeldes, e fugiramparao interior,ondeestavamosremanescentes do Povo-Que-Fora-Antes (dizia-se que eles foram osprimeirosCriadores) e lá viveramde pilhagens. E criaram a raça dosBois, que podiam suportar grandes fardos, e pelo seu trabalho foramconstruídos colossais pirâmides e templos, cujas ruínas, em meio àselvacastigadaporchuvasintensas,resistematéosdiasdehoje.

NãosesabeporquantotempooshomenseosCriadoresviveramempazcomosHalflings.TodasascivilizaçõesguardamlembrançaselendasquesereferemaumaIdadedeOuro,quandoaspessoasviviamempaz.Talveztenhasidoassimumdia,talveznão.

Mas,nãosesabecomoouporque(emborahajarumoresdequetudocomeçoucomoclãdaSerpente),tornou-sepatentemesmoparaosCriadores que nem tudo estava bem entre eles e os Halflings. Nãoapenas os homens escarneciam dos Halflings, mas os Halflings, quetinham bem pouco do verdadeiro sangue humano, começaram a sesentir imperfeitos, inferioresedesprovidosdoqueeraessencialaumser humano. E de algummodo isto era verdade, pois possuindo tãopoucodainteligência,algunsmembrosdaraçadosHalflingseramnãoapenasbroncoscomoservos,mastambémabsolutamente inábeisparaconduzirsuasprópriasvidas.Emparteporisto,quandoumHalflingscruzava com outro Halflings, para além dos limites de sua própriaespécie—por inocência ouporque os sacerdotes,maliciosamente ouporsimplescuriosidade,assimordenavam-,talamálgamademateriaisgenéticosresultavanumserquecausavarepulsaaoshomens.Paraeles,a visão de um Pássaro-Serpente ou um Cão-Boi, ou ainda um Gato-Foca, era terrível. Tão inofensivos quanto inúteis, não estavampreparados para sobreviver; freqüentemente suas vidas tornavam-seumfardoparaelesmesmoseseusmestres.

E aqueles Criadores, que não se restringiam às experiências decruzamento com pares impróprios, mas combinavam genes em seusviveiros escondidos, criavam coisas ainda mais terríveis: a medonhaSerpente-AladaeosDragõesdasTerrasMutáveis,quecompartilhavamdanaturezadaÁguia edaSerpente, e asÁguias-Leões,devastadorasdosdesertos.Estesseres,escapandodesuasmoradassecretas,também

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cruzavamuns comosoutros, criando finalmenteuma tal confusãodeformas que, dizem, os próprios deuses rebelaram-se contra o quehaviamcriado.

Levariamuito tempoanarrativadasguerrasedesordensqueseseguiram: da busca do povo por um Rei saído da pura estirpe doshomens;dasguerrasentreosFilhosdoMacacoeoclãdaSerpente;dafundaçãodaCasaRealdeAtlasedosreis-Solqueeramseussacerdotes.Finalmente, a Casa de Atlas estabeleceu que a criação de Halflingsdeveriacessar;queanenhumHalflingsseriapermitidocruzar,mesmodentro de sua própria espécie, a menos que, submetendo-se a certosOrdálios, provasse o valor de seu sangue para a reprodução de suaprópria espécie (e havia poucos com inteligência suficiente para sesubmeteremaosOrdálios);equeosviveirosdeveriamserdestruídos.Declarou-se, também, que o acasalamento entre homem e Halflingsdeveriacessarparasempre.

Para esta última resolução havia algumas razões. Pois com acriaçãodeHalflingselesasseguravam(afimdequeonúmerodeservosaumentasse rapidamente) a ininterrupta reprodução do tipo animal.Apesar de os Halflings se parecerem muito com os homens, elesprocriavamcomarapidezprópriadasbestas,tantoqueummembrodoclãdosCãespoderiareproduzirpelaTerraquarentaoucinqüentafilhose filhas, ao passo que em uma geração de filhos de homens três ouquatrochegavamàmaturidade.

Eossacerdotesperceberamquelogoestariamcercadosdebestasdesprovidas da capacidade para aprender ou governar; uma enormemultidão sem inteligência suficiente para ser algo mais que escrava.Contudo, apesar de muitos sacerdotes e membros da Casa deAtlasserem esclarecidos, havia aqueles que achavam justo que os homensgovernassem as bestas e os Halflings, e não se sentiam obrigados atratá-losdeacordocomaLeioumesmocomhumanidade.

PorestaépocavivianoTemplodaNoiteumagrandesacerdotisaque se auto-intitulava, como suas mães e antepassadas o fizeram,Rainha da Noite; como acontecia a todas essas Rainhas, seu nomeestava há muito esquecido. Ela tomou, como muitas das RainhasEstrelas o fizeram, um amante da raça da Serpente, e dele teve trêsfilhasreais.QuandoaGrandeCasadeAtlasestabeleceuqueasuniõescomHalflingsdeveriamcessar,elaficoufuriosa;mesmoassim,curvou-

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seàdeterminaçãocomaparentedocilidade;eatéconcordou,quandooGrande Atlas estava velho e morrendo, em casar-se com o herdeiropresuntivo, um jovem de tipo sóbrio e sacerdotal conhecido comoSarastro,edeleterumherdeiroquereuniriaosanguedascasasreaisdeAtlas-Alamésios, a do Grande Templo daMãe da Noite e a da CasaRealdoSol.

Embora a Rainha Estrela já estivesse passando da idade deconceber,concordoucomisso;osdoiscasaram-senoTemplodaLuz,eumanomaistardeaRainhaEstreladeuàluzumacriança,umameninaque eles chamaram de Pamina. Quando esta menina, herdeira daRainha Estrela e da Casa da Luz, viesse a sentar no trono deAtlas-Alamésios,então(pensouaRainhaEstrela)suafilhaPaminaanulariaoqueaRainhaEstrelaconsideravacomofraquezae loucuradaCasadaLuz.

Mas a trégua entre o Sacerdote daLuz e a Sacerdotisa daVelhaDeusadaNoitenãopoderiadurar.Nosegundoano,antesquePaminadeixassedemamar,SarastroeaRainhaEstrela jábrigavamporcausadotratamentocruelqueeladispensavaaosseusservoshalflings,equeelanãoabrandavanemalterava.AssimaRainhaEstrelaabandonouopaláciodos reis-Sol e levouPamina consigoparaoTemplodaNoite.Lá, jurou ódio eterno a Sarastro e à Casa da Luz. Sarastro ficoumagoado, pois, apesar de todo o orgulho e arrogância da RainhaEstrela,eleaamaracomtodaaforçadeseucoração,eaindaaamava.Masseupai,quedetestavaamulhercomquemcasaraseufilho,disse:“Deixe-apartir; ela éuma criaturamá, como são todos osde seu clã.Umdia você se casará comuma outramulher que lhe dará um filhosemamáculadaSerpente.”

Logo após isto, o grande sacerdote e rei de Atlas-Alamésiosmorreu, e Sarastro ascendeu ao trono de seus antepassados. Não secasou,preferindoesperarquePaminasetornasseadultaparagovernaraoladodeseuesposocomosuasucessora.

Eaquicomeçanossahistória.

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CAPÍTULOUMHaviasanguenalua.Davaranda,aPrincesaPamina,frágiledelicada,olhavatemerosa

anévoasombriaerubraque,sorrateira,avançavasobreafacedodiscolunar, rastejando sobre a face da Lua. Jamais vira algo assim. Láembaixo,acidadeeraapenasmanchasmuitoescurascontraanoite,eela ouvia um som abafado como um lamento; lamento distante, deterrorpelolodovermelhoquecorrompiaapurezaprateadadafacedanoite. Sentiuque tambémdeveria lamentar-se, ajoelhar-se e chorardeterrorearrependimento.

Mas Pamina tinha nove anos, e era a filhamais nova daRainhaEstrela;foraensinadaamanter-secomdignidademesmonasolidãodeseus aposentos, e um dia governaria todas aquelas pessoas. Nãopoderia correr e se esconder em seu quarto para chorar de medo,embora o terror estivesse dentro dela. O que havia de errado com anoite, e por que suamãe, que era a Senhora daNoite, não a corrigialogo?

Elapercebeumovimentosemseusaposentos;então,viuatrásdesiaformasombreadadesuameia-irmãDisa,filhamaisvelhadaRainhaEstrela.

—Vemlogo,Pamina.—Nãoseria justodizerqueavozdeDisafossedesagradável,eraexcessivamenteapáticaparatanto.—Vocênãoémaisumacriança;nossamãenãolhedissequevocêdeveriasereuniranósquandodenossapróximaprocissão?

— Não sabia que a época é de procissões — retrucou Pamina,sentindo o coração bater acelerado em seu peito. Procissões? Eramcoisasparadiadesolealegria,nãoparaumanoiteescura,demedoelamentonasruas.

Ainda assim as palavras de Disa eram estranhamentereconfortantes.Suamãesabiaquehaviaalgodeerradonocéu;nãoeraelaaRainhaEstrela?Algumacoisaseriafeita,então,paradarfimaestacor horrível na Lua, esta terrível escuridão cobrindo a noite.Obedientemente,entrouemseuquarto,ondesuaservahalfling,daraçadosCães,umafemeazinharoliçadeorelhasmaciasecaídas,esperavapor ela com três trajes de procissão suspensos por suas mãos

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estendidasquelembravampatas.—Qualdostrajesminhapequenasenhoraescolherá?Sua voz não era nem latido nem grunhido, embora tivesse as

qualidadesdeambos,eeraagradávelefamiliaraPamina.Tinhacertezade que para Rawa ela era o centro do mundo; e suas primeiraslembranças evocavam aqueles braços peludos que a embalaram eaquele peito macio que a aconchegara. Mas desde que começara atomarconhecimentodascoisas,fora-lheincutidoqueRawa,sendoumcãohalfling,nãopoderiadecidireescolhercoisaalgumaporsimesma;comotodososmembrosdaraçadoCão,recebiaordensdeseusenhorousenhora.

Pamina voltou-se paraDisa, sem saber o que escolher para estaprocissão tão imprevista. Carrancuda, Disa examinou os trajesestendidos.

— Nenhum destes serve — disse finalmente, franzindo tanto ocenho que a luz revelou um nariz quase inexistente, e a insipidezprópriadeseurosto. -Não foiprovidenciadonenhumtraje ritualparaprocissõesnoturnas,Rawa?

—Nadamefoiordenado—Rawarespondeucomhumildade.ArespostanãoagradouDisa,queesbravejou:

—Halflingestúpida!—eesbofeteouRawa.—Bem,jáquenãohánada que se possa fazer, emprestarei uma de minhas vestes; ficarágrandeemvocê,masumcintoresolveráoproblemae,talvez,comoestáescuroeelatemmuitonoquepensar,nossamãe—sevocêtiversorte—nãonotará—acrescentouDisa,comumgestoquefezPaminatremertantoquantoamulherhalfling.Disanãodeuatenção, saiuapressada,voltandoacabeçaparalançarumaameaça.

—Quantoavocê,Rawa,éprovávelquejáestejamuitotempocomsua senhora, e começa a se fiar demais na sua condição de ama real!Talvezumperíodonasestrebarias,comocaçadoraderatos,restituaseusensodehumildade.

Paminaagarrou-seaRawaquandoDisadeixouoquarto.Ocorpomaciodamulher-cãoestavatremendo.

—Nãochore,Rawa,voufalarcomminhamãe;elasabeoquantoeuprecisodevocê.Mamãenãopermitiráqueelalhemandeembora—disse.Masnãoestavacertadisso.Suamãetinhatantaspreocupaçõeseresponsabilidades que deixou, de uma lua para outra, o controle da

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casa,ondeviviamasquatroprincesas,nasmãosdeDisa.Elapoderia,inclusive, concretizar a ameaça antes que Pamina conseguisse umaaudiênciacomaSenhora.

Rawa não era suficiente inteligente para pensar nisso tudo,massentiu a dúvida na voz de Pamina e choramingou, agarrando-se àcriança. Em seguida, saiu correndo, fungando alto. Pamina, queconhecia as reações de Rawa tão bem quanto as suas, reagiuimediatamente.

—Oqueéisso,Rawa?Oqueéisso,háalguémaqui?Rawaganiaecontinuavaafarejaroscantosdoquarto.Derepente

investiuváriasvezescontraobalcão,rosnandoesaltando.Ouviu-seumguincho,ePaminafalou:

— O que você tem aí, Rawa? Mostre logo para mim. Meninalevada!Amulher-cãoresmungou:

—Má!Má!Olugardelanãoéaqui,nãoé—etrazia,arrastando,alguma coisa do balcão. Pamina correu para examinar a forma deconstituiçãofrágilqueRawamantinhaimobilizadasobsuaspatas.

NãoeramaisaltaquePamina,vestiaumacombinaçãoverdequemal lhe cobria os longos e delicados membros, à primeira vista tãofrágeisqueumapertomaisfortedeRawapoderiaparti-laemduas.Seucabelo era uma plumagem delicada de brilhantes tons escarlate eamarelo,caindoemiridescentescamadassedosasaolongodopescoçoeombros.Oterrordistorciasuasfeições,masPaminareconheceu-a.Opássaro halfling foi trazido da cidade para fazer números demalabarismo, cantar e diverti-la durante a celebração de seu últimoaniversário.

— Deixe-a ir, Rawa. Pare, não estou brincando — acrescentou,severa, quando a mulher-cão deu um pequeno grunhido. Relutante,Rawalibertouamulherhalfling,quetremiadospésàcabeça,batendoosdentesdeterror.

—Papaguena—dissePamina,caminhandoemdireçãoàmenina-pássaro.—Oqueestá fazendoaqui?Não,Rawa, jádisse,deixe-a,elanãopoderiamemachucarmesmosequisesse,principalmenteestandovocêaqui.Vocênãomemachucaria,nãoé,Papaguena?

A mulher-pássaro estava quase afônica de terror, mas quandoRawaalibertoueseafastou,elasepôsdepé.

—Princesa,asenhorafoiboaparamim,e,quandoelesvieramme

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buscarpara o sacrifício, pensei na senhora e vimpara cá...Nãodeixequeelesmelevememboraemematem,não...

Rawaganiu,afastando-seaindamais.— Senhora! Senhora, mande-a embora ou todas estaremos em

perigo;nãoépermitido intrometer-secomossacrifícios,eelacheiraaincenso;elacheiraamorte!Mande-aembora!

—Quieta,Rawa—dissePaminaoutravez,emboraintimamenteestivesse tremendo. Ela sabia: a própria noite cheirava a morte, comsanguenaLuaelamentonasruas.Sabiadossacrifíciosenuncaantesosquestionara,eacreditavamenosaindaqueelespudessematingi-laouaqualquer um que tivesse conhecido. Que este terror distante e quaseincrível pudesse alcançar e atingir a inofensiva Papaguena, queentretivera a todos na corte, enchia-a de uma emoção nova edesconhecida, emoção que ela não sabia que era raiva. Só sabia queseusdentesbatiamehaviaumgostoamargoemsuaboca.Rawaaindagania, pulava e grunhia e, pela primeira vez em sua vida, Paminaestavairritadacomsuaserva.Masocorreu-lheoutravezopensamentode que Rawa era umHalfling, um cão halfling, e deles não se podeesperarquetenhamqualquerdiscernimento.

—Rawa,fiquequieta,jádisse.Disavoltaráaqualquermomentoese ouvir todo esse barulho certamente você será mandada para asestrebarias. Ouve, Papaguena: não vou deixar que a levem para osacrifício,nãosepreocupecomisto.—Nãotinhaamenornoçãodoquefaria.Sósabiaquenãodeixariaqueistoacontecesse.

OganidosuavedeRawaalertou-aparaosomdepassosdoladode fora; Disa estava voltando. Ela empurrou Papaguena para trás deumadascortinasevoltou-separaencararsuameia-irmã.

Não foi Disa que entrou, mas uma meia dúzia de guardiãs,lideradas pela mais jovem de suas irmãs. Kamala não era tão altaquantoDisa,seucorpoeramaischeioe,emboraPaminajamaistivesseparado para refletir sobre isso, ela pensou que Kamala pareciasutilmente mais humana.As guardiãs usavam negros saiotes lisos ecouraças;Kamala,entretanto,estavaemseustrajesdeprocissão.OlhouseveramenteparaRawa,queganiaegrunhiaexcitada,edisse:

—Eladevetervindoparacá.Olhecomoestáocão!Logo a seguir, Papaguena foi arrastada de trás das cortinas,

tremendodiantedasguardiãs.

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—Deixe-a empaz—Pamina gritou -, vocês amatarãode tantomedo!MamãemedissequeosdaraçadosPássarosnãosãotãofortesquantonós,eseestãoamedrontadosseuscoraçõespodemparar!

A chefe das guardiãs, uma mulher amável, com alguns traços,talvez,daraçadosCães,disse:

— Bem, jovem senhora, não precisa se preocupar com gente dotipo dela.Não tinha nada que vir aqui perturbá-la. Vamos levá-la devolta para o seu lugar, e a senhora não precisará mais esquentar acabeçacomisso.Rawa,suacadela,oqueestavafazendoquandodeixouestetrasteentrarnoquartodaprincesa?

—Rawajápassoudoslimites—disseDisaque,nestemomento,entravacomumtrajedeprocissãoestendidosobreseusbraços.Paminaarregalou os olhos, fascinada pelo vestido. Parecia com o que Disaestavausando;desedamacia,fluidocomoáguaecintilantecombrilhosaplicadosnoprópriotecido;antesjamaislhepermitiramusarumdestetipo.MasquandoumadasguardiãspôsasmãossobrePapaguena,eajovem-pássaro deu um grito de terror, Pamina esqueceu o trajeincomumelançou-sesobreelas:

—Não!Euprometiaela,deixe-a!— Pamina, cale-se — disse Kamala furiosa. — Isto não lhe diz

respeito.— Você não tem o direito de levá-la para o sacrifício! Eu não

deixarei!Kamalamoveu-se,rápida,emdireçãoaela,segurando-apelobraço.

Elamoveu-se,pensouPamina,comoumaserpenteprontaparaobote.Kamalafalouemvozbaixa:

—Cuidadocomalíngua,suatolinha.EstaéaverdadedaRainhaEstrela, e nem você, nem eu temos o direito de questionar suasdecisões.Tudooqueaconteceéfeitosegundosuavontade;vocêéumacriança,éistooquedevesaber.

Pamina olhava sua irmã com olhos arregalados. Sentiu como senunca antes tivessevisto suasmeias-irmãs.Ocorreu-lhepelaprimeiravez:elastambémsãoHalflings.ElasempresouberaqueKamala,Disaesua terceira irmã, Zeshi, tinham por pai a Grande Serpente, mas atéaquelemomentonãotinhasedadocontadoqueistosignificava.

“SereiumaHalfling também;então, tambémpossoser levadaaosacrifício?”,perguntou-se.Masnão;elaeraafilhadaRainhaEstrela.

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Eelastambémeram...— Não — disse ela, embora estivesse tão amedrontada que as

palavrasseagarravamaseusdentes.—Nãoacreditonisto.Nossamãeé boa e justa. Durante toda minha vida, ouvi dizer que os que sãolevadosasacrifíciosãocriminosos,osquemataramouinfringiramalei.Digam-me,queleiPapaguenainfringiu?Quemalelafez?Seelativessetransgredido a lei,mamãe a teria trazidopara cantar emedivertir nafestademeuaniversário?

—Nãoéhoraparafalardeleis,Pamina—disseKamala.—Oquevocêdizéválidoparaossacrifíciosdasestações.Vocênãoviusangueesta noite na face da Lua? Nesses tempos ruins todas as leis ficamsuspensas, pois a Lua rubra exige sangue inocente. E Papaguena foiescolhida.Afaste-se,Pamina,deixe-noslevá-lacomofoiordenado.

Mas Pamina recusou-se a deixar a trêmula Papaguena, e Disaordenou,furiosa:

—Deixe-a,ouarrastareivocê!— Não deixarei. — Pamina soluçava amedrontada, mas não

deixouirajovem-pássaro,e,porfim,furiosaefrustrada,Disafezsinalparaasguardiãs.UmadelaspuxouPapaguenacomasduasmãos;umaoutradirigiu-seaPaminacomfirmeza.Aclaraintençãoeraafastarumadaoutraàforça.Rawarosnouameaçadora;umadasguardiãsgritouechutouRawacombrutalidade.Ocãohalfling caiu,mas logo ficoudepé,rosnandoemameaçamortal.

—Sevocêpuserasmãosnaprincesa,sólhedeixareiosossos!—Deixe-me—disseDisa,tensademedo;edirigiu-seaPamina,

ordenando coma cabeçaqueaguardiã se afastasse.—Se esta cadelameatacar,seráesfoladaviva,eelasabedisso.—ArrastouPaminaparalonge de Papaguena, enquanto Rawa rosnava e grunhia de ódio, ePamina,soluçandoirada,lutavacomsuameia-irmã.

—Nãodeixareiquealeve!Prometiaela!OquePapaguenatemavercomaLua?—Furiosaemagoada,Paminaestavaquaseincoerente.

De repente fez-se silêncio no quarto. As guardiãs, ofegantes,ajoelharam-se. Mesmo Disa e Kamala curvaram-se, enquanto Rawa,ganindo de terror, lançou-se contra a parede. A Rainha Estrelaperguntou:

—Oquesignificatodoestetumulto?Apenas Pamina não demonstrou medo. Correu para sua mãe e

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pediu:—NãopermitaquelevemPapaguenaparaosacrifício!Eudissea

elas que a senhora era boa e justa e jamais permitiria que alguéminocentesofresse!

ARainhaEstrelaolhouparasuafilhamaisjovemcomumrápidoeternosorriso.

—Dissemesmo,minhaquerida?—perguntou.ARainhadaNoiteeraaltae,emseuondulantetrajedeprocissão

comumarranjodepenasdecorujanacabeça,pareciaaindamaisalta.Suas feições eram finas e austeras, os olhos de intenso azul pareciamcomosdeumaserpente.

—Asenhoranãovaideixarqueelasalevem,nãoé,mamãe?—Sevocêprometeuaelaquenãoserialevada,nãodeixareiquea

levem — disse a Rainha Estrela. — Mas no futuro não faça taispromessas sem consultar-me, Pamina. Agindo assim, você infringeminhasprerrogativas;vocêentendeisso?

Paminaconcordoubalançandoacabeça.A Rainha olhou para a guardiã, que esfregava o braço de onde

corriasangue.—Saiamtodas;istonuncadeveriatercomeçado,enãodeveriater

ido tão longe. Não estou satisfeita com você, Kamala— acrescentounumlevetomdeameaça,esuafilhatremeu.—Leveasguardiãsdaqui.Não,Disa,vocêpodeficar.Papaguena,suajovemsenhoralhefezumapromessa.Agradeça-aservindo-abemdehojeemdiante.

Papaguenaajoelhou-se,chorando.—Sempre,Senhora.—Mamãe!Mamãe,porquê?—insistiuPamina—Vocêmedisse

quesóésacrificadoqueminfringealei.MasDisadisse-mequeaLuavermelhaexigesangueinocente.Porquê?OquePapaguenatemavercomaLua?

ARainhaEstrelaolhou-a impaciente, ePaminahesitou.Mas suamãedissecalmamente:

— Nada, criança. Quando a Lua se enche de sangue, o povoignorante, assustado, torna-se histérico e exige um sacrifício. E nós osatisfazemos por que isto desvia sua ira contra os sacerdotes egovernantes.Opovo ignorante acredita que, por algummotivo, estascoisas acontecem por causa de seus pecados. Se realizamos os

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sacrifícios, esquecem os possíveis pecados que atormentam suasmentesevoltamparasuasocupações.

—Istoéterrível—falouPamina.—Realmente,minhacriança.Masagradeçaporviveragoraenão

hámilanos,pois,naquelesdias,quandoaLua ficavavermelhacomoagora,ouoSolescureciaaomeio-diaeasestrelasapareciam,somenteamortedeumafilhadaRainhaEstrelaaplacariaasculpaseterrores.

Pamina tremeu, pois o rosto de sua mãe tornara-se sombrio edistanteoutravez.

—Pamina,vocêcriouumagrandeconfusão,emeatrasouparaaprocissão. Disa, você não é menos culpada disto. Talvez nãointeiramente, pois nós duas pensamos que Pamina fosse madura obastante para participar do sacrifício. Ela mostrou-se ainda muitoinfantil e como punição está proibida de participar da procissão. Válogoparaacama,Pamina.Papaguenaficarácomvocê.

—Mamãe—Paminasuplicouquandoamulheralcançavaaporta,fazendo a Rainha voltar-se por ummomento. Seu rosto carregado deimportânciafezcomquePaminatremesse.

—Oqueéagora?—Mamãe,nãodeixequemandemRawaparaasestrebariascaçar

ratos!Elaseriamuitoinfeliz!ARainhaEstrelasorriuedisse:—PrometoqueRawanãoiráparaasestrebarias.Mesmo depois de ter passado muito tempo, quando Pamina

lembrava aquele sorriso, ele a congelava. Mas a voz da Rainha erasuave, e Pamina pensou que aquele olhar tinha sido fruto de suaimaginação.

—Válogoparaacama,minhacriança.PaminajamaistornouaverRawa.

Eosanossepassaram...

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CAPÍTULODOISOdesertoestendia-sediantedele,abertoevazio;algunsarbustos

recortavam o horizonte à distância. Olhar para tão longe feria-lhe osolhos. Ele podia ver morros e alguns contornos indistintos que lhepareciamconstruções.

“Por que”, perguntava-se Tamino, “este deserto imenso erachamado Terras Mutáveis? Mais exato seria chamá-las TerrasImutáveis.”

Eleestavaviajandohámaisdeumalua;nocomeçoda jornadaaLua estava cheia.Agora aparecia outra vez, um pálido disco circularnas bordas da noite, e ele ainda não sabia se havia alcançado seuobjetivo.

Tamino, olhando a face pálida da Lua, lembrou-se de que nãohaviacomidonadadesdeoamanhecer.Colocouseualforjenochãoevasculhou-o. Pouco sobrara das provisões com as quais iniciara ajornada:poucospedaçosde frutas secas enacosde carne-seca, sobrasdesuaúltimacaçada—ocorpodeumpequenoanimaldodeserto,nãomaior que um esquilo, embora diferente de qualquer esquilo jamaisvistoporeleemtodaasuavida.Talvezamanhãpudessecaçardenovo:quemsabeencontrariaalgumaespéciedecaçanestaimensidãoestéril.

Cuidadosamente, desatou o odre da cintura. Amanhã, o maistardar,precisariadeáguatambém.Pensouemfazerumafogueiraparater companhia — a visão de algumas faíscas contra este desertodesoladoesilenciososeriaagradável.Mashaviapoucooquequeimar,apenas alguns ramos e talos secos de arbustos estéreis. Mas aindaassim, secos e inóspitos, eram as únicas coisas vivas que ele via; erelutoutirardeles,semnecessidade,apoucavidaquepossuíam.Estanoiteficarianoescuro.

Tomouunspoucosgolesdeáguaemastigou,pensativo,asfrutassecas.

Um ano antes, uma lua antes, não teria acreditado que seencontraria num lugar como este. Enrolou-se no seu manto gasto deviagem—forabeloenovohánãomuito tempo,masdesdeentão lheserviade coberta, agasalho eproteção emqualquer tempo e com istoenvelheceu.“Comoeupróprio”,pensouTamino.

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Atéaúltimaluanova,Taminoeranadamaisqueomimadofilhomais jovemdo ImperadordoOeste;nãopassaradificuldadese, salvoos jogos com seus companheiros e alguma caçada, viviadespreocupado.

Ordenaram-lhe então que partisse, sabendo apenas que eravontadedeseupai,oImperador,queviajasseatéograndeTemplodaSabedoriaemAtlas-Alamésios—doqualelesósabiaquedistavaaummês de jornada— para se submeter aosOrdálios. Durante a jornadaperguntava-sesobreoqueseriamosOrdálios,quandocomeçariameseesta jornada já seria, de fato, a primeira deles. Segundo as instruçõesrecebidas,tinhaultrapassadoasmontanhasquelimitavamoImpériodoOeste, atravessado o Grande Deserto, que separava o Império dasTerrasdoGrandeAtlas,eentradonasTerrasMutáveis,que,conformesabia,nãomudaramnada.

Mesmo agora, deitado sob as estrelas distantes, tremendo umpouco,poisanoiteestavafriaeseumantoeramaisapropriadoparaoclimaamenodas terrasde seupai, começouapensar se, naverdade,estaimensidãoeajornadanãoteriam,afinal,produzidoumamudançanele.TalvezjánãofosseomesmoTaminoque,trintadiasantes,partirada casa do pai. Pelo menos estava mais magro. Nunca em sua vidaperderaumarefeição,enestajornadaperderamuitas.Realmente,muitodoquecomeraforaconseguidoporsuahabilidadedecaçador.

Nem sabia o que era estar sozinho ou sentir medo. Não que ajornada fosse muito perigosa. Mas era solitária; nunca antes laminosentira falta de conselho ou companhia.Não havia ninguém para lheaconselhar sobre a melhor estrada, o caminho mais seguro nosdesfiladeiros; ninguém para guiar suamão ou flecha quando atiravaduranteacaça.

Nãotinhaguia,senãotoscasinstruçõesparaseguirosolnascente;nenhumconselheiro;nenhumconselhoquenãoa lembrançadaquelesdados por seus conselheiros de infância — e tomou consciência dopoucousoquefizeradaquelaorientação.

Não mais sentia medo como no início da jornada. Não maisansiavaporalguémparaconversar,nemparaoguiar.Nãoapenasseucorpo estava forte,mas a ele parecia que seu espírito e determinaçãoestavam mais revigorados, mais autoconfiantes. Quando preparavaumaflechaeatirava,sabiaqueseuvôoseriarápidoecerteiro.Nãose

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tratava mais de um jogo, de uma competição para provarsuperioridade, quando, na maior parte do tempo, os companheirosescolhidospeloImperadorparaseufilhohesitavamemsuplantá-lonojogo.Nodeserto,seaflechanãoatingisseoalvo,dormiriasemjantar,mas não sem antes encontrar a seta errante, já que não haveria outraparasubstituí-la.

“Não”, pensou, “ainda sou Tamino,mas umTaminomais forte,talvez” — o pensamento era hesitante, quase envergonhado -, “maisdignodeserchamadopríncipe.”Aindaquemaisnadalheviessedessajornada, se ele tivesse de ir até os limites do mundo para nadaencontrar, salvo o monótono mar, mesmo que os Ordálios fossemapenas uma ilusão, e que nada houvesse para fazer senão voltar-sesobreosprópriospassos e tomaro rumode casa, aindaassimnão searrependeriadajornada,nemaconsiderariainútil.

Deitado,eleolhavaasestrelas.Nãoselembravadeterpercebidooutrasestrelasquenãoaslanternasbrilhantesqueadornavamostetosdopaláciodeseupai.Edepreferênciaquandoeletinhaquearrumaraslanternastrocadasourepostas,Desdequecomeçaraaviajartinhavistomais auroras, crepúsculos, Lua, Sol e estrelas do que em toda a suavida.Eleprecisavacontarcomestascoisas;aclaridadedosoledocéulhedizia quepoderia viajar sem se perder, a luminosidadedaLua edas estrelas que poderia dormir ao relento sem precisar procurarproteçãonumacavernaoumesmo junto aumamoitaouarbusto.Emcasa, dormia até o sol estar alto, protegido por cortinas de seda, equando, por acaso, uma caçada omantinha fora até o entardecer, suaúnicapreocupaçãoeraqueestemomentododiapoderiaretardarahoradas comemorações noturnas,Agora por diversão só tinha o céu e asestrelas.

Deitado e olhando para o céu claro e deserto, lembrou-se.Anosantes, quando ainda estava na escola, tivera um tutor que tentara lhetransmitir o conhecimento dos astros, mas Tamino não lhe deraouvidos, sempre ansiosopormaisbrincadeiras e amigos.Elepoderiater aprendido a sabedoria acumulada pela humanidade e sefamiliarizado com a influência dos astros, do mar, das marés e dasnuvens,comtudooquedeveriaconhecerantesdeiniciarestajornada.Agoratinhaqueaprendertodasessascoisasarduamente,estudando-asedescobrindosozinhocomoafetavamsuaexpedição.

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Não fora treinado para governar. Isto era com seu irmão maisvelho,opríncipeherdeiro.Mesmoassimdesfrutoudeboaeducação;senãofizerausodela,nãoeraculpadeseupai.Bem,amanhãseriaoutrodia de viagem, e talvez chegasse mais perto do seu objetivodesconhecido. Tomou um último gole do odre; a boca estava seca e,com prazer, teria secado o odre, mas já cometera esse erro antes, noinícioda jornada.Entretanto, aprenderaa conservaraúltimaáguaatéque estivesse seguro de encontrar onde conseguir mais.Cuidadosamente, atou o odre, ajeitou-o comoum travesseirodebaixodopescoçoedormiu.

Aprimeiraluzoacordou.Océuexibiacorrubra,umacorsinistra.Durantea jornada,eleaprenderaque istosignificavatempestade.Nosdez dias de travessia ainda não havia chovido no deserto. Em terrashospitaleiras,seriaestecéurubro,oualgumacoisaamaisqueoclarãovermelho da aurora, sinal de chuva? Ao que parece, estava paraaprendermaissobreotempo.

Alguns goles da água velha do odre e o que sobrou das frutassecas compuseram o seu insatisfatório desjejum. Talvez, quandoalcançasseoTemplodaSabedoria,ondesesubmeteriaaosmisteriososOrdálios,aomenoslhedeixariamfazerumaboarefeição.

Mas aqui e agora, não havia comida alguma, boa ou má, salvoaquelaqueeleconseguisse,enestedeserto,provavelmenteseriaruim.Havia pouca caça — há dias que não via uma daquelas criaturasparecidas com esquilos— emenos ainda vegetais que pudessem sercomidos.Masoqueelemaisprecisavanomomentoeradeágua.Sólhesobrara um pouco no fim do odre, e mesmo assim choca, e ele, queaprendera bastante o que é a tortura da sede, não tinha vontade derepetiralição.

Olhouaoredortentandocalcularsuaposição.Aleste,oSolestavaraiandodomardenuvensrubras.Alinhadohorizonteestavarecortadapor algumas formas geométricas que bem poderiam ser formaçõesrochosasoupossivelmente—Taminoparouderespirar—construções.Neste caso, seria a primeira construção humana que veria desde quedeixouacidadedeseupai.

Mas estavam muito longe, no ponto extremo do horizonte. Ummês antes teria cometido o erro de pensar que com uma hora decaminhadaasalcançaria,enganadopelaclaridadedodeserto.

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Agorasabiaqueestavaaumdiadecaminhada,etalvezatémais.Aidéiadeencontrarhomensoutravezdeixava-oexcitado,mas,antes,eraabsolutamentenecessáriorenovarosuprimentodecomidaeágua;depois haveria tempo suficiente para pensar nas construções— casofossem realmente construções, e não estranhas formações rochosas.Numaocasiãoenganara-se,pensandotervistoumacidadeondehaviaapenaspedraserochasangulosas.

Desviando o pensamento das construções, voltou-se para outrasdireçõesafimdeverificarsehavianasproximidadesalgumachancederenovar seu suprimentode comida e água.Nãovira coisa algumananoite passada, mas caminhara até escurecer e bem podia ter-lheescapadoalgumacoisanocrepúsculo.

Voltou-separaapanharomantoquelheserviradecoberta,paroueesfregouosolhos.Tinhacertezadequenanoitepassadadormiraaorelento; podia lembrar-se de ter deitado e olhado as estrelas.Certamente não estava enganado, mas realmente não teria visto asestrelasatravésdosramosdeumaárvorealta?

Não,poiseleselembravaque,poucoantesdeadormecer,notaraaausência de vegetação, exceto alguns arbustos secos e espinhosos.Agora,acimadeseumantoamarrotadoqueaindatraziaamarcadeseucorpo, balançava o caule alto de uma tamareira e aquele cachocompacto,douradoemarrom,entreasfolhas,defatoeraumpunhadodetâmarasmadurasedouradas.

Taminopiscoueesfregouosolhosoutravez.Essavisãofezvoltarumdosantigosmedosquemarcaramosprimeirosestágiosdajornada:de que a solidão pudesse enlouquecê-lo.Uma tamareira, e ainda porcima uma tamareira carregada de tâmaras maduras! Quando foradormir—exatamenteembaixodela,porestesolhosquea terrahádecomer—nãohavianadadisto.

Otroncorugosoecompactomostrou-sesólidoeresistentequandoeleoescalou.Taminoprovouumatâmarafrescaemacia.Nãoeracomoas tâmaras doces e requintadas, banhadas em calda e recheadas, quecomera na mesa do Imperador, mas ainda assim lhe pareciamsuficientementeboasparaumbanqueteimperial.Comeumaisalgumastâmarasfrescasecolocouumpunhadoemseualforje.

Acomidaforaencontrada,amenosque—enãolevouasérioestepensamento—fosseumsonhobizarronascidodafomeedasolidão,e

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ele ainda estivesse dormindo de tão cansado sob um arbusto seco eestéril.

Saciada a fome, voltou-se para o problema cada vez maisprementedasede.Normalmenteastamareirasnãocrescememlugaresáridos. Ele ouvira dizer que elas só crescem em oásis. Será queenquanto dormia fora levado para um oásis de tamareiras com suascaracterísticasnascentesaocentro?Não;atamareirasolitáriasobaqualpareciaterdormido,semsaber,eraaúnicanestedesertoestéril.Eraumenigmaquenãopodiadecifrar.

Seguramente ele estava acordado. A única solução plausível, equeeratãoloucaquantotodasasoutras,eraqueaquelearbustosecoeespinhoso, de alguma maneira, se transmutara enquanto ele dormia;transmutara-se numa tamareira justamente onde nenhuma tamareirapoderia crescer. Então seria esse o motivo por que chamavam taldesertoestérildeTerrasMutáveis?

Astâmaraseramreaisealimentavam;pelomenosassimpareciamao seu paladar e ao estômago. Pena que não trouxessem consigo ooásis.

Umpoucomaisaonortehaviaumagrandepedra,nãomuitoalta;mas como o terreno era bem plano, talvez servisse como ponto deobservação,deondeelepoderiadescobrirsehaviaalgumaquebranoterrenoárido e estéril, algumsinaldeoásis oumesmovegetaçãoqueindicasse a presença de água. Tamino subiu na rocha e, lentamente,olhou em todas as direções. O Sol agora estava alto, e a luz não lhepermitiaumanítidavisãodoLeste.Tamino,apertandoosolhoscontraa claridade do sol, viu então não apenas o indefinido horizonterecortadoporformasdistantesnotadasporeleaoamanhecer,mas.umpoucoantesdalinhadohorizonte,overdedaspalmeiraseumbrilhoquebempoderiaserágua.

Avisãodessequadroeratãoinverossímilquantoatransformaçãonoturna de um insignificante arbusto numa tamareira carregada decachos de tâmaras maduras e doces. Seria miragem? Dez dias nodeserto lhe haviam ensinado algo sobre esse perigo. E já que asimpossíveis tâmaras seconstituíramnumexcelentedesjejum,erabempossível que pudesse matar a sede naquele oásis não menosinacreditável.

Nãodemoroumaisqueumsegundoparajuntarseuspertences:o

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alforjequeagoracontinhaapenasrestosdecarne-secaeasmaravilhosastâmaras; o manto que, um tanto gasto, em vez de usar traziacuidadosamenteamarradonacintura;oarcoepoucasflechasrestantes;e o punhal que levava na cintura mais como instrumento útil paralimparcaçaecortarlenhadoquecomoarma.

Partiu em direção ao oásis.Após trinta dias era um caminhanterijo e incansável,depassos resolutos.Os arbustos secos e espinhososquebravam-seaosseuspés,eemborativesseprotegidoaspernascomoque sobrou de uma velha túnica, os arbustos atrapalhavam suacaminhada. Estranho que agora houvesse muitos deles; ontem eleseram esparsos como toda a vida no deserto. Olhou para o chão comcuriosidade.Elesestavammaioresenãotãoespinhososcomoantes—tratava-sedeumanovaplantacommenosespinhosealgumas folhas.Folhas,folhasverdesnestedesertoestéril?

Sim. Folhas, folhas verdes com a parte de baixo áspera e asextremidades dentadas. E, ao contrário dos arbustos espinhosos,cresciam esparramadas como vinhas, carregadas — Tamino parou,perguntando-se outra vez se seus olhos o enganavam — de amorasmaduras.

Eleprovouuma.Tinhaomesmogostodequalqueroutraamora,talvez um pouco mais doce; ou era ele que passara tempo demaiscomendo frugal-mente? Continuou, abrindo caminho através doespesso emaranhado de arbustos, enchendo suas mãos com amorasmaduras,quetambémmatavamsuasede.

Ouviu um som de coisa se partindo, entre os arbustos que setornavam cada vezmais espessos.Ante o olhar surpreso de Tamino,uma gazela cruzou aos saltos a clareira à sua frente e desapareceuenquantoeleaindaaolhavaadmirado.

Elepiscouecontinuou,umpoucoaborrecido.Deveriaestarcomseuarcopreparado,masnão esperavaalgoassimnodeserto.Eraumdesertoainda?Quandoobservaraoterrenoaoredordarocha,aindaerao mesmo deserto estéril no qual dormira na noite anterior. Agora,pareciateradquiridocaracterísticasdeumaselva.Indiscutivelmente,osoloestavamaismaciosobseuspés,elogoaseguirouviuosomsuaveedefinidodesuasbotascalcandoterrenoúmido.TerrasMutáveis?

Bemantesdealcançaroque identificaracomoumoásis,quandoobservara a região, encontrou um pequeno lago alimentado por uma

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fontecristalina.Descansouumpoucoaí, lavouseurostoqueimadodesol e bebeu bastante água, pois era a primeira vez que o fazia emmuitosdias.

Aindanãoestavalivredomedodequetudoissonãopassassedeum sonho louco. Em seus vinte anos, nunca antes encontrara umaregião onde tamareiras surgissem por mágica, ou deserto que setransformasse em pântano sem qualquer transição — ou, maispropriamente,terrasqueeleviucomodesertoserempântanos.Porém,jamaisviajara,antes,pelasTerrasMutáveis.

UmfarfalhardooutroladodolagochamouaatençãodeTamino.Tirou o arco do ombro, retesou-o rapidamente com uma das mãos,quaseaomesmotempoemqueajeitavaumaflechanacordaesticada.No extremo oposto do lago, curvando-se para beber, havia umapequena manada de antílopes, quase da altura de um homem, comlongoschifrescurvos.

Parouporuminstanteantesdedispararaflecha.Depoisdepassarummêscomendofrugalmente,ocheiroeogostodelomboassadodeantílopejáestavaemsuaboca.Todavia,pensouquemesmocomendolombo por um ou dois dias, ainda sobraria muita carne. Seria certomatarportãopoucoedesperdiçaroresto?

Ou—olhoudenovo—seriaumantílope?Seusolhosdeveriamter-lheenganado;eraumapequenagazela,nãomaisaltaqueo joelhodeTamino,que jánãoeramuitoalto.Estaquantidadecertamente lhebastaria.Comrápidadecisão,atirouaflecha.

Atingidanocoração,agazelacaiusilenciosamentesobreaterra.

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CAPITULOTRÊSRapidamente Tamino correu em direção ao lugar onde vira a

gazela cair. Tropeçou em raízes quenãovira antes (já estavam lá?), equandoolhouemvoltanãoviusinalalgumdoanimalmorto.

Istoeratãoexasperantecomotudooqueaconteceraessamanhã.Aindaassimelepersistiu.Nãoestavamaistãofaminto,poiscomeraumbocadodetâmaras,maspassaramuitotempocomendoalimentossecose estava louco para comer carne fresca. Procurou cuidadosamente ocorpodagazela.Seráquenãoaatingira?Não—viraaflechaacertaroalvo, e a esta distância dificilmente teria errado.Alémdo que, vira oanimalcair.

Remexeuosarbustoscomospés.Nãoeramtãoaltosassim,pelomenosnãoobastanteparaesconderumagazelaadulta.

Topouemumobstáculo.ComespantoTaminoviuqueeraumadesuasflechas.Curvou-seepegou-a.Estavacravadaemalgumacoisa,equandoTaminopuxoua flecha,para soltá-la,percebeuqueatingiraalgoatravésdocoração.

Masnãoeraumagazela;aocontrário, tratava-sedeumdaquelescuriososanimaizinhoscomformadeesquilo,que foramaúltimacaçaquecomera.

Pensativo,Taminoapanhouoanimal,istoeraaindamaisestranhodo que as outras coisas que lhe aconteceram. Vira um antílope eabstivera-se de matá-lo porque sentira que não poderia comer umanimaltãogrande.Estesetransformaraprovidencialmentenumagazelae ele amatara. E quando encontrou a caça, esta já semetamorfosearanumesquilo.

Talvez,pensou,fossemelhorcozinhá-loecomê-lologo,antesqueocorresseoutramudançaeeleencolhesseaté ficardo tamanhodeumpardalouumgrilo!

Voltouparao lugarondedeixaraseuspertences,examinando-oscuidadosamentepara se certificardequenãohaviamse transformadoem alguma outra coisa. Se acaso o punhal de caça, por exemplo, setransformasse em anzol ou vaso, seria problemático preparar maisrefeições.Felizmentenadahaviamudado.Sentoudepernascruzadasetirou a pele do esquilo— com cuidado e sem desviar seus olhos -,

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destripou-oefezumespeto;depoisacendeuumafogueiraecolocouacarcaçaparaassar.

Logocomeçouacrepitareaexalaromaisapetitosodoscheiros.Enquantoacarneestavaassando,Tamino lavoueencheuseuodre,e,tirando toda a roupa, mergulhou no lago para refrescar seu corpopoeirentoequeimadodesol.Lavousuatúnicaimundaeasperneiras,pendurou-as para secar em um dos arbustos. Bebeu outra vez adeliciosaáguado lago.Depoisde tanto temponodeserto começaraapensarquemorreriadesede.

Seminu, refestelou-se namargemdo lago,mastigando o esquiloassado.Acarne tinhaumgostoestranho, comoseoanimal tivesse sealimentado de amoras desagradavelmente ácidas, mas era carne esatisfazia, e Tamino entregou-se ao prazer de tomar uma refeiçãoverdadeiramenteapetitosaemmuitosdias.Quandoterminou,atúnicaeasperneirasestavamsecaseelefoipegá-lasnosarbustos.Osolestavaamenonolago,eeledemorou-seumpoucoparasevestir.

Nolagoaságuasseagitarameouviu-seumbarulho:umacarinhapeluda,bigodudaeinquisitivaexaminavaTamino.Emboraàprimeiravista ele pensasse que fosse um animalzinho aquático, talvez umalontra, percebeu rapidamente que havia inteligência humana por trásdaqueles olhos escuros: umHalfling! Já ouvira falardeles,mesmonodistante Império do Oeste; mas, na verdade, nunca antes colocara osolhos sobre um deles, embora soubesse que muitos anos atrás taiscriaturashaviamsidolevadasàcortedoImperadorcomocuriosidades.Contara-seatéqueummacacojogaraxadrezcomaImperatriz,mãedeTamino,eavencera.

Alontrahalflingrastejoudevagaratéamargem.Aformaeraadeumamulherpequenaepeluda,orostotãoredondoecombigodestãograndesqueTaminosópôdetercertezadequesetratavadeumafêmeapor causa do par de peitos em sua barriga. Também tinha pêloscobrindo suas costas — embora houvesse menos em seus seios ebarriga,seusbraçosemãoseramanormalmente,quasegrotescamente,pequenos, terminando em dedos curtos em forma de pata. Menosparecidas compésemenoresqueametadedeum torso, suaspernaseram curtas e também tinham a forma de patas. Tamino olhou-a,dividido entre a fascinação por sua estranheza e a repulsa por estaparódiadaformahumana.Umalontraverdadeiraterialheagradado,e

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umencontrocomumamulherreal,apóstantosdiassemomenorsinalde criatura humana, seria mais do que bem-vindo. Mas não estavaabsolutamentecertodequequeriaencontrar-secomesteestranhoser.ElaoexaminoutãoatentamentequeTaminopercebeuderepentequeestavanu.Eleagarrousuatúnicaevestiu-serapidamentepelacabeça.Por que ficaria tão acanhado na presença de um animal? E, quandoolhou para ela, descobriu que estava muito intimidado por suafeminilidade, como não teria ficado diante de um animal verdadeiro.Estava consciente de que não se tratava de um animal e simde umamulher,quedeveriasertratadacomotal.

Pancadasmaisfracasnaáguadolagoalertaramparaapresençadetrêsouquatrocarinhaspeludas,réplicasdamulherhalfling;seusfilhos,protegidospelaágua,examinavamTamino,emitindopequenosruídos.EleseperguntavaseaHalflingpodiafalarcomoserhumano,eseseriaproveitosoperguntar-lheadireçãoatomar.Deuumpassoemdireçãoaela, que deslizou com rapidez para o lago, fazendo girar seu flexívelpescoço não humano quase completamente para olhar Tamino comdesconfiança.Estariapensandoqueelepretendialhefazermal?

Constrangido,eletossiuedisse:—Nãovoulhemachucar.Os filhotespeludosemitirampequenosguinchos,masamulher-

lontra apenas olhou, os olhos castanhos, fixosnele com curiosidade eceticismo. Era acima de tudo uma mulher, apesar de bem estranha;talveztivesserazãoemtemerforasteirosencontradosnumlugarermocomoeste.Nãose sentiaatraídosexualmenteporela,masdealgumamaneira estava convencido, sem saber por quemotivo, de que talvezoutroshomensativessemdesejado,oque justificariaostemoresdela.Ela continuou olhando para ele, e aquele intenso olhar escurotransmitiu a Tamino a sensação de que por ser meramente humano,como ele era, integralmente humano, de alguma maneira a teriahumilhado, o que o deixou com raiva. Não tinha culpa de ser umhomem,umpríncipedoOeste.

— Só queria lhe perguntar— disse com formalidade— qual ocaminhoparaoGrandeTemplodaSabedoria,opaláciodosreis-Sol?

Silêncio.Enquantoamulherhalflingencarava-ocomseusgrandesolhosescuros,osfilhotespeludossussurravam.Eledesejouqueela,sefossecapazdefalar,queofizessedeimediato.

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Rapidamente,ela,comumbraçocurto,apontouparaonordeste;entãosubmergiu,deixandocírculosevanescentesnasuperfíciedolago.Damesmamaneira,osquatrofilhotesmergulharamatrásdela.

Por um momento antes de partir, Tamino ainda olhou omovimentoondulantedaágua.Bem,encontraraaprimeiradas coisasestranhas que ele sabia que deveria enfrentar nas TerrasMutáveis, eestava certo de que veria coisas ainda mais estranhas, enquantoestivessenasterrasdosReis-SacerdotesdeAtlas-Alamésios.

Juntouassobrasdesuacomidaeestavaparaenterrá-lasjuntoaolago. quando se perguntou se as lontras eram carnívoras. Supôs que,porviveremnoslagos,elassealimentassemmaisdepeixe,masnocasodegostaremdecarne,deixou-lhesosrestos.Sepreferissemnãocomê-los, pensou ao mesmo tempo em que se perguntava por que estavachateado, os insetosdabeirado lagodariam contasdeles. Pegou seuarco e suaspoucas flechas restantes, apanhou seumanto e amarrou-oemvoltadacintura,apagoucuidadosamenteafogueiraepartiu.

Tomouadireçãonordeste,comoamulher-lontraoindicara,masoaspecto da terra mudara e ele se achou viajando por uma florestaespessa.Eraquaseimpossívelenxergarqualquercoisamaisàfrenteouatrásemqualquerdireção,poishaviamuitasárvores,umemaranhadode trepadeiras e arbustos densos, que algumas vezes eram tãocompactos que ele quasenãopodia ver o céu.Achou incrível quenanoiteanteriortivessedormidonumdesertoestéril;comcerteza,seestafloresta estivesse aqui, ele a teria visto em algumpontodohorizontevazio. Aqui e ali na floresta cada vez mais densa, que se tornavarapidamente uma selva, ele vislumbrou grandes ruínas e portentosasconstruções,emaisdeumavezouviuumfelinopredadorrosnar.

Aos poucos, na medida em que se movia, mais sentia calor;mesmosuatúnicafinaestavapesada.Tirou-a,maslembrou-sedequenãoestavamaissozinhonestaimensidãodesabitada.Ondehaviaumacriatura dotada de consciência poderia haver outras, e ele poderiaencontrar a qualquer momento os habitantes deste lugar. E seencontrasse,preferiaqueistonãoocorressecomeleseminu.

Haviaagoramuitossonsna florestae,apósosilênciodograndedeserto,pareciamoprimi-lo.Pássaroscantavamnasárvoresaltas,coisaspequenaspassavam rapidamente sob seuspés, e, devez emquando,olhandoparacima,elepodiaveralgumascriaturasmovendo-seligeiras

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entre os galhos. Ainda assim, nenhum dos sons era especificamentehumano. Nem ao menos alguns dos animais que ele podia ver derelance, dividindo esta imensidão com ele, eram Halflings,participantes numa pequena medida dos atributos humanos. E eleaindaachavadifícilcrernisto.

Caminhoudurantetodaamanhãeboapartedatarde.Derepenteossonsdosanimaisnoaltoesobseuspéssilenciaram;caiuumarápidae violenta tempestade. Mesmo protegido pelas árvores ele ficouencharcado, aturdido pelo vento repentino que agitava as folhas ebalançavaosgalhos.Encolheu-sesobasárvores,tremendocomoventoasoprarsobreele,eachuvafustigando-lheapelecomolâmina.

A chuva cessou tão rápido como começara. O Sol apareceu ebrilhouentreosgalhos;gotasprateadascaíamtremeluzindosobresuacabeça.Umpássaro cantou na ramagem alta e Tamino viu um clarãorubro e amarelo brilhante vindo do alto. Quase imediatamente suatúnicamolhadasecou-secomocalor.

Começouapensaremprocurarumlugarparadescansarànoiteecomeroquesobroudoesquiloassado,quandoaflorestaseabriunumaclareira.Umdia,esteforaumlugarhabitadoporhomens,poisgrandesblocos de pedras, altas colunas e muralhas semi-destruídasdespontavam do chão. Quando olhou para baixo, viu que estavacaminhandosobrepedraspolidasqueformavamummosaico;viam-seformas curiosas, feras e pássaros, humanos e semi-humanos, umamulher com a meia-lua sobre sua cabeça, uma grande serpenteenroscada com traços humanos. Mas as cores das pedras estavamesmaecidas.Eleseperguntava:quemmorariaaqui,eháquantotempo?

Aomesmotempoemqueestaperguntapassavaporsuacabeça,viu através da clareira o vulto de um homem, não mais que umasombraenvoltanumacapabrilhante.Teriasidoumhomem?Eraaltoeereto, sua cabeça orgulhosamente erguida, e o príncipe vislumbrou oreflexodeum rosto, nariz adunco, queixopronunciado e arrogante, enadamais;haviaalgodenão-humanona ligeirezacomquesemovia.Mas Tamino o vira por um ou dois segundos apenas, antes que eledesaparecesse por detrás da grande ruína no extremo oposto daclareira. Em sua memória aquilo lhe parecia pouco humano. OutroHalfling? Reteve em sua mente a imagem de um perfil que era aomesmotemponobreemelancólico;e, sempensarserealmenteaquilo

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eraumhomem,chamou:— Ei, você! Olá! Por que você não vem falar comigo? Sou um

viajante do Império do Oeste — e, lembrando-se de como a mulherhalflingtiveramedodele,acrescentou,—nãovoulhefazermalalgum,sóquerofalarcomvocê!

Silêncio.Taminopercebeuqueocoraçãoestavabatendoforteemseupeito.Seriaapenasaemoçãodeencontraralgohumanodepoisdeummês inteirodesolidão?Ouseriamedo?Nãohaviasomalgumnaclareira, exceto o dos insetos e da relva sob seus pés. Um pássarogorjeou ao longe e ouviu-se um alegre assobio— Tamino não sabiadizerseeraumpássaroouumsomhumano.Nãoeraexatamenteumcantodepássaro,maspareciateralgumpropósito.

Paraondeohomemteriaido,casofosserealmenteumhomem?Aclareira estava vazia; e agora os próprios pássaros pareciam tersilenciado.

Então, o príncipe ouviu um rugido e sentiu calor, um ventoabrasador passou por sua cabeça. Tamino olhou para cima e viu umdragãoerguer-sesobreele.

Naquele momento de terror, pôde apenas perceber uma coisamonstruosa, com asas escamadas, umas coisas que pareciam penas,desfechandocomofocinhoumgolpecruelsobresuacabeça.Voltou-se,procurandodesajeitadamenteseuarco,retesando-oomaisrápidoquepôde; entretanto, o dragão avançou e Tamino, abaixando-se, rastejousobre os mosaicos em ruínas e a relva da clareira. Quaseautomaticamenteajeitouumaflechanoarcoeatirou.

Devia ter acertado o alvo, pois ouviu a criatura urrar e investiroutra vez paramatar. Estavamuito próximo agora para que seu arcotivessealgumautilidade.Ainda tinhaa faca,massabiaqueelaestavalonge de ser uma arma. Viu-se absolutamente desarmado diante domaiorperigodesuavida.

Lançou-se cegamente. As asas do dragão lhe cercavam,dificultando-lheavisão.Omauhálitododragãoqueimava-lheanuca,quando se voltou cegamente e começou a correr. Era inútil lutar;humanoalgumpoderiaenfrentar tamanha fera.Amaldiçoouodestinoque o enviara desarmado, lamentou que sua jornada terminasse ali eentristeceu-seportodasascoisasnovasque jamaisveriaousaberia,epelosOrdáliosaosquaisnuncateriachancedesesubmeter.

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Gritou desesperadamente e atacou outra vez com a faca. Pelomenosmorrerialutando,nãosedeixariadevorarpelascostas.Desejouque alguém informasse seu pai de como havia morrido, e achou-sepensandofreneticamentesehaviaalgumacoisaapósamorteouseistoseriao fim.Orugidododragãoeraensurdecedor.Atingiudenovoodragãocoma faca; eleo ferirae foibanhadoporumsangueescuroefétido, mas o dragão ainda lutava, e ele nem sequer tinha ferido odragãoseriamente.

Então,numterrívelpesadelodesangue,maucheiroeluta,ouviuvozes do alto, vozes femininas. Viu pontiagudas lanças de metaltrespassandoodragão,viu,incrédulo,queelecaíaemorria.Viunoaltorostosdemulheres:trêsmulheresvestidascomarmaduradecouroquelevavauma lua crescente.Elaspareciam,pensounumúltimoesforço,com asmulheres coroadas dosmosaicos embaixo dos seus pés. Seriaumsonho,seriamosespíritosguardiãesdestelugar?Seriamapenasasúltimas fantasias agonizantes de seu cérebro, teria sido afinal mortopelodragão?

Exausto,mergulhounumanoitesemestrelas.

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CAPÍTULOQUATRODisa chutou o corpo morto do dragão, depois abaixou-se para

arrastá-lo, fazendo sinal para que suas irmãs viessem ajudá-la. Zeshiabaixou-se para ajudar, mas Kamala permaneceu imóvel, olhandofixamenteorostodojoveminconsciente.

— Será que ele é realmente um príncipe? Seu manto está tãosurrado...

— Ele é o segundo filho do Imperador doOeste, e seu nome éTamino-disseDisa-,masamenosqueremovamosocorpododragãonãopoderemoslibertá-looureanimá-lo.

Relutante,Kamala tirou seusolhosdo corpo inertedePamino epuxou, com as irmãs, o corpo do dragão. Enquanto puxava disseressentida:

— Isto não é trabalho nosso! Nunca ouvi dizer que houvessedragõesnestelugar.

—Estas são as TerrasMutáveis—disseZeshi.—Você deveriasaber tão bem quanto qualquer uma de nós que se pode encontrarqualquer coisa nas TerrasMutáveis; e seja lá o que se encontre, terásempreumaformadiferente.

— Presumo que sim — Kamala empertigou-se e olhou paraTaminooutravez.—Comoébelo!

Zeshiconcordoupassandoalínguanoslábios.—NãoháhomensquesecomparemaestenoTemplodaNoite.

Olheosseusombros,ascoxaseasmãosdele.Seusolhos...serãoazuisounegros?Seuscíliossãotãolongosquantoosdeumamulher.Estoucertadequeeledariagrandeprazer.Seráqueeletemumaamanteemseudistantepaís?Seráqueeupoderiafazerqueseesqueçadela?Seráque...

Disariucommalícia.—Seucorpoestásempreprontoparaqualquerjovem,humanoou

Halfling,não?Nãopensoqueelesejaparavocê,nemparamim,Zeshi.Esqueçalogoosprazeresdacamaeconcentre-senatarefaqueaRainhaEstrelanosdeu.

—Nãopensequevocêémelhordoqueeu,Disa.SeidealgumashistóriassuasnoTemplodoTouro...

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—Quietas,vocêsduas—Kamalaasinterrompeucomautoridade.-QuandoaRainhaEstrelapediu-mequedeixasseasguardiãseviessepara este ermo, ordenou-me que protegesse o jovem; e agora que jácumprimosnossatarefa,opróximopassoédizeraelaqueseusdesejosforamrealizados.Nãoacreditoqueelaoqueiraparaseusprazeres.

—Recebemosordensdeprotegê-lo—Zeshiretrucou-,epoderiahaver outros perigos neste lugar. Ficareimontando guarda, enquantovocêlevaasnotíciasparaasenhora.

— Se há o que guardar — Kamala lembrou-as -, a tarefa seráminha, já que aRainhamedesignou comoguardiã.Você, Zeshi, temoutras obrigações junto aos Halflings. Vá e dê notícias à Rainha; euficareitomandocontadele...

— E quem o protegerá de você?—Disa zombou.— Ele estarámelhor sozinho. Vamos juntas falar com a Rainha Estrela. Ela já temmuitos problemas — acrescentou num tom mais suave -, para queperdertempocombrigas?Logoagora,quandoelaestátãopreocupada!

— Você tem razão — Zeshi concordou e Kamala segurou aespada.

— Se aomenosminhas guardiãs e eu pudéssemos pôr asmãosnaquelemonstro...arrancariaseusolhosecortariaosexodele;depoislançariaseusrestosaosabutres!

Disaconcordoucomarsombrio.—Eleéloucopelopoder.Pensoquefoiumgolpeparanossamãe

que Monostatos, nosso meio-irmão, filho de nosso pai, a GrandeSerpente,tenhapassadoparaoladodomonstroefugidoparaotemplodos reis-sacerdotes.Ainda assim a Rainha Estrela não sente ódio porele!

—Elasóodeiaumapessoa—disseZeshi—enãoéMonostatos.Talvezelatenhamandadobuscarestepríncipeparaajudá-la.

—ComtantosaliadosentreHalflingsehomens,porqueprefeririaumestranhodeumaterradistante?—Kamalaperguntoucomdesdém.

— Ela fez bem— disse Disa -, pois um príncipe de uma terradistantenãoestarialigadoporlaçosdelealdadeaqualquerumdenós.Masdevolembrar-lhes,minhasirmãs,quenãoénossatarefaquestioná-la,massimrealizarsuasvontades.Venham,sigamosnossocaminho.

Kamala lançou um olhar melancólico ao corpo inerte do jovempríncipe,masnãoprotestou.Seguiusuasirmãsparaforadaclareira.

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Tamino recobrou lentamente os sentidos, ouvindo um assobio.Sentou-sedevagar.Suacabeçaestavamachucada,equandoelevousuamãoparatocá-lasentiuopegajososanguemauefétidoemsuatúnica.

Agora se lembrava. Lutara com um dragão. Olhou ao redor; ocorpo jazia a pouca distância. Ele não omatara. Estas eram as TerrasMutáveis; tornara-se o dragão facilmente um cadáver, como antes oantílopese transformaranumagazelaedepoisnumesquilo?Masnãoestava onde havia caído. Alguém tirara o dragão de cima dele e oapoiara numa árvore. Sua faca estava próxima; Tamino pegou-a erecolocou-a em seu cinto. Procurou o arco e as flechas.Achou o arcoondecaíra,masnãoencontrouasflechas.Bem,agoraqueestavaoutraveznomundodoshomens,poderiaconseguiroutras.Quemosalvara?

Agorasabiaquenãoestavasozinhonaclareira.Ouviuoutravezoassobiodeantes,eviuumhomemdeaparênciaestranhamovendo-sepróximodeondecomeçavamasárvores.

Eleeraesguioedelicado,eporummomentoTaminopensouquetivesse cabelos verdes... não, tinha penas verdes em sua cabeça!Não,nãoeramexatamentepenas,emboraseucabelo tivesseumacoloraçãoestranha, amarelo-esverdeada, e caísse ao longo do pescoço, emcamadasquedavamaimpressãodepenas.Seunariz,também,sugeriaumbico,ouassimpareceunumrápidoolhar,embora,olhandomelhor,Tamino percebesse que era um nariz perfeitamente normal, mas dealgummodomaisafiladoebicudodoquequalquernarizqueTaminotivessevisto.Quantoàsmãos,havia tambémalgodeestranho,apesarde ele usá-las com habilidade. Levou-as aos lábios e soprou umpequeno apito que imitava com perfeição um chamado de pássaro.Depoisassobioue,atendendoaosomatraente,meiadúziadepequenospássaros voaram até a clareira, onde apanharam com o bico algumacoisaqueeleláespalhara.Oestranhohomemfezummovimentocomsuas mãos estranhas, tão rapidamente que Tamino mal pôdeacompanhá-lo com os olhos, e quatro passarinhos ficaram piando eesvoaçando entre suas mãos. Colocou-os numa gaiola de vime, queTaminonãoperceberaqueestavasobreagramanoextremodaclareira,eassobiououtravez.

Enquanto o examinava, Tamino percebeu como era estranha acriatura. Parecia um homem que se tinha transformado parcialmentenum pássaro, ou um pássaro que havia assumido características

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humanas.EissosignificavaqueeleeraumHalfling.Outro Halfling. Mas o Halfling que encontrara antes não tinha

modostãohumanos,nãousavaroupanemfalava.EsteHalflingvestiauma túnica verde de tecido grosseiro adornada com penas verdes eamarelas,oquepareceuaTaminodeextremomaugosto,comoseelemesmo estivesse vestido de forma mais requintada. Mas talvez nãotivessepensado,ouparadoparapensarnisso,ounofatodequeseriaengraçado para o dono do homem-pássaro vesti-lo com penas depássaroemandá-locaçarpássaros.OHalflinganterior,amulher-lontra,não era capaz ou não desejava falar, embora lhe tivesse indicado adireção por gestos; o que significava que ela podia entender alinguagemhumana.

Taminoselevantoueaproximou-sehesitantedohomem-pássaro,quecontinuouassobiandoparaatrairospássarosdasárvoressemlhedaratenção.

—Comlicença,amigo—começou.Comumgrandebaterdeasasegritosestridentes,ospássarosse

forameoHalflingsevoltou.ViuTamino,assustou-seefranziuocenho.—Olheoquevocêfez!Todosfugiram—ralhou.—O que você estava fazendo com eles?— perguntou Tamino,

surpreso e aomesmo tempo alegre porque a estranha criatura podiafalar.

—Pegando-ose colocando-osnasgaiolas.Vocênãoviu?Vocêécego?—replicou,eTaminoseperguntousenãoerraratomando-oporumHalflingenãoumhomemcomum.

—Porquevocêestápegandopássaros?—Éomeutrabalho;ganhocomidaporisso—replicouoestranho

ser. -Pego pássaros e em troca elasme dão guloseimas, vinho e boasfrutas.Vocênãotrabalha?Queboa-vidavocêé?

—Nãosouumboa-vida, souumviajante—disseTamino, logoaborrecidoporter-sedeixadoatrairporfutilidades.—Queévocê,istoé,oquevocêé?

— Um homem como você, um homem como qualquer outrohomem -respondeu o homem-pássaro. — Realmente você deve sertotalmentecego.Oqueestáfazendoaqui?Apresençadeforasteirosnãoémuito comumpor estes lados, e aRainhaEstrela ficará furiosa seodescobrir.

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—QueméaRainhaEstrela?—Vocêédefatomuitoburro—disseohomem-pássaro.—Você

nãosabenadadenada?Elagovernatodasestasterras.Comoconseguiuchegaratéaquisemapermissãodela?Como?Elapoderiamandarumdragãocontravocê,oualgosemelhante.

—Pensoquefoijustamenteistooqueaconteceu—disseTaminosombriamente.—Foivocêquemomatou?

—Matouoquê?Sóestavabrincando—falouopequenoHalflingcomumrisinhocômico.—Nãohádragõesporesteslados.

— Era o que eu pensava — disse Tamino, e apontou para odragão.Ohomem-pássarodeuumpulo,encolhendo-sedepavor.

—Oh,socorro!Estámorto?Escondeu-se atrásdeTamino, olhando commedoparaodragão

morto. Constatando que o dragão não se mexia e sentindo-se maisseguro, pulou para a frente do dragão, assumindo uma atitudearrogante.

—Ah!Vocêachaqueumcaracomoeuteriamedodeumdragão—falou.—Nãodeumdragãozinhocomoeste!Qual!Vocêaindanãoviuosverdadeirosdragõesdaqui!

Tamino fez forçaparanãorir.Agoraqueestavasalvo,podiaverque o dragão não era tão grande como acreditara quando estavalutando;dequalquerforma,eramaiordoquetudooquejáenfrentaraemtodaasuavida,ouqualquercoisacontraaqualdesejariavoltaralutar.Masaindanãoestavacertodequeodragãofossereal,enãomaisuma ilusãodas terrasMutáveis.Contudo,o cadávererabastante real.Emboranãoo tivessematado,estavaconvencidodequeesteHalflingengraçadotampoucoofizera,OHalflingeratãofrágiledeconstituiçãotãodelicadaqueTaminonão teriaapostadonelenumabrigadegalo,mesmoqueelefosseumverdadeirogaloderinha.

—Você omatou, então?Que tipo de arma usou?—perguntourindo.

Ohomem-pássaroolhouparaocintodesuatúnica,ondeasúnicascoisas que lembrariam armas eram uma faquinha que dificilmenteserviriaparaentalharumaflauta,eumaferramentaparatrançarvime—provavelmente a gaiola que trazia consigo fora feita com ajuda desseinstrumento.EletocouocabodafaquinhaeTaminoquasepodiavê-lodebatendo-se com o dilema de não ser acreditado caso alegasse ter

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usadoafaca.Emvezdisso,gabou-se:—Nãoprecisodearmas!Vocênãopercebeaforçademeusbraços

epunhos?Tamino quase estourou numa gargalhada. Que sujeitinho

absurdo!Sefosseumserhumanoquecontassetaismentiras,Taminooteriarepelido,masdestecamaradinhanãosepoderiaesperarprincípioséticosprópriosdoshomens.

— Fale-me dos dragões que você matou — disse rindo. — ARainhaEstrelaoscolecionacomoofazcomospássarosdesuasgaiolas?

A menção à Rainha Estrela fez com que os olhos do homem-pássarosearregalassem.

—Oh,não!—disse,comosolhosarregalados.—Elareinasobretodos os dragões como reina sobre nós. Ela é todo-poderosa, e, eu,Papagueno, sou seu principal servidor, apanhador de pássaros,matadordedragõeseseumaissábioconselheiro...

—Oh,émesmo?—Taminodisse,dandoumsorrisinho.—Entãotalvez você possa me indicar alguma estalagem acolhedora nasredondezas,ondeumviajantepossacomer,tomarumbanhoe,talvez,beber um bom caneco de vinho, pois estou viajando há trinta dias enecessitodegenerosahospitalidade!

— Não há estalagens por estes lados — disse Papaguenoingenuamente — ou, pelo menos, não conheço nenhuma. Não tenhoencontrado muitos viajantes. Deve ser terrível não ter o que comer!Escute...daquiapoucochegarãotrêsbelassenhoritas;vêmpegarmeuspássarosemetrazerfrutas,vinhoepão.Elasfazemistosempreporqueme acham encantador, e além do mais, sou o principal servidor daRainhaEstrela.Hásemprecomidademaisparamim,eficareifelizemdividi-lacomvocê.

— Você é muito gentil — Tamino falou com sinceridade. Ocamaradinha, apesar de ser um fanfarrão, tolo e cômico, tinha bomcoração.

Ouviu-seumchamadosibilantevindodoextremodaclareira.—Papagueno!Ohomem-pássarotremeuetentouesconder-seoutravezatrásde

Tamino.Mais uma vez ouviu-se o insistente chamado sibilante, umavozdemulher.

—Papagueno,seumalandro!

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—Sãoaquelasasbelassenhoritassobreasquaisvocêmefalou?O homem-pássaro respondeu balançando a cabeça

miseravelmente,enquantoouviuchamarempelaterceiravez:—Papagueno!Taminoolhouemvoltaeviutrêsmulheresentrandonaclareira.—Quemsãoelas?—perguntou.—SãoasdamasdaRainhaEstrela—dissePapagueno, tentando

esconder-se outra vez atrás de Tamino. O príncipe olhou para asmulheres.

As três eram altas e imponentes, cabelos e olhos negros, feiçõesmarcadas e testas altas. Tamino, que emummêsde viagemnão viramulher, olhou-as com interesse. Uma delas estava vestida comoguerreira:umsaiote,peitoraldecouronegroegrevas.Asoutrasduasusavamvestidosfeitosdetecido leve,e traziamemsuascabeçasumaespéciedetiaraencimadaporumaluacrescente.Taminoachouquedealgummodo já as vira antes em algum lugar. Não obstante sentisse,jamais pousara os olhos em mulheres assim. Com certeza não eramcomoasdelicadasmulheresdeseupaís,decabeloslourosepelealva,vestidas em seda e tecidos macios; nem se poderia pensar que umadelas empunhasse armas. Ia se aproximar e falar com elas, mas aatençãodelasestavatodavoltadaparaPapagueno.

—Papagueno—umadelasdisseemtommelífluo.—HojetragodapartedaRainha,emvezdepãoefrutas,somenteumacestacheiadepalha e restos de frutas.— Ergueu a cesta e despejou seu conteúdosobre a cabeça dele, rindo alegremente. Tamino ficou espantado; ajovem lhe parecia muito delicada e gentil para que pudesse fazertamanha grosseria. Constrangido, Papagueno procurava limpar acabeçaesuatoscaroupa.

—Minha senhora Zeshi, o que fiz? Olhemeus pássaros... comosãobelos,quelindascores,nemumasófalhanacauda...—balbuciava.

—EdesuaGraça,nãolhetragovinhoespumante,masumcântarode água suja tiradodo cochoondeosporcosbebem!—Quem falavaagoraeraaquetraziaumaespadaepareciaumguerreiro;eenquantofalava,iadespejandoaáguasobreacabeçadePapagueno.Ensopadoeaflito,elebalançoudeumladoparaooutroseuscabelosesverdeados,quepareciampenas,emurmurou:

—LadyKamala,peço-lhe...

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Tamino,chocado,sentiu-sefurioso.Aterceira,queeraamaisaltaemaisimponente,falouseveramente:

— E para sua boca, que mente e fanfarreia para um viajantedesavisado,tragoumcadeadoparacalarseufalatóriomentiroso.

—Oh,LadyDisa...—gemeuPapagueno, rapidamente agarradopelasduasmulheresmenores,quecolocaramocadeadoemsuaboca.

Elebalançouacabeçamurmurando,masapenasconseguiudizer:—Ummm-ummm-ummm!Taminoficouperplexoepenalizado.Elasestavamrindo.Estavam

se divertindo à custa do Halfling. Para elas isto era apenas umabrincadeira; ele não sabia até que ponto elas estavam sendointencionalmente cruéis, mas por que tratariam o pobre camaradinhacomtantadureza?

Quando elas pararam de brincar, e enquanto Papagueno seencolhia de medo, a mais alta e mais imponente delas dirigiu-se aTamino:

— Príncipe do Império do Oeste — começou a falar e Taminoperguntou-secomoelasabiaseunome-,aboafortunaesperaporvocê.SeunomeeospropósitosdesuaviagematéaquisãodoconhecimentodenossagrandeRainha,eela lheconvidaparavisitaropalácio,ondeserárecebidocomohóspededehonradesuaGraça.

Por ummomento apenas, Tamino hesitou. Fora-lhe ordenado irem busca do Templo da Sabedoria, sim, e tentar ser admitido aosOrdálios; mas não lhe fora proibido empreender as aventuras quepoderiam aparecer em seu caminho. Esta Rainha era evidentementeumapersonagemdeimportâncialocal,epoderialheindicarocaminhocorreto.Jáqueelepodiaenfrentarperigosedificuldadesnaestrada,porque razão não poderia também usufruir dos prazeres que acasoaparecessememseucaminho?

—Ficareiencantado—respondeu.—Papagueno,venhatambém—disseamulherguerreira.—Você

assistirá o príncipe. Você passoumuito tempo entre os pássaros e jáestápensandoqueistooqualificouparaexibir-seàcustadosdragões.

Empurrara Papagueno, sem que ele pudesse falar, para a frentedelas, num gesto que misturava amabilidade e severidade. Ele fezalgumas caretas e emitiu uns grunhidos,mas como cadeadopreso àboca não lhe era possível dizer uma palavra. Tamino seguiu-as, e,

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quando deixaram a clareira, viu à distância torres escuras, elevadassobreumagrandemuralha.

—LáestáopaláciodaRainhaEstrela,aSenhoradaNoite—falouaguerreiraKamala.—Lávocêserátratadocomoconvidadodehonra,aRainhadaNoiteoreceberá,emsuagenerosidade,quandoescurecer.

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CAPÍTULOCINCOPor detrás dasmuralhas havia uma cidade de ruas largas, onde

homens,mulheres eHalflings, de ambos os sexos,misturavam-se empraçaseruas,aolongodeestreitasruelasediantedecasasqueTaminovia por todos os lados.O povo da cidade dividia-se emdois gruposdistintos:ogrupodaspessoasaltas,morenasedenarizaquilinocomoas damas da Rainha Estrela, e o das pessoas de pele clara, cabeloslouros ou ruivos, não diferentes do povo do Império do Oeste.Misturadosaestesgrupos,nasruasepraçashaviamuitosHalflingsdetodosos tipos;muitospareciamsujosedescuidados,meio famintoserepulsivos,maisdesleixadosdoquequalqueranimal.

Como Papagueno havia muitos, obviamente servos de algumacasanobre:bem-alimentadosecuidados,usavamargolasecorrentesouroupas extravagantes que pareciam um tipo de libre. O excesso deenfeites tornava-os ridículos. Tamino pensou que eles seriam maisatraentes e viveriam de forma mais digna se fossem tratados comoanimais ou como seres humanos. Mas não havia meio-termo; eramanimaizinhosdeestimaçãovestidos comobrinquedos sofisticados,oueram animaizinhos sujos e negligenciados. “Os animais”, Taminopensou,“seriammaisbemtratados.”

O palácio lhe pareceu limpo e bem cuidado, embora visse umacriaturamista de boi e homem, que lhe transmitia um sentimento dedesolação.Seusombros,comoopeitoeosbraços,eramenormes;tinhaumacabeleiraespessaegrossaquecaíasobreumatestabaixaelarga,onde protuberâncias sugeriam o desenvolvimento de chifres. Ele lheparecia infeliz e bronco, e em seu rosto não havia a vivacidade queTaminoviranorostodePapagueno.

Usava uma roupa grosseira de couro, concebida com o mesmomaugostoquearoupadePapagueno.Suasmãoseramtoscas,eseusdedos eram grossos e cobertos de calos. Arrastava uma pesadavassouraaolongodoscorredores,caminhandopesadamentesobrepésbrutos e troncudos como patas — O corpo musculoso e cabeludopareciabastantehumano, excetopelomembro enormeque sobressaíavolumososobaroupadecouro.Pulsosetornozelosestavampresosagrilhões.Taminoperguntou-sequal teria sidoaofensa cometidapelo

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homem-touro, e se ele teria desagradado alguém, como PapaguenopareciaterdesagradadoasdamasdaRainha.Asmulheresconduziram-noparaseusaposentos.

—Porfavor,sinta-seemcasa;sequiseralgumacoisa,Papaguenoprovidenciará para que lhe seja trazida— disse Disa.— Papagueno,sirva-obem,etalvezaRainha,emsuabondade,oliberte.

Papagueno lançou-se humildemente ao chão, produzindo sonsqueeramtudooqueelepodiaexprimir.

Quando as damas se foram, Tamino examinou os aposentos.Havia um banheiro luxuoso, que lhe lembrou os muitos dias deviagem, quando, por apenas uma vez após muitos dias no deserto,improvisaraumbanhonolagodafloresta.

—Gostariadetomarumbanho—falouemvozalta,lembrando-sedequePapagueno,aindaprostradoservilmente,estavaaliproduzindosonsinarticulados.

— Sinto muito, meu pobre amigo; honestamente acho que elasforam duras demais com você — disse. — Vire-se, deixa eu ver seconsigolivrá-lodestacoisa.

Papagueno retraiu-se; evidentemente a idéia de que pudessedesagradar asdamas era-lhemais terrível do que ador causadapeloinstrumento.EmpurrouTaminoparaobanheiro e fez sinaisparaqueelesedespisse;eempoucotempoumadupladeHalflingspeludos—quefizeramTaminolembrar-sedamulher-lontraencontradaporelenafloresta- entrou no banheiro e com jarros alegres encheu a banheira econduziu-oparadentrodela.Aáguaestavatépidaeagradável.Taminoesfregou com prazer a poeira da jornada que ficara em seu corpo,auxiliado pelas criaturas-lontra, que se moviam com vivacidade aoredor dele, tornando óbvio para ele que para elas não havia prazermaior do que Tamino usar-lhes o corpo como esponjas, escovas etoalhas.

Mas quando ele relutantemente se levantou da água, elas lheprovidenciaram toalhas de verdade, grandes, secas e felpudas, poisestava claro que, embora servissem como excelentes esponjas eesfregões,ascriaturasnãoserviamcomotoalhassecas.Obanheiroficouinundado de água e espuma, e Tamino não podia imaginarcompanheirasdebanhomaisagradáveisdoqueumadupladeamáveiscriaturas-lontra.Umtantoembaraçadocomoprazersensualprovocado

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porelasdurantetodooprocesso,emboralheparecessemtãoinocentesquantoumaduplade cães bonachões, ele concluiuque se elas foramtreinadas para auxiliares de banho, não havia razão para que nãotivessemprazercomseutrabalho.

Debanhotomado,Taminovoltouaoquartoedescobriuquesuasurrada roupade viagemdesaparecera. Em seu lugar encontrouumatúnica e calça da mais pura seda, de cor rubra, e um cinto pesadoincrustado de placas de bronze. Havia roupas de baixo e meias dealgodãomacio,esuasbotastinhamsidolimpasebrilhavamdetãobempolidas. Um manto com uma corrente de prata, cujo tom cinza erapróprio da melhor prata, completava o traje, e Tamino sentiu-se denovoopríncipequeera.

Papagueno olhou-o com muda admiração e fez sinal para umadupla de Halflings da mesma raça troncuda e encourada daquelehomemacorrentado,queforavistopuxandoumavassoura.Elesiamevinham com uma sucessão de bandejas de prata, cheias das maisdeliciosas comidas e bebidas. Havia também um grande cântaro devinho. Papagueno murmurava um chilro enquanto servia comida aTamino e lhe oferecia uma taça de vinho branco espumante. Tinha operfumedoce demuitas frutas, e após a segunda taça Tamino sentiuqueaboasortehaviadefinitivamentevoltado.

Refestelado num divã guarnecido de sedas e almofadas,mastigavapedaçosdepãofeitodomelhorgrãojamaisprovadoporeleemsuaterra,saboreavafatiasdecarneassadaebolosdefrutasemel.Quandoterminousuarefeição,osservostrouxeramseuarcoque,comosuasbotas,foirenovado,limpoepolido,ganhouumacordanovaeumsuprimentodeflechastalhadascomapuro.

Seja láoquesedissessedomodocomoaRainhaEstrela tratavaseusservoshalflings—eelamesmadificilmentepoderiaserculpadapor tal tratamento -,averdadeéqueseupalácioprimavapelo luxoehospitalidade.

Derepenteouviu-seumsomsemelhanteaodeumaforteventania.Asportasdosaposentosabriram-se comviolência,os touroshalflingsqueestavamtirandoamesamugiramlamentosamenteefugiram,suaspatasfaziamtremeroassoalho.Asjanelasseescancararam,abrindo-separaanoiteeasestrelasalémdobalcão.

Astrêsdamasentraramdenovonoaposento.

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Elas também trocaram seus trajes: todas, incluindo a mulherguerreira, usavam vestes negras que resplandeciam como quesalpicadas por raios de lua e poeira de estrelas. Em suas cabeçastraziam luas crescentes brilhantes e pareceu a Tamino que os olhosdelas iluminavamoquarto, comamesma luzdasestrelasque lá foracomeçavamaaparecer.

Kamalasussurrou—eTaminojáreconheciaseutomdevoz:—Elaestáchegando:nossaSenhoradaNoiteeRainhadetodasas

Estrelas!— Ela está chegando! Prestem suas honras! — ordenou a voz

imperiosa deDisa.O vento forte alémdas portas aumentou, quase apontodetornar-seumfuracão,tantoqueasjanelasforamviolentamentesacudidaseascortinasseagitaramesilvaramcomopássarosselvagens.

Então, fez-se absoluto silêncio. As últimas luzes se apagaram.Tamino podia ouvir um tiritar. Os dentes de Papagueno estavambatendo,eeleouviuodolorosochilromurmurado,queeraoúnicosomqueoHalflingpodiafazercomasuabocaencadeada.

Na escuridão surgiu um brilho tênue, como se a luz estivessenascendonoquarto.Repentinamente, ao somdo trovão, ela apareceudiante deles, coroada com a Lua e resplandecendo num mantosalpicadodemilharesemilharesdeestrelas:aRainhadaNoite.

Taminocaiudejoelhos,estupefatoantesuabelezaemajestade.Obrilho diminuiu. Subitamente, sem que Tamino jamais viesse a sabercomo, acenderam-se outra vez as velas do aposento e a figuraimpressionantedaRainhaEstrelafeneceu.Agoraelajánãopassava,ouassimpareciaaumjovemsuper-impressionado,deumafrágil,idosaepequenamulher.Seurosto,enrugadoeconturbado,aindaguardavaossinais de uma grande beleza. Caminhou suavemente até ele, seuspassos tão silenciosos como uma nuvem; também como nuvem era acapatênuequeenvolviaseusombros.

Elafalouesuavozeratãosuavequantooventodanoiteentreosgalhosdeárvores:

— Não tenha medo de mim, meu filho. Sei que você é forte edigno, e sei com que coragem você enfrentou as atribulações dajornada.

Tamino abriu a boca,mas não conseguiu falar. Perguntava-se seestafrágilepequenadamaeramaisrealdoqueavisãotodo-poderosa

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da Deusa da Noite. Qual seria sua verdadeira imagem — ou averdadeiraseriacompletamentediferentedessasduas?

ARainhaprosseguiu,suavozeradolorosaemurmurante:—Vocêtemàsuafrenteamaisinfelizdasmulheres.Minhafilha,

oconsolodeminhavelhiceeoconfortodeminhavidasolitária,foi-meroubadaporumdemôniopoderoso chamadoSarastro, e eu temo seudestino.Vocêésábioeforte,eSarastronãoteriapoderalgumsobreumjovemincorruptívelcomovocê,umestranhonestasterras...Nãopossopedir ajuda ao meu próprio povo, pois ele já exerceu seu podermaléficosobretodososhabitantesdestapartedaTerra.

Dedos delicados e etéreos como névoa puseram algo sólido nasmãosdeTamino.

—Aqui— a voz soou como o sussurro do vento num oásis aocrepúsculo—vocêpodeveraimagemdeminhafilha.Elalheagrada?Suacoragemeforça,suanobreprocedênciacomofilhodoImperadorotorna igual a ela e seu merecedor. Se conseguir libertá-la, serárecompensado.Elanãoécasadanemestáprometidaemcasamento,eseudote...—aRainhaEstrela fezumapausa—éopróprio reinodaNoite. Tenha coragem, traga minha filha de volta, e você será maispoderosodoquejamaissonhouser.

Taminoviuemsuasmãosumpequenoobjetoduroeplanocomoum espelho. Do outro lado da superfície do espelho estava umaadorávelelacrimejantejovemloura.

Elanãoteriamaisdequinzeanos.Suasfeiçõeseramdelicadas;eelenãovianelaamaisremotasemelhançacomaRainhaEstrela,nemcom a impressionante Deusa — se esta chegou a ser mais que umailusão -. e muito menos com a morena e idosa mulher em sua capatênue diante dele. A menina no retrato — ou isto seria um tipo deespelhomágico?—tinhaapelemuitoalva,seusolhoscontornadosporlongasfranjaslouras,esobrancelhasquaseinvisíveisdetãoclaras.Seusolhoscordevioletaestavamcheiosdelágrimasquecorriamsobresuasfaces leitosas, misturando-se aos longos cílios. Seu vestido de sedabranca tinha um corte sombrio, deixando à mostra apenas a partesuperiordosseiosdajovem.

—Elaébonita—elemurmurou.—Comoelasechama?Ouviu-senoquartoumsuavemurmúrioemresposta:

—Pamina.

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Ele quase não o ouviu. Seus olhos pareciam hipnotizados pelaimagemvivadaqueleadorávelrosto.

Entãotrovejououtravez;umraioatravessouoquartoeeleviu-sesozinho, prendendo em suas mãos suadas o espelho, de onde oadorávelrostodajovemmagicamenteofixava.

Papagueno ainda estava choramingando num canto. A mágicaescuridãopassara;TaminopercebeuqueforadoquartooSolestavasepondo. A noite e a escuridão foram uma ilusão criada pela RainhaEstrela.

Meditava silencioso se tivera um sonho bizarro.Mas o rosto dajovemnoespelhoerareal,emboramágico.

E não seria ela apenas parte daquela ilusão? Primeiro, a Rainhafizera sua aparição de maneira impressionante e terrível; depoisrevelaraseuverdadeiroser,odeumamãesofrida.Taminopensouemsuaprópriamãe.Elamorreraquandoeleeramuitojovemequasenãopodia lembrar seu rosto, embora, pensando nele neste momento, lheocorresseaidéiadequeelapoderiatertidoalgumasemelhançacomaRainha.Disseasimesmoqueajudariaessainfelizeultrajadamulher,mesmoqueelanãolhetivesseprometidoamãoeodotedesuafilha.

Olhou outra vez para o adorável rosto da jovem chorosa noretrato. Ela não estava chorando agora; parecia aborrecida eamedrontada,enas sombrasdoespelhomágicopensouverumvultoatrásdela.Ovultodoterrívelfeiticeiro,seuraptor.

Sarastro,esteeraonome;umhomemexecrável,casotivessetiradoafilhadosbraçosdesuamãepararealizarseusmaléficospropósitos.Oquepoderiaelequerercomamenina?Taminoachou-seingênuo:oqueumsacerdotecorruptopoderiaquerercomumamenina,senãotorná-lauma discípula fanatizada e talvez aproveitar-se de sua juventude ebeleza?

PapaguenoaindamurmuravachilrosaflitosquandoastrêsdamasdaRainhaEstrelaentraramnoaposento.

— Papagueno — Disa falou e o homem-pássaro encolheu-se.Taminoquasepôdeouvi-loperguntarquenovabrincadeiracruelelasmaquinaram tendo-o como alvo. Em vez disso ela o chamou e ele aseguiu,lentamente,relutantemente,commaismedodedesobedecerdoquedotratamentoquepudessereceber.

— Sua graça, a Rainha da Noite, ordenou-nos que você fosse

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perdoado—disseDisa,virando-obruscamenteeremovendoocadeadode sua boca. -Cuide de não mentir nem contar vantagens, meninolevado!

Papagueno,pulandodealegria,foicorrendoparaamesa,ondeosrestosdarequintadarefeiçãoservidaaTaminoaindaestavamsobreasbandejas.Encheuamãodefrutasebolos,eentãoolhoucommedoparaTamino.

Taminofezsinalparaqueeleseservisseàvontade,ePapaguenoencheusuabocadeguloseimas.Asdamasoignoraram.

—PríncipeTamino,vocêresolveuaceitaramissãopropostapelaRainha?—perguntouDisa.

Ela falou com uma solenidade quase ritual. Ele respondeu nomesmotom.

—Resolvi,senhora.—Entãotomeisto—estendeu-lheumcompridoestojodecouro.

Pelo formatoTaminopensouque fosseumaespadae sentiu-segrato,pois,pensandoqueajornadativesseumcaráterreligioso,nãotrouxeraconsigo nada que se parecesse com uma arma. Com dedos ávidosabriu-o.

Masnãoeraumaarma.Era... eraoquê?Um longoeococaniço,envernizadoepintadocomsímboloscuriosos;aolongodelehaviaumasériedeburacos,cadaburacoumpoucomenorqueaspontasdeseusdedos;Taminopôs-seapensarsepareciatãoconfusoquantodefatosesentiaportãoestranhopresente.

—Não fiquedesapontado—disseKamala.—Eu,quesouumaguerreira, sempredesejeiumaarmacomoesta,edariaminhaespada,lançaearcoemtrocadela.Oquevocêachaqueelaé?

—Istomeparecemaisumdaquelesinstrumentosqueosmúsicosdemeupaiusamparatocar—disseTamino,pensandoconsigomesmoseaofertadelaeraverdadeira,ese,casoeleaceitasse,aRainhaficariaofendida.—Devo-lhedizer,senhora,quetenhopoucahabilidadeparaamúsica, e sei tocar apenas um pouco de flauta. Fui educado comocaçadoreguerreiro,nãocomomenestrelouartista.

—Vocênãoterádificuldadeemtocaressaflauta—disseDisa—pois ela tempropriedadesmágicas.Nosdomíniosde Sarastro ela lheserádemaisvaliaquequalqueroutraarma,outodasasarmasjuntas,jáqueelaexercepoder sobre seusescravos fanatizados.Equantoa isso

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não temos dúvida: ele os tem em grande quantidade, pois todos oshabitantesdaregiãoestãosubmetidosaoseufeitiço.Vocêveráqueatéa princesa está sob seu domínio, afinal ela émuito jovem e pode teracreditadonospropósitos falsamentenobresdeSarastro.Elapodeaténãoquererdeixarosdomíniosdele.

—Fareicomqueelareconheçaaverdade—prometeuTamino.— Papagueno — Zeshi perguntou bruscamente -, aonde você

pensaquevai?Tamino voltou-se e viu que o Halfling tentava escapar

sorrateiramente da câmara, com as mãos cheias de bolos e frutascristalizadas.

— De volta para o meu cantinho na floresta, senhoras — elemurmurou. -Este lugar é fino demais para mim. Por favor, perdoemeste humilde servo; desejo a todos uma boa noite. Minhas cordiaissaudações a nossa senhora, à Rainha , e à princesa Pamina, e aopríncipe,eatodasvocês,gentissenhoras;durmambemetenhambonssonhos.Boa-noiteparatodos,boa-noite.—Deuumrápidoeagradávelassobiocomseuapito,virou-seecaminhouemdireçãoàporta.

— Volte aqui! ordenou Disa. —Ainda não lhe falei, mas é davontadedesuaGraçaquevocêacompanheoPríncipeTamino,oguieeosirvaemsuaexpedição.

— Oh, não, minha senhora, oh, não! — Papagueno olhou-asapavorado. -Oh, não, sou seu humilde servo, mas realmente devodeclinartantahonra!Sarastromecortariaempedaçosemeserviriaaosseus abutres! O príncipemerece um... servomelhor emais bravo doqueeu.Soutãomentirosoefanfarrão!Asenhoramesmadisseisto.Souumimprestável.Porquenãomandaumadesuasguerreirasguiá-lo?

—Porque Sarastro logo reconheceriaminhas guerreiras—disseKamala. — E como ele não o conhece, você estará seguro em seusdomínios. Não tenha medo; o Príncipe Tamino o protegerá, e se eusouberquevocênãooserviubem,teráquesehavercomigo!

PapaguenoolhoualternadamenteparaTaminoeDisa,semsaber—Taminoquasepodia lerseupensamento—se tinhamaismedodomisterioso Sarastro ou das damas e do que elas fariam a ele, caso asafrontasse.Taminotevepenadele,masaomesmotemponãosesentiudetodoinfelizportê-locomocompanheiroemsuaexpedição.

PôsseubraçoaoredordosombrosdoHalfling.

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—Anime-se, amigo Papagueno — disse. — Tomarei conta devocê.Naverdade,vocêconhecemelhorestapartedomundodoqueeu;tomaremoscontaumdooutro.

—Masnãopensequedeixaremosirnossogalantecampeãosemsuaprópriaarma—falouZeshidemodoafável.—SuaGraçamandou-lhetambémumpresente,Papagueno—entregou-lhealgoembrulhadonumpano.Curioso,ohomem-pássarodesfezoembrulho.Tratava-sedeumapequenaarmaçãocomsinoseumatrava,queosimpediadesoarsem que fossem tocados. Papagueno fez menção de tocar, mas Disa,comumgesto,impediu-o.

—Nãoatéquesejanecessário—disse—poisessaéumaarmamaravilhosa; tempodersobrealgunssúditosdeSarastro.Amarre-anacintura,Papagueno,eausesomenteemmomentosdeperigo.Bem,jáéhoradepartir.

—Agora?No escuro?— a voz de Papagueno soou queixosa, eTaminoperguntou-seseeledormiriaempoleirocomoasoutrasaves.Para falar a verdade, sentia o mesmo que Papagueno, pois tendopassadoummêsviajandooquequeriaeraumaboacama.

— Mas eu não conheço o caminho para o reino de Sarastro —protestou; todavia, enquanto falava, as paredes do palácio pareciamdissolver-se, as damas desapareceram e eles se encontraram numaestrada escuranos limitesdeuma floresta.Pensou consigomesmo seaquele bizarro episódio não passara de um sonho. Não, poisPapaguenoestavaaliaoseulado,tremendonaescuridão,emboranãoestivessefrio,eele,Tamino,tinhaemsuasmãosaflautamágica.

—Oquefaremosagora,amigoPapagueno?—Taminoperguntou.OHalflingapitouedisse:

—Deveria ter trazido comigomais alguns daqueles bolos e umpouco mais daquele bom vinho. Mas não sabia que começaríamosnossa jornada tão cedo. O que fazer? Bem, as damas lhe deram umaespécie de armamágica, não foi? Podia tentar tocá-la para ver o queacontece. Se ajudar, tudo bem, se não teremos pelo menos umamusiquinhaparanosalegrarumpouco.

— Boa idéia. — Tamino não podia imaginar em que ela lheajudaria, e, por outro lado, não entendia coisa alguma de magia.Pensou se esse encontro não teria sido o primeiro dos misteriososOrdálios,pelosquaisvieradetãolongeparasesubmeter.Elesempre

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ouvira dizer que quando se viaja por reinos mágicos — e estecertamente era um deles— deve-se estar preparado para enfrentar odesconhecido.

Tirouaflautadoestojoesóparaexperimentar,pousou-aemseuslábios.Soprousuavemente,naexpectativadeumsomdissonante,masouviuumamelodiasuaveeaguda,surpreendentementedoce.Atônitoesatisfeitocontinuouatocar;elesempreamaraamúsica,mesmosemtermuitotalentoparaela.

De repente apareceu um tênue clarão dourado no ar. Taminopiscou; na escuridãohaviaumbrilho comoquede vaga-lumes e trêscriaturassurgiramdiantedele.

Não soube dizer se eram meninos ou meninas. Eram humanosdemais para serem Halflings; mas eram frágeis e tinham os cabelosdourados — ou seria apenas o efeito do brilho dourado que osenvolvia?Semrefletirperguntou:

—Quemsãovocês?— Somos os Mensageiros da Verdade — um deles falou, ou

falaramtodosaomesmotempo,umsuavesomharmônico,quasecomoamúsicadaflautaemseuslábios.—Oquequerdenós?

—Bem,sevocêsnãoseimportarem—dissePapagueno—desejoumpoucodaquela ceiaquenão tive a chancede acabarde comernoPaláciodaRainha.

—Papagueno!—Taminorepreendeu-ogentilmente,enquantoumdos Mensageiros — ou Mensageiras? — levantava a mão com umpequeno gesto, quase, mas não exatamente, como se estalasse seusdedosmeioinvisíveis,edizianaquelasuavevozcantante:

—A cada um seja dado de acordo com suas necessidades nomomento—eemsuamãoapareceuumataçaeumabandejacheiadebolos.— Satisfaça sua fome,meu amiguinho.A sabedoria não resideem um estômago cheio, mas certamente nunca viveu num estômagovazio.Evocê,PríncipeTamino,oquedeseja?

Tamino olhou Papagueno devorar os bolos. Pensou nas árvorescarregadasdetâmarassurgidasdonadanasTerrasMutáveiseconcluiuque,afinaldecontas,estanãoeraumaterraruim.

—Nomomento—disse-,oquemaisprecisoédeumguiaqueme leve até as terras governadas por um feiticeiro cruel de nomeSarastro.

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—Quem lhe falou sobre Sarastro? E por que você o chama defeiticeiro cruel? — o Mensageiro perguntou, ou estariam todosperguntandoaomesmotempo?

— Uma mulher cruelmente enganada queixou-se a mim —Taminorespondeu.

Papaguenocochichou.— Tamino, eles são boas pessoas, pelomenos é o que se pode

concluirporsuacomidaevinho.Comopoderiamsaberocaminhoquelevaàcasadeumbruxomalvado?Chegaaseratéinsultanteperguntarumacoisadessasaeles.

—Seelesnãoconcordarem—Taminoponderou—podemdizer.E seSarastro tem tantopoder sobre todosporaqui, comonosdisseaRainhaEstrela,porcertoelesconhecemocaminho.—Olhou,hesitante,osMensageiros.

—PodemnosguiaratéSarastro?—Certamentequepodemos eo faremos—disseoMensageiro,

outalveztodoseles,poismesmotentando,Taminonãoviuseuslábiosse moverem, nem podia dizer qual deles estava falando. — Se nosseguirchegaráatéSarastro,eteráaoportunidadedeseconfrontarcomaquiloaqueservimos:aVerdade.Játerminousuarefeição,amiguinho?—Pegouataçavaziaearremessou-anoar,ondeeladesapareceunumclarãodourado.

—Comovocêfezisto?—Papaguenoperguntou.—Cuidadocomoquevocêpergunta—respondeuoMensageiro

-,jáqueumaperguntaenvolveabuscadeumaresposta;maisdoquearesposta -a Verdade, que está atrás de resposta. Tem certeza de quedesejasaber?

—Eunãosei.Nãotenhoboacabeçaparaenigmas.—Respostahonesta—falouoMensageiro.Taminoestavaquase

certodeque,destavez,quemestavafalandoeraodaextremadireita.— Você também é honesto, Príncipe Tamino? Tamino olhou as

trêsfigurasradiantes.Porfimfalou:—Tambémnãosei.Mastentarei.— Muito bem — disse o Mensageiro. Agora ele parecia uma

meninamuito jovem.Defato,suasaparênciasefeiçõespareciamestarconstantementemudando.—Estarespostaésuficienteporagora.Siga-nos,então.

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Voltaram-seeTaminoseguiuasfigurasradiantesaolongodeumcaminho — e ele podia jurar que não havia caminho algum ali,momentosatrás.

—Acompanhe-nos, Papagueno—disse -, não tenhamedo.Nãocreioqueelespretendamnosfazeralgummal.,esesãoosMensageirosdaVerdade, suponhoque tenhamditoaverdadequandonos falaramquenoslevariamaSarastro.

—Estáescuro—Papaguenodisse,tremendo.—Nãohánadano escuroquenãohajana luz— falouTamino.

Lembrou-sedequesuaamadizia istoquandoeleerabempequenoesentiamedo do escuro. Na verdade, não se sentiamais corajoso quePapagueno;masodestinolhederaesteindefesoHalflingparacuidar,eeletinhaquedaraPapaguenoumbomexemplo.

Tentando parecer mais corajoso do que se sentia, assobiousuavementeeseguiramatrásdasfigurasradiantesdosMensageiros,noescurocaminhoentreasárvores.

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CAPÍTULOSEISEleestavalá,espiando-aoutravez.Nervosa, Pamina cobriu-se com o lençol. Nunca gostara de

Monostatos,mesmoquandooconheceracomoservodesuamãe.Eleaamedrontava. Não era só por sua aparência estranha, própria de ummembrodoclãdaSerpente.Pareciaquesempreaoseencontraremseusolhos incolores fixavam-se nela, a ponto de ela se perguntar se dealgumamaneiranãoeraculpadaporexcitá-lo.

E aqui, nesta casa estranha, entre estranhos, longe das coisas ehábitos que lhe eram familiares — mesmo os Halflings aqui erampresunçosos, falando quando bem entendiam, assumindo atitudescomosenunca tivessemsidosurrados.—Monostatospareciaesperarqueelasevoltasseparaelecomoparaumvelhoamigo.

Sóqueograudeamizadeoferecidoporelelhepareciaestranho,perturbador e íntimo demais. Monostatos aparecia com excessivafreqüência nos aposentos que Sarastro colocara a sua disposição,assumindoaresdebem-intencionadocomseusservos,emaisdeumavez, como agora, ela pressentia que ele a espiava enquanto tomavabanhoousevestia.Nacasadesuamãe,elejamaisousariaintrometer-secomela,eosservosdesuamãeoteriampostoportaaforarapidamenteseeletentasse.Masaqui,nosdomíniosdeSarastro,comopoderiasaberseestaintromissãonãoeraalgumacoisaporelepróprio?

Envolveu-seemseurobe,atando-ocomfirmeza,eordenouasuaservahalflingquetrouxesseseustrajes.

—Ecerreascortinas—ordenou.—Sintoqueestousendoolhada.Seráqueaobedeceriam,jáqueaquiMonostatosgozavadeprivilégiosquenemmesmoexigia, equenaverdadeestavaestreitamente ligadoaomisteriosoeamedrontadorSarastro,quearaptaraeatrouxeraparacá?

Todaviacerraramascortinassemprotestar,eeladeuordensparaquefossevestida.Casoeleignorassesuasordens,elaprefeririaencará-lo totalmente vestida; e como seus olhos pareciam nunca deixá-la, omelhorseriaquesefixassemnasdobrasdesuaroupa.

Pelo menos agora, se ele desejasse ser admitido em seusaposentos, deveria seguir o costume de pedir permissão, e Pamina

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sentiu-sereconfortadacomestaidéia.—Minhasenhoradesejariatomarsuarefeiçãoaqui?—perguntou

umcãohalflingqueaservia,umamulherquefaziaPaminalembrar-seenternecida de Rawa. Há anos que não pensava em Rawa e estavaaborrecida consigomesma por se sentir tão segura e confortável comesta mulher, que nada mais era que um dos escravos fanatizados ecorrompidosdeSarastro.

— Sim, creio que sim.—Havia pouco a se fazer neste lugar, amenos que desejasse examinar alguns dos códices deixados para elapor Sarastro, e supunha que estariam cheios da odiosa filosofia deSarastro. Ele lhepedira para que os lesse, e isto era o suficiente paraqueelasevoltassecontraqualqueraparenteoupretensasabedoriaquepudessemconter.

Não erapelo fatode ele ter sido cruel ou inumano comela.Noprimeiro e breve encontro que mantiveram, Sarastro a tratara comgentileza;parecerabom,emboradistante.MasPaminalembrava-sedoterrordaqueledia—háquantotempofora?Perderaacontadosdias—umpunhadodediaspelomenos-,quandolevantaraosolhos,doseulugar favorito onde estava sentada no pomar com Papaguena, e viraestranhos Halflings aproximando-se dela sem permissão. Quandogritou com eles violentamente— quem eram eles para intrometer-secom a filha da Rainha Estrela? — viu um sacerdote estranhamentevestido.Ela sabiaque se tratavadeummembrodovil sacerdóciodeSarastro,mas só conseguira ver a curiosa e desconhecida insígnia emsuaroupa,esentira-seapavoradademaisparaouvirqualquerpalavratranqüilizadora.

Princesa Pamina, ninguém lhe fará mal, mas você deve nosacompanharsemresistência,semgritar.

A princípio gritara chamando os cervos de sua mãe. E não selembrava demais nada, exceto de ummanto tapando sua boca e dasensação de que estava caindo, morrendo. Quando acordou estavaneste lugar, entre servos vestidos com as cores de Sarastro, que lhereasseguraram que não seriamolestada e lhe proporcionaram todo oconforto,salvooqueelamaisqueria—voltarparasuamãe.

Minhapobremãe.Eladeveestar sofrendopormim, seucoraçãodeveestardespedaçado.

Todomundo temia aRainhaEstrela,Paminao sabia. SóPamina

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conheciaseuladodoce,somenteparaelasuamãeerainvariavelmentegentil e compreensiva. Por que Sarastro escolhera estemomento pararecomeçarsuaantigaguerra?

DeSarastroelasósabiaqueerainimigodaRainhaEstrela.Haviaumantigoressentimentoentreeles;Paminadesconheciaomotivo,massabiaquesuamãeeraumagovernanta justaevirtuosa; seSarastrosecolocara contra a Rainha Estrela, Pamina sabia com quem estava averdade.

Quando lhe trouxeram a refeição, ela a tomou pensativa. Sentiuvontadede chorar, pensandono sofrimentode suamãe.Mas já tinhachoradodemais.Deviadirigirseuspensamentosparaalgumacoisaútil:escapar, ou, pelo menos, manter sua integridade entre os súditos deSarastro.

—Senhora—disseocãohalfling,cujonomenãoderaotrabalhodeperguntar-,oPríncipeMonostatoshumildementeimploraquesejaadmitidoasuapresençaparafalar-lhe.

Verdade?PríncipeMonostatos!Quemlheconferiuestetítuloreal?Sentiu-se tentada a mandá-lo embora, a recusar-se orgulhosamente afalarcomele.MasMonostatosera-lhequasefamiliar,era—oufora—umdosmaisfiéisservosdesuamãe,esepassaraparaoladodoodiosoSarastro; ela poderia ao menos censurá-lo por sua traição. Não tinhamuitavontadedesentareconversarcomMonostatos.Masoquemaishaviaparafazer,excetosentar-seà janelaeolharapaisagem?Sarastrotinhabelosjardins,masPaminaestavacansadadeolhá-los.OurecebiaMonostatos,ouatormentava-sepensandonodesesperodesuamãe.

—Deixe-oentrar—disse.Monostatos, filho daGrande Serpente, era alto, de pele escura e

macilenta;mas suas feiçõesnãoeram feias.Paminapensouquehavianele uma leve semelhança com Disa, que ela sempre achara bela.Movia-secomgraça,quasecomo,pareciaaPamina,sedeslizasse.Seusolhos, contudo, eram desagradavelmente inquietos, brilhantes ecintilantes.

— Ah, senhora, não lhe agrada nossa hospitalidade? Está-sesentindo confortável? Está sendo bem tratada pelos seus servos?Satisfizeramtodososdesejosdeseucoração?

Paminafranziuocenhoemsinaldedesagradoedisse:—Monostatos,minhamãeconfiavaemvocê.Evocêaabandonou

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porSarastro.Comoousaviraminhapresença?—Nuncalheocorreuqueondequerquevocêestejaéondedesejo

estar,Pamina?—perguntouepôs-setãopertodesuacadeiraqueelaselevantoueafastou-sedele,indignada.

— Você acha que anseio por mais galanterias, Monostatos?Certamentequenão!Ouvocêmedáumaboaexplicaçãodoporquêestáaqui, servindo Sarastro, quando na verdade você estava moralmenteobrigadoaservirminhamãe,aRainhaEstrela,ouváemboraenuncamaisapareçanaminhafrente.

—Vocêfalacomoumacriança,Pamina—disseele.—Pensoquevocê ainda é muito criança para que eu lhe chame de senhora ouprincesa.Maslhedireiaverdade.Vimparasubmeter-meaosOrdáliosdoTemplo,eassimconquistarmeusdireitosdeprimogenitura.

— Seus direitos de primogenitura? — confusa, ela balançou acabeça.

— Meu pai era a Grande Serpente e eu sou seu único filho eherdeiro; houve grandes homens e grandes sacerdotes entre o clã daSerpente de Atlas-Alamésios. Pretendo que se escreva o nome deMonostatos entre os deles. Pretendo, também, que o filho daGrandeSerpente seja consideradoquandoSarastroderamãode sua filhaemcasamento, pois como ele não tem filho, o poder da coroa deAtlas-Alamésiosdeverápassarparaoesposodesuafilha.

—SeSarastro temumafilha—dissePamina -,entãodeveria teralgumacompaixãodeminhamãe;esenãotiver,elenãoéumhomem,masummonstro.Vocêconheceafilhadele?

—Muitíssimobem—respondeuMonostatos.—Gostariadevê-la—dissePamina.— Nada mais fácil. — Monostatos foi até o tocador, enquanto

Pamina olhava indignada. Como ousava ele intrometer-se com seuspertences?Elepegouseuespelhodeprata,curvou-seeopassouparaela.

Paminacorou,furiosa,earrancou-lheoespelhodamão.—Quebrincadeiraéesta?—Nãohábrincadeira alguma—disseMonostatos.—ARainha

Estrelanuncalhefalounadasobreisto,filhadeSarastro?—Vocêdeveestarlouco—dissePamina.— Absolutamente — as feições suavemente pálidas estavam

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tensas, como que reprimindo alguma emoção — ódio, escárnio? —Estou certode que suamãepretendia, umdia, lhedizer quem é seupai,filhadeSarastro;mastalveztenhaachadoquevocêaindaémuitojovemparaentenderqueentreumhomemeumamulher,queumdiaseamaram,muitassãoascausasquepodemlevaraodesentendimento.

— Como descobriu isto? Não posso acreditar que minha mãe,entre tantas pessoas, tenha confiado isto a você— falou Pamina comdesprezo,eMonostatoscontraiumaissuasfeições.

—Cuidado, Pamina— falou -, quero ser seu amigo; talvez sejaseu único amigo aqui. Poderia ser seu amante, seumarido.Mas nãoaceitareiquemeridicularizeassim.Sarastroéopodernestelugar,eeume elevarei em seus favores depois que tiver me submetido aosOrdálios, e terei todo o poder dos antigos reis-Serpentes. Seria umaatitudesábiadesuapartepermanecerminhaamiga.

— Se é minha única alternativa — disse Pamina, fazendo umacaretadenojo-,resigno-meanãoteramigosaqui.Emvezdetomá-lopor amante oumarido, faria um voto de castidade e passaria toda aminhavidaembuscadoAntílopeSagradoemcompanhiadasVirgensdaLua.

Monostatosriu,numtomcuriosamentesombrio,edisse:—Você é realmente uma criança, Pamina. Você é a herdeira da

Rainha Estrela; acredita então que ela permitiria que você sedesperdiçassedessamaneira?APolaridadeDivinadevesemanifestarem você antes que assuma sua herança. Pretendo tomar sua mãoquandovocêforoferecidaemcasamento.

—CasarcomoFilhodaSerpente?—Paminagritounummistodehorroredesprezo.—Jamais!Nãopossocrerqueminhamãepermita...

—Comoousadizeristo,sesuasprópriasirmãs,asfilhasdocorpodesuaprópriamãe,foramgeradaspelaGrandeSerpente,meupai?Seamãeaceitaopai,poderáafilharecusarofilho?—asfeiçõesmacilentasquaseseafoguearam.

— Mas quando ela desejou uma filha para ser sua legítimaherdeira -gritou Pamina, furiosa -, preste bem atenção, Monostatos,voltou-senãoparaaGrandeSerpente,seupai,masparaumsacerdote-reideAtlas-Alamésios—seoquevocêdizéverdadeesesoudefatofilhadeSarastro!Seminhamãe reconhecia emseupaiuma tãonobreorigem,e,assim,apropriadoparaserconsorte,porquenãooescolheu

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paraseropaidesuaherdeira?— Aviso-lhe outra vez, Pamina: cuidado — disse, e agora ela

realmente sentiu medo dele. Ele avançou para ela com os punhoscerrados e os olhos faiscando. Havia em seus movimentos algo deinquietantequeaterrificou.Voltou-secontraaparede,cobrindoabocacomsuasmãos.

De repente ele relaxou e sorriu. Baixou seus punhos cerrados edissecordialmente:

—Vocêéapenasumacriança,Pamina.QuandochegarodiaemqueeutivervencidoosOrdálioseassumidomeusdireitos,nestedia,ouso dizer, Sarastro pousará sua mão sobre a minha, e você estaráprontaparametercomoseucônjuge.

—Jamais!— Bem, veremos—Monostatos falou, sorrindomaliciosamente.

—E,nessediatãoesperado,dêaseufuturomaridooprimeirobeijo,Pamina.

Caminhou em direção a ela, que se encolheu contra a parede,tentandodetê-locomsuasmãos.Sorrindo,eleasagarrou,puxou-aparasi quase rispidamente, e com uma das mãos livre aproximou suacabeça, apertando seus lábios contra os dela. Ela afastou a cabeçabruscamente, enojadado calordosdele.Apesarde seuhálitonão serdesagradável,Paminadesviou,repugnada,acabeça.

—Comoousoufazeristo?—Sua...suacobra!SeuHalfling!Eleempalideceu.Afastando-se,falounumtomtãobaixoefrioque

ahorrorizoumaisdoqueaviolênciadoato.—Algumdia você se arrependerádessas palavras, Pamina— e

voltando-sesobreseuscalcanhares,deixouacâmara.Sozinha,amedrontada,sentou-seabatida.Cobriuorostocomuma

dasmãos e soluçou. Oh, como eramais seguro na casa de suamãe,onde nada disso teria acontecido, onde tipos como Monostatosconhecemseulugar,eosHalflingsnãosãopresunçosos.

Sua mãe, com toda a sabedoria, podia muito bem escolherparceiros para seus divertimentos, sem que houvesse algo de erradonisso. Pamina sabia que Disa, e provavelmente suas outras irmãs,tomavam,vezououtra,machoshalflingscomoamantes,esuamãe,senão aprovava integralmente tal procedimento, pelo menos nãointerferia.Entretanto,avisaraPamina,compalavrasinequívocas,deque

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não fizesseomesmo,poisquandochegassea épocaprópria, ela teriaumconsorteasuaaltura.

SuamãejamaisadariaaMonostatos.Masaqui,nosdomíniosdeSarastro,ondenãopodiaconfiaremnadaouninguém,issoseriaotipodecoisaconvenienteaosolhosdofalsosacerdóciodeSarastro.

MasSarastroeraseupai,pelomenosfoiissooqueMonostatoslhedissera, e ele não ousaria mentir, sabendo que com uma simples ediretaperguntaeladescobririaaverdade.

Aqui, entre os reis-sacerdotes deAtlas-Alamésios— e até ondeiamseusconhecimentos,-,asmulheresnãotinhampoderparaescolherseus cônjuges, ao contrário, eram seus maridos que detinham todopoder sobre elas. E a razão da inimizade entre a Rainha Estrela eSarastrodeviaresidirnofatodeelenãoteraceitadoagrandeverdade:aRainhaEstrelaerasenhoraedonadetodasterras.EagoraelaestavaempoderdessehomemcruelecorruptoqueousavanegarospoderesdaRainhaEstrela.Sim,elabempodiaacreditarqueSarastrotentariadá-laemcasamentoaoFilhodaSerpente!

Não se arriscaria; não ficaria aqui. Desta vez Monostatos secontentaracomumbeijo;emesmosemexperiência,Paminasabiaquese tratavadeumbeijo nãodepaixão,masde conquista, ou aindadedesrespeito.SódepensarqueMonostatosestavafirmementeresolvidoatê-la,Paminaficouarrepiada,eantecipandoocontatodelesentiuquetodooseucorposerevoltava.Nãosabiaporquesentiatantonojo;erasimplesmenteumfato,umareaçãoquenãoconseguiacontrolar.

Ouvira suas irmãs falarem de seus amantes, ouvira-ascompararem a força de um touro halfling com a dos homens, viraHalflings presunçosos serem punidos. Jamais em seus mais loucossonhos ocorrera que alguém, humano ou Halfling, tocasse a filha daRainha Estrela contra a sua vontade. Agora, pensando nas velhasrivalidadesentreSarastroeaRainhaEstrela,perguntavaasimesmaseSarastro não a teria trazido para este lugar para humilhá-la. Paminadecidiuqueantesmorreria.

—Vá—dirigiu-se repentinamente ao cão halfling que a servia;olhouparaabandejacomacomida,quenãochegaraatocar,edisse—Traga-me...traga-meoutrocopodevinhoealgunsdaquelesbolinhos.

A mulher halfling, dando mostras de satisfação por ter sidorequisitadaespontaneamenteparaalguma tarefa, apressou-se emsair.

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Paminacorreuparaoguarda-roupanocantodoquartoeapanhouseuvelhomanto.OsempregadosdeSarastroequiparamoquartocomumarmário,cheioderoupasdesedadosmaisdiversostipos,masPaminanegara-se desdenhosamente a tocá-las. Cobriu a cabeça com omanto,pulouajanelaquedavaparaojardimecorreuemdireçãoaosdistantesportões.

Enquantocorriaentreosciprestes,seucoraçãobatiarapidamenteeelaacreditavaqueconseguiriaescaparsemservista.Erameio-diaeossacerdotes,elaosabia,estavamnotemploparaascelebrações.

De repente, Monostatos, acompanhado por meia dúzia deHalflings,saiudetrásdasárvores.

—Imagineiquevocêfariaisso—observousatisfeito.—Levemaprincesadevoltaaosseusaposentos.

Pamina lutou ferozmente quando a pegaram, com umaangustiante sensaçãode que isto lhe ocorrera antes, que isto eraumasimplesrepetiçãodeseurapto,destinadoaserepetirinfelizmente,umaterrívelarmadilhadoseudestino—serapanhadaetrazidadevoltaasuaprisão.

— Você pelo menos podia ir com mais dignidade — disseMonostatos calmamente. — Se não, permitirei que a tratem comseveridade, e se você não ceder a eles, eu a arrastarei com minhasprópriasmãos.

Paminaprostrou-se,chorando.Malpercebeuquandoalevantaramelevaramdevoltaaosaposentos.

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CAPÍTULOSETEQuando Pamina recobrou os sentidos, estava deitada sobre um

divã coberto com seda, aposento colocado a sua disposição porSarastro,tendoaseuladoMonostatos!

—Pamina, eu e Sarastro estamosdesapontados comvocê, eporisso ele ordenou que não deixe seus aposentos. Promete que nãotentaráescaparoutravez?Ounosforçaráaacorrentá-la?Umaprincesaacorrentadaseriaumavisãotriste.

Seu rosto parecia pálido, duro, inflexível, e a assustoumais doque qualquer expressão de desagrado. Ele ousaria? Olhando aquelerostopálido,Paminatevecertezadequesim.

Entretanto, ela se recusou a contestar ou implorar. NemprometeriacoisaalgumaaSarastro,mesmosendoeleseupai,casoistotambémnãofossemaisumadasabomináveismentirasdeMonostatos.

—Nãoprometereinadadisso—disse,olhandofuriosaparaele.—SouafilhadaRainhaEstrelaenãotenhonadacomSarastroouvocê.Não admito que você ou ele se arrogue o direito de me manterprisioneira;eseeupuderescapar,certamenteofarei.

—Pamina,vocêmeforçará...vocênosforçaráaacorrentá-la!— Como ousa dizer que eu forçarei você ou seu mestre —

retorquiu, agitada. — Se tomar esta atitude será por conta de suaprópriavileza,enãoporqueeutenhafeitoalgoparamerecê-la.

— Você me forçará a isto — ele repetiu, e seus olhos opacos,estranhamenteparados,estavamfixosnela.

De repente, enquanto seus olhos estavam presos aos dele, elapercebeu o que ele estava fazendo: ele estava tentando amedrontá-la,como faziacomosHalflings, estava tentando intimidá-laparaqueelanão pudesse desviar o olhar, nem mover-se sem seu consentimento.Furiosa,levantou-seeencarou-o.

—Saiadaminhafrente!Nãoqueromaisvê-lodenovo!SeSarastrodeseja algo demim, diga-lhe para vir elemesmo em vez demandarvocê! Se minha mãe não pôde confiar em você, o que faz Sarastroacreditarnasualealdade?

Porummomento ela chegou apensar queo irritara o suficienteparaqueeleaagredisse.Elasesentiucomoseotempotivesseparado,

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secongeladoaoredordela;podiaverascortinasmovidassuavementepelo vento vindo da janela aberta, um Halfling— um desconhecidopássaro halfling — que acabara de entrar no quarto, seu manto quealguém havia pendurado, e o leve movimento dos cílios no rostoimóveldeMonostatos.Numtombaixoesibilante,elefalou:

—Você jámeprovocoudemais,Pamina—evoltou-se como sefossedeixaroquarto.Deudecaracomopássarohalfling;olharam-seporummomento,eacriatura-pássaropareciahipnotizadapelosolhosdeMonostatos.EntãoMonostatosesbravejou—Saiadaqui!

O homem-pássaro emitiu um guincho suave e fugiu na direçãooposta.

— Sim! — Pamina gritou para Monostatos. — Vá assustar osHalflingscomseusgritos,assustá-losatéa loucura,ésópara istoquevocêserve;vocêégrandeebravocontraosquenãopodemenfrentá-lo,nãoé?Agoravácorrendotercomseumestre,bajuladordesprezíveleapóstata, vá lamber as botas de Sarastro e peça permissão paraacorrentarumaprisioneiraindefesa!

Masquandoelesefoi,suacoragemaabandonouecaiusoluçandoemseudivã.TalvezpelaprimeiravezMonostatostenhaditoaverdade,eSarastrorealmentepermitiriaqueelafosseacorrentadaeaprisionada.Mesmo a companhia de um dos Halflings seria reconfortante, mas amulher-cão que a assistia tinha-se ido, também, antes da explosão deMonostatos.Elasesentiumaisamedrontadaemaissozinha.

—Minhasenhora,PrincesaPamina?...—disseumavozhesitanteemusicalatrásdela,ePaminalevantouacabeça.

—Sim?—perguntousemmuito interesse,eentãopiscou.EraoHalflingquederadecaracomMonostatosesaíracorrendo.—Vocênãoestácommedo?—perguntou.—Elepodevoltaraqualquermomento;eledissequemeacorrentaria.

—Entãotemosmaisrazãoaindaparasairdaqui,PrincesaPamina,antes que ele volte—disse o pássaro halfling.—Venhodaparte daRainhaEstrelaparasalvá-la.

—Mamãe!Vocêselembroudemim!—gritouPamina,edestavezsentiuvontadedechorardealegria.ElajamaisacreditaraquesuamãeaabandonariaàsartimanhasdeSarastro,ouacreditara?Masagoraestavasegura. Embora estranhasse um pouco este camaradinha engraçadocomomensageirodaRainhaEstrela.

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—Qualéoseunome?—perguntou.—Papagueno.ConheceriaelePapaguena,suaservafieldetantosanos?Nãoera

hora para perguntas, naturalmente. Ela hesitou; o palácio de Sarastroestava cheio de criaturas estranhas,Halflings presunçosos, velhacos ementirosos como Monostatos. Cobriu-se com seu manto, olhando-otemerosa.

—Comoposso saber quevocênão éumdos espíritosmausdeSarastro,vindoparameenganar?—perguntou.

— Não há nada errado com o meu espírito — ele respondeuvalentemente. Seus olhos, grandes e escuros, encontraram os dela episcaram.Paminanãopodiacrerquehouvessequalquermaldadenele.—Vamos—eledisse,conduzindo-anãopelaporta,maspelajanela.

Cruzaramojardimrapidamente;eentãoPapaguenoagarrou-seepuxou-arispidamenteparaumdeclivenoterreno.Elaquasegritouemprotesto—teriaseenganadocomele,eleaatacaria?-,maselepioueapontou.

—Olhe!Monostatos,acompanhadodeumgrupodeescravos, corriapara

osaposentosdela;algunslevavamcordasecorrentes;Paminasufocouum grito; Papagueno pôs sua mão gentilmente nos lábios dela parasilenciá-la,masogestofoigentil,quasereverente.

Monostatos encontrou o quarto vazio, ela ouviu o aterrorizadogemido da mulher-cão, o grito de ódio de Monostatos. Pamina e ohomem-pássaro abaixaram-se aomesmo tempo; depois de um tempoosescravosespalharam-seportodaafrentedoprédio,procurandoemtodasasdireções.

—Nãoépossívelqueelesprocuremporaquinojardim—dissePapagueno—Elesesperamquenós,pássaros,fujamosvoando.Assim,vamos aguardar aqui até que escureça um pouco, depois saímos embuscadopríncipe.

—Dopríncipe?Quepríncipe?—perguntoudesconfiada,—Nãoo Príncipe Monostatos, como ele vem se autodenominandoultimamente.

OsolhosdePapaguenoficarammaisredondosainda.—Ele?Oh,não,princesa.Aindanãolhefaleisobreopríncipe?Eu

deveria ter-lhe falado logo sobre ele.Afinal, amissão dele é salvá-la,

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mas nós nos separamos. Ele tomou o caminho dos portões da frente,enquantoque tomeiestadireçãoe, comopodever, tivemais sorte.Opríncipe é muito jovem e bem-apessoado, e a Rainha Estrela gostoumuitodele.Elaopresenteoucomumespelhomágicoquecontémsuaimagem.Edesdequeeleaviu, ficou imediatamenteapaixonadopelasenhora.

— Que coisa romântica.— Pamina riu, embora tivesse gostadointimamente.Umpríncipejovemebonito,apaixonadoporela,ecomoconsentimentodesuamãe...sentiu-setomadadegrandecuriosidade.

—Qual éonomedele?Comoqueele separece?Ele égentil ebem-falante? Você disse que ele viu minha imagem: ele me achoubonita? — Pamina, com muito esforço, suspendeu suas perguntas.Papaguenopareceu-lhetriste.

—Oquehouve,Papagueno?Elesuspirou.—Para todaprincesaháumpríncipe,para todo reiuma rainha.

MasparaPapaguenonãoháumaPapaguena.Ouvi falar umavezdeumagarotacomestenomee fiqueiperguntandoamimmesmoseelaeracomoeu,masninguémquismefalarsobreela.

—PobrePapagueno,tãosolitário!—Aprincípiosuaexclamaçãosooucômicaequaseindiferente.Masoartristedopássarofezcomqueelaseenvergonhassedesuafrivolidade.

—Muito solitário— ele falou baixinho.—Não há ninguém nomundo como eu, e parece que estou fadado a viver só para sempre.Passo meus dias sozinho pegando pássaros, pássaros de belasplumagensparaadornarostrajesdaRainhaEstrela.Nuncamachuqueininguém,masmesmoassimtodoszombameriemdemim.

Então Pamina lembrou-se de que já ouvira suas irmãs falaremdele. Todavia pensou, e por um momento sentiu-se chocada, quenenhuma delas lhe falou sobre Papaguena! Por que nunca falaram?Custariatantoaelasfazê-loumpouquinhofeliz?

Pamina sentiu-se repentinamente confusa.Aprendera na infânciaqueestehomemeraapenasumHalfling,nãomaisqueumanimal,aserusado a sua vontade sem que se preocupasse com seus sentimentos.NaturalmenteDisaouZeshiouKamalanãosedariamaoincômododefalar sobre Papaguena. Por que deveriam? Sendo elas as filhas daRainhaEstrela, por que sepreocupariam comamínima felicidadedeumHalfling?Comodeveriamrir-comoelamesmaestiveraapontode

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rir—sódepensarnumHalflingansiandoporamor!!Queabsurdo,quepresunção,exatamenteoqueesperariaencontraraquinosdomíniosdeSarastro... Mas este era um mensageiro de sua própria mãe. Paminasentiu-se terrivelmenteconfusa.Suaspróprias irmãsnãoasalvariam...entretanto este Halfling, que não tinha motivo para ser grato a suafamíliaouaRainhaEstrela,vieraparatentar.

— Não se preocupe, Papagueno — disse gentilmente, tocandoseusdedinhosdelicados e tépidos.—Algumdia encontraremosumaPapaguenaparavocê,prometo.

A jovem e oHalfling, deitados lado a lado em seu esconderijo,esperavamsilenciosamenteoSolsepôr.

Enquanto isso, Pamino, que perdera Papagueno de vista logodepois de os Mensageiros terem-nos conduzidos até os portões deentrada, que bem poderiam ser do próprio Palácio. Imparcial,caminhavaimensonumaescuridãotãodensaquenãopodiaversequeramãodiantedeseurosto.AprincípiogritouporPapagueno,masoecode sua voz reverberou como se ele estivesse trancado numa câmara,semquepudessevercoisaalguma.Naverdade,osomdesuaprópriavozointimidou.

Ficou emsilêncio, enquanto ia tateandona escuridão.Onde foraPapagueno,comoseperderamumdooutro?Porummomentocogitouusar de novo a flauta mágica para chamar de volta os Mensageiros.Mas,pensou,eles jáhaviamajudadobastante; certamente sabiamqueeledeveria estarperdido e separadode seu companheirodeviagem.Ocorreu-lhe outra vez que este deveria ser um dos misteriososOrdálios,dosquaisouvira falar tãopouco.Caso fosse, só lhe restariavencê-lo.Quando estivera verdadeiramente emperigo com o dragão,receberaajuda.Portanto,tinhaqueacreditarquehaviaalguémolhandoporele.

LentamenteseusolhoscomeçaramaseacostumarcomaescuridãoeTaminopercebeuqueestavano interiordeumacâmaraabobadada;formas pouco nítidas elevavam-se à distância.Amedida que tateava,seus pés faziam pequenos ruídos como se estivesse andando sobrepedraoumetal.

Enquantocaminhava,umaluzpálida,comoosprimeirosraiosdaaurora, começou a brilhar no que ele imaginou ser o leste. Nestemomento aproximou-se mais das formas gigantescas que percebeu

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tratar-sedeumaimportante fachada:umagrandeentrada ladeadaporduasgrandescolunas,umanegraeoutrabranca.SobreaentradahaviaumainscriçãoqueTaminoleucomdificuldade:Iluminação.

Taminopensouquenaquela escuridãoumpoucode iluminaçãovinhaacalhar.Avançouemdireçãoàportaelevantouamãoparabater.

Imediatamenteumgrande coro—ou seria apenasumavozqueecoara, reverberandocomosuaprópriavozantes?—rebooucomumtrovãonacâmaraabobadada.

“Afaste-se!Seoquevocêprocuranãoédigno,morrerá!”Tamino recuou involuntariamente, como se temesse, ao bater à

porta,serfulminadoporumraio.Nãodarianomesmose,emvezdeoafugentaremtãorudemente,

estas vozes invisíveis lhe dissessem o porquê de ter sido trazido atéeste lugar? De qualquer modo, fora-lhe dito que o propósito dasubmissãoaosOrdálioseraconseguirIluminação.

Eagora?Porummomentopôs-sea examinara fachadadeondeforaadvertidoparaseafastar.Seoqueprocuravanãoeradigno,comosetornoudigno?

Depois,àmedidaquealuzaumentavaemintensidade,eleolhouao redor e viu os contornos de duas outras construções. Caminhoulentamenteemdireçãoàsegunda.No frontãoestavaescritaapalavra:Sabedoria.

TaminopensouquesenãopôdeterIluminação,aSabedoriaseriauma boa alternativa. Viu uma grande aldrava; caminhoucautelosamenteemsuadireçãoeestavaparapegá-laquandoouviu:

“Afaste-se! Você ainda não é digno! — trovejaram as vozesinvisíveis.”

Taminoparouondeestava.Entretanto,pensouque jáprogrediraum pouco. Desta vez não falaram emmorte. De qualquermodo, suasituação não melhorara. Ele continuava perdido e sozinho, semninguémparaajudá-lo.

Bem,aomenoshaviaaindauma terceiraporta.Embora, levandoemconsideraçãoamávontadedaspessoasdolugarematenderàporta,talvezfosseperdadetempotentar.

Aproximou-se da terceira porta, consideravelmente menor emenospretensiosaqueasoutras.Sobreaentrada,naluzcrescente,malpôdedistinguirapalavra:Verdade.

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SenãopôdeternemIluminação,nemSabedoria,TaminoconcluiuqueaVerdadeseriaboasubstituta.Hesitante,levantouamãoebateu.

Silêncio.Mais silêncio.Taminoperguntou-se senãohaveriaalgodesimbóliconisto;ninguémnacasadaVerdadebempodiasignificarqueelaeradifícildeseachar!

Entãoelecomeçouaouvirumpequenoruído,parecidocomoqueos ratos fazem atrás da porta. Pelo menos ninguém o advertiu mal-humorada-mente para se afastar. Esperou. Agora, a luz estavaaumentando; se fosse a aurora, o Sol já deveria estar acima dohorizonte;mashaviaalgonestaluzquenãosepareciacomoSol.

Finalmente, a grande maçaneta começou a girar sozinha, edevagar,devagar,aportacomeçouaseabrir.Logoaportaestavaabertaosuficienteparaqueeleentrasse,eparoucomoseesperasseporele.

Desconfiado—nãoforaditoqueentrasse,maspelomenosnãolhefora dito para que se afastasse — Tamino entrou. Com um rangidoabafado,aportafechou-seatrásdele;porummomentoTaminoficounoescuro.Depois,comoantes,começouaclarearlentamente.

Umaformacomeçouaaparecernaluz;comosetivesseseformadono ar. Tamino perguntou-se, tão silenciosa era esta manifestaçãosurgida do nada, se não seria o perverso feiticeiro Sarastro.Mas não;certamente não haveria lugar para ele num templo dedicado àSabedoriaeàIluminação.NemnumtemplodedicadoàVerdade,ondeteriadeouvirumasboasverdades.

Diantedesi,viuaimagemdeumrespeitávelhomemquepassavadameia-idade.Ocabelogrisalhoestavacobertoporumcapuz,ondeseviaoemblemadoSolradiadogravadoaouro.Seustrajeseramcinza-prateados;emaisumavezoSolradiadoestavagravadoaouronopeitodesuaroupa.Suasfeiçõeseramindefiníveis,maselepareciabomeatémesmogentil.

—Bem,meujovem—perguntou-,oquedeseja?Tamino permaneceu silencioso, por um momento. Agora que

estava dentro do lugar, depois de três tentativas, o que desejava defato?

—Averdade—dissefinalmente-,éoquedizoavisoláfora.Ovelhosorriu.

— Há muitos tipos de verdade, você sabe. Não é assim tãosimples.Podeserquemesmofalandoaverdade,vocênãosejacapazde

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ouvi-las, desse modo, qualquer coisa que eu diga pode lhe parecermentira.

— Assumo o risco — Tamino falou, e lhe ocorreu que osMensageirostinhamrespondidoaPapaguenoquasedomesmomodo,comoseelenãofossecapazdeentenderacoisamaissimples.

Bem, ele era um estrangeiro nesta terra, e seria uma bobagemsentir-se ofendido pelos estranhos costumes dos habitantes do lugar.Antes, tampouco tiverauma lontra lhe assistindonobanho, e atéqueforaumaexperiênciainteressante.Talvezestanãofossepior.

Talvezpudessedizerexatamenteoquequeria.—EstouprocurandoumperversofeiticeirochamadoSarastro.Ovelho—Taminoimaginouquedeviasetratardeumsacerdote

—levantouassobrancelhas;seuolharerasuaveegentil.—OquequercomSarastro?—perguntou.Tamino pensou que se este era o Templo da Verdade, ligado a

Sabedoria e à Iluminação, eles deveriam ter conhecimento do tipo demalqueSarastroandavafazendonoterritóriodeles.

—Vimpara salvarumaprincesa indefesaqueessehomemmautememsuasgarras.

Nãohouveamaislevemudançanorostogentilebenevolentedosacerdote.Suaexpressãomostravasomentesuavecuriosidade.

—Quemlhedisseisto?—perguntouosacerdote.—Amãedavítima!— E— continuou o sacerdote na sua voz suave— como você

podesaberqueoqueeladisseeraverdade?Omundo,meufilho,estácheiodepessoasquenãotêmrespeitopelaverdade.

—Bem,éverdadeounão?—inquiriuTaminoagressivamente.—ElenãoraptouPamina?

—Comolhedisse,meumenino,hámuitostiposdeverdade.Emparte,oquevocêdizéverdade;SarastrotomouPaminadosbraçosdesuamãe.

—Evocêousaadmitiristo!— Você não conhece Sarastro— observou o sacerdote -, e suas

intençõeslhesãodesconhecidas.Comopodeentãoficaraíjulgando-o?— Posso não conhecer Sarastro — Tamino falou, e sentiu a

indignaçãocresceremsuavoz-,masseioqueelefez.Eseidistinguirocertodoerrado!

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Recuou umpouco enquanto falava, certo estava de que o velhosacerdote o contestaria imediatamente. Mas o velho rosto serenopermaneceucalmo.

—Émesmo?Émesmo?—Inacreditavelmenteorostodovelhoseabriunumagargalhada.—Bem,meu filho, já quevocê sabemaisdoque qualquer um de nós aqui, deveríamos desenrolar o tapete develudoearmarodosselreservadoaosdeuses!—Seusorrisoeradetãopurabenevolência,tãodestituídodemalíciaque,apesardesuaraivaeconfusão,Taminotevevontadederirtambém.

Entãoosacerdotedisse:—Desejaria que você se abstivesse de julgar Sarastro, ou quem

querqueseja,atéqueestejacertodaverdade.Nãoétãosimplescomoparece.

Taminovoltouaficarzangado.—Todomalfeitorpodeencontrarumadesculpaparaoquefez!Os

fatosfalamporsi.Quedesculpapodehaverparaoatodesetirarumafilhadosbraçosdesuamãe?

—NãoestouaquiparadesculparSarastro—disseosacerdote.—Ah,não?Penseiquefosseexatamenteoqueestavafazendo—

disseTamino,conscientedequeestavasendorude,esemseimportarcomisto.

—Deixe-mefazerumaperguntaemtrocadasmuitasquemefez—disseosacerdote.—QuemoindicouparajulgarosfeitosemotivosdeSarastro?

Taminosentiu-sevencido.— Sou um estrangeiro nesta terra e não conheço seus costumes.

Masnopaísondenasci,quandoumhomemnobreouve falardeumainjustiça, é seu dever e privilégio repará-la. De outro modo ele nãopassadopiordosvilões.

— Pelo menos concordamos num ponto, mas você não sabe ahistóriatoda.SeSarastroestivesseaqui,estoucertodequeele,seassimo quisesse, lhe esclareceria tudo. Enquanto isto não acontecesse, umestranhofariabememnãojulgarafavordeumadascausasrivais,atéquetodaverdadelhefosserevelada.

—Então—perguntouTamino-,comosabereitodaaverdade?O sacerdote sorriu, e pareceu que todo o seu rosto se iluminou

comestesorriso.

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— Finalmente você fez uma pergunta à qual me é permitidoresponder.VocêconheceráaverdadedepoisqueforbemsucedidonosOrdáliosesetornarmembrojuramentadodenossaIrmandade.

Abruptamentealuzdesapareceu;osacerdoteseforaecomeleotemplo à sua volta. Tamino estava só na grande câmara abobadada,diantedostrêstemplos.Atrásdele,oSolestavanascendo.

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CAPÍTULOOITOTamino pensava se algum dia chegaria a se acostumar com a

mania das pessoas do lugar de aparecerem e desaparecerem a todahora. Ainda estava terrivelmente escuro, embora o Sol devesse logosurgirsobreotemplo.

Não fora capaz de responder ao velho sacerdote. Diversasquestões, presas a sua língua, fervilhavam ainda na sua cabeça;perguntascomo,“oqueo fazpensarqueme ligariaasuaIrmandade,quetemcomolíderumacriaturacomoSarastro?”Pelamaneiracomoovelhodefendera Sarastro, supôsque ele fossemaisumadas criaturasiludidas,hipnotizadaspelovil feiticeiro.Lembrou-sedas lágrimasdaRainha da Noite; como poderia alguém duvidar de que fosse umagrandemulheremuitoinjustiçada?

Entretanto, Tamino surpreendeu-se pensando na cruel zombariacomqueas trêsdamas trataramo inofensivoPapagueno.Seosservoseram irracionalmente cruéis, como acreditar na bondade da senhora?Talvez, e sentiu-se envergonhado por suas dúvidas, devesse saberquaisosmotivosquelevaramSarastroatomaressaatitude.

Enquantoisso,vagavanosrecintosdeumtemplodesconhecido;eseos templosneste lugar tivessemalgumasemelhançacomosdesuaterra, estava certode que logo apareceriam sacerdotes para os ofíciosmatinais — supondo-se que sejam civilizados e tenham um cultoformalizado,aquinestefimdemundo.Sefosseapanhadoaqui...bem,Papagueno tinhamedo de Sarastro e do que ele pudesse fazer se ospegassenestelugar,ePapaguenoconheciaestapartedomundomelhordoqueele.

ÉcertoquePapaguenotambémeraumservodaRainhadaNoite,e sua atitude diante de Sarastro seria a que aprendera comos outrosservos, seus companheiros... Tamino interrompeu, furioso, estepensamento.PorquecomeçaraaduvidardaRainha,aquelaadorávelesofridamãe?

Ainda estava escuro; por que o Sol não nascia? Onde estavaPapagueno? Começou a gritar de novo; então refletiu. Não esperavapassardespercebidopelosrecintosdeSarastro,secontinuasseagritaraplenos pulmões. E mesmo que, como o velho sacerdote dissera de

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modo enigmático, estivesse sendo esperado para os misteriososOrdálios, Papagueno não era umHalflingdo lugar e sentiamedodeSarastro.EletrouxeraPapagueno;sentia-seresponsávelpeloengraçadohomenzinho-pássaro,enãopodiadeixarPapaguenocairnasmãosdossacerdotesdeSarastro.

“E como”, perguntou-se irritado, poderia dedicar-se ao seuverdadeiro objetivo, que era salvar Pamina, se tinha que parar epreocupar-seemcuidardePapagueno?”EoinfelizHalflingtambémseperdera.Queamolação!

Suamão esbarrou na flauta de bambu em sua cintura. Será quecomaajudadaflautaconseguiriachamaraatençãodePapaguenosemgritar?Encostouseuslábiosnaflautaecomeçouatocar.

Diantedelesurgiramluzinhasdouradasquepiscavam,eeleviuobrilholucilantedosMensageirosqueohaviamtrazido.

—Estamosfelizesporverquevocêprocuraaflautaquandoestánoescuro—disseaestranhavozquepareciaumamálgamademuitasvozes.—OpoderdaflautaétrazerIluminaçãoàquelesquecaminhamsemluz.

Taminopensouderepente,ouvindoossonsdaquelavozsingular,quepodiaestarouvindooecodaquelecoropoderoso,queoadvertiraparaqueseafastassedasprimeirasduasportas.

—Porqueestá tãoescuroaqui?—perguntou.—OSol jádeviaestarnascendo...

— A escuridão na qual você caminha não se deve apenas àausência da luz do sol— replicou oMensageiro.—ALuz que vocêbuscaéaLuzdaIluminação.

Tamino levou suas mãos à cabeça, ao mesmo tempo em queseguravafirmeaflautaparaqueelanãocaísse.

—Não se fala aquide outramaneira a não serpor enigmas?—perguntoufurioso.—Fala-setantodaVerdade,enoentantohámuitopouco desta droga por aqui, pelo menos quando se deseja umarespostahonestaedireta!

— Se você faz perguntas complicadas, para as quais não hárespostassimples,dificilmentepoderemoslhedarrespostassimples—avozdoMensageiro,ouadetodoseles,respondeu.

Tamino tentava firmar a vista para que pudesse fixar as formasinstáveis. Só conseguiavisualizaromovimentodemembros cobertos,

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nunca um rosto inteiro, apenas um átimo de expressão; o prazer, ohumorouacompaixãodeummomento,ummovimentosemelhanteaode asas — ou um braço musculoso e nu? Ou seriam apenaspanejamentosesvoaçantes?Desejouqueeles ficassemquietosporumperíodosuficienteparaquepudesseveroqueouquemeleseram.

—VocêsdisseramalgoparecidoaPapagueno.EleéumHalflingenãoémuito inteligente.Mas sevocêsmederemuma resposta,pensoquepoderiacompreendê-la.Parece-mequeapergunta“QuantotempofaltaparaoSolnascer?”ébastantesimples.

—Istoeupossoresponder—disseoMensageiro.-Seaescuridãonãoderlogopassagemàluz,vocêcaminharáparasemprenaescuridãoquenuncaacaba.

Avozparecia adeumgrande coral, e Taminonãopercebeudeimediatooqueouvira.

— Outro enigma — disse aborrecido. — Uma pergunta tãosimples!

—Oqueofazpensarqueéumaperguntasimples?Paraestaquestão,Taminonãoencontrourespostaimediata.Disse

irado:— Bem, eis uma pergunta que talvez vocês achem bastante

simples!Digam-me,fazedoresdeenigmas,PaminaestávivaouSarastrojáliquidoucomela?

—Paminaestásãesalva—disseramosMensageiros.—Porora,vocênãoprecisasabermaisdoqueisto.

As formas insubstanciais tremeluziramdenovoedesapareceramabruptamente. Com elas desapareceu a luz; Tamino viu-se outra vezsozinhonaescuridão.

Ao menos aquela resposta não fora ambígua. Mas tinha outrasperguntasa fazer;aprincipaldelasera“Qualéaverdadeiranaturezade Sarastro?Quem afinal dizia a verdade— a Rainha daNoite ou ovelho sacerdote?” Entretanto, pensou que se tivesse a chance deinterrogar os Mensageiros, eles lhe teriam respondido com maisenigmas,eenigmasjáostiveraobastanteporumdia—oupelavidatoda.

Ao menos ficara sabendo de uma coisa: Pamina estava viva e,presumivelmente,bem,Não,ficarasabendodemaisumacoisa:aflautaerao instrumentodesuaprópria iluminação—embora,nomomento,

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sesentissemaisconfusoenas trevasdoqueantes.Contudo,agora—tanto se atrasara falando por enigmas com os Mensageiros — o Solestavarealmentenascendo.Vistodosrecintosondeestava,nãopareciao mesmo Sol que vira ao atravessar o deserto; aquele era um discoimplacável,êneo,ardente;esteeraumSolmaisbrando,umaluzsuaveeenevoada.

Ele perguntou a si mesmo se os enigmáticos Mensageirosinterpretariam este acontecimento também como símbolo deIluminação.OuistosignificariaapenasqueoSolestarianascendocomotododia lá fora, comopresumivelmente sempreaconteciamesmonosdomíniosdaRainhadaNoite.Emtodoocaso,eraimperativolocalizarPapaguenosemqueninguémodescobrisse,pois,naluz,ossacerdotesdeste lugar, caso fossem civilizados o bastante para, além de seocuparemcomenigmas,observaremofíciosmatinais,logoestariamdepéealertascontraosintrusos.

Se ele começasse a tocar a flauta outra vez, será que osMensageiros reapareceriam com mais de seus enigmas? Eles seevaporaram, talvez,porpensaremquemomentaneamenteele já tiverailuminaçãosuficiente.Seagora tocassea flauta,seriadepresumirqueestaria procurando iluminação sem a orientação ambígua dosMensageiros. Ou, pensou cinicamente, teria algum propósitototalmente mundano, como fazer música ou chamar a atenção dePapagueno,queprovavelmenteoouviriamuitomaisfacilmentedoquese começasse a gritar.Ouque oHalflingpensaria tratar-se apenasdemaisumassobionesselugarestranho?

O que quer que acontecesse, ele tentaria a flauta. Se o somchegasseaseusouvidos,ousejaláoqueforqueelestivessememlugarde ouvidos -ele jamais conseguiria ter boa visão de seus rostos— eaparecessemoutravez,elesimplesmentelhesperguntariaondeestavaPapagueno, e experimentaria outra vez a habilidade deles em darrespostassimpleseconcretas.

Encostouaflautanoslábiosecomeçouatocar.Taminosempreforaapaixonadopormúsica.Umadascoisasque

durantesuajornadamaislhefizerafaltaeramasnoitesnopalácioreal,quando os músicos de seu pai tocavam, cantavam e dançavamacompanhadosdediversos instrumentos. Em sua infância tivera bonsmestres,echegaramesmoaaprenderatocarumoudoisinstrumentos.

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A flauta produzia um som singularmente suave, doce e agudo; eraevidentemente obra de um exímio artesão. Independente de suaspossíveisqualidadesmágicas,eraporsisóumtesouro.Aoimprovisaruma singela melodia pastoral de sua terra distante, esqueceu-se detudomais,epôs-seapensarsomentenamúsica.

ParaalíviodeTamino,osMensageirosnãoapareceram.Masapósum curto espaço de tempo, enquanto tocava, percebeu que uma dasportas do templo abriu-se em silêncio. Corpulentas formas macias,indistintas à meia-luz, desceram as escadas do templo, movendo-sesilenciosamente em direção a Tamino. A melodia oscilou;imediatamenteelespararam,eTaminopodeverqueeramhomens—ouseráque...?Semdúvida,eramursos.Grossospêlosdensosemseuscorpos, narizes tão longosque certamentepoderiam ser chamadosdefocinhos.Suasmãosdeformadas—ouemformadegarras?Nuncaviraantes ursos Halflings; nem sabia que existiam. Um homem alto depernas longas que se tornara um cavalo? Orelhas empinadas de umladoeoutrodacabeça,ocabelocomprido,grossoedacordoazeviche,caídoaolongodesuacabeçaecobrindoseupescoço.Umhomenzinhopeludoaproximou-seeaconchegou-senobraçodeTamino,umcastor,um coelho halfling? E eles continuaram vindo, e ouviam, hesitavam,enquantoTaminotocava-umprodígiomaravilhoso.

Tamino jamais acreditara que pudesse haver tantos tipos deHalflings. Mesmo vendo, na verdade não acreditava. Os maioresassustaram-no, especialmente os ursos que se aproximaram tanto eeramtãograndes.Oquemaisoperturboufoiquenenhumdelesemitiuum único som. Eles podiam articular uma linguagem, ou seriammudos,defeituosos,feitossemvozespelaextravagânciaounegligênciade seus criadores? Os menores também caíam sobre ele. Por quealguém teria se preocupado em criar Halflings despropositadamentetravestidos em humanos? Para que eles serviriam? Deu por siacariciandoocoelhinho,enquantoesteseencostavanele,etevequeselembrardequeesteanimal, esta coisinha, eraumser sensível, supôs,comalgoque lembrava a consciênciahumana e a almahumana, edealgummodoeleseriaimpelidoatratá-lo—ele,outalvezela—comoumcompanheirohumano.

Mascomo?Umacoisaeraalguémagir comoPapagueno,queaomenos tinha formahumanae falahumana, seroqueeleparecia,uma

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almafamiliarnumcorpoanimal.Taminopodiatratá-locomoaumdossúditosdeseupaiquenãofosseparticularmenteinteligente.Nãoforaeducadoparareinar,mascrescerasabendoque,comopríncipe,era,noreal sentido do termo, responsável por todas as almas no reino eImpériodeseupai.

Masoquelevoualguémacriarumcoelhohalfling?Pelosdeuses,jamaissouberadesuaexistênciaemuitomenostiveraum.Dificilmentetrataria essa pobre coisinha como a um igual, pois não era. Comopoucos homens, ela não o aborrecia. Cedo aprendera como agir emrelaçãoaos súditosde seupai, edesdeaquelavezemquebateraemumdeseuscompanheirosporque,comofilhodoImperador,sabiaquea outra criança não poderia revidar, jamais tornou a abusar de suaposiçãodepríncipe.Aprenderarapidamentequeestaéumaatitudetãogravequemesmosendopunidocomumasurraporseustutores,estacontinuava sendo uma atitude gravíssima. O Imperador, severo eamedrontador, chamou seu filho mais jovem e, com palavras queTamino jamais esqueceu, proibiu-o terminantemente de repetir aofensa.

Mas seu pai jamais tivera um coelho halfling como súdito. Elenempoderiafalarcomapobrecoisinha,jáqueelenãofalava.Fora-lheensinadoqueseumhomemeraignorante,deveriasereducado.Comoeducar talcriatura?Supôsquedeveria treiná-locomoaumanimaldeestimação, um gato, ou um cão, ou um idiota. Isso acontecia.Lamentavelmente algumas crianças nasciam idiotas, e deveriam serbem tratadas. Mas os idiotas foram criados pelos deuses por algummotivoignoradoporelesmesmos.Umhomem,umhomemconsciente,criaraessascriaturas.AcabeçadeTaminolatejou.Porquê?

Seus lábios tremerameamúsicaparou.Ascriaturasproduzirammurmúrios de desapontamento, mas Tamino não teve ânimo paracontinuar tocando. Pensou amargamente no que os Mensageirosdisseram; a flauta lhe traria iluminação.Mas estavamais confuso doqueantes,Porquê?OquelevaraoshomensdeAtlas-Alamésiosagerartaiscriaturas?

Ummacacoquepodiajogarxadrezcomaimperatriz,eganhar—sim,talvezfosseestaarazão.Eumhomem-pássaro,quecomodeliciosabrincadeira,sevestiriacompenasdeavesecaçariapássarosparaseremtransformados em trajes rituais, quando não em empadões.Mas qual

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seriaolugardeumcoelhohalflingnacorteounotemplo?Adesculpacomumparaamisériaeraqueopovopobreefaminto

não trabalhava duro para seu sustento e conforto; faltar-lhe-iadiligência, aplicação ou habilidade, e não se preocuparia com amelhoria da sua condição de vida,Mas o que poderia fazer umursohalflingcomsuaspatasdesajeitadas?Nãopoderiamesmoararaterra,aindaque fossemetadehumanoesuashabilidadesparacaçar fossemsuficientes para ele, ou mesmo supondo que seus senhores lhepermitissem caçar e matar para comer. Já que todos os Halflingsportavam alguma deficiência, por que o clã deAtlas-Alamésios nãopensounistoantesdecriá-los?Eagoraqueestavamtodosaí,apinhadossobre as escadas deste lugar sagrado, o que poderiam seus criadoresfazerpor eles?Elesnãopoderiamsermortos a sangue-frio, elesnadafizeramparamereceramorte.

Guardouaflautabrandindoasmãos.OsHalflingsqueocercavammurmuraram de descontentamento, rosnaram, sussurraram e selamentaram,masnenhumdelesoameaçou.

—Pronto,pronto—murmurou -, é obastantepor agora.Quemsabeumdiadesses,pessoal,possooferecer-lhesumnovoconcerto.

Nadapodiafazerporeles;podiaalegrá-loscomsuamúsica,masistonãoresolviaseuproblemabásico,queeraodeteremsidocriadoshumanos,masnãointeiramentehumanos.

Um por um os Halflings foram se afastando de mansinho, Oúltimo a ir foi o singularmente peludo coelhinho halfling, que sedemorou esfregando seu suave e peludo corpo contra Tamino,enquanto o olhava tristemente com seus olhos cor-de-rosa. Mas, porfim, ele também fugiu com seu estranhomodo de andar saltitante, eTaminoficousó.

Seriajustificávelcriartalconfusãoporconsideraçãoaunspoucosservos como cães halflings? Tamino estava envergonhado de ser umhumano.Nenhumaoutraraçafariataiscoisas.

Contudo, tendo encontrado Papagueno, desejaria que aqueleencantador e cômico homem jamais tivesse existido? Tamino lutavacom seus próprios sentimentos sem chegar a uma conclusão. NestemomentoouviuosomdoapitodePapagueno.

Questões teóricas sobre a existênciadePapaguenodeveriam serdeixadasparaoutraocasião.Agora,eleePapaguenoseencontravamna

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mesmasituação,perdidosnasimediaçõeshostisdoTemplodeSarastro—eseSarastrofosseoresponsávelpelacriaçãodestesHalflings,eleoodiariaaindamais;eeleeraresponsável.

— Estou aqui, Papagueno — chamou e começou a correr emdireçãoaosom.

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CAPÍTULONOVEQuando Monostatos saiu, Pamina levantou-se cautelosamente e

fez sinal para que Papagueno a seguisse. Contornaram o jardim comcuidado, vistos apenas por um inofensivo cão halfling que estavaexplorandoasbeiradasdospradoscultivadoseperseguindopequenosroedores;não,Paminapensou,nãoéumdoslacaiosdeMonostatos.

ElaseguiaPapaguenoapoucadistância,cuidandoparanãofazeromínimobarulho.OpríncipemencionadoporPapaguenonãolhesaíadacabeça.Nuncaantesdesperdiçaratantareflexãosobreofatodequeumdiaseacharia interessadanumjovem;osamoresfortuitosdesuasmeias-irmãs,antesdeencorajarem-naafazeromesmo,arepugnavam.Eessejovemforarealmenteescolhidoporsuamãeparasalvá-la.Seuspensamentos estavam tomados de róseas imagens românticas,enquanto, num outro nível, estava consciente de que pensava nopríncipeparamanter-se livrede enfrentar seuspensamentos emedosem relação a Monostatos. O príncipe, tão distante, era apenas umdevaneioagradável;Monostatoseraumaverdadeiraameaça.

SeeledisseaverdadequandofalouqueSarastrodestinara-aparasuaconsorte,eladeveriadealgumamaneirafugirdali,parabemlongedali,semseatrasarummomentosequer.Entãoopríncipeadevolveriaasuamãe?Seucoraçãocantouporsaberquemuitobrevementeestarianasproximidadesdaresidênciadesuamãe.

Sarastroficariadesapontadocomela.Sefosserealmenteseupai...masMonostatosmentiraabsolutamentesobretudo.Porquehaveriadedizeraverdadesobreisso?Mas,poroutrolado,porquementiria...senãopelopurovíciodacrueldade,paraferireamedrontá-la?

Porhora,pensou,estavamforadoalcancedoodiosoMonostatos,príncipe, filho da Grande Serpente, ou fosse lá que título ele seconferisse.Fosselácomoelesedenominasse,elaoavisouparaquesemantivesseafastadodesuasvistas.EseSarastroescolheuMonostatospara seumensageiro autorizado, não teriamais nada a tratarmesmocomSarastro,fosseeleseupaiounão.

Elacorreuemdireçãoàbeiradojardim,abandonandoagoratodaprecaução e apressando-se em tomar a trilha quemargeava as sebes.Nãoestava segurado seu caminho,mas,mesmoque seperdessenos

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domínios de Sarastro, isto era melhor do que estar aprisionada emalgum apartamento luxuoso, tratada como uma convidada de honra,enquanto, na verdade, sentia-semais prisioneira do que quando foraameaçadaporMonostatosdeseracorrentada.Maiscedooumaistarde,elaouPapaguenoachariamumcaminhoeestariasalvadenovo,segurasoboscuidadosdesuamãe.

Atrásdela,Papaguenotocou-lheosombros.—Nãopodemos simplesmenteperambularpor aí— sussurrou.

—Opríncipedeveestaremalgumlugaraquiporperto.Perdemo-nosdevistaacaminhodo...eledeveriatertidoobomsensodeficarjuntodemim—acrescentoupetulante.—Nuncadeveria ter-mepermitidofazeralgotãotoloquantodesaparecer.

— Estou certa disto — disse Pamina compenetrada. Haviaclareadototalmente;qualquerumquepassassepoderiavê-los.—Masele se perdeu, e deveremos achá-lo antes de escaparmos daqui.Vocêtemalgumaidéia?

Em resposta, Papagueno colocou seu pequeno apito na boca eexecutouumalegreassobio.Adistância,umsomdeflautarespondeu.

—Éopríncipe.Vamosporaqui—Papaguenopropôs.Correramem direção ao som, momentaneamente despreocupados. E correramdiretoparaosbraçosdeumpunhadodeHalflings, trazendocordaseredescomosefossemcaçar.Umdelesgritou:

—Láestãoeles!Nãoosdeixemescapar!Desamparada,Paminatentoucorrer,maselesjáhaviamapanhado

Papagueno,edoisoutrosagarraram-na.—Deixem-me!—elagritou.—Vocêsserãopunidospor isto!—

Nãopodia acreditar no que estava acontecendo.Na casade suamãe,emqualquerlugardotadodeleisjustasoHalflingquepusesseasmãosemhumanoscontraasuavontadeseriaesfoladovivo.Otoquedesuaspatas ásperas em seu corpo terrificou-a; sentiu vertigem e tonteira, esubitamente temeu cair no chão; todavia, o orgulho a impedia deapoiar-senumHalfling.

—Nãometoque!Tiresuasmãosdemim!Papagueno,ajude-me!—Vocêpensaqueelepodeajudá-la?Oh,não,Pamina—sooua

familiareodiosavozdeMonostatos.—Ninguémpodeajudá-laagora,excetoeu;masvocêrecusouminhaajuda.Elesestãoagindosobminhasordens.Peguem-na—ordenouaosHalflings, que estavamumpouco

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relutantes.—Amarrem-na.Aindaincrédula,Paminasentiuquetomavamumadesuasmãose

aatavam.OpróprioMonostatosapoderou-sedaoutra.—Venha,Pamina,minhanamoradinha,nãomedeixemachucá-la

—murmurou, e inclinou-se para junto dela.—Agora que você sabeque não pode escapar, conforme-se. Nada lhe acontecerá se vocêreconhecerquefoidesignadaparamim;achaqueeudeixariaqueelesfizessem mal a minha prometida? Venha, dê-me um beijo, sejamosamigosoutravez.

Seus lábios tocaram os dela; ela desviou-os com desesperadaviolência. Suasunhas arranharamo rostodele: ele deuum saltoparatrás,praguejandoraivoso.

Papagueno, debatendo-se furiosamente, escapou dos Halflingsque tentavamsegurá-lo.Seusdedosprocuraram,desajeitados,emsuacintura, os sinos dados a ele pelas damas da Rainha da Noite. OsMensageiros tinham-no avisado para tocá-los quando estivesse emperigo. Talvez eles fossem como a flauta dada a Tamino, e lhetrouxessemajuda.Seusdedosmoveram-seágeissobreossinos.

Paminaouviuosom,umalegreedocetilintar,eperguntou-seoque estaria se passando na cabeça de Papagueno;música numa horadessas?MasMonostatos,aoouvirosom,soltousuamãoedeixou-air;desviou seu olhar dela e, enquanto Pamina observava totalmenteatônita,elecomeçouadançar.Semolharparaela,semolharparacoisaalguma,eledescreviaumcuriosocírculoininterrupto,apartedecimade seu corpoondulandopara trás epara frente, aomesmo tempoemque os cães halflings rodeavam-no, gingando grotescamente ao ritmodossinos.Papaguenopiscou,movendoseuprópriocorposuavementeaocompassodamúsica,semdeixardetocar.

Pamina já ouvira algo sobre os legendários instrumentos decontrole,quetinhampodersobreosHalflings.Elanuncaosviraantes,nem jamais teriaacreditadoqueMonostatos, apesarde tê-lo chamadodeHalflingcomoinsulto,pudesseserafetado.Papaguenocontinuouatocar os sinos; para falar a verdade, era difícil para a própria Paminanãodançar!

UmporumosHalflingssealinharamepartiramdançando.Papaguenocontinuouatocarossinosatéqueelesdesapareceram,

entãocomeçouapararcautelosamente.Paminatinhaacabeçacheiade

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perguntas. Onde e como ele conseguira os sinos? O que fizeraMonostatos e os outros reagirem dessamaneira? Por que Papaguenopermaneceu imune? Todavia, nenhuma destas perguntas eraimportanteagora.Oimportanteerasairdali.

Eentãoelaouviuumsomqueaparalisoudeterror.Eraosomdostrompetesreaisqueprecediamaprocissão.Sarastroeseussacerdotes,acaminho dos ofícios matinais, passavam por esta via. Ela gelou; eratarde demais para correr, já podia ver o brilho do Sol nascendo,refletidosobreosornamentossacerdotaisqueelesportavam.Ealgunsdelesjáatinhamvisto.

Papagueno,suasmãosocupadasemguardarossinosnasacoladecouropresaàcintura,olhouparaelaeviuseuolhardeconsternação.

—Oquefoi,princesa?—Sarastro e os sacerdotes—ela sussurrou, reunindooque lhe

restava de coragem. Papagueno tremeu, todas as penas de sua cristacrisparam-sedepavor.

—Sarastro—gemeu.—Oh,oqueelefarádenós?Oquediremosa ele?Pamina estavaquase tão assustadaquantooHalfling;mas foratreinadaparanuncamostrarmedooupavor,mesmonos sacrifícios, eseutreinamentolhesubstituíaacoragem.Elafalouresoluta:

— Diremos a verdade a ele. —Manteve-se firme esperando ossacerdotesaproximarem-sedela.

O primeiro deles alcançou-a quando Sarastro, caminhando emprocissãocomseusfavoritosdemaiorconfiança,notouPaminaepôs-seaobservá-la,surpresoe,paraPamina,descontente.

Éóbvioqueestáirado,pensou,afinaleutenteiescapardele.MasseoqueMonostatosfezerasuavontade,eusabereiagora.

Sarastrocaminhouatéela,fazendosinaisparaqueossacerdotesaseuladopermanecessemondeestavam.

—Pamina—disse,nãorispidamente.—Oquevocêestáfazendoaqui a esta hora?Mal posso imaginar que você pretenda assistir aosofíciosmatinais.Talvezvocê...

Eleparouabruptamentequandoatrásdelesirrompeuumagrandeagitação. Monostatos, rodeado por cães halflings, arrastava umprisioneiroatéeles;umjovemquePaminanuncaviraantes.Elaleunorosto de Papagueno que se tratava do príncipe. Ele estava ricamentetrajado,suasvesteseramelegantesemboraumpoucosurradas—com

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certeza lutara tremendamenteantesdeconseguiremcapturá-lo -,eerabelo, com traços finos e olhos conturbados. Ele viera para salvá-la, eacabou sendo capturado.Pamina sentiu,mesmo sabendoque isto erairracional,queseculpariaporeleestarnestasituação.

— Soltem-no! — ordenou tão imperiosamente que os Halflingsque o seguravam soltaram-no antes que se dessem conta do queestavamfazendo.Elacorreuemdireçãoaeleetomou-oemseusbraços.

— Você é o Príncipe Tamino — murmurou, olhando em seusolhos.

Ele tomou as mãos dela entre as suas e atraiu-a para si,retribuindoseuolharcomosenadaexistissenomundoanãoserelesdois.Porummomento,paraPamina,tudodesapareceu.

EntãoasmãosbrutasdeMonostatosagarraram-noseapartaram-nos,ePaminamiroufixamenteossuavesolhosazuisdoRei-SacerdoteSarastro.

Acelebraçãodosofíciosmatinaisficouacargodooutrosacerdote,Pamina estava sentada ao ladode Sarastro, e ele lhe fazia sinais paraqueseservissedefrutas,vinhosebolos,preparadoscomfrutassecasemel,contidosnumabandeja.

Nervosa,elaperguntou:—VocênãodeixaráquefaçammalalgumaopobrePapaguenoou

aopríncipe,nãoé?—Etemendoqueelenãoaentendesse,acrescentourapidamente.—Querodizer,aoPríncipeTamino,nãoaMonostatos.—Serviu-se de um figo seco e pôs-se a mordiscá-lo embora ele tivessegostodemadeiraemsuabocaressecada.

— Eu não sei o que lhe disseram sobre mim, Pamina — disseSarastro,esuavozsoougentil.—MaslheasseguroquenãopretendofazermalaPapaguenoemuitomenosaoPríncipeTamino,queémeuconvidadodehonra,ecujopropósitoéparticipardosOrdálios.

—Eu também sou sua convidadade honra— ela observouumpoucoamargamente–enoentantovi-metratadacomosuaprisioneira.

—Pamina—Sarastrosuspirou,apoiouoqueixoemsuasmãos,edisse—não fazpartedemeuspropósitosnarrar todasasdesavençasqueháentremimesuamãe.Sempreespereiquevocênuncatomasseconhecimentodelas,masimagineiqueerademaispediristo.

— Posso fazer uma pergunta, senhor? — Ela perguntou e osacerdoteassentiu.

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—Aquivocêpodeperguntaroquequerqueseja,elheasseguroquetodarespostadadaseráverdadeira.

—Monostatosmedissequevocêémeupai,istoéverdade?— Temo que sim, Pamina — disse Sarastro. — Será que isto a

desagradatanto?Ele a olhava ternamente; seus olhos pareciam piscar para ela.

Certamente que nada havia de intolerável em saber que este homemsereno e gentil era seu pai.Mas então talvezMonostatos não tivessementidoquantoàsoutrascoisas.Elaperguntou:

—VocêprometeuminhamãoaMonostatos?OrostoserenodeSarastrotraiuumacertasurpresa.—Não,ora—disse.—Vocêodesejariacomoesposo?Éverdade

queeudisseaelequese fossebem-sucedidonosOrdálios,e sevocêgostasse dele, ele teria permissão para pedir-lhe em casamento; nãomaisqueisto.Elelhecontouisto,Pamina?

—Porqueachaqueeuestavatentandofugir?—elaperguntou.— Desejaria que você me dissesse — Sarastro não desviava os

olhos dela; olhos que se mantinham atentos sem que ela pudesseentenderporquê.—Deiordensparaquevocêfossebemtratada,elhefossedadotudoquepedisse.Alguémviolouestasordens?

Seria possível então que Sarastro não soubesse a verdade? Elafalou,e,consternada,ouviusuavozvacilar.

— Eu tentei... tentei escapar porque estava com medo dele, deMonostatos.Elemeameaçou;elemedissequevocêmedestinaraparasersuaesposa,efiqueicommedo...medodequefosseverdade.Ele...ele falou com tanta convicção, e se comportou como se...— fez umanova pausa procurando as palavras — como se eu tivesse sidooferecidaaelecomoesposa.

Sarastroaproximouseusolhosdorostodela;Paminalevantousuacabeçaassustada,commedodechorar,lutandocontraaslágrimasqueameaçavam escapar. Sentiu então a mão de Sarastro voltandogentilmenteseurostoatéqueeleencontrasseseusolhos.

—Pamina,istoéverdade?—Eunãoseioquevocêfaznestelugar—inflamou-setomadade

súbitaraiva—mas,jamaismerebaixariaamentirsobreisto!Elesuspirou.—Éverdade;vocênãoconheceeste lugaremuitomenosamim

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—disse— e não pode ser culpada por isto. Bem, Pamina, deixe-mefazer uma outra pergunta; você repetiria esta acusação diante deMonostatos,seeulhepedisse?

—Comomaiorprazer—elarespondeuenfaticamente.—EseomalditoHalflingpuderolharemmeusolhosenegar...—interrompeu-se;todooseucorpopalpitavadeindignação;eSarastropegouemsuamão.

—Vejo a verdade em seus olhos,minha criança. Sópossodizerque lamento, mais do que posso exprimir, que você tenha sidosubmetida a tal provação. Eume enganei comMonostatos; eupenseique,comofilhodaGrandeSerpente,queoutroraforameuamigoeumIrmão do Templo, ele se comportasse demaneira honrada. Qualquerumpodeseenganar;sólamento...bem,nãoimportamais.

Sarastrosuspiroupesadamenteedepoiscontinuou:— Quanto ao Príncipe Tamino, fiz-lhe a mesma oferta que a

Monostatos; se for bem-sucedido nos Ordálios poderá pedi-la emcasamento. E se eu soube ler seu coração, você não se sentirá tãoofendidanestecasocomoquandoMonostatosdeu-seporcertodeseusucesso. — Seus olhos piscaram outra vez para ela e Paminaenrubesceu,poiseleaviraseguraramãodeTaminoedefendê-lo.

—Tamino...OpríncipeTamino—emendourapidamente—éumnobrerapaz.Eu...euoouviriacomprazer,seeleseoferecesseparateraminhamão.

— Ele é realmente nobre e parece gentil e corajoso também—Sarastro disse encorajadoramente. — Com este propósito, minhaquerida,euoconvoqueideseupaísdistantenaesperançadequeeletivessesuaaprovação.

Ele afagou sua mão outra vez, tão suavemente que de repentePaminaexclamou:

—Oh,pai... sevocêé realmentemeupai,porquenãomedeixavoltarparaminhamãe?Não é que eu seja infeliz aqui, agora que seiqueMonostatosnão...nãomeperseguiucomseuconsentimentoesuaaprovação! Sinto tê-lo julgadomal.Mas por que nãome quer deixarvoltarparacasa?Minhapobremãe...morrerádedor.

Sarastro suspirou profundamente. Depois de um momento desilêncioelefalou:

—Sinto,Pamina.Nãoposso.Vocênãoconhecesuamãetãobem

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quanto eu... Ela é uma mulher insensível, cruel e dominadora. Empoderdelavocêsetornariatambémumamulherinsensívelemá.Nãoespero que você saiba o que eu sei; só peço que confie emmim,porenquanto. De algum modo você escapou à nódoa de amargor ecrueldade que nela habita; você era uma criança, com a inconsciênciainfantildoerroedomal.Agoraquevocêéumamoça,devoguiá-lanocaminhodaverdadeedaluz.Suamãe...

—Elaéminhamãe—dissePaminacomtranqüiladignidade-,eeunãoqueroouvirqualquercoisacontraela.

Sarastrodevolveuobolodemelqueapanhara,semtê-loprovado.Falou:

—Nãopossoculpá-la,criança,poracreditaremsuamãe.Gostariaque você acreditasse em mim, mas suponho que ainda precisoconquistarsuaconfiança.Deixe-meagoratratarcomMonostatosecomopríncipe.

—EPapagueno?—Nenhummallheacontecerá—reafirmouSarastro.—Eletentou

ajudá-la a escapar, mas não o responsabilizo por isso, já que eletambémestavatotalmenteenganadoenãotinhaidéiadaquiloemqueestavasemetendo.PretendopermitirqueeleparticipedosOrdálios.Oquesabesobreeles,Pamina?

—Muitopouco.—Com o tempo você saberá tudo: se ele for valoroso, lhe será

dada uma esposa e lhe será permitido casar-se sob a proteção dotemplo.Quandoeulhetireidesuamãe,tambémtrouxesuafielservaPapaguenapara cá.As sacerdotisas que cuidamdas fêmeasHalflingsconversaramcomelaemecontaramqueelaésincera,gentilevirtuosa.Existem poucos pássaros Halflings, especialmente os dotados deinteligênciasuficiente;esperavaencontrarumoutroquefossedignodasua boa Papaguena. Este Papagueno parece preencher os requisitos.Vocêoobservou:oqueachadele?

—Eugostodele,papai.EstoufelizporsaberquePapaguenaestásalva.—Sentiu-seperturbadaaoperceberquesemsabê-lotemeraquesuamãe descarregasse sua ira sobre Papaguena porque ela, Pamina,foraraptadaquandoPapaguenaestavacomela.

Sentiu-se desleal outra vez. Estaria aceitando a avaliação deSarastrosobresuamãe?Desviouoolhardele,enchendoamãodedoces

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etâmarasecomendorapidamente.Eleacenouparaumsacerdotequepermaneceranocantoextremo

dasala,ondenãopodiaouviraconversa,Elevandoavoz.ordenou:—Tragam-meoPríncipeTamino,eMonostatostambém.Pamina terminou suas tâmaras, mergulhou delicadamente as

mãosnumlavaboelogoumcãoHalfling,quelhelembravaumpoucoRawa, apareceu oferecendo-lhe uma pequena toalha perfumada. Nãopensaramuito em Rawa nesses anos, e agora sabia, com uma súbitaonda de consternação, por que temera pela sorte de Papaguena.Temerosa, e subitamentemuito envergonhadade simesma,percebeuque o que sentia era alívio por Sarastro ter-se recusadomandá-la devolta a sua mãe. Temera por Papaguena. Mas o que ela realmentetemia,sabia-oagora,erasuamãe,eoqueestalhediria.

Momentos após, uma grande assembléia de sacerdotes, servosHalflings e outros, reunia-se na câmara. Cerimoniosamente, Sarastroestendeusuamãoparaelaeacompanhou-aatéumacadeiraumpoucomais baixa que a dele. Então, levantou sua mão e Monostatosaproximou-se.

—Meusenhor—exclamou.—Estandoavossoserviço,acheiesteintrusonos recintosde vosso templo.—Fezumgestopara que seusservos arrastassem Tamino para frente. Com um sinal de cabeça deSarastro eles libertaram Tamino; acenou para que Monostatos seaproximasse.

— Esteja certo — disse — de que será recompensado comomerece.Monostatosagarrousuamão,ajoelhou-seecobriu-adebeijos.

—Meusenhor,soisbondosodemaisparamim,nãosoudigno...— Você bem merece esta recompensa — Sarastro retrucou

friamente,retirandosuamãoedandoordensaossacerdotes.—Levem-nodaqui,edêem-lheumabelasurra!

— Meu senhor! — Monostatos gritou indignado quando eles oagarraram.— Vós me prometestes que eu poderia me submeter aosOrdálios,

—Masdesdequevocêfalhounoprimeirodeles,desqualificou-separa o resto — Sarastro respondeu severamente, Pamina não podiaimaginarqueumavozgentilpudessesoarcomtanta fúria.—Confieiminhafilhaavocê,Monostatos,evocêfalhounoteste.

—LordeSarastro,euprotesto!Elatentouescaparevede,elaestá

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aqui,salvaoutravezsobvossacustódia;eunãovosdecepcionei!—Decepcionou,sim—disseSarastro.—Poisesseeraoprimeiro

dosOrdálios;edesdequevocêtocounelaementiuparaela,vocêtraiua confiança que depositei em você. Levem-no— concluiu friamente,enquantoMonostatos lutava ferozmente,uivandomaldições enquantoossacerdotesarrastavam-noparaforadorecinto.

SarastroacenouparaqueTaminoseaproximassedesuacadeira.— É ainda seu desejo submeter-se aos Ordálios, meu jovem?

TaminonãoconseguiatirarosolhosdePamina.—Comestepropósitopartideminhaterranatal,senhor—olhava

paraPaminasentadaaoladodeSarastro,eevidentementecontentedeestarali;elasorriaparaele.

—Bem,seestaésuavontade—disseSarastro—queassimseja.—ETaminosentiuaquelesorrisoaquecê-locomsuaternura.

—Levem-no—ordenouaossacerdotes—edeixem-nopreparar-separasubmeter-seaosOrdálios,conformeospreceitosdenossasleis.

SeusolhosaindaestavamsobrePamina;estendeusuasmãosparaela.Comonumsonho,elaselevantoueaproximou-sedele;mas,aumsinal de Sarastro, os sacerdotes pegaram Tamino pelos ombros; nãorudemente, como o fizeram com o enfurecido Monostatos, masfirmemente.

—Nãoainda—falouSarastrocomsurpreendentedelicadeza.—Vocêsaindanãomerecemumaooutro.Levem-no.

Tamino aquiesceu e acompanhou os sacerdotes sem resistir.SarastroestendeusuasmãosparaPamina.

—Não tenhamedo— disse -, eles não lhe farãomal, prometo,minhacriança.Tenhaconfiançaemmim.Eagora...—acenouparaumamulher alta, de rosto suave e usando trajes de sacerdotisa — vocêtambém será testada, Pamina. Mas primeiro, se quiser, dou-lhepermissãoparaverPapaguenaereassegurar-sedequetudocorrebemcomsuafielserva.—Beijou-aterna-mentenatesta.—Vê-la-eidenovona ocasião propícia, minha criança. Tenha coragem; confio em você,muito.Bemvejoqueécorajosaefiel;invoqueaforçadesuamãeenãosua fraqueza, e será bem-sucedida no seu teste. Por ora, filha, vá eprepare-separaoquevirá.Nadaháatemer,nadalheseráexigidoquenãosejaoquedemelhorvocêpuderdar,euprometo.

Inclinou-separaelanumgestocuriosamentecerimoniosoesefoi

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entreossacerdotesqueoacolitavam.Depoisqueelesevoltou,Paminacontinuouaolhá-lo fixamente;nãoestavaseguraaindaquantoaoqueiriaacontecer.Porfim,aesguiasacerdotisatocouseusombros.

—PrincesaPamina,venhacomigo—dissegentilmente,ePamina,ainda olhando fixamente para onde desaparecera Tamino, deixou-seconduzir.

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CAPÍTULODEZTaminoestavanaescuridão,umavendacobriaseusolhos;ainda

que fosse retirada a vendade seus olhos, parecia-lhe que continuariaescuro,poisatravésdasdobrasdivisavaapenasescuridão.

Suasmãosestavamatadasparatráscomumacordamaciaquenãolhemachucavaospulsos.Eraestranho,masnãosentiamedo.

Quandoforalevadoparaestelugarpordoissacerdotes,eSarastrolhefalaraemteste,sentira-seumpoucoamedrontado.Sarastropareciagentilefalavabem,masnãosabiaoqueesperar;qualquercoisapodiafazer parte dosOrdálios. Todavia, o castigo infringido por Sarastro aMonostatos o tranqüilizara; quaisquer que fossem seus preconceitoscontraSarastro,oRei-Sacerdoteparecerajusto.EPaminaconfiavanele.Sendo assim, estava preparado para suspender seu julgamento sobreSarastro.E,afinal,Paminanãopareciaprecisarsersalvaimediatamente.AomenospodiaprosseguircomosOrdálios,queeramarazãodesuavinda,semdúvida.Talvezchegasseodiaemqueviesseasabertodaaverdade,mesmotodaaverdadesobreaRainhadaNoite.

Sarastroordenaraqueolevassemparaasprovas,eelenãofizeraamenoridéiadoquelheesperava.Foraconduzidoprimeiramenteaumaconstruçãoqueera,segundoosacerdote,amoradadossacerdotesmaisjovens. Sua roupa, a roupa luxuosadada a ele pelaRainhadaNoite,queserasgarana lutacomoshomensdeMonostatos, lhe foi tirada,edepois de lhe deixarem tomar um banho numa piscina de água fria,deram-lhe ummodesto traje branco como aquele usado pelos jovenssacerdotes.

Logolhetrouxeramumarefeição—pãesázimos,manteigaeumpote demel, ovos cozidos, algumas frutas e um jarro de leite fresco.Supôs tratar-se de uma refeição sacerdotal. Era, a respeito de suasimplicidade,muitoboaeabundante.Quandoovelhosacerdotevoltoupara levar de volta a bandeja, levou junto a flauta. Tamino quisprotestar,masovelhosacerdotesorriu-lheternamente.

—Aquivocênãoprecisadistoe,alémdomais,quemlhedeuestaflauta não tinha o direito de dispor dela, pois isto não lhe competiafazer; asseguro-lhe que se provar merecer esta flauta, ela lhe serárestituída no momento oportuno. — E acrescentou: — Espere aqui,

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PríncipeTamino,emediteatéaLuasurgir,quandovirãoapanhá-lo.Sozinho, Tamino tentou meditar, mas os olhos de Pamina, a

lembrançadecomoelaoolharaquandoolevaram,interpunha-seentreele e seus próprios pensamentos. Por fim ele acabou cochilando e sóacordouquandoaescuridãojáenchiasuacela.QuandoaLuanasceu,dois sacerdotes vieram e, sem lhe falarem, vedaram-lhe os olhos eataram lhe as mãos. Mas, antes que o tocassem, vira que um dossacerdoteseraovelhohomemqueoreceberanoTemplodaVerdade.Supôs então que este estranho e inamistoso procedimento fosse partedaintroduçãoaosOrdálios.

Empé, no escuro, tudoqueouvia ao redor eram sons suaves, ofarfalhardasroupas,omudoarrastardepés,umatossedehomemnaescuridão.Foipuxadopormãoseconduzidoparaafrente:puseram-nodejoelhos.

Então,apesardavendasobreosolhos,viuumclarãoeavozdeSarastro,profundaefortecomoadeumgrandeórgão,disseseunome.

— Tamino, é seu desejo submeter-se aos Ordálios e obter suaprópriailuminaçãoesabedoria?

—Foicomessepropósitoquevimaestaterra—disseTamino-,eestoudecididoafazê-lo.

—Seiquevocêtemcoragem—disseSarastro--,emboraaindalhefaltesabedoria.Diga-me,Tamino,vocêestádispostoacolocardeladoopreconceitoeexaminartodasascoisasantesdejulgá-las?

—Tentarei.OuviuavozdeSarastronaescuridão:—Irmãos,qualquerumdevocêstemodireitodeinterrogá-lo,se

assimodesejar.SedesejampôràprovasuaaptidãoantesqueelesejaadmitidoaosOrdálios,falemagora,oucalem-separasempre.

Umavozfalou:— Príncipe Tamino, você é de origem real. Diga-me, o que

significaparavocêserumpríncipe?Taminorespondeuoqueseupailhedisseraantes,quandoelelhe

fizeraamesmapergunta:—Muitomefoidado,emuitomaisexigido.Devodaracadaum

demeussúditosoexemplodoqueumhomemdeveser, jamaisdevoexigirdequemquerquesejaoquenãoestoudispostoaexigirdemim.

Umaoutravoz,ainda,destavezásperaeprofunda,falou:

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—PríncipeTamino,vocêéumpríncipedoImpériodoOeste,vocêestádispostoarecebercomoirmão,qualquerquesejaseunascimento,umhomemquetenhasesubmetidoaosOrdálioseprestadojuramentoàIrmandadedenossoTemplo?PoisemnossaOrdem,asdistinçõesdecondição não se fundamno nascimento,mas somente nomérito e navirtude.

Taminonãorespondeuimediatamente.Porfim,disse:—Semefordadaumaboarazãoparaqueeuajaassim,receberei.

Silêncio.PorfimSarastroperguntou:—Algumaoutraquestão?—Aindasilêncio.FinalmenteSarastro

disse:—Senãotemosmaisnadaparalheperguntar,prossigamos.Qual

devocêsdesejaguiá-lo?—Eu.—Era a vozdo velho sacerdote que recebera Taminono

TemplodaVerdade.—Considerocomominhaprerrogativaguiá-loemdireçãoàLuz.

Sarastroperguntou:—Tamino, você aceita que ele o guie, e o obedecerádurante as

provas?—Seelenãomeinterrogarpormeiodeenigmas-,Taminofaloue

ouviu-se um murmúrio de riso masculino ecoando nos espaços dogrande salão.A voz de Sarastro soou como se ele estivesse tentandodisfarçarumrisinhoimpróprioàperguntasolene.

—Vocêoobedecerásemperguntas?—interrogou.Taminoparouparapensar.Porfim,falou:

—Nãoestoucerto.Istomesoacomoumaarmadilha.Eseelemeordenassefazeralgumacoisaqueeuseiqueéerrada?

— Errada pelo julgamento de quem?— perguntou Sarastro. —Suponhoquevocêtenhaditoaonossoirmãosaberadiferençaentreocerto e o errado. Como você julgará se o que ele ordena é certo ouerrado?

Taminomordeuolábio.Disse:—Eunão...nãopretendoalçar-meàcondiçãode juiz.Mascomo

saberseelenãoquermeinduzirafazeralgoerradoparatestar-me,seobedecendoestareifazendoalgoerrado,enãoofazendotereiquebradominhapromessadeobedecer?

Para sua surpresa, ouviu um murmúrio de aprovação. Sarastro

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falou:—Bem,deixe-meformularaperguntaoutravez;vocêoobedecerá

desde que ele não exija que você faça qualquer coisa contra suaconsciência? E se você não estiver seguro, ouvirá seu conselho ejulgamentoantesdeagir?

—Oh,sim—disseTamino,aliviado—éclaroqueeuprometo.—Então,Tamino-,Sarastrofaloucomsuavozprofunda—aceito-

o como candidato às provas para nossa Ordem. Rodeiem-no agora,meus irmãos,paraque ele encontre corageme forçaparaosOrdáliosquedeveráenfrentar.

Na escuridão Tamino ouviu o farfalhar dos mantos que orodeavamoutra vez. Sentiumãos pegarem as suas—mas não podiadizer a quem pertenciam. Um outro par de mãos tocou-lhe a testa,abençoando-o. Em seguida, outrasmãos tocaram-lhe, pousaram sobreelecomoparacurá-loouabençoá-lo.Viu-secercadoetocadoemtodaparte por este pousar de mãos. Ouviu-se na escuridão um som devozes.Sarastro,suavozdebaixo,forteeressonante, lideravaasvozesnumapoderosaematizadaharmoniadesons.

Esteeraohino:Vós,DeusesdaLuz,vós,terríveispoderes,Eisalguémdiantedevossasportas;Sedecomeleagora,atravésdessasescurashoras,Ajudai-oatrilharocaminhodoPeregrinoGuiai-oàsendadaVerdade,Ajudai-oaacharabênçãonaSabedoriaPermitiqueelebusquenãooPoder,masaJustiçaEencontreagrandeeeternaLuz;Guiai-oàLuzeternadaVerdade.Quando o hino terminou, fez-se um momento de silêncio. A

seguir,Sarastrofalousuavemente:—Sigaseucaminho,Tamino;epossamsuacoragemesabedoria

ser-lheúteis.Vocêseapresentoudiantedenósvendadoeatadoparaselembrar de que ainda está trilhando na escuridão dos caminhos domundo e ignorante da grande Luz; você está atado não por laçosexternos, mas por sua própria ignorância. Contudo, você manifestoudesejo pela verdadeira liberdade. Portanto, libertem-no dos laços daignorância.

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AscordasqueatavamasmãosdeTaminocaíram.—Levem-no—ordenouSarastro.—Testem-no.Avendafoiremovidaabruptamentedosolhosdelamino.Estava

muitoescuro;masTaminopodiaafirmar,devidoaosecoscircundantes,queestavamnumacâmaradeabóbadaalta,esobseuspésochãoeradepedra.A suavolta, tudo era eco, nãohavia luzno aposento; todavia,quandoseusolhosseacostumaramàescuridão,pôdeverPapagueno,vendadocomoele,sobacustódiadeumsacerdote.

Cerimoniosamente,osacerdoteremoveuavendadePapaguenoedisse:

—QueseusolhosfiquemlivresparaaLuzdaSabedoria.— Luz?Que Luz?— resmungou Papagueno.—Não posso ver

nada!—ALuzviráquandovocê se tornardignodela—salmodiouo

sacerdote.Seuprimeirotesteéosilêncioeaobediência.—Ficareientãosentadoparasemprenaescuridão—Papagueno

dissemal-humorado.Oguiatocou-lheoombrodeleve.—Fiqueaquiatéserchamado,Tamino,emeditesobreacondição

mortaldahumanidade.Tamino esboçou uma polida aquiescência. Então lembrou-se de

que Papagueno fora avisado para ficar em silêncio, e uma respostapoderia ser interpretada como desobediência. Contentou-se com umcortêsaceno.

Quando a porta abriu, viu-se um tênue raio de luz: no brilhopálido pôde ver os mantos se arrastando por trás das formas dossacerdotesàmedidaqueelessaíam.

TaminoouviuumassobiodescontentedePapagueno.Opequenohomem-pássaro, acocorado no chão, tinha seus braços delgados emvoltadojoelho.

—Tamino,porqueestamossentadosaquinoescuro?Fora-lheditopara ficar em silêncio, entretanto avozdoHalfling

parecia atemorizada, e Papagueno estava sob sua responsabilidade.Foraelequemtrouxeraopequenohomem-pássaroparaolugar.

—Por que assim nos foimandado— replicou gentilmente— emesmoeu,umpríncipe,devoobedecer.

Um repentino clarão de luz cintilou através das altas janelas;

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Papaguenoencolheu-se,oclarãofoiseguidodeumbarulhodetrovão,eoHalflingatemorizadogritou,agarrando-seaTaminonoescuro.

—Silêncio,Papagueno,ésóo trovão;vocênãotemvergonhadesecomportarcomoumcovarde?

— Eu não sou um príncipe. Não tenho que ser corajoso! —Papagueno sentou-se estremecendo, seus braços em volta do corpo,tremendo a cada clarão, àmedida que a tempestade se tornavamaisforte.

Taminodirigiu-seatéumadas janelaseolhouanoite.Esteeraomisterioso reino da Rainha Estrela, e ele chegara até ali por suavontade.Mas tudo parecia ter-se alterado. Omagomalvado Sarastroparecia um homem nobre e benevolente, e Pamina, a donzela aflita,parecia absolutamente satisfeita e não Precisar de qualquer tipo desalvação. Além do mais, Sarastro era, de fato, o encarregado dosOrdálios. Tamino sentiu que todas as suas certezas estavam sendodesafiadas.

Pelos intermitentes clarões, pôde perceber que o aposento ondeelesesperavameraumaantigacripta.Osnichosnasparedescontinhamsarcófagos, gravados com caracteres rúnicos, numa língua tão antigaque Tamino jamais ouvira antes. Encimando uma coluna havia umacaveira, incrustadadepedrasquebrilhavampalidamente;masna luzdescoloridaTaminonãopôdedefinirquetipodepedraseramaquelas.Jamaissouberadenenhumasociedadeoupovoquetratasseassimseusmortos. Quem teria sido esse povo estranho emuito antigo, e o queaconteceuaele,paraqueagoraopovodeSarastromantivesseosritosemcâmarasmortuárias?

Seja lá quem tenham sido, agora seus nomes eram conhecidosapenaspelamorte,Eumdia,Taminopensou,oImpériodemeupaieopovodeSarastro,todosnós,seremosnadamaisdoqueisto.Supôsnãoserissoqueosacerdotequisessedizer,quandorecomendaraaTaminoque meditasse sobre a condição mortal do homem, e secretamentesentiu-seumpoucosatisfeitoconsigo.

MasPapagueno tremia e se queixavano chão, olhando ao redoraterrorizado, e Tamino acreditou que ouvia os dentes do Halflingbatendo.

— Que lugar horrível este! Se eles não podem achar um lugarmelhor do que este para manter os candidatos aos seus Ordálios,

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melhorseriaparaelesqueninguémseapresentasse!—Quieto,Papagueno;mandaram-lhe ficaremsilêncioemeditar

sobreamortalidade.— Não, foi para você que disseram para fazer isso — disse

Papagueno. -Amorte já é ruim demais para que precisemosmeditarsobreela.Dequalquermodo,nãosaberiacomomeditar.

Quasenãoconseguindoconteroriso,Taminofalou:—Elespretendiamquevocêpensassemuito,muitoseriamente.—Entãoporquenãodisseramisso?—perguntouoHalfling.Tamino deu-se por vencido e começou a estudar os caracteres

rúnicos dos sarcófagos. A iluminação intermitente ia e vinha.Papagueno ainda resmungava de descontentamento, mas Tamino oignorava,Otempopassava,arrastando-sesobrepéssilenciosos.Comoseusolhosestivessemacostumadosaoescuro,eleexaminouosestágiosdaquelacivilizaçãomorta,sentindo,porfim,queeleeoimpériodeseupai, bem como todas as raças humanas atuais eram pequenas ante agrandezadotempo.Fariadiferença,fariamesmodiferençaparaalguémse um príncipe chamado Tamino, nascido num efêmero Impériolocalizado num ponto minúsculo de um mundo perdido entre asestrelas,viveuoumorreu?SeelesaiuvitoriosodosOrdáliosesecasoucomPamina?Ousemorreuentreosrestosperdidosdeumpovo,queno passado vivera e sofrera e agora nãomais existia? Faria diferençapara alguém? Por que estava aqui, afinal, submetendo-se a estesOrdáliosdesconhecidos?

Elesecomprometera,Masseriaestaumarazãosuficiente?Todosaqueles povos em séculos distantes se haviam comprometido compropósitosignoradosemcausasperdidaseesquecidas,queagoranadasignificavam para ninguém, ainda que eles tenham mantido suaspromessas e vivido com honra, ou abjurado e sido esquecidos, NaplenitudedoTempo,oquesignificariaparaalguémterelevencidooufalhado,tervividooumorrido?

Aturdido, dominado pela percepção do Tempo e do que seperdeu,pressionousuacabeçadoloridacontraofriodapedra.Porqueveiopararnestelugar?Seabrissemaporta,seriacapazdefugir.

Nãosedeucontadequantoistodurara,masfoichamadodevoltaaopresentepelaluzdeumalâmpada,osomdeumaportaseabrindoeaentradanorecintodedoissacerdotes-guias.

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— Príncipe Tamino — falou o primeiro, que ele pensou ser o“seu”guiaestáresolvido,então,acontinuar,aconteçaoqueacontecer?

Tamino deu um longo suspiro, sentindo que a esta altura suaresoluçãoestavasendotestada.Porummomentoistopareceunãomaisterimportância.Contudo,fizeraumapromessaeamanteria.

—Estou—respondeucalmamente.—Queassim seja; osOrdáliosvão começar.Você esperará aqui

atéaaurora,ouatéqueeuvenhapegá-lopara levá-loaalgum lugar.Aquiéproibidofalarcomqualquermulher.Advirto-lhe,também,queembora possa ver Pamina, não poderá falar com ela, direta ouindiretamente, nem tocá-la. Você me entende? Aconteça o queacontecer,nemumapalavraouumtoque.Deoutromodo—avozdosacerdote assumiu um tom mais grave como que de ameaça — aperderáparasempre.Vocênosobedecerá?

Taminoengoliuemseco.Tudoistolhepareciaumaloucura.Masquemera elepara julgar estes sacerdotes?Elesdeveriam saber o queestavamfazendo.

—Sim.— Que os deuses mantenham-no firme em sua resolução, meu

filho-disseovelhosacerdote.—Dê-mesuamão.O outro sacerdote, um homem baixo, calvo e míope, com uma

barbacurtaedesalinhada,curvou-sesobrePapagueno.— E você, meu filho, suportará os Ordálios, mesmo que eles o

levem até um pontomuito próximo damorte, e lutará contra omal,ondequerqueoencontre?

—Bem—dissePapagueno,agitandosuacristaemplumada,numgestodeindecisão-,nãosouumlutador.Enãosouumcorajoso.Talvezfossemelhoresquecermosestahistóriatoda,

—Vocêdaráomelhordesipelasabedoriaeiluminação?— Eu? Pelo quê? — Papagueno perguntou. Meio atrapalhado,

disse:-Desculpe-me,pensoque...não,muitoobrigado.—Diga-me— o sacerdote falou tão gentil e pacientemente que

Taminosentiu-sesurpreso-,oquevocêesperadavida,meufilho?Papagueno levantou-se e pôs-se a andar em círculos

nervosamente.— Bem, gosto de ter o bastante para comer e beber e um lugar

confortávelparadormir.Nãopensoemtrabalharduro,masnãodesejo

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nadamaisdoqueisso.Deixe-medizermaisumacoisaqueeuquereria.Gostaria de ter uma esposa, uma amiga, uma companheira: estoucansado de viver sozinho. Isto é tudo, bom e venerável pai, o querealmenteesperodavida.Nãosintoânsiadesabedoria,iluminação,ouqualquer coisa deste tipo. Oh, por favor, não tome minhas palavrascomo ofensivas; estou certo de que são coisas boas,mas, para falar averdade,nãopensoquesejamparapessoascomoeu.

—Mas— disse o sacerdote -, Sarastro já escolheu uma esposaparavocê:elaémuitoparecidacomvocê,aténacordesuaplumagem.Masvocênuncaaverásenãoperseverarnosordálios.

—Tenhoopressentimentodequeomelhorseriaficarsozinho—Papaguenofalou,mas,olhandocheiodecuriosidadeparaosacerdote,perguntou:—Elatambémtempenas?

—Exatamentecomoassuas.— Gostaria muito de vê-la — falou sonhadoramente. Nunca vi

ninguémparecidocomigo.Elaéjovem?—Jovemebonita.—Evocêdizquenãopoderiavê-laamenosquemesubmetaaos

Ordálios?—Exatamente.—Bem,neste caso...—obarulhodeuma trovoada interrompeu

suaspalavrasePapaguenotapouosouvidosegritoudesalentado:—Omelhoréficarsozinho!—Masperguntou:—Qualéonomedela?

—Papaguena.—Realmentegostariadevê-la—dissePapagueno,emboraseus

dentesestivessembatendo.—Sóporcuriosidade.—Vocêpoderávê-la—osacerdotefalougentilmente-,masnão

poderáfalarcomela.Vocêacreditaquepoderásecontrolarosuficienteesegurarsualínguaparanãofalarcomnenhumamulheraqui?

— Bem, seria a primeira vez que eu seguraria minha língua—respondeuPapagueno.—Tentarei.

— Excelente. Dê-me sua mão — O sacerdote tomou a mão dePapaguenonumfirmeeamigávelaperto.—Lembre-se:aquiéproibidofalarcomqualquermulher.

—Fareiomelhorquepuder.— É tudo o que pedimos— com estas palavras o sacerdote se

retirou.

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Tamino, sentado num banco de pedra, ouviu o ruído dassandáliasdossacerdotessobreoassoalhodepedra.Umdelesfalavaemvoz baixa com o outro, e pareceu a Tamino que quase podia ver obalançardecabeçaacompanhandoaspalavras.

—NemSarastropoderiafazerdeleumMestre.—Comovocê sabequeé istooque sepretende?–perguntoua

vozdoguiadeTaminoperguntou.—DesdeoGrandeDragãonãomaishouveuminiciadosaídodosHalflings.Aindaassimépossívelqueelesuporte os Ordálios tão bem quanto lhe for exigido; nada podemosdizersobreisto.

“Eles estavam falando de Papagueno,” Tamino pensou, meioenvergonhadoconsigomesmopor se sentir aliviado.Acreditara entãoqueelesestavamfalandodele?IstosignificavaqueelesconfiavamsemrestriçõesnasuahabilidadeemenfrentarosOrdálios?Oprimeirodelesparecia quasenéscio; quediferença fazia, afinal, se ele falasse ounãocomumhomemouumamulher?

Supôs que eles tivessem suas regras, e ele daria omelhor de sipara obedecê-las, sendo ou não compreendido por eles. Tivessem ospropósitosquetivessem,estavasegurodequenãoosentenderiamaisdoquePapaguenopoderiaentendersuasidéiaseplanos.

Dequalquermodonãohaviamulheresali, eparecia improvávelque algumamulher pudesse penetrar naquela cripta, guardada comoestava por sacerdotes. Quanto a isto. não podia imaginar alguémentrando neste lugar sem ter o que fazer, Tamino estava cansado deolharcrâniose lembrançasdemortee finitude,opassadoe ruínasdeantigasnações.Deitou-seemumdosbancosdepedra,decididoatentardormir um pouco, já que não havia coisa alguma para ver, nemninguémcomquemconversar.Disseram-lheparanãofalar,masnãolhedisseramquedeveriamanter-seacordado.

Jamais soube se chegara a tirar de fato um cochilo. Levantou-secomumgrito atemorizadodePapaguenoeumclarão comoodeumraio. Parecia que o chão de pedra se abria repentinamente; tochasfulguraram,e,derepente,astrêsdamasdaRainhaEstrelaapareceram.

— Príncipe Tamino—Disa exclamou.—A Rainha está furiosacomvocê!VocêcaiusoboencantomalignodeSarastro,ecomcertezaserá punido pelo furor de sua ira!O que tem a dizer em sua defesa,vocêquejurouanossaRainhaquesalvariasuafilha?

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Taminoabriuaboca,prontoparaprotestar,parasejustificar;masantes que lhe escapasse dos lábios a primeira sílaba, lembrou-se dovelhosacerdote:Aquiéproibidofalarcomqualquermulher...

Então era esta a razão para a advertência. Perguntou-se se asdamasdaRainhaEstrelaestariamrealmenteali,ousetudonãopassavadeumtruquedossacerdotesparafazerem-nocrerqueelasestavamali—umasimplespartedosOrdálios.Contenteoutravezconsigomesmoporaparentementeestarenxergandoatravésdeseustruques,voltouascostasàsdamasenadarespondeu.

—Oquê!Não temnada adizer em suadefesa, Tamino?Oquedirá à Rainha quando lhe exigir a filha?— gritou Zeshi.—Você foiincumbidodeumamissãoearmadocomarmasmágicas,eagoraestáaísentadoouvindoosconselhosdeumvelhaco!

Taminonadadisse.Emseguida,elassedirigiramaPapagueno.—Papagueno,oquevocêachaqueaRainhadiráquandosouber

quevocêpodiatersalvoPamina,queaprincesachegouaestaremsuasmãosevocêaentregouaosescravosdeSarastro?

—Não,nãotiveescolha,senhoritaDisa...—começouPapagueno.—Silêncio,Papagueno!Lembre-sedeseuvoto!—Sevocêouviroconselhodele,estaráperdido,Papagueno!Mas

você é um servo fiel da Rainha Estrela, e ela nosmandou aqui paralevá-lo de volta — uma delas falou e Tamino, pela resposta dePapagueno,soubetratar-sedeKamala.

—Olheaqui,nuncaquisviraestelugar,masvocêsmefizeramvircomopríncipe,eagoraeuachoqueocorretoéficaraqui.

— Papagueno...— Tamino falou, caminhando em direção a ele;talvez pudesse ajudar o pequeno Halfling a lembrar-se de suapromessa.—Fiqueemsilêncio,amigo.

Zeshiinterpelou.— Papagueno, por que você quer ficar aqui? O que acha que

Sarastropodelhedar?—Sarastromeprometeuumaesposa—respondeuPapagueno.—Oh,seéumaesposaoquevocêquer...—Zeshifalouesuavoz

soavadelicadaemurmurante.CaminhouparajuntodePapaguenoepassouseusbraçosaoredor

do pescoço dele; suas mãos finas e de dedos longos o acariciaram,alisandoaspenasaolongodesuacabeça.Roçouorostodelecontrao

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seu.Papaguenoestavaparalisado,eTaminopensounumpássaroquevira uma vez, fascinado por uma cobra. O corpo esguio de Zeschicolou-se ao de Papagueno, e o pássaro halfling começou a ceder, amover-seaoritmodocorpodela.Elasorriueronronoucomsuavidade.

Abruptamente, empurrando-a com ambas as mãos, Papaguenodisse:

— Na casa da Rainha Estrela você não me tratava deste modo!Achoqueistoéumardil,LadyZeshi.—Eleseafastourápido,eZeshisibilouenfurecida.

Kamalaergueusualança,ameaçando-o,masPapaguenomanteve-se firme, e falouquase aosbrados.—Nãopensoquepossame fazermalaqui!Sivocêpudesse,LadyKamala,jáoteriafeito.

Ouviu-seumterrívelribombar;astochasseforam,eolugarondeestavamastrêsdamasficouvazio.

Papaguenodesabousobreochãodepedra,lamentando-se.—Oh,desgraça,desgraça!Tamino refletia sobreo fatodeopequenoHalfling terquebrado

seu voto; não ter ficado em silêncio, tê-las afugentado com palavras.Sem dúvida, fora bem-sucedido. Seriam os Ordálios de Papaguenodiferentesdosdele?

—Papagueno,oqueestáfazendo?Na escuridão da câmara abobadada ouviu-se uma vozinha

trêmulaedeterminada.—Estoudesmaiado!

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CAPÍTULOONZEEm silêncio, Pamina fitava através das cortinas o céu repleto de

estrelas— os domínios de suamãe.Nunca antes questionara amãe.SaberqueSarastroeraseupaienchera-a,primeiro,dedúvidaemedo,emseguidadeconfusão.

Ele não era o ogro que ela crescera acreditando ser. Não eraabsolutamenteummonstro.VivendocomaRainhaEstrela,nuncaantespensara no desejo ou necessidade de ter um pai, salvo no sentidopuramente físico.Mas agora que vira e falara comSarastro, não tinhadúvida de que se devesse escolher um pai, certamente seria Sarastroque escolheria. Por que sua mãe mentira sobre Sarastro, por queescolherapintá-locomoumfeiticeiromau?

“Talvez fosse apenas porque ela me amasse muito,” pensouPamina.Nãodesejavamedividircomninguém,mesmocommeupai.”Maspormaisquetentassenãoconseguiaacreditarquefosseporisso.

Agora ela estava na casa de Sarastro e fora incumbida de sesubmeter aos Ordálios — por que, ela não sabia, mas Sarastro lhedisseraquese tratavadeumapreparaçãonecessáriaa tudooqueeletinhareservadoparaela;aaprendizagemdasabedoria,seucasamentocom Tamino. Pensou timidamente em Tamino, no momento de seubrevetoque,noencontrodeseusolhos.Nuncaoviraantes.Massentiacomosejáoconhecessehácemmilanosehácemmilexistências.

ParaelabastavaqueTaminotivessedesesubmeteraosOrdálios;estava felizporparticipardasprovascomele.Masnão tinhaamenoridéiadoqueseriaexigido.Asacerdotisa,que lhederaobanhoritual,levara seus trajesde sedapura e lhedeixara comuma túnica rústica,branca e lisa, que, segundo ela, era um hábito de neófito, dissera-lheque as provas eram diferentes para todos.Assim, as provas que elaenfrentaria seriamdiferentesdaquelasdeTamino. Istoadeixou triste,Gostariadeenfrentaromesmoqueeleiriaenfrentar.

Quando perguntou sobre o momento em que começariam, asacerdotisanadadisse.Apenasquetudoviriaasuahora.equeaté látudo o que ela precisava fazer era obedecer. Ante novas perguntas,respondeugentilmente:

— Princesa Pamina, a natureza dos Ordálios deve-se manter

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incógnita, ou não haveria mérito em submeter-se a eles. Lembre-seapenasde que só lhe será exigido que se conduza semprede acordocomoquehouverdemelhoremvocê.

Então,dizendo-lheparairdeitaredormir,abraçou-acomoaumairmã— “não,” Pamina pensou, “nenhuma deminhas irmãs seria tãogentil comigo, pois sempre soube que elas me invejavam por ser aherdeirademamãe”—edeixou-asónaescuridãodoquarto; levoualâmpadaconsigoquandosaiu.

Obediente, Pamina tentou acomodar-se para dormir. Mas nãoconseguiuafastardesuamenteorostodeTaminoeobrevemomentoemque suasmãos se tocaram.Nãodevia estar pensando emTaminoagora,masnosOrdálios.Seriamtestesdecoragemeresistência?Nuncaessascoisaslheforamensinadas:estavacertadequesesentiriaincapaz.Logocaiunumsonoinquieto.

Acordouaosomdepessoaseumvultoerguendo-sesobreacama.Aprincípiopensouquefosseumadassacerdotisas,quevieraacordá-laparaoprimeirodosOrdálios.Masnãosetratavanemdorostonemdaforma de uma mulher; um corpo de homem, rijo e forte, curvava-sesobre ela, e subitamente horrorizada reconheceu a imagem deMonostatos.

Asmãosdeleagarraram-napelosombros,elepressionouorostocontraodela,cobrindo-lheoslábioscomosseus,numlongo,violentobeijo, quase a impedindo de respirar. Ela se debatia tentandodebilmente se livrar daquelas mãos, mas ele mantinha seus lábioscolados aos dela; seu corpo caía pesado sobre ela, que percebeu,terrificada, o que ele estava tentando fazer. Pamina lutava tentandoacertar-lheavirilhacomojoelho;maseleerainfinitamentemaisforte.Por fim, ela conseguiu virar seu corpo de lado, ofegando quandolibertousuaboca.

—Sarastrooesfolarávivoporisto!— Está tão certa disto, minha pequena? Quem sabe depois de

tudovocênãosesentirátãoinsatisfeita?Emtodocaso,Pamina,jáleveiuma surra por sua causa, e desta vez terei mais que um beijo comopagamentoporminhasdores!Porquenãotornaacoisamaisfácilparanós?

— Não! — ela respondeu com dificuldade, lutando resolvida amorrer,sepreciso,antesdesedeixarviolarpor...porestacriatura!Mas

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pormais que lutasse, elemantinha presas suasmãos com facilidade,usandoapenasumadesuasprópriasmãos,semelhanteaumacordadecouro, enquanto que com a outra mão livre tratava de arrancar oslençóiseatúnicabrancadanoviça.

Paminagritava:—Socorro!Socorro!Estuprador!Assassino!—massabiaquefora

deixadasozinha,poisasaspirantesaosOrdálioseramsempredeixadasa sós, e onde suas servas estariam não poderiam ouvi-la. Nãoaparecerianinguémparaajudá-la?Antesdeixar-sematar.Setivessequemorrer,morreriadefendendo-secontraestacoisarepulsivaemformadehomem.Suagargantadoíadetantogritar,eseucoraçãobatiadisparadoem seu peito. Percebeu que sua resistência se tornava cada vezmaisfraca, e pensou que fosse vomitar, quando ele arrancou-lhe a túnicabranca,e,olhando-adecimaabaixo,exultoumalignamente.

De repente algo relampejou, ofuscando-a, enquanto Monostatosfoiarrancadodejuntodelacomoquepeloprópriorelâmpago.Paminaouviu-ogritar,umgrito sempalavrasdedor emedo, eviu-o rastejarsobre o chão no clarão do relâmpago. Sobre ele, envolto em luz fria,apareciaorostodaRainhaEstrela.

—Mamãe!—Paminaexclamou.OrostodaRainhaEstrela,soboaltopenteadoritualdepenasde

coruja, estava pálido e frio; seus olhos brilhavam como as estrelasdistantes.Soluçando,Paminalançou-seaosbraçosdesuamãe,esentiu-osenlaçarem-nafugazepossessivamente.Entãopercebeuquedeviatersido imaginação, pois a voz de sua mãe estava fria e neutra comosempre.

—Elemachucouvocê,Pamina?Ouapenaslheassustou?Trêmula,Paminaseendireitou.Atúnicabrancaestavarasgadado

pescoçoaosjoelhos.Seuspulsosdoíamesuabocaestavamachucada;otoquedos lábiosdeleeseusolhosmalignamenteexultantessobreseucorpo nu fizeram-na sentir-se enjoada e suja. Contudo, não estavaseriamentemachucada.

—Apenas... apenas assustou—ela respondeu, e ouviu suavoztremer.

A Rainha Estrela olhou com desagrado para o linho rasgado datúnicabranca.

—issonãoépróprioparavocêusar,meuamor—faloue,apesar

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de suas palavras serem delicadas, Pamina sobressaltou-se ante oescárnio contido nelas. — Providencie um traje e vista-se de mododecente. Tenhomuitas coisas a lhe dizer.Apesar de estar na casa deSarastro — acrescentou com cáustico desprezo -, acreditei que vocêestivessebemguardada.

PaminapensouemdizerquenãoeraculpadeSarastro,equeeleatécastigaraMonostatosportentarseaproximardeladeumamaneiraindesejável;masanteoolhardesuamãe,pensouqueeramelhorcalar-se. Emuma arca achou um vestido de seda solto e cobriu seu corpocomele.Sentiu-semaisbemvestida;mesmosobosolharesdesuamãe,aquele linho rasgado lhe transmitia a sensação de estar nua evulnerável.

—Agoravenhaatéaquieouça-me—disseaRainhaEstrela-,poisotempoépouco.Veja—moveusuacabeça,numgestodomaispurodesdémpossível, emdireção à figura rastejante no chão—oque lheaconteceráaqui.

Paminaabriuabocaparaprotestar, certamenteestenãoeraobradeSarastro,masrepentinamente,soboolhardamãe,jánãoestavatãocerta. Teria sido este o primeiro dos Ordálios a ela destinados?Obedientemente,comoquandofaziaemsuainfância,sentounabeiradada cama estreita, olhando para sua mãe e com suas mãos juntaspousadassobreocolo.

—Ondeestáojovemquemandeiparalhesalvar?—AguardaoiníciodosOrdáliossoboscuidadosdossacerdotes

deSarastro.—Istoépiordoqueeupensei—comentouaRainhaEstrelanum

tom austero. — Se Sarastro e os sacerdotes me encontrassem aqui,certamentemematariam,poisnãotenhopoderesnestelugar.

— Não deixarei que lhe façam mal — Pamina retrucou comfirmeza.—Ninguémmemachucaráaqui,mamãe,emesmoqueeuvácom você, eles não ousarão tocá-la. Mamãe, escapemos juntas destelugar. — Apesar da ternura de Sarastro, agora, aos pés da RainhaEstrela, Pamina se sentia outra vez uma menininha; sua mãe aprotegeria e cuidaria dela, mas primeiro deveriam deixar a casa deSarastro.

— É muito tarde para isso — a Rainha Estrela retrucou, e,colocandoamãonasdobrasdeseumanto,ordenou:—Tomeisto.

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ColocouumaadaganasmãosdePamina.—Durante os rituais você se aproximará de Sarastro, e com ela

vocêomatará.—Oquê?—Paminagritouhorrorizada.—Matarmeupai?Mãe,

vocênãopodeestarfalandosério!—Silêncio!—bradouaRainhaEstrela.—Duranteanossuporteio

desprezo do sacerdócio do Sol.e de Sarastro! Agora estou decidida:vocêmevingará.Sendovocêminha filha,Pamina,ecomoos laçosdesangueligammãeefilha,vocêmataráSarastroantesdonascerdosol,ou nuncamais torne a olhar paramim nem pense em chamar-me demãe!Ouça,presteatençãoeobedeça-me,Pamina,oununcamais seráreconhecidacomofilhaminha!

—Mas,mamãe,não!Mamãe,eulhepeço,escute-me...—Nemumapalavra!—Porummomento,umrelâmpagobrilhou

aoredordaRainhaEstrela,quandoelasepôsdepédiantedePamina,seu rostoparecendodepedra.Emseguida,ao somdeuma trovoada,ela se foi,deixandoapenaso silente luarbanhandooquarto.Pamina,desesperada,deolhosarregalados,olhavaaoredor.

—Mamãe...—murmurou,aindadescrente.—Matarmeupai?Sabia que aRainha Estrela odiava Sarastro; elamesma o odiara,

influenciada por sua mãe. Podia entender que possivelmente elesdiscordassememmatériadereligiãooucoisasparecidas,oqueparaelasignificavapouco.

Masjáeraobastantequeelesmorassemseparadosegovernassemseusprópriosreinos.Matar?Todooseuserserevoltouanteestaidéia.

“Não possomatar... não, não, nemmesmo porminhamãe, nemqueelameexpulsedesuapresença”,pensoudesesperadaerompeu-seem lágrimas. Será que sua mãe realmente a expulsaria? Então lheocorreu um outro pensamento louco. Era bem possível que isto nãopassasse de um dos ordálios, que ela simplesmente tivesse sidotestada, para que se verificasse se ela continuaria a se comportar deacordocomsuaconsciência.

No entanto fora criada para acreditar na absoluta retidão davontade da Rainha Estrela. Seria possível que ela tivesse falhado?ARainha Estrela jamais erraria, e se exigiu que Sarastro morresse, nãoseriaporqueSarastromereceriaamorte?ComopoderiadesapontarsuamãeesalvaravidadohomemqueaRainhaEstrelaodiava?Oqueera

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Sarastroparaela,oqueeraumpaidesconhecidoemrelaçãoaumamãeque a amara, que tratara dela com carinho e se preocupara com eladurantetodaasuavida?

Noentantoosolhos ternosdeSarastropermaneciamdiantedela;elaperguntarafuriosaecomdesprezo:

—Você émeu pai?— e ele respondera tão suavemente. Comopoderiamatá-lo?Oqueelefizeraparamereceramorte?Elanãosabia.Sesuamãerealmenteacreditavaqueseupaimereciaamorte,pensoudesesperada,“entãoelaqueomateenãotentemefazerjulgar!”

Ouviu-seumruídonoquartoeelaselembroudequeMonostatosaindajazianumcanto.Eleselevantoudevagarecaminhouemdireçãoaela.

Pamina segurou firme a adaga entre as mãos. Pelo menos,enquantoaempunhasse,elenãoavançariasobreela.

—Nãoseaproximedemim—elafaloueouvindosuavoztremersentiuraiva,masnãosabiacomofazerparaimpedirotremor.

—Éamimquevocê teme,Pamina?Sou tãopavorosoassimaosseus olhos? Ou é o assassinato que você traz em seu coração? —Monostatosperguntou.—Afinal,não souumHalfling comum, souofilhodaGrandeSerpente,eseitudooqueaconteceaqui.Possosalvarvocêesuamãe;masvocêsabequaléomeupreço,Pamina.

Rapidamenteelaergueuaadaga.—Minhamãenãoaceitariatalpreço!Muitomenoseu!—Comopodeestartãocertadisso?—eleperguntou,avançando

emsuadireção.—Seriamelhorsevocêmedesseaadaga...Estendeuamãoparapegá-la.Emseguida,emmeioaumclarão,

Sarastroempessoaapareceunoquarto.ParaMonostatosapenasdisse:—Vá!— e oHalfling, de cabeça baixa como roedor arisco, saiu

correndopelaportaafora.—Papai...!—Paminaexclamou.— Calma, minha querida, não tenhas medo — ele falou

suavemente.—Euseidetudo.—Papai,eulheimploro,nãopunaminhapobremãe!Sejaláoque

forqueelatenhafeito,agoraeusei,elanãopoderálhefazer,e...e...—sentiuavozembargadaetemeuchoraroutravez.Haviaprometidoasimesmaquenãochorariadiantedele.

—Maseulhepeço,nãosevingue.Elaestáassimtãoaflitaporque

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meperdeu...Sarastroestendeusuamãoepuxou-acomsuavidadeparasi.—Não chore,minha criança.A vingança não faz parte de nossa

religião.Elapodefazeroquequiser;eemboranãopossaprotegê-ladascausas que ela mesma pôs em movimento, esteja certa de que nãolevantareiminhamãocontra ela. Senão fosseporoutra razão, ela é amãedeminha filha,ebasta issoparaquesuapessoaedignidademesejamsagradas.Tambémporsuacausa,Pamina,pudeperdoá-la.VocênãosabequeestefoiumdosprimeirosdosseusOrdálios,noqualvocêdeveriamostrarcompaixãomesmosobumaprovaçãocomoesta.—Eleabeijouternamentenatesta.

Franzindooslábios,elaperguntou:—FoitambémumdosOrdálioseuterquerepelirMonostatosou

sujeitar-measerviolentadaporele?—Minhaqueridacriança...—Sarastrosuspirou.—Não,claroque

não,eu lhegaranto;e lheasseguroque,dehojeemdiante,ele jamaistornaráa tocaremvocê.Nãopossoexpressaroquantosintoporvocêtersofridoisso;admitoquemeenganeieconfieidemaisnele.Sintoterquepuni-lo;seupaierameuamigo,umhomembomefiel.Eletambémfoiesposodesuamãeantesdeeuaconhecer.Superestimeioseufilho.Bem, não há mais nada a fazer. — Sarastro suspirou de novo, eexaminou o traje de seda que ela colocara a pedido de suamãe, e atúnicarasgadanochão.

— Suas servas foramdispensadas até a conclusão dosOrdálios.Mandareiumasacerdotisaparaservi-lademaneiraconvenienteevesti-lademodoapropriado.Queriadizer-lhe, também,quePapaguenafoiadmitida aosOrdálios, ela foi sua serva fiel e eu a destinei para ummaridoqueaagradará.

—Papagueno?—Sim,criança.Eletemsidobomedigno,etemumbomcoração.

Paminasorriunervosamente.—Papaguena...éumpássarohalfling;elanãoémuitointeligente,

papai.Oque acontecerá a ela se não for bem-sucedidanosOrdálios?Ninguémvaifazermalaela,vai?Elaétãoassustadiça...

—NãosepreocupecomPapaguena,minhafilha;osOrdáliosparaos Halflings são diferentes dos seus. Se ela se comportar de modoapropriado sob as circunstâncias, nadamais lhe será exigido.Avocê,

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nascidaprincesa,aquemmais foidado,mais seráexigido.Não tenhareceio, minha criança... fez uma pausa, sorriu para ela e bateu-lheencorajadoramentenoombro.

—Não.Nãolhedireiparanãorecear,poisduranteasprovasvocêhádesentirmuitomedo.Mas,eulhedigo, filha,enfrenteseusmedoscombravura.Vocêcomeçoubem;continuecomcoragem,ouçaavozdoseu coração e com certeza vai suportar todo Ordálio que tiver deenfrentar.

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CAPÍTULODOZEPapagueno,deitadoaindanochão,deliciava-seaindacomoluxo

deumdesmaio.Taminobocejava.Olhandoparaforadasaltasjanelas,já percebia que estava começando a amanhecer. Não conseguiraconciliarosonodepoisdainvasãodastrêsdamasdaRainhaEstrela—se é que “damas” era o termoapropriadopara elas. “Harpias” talvezfossemaisadequado.

Foraumanoitelongaeeletiverabastantetempoparapensar,paraduvidardesimesmoedosseusmotivos,doseupoderdesuportarosmisteriososOrdálios,edapossibilidadedePaminavirapreocupar-sepor um homem a quem vira por uns poucos momentos. Houveintervalosdurantealonganoitequandoeledesejoujamaisterdeixadoacortedeseupai.

Pela primeira vez tivera a oportunidade de duvidar.A jornadaexigira muito dele, mas também fora recompensadora. Desde omomento em que encontrara o dragão nas Terras Mutáveis, osacontecimentosforam-sesucedendotãorapidamentequeelenãotiveraoportunidadepararefletirsobretodoseles.

Até que o Sol fizesse sua primeira aparição através das altas eestreitasaberturas—acrernosseusolhos,elesestavamnumlugartãoalto que ele não podia ver nada lá fora — sentia-se absolutamentedesanimado. Desejou que eles tivessem devolvido a flauta mágica;antes,quandoeleatocava,elalhetransmitiaumaprofundasensaçãodeconforto.Pelomenosteriaalgocomqueseocupar,alémdeficaraquisentadoesepreocuparcomseudestino.

Masseráqueelesadevolveriam?Afinal,aflautachegaraàssuasmãos no reino da Rainha Estrela, e mesmo sem conhecer o reino deSarastro,sabiaqueaRainhaEstrelanãoerabem-vistanele.Ese,comoeles lhe disseram, a flauta lhe fora dada por alguémque não tinha odireito de fazê-lo — desejou que estivessem se referindo aosMensageiros,masprovavelmenteestavamsereferindoacusatoriamenteà Rainha Estrela -, talvez simplesmente não a devolvessem. O que,afinal,fizeraparamerecerumaarmatãopoderosacomoaquela?

Quando ficou mais claro, Tamino pôde ver que Papaguenodormia sobre o chão de mosaico. Os raios de sol emergiam, e ao

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atingiremosolhosdoHalfling,elecomeçouasemexersonolento.—PríncipeTamino?— Estou aqui, Papagueno, tão inteiro quanto você. O Halfling

sentou-se,massageandoascostas.— Aqui, ao que parece, eles não pensam em oferecer camas

confortáveis para os hóspedes, hein? Diga-me, aquelas três... elasestiveramrealmenteaqui,outudonãopassoudeumsonhoruim?

Taminotambémseperguntarasobreisso.—Não estou certo, Papagueno. Se foi um sonho ruim, então eu

tambémotive.OHalflingsacudiusuacristaemplumada.—Édifícildeacreditar.Digoamimmesmo,vendoaluz,queeu

devia estar lá fora preparando minhas armadilhas para pássaros, equandoolhoaoredormevejonestelugar.Eu,Papagueno,admitidoatomarpartenosOrdáliosdossacerdotes.Eu.Ordálios.

Avozdelelhepareciaabsolutamenteincrédula.—Écomoseelestivessemditoqueeumetornariaumsacerdote

oucoisasemelhante.Oqueéqueestoufazendoaqui?TaminonãosabiasePapaguenoestavaperguntandoaele,ouse

estava reclamando uma resposta aos céus silenciosos.Mas oHalflingcontinuavaaolhá-locomoseestivessesegurodequeTaminolhedariauma resposta. Confessaria ao Halfling que participava da suaperplexidade, ou, como certamente um príncipe devia fazer com seusúdito, encorajaria o homem-pássaro a persistir, a mostrar coragemcomolheforaditoparafazer?

Uma das coisas que os sacerdotes lhe disseram, quando foraquestionado por eles sobre suas qualificações para a Irmandade,voltavaàlembrança:Vocêestápreparadoparatratartodososhomenscomo irmãos, seja qual for sua origem?Não estava seguro se isto seaplicavaaosHalflings,nemseeleseramhomensounão.

Bem, se era assim, humano ou não, preferia Papagueno comoirmão a que alguns homens que conhecera na corte de seu pai. PelomenosopequenoHalflingerabondosoebem-humorado.

—Àsvezesficopensando...noqueestoufazendoaqui.Emgeral...-Taminofalavadevagar,atentoacadapalavraquedizia—...pensoquevou para ondemeu destinome leva. Eu também, como você, nuncapenseisobreisto,eessaéaverdade.

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Papaguenopareceudesapontado.—Você é umpríncipe. Pois eupodia garantir que você sabia o

quefazia.E agora me diz que age de acordo com o que lhe é ordenado?

Assim,comoeu?— Um príncipe não passa de um homem, Papagueno. — Ao

mesmo tempoemquepensavaque se algumavez alimentara ilusõescontráriasaestepontodevista,estajornadameteriadadoboaslições.—MeupaiéoImperadordoOesteetodososhomensestãoligadosaele por laços de obediência, mesmo seus filhos. Estes, em especial,devemservirdeexemploaosoutroshomens.

— Oh! — Tamino percebeu que esta era uma idéia nova paraPapagueno.—Penseiqueospríncipesfossemdiferentes.Oquehádebomemserumpríncipe,sevocêtemqueobedecercomotodomundo?

“Esta era,” Tamino pensou, “uma boa pergunta.” Massurpreendeu-se por ter sido feita por Papagueno. Estivera tãoconvencido de que o Halfling era um parvo. O homem-pássaro eraingênuo, mas certamente não era tolo quando se tratava de assuntossérios,tinhaumanotávelhabilidadeparaformularperguntassensatas.

— Eu mesmo não sei, Papagueno. Talvez nada. — Sentiu-sealiviado quando, em vez de seguir nessa linha de questionamento,Papaguenobalançouacristaemplumadaemsuacabeçaeperguntou:

—Masaquehorasservemocafédamanhãneste lugar? Issoaomenoseraprevisível.

— Também não sei, Papagueno. Talvez o jejum faça parte dosOrdálios.

— Sabia que eles não tinham nada a ver comigo— Papaguenoresmungou.—Acomidaporaquiéboa,masoespaçoentreasrefeiçõesnãoobedeceaumtempoadequado.

—Bem,nãopercaasesperançasainda—Taminoexortou-orindo.—Pelaaparênciadocéu,elesnãodevemtervoltadoaindadosofíciosmatinais; é possível que depois dos ofícios eles decidam nos deixartomarocafédamanhã.Casocontrário,estoucertodequenosdarãodecomercedooutarde.Vocênãopodeestarcomtantafomeainda.

— Como não? Sempre fico faminto quando estou assustado —resmungouPapagueno.

Masnãohavianadaafazeranãoseresperar;TaminoeoHalfling

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se encontravamnamesmasituação.Clareoumais.Nuvens cobriramafacedoSolelogodepoisTaminopôdeouvirobarulhodotrovãoevero lampejo do raio. Lembrou-se de como as damas da Rainha Estreladesapareceramaosomdeumatrovoada.

Papaguenomurmurou:—Elesnosesqueceramcompletamente.—Oh,eunãopensariaassim—Taminoretrucousuavemente.—

Elesvirãonosvercedooutarde.— Provavelmente tarde — Papagueno disse em voz baixa e

executouostensivamenteumapequenaáriaemseuapitodecaça.Asnuvensseafastarameosolcomeçouabrilharoutravezsobreo

chãodepedraantesqueelespudessemouvirosomdepessoasqueseaproximavam.

—Estamoscomsorte—falouPapagueno.—Talvezsejaocafédamanhã.Masoqueapareceufoiumafiguracurvada,envoltaemvéus.IgnorandoTamino,foidiretamenteaPapaguenoefalounumavozdoceeaflautada.

—Mandaram-medevolverseussinosmágicos.Eaminhaflauta?PensouTamino,ejáiaperguntaraomensageiro.

Masantesquepudesseemitirumaúnicapalavra,afiguraocultalançoufora o véu negro e mostrou que era uma mulher. Tinha o rostoenrugado,abocadesdentada,ocorpomirradoeaindaumacorcunda.

“Contudo”, refletiuTamino,elaeraumamulherepelas leisdosOrdáliosnãopossofalarcomela.”

Papaguenopegouoscarrilhõesmágicos.—Estoufelizporreavê-los—disse truculento.—Comtodosos

perigosquehánestelugar,bemquepoderiaprecisardelesbrevemente.—Masdisseram-mequevocê émuito corajoso—a velha falou

comsuavozondulante.—Oh,claro—retrucouPapagueno.Taminosobressaltou-se;ocamaradinhatoloiacomeçaroutraveza

sejactareaquebrarseujuramento!Sussurrounumtomimperativo:— Silêncio, Papagueno. Você rompeu seu juramento antes,

quandofaloucomasdamasdaRainha;maselesagoraestãolhedandooutrachance!Sejacuidadoso.

— Não quebrei meu juramento absolutamente! — respondeuPapagueno com veemência. — Você não pensou que elas fossem

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mulheres,pensou?Não, senhor, aquelasdamasdaRainhaEstrela sãodemôniossaídosdoinferno,éissooqueelassão,eossacerdotesnadadisseramquantoafalarcomdemônios!

Tamino não pôde conter o riso. Papagueno tinha resposta paratudo.Istoprovavelmenteoarruinaria,maseleeraoqueeraedeveriaencontrarseuprópriodestino.

—Háalgumacoisaqueeupossafazerporvocê,meuquerido?—avelhaperguntouaPapagueno.

—Cairiamuitobemumcafédamanhã.Ouatémesmoumcopodevinho.

—Oh,seéistooquevocêquer,nadamaisfácil—disseavelhaetirou de dentro do seu capote um odre de vinho. Encheu um copo eestendeu-oaPapagueno.

—Ah!...vocêservedecopeiraatodososheróisquepassampelosOrdálios?

—Oh,não,não.Sóvimaquiporquemeuprometidomaridoestáemalgumapartedestelugar.

—Oh,vocêtemumamante,vovó?—Oh,tenhosim—avozdelaeradoce;Taminopodiajurarque

porbaixodaquelamáscarahaviaumajovem,emborasuaaparênciadevelhaestropiada,quase fantasmagórica, tivesseprovocadoumterrívelimpacto.

—Eoquemaisvocêfazaqui?— Oh, eu canto, toco flauta, sinos e harpa, danço e pratico

prestidigitação...— Você é ilusionista? — Tamino ouviu Papagueno engolir em

seco.—Eisaíumacoisadignadeservista,vovó.—Sevocêquiser...—avelhaapanhouossinoseprontamentefê-

losdesaparecer,bemcomooodreeumadasbotasdePapagueno,queeletiraraquandosedeitaraparadescansar.Taminoficoupasmoanteahabilidadedela;elaeratãoágilquantoumaaprendizdequinzeanos.

— Qual a sua idade, vovó? — Papagueno perguntou. Ela deurisadinha.Denovoavozeraadeumajovem.

—Exatamentevinteanoseumdia.—Istodevetersidoumdiamuitolongo—observouPapagueno.—Oh,foisim.Masmeuamadoétãodoceeencantadorquenem

sepreocupacom isto— fez reapareceroodredevinhoedevolveuo

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jogodesinosaPapagueno.Noinstanteseguinteexibiuabotaejogou-aparaelenumgestojovial.

— Este seu amante deve ser realmente um cara legal. Ele é tãojovemeatraentequantovocê,vovó?

—Oh,não.Disseram-mequeémaisvelho.Quasedezanosmaisvelhodoqueeu.

— Tenho certeza de que vocês formam um delicioso casal —Papaguenoesqueceraovinhoemsuamão;nestemomentolevou-oaosseus lábios. — Não tenho muitos conhecidos por estas bandas, masnuncasesabe.Qualéonomedele?

— Papagueno — ela pronunciou claramente, e Papagueno,engasgandodesusto,sujoutodaacamisa.

—Oquê?Quebrincadeiraéesta?— Brincadeira nenhuma; Sarastro prometeu você a mim como

esposo.Veja,souPapaguena.Papaguenoengoliuemseco.— Isto é uma armadilha — murmurou; então piscou e olhou

diretoparaavelha.— Bem, pedi uma amiga e companheira. Não disse que ela

deveriaser jovemebonita.Elemefalou...bem,confionele.Seeledizquevocêéaesposaprometidaamimsuponhoqueelesaibaoqueestáfazendo. Estou contente de encontrar você, vo... ah... Papaguena —faloubravamenteeestendeu-lheamão.

—Vocêéencantador,comomeprometeram—dissesuavementeavozda jovem.Afigurasobovéunegro tremeluziu,avelhase fora.Emseulugarapareceuaformadelgadadeumagarota.

EracomoPapagueno,aténacristadepenasverdeseamarelas,sóquemaisjovem,Taminonãoaachoubonita;apontadonarizeramuitoaguda, osolhos erammuitobrilhantes epenetrantes.MasPapaguenopareciafascinado.

— Papaguena!— gritou, e abruptamente o lugar onde estavammergulhou na escuridão, e seu grito transformou-se num urro dedesespero.

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CAPÍTULOTREZEPelaaparênciadocéujáerameio-diaouumpoucomais.Tamino

estavacomeçandoaficarfaminto,massualongajornadaoacostumaraaperíodosde jejum, e sentia-se preparado, casodevesse, a ignorar suafome por tanto tempo quanto osmestres dos Ordálios o desejassem.Papagueno, sentado no chão, estava imerso em desespero e, pelaprimeiravezdesdequeTaminooconhecera,nãotinhavontadedefalar.Não tocounos sinosmágicos; nem sepreocupara em calçar sua bota.Tamino estava começando a ficar preocupado com ele, quandofinalmenteaportaseabriuedoissacerdotesentraram.

— Como está se sentindo, Príncipe Tamino? Ainda disposto aperseverar?

—Tantoquantoantes,nadaviquemudasseminha resolução—Taminorespondeutranqüilo.

— E você, amigo Papagueno? — o outro perguntou. — O queaconteceuavocênestalonganoite?

Papaguenoestavasentadodecabeçabaixa.— Estou certo de que você sabe tão bem quanto eu o que

aconteceu. Acredito que não tenha conseguido passar nos seusOrdálios.Souapenasumloucotagarela.Deiomelhordemim,masomeumelhornãoémuitobom—levantouacabeçaeolhoudiretoparaosacerdote.

— Foi seu erro, você sabe, esperar que eu fizesse aquilo para oqual não fui criado. Costumava caçar e domesticar pássaros para aRainhaEstrela,eensinavaalgunsdelesafalartambém.Eumesaíabemnisso. Mas depois que os ensinava a falar, não podia voltar atrás eensiná-losacalar,oua falarnahoracertaedizerascoisascertas;nãopodia ensiná-los a ficar quietos quando era hora de se ficar quieto.Suponhoqueeusejacomoaquelespássaros.Umavezquefuiensinadoa falar, não sabia como calar. Nunca disse que desejava ser testadodestemodo,eeulhefalei,vocêselembra,quenãomesairiabemnisto.

—Vocêdisse,meufilho—osacerdotefalou,esuavozerasuave.—Nãotenhooquecensuraremvocê.Diga-me,então, jáquesesenteincapazparaosOrdálios,oquedesejadavida?

—Nestemomento?Nestemomentoeugostariadetomarmeucafé

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damanhã.Tudooque tive foiumcopodevinho, e achoque elemetornou um pouco tolo, ou não estaria falando assim com você,ReverendoPadre.Selheofendi...

Osacerdotepousouamãoemseuombro.— Você não me ofendeu, irmãozinho, não quando lhe pedi a

verdade e vocêmadeu.Você terá seu café imediatamente— fez umsinal e um jovem sacerdote apareceu com uma bandeja cheia queexalavaumcheirodelicioso:pãesdemelquentinhosebolos cobertosdenozes.Colocou-adiantedePapagueno.

—Satisfaça seu apetite, irmãozinho.Masdiga-me, você não temoutrodesejo?

—Nãoagora—respondeuPapagueno-,masmeconheçomuitobem, para saber que, brevemente, terei uma dúzia.Que adianta falarnisto?Obrigadopelarefeição,ReverendoPadre.Suponhoque,pornãoter passado nos seusOrdálios, tenha que voltar paraminha pequenacabana na floresta. Mas lá não é o meu lugar. Apenas... — parou,engoliuemsecoepôsdeladoopedaçodebolodenozesquepartiraparacomer.Taminoviuseusolhosseencheremdelágrimas.

—Diga-meoquelheperturba,Papagueno,meumenino.—Bom—Papaguenofaloudeumasóvez.-Estoucansadodeser

atormentadoporaquelesdemôniosemformadebelasjovens.Nãomeimporto de trabalhar duro, mas gostaria de trabalhar em paz e comcalma, sabendoque eles nãome afligiriamquando estivessedandoomelhordemim.Ficariamesmocomaquelavelhasenhora,sevocênãopudesseme conseguir a jovem.Ela éuma companheira alegre epelomenoséamiga.Parece-mequepornãoterpassadonomeutestedenãofalarcomajovem,nãofuimerecedordela.Masporquenãoperguntaaela... a Papaguena, quero dizer... o que ela quer? Será que ela nãomereceria uma chance, também? — Papagueno olhava firmemente osacerdote,obolodenozesesquecidoemsuamão.

—Papaguena tevesuachance,comovocê teve,eelaoescolheu.Continueasercorajoso,eelaaindapoderásersua.Mas...—aoadverti-lo, a voz do sacerdote tornou-se severa outra vez— ...as alegrias dasabedoria,conhecidaspeloIniciado,jamaisserãosuas.

—Oh,bem...—Papaguenoergueuosolhostimidamente.—Nãoquerodizernadadegrosseirosobreavidaquevocêescolheu,senhor,aocontrário,paramimnãoháproblemaalgum.

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— Muito bem; que assim seja — o sacerdote sorriu paraPapagueno-.Tenhacoragem;vocêdeveráteroutrasprovas.Masaestaalturaénecessárioqueaquelesqueescolheramascoisasdestemundosejamseparadosdaquelesqueescolherambuscarasabedoria.PríncipeTamino,digaadeusaoseucompanheiro.

—Masespere—disseTamino-,oqueacontecerácomele?Sinto-meresponsávelporele;fuieuquemotrouxeparacá.

OsacerdotedeTaminofaloucombrandura:—Você confia emSarastro,meu irmão?—Taminopercebeude

repentequeestaeraumanovaprova,esentiu-sefelizconsigoporisto.—Papagueno...—estendeusuamãoeapertouamãozinhaseca

doHalfling,quemaispareciaumagarradoqueamãodeumhomem.—Tenhocertezadequeelessaberãocuidardevocê.Quandoeutiverconcluído os Ordálios, se os deuses permitirem que eu sobreviva aeles... — pois estava certo de que muito em breve eles se tornariammais sérios que até então -... procurarei você para saber como temandado.Cuide-se,irmãozinho,equeosdeusesolhemporvocê.

Papaguenolevantouceticamenteosolhosparaele.—Pensoquevocêprecisarámuitomaisdoqueumaboadosede

ajudadeles,meupríncipe—enumimpulso,abraçouTamino.—Nãodeixemqueelesassustemoufaçammalavocê.Eseprecisardemim...—tirouoapitodeseupescoçoepassou-oaTamino—Bastaapitar,eeuvireiparafazeroquepuderparaajudá-lo.Nãosoumuitobomcomdragões, talvez,mas se precisar de alguémpara conversar, estarei aoseulado.

Profundamente emocionado — exceto as roupas grosseiras queusava,pareciaseraúnicacoisaqueoHalflingpossuía-,Taminopegouopequenoapito.

—Aomenosparadevolvê-lotornareiavervocê,amiguinho.Quando os sacerdotes levaram Papagueno, Tamino mordiscou

sem muito interesse um dos bolos de mel deixados na bandeja,enquantoseperguntavaquandoasverdadeirasprovascomeçariam,seéquecomeçariam.Boapartedodiajásefora,quandoaportaseabriuoutra vez, e Pamina, vestida numa simples túnica branca muitoparecidacomasua,entrounacâmaraabobadada.Elaolhoucomcertacuriosidade, piscando um pouco quando seus olhos caíam sobre ascaveiras,ossímbolosdemortesantigas,masquandoviuTamino,seus

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olhosbrilharam.—Meu príncipe, eles me mandaram para devolver-lhe a flauta

mágica—eelalhaestendeu,envoltaemseda.Maravilhado, Tamino lembrou-se de que eles haviam mandado

Papaguenadevolver a Papagueno os sinosmágicos.Aomenos não oestavam testando com um disfarce idiota, mas, ao contrário de seusimplório companheiro, Tamino compreendeu imediatamente quedeviamanter sua promessa de não falar. E desde que estava usandouma túnica de neófito, ela também devia compreender o propósitodeste teste, e oporquêde elenãopoder falar comela.De fato, comofilha de Sarastro, ela provavelmente entenderia o interditomelhor doqueopríncipe.

Ele pegou a flauta, evitando os olhos dela — não queria sersurpreendido com uma palavra que lhe escapasse, e sabia que seolhasse para ela, provavelmente não conseguiria impedir-se deexpressar todo o seu prazer em vê-la. Especialmente por ela ter-lhetrazidoaflauta.

Suacompreensãodosimbolismodaflautaforaexperimentada.Ovelho sacerdote designado como seu guia disse-lhe que seria testadopelaTerra,pelaÁgua,peloArepeloFogo.Anoitepassadanacripta,comossímbolosdamorteedafinitudeaoredordele,teriaservidopararecordar o elemento Terra, do qual todos vieram e ao qual todosretornariam?Nãopodia afirmar que sim,mas deduziu que umdia osacerdote-guia lhe esclareceria, quando chegasse o momentoconveniente.

Seriapossívelque seuamorporPamina fosseaprovadoFogo?Sentiuumadesesperanteânsiaporela,porestarcomela,perguntaraela se sentia algo de parecido ao que ele sentia por ela. Ou ela oaceitariasomenteporqueestaeraavontadedeseuspais?Eleaqueriadaquelemodo,oudefatoaqueriasobquaisquercircunstâncias?

Sentiuumlevetoqueemseubraço.—Tamino—Paminadissedocemente-,porfavor,falecomigo.Ele balançou a cabeça, ainda tentando não dirigir os olhos para

ela, mas sem poder evitar um rápido olhar pelo canto dos olhos.Quandoaviraantes,estavavestidacomtrajesdesedae seuscabelosestavamadornadoscompedraspreciosas:umaprincesa,suaigualemcondição,filhadaRainhadaNoiteedopoderosoSarastro.Agora,como

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ele, estavausandouma túnicadegrosseiro linhobranco, semadorno,seuslongoscabeloslourosestavampenteadosparatrásecaíamsoltos,semumúnicoornamento,quaseatésuacintura.Aindadestavez,anteosMistérios, eram iguais, ele pensou e riu silenciosamente para ela,balançandoacabeça.

— Você está zombando de mim — Pamina implorou. —Precisamosnosfalar,temostantoparaconversar.Precisosabersevocêrealmente quer nosso casamento, ou se é apenas porque meu pai oescolheuevocêaceitouporeuserafilhadopoderososacerdote.VocêsabiaqueSarastroémaisqueumsacerdote,queeleéorei-SoldetodaAtlas-Alamésios? Você deseja casar comigo, ou deseja herdar estacidadeetodasassuaspossessões?

O tom de sua voz era lastimável; Tamino abriu a boca paratranqüilizá-ladeimediato.HerdaroreinodeAtlas-Alamésios?Porqueele, um filho do Imperador do Oeste, se preocuparia com a herançadela?EraPaminaoqueelequeria,Pamina...

Mas não.Assim como as damas da Rainha Estrela fizeram paraamedrontá-los, como Papaguena testara Papagueno, Pamina estavatentando jogar com suas emoções e testá-lo. Mas ele não se deixariapegar. Não perderia Pamina por uma quebra tola das regrasestabelecidas para os Ordálios. Pegou a flauta, baixou a cabeça ecomeçouatocar.

Osomdocedaflautaencheuacâmarasilenciosa,trespassandoasmanchasdesolqueiluminavamascaveirasnosaltospilares.Enquantotocava, sentiu-se inundado de paz; tentou tocar todo o seu amor porPamina, sua confiança, a certeza de que somente pela obediênciapodiamficar juntos.Enquantoosomseespalhavaquietopelacâmarailuminadapelosol,veio-lheaidéiadequetalvezestefosseotestedoelementodoAr.

Pois era pelo ar de suas respirações que podiam falar um comoutro, e se no momento a fala estava proibida ou impedida, e comcertezaapenasagora,elepodiatransmitirseuamoretocá-laatravésdoveículomágicodoar,falandonamúsicadaflauta.

FlautaMágica, falepormim.Canteparaelameuamor,digaqueeladeveconfiaremmimatéquevençamosestesOrdálioseentão,quesejaavontadedosdeuses,caminharemosjuntosporestelugar.

—Tamino!—ogrito era tãodolorosoque ele, interrompendoa

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música,olhouparaela.—Porfavor,ponhadeladoaflauta,olheparamim, fale comigo, não posso suportar que você nem olhe paramim!Penseiquevocêmeamasse.Apenasquisqueeuacreditassequevocêmeamava?Tudonãopassoudeumabrincadeira,deumamentira?

Seusolhosencheram-seaospoucosdelágrimas,eTamino,vendo-as emergir e temendo aquelas profundezas líquidas, sentiu-segrandemente perturbado. Não lhe falaram da prova? Como desejavalargar a flauta, esclarecer tudo a ela. Via-se tomando-a nos braços,segurando-acomoalgomuitofrágilemuitoprecioso,umajóiaachadapor acasonesta estranha e inopinadavia, àqualvieradarviajando, edizendo-lhe,assegurando-lhedeseuamorepedindo-lhequeconfiassenele.

Mas não devia. E se eles não lhe falaram sobre a natureza daprova,bem,elaeraafilhadeumsacerdote,elesdevemaomenostê-lapreparadoparaesteOrdáliodeconfiança.

Viuqueelachorava.Nuncasederacontadequeas lágrimasdeumamulherpodiammagoar seu coração.Talvez fosse esteoOrdáliodoFogo,poisverPaminachorarfazia-osentirumalançaflamejantededoratravessar-lheagarganta.Fora-lheensinadonacortedeseupaiquedeveriaenfrentartodasasprovascomcalma,moderaçãoesememoçõesindignas,masporummomentosentiuoimpulsodelançarforaaflauta,apertar Pamina em seus braços e beijá-la até que parasse de chorar eouvissesuasrazõesparaserecusarafalar.

E então eu a perderia, como Papagueno perdeu Papaguena...Ainda podia ouvir o grito de desespero de Papagueno quando aHalflingdesaparecera.Manteve-sededilhandoaflauta,curvadosobreoinstrumento,nãoousando levantarosolhospara ela. “Certamente elapodia ouvir namúsica o que ele queria dizer! pensou emdesespero.“Ela devia saber sem precisar de palavras. Por que precisaria depalavras?”

— Tamino, você não me ama mais?—As palavras cortavam ocoração.Mordeuseulábioesentiuogostodesangue.Mesmoqueelenãosoubessequeistoeraumaprova,semdúvidajátinhamidolongedemais.Comopoderiasuportarouvi-lasofrer?

Contudo,seaprovafossefácil,qualseriasuautilidade?Reprimiuaslágrimaseseguiutocando,resolutonarecusadeencontrarosolhosdela.

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— Tamino! — a voz soou-lhe como um lamento angustiado, esentiu suas mãos delicadas sobre seu braço tentarem arrancar-lhe aflauta. Deixou a flauta cair no chão — não lutaria com Pamina, nãotentarialhetomaraflauta.

Disseram apenas que eu não falasse com ela. Nãome disseramque não pudesse beijá-la... Lutava com esta tentação, ofegava, masouviu as palavras do velho sacerdote, dizendo que não a tocasse oufalassecomela.Numesforçoquequaseosucumbedeagonia,livrou-sedas mãos dela e voltou-lhe as costas. Ouviu-a soluçardesesperadamente,nummistoderaivaedor,ouviudepoisosomdepassosrápidoseumbaterdeporta.

Então,lançou-seaochãoechorou.

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CAPÍTULOQUATORZEPamina fugiu do edifício abobadado, soluçando

desesperadamente.Aquilo lhepareciao fimde todosos seus sonhos.Nãopodia confiar emTamino; ele a rejeitara.Nãopodia confiar nemmesmoemSarastro;foielequemlhemandoulevaraflautaaTamino,expondo-aàmortalcrueldadedarejeição.

Começara a amá-lo. Começara a confiar nele.Agora o que seriadela?

O que farei agora? Voltar para o reino de minha mãe? —perguntava-se. Mas sua mãe a renegara, exigira dela que matasseSarastrooufosserepudiadaparatodoosempre.

“Não é possível que ela tenha dito isto,” Pamina pensou. Elarenegaria sua própria filha, aquela que ela escolhera como suasucessora eherdeira?Masa lembrançado frioolhar selvagemde suamãegelou-lheoespírito.

Minha pobremãe. O ódio e o desejo de vingança levaram-na àloucura.PaminatemiaenfrentaraRainhaEstrela,amenosquefosseatéelacomaadagabanhadanosanguedeSarastro... ePaminasabiaquejamaislevantariaamãocontraseupai.

Aindatinhaaadaga,guardadasobapartesuperiordesuatúnicade neófita. Temera deixá-la em seus aposentos, pois alguém podiaencontrá-la.Mirou-acomamargura.Talvezausassecontrasiprópria.

Se ao menos sua mãe tivesse querido que fugissem juntas dosdomínios de Sarastro. Bem poderia estar salva agora na casa ondenascera.

Nãopodiaprosseguirassim,vagandopelosdesconhecidosjardinsdoTemplodeSarastro.Nãoestiveraforadosmurosdesdequechegaraali, não estavamesmo certa do caminho de volta para a casa de suamãe. Encontrava-se num jardim cheio de tamareiras, algumascarregadasdetâmarasmaduras;asparedesdosedifíciosofuscavamdetão brancas como o sol, cegando-a — ou estariam eles cheios delágrimas?Esfregou-oscomoUnhogrosseirodesua túnicaeolhouaoredor.

Viuumaescadaque conduzia aumdos terraçosmais elevados.Talvezpudesseolharalémdomuro,acharocaminhodevoltaparao

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castelodesuamãe.Comcerteza,suamãenãopensaraemassassinato.Nãoexpulsariasua filhamais jovemporse recusaramataroprópriopai.Não.Suamãejamaisseriacruelouinjusta.Masaadaga,agoraemsua mão... era real, e sem dúvida não tomara equivocadamente aspalavrasqueouvirasuamãedizer.

Pensouqueouoódio e avingança enlouqueceramsuamãe, ouacabaria enlouquecendo de tanto pensar nisto. A escada, estreita eíngreme, formavaumângulovertiginoso comomuro, ePamina, commedodeolharparabaixo,inclinavatodoocorponadireçãodomuroàmedidaquesubia,desviandoosolhosdopontomaisaltodaescadaemantendo-osnosdegrausquepisava.PorfimnãohaviamaisdegrausePaminaencontrou-senoterraço.

Escolherabemseupontodeobservação.Oterraçoevidentementeeraumlugarderefúgiocontraosrigoresdocalor,poisestavacheiodevasos de plantas, divãs com toldos e espreguiçadeiras, e ao centrobrincava uma pequena e refrescante fonte. Um alto muro externoobstruíaparcialmenteavisão;mashaviaumdegrauque,bastavasubi-lo, permitia uma visão de toda a cidade, e Pamina, dali, podiaidentificar claramente o palácio de sua mãe. Não ficava mesmo tãolonge, embora estivesse no ponto extremo da cidade de Atlas-Alamésios.

Poderiaalcançá-lafacilmente...Deveria descer imediatamente do terraço, tomar o caminho do

portãomaispróximo,eseguiraolongodaquelalongaeamplavia,cujorumo ela observava do terraço. Contudo permaneceu onde estava,demorando-se.

Sem dúvida que agora seu pai não a forçaria a ficar, agora queTaminoa rejeitara e seupainãopoderiamaisdá-la emcasamentoaoPríncipe do Oeste. De qualquer modo, a túnica de linho branco queusava fazia dela apenas uma anônima noviça, e ela poderia ir e virintra-muros,tãopouconotadaquantoqualquerumadaquelaspessoasocupadascomseusobscurosafazeres.

De onde estava, podia ver uma longa procissão serpenteandopelas ruas próximo ao palácio de sua mãe. Pamina observou-asurpreendidaeentãocontounosdedos.Sim,eratempodeluanova,ecomelaossacrifícios.Ouviu-seosomdetrompas,ouviram-seosgritosrituais dos lamentadores, todos entorpecidos com o fumo das ervas

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sagradas; lá estavamos sacerdotes sacrificantes de suamãe com seuslongospunhais.Nãohaviadúvidadeque istoera justoeapropriado,assim o mundo fora organizado. Logo que ali chegara, perguntou aSarastro quando ocorreriam os sacrifícios, e sentiu-se chocada por elelhe responderquenãohavia sacrifícios.Bem lhedissera suamãequeSarastro era um demônio ímpio, e ele realmente o provara, poisnegligenciava o que ela aprendera como primeira obrigação dahumanidade,emagradecimentopornãotersidocriadacomoHalfling—oferecersacrifíciosemabundância.

Agora sabia que quando Sarastro lhe respondera, fora essa aprimeira vez que pensara qualquer coisa por si própria, em vez detomarapalavradaRainhaEstrelacomoapalavradosprópriosdeuses.Oqueeledissera?

Pamina,minhacriança,porqueosdeusescriadoresdehomenseHalflings precisariam que sacrificássemos os Halflings a eles? Se osdeusesderamvidaaosHalflings,dariamamorteatantosdelesapenasporcapricho?OsHalflingsnãovivemtantoquantooshomens;porquedeveríamos abreviar a vida deles? Neste templo não fazemossacrifícios, filha, nem de homem nem de Halfling, mas honramos osdeusescomgraçaselouvores,etambémfazendousovirtuosodavidaqueelesnosderam.

EstepensamentochocaraPamina.Eenquantoolhavaaondulanteprocissão ao longo da via, sacerdotes, lamentadores e vítimasacorrentadas—vistosdeondeestava,tãopequenoscomobonequinhos— sentiu saudades de algo familiar. Podia ver, sobre um alto carro,umafiguravestidadenegroquedeviaserumadesuasmeias-irmãs.

ElastambémeramHalflings.Porquesentiamprazeremsacrificaraquelesqueeramseusiguais,masmenosafortunados?

AcabeçadePaminaardia—seriaporcausadosolescaldantenasruas, ou por causa das lágrimas e da perplexidade?De repente, pelaprimeiravezemmuitosanos,deuconsigolembrandoamorteemqueRawadesaparecera.

Suamãehavia lheprometidoqueRawanãoseriamandadaparaos estábulos como caçadora de ratos. Sempre acreditara que suamãemandara amulher-cão para outra atividade, em algum lugar fora dopalácio;masporquesuamãelhefizeraapromessa,nãosepreocuparacomnovasperquirições.Agoralhevinhaàmenteaidéiadequesempre

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souberaaverdade:RawaforasacrificadanolugardePapaguena.Comopôde ter sido tãocegadiantedealgo tãoóbvio?Mas fora

semprecega,“ameninabobinha”, segundoDisa.Depoisde seteanosera até mesmo inútil chorar por Rawa. Nem se dera conta de queocorrera uma troca, Rawa por Papaguena. Papaguena lhe era muitoquerida,mas Rawa... Rawa fora sua verdadeiramãe, e ela não tiveraabsolutamenteoutramãequenãoRawa.ARainhaEstrela—anãoserbiologicamente—jamaisforaumamãe.Sendoassim,porquePaminaexperimentava esta horrível sensação de perda ao lembrar,dolorosamente,omomentoemqueosbraçosdesuamãeaenlaçaramdeformatãofugaz?

A procissão desaparecera, mas ela a seguia, angustiada, empensamento, através do portal, para além do qual ficava o altar desangue. O sacrifício diário, executado sobre o altar ao meio-dia —ensinaram-lhequeistoalimentavaoSol,tornava-ocapazdecontinuarabrilhar...oqueeraumatolice,umaestóriabobaparaenganarcrianças,embora ela jamais a tivesse questionado. Tivessem o corpo desacerdotesesacrificantesfalhado,dealgummodo,emsuasobrigações,Pamina, de boa vontade, teria levado o punhal para manter ossacrifíciosdiáriosemseucursoprevisto:foraissoquelheensinaram.

Eagora ela sabiaque tudoera tolice;mostraram-lhequadrosdoSoledosmundosquesemovemaoredordele,oSolnadamaiseraqueumaimensaboladefogonocéu,bolaquearderiaindependentedoquefizessem a humanidade ou os Halflings, enquanto os verdadeirosdeuses,segundoSarastro,nãoeramamaisqueforçasdaOrdem,forçasque mantinham os sóis, a Lua e todas as estrelas andando em seusdevidoslugares.Quemeninabobaelaera!Quemeninabobaelaaindaera!

Nãohaviamais lugarparaelanacasadesuamãe.MuitomenosnoTemplodeSarastro,desdequeTaminoarejeitara.Quetipodevidaaesperariaapartirdeagora?Ondeviveria?

Permanecia juntoaomuro,olhandoparaacidade.Perguntava-sepor que o povo de Sarastro teriamantido esta visão de uma cidade,cujasmaneirasecostumesrejeitara?SemdúvidaoholocaustodiáriodeHalflings devia repugná-los. Como era possível que conseguissemvivercontemplandoessascoisasterríveisenadafizessemnosentidodepreveni-la? A cidade tornou-se indistinta aos seus olhos; estaria tão

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próximaquantoparecia?Ouviu um barulho de latido que vinha de fora do conjunto de

edifícios.Umcãohalfling,umjovemmachogritavaecorriaatravésdeuma pequena alameda; ouviu um suave e encorajador gemido e viuumajovemcadelaobservando-o.Omachovoltou-se,eretribuindo-lheo gemido, agarrou a fêmea e puxou-a para o chão. Nenhumcumprimento; nenhuma cortesia. Cheiraram-se, empinaram-se umpouco, e logo estavamosdois latindoegrunhindo juntos sobo solo.Umpedestreencarregadodealgumamissãoxingou-osporbloquearemo caminho, e tentou chutá-los,mas, enlaçados, ignoravam tudo a suavolta.

Claro.Estaera,ensinaramaPamina,amaneiradeoscãeshalflingsse comportarem, o que assegurava um número elevado de Halflingssem dono para os sacrifícios; e o que se faria caso este suprimentodeclinasse? Seria uma impiedade, fora ensinada a ela, reprimir aprocriação de Halflings; isto significaria privar os deuses de seustributosemsacrifícios?

Mas se os deuses não tinham necessidade de sacrifícios— comtodas estas questões pensou que sua cabeça fosse estourar. E poralgumarazão,sentiu-seenvergonhadapelafêmeahalfling.Nãoteriamensinadoaelaalgomelhordoqueisto,rolar,excitada,naterradeumaalameda? Certamente ela devia ser útil de uma maneira maisapropriada para alguém ou alguma coisa. E sua irmã, Kamala —Pamina já a ouvira jactar-se do insaciável desejo dos bois halflings,emboraàsvezesdevessemapanharparaquesemantivessemnotemore fizessem o que deles se exigisse. Sentira repulsa e resolvera quejamais praticaria esses insípidos esportes íntimos, mas até aquelemomento,nuncasentiraestatorturantevergonhaporsuairmã.

EradestemodoqueMonostatosaagarrara—brutalmente,semsepreocuparcomcoisaalgumaquenãofosseasuavontadenomomento.EPaminasentiu-seruborizadaeavergonhatrespassou-a.

EraistooqueesperaraoudesejaradeTamino?A imagem dele voltou ao seu espírito, vestido como ela com a

túnica branca de neófito, evitando resoluto os olhos dela e tocando aflauta que a instruíram para dá-lo, como se ele sentisse que o somcomunicariaalgumacoisaaela.Porquenãoadivinharaantes?Atúnicadeneófitodeveriatê-laprevenido,tratava-sedeumaformadeprovaou

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desafio imposto a ele; semdúvida, proibiram-no de falar com ela outocá-la, e ele fora obediente no cumprimento do seu dever. Em suamemóriapodiaverosolhosdele claramente,podiaveradorneles, ecompreendeuqueelelheimplorarasuaconfiança.Falharacomele.

Enãohaviadúvidadequefalharanasuaprópriaprova,etalvezotivesseperdidoparasempre.Comopuderatersidotãotola?Apertouaadagaemsuamão.Perderatudo...tudo,menosisto.

—Não—disseumavozatrásdela-,vocênãoprecisadisso.Viuoquevocêveioaquiparaver,ecompreender,minhafilha?

Paminavoltou-seedeparoucomSarastroempéaoseulado.—Oh,papai,porquenuncavinadadistoantes?Eporque...—De

repentesuarazãosobrepôs-seaoquetinhadiantedeseusolhos.—Porqueacidadedeminhamãeestátãopróxima?Porquequandomoravalá nunca via o Templo da Luz, ou quando caminhava pelas ruasacompanhandoasprocissões?

— Em parte porque você não está vendo a cidade — Sarastrorespondeusorrindo,eestendeusuamãoparapegaraadaga.—Pensoquenãofaráusodisto,nememvocênememmim,poisqueesteobjetoveiodoreinodeilusõesdesuamãe,eéporissoquevocêvêcoisasquenão existem aqui.Mas como o que você vê, o vê através da luz quecultivamos,oquevocêteméaverdade,enãomaisapenasoquesuamãe permite que você veja. Dê-me a adaga, Pamina, ela traz oencantamentomalignodoreinodaRainhaEstrela;vejaacidadecomoelarealmenteé.

ElaapassouobedientementeparaamãodeSarastro.Edeixandoaadaga, teve a sensação de uma névoa se dissipando diante de seusolhos. Cercando o muro que envolvia o conjunto de edifícios deSarastro,pormuitasléguas,aflorestaseespalhava,fechadaeinabitada.Bem distante dali, apontando no horizonte, as torres de uma cidaderosa, uma silhueta que Pamina conhecia bem, pois desde que alichegaraelaaviatododia.

—Mas,como...porquepareciatãopróxima?—gaguejou.— O que você via estava em sua mente; aquilo que você não

aprendeucomover—Sarastrorespondeucalmamente.—Comistoemsuamão, Pamina, se você realmente tivesse querido, podia quase terpassado desses muros para o palácio de sua mãe. Mas como a suaperspectiva era a do reino daVerdade”, o que você viu foi apenas a

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Verdade. Não perguntarei o que viu — lançou um olhar sobre afloresta, onde,minutos atrás, Paminavira os sacrificantes conduzindosuasinfelizesvítimaspelasruasdacidadedaRainhaEstrela,eexistiadoremseusolhos.Emseguida,fezaadagadesaparecernumadobradeseumantoesuspirou.

— Não precisa me contar o que viu, criança. Lembre-se, nopassado ameimuito suamãe. Pensei que ela fosse tão boa quanto ébela,epormuitosanosnãopudesuportaraidéiadetestá-laàclaraluzdaVerdade—suspirounovamenteevoltouas costasparaa floresta;ou seria para a cidadedaRainhaEstrela? Pamina não se preocupavamaisemolhar.

—Venha,minhafilha.Umadasprimeirasliçõesqueaprendemosaquiéadenãopensarmosnosenganosdopassado,amenosquesejapossívelagirpararemediá-los;eessetempoaindanãochegou.Taminocompletou com pleno sucesso o primeiro de seus Ordálios. Venha efalecomele,poisosOrdáliosquerestam,sesuasvidastiveremqueseunir, vocês deverão enfrentar juntos. E ele anseia pela visão de seurosto.

Com amão em seu ombro, Sarastro guiou Pamina pela estreitaescada.

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CAPÍTULOQUINZE—Emumacoisapelomenosvocêestavacerto—disseSarastro-,

osprimeirostestesquevocêsuperoueramtestesdecaráterbásico:decontrole,decompaixão,de resistência, e,nãomenos,deobediência, ede boa vontade em seguir ordens. Em si mesmos, eles não eram degrandesignificação;salvoporisto.Seficasseprovadoquelhefaltavamestas qualidades, você seria considerado incapaz para Ordálios maissérios.

Olhou sobriamente para Tamino, por sobre os restos de umarefeiçãofrugaldispersossobreamesadiantedeles.Taminotentavaseconcentrar no que Sarastro estava dizendo. O que não era nada fácil,pois Pamina ocupava o terceiro lugar à mesa, junto de seu pai, e,embora os olhos dela jamais encontrassem os seus, tinha o rostoenrubescido.Eledesejavaquelhefossepermitidoaomenosumabraço.

Masnumcerto sentido, talvez fossemelhorquenão.Como filhodo Imperador, nenhuma mulher, não importava quão trivial oupassageiro fosse seu interesse por ela, jamais se negara a ele. ComPamina a coisa era completamentediferente.Não sabia bempor que,masestavacertodequetinhavontade...não;tinhaofirmepropósito...depassarorestodesuavidacomela.Podiamesperarumpoucomaisomomentodosbeijoseabraçosejurasdeamor.OlhouparaacovinhanocantodabocadePaminaepensoudeimediatonoquantoelapareciaocentrodeumbotãoderosaenoquantogostariadebeijá-la,masvoltoudecididamentesuaatençãoparaosacerdote.

Paminaperguntou:—EPapagueno?Sarastrosorriu.—Pensoqueosníveismaiselevadosdasabedorianãosãopara

ele. Todavia demonstrou caráter e certa firmeza de propósito. Pensoqueelesesairábem,comPapaguenaaoseulado.Esperosinceramentequesim.

—Eutambémespero—Paminafaloucomfirmeza-,porqueamoPapaguenaeaprendiagostardePapagueno.

—Eutambém—disseTamino.—Pensoqueenfrentarasdamasda Rainha Estrela e desafiá-las transmitiu-lhemais coragem,mais doqueamimquandoenfrenteiumdragão.

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— Sem dúvida... os dragões de seu espírito e imaginação —Sarastrofalou.

—ElessãoverdadeirosaquiousãoapenasumailusãoparaefeitodosOrdálios?—Taminointerrogou.

OslábiosdeSarastrosearquearamnumlevesorriso.— Meu filho, você ainda não está qualificado para inquirir os

segredosdairmandade.Emboraarepreensãofossebranda,tratava-sedeumarepreensão,

eTaminobaixouacabeçaepôs-seaolharfixamenteasmigalhasdepãoe as cascas de frutas sobre a mesa. Mas o sorriso de Sarastrotranqüilizou-o.

—EMonostatos...?—Paminaperguntou.—FoirejeitadoparaosOrdálioseestáproibidodetornaraentrar

aquisobpenademorte—Sarastrorespondeuepareceuentristecido.—Senti muito; como lhe disse, o pai dele era meu amigo, e eusuperestimeiojovem.EsteéoprimeirodosOrdáliosparaumHalfling.Não acreditei que falhasse comoPapagueno. sem controle sobre seusimpulsos e inábil para pensar... Monostatos é muito inteligente.Halflingounão,émaisinteligentedoquemuitoshomens.Enoentantomostrounãosermaiscontroladodoqueoscãeshalflingsquevivocêobservar,Pamina.

—Nãoestoucertaseentendo—Paminafalou,eTaminotambémpareceuembaraçado.

—JáquevocêsdoispassaramporesteOrdálioespecífico,queéodaTerra—Sarastrofalavacomgravidade-,possodiscuti-locomvocês.Para o casamento de vocês ele é relevante. A primeira prova dehumanidade,aquelaquedistingueaformahumanadaanimal,eistoéverdadeirotantoparaohomemquantoparaoHalfling,éopensamentoracional,oqualcontrolao impulsoanimal.ParaoclãdoCãonaquelemomento, Pamina, nada importava a não ser o instrumento de seacasalar, e a eles não foi ensinado o controle racional do instinto, ouqualquerconsideraçãoportempoelugarapropriados.Nãopensoquefalte a Monostatos o controle racional; mas as circunstâncias foramcriadasparatestá-loeelefalhou.FalhoutãomiseravelmentequantoumsimplescãoHalfling,desprezadoporeletantoquantoporvocê...

— Não desprezo os cães Halflings — Pamina interrompeu -,lamento por eles. Mas nada melhor lhes foi ensinado, como pode

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esperarqualquercoisadiferentedapartedeles?—Sarastropareceuentristecido.—Esteéo fundamentodeminhaquerelacomsuamãe,Pamina;

nosdomíniosdelanadademelhorlheséensinado.Monostatos,comodisse, tinha inteligência para muito mais. Mas seu orgulho tornou-oincapazdeserprudente,tantofoiassimqueelereagiucomoumanimalabjeto.Orgulho...eleachouqueestavadestinadoasermeuherdeiroeseu consorte, e por isso falhou — Sarastro suspirou. — MesmoPapagueno,commetadedesuainteligência,passoupeloprimeirodosOrdálios. Não estou seguro de que ele pudesse manter suas mãosafastadasdePapaguena,nemquepudesseconfiarnela,quandoelanãoapareceu nomomento em que ele a quis. Entretanto, ele demonstroupensamento racional, bom senso e pelomenos alguma obediência.Ahumildadefoi-lheútil,masMonostatos,quepensavaquenãofalharia,rendeu-seaoorgulho.

—OqueserádeMonostatos?—Paminaperguntou.—Ouistoéum segredo de sua Irmandade, que estou proibida de inquirir, meupai?

—Nãotenhocontrole,agoraqueobani,sobreseudestino.Aindaestou muito perturbado. Ele retornará aos domínios de sua mãe, esuponhoquequandoagrandeSerpentemorrer,eleherdaráoreinoeosbensdeseupai,oquenãoépoucacoisa.NãopodendosesubmeteraosOrdálios,elhesendonegadaamaisaltaSabedoria,temoqueelefaçaomal. Embora a influência de seupai ainda exerça algumpoder sobreele; e assim é possível que ele adquira alguma disciplina e controle.NãoseioquesepassaagoranopaísdaGrandeSerpente;elevivesobaescuridão que a Rainha Estrela lançou sobre suas terras, e eu nadapossoversobaquelasombra.Sóseidizerquehouveumtempoemquea Grande Serpente era sábio e corajoso, e até mesmo penetrava nasTerrasMutáveis semmedo. Desde aquela época tenho-o vistomuitopouco.

— Num país governado por um Halfling — disse Pamina —pensoqueeledeveriaeducareensinarosHalflingsparaqueelesnãofossemmenosdoquehomens.

—Tambémeu acreditei nele—Sarastro retrucou -, antesde elecair sob a influência de sua mãe, Pamina. Penso que os Criadorestinhamemmentequeahumanidadedeviaserdessemelhante,queoclã

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doPássaroeoclãdaSerpente,emesmoosseresmaissimples,deviamser educados e ensinados na sabedoria, cada um segundo suacapacidade.Mas,infelizmente,suamãeeaGrandeSerpentenãoviramas coisas sob este prisma; para eles os Halflings foram feitos pelosCriadores para serem escravos, e nada mais. Eles são incapazes depensardemododiferente.

— Mas ele mesmo é um Halfling! — Pamina gritou. Sarastrosuspirouerecitounovamente:

— No princípio era a Serpente, e foi dito que suas mãosauxiliaram os Criadores a fazer a humanidade. Para ele, Pamina, hádoistiposdehomem:nossoclãeoclãdaSerpente.Todososoutrosnãopassam de desprezíveis animais, criados com o único propósito deservir aos verdadeiros humanos. Para eles, qualquer tentativa de sepromover o bem-estar dosHalflings é loucura sentimental... hipócritaloucura, jáqueelesnãopodem imaginarqueeunão tenhaemmenteaproveitar-me disso. Mas chega de falar neles — acrescentoufirmemente.—Vocêssaberãotudoissonaocasiãoapropriada.Falemosagora sobre os Ordálios que vocês têm pela frente. O da Terra jápassou, a prova do espírito racional, que pode ser resumida nestafórmula:Eucomandooanimaldentrodemim.Éumapartedeminhavida,maseusousenhor,nãoescravo.

— Pode-se inquirir a natureza desses Ordálios? — perguntouTamino.

—SomentequevocêdevemostrardomíniosobreoselementosdoAr, do Fogo e daÁgua. Com a flauta foi-lhe confiada uma poderosaarmamágica,Maisdoque istonãopossodizer—afastou apequenamesaelevantou-se,mostrando-seemtodaasuaestatura.

—Ao nascer da Lua vocês serão levados ao local da prova. Edesdequeestãocomprometidosumcomooutro,foideterminadoquedeverão se submeter aos Ordálios. A força de um deve servir decomplemento à fraqueza do outro — apertou com força a mão deTamino; curvou-se levemente para beijar o rosto de Pamina. —Coragem,meusfilhos.Dedicareiminhasprecesavocês;esperoquemesejapermitidodar-lhesmaisajuda.

Quandoestavaparadeixaroaposento,voltou-seabruptamenteedirigiu-seapassoslargosemdireçãoaeles.Comavoztrêmuladeumaemoçãoquaseinvisível,falouaPamina:

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—Minha filha. Tome cuidado. Suamãe não se deterá diante decoisa algumapara impedir suavitória. Eu lhepeço, não a subestime,nemdeixequeacompaixãolhetornedescuidada.Elafoiaprimeira,eatéagoraaúnicamulher,ateracessoaosaltosOrdálios.Eu...—porummomento,emboraseuslábiossemovessem,Paminanãopôdeouviroqueeleestavadizendo.

Porfimelacompreendeu.— ...cometiumerroquase fatal; subestimei seuorgulhonaquela

ocasião. Ela... — calou-se. — Não devia dizer isto. Perdoe-me. Suapessoaésagradaparamim.Masseelatentarlhefazermal...

Paminachegouaabrirabocaparaprotestar,maspensoumelhor.Podia imaginar o tremendo conflito dentro de Sarastro, e por ummomentonãosaberiadizerdequaldeseuspaismaissecompadecia.

Taminosurpreendeu-se,poralgummotivo,lembrandoaperguntadePapagueno:Oquehádebomemserumpríncipe,sevocêtemqueobedecerordenscomoqualquerpessoa?SarastroeraumRei-Sacerdote,omais alto Iniciado desta Irmandade de guardiães da sabedoria. Noentanto,adespeitodetudo,eadespeitodesuasheróicastentativasdeesconder o fato, estava dividido por conflitantes paixões e lealdadescomo qualquer outro mortal. Como Papagueno, estava pronto paraperguntar que propósito havia em tudo isto, se ser bem-sucedido naobtenção da Sabedoria através dos Ordálios não deixava o Iniciadomaissábiodoqueantesparacontrolarsuasprópriaspaixões.

Masaprenderamuitodesdequealichegara.Talvezele,nopontoemqueestava,nãofossemaissábioquePapagueno,secomparadoaohomemquetinhaasuafrente.Baixousuacabeça,nãoquerendoverainfelicidade estampada nos olhos de Sarastro. Quando ergueu seusolhos,oRei-Sacerdotejásefora,eosacerdote,queaprenderaachamardeseuguia,estavaàsuafrente.

— Príncipe Tamino — o guia falou com formalidade -, estápreparadoparacontinuarcomosOrdálios?

—Estou.—LadyPamina—oguiacontinuouformalmente-,fuiinstruído

para lhe dizer que não deve se sentir obrigada a completar essesOrdálios.VocêestálivredoCaminhodaTerra,nadamaiséexigidodasmulheres neste Templo. Pode retroceder com honra e poderá serchamada sacerdotisa e princesa.Mas a partir deste ponto não poderá

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mais retornar. Se persistir em dar um passo além, neste caso estáobrigadaaconcluirosOrdáliosquerestam,enãoseráliberadaatéquevençaouencontreamortenessesCaminhos.

Por ummomento ela olhou para Tamino, que a viu engolir emseco,suagargantafazendoumpequenomovimentosobolinhobranco.Entãoelafalounumtomestranhoeformal:

—Sacerdote,aondequerquemeusenhoreprometidoesposová,também eu trilharei esses Caminhos, embora possam levar a minhamorte.

—Queassimseja;ninguémpodenegar-lheestedireito—disseosacerdote.—Tamino,vocêentãoaceitaquePaminaoacompanheporessesCaminhos?

Tinha a pequenamão de Pamina na sua, os dedos tremiam umpouco. Uma parte de Tamino, lembrando quão tolos pareceram osOrdálios, perguntava se este não era mais um simples teste de boavontade, obediência e coragem, simulando obstáculos quedesapareceriamseeleos enfrentasse combravura.Entretanto, algumacoisanorostodeSarastro,seuvisíveltemor,lhediziaqueoquevieraatéomomentonadamaiseraqueoprelúdiodaverdadeiraprova.Quispedir a Pamina que lhe deixasse assumir esses Ordálios sozinho,enquantopermanecia emsegurança.Realmentenão sedevia exigir àsmulheresqueenfrentassemamortepelaSabedoria,equenecessidadeelastinhamdisto?Sim,aRainhaEstrelasesubmeteraaessesOrdálios,mas havia melhorado alguma coisa por causa deles?Ao que parece,apenasseuorgulhotirouproveitodeles.

EPaminaerafilhadaRainhaEstrela.Nãoseriamaisseguroseseuorgulhopermanecesseadormecido?

—Pamina...—Confiava nela ou não, amava-a ou não?Ou seráque,sobaaparênciaquelheinspiravaamoreconfiança,atemiaporserafilhadaRainhaEstrela?

Recomeçouafalaresentiusuarespiraçãofalhar,comosetivessecorridomuito:

—Pamina é quemdevedecidir. Ela éminha futura esposa, nãominhaescrava,enãotenhoodireitodeimporminhavontadeaela.Sejaqual for sua escolha, ela será boa aos meus olhos. Mas se Paminadecidirvoltaratrás,juroquejamaisareprovarei.

Sentiuosdedosdelaapertaremsuamão.Elafaloudecidida:

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—Fizminhaescolha.— Que assim seja. Juntem suas mãos, Tamino e Pamina — o

sacerdotesorriu,comosepudesseverperfeitamentebemqueasmãosjáestavamunidas.

— Entrego-os, então, ao Ordálio do Ar. Que os SenhoresGuardiãesdosVentososprotejam.

Bateusuasmãosumanaoutracomforça,eoimpactofoiodeumtrovão. Repentinamente o aposento desaparecera. A mão de Paminaainda estavaunida à deTamino;mas, envolvendo-o, o vento rasgavasua roupa, embaraçava seu cabelo, gélidas correntesde ar circulavamentre eles como num tornado. Tamino, num gesto de instintivodesespero,agarrouPamina,sentindoqueoventoaarrancariadele.

— Pamina! Segure-se emmim com força— gritou, mas tinha aimpressão de que os ventos abafavam sua voz.Apesar do cerco dosventos,sentiuosbraçosdelaenvolverem-noeprenderem-sefortementequando giraram, exaustos, empurrados violentamente em diversasdireções.Naescuridãodasnuvenstempestuosasnãopodiamvercoisaalguma:umanévoaescuraecompactacobria-os.

Houve um momento em que as nuvens se espalharam e elespuderamverque,abraçadosemmeioàviolênciadovento,estavamemcima das montanhas, sobre um estreito penhasco numa alta encostaíngrime,ondeosventoserammaisforteseturbilhonavamjuntoaeles.Mesmoquandotentaramrecuperarumprecárioequilíbrio inclinando-se contra a rocha, o vento arrebatou o vestido de Pamina, fazendo-ovoarcomoummonstruosopássarobrancobatendosuasasas, lançadoparalongeatravésdocéuagitadopelatempestade,deixando-aapenascom sua camisa, tremendo.Com toda aquela rajadadevento, pareciaqueseriamarrancadosdeondeestavamearremessadosaoabismoderochaspontiagudas,quepodiamavistarláembaixo.

—Onde estamos?— Pamina gritou no ouvido de Tamino,masainda assim ele quase não podia ouvi-la com todo aquele ventouivando.—Oqueaconteceu?

“OordáliodosVentos,”Taminopensou.EoqueeraoOrdálio?Conseguiremsairvivosdaliantesquefossemlançadosaopenhasco?

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CAPÍTULODEZESSEISAmanhecia. Papagueno passara a metade da noite vagando,

depoisqueossacerdotesvieramelevaramTamino,meioesperançosode encontrar Papaguena a cada curva dos jardins. Por fim,desconsolado,desesperançado,achouumaárvorecopadaeenroscou-senasfolhassecasembaixodela.Desejouestaremumapequenafloresta.Oquetinhaelecomsabedoriaetodasaquelascoisas?

QuedireitotinhadeesperarqueSarastromantivessesuapalavra?As damas da Rainha Estrela jamais mantiveram a sua. Eles lheprometeramtodootipodecoisas,enoentantonãosesentiamelhordoque antes. Ele mesmo não fora capaz de manter sua promessa. Avisaram-noparanãodirigirapalavraamulheralguma,eadespeitodeseu corajoso discurso feito a Tamino, onde dizia que as damas daRainhaEstrelanãoerammulheresmasdemônios,percebeuquenãosesaíratãobemquantodevia.RiraebrincaracomavelhasenhoraquederepentesetransformaranaprópriaPapaguena,eentão,porterrompidoo regulamento e falado com ela, eles a arrebataram e provavelmentejamaistornariaavê-la.

De qualquer modo ele era apenas um Halfling, só servia comoescravo.Deram-lheuma chance e elenão foradignodela; quedireitotinha de lamentar-se? Teve a chance de acompanhar Tamino numaverdadeiraaventuraenãoesteveàaltura.Enroscouseucorpinhonumadepressãodefolhasmortase,porfim,caiunosono.

Quando acordou, o dia estava nascendo. Viu dois jovenssacerdotes varrendo um caminho, e admirou-se porque eles nãousavamservosHalflingsparafazeristoporeles.Quissaberseelesnãogostariamde terumbomservo fiel. isto era tudoque sabia fazer, e aRainha Estrela provavelmente não o aceitaria de volta caso ousasseretornar. Esperara que o príncipe interferisse a favor dele, mas oPríncipe Tamino partira para tratar de seus próprios negócios epossivelmenteestavaembuscadesabedoriasabe-se láonde,semumpensamento para Papagueno, que jamais quisera vir a este lugar.Sentiu-se todo empoeirado,muito cansado emoídopor causade suacamanomato,eestavafaminto.

Levantou-se,sacudiu-se,ruflouacristaemplumadadesuacabeça.

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Oquefariaopríncipe?Nãoqueopríncipesepreocupassecomcoisascomocomidaeabrigo,maseseelesepreocupasse,oquefaria?Estavaentregueasipróprioaqui;teriaquetiraromelhorpartidodasituação.Saiufurtivamentedeseuabrigonosarbustos.Osdoisjovenssacerdotestinham acabado de varrer o caminho e desapareceram. Papaguenomergulhouacabeçanaságuasdeumafonteesentiu-semelhor;depoisque sacudiu as gotas de água de sua crista, alisou a túnica e notou,penduradosnacintura,ossinosmágicos.

Não posso ter fracassado tanto assim, pensou, ou eles jamaisteriamdeixadoesteobjetomágicocomigo.

Sentoude pernas cruzadas sobre a grama e pôs-se a examinar aarmação trabalhada, a prata dos sinos e os fios delicados que ossustentavam. Lembrou-se de como Monostatos e seus guardas seafastaramquandoelesostocou.Eantes,quandoaosomdossinos,osMensageiros ou anjos, ou seja lá o que eles fossem, aparecerame lhederamcomida.Não,istoaconteceuquandoaflautafoitocada.

Mas talvez eles aparecessem quando certa música fosse tocada.Bem que poderiam ter-lhe dito o que devia fazer a seguir, se deviaretornaraosdomíniosdaRainhaEstrela,ousepensavamqueSarastroeos sacerdotes tinham idéiadoque fazer comumhonesto trabalhador.Seusdedospairaramhesitantes,sobreossinos;emseguidacomeçouatentartocaraáriaqueTaminotiraranaflauta.

Senãoquisessemqueostocasse,nãoosteriammedado.Ossinosrepicaram,produzindoumsomalegre.—Fizeramcom

quePapagueno tambémquisessedançar.Eelecomeçouapensarqueossinossótocavamoquequeriam,nãooqueeletentassefazê-lostocar.Então uma leve brisa elevou-se do chão. O sol ofuscou por ummomento os olhosdePapagueno; na luzdourada, repentinamente ostrêsMensageirosapareceramdiantedele.

—VocêqueéoSenhordoelementoTerra,irmãoHalfling—disseum deles... ou a curiosa fala deles era uma mistura de canto emuníssono? Como sempre, não pôde vê-los claramente porque suasformaspareciammudara todo instante.—Estamosaqui, seus irmãosdoelementoAr,paralheprestartodaajudaquepudermos.

Papaguenocoçouacabeça.—Doquevocêsmechamaram?—perguntou,confuso.—VocêdominouoelementoTerra—disseramosMensageiros-,

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portanto, com toda razão, pode dispor de tudo que pertence aosdomíniosterrenos.

Papaguenopiscouerefletiu.Entãofalou:— Suponho que comida seja algo tão terreno que vocês podem

encontrar.Quetal,então,umpoucodisso?Emverdade,prefirofrutas,masseeusótivervegetais,daquelesquebrotamnaterra,entãoprefirobatatas,cenouraseamendoins.Esevocêsacharempossívelalargarumpouco as fronteiras dos domínios, incluam um copo do elemento daÁgua. Afinal, cascatas e nascentes estão incluídas na terra, não émesmo?

Por um momento pensou que o vento estivesse produzindodissonânciasnossinosmágicos;maslogopercebeuqueosMensageirosestavamrindo.MasnãocomoasdamasdaRainhaEstrelariam;elesnãoestavam caçoando de sua ignorância. Ao contrário, o riso delestransmitia a compreensão de que tudo no plano da existência eramotivoparabomhumoreriso.

—Nós traremos.Pois comida ebebida sãoavidado corpo, eocorpo pertence ao elemento da Terra, irmãozinho. Você se mostrousenhor, porque seu espírito lhe proclama humano, senhor do animalinterior.Dê ao animal apenas o que deve, Papagueno.Não prefeririadividir sua comida com o camarada que você conquistou por suasuperioridade?

Papaguenofalou,engolindoemseco:—Nãoentendooquequeremdizer.— Você demonstrou domínio sobre o primeiro elemento —

falaramosMensageiros, naquelavozquepareciaum canto -, e assimmereceuodireitoàfalahumanaemaisqueafalahumana.Papagueno,vocêsabequemnóssomos?

— Vocês me disseram que eramMensageiros. Penso que vocêssãoanjos—respondeuPapagueno.

—Comovocê,nóssomosHalflings—umdosMensageirosfalou,ePapaguenopercebeuquequemfalavaeraummeninomeiocrescido,compenas na cabeça como ele próprio.— Somos os espíritos doAr,masnãopodíamoscontrolaroelementodaTerra,nempodíamosvoar,porquenossasasasnãonossustentavam—aondulanteformadouradavoltou-separaexibirlongasasasrastejantes,quependiam,rastejanteseinúteis, atrás de seu corpo; e à medida que falava se entristecia. —

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Éramos os menos úteis de todos os Halflings inúteis; então, Sarastrocomseupodermágicofez-nosparticipardoAr,edessemodopodemostransportarmensageirosecontrolarocantomágico.EoelementodoArquemconduzamúsicaeodesejo.Diga-nos,irmãozinho,vocênãotemoutrodesejoquenãosejacomidaebebida?

Papagueno piscou. Imaginou que também estivessemescarnecendo dele, como as damas da Rainha Estrela o fizeram. Seusolhosestavamcheiosdelágrimas.

—Bem,sim,tenho.Masnãohánadadebomemsefalarsobreele,porquenãopossorealizá-lo.Rompitodasasregraseachoquenuncaavereioutravez.

Orisosoavacomoseussinosdourados,ePapaguenoderepentepercebeuqueelesnãoestavamrindodele,mascompartilhandooriso.

—Irmãozinho,vocêéumtolo—umdosMensageirosfalou.—Oquehádebomemsepossuirafalahumana,senãosefazusodelaparapediroquesedeseja?OelementodoArgovernanãoapenasamúsica,mastambémafalaeocanto.Vocênãoteveoquemaisdesejou,porque,nasuahumildade,irmãozinho,vocênãopediu.Toqueagoraseussinosmágicos,Papagueno,evejaquemlhetraráobanquetequecelebranãosóacomidaeabebida,mastambémaplenitudedavida.

Papaguenopegouossinosecomeçouatocarumaária;primeiroimprovisou a partir do som de seu apito, depois fê-los repicaralegremente pela manhã. Não se deu conta de que os Mensageiroshaviam desaparecido até que ouviu um alegre e pequeno assobioparecidocomoseu.Papaguenaestavadiantedele.

Tododisfarce sumira, Elausavauma simples túnicaverde; e nacristaemplumadadeseucabelohaviaumaguirlandadefloresbrancas.

—Papagueno...—falousuavemente.Então Papagueno entendeu; ele a viu através das lágrimas que

inundavamseusolhos.Gaguejou:—Pa-pa-pa-guena?Elaoarremedougentilmente,comumsorriso:—Pa-pa-pa-gueno?—eestendeusuamão.—Tenhoumpoucodovinhoquevocênãotevechancedebeber,e

frutas e nozes, na minha casinha aqui perto. As sacerdotisas medisseram que posso levar você lá, pois será nosso pequeno ninho—sorriutimidamenteparaele.

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—Quervir?—Nãoprecisouesperarpelarespostadele.Elaestendeusuamão

eeleapegou;juntoscorrerampelafloresta.

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CAPÍTULODEZESSETEMesmo agarrada a Tamino, esgotada pela força dos ventos que

ameaçavam arrastá-los do penhasco em direção ao abismo, ondeencontrariam a morte despedaçados contra as rochas lá embaixo,Paminaestavacônsciadequeestaeraaprimeiravezqueseabraçavam.Anteriormentesentiraapenasoleveerespeitosotoquedoslábiosdeleemsuamão, e,pensouaterrorizada, este talvez fosseoúltimoabraçonestemundo.

Papai me avisou de que estes Ordálios poderiam me levar àmorte.Pelomenos,seeumorrer,morrereinosbraçosdeTamino.Masprefeririavivernosbraçosdele.

Agarrou-semaisfirmemente,buscandoproteçãocontraosventosnoparedãodopenhascoatrásdeles.NummomentodecalmariasentiuTaminopuxá-lacuidadosamenteparao interiordeumpequenonichonarocha.

—A flauta!—elagritou, tentandoaproximar sua cabeçaomaisque podia do ouvido de Tamino, para que ele a ouvisse, apesar doselvagem bramido dos ventos. —A flauta... a mágica arma doAr...toqueaflauta,Tamino.

Viu no rosto dele a expressão de descrença no que dissera.Todavia buscando a proteção das rochas com uma das mãos, lutavapara libertar a flautada sedaqueaprendia a sua cintura.Tão logootecido foi desatado, o vento o levou para longe, fazendo-o voar pelovastocanyonentreospenhascos,planandocomoumpássaro,aslongaspontas agitadas debatendo-se nos ventos. Tamino esforçava-se pormanteraflautaemseuslábios,poisasrajadasameaçavamarrancá-ladesuas mãos. Colou-se o mais que pôde às rochas, pressionando seusombroscomtodaaforçacontraoparedão.Paminanãotevecoragemdepermanecer a salvo no nicho; arrastou-se para fora, sem ousar olharpara baixo, tentando dar-lhe cobertura com seu corpo, para que elepudesse posicionar a flauta e soprá-la. Ele gesticulou irado para ela,sinalizando imperativamente para que voltasse ao abrigo da rocha, esemdemora;masPaminaoignorou.

—Toque!Toqueaflauta!Mesmo protegido pelo corpo dela não lhe era fácil posicionar a

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flauta nos lábios, e Pamina, tremendo, arrepiada, sentia a lentidãoagoniantede cadamovimento.Ovento sugavao arde seuspulmõescom sua rajada glacial, e a primeira tentativa de soprar a flautaproduziuapenasumsonzinhotênue,perdidonosventos.

Masfinalmente,umamelodiasuaveeserena,tãotranqüilaquesópodiaserouvidaaospoucossobreo furiosoestrondoda tempestade,começou a soar. A medida que Tamino continuava a tocar,pressionando-secontraoparedãocomtodaaconcentraçãodequeeracapaz, Pamina começou a ouvir a melodia, a principio de maneirafragmentada,mas logo a seguir, de forma cadavezmais contínua, aomesmotempoqueosventosarrefeciam.

Depois de certo tempo, o som da flauta começou a dominar osventos;oviolentofuracãotransformou-senumabrisasuave,eTaminopôde finalmente relaxar e baixar a flauta. Pamina respirou fundo eolhouaoredor.

Estavam numa rocha alta e estreita.Abaixo deles, um penhascoinclinado debruçava-se a mil metros em direção a um filete de riopálido e tremeluzente, quase invisível. A poucos metros de ondeestavam, a fina camada de rocha fendeu-se, transformando-se emcascalho. Acima deles as montanhas elevavam-se em picosintransitáveis. Ventos tempestuosos ainda batiam sobre o rochedo,emboranão fossem fortes o bastanteparadesalojar osdois jovens aliabrigados.

—Eagora?—disseTamino.AvozdePaminasoouvacilante.—ParecequedominamosaomenospartedoelementodoAr.Mas

comofaremosistomelhor?Tamino rastejou com cuidado até o ponto extremo da estreita

fenda em frente à rocha, ajoelhou-se e observou, enquanto Paminaprendiaarespiração.

—Não há caminho algum— disse finalmente.—Não imaginocomopudemossubiratéaqui,nemdequemodo.Penseiquehouvesseumcaminhosobreaquele...—apontou,inclinando-setantoquePaminasentiu o ar prender-se-lhe à garganta. — Mas mesmo que houvesse,teríamos que descê-lo primeiro. Não há espaço para pular, nemcaminhoparasubir..,Openhascoéquasetãolisoquantoovidro.

—Devehaveralgumcaminho—Paminaretrucou.—Seiqueos

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Ordálios são perigosos. Mesmo assim há muitos na Irmandade quepassaramporeles,minhamãemesmoconseguiuvencê-los.Perigosossim; ameaçadores da vida como constatamos. Mas não foramconcebidoscomoimpossíveis;comoseresolveriam?SeosOrdáliossãopossíveisparaoutros,devehaveralgumasaídaparanós.

Taminorefletiuporummomento.—Creioquevocêtemrazão,masédifícilimaginarqualaescolha

quefaremos.Seráqueesperamquecriemosasasesaiamosvoandoparademonstrarnossodomínio sobre o elementodoAr? Se assimé, temoqueSarastro tenha superestimadominhas capacidades,poisnãonascinum clã de feiticeiros, e jamais ouvi dizer que em minha famíliahouvessealguémcompoderesmágicosdequalquertipo.

—Seesperavamqueexibíssemosqualquerpodermágico—dissePamina, é difícil acreditar que não nos tivessem ensinado, primeiro,comousá-lo.

Taminopensava;aflautaestavaemsuamão.Porfimdisse:—AúltimacoisaqueSarastromedisse foiquea flautaerauma

armamágicamuitopoderosa.Elacontrolouosventoseprovavelmenteimpediu que fôssemos varridos deste lugar. Acho que devo tocá-laoutravezeveroqueacontece.Ela jánossalvouumavez,eninguémnosdissequedevíamosusá-laapenasumavez.Sesetratadeumaarmado elemento doAr e não nos foi dada outra... talvez devamos usá-laparadominá-lo.

Pôsaflautaemseuslábiosecomeçouatocar.Primeirotocouumadançalentaemajestosa,enquantoPaminaolhavanadireçãodospicos,lembrando-se do vestido que voava como um pássaro. Tornar-se umpássaro, ao queparecia, era aúnicamaneirade sair dali. Ser lançadoaltosobreessespenhascoselementais,queoutromododeescapardali?

Tamino dissera que sua família não tinha poderes mágicos, eninguémdeseuclãerafeiticeiro.MaselaeraafilhadaRainhaEstrela,eseupaieraomaispoderosofeiticeirodeAtlas-Alamésios.

A música da flauta tinha mudado. Parecia ser responsiva àscorrentesespiraladassobreospicos,mudandoderitmoeformacomoos ares que Pamina via, flutuantes, quase visíveis. Ela esticou seusbraços e não se sentiu de todo surpreendida ao ver longas penasdesenvolverem-seemseusdedos.Seucorpopareciavestidocompenasnegras;suasgarrasfirmavam-sesobrearocha.Taminorecuouquando

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elaestendeusuasgarrasparaele.Perscrutou quase todo ar visível, as colinas de vento, asmassas

contráriasde ar quente, as nuvens espalhadasvoando sobre ospicos.Agoraquepossovoarlivre,porquemesobrecarregariacomumfraco?Seu espírito se elevava e alcançava as alturas; o vento a libertava daestreita rocha e ela se deixava levar, com a vertiginosa alegria dedominar o Ar. Se ele não podia segui-la, azar o dele; não seria oprimeiroafracassarnosOrdálios.

Entãoumalembrançapuramentehumanaatingiu-a.Comprometi-meatrilharestescaminhosaoseulado,eelenãome

abandonou. No espírito do pássaro havia uma recordação: Tamino,empurrandosuafrágil formahumanaparaasegurançadonicho,paraqueelanãofossevarridadeencontroàsdistantesrochasefosseatiradavivacontraelas.

Ainda tinha o espírito tomado pelo êxtase volúvel dos ventos,suas asas ansiavam pela liberdade do céu. Sabia que devia agirrapidamente, ouo espíritodopássaroque assumira sobrepujaria suamemóriahumana,eelanãomaisseriacapazdelembrar-sedeTamino.Movimentou os lábios— seu bico?—mas tudo que lhe veio foi umensurdecedorgritodeáguia.Bateusuasasasfrustrada.Perderaopoderdafalahumana.Abriusuasgarrasparaapanhá-lo,maseleretrocedeutomadodesúbitoterror,eelatemeuqueelecaíssedopenhasco.Nestaformanãopodiamsecomunicar,eopenhascocertamentenãoeralargoobastanteparaabrigarambospormaisummomento.

Se ele ao menos pudesse lembrar-se de confiar na flauta outravez...

Quasecomoresposta,Taminolevouaflautaaoslábiosecomeçouatocar.ParaossentidosaguçadosdePamina,sooumuitoalto;eentão,atônita, ouviu palavras nos sons. Mas não havia com que sesurpreender,pensou;aflautaeraamágicaarmadoelementodoAr.

— Pamina, minha amada, é você, é mesmo você? Voe para asegurança, meu amor. Não possuo tais poderes mágicos, mas pelomenos,seeutiverqueempreenderaquelaterríveldescidadasrochas,nãoprecisareitemerporsuasegurança.Talvezvocêpudesseficarcomaflauta;seeunãochegarasalvoaochão,pelomenosaflautanãocairácomigoenãoserádestruída.

— Não! — soou num longo grito agudo. Não ousaria bater de

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novosuasasas,poiscorriaoriscode,assustando-o,derrubá-lodoaltodopenhasco.Esticousuasasas,sentiu-ascrescermais,mais,sentiuseucorpo crescer, e com toda a força de seu coração, furiosa de tantafrustração,enviou-lheasseguintespalavras.

— Tamino! Agarre-me, segure-se em meu pescoço, com força.Teriamaspalavraschegadoatéele?Elesecurvava,arrancandoumatirade sua túnica; como ela, perdera seu manto para os ventos.Rapidamente passou-a ao redor da flauta e atou-a firmemente a suacintura.Emseguida,emboraparecesseamedrontado,subiuemPaminaeagarrou-seaoseupescoço.Elanãopôdesentirsuasmãosporcausadaspenas,masquando julgouqueele seagarraracom firmeza,abriusuaslongasasaseelevou-seaoscéus.

EleeramaispesadodoquePaminapensara.Sentiu-secair,maisemais,efreneticamentepôs-seabatersuasasasparaganharaltura.Entãoolhou para baixo e, com uma visão monstruosamente ampliada, viutodos os arredores deAtlas-Alamésios esparramados diante de si. Láestavamda cidadede suamãe até o Templode Sarastro, os desertosardentesdasTerrasMutáveis,ondenuncaestivera.

Aprincípiopensouqueeraumanuvematravessandoocéu,umalonga e negranuvem como asas estiradas.Voou até a nuvem, que seabria transversalmente sobre a cidade de Sarastro, como uma extensasombra vulturina, e agora já quase esquecera o peso de Taminopenduradoemseupescoço.Nestemomentoouviuavoz.

—Pamina,Pamina,minhaqueridacriança...A voz de sua mãe; e então percebeu que a nuvem parecia um

vestidonegroaberto,atrásdeumpálidohaloqueconstituíaasfeiçõesamadas;erasuamãevoandoaoseulado.Voavamjuntas.

—Vocêaprendeuavoar;vocêassumiusuaherança,comominhafilha e herdeira,meu bemmais precioso. Venha, voemos juntas paraminhacidade.

O longo hábito de obedecer fez Pamina virar suas asas naqueladireção.

—Oqueéessacargaordináriaqueestálevandoemseupescoço?Livre-sedela,minhacriança,vocênãoprecisadistoemminhacidade.Mas dê-me a flauta primeiro. Ela me pertence; me enganei em dá-laàquelejovemfalsoquejurousalvar-lheetrazer-lhedevoltaparamim.Sarastronãotemomenordireitosobreela.

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—Não?Mas foi ele quema criou,mamãe, comoamágica armaque é, foi você quem a rouboudoTemplo quandopartiu.—Não seperguntousobrecomovieraasaberisto.Ouviuumgritodeáguia,maseraavozdesuamãe,cheiadeódio;eapróximacoisaquepercebeufoique se voltara e estava fugindo, escondendo-se na sombra damonstruosanuvem-pássaro,queseguianasasasdatempestade.OpesodeTaminoaindase faziasentiremseucorpo,deixando-acansada,aoponto de não mais poder mover-se ou voar tão livremente quantopoderia.

—Pamina, deixe-o!Deixe-o cair! Isso fica entre nós duas,mãe efilha,elenãofazpartedenossadiscussão...

— Mas ele é meu futuro marido — tentou dizer, e ouviu aspalavras apenas num sinistro gritodepássaro.Nãopodia enfrentar elutar com sua mãe nos domínios doAr, próprios da Rainha Estrela.Precisava,dealgumamaneira,pôr-seemsegurança.

Voltou-se rapidamente, fugindo de volta para a sombra dospenhascos, tentando encontrar abrigo. Foi baixandopara o interiordeumagargantaentreasmontanhas,buscandoosmarcosquealevariamaosdomíniosdeSarastro;emseusouvidosavozdesesperadadesuamãe.

—Pamina,Pamina,minhafilha,porquevocêmetraiu?Suas asas estavam cansadas de tanto baterem, cada movimento

desfechavamgolpesdoloridosemseucoração.OpesodeTaminoeraumacargaatormentadora,epareciaquehaviaalgomais.Aflauta,cujopeso a oprimia, a flauta—desprendendo faíscasdolorosasde luz—pesada,umarocha,maispesadaquetodoocorpodeTamino.Agitou-semagoada e ouviu o grito de terror emitido por Tamino. Não, nãoousava tentar libertar-se, devia suportar esta carga que a oprimia, atéquecaíssecomopedranomar.Podiaveromarembaixodela;seráquecairianomaresubmergiriacomTaminoemsuasprofundezas?

Agoravoavanasombradagrandenuvemqueexibiraorostodesuamãe, uma nuvem negra escurecendo seus olhos, e viu pequenasmanchas de luz pálida dentro de seus olhos e cérebro.Mas uma luzbrilhou diante dela, a luz do Templo de Sarastro. Bateu suas asasdesesperadamente;asombraestavaquasecobrindosuaformaemfuga,e ela sabia que se fosse tragada, jamais escaparia.A sombra pairousobre ela, pronta para atacá-la. Ela voou sobre a faixa de luz, e

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repentinamenteasombradesapareceu.Voou baixo e suas garras tocaram o terraço onde estivera antes

com a adaga de suamãe namão, e vira as procissões sacrificiais nacidade da Rainha Estrela. A forma de pássaro evanesceu, e Paminadeixou-secairaosolo,semforças,ocorpodeTaminoamortecendosuaqueda. Nem mesmo sentiu as mãos do sacerdote pegando-a,levantando-a.

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CAPÍTULODEZOITODescansavameserecuperavamdoOrdálio.Taminoagoraestava

um pouco temeroso de encarar Pamina; em sua mente ainda via aterrível mudança que se operara nela, quando de asas estendidas setransformara num grande pássaro, mudando sempre, tornando-semaior, até que estivesse grandeo bastantepara, arrebatando-o, tirá-lodos penhascos em segurança. Neste instante não sabia como tiveracoragem de agarrar-se a ela durante aqueles momentos de pavor,quandoabraçavanãoo corpodePamina,masa terrível formadeumpoderosoraptor.

Olhando-a agora era impossível imaginá-la daquele modoassustador.Comodominadoresdedoisdosquatroelementos,foi-lhesditoquenãoprecisariammaisusar as túnicasdeneófitos, e apósumbanhovestiramPaminacomumtrajedesedabrancaegrossa,presoàcinturaporumcordãotrançadomarromeazul;coresque, foi-lheditopelosacerdotequetambémlhepuseraumcintocomcoressemelhantes,eram próprias dos elementos da Terra e do Ar. O cabelo longo dePaminaforaescovadoecomelefizeramumaúnicatrança;elapareceumuitojovem,suasfeiçõessuavesaindainfantis.Embora,enfrentandooOrdáliodoAr,tivessesemostradoumapoderosafeiticeira.

—Não sabia que você podia fazer aquilo... transformar-se numpássaro—elefaloureceoso.

Osorrisodeladetãolevefoiquaseimperceptível.—Nemeu.— Penso que você deve ter vencido o Ordálio, enquanto eu

fracassei, Pamina. Você me salvou, quando não havia nada que eupudessefazer.

Osdedosdelabrincavamcomo cordãoemsua cintura, idênticoaodele.

—Nãopensoassim.Nãopoderiaterfeitonadasevocênãotivessetocado a flauta.Não fosse isso, teriamorrido lá comvocê.VencemosjuntosoOrdálio.Estavaprevistoparanós.

Sentiu-se humilhado ante os inocentes olhos azuis. Ela era umapoderosa feiticeira; e ele, oque era?Porummomentopensou senãoestariacommedodela,afilhadapoderosaRainhaEstrela,trazendoem

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siformidáveispoderes.Nãoimaginaraqueelativessetantaforça,tantopodermágico.

NoentantoelaeraaPaminaporquemseapaixonara,antesmesmode conhecê-la pessoalmente. E se devia de alguma maneira adquirirpoderesmágicos ou encantatórios antes de amerecer, osOrdálios seconstituiriamnoprimeiropassorumoaesseobjetivo.

Mas estava assustado. O primeiro Ordálio, o da Terra, forasimples;mas oOrdáliodoAr levara-o tãopróximodamorte que elequasenãopodiaacreditarqueaindaestivessevivo.DesdequetiveradeenfrentarodragãonasTerrasMutáveisnãosentiatantomedo.

OlhouparaPamina.Parecia calma,mas se lembroude comoelatremianaformadepássaro,quandoseagarrouaela.Pelomenosforaeducado comoumpríncipe, aprendera a caçar, a lutar e a enfrentar operigo,eelaeraumajovemdeeducaçãosuperior,queatéomomentonãotiveradesofrerummínimodemedoouperigo.Todoseucoraçãoardiadedesejodeprotegê-la.

Ele lheofereceraa chancedenãoprosseguir, sobapromessadejamaisacensurar,eelarecusou.Nestecaso,deviaassumirsuaopção,ejuntosenfrentariamosOrdálios.Afinal,nãolamentavaportê-laaoseulado.

Queriateracoragemdeabraçá-la.Assimofizeraparaprotegê-ladorigordosventos,eaindaoutravez,seminibição,quandoelaotirou,na formadepássaro,do altodopenhasco.Mesmoagora a lembrançadaquelevôovertiginosooaterrorizava,transportadocomenjôosobreoabismo do espaço vazio, nuvens e topos de montanhas girandovertiginosamenteláembaixo.Agarrara-seaela—guardavaumainsanalembrançatáctildesuasmãoscheiasdepenaseplumas;desejavatocarseu corpo quente sem aquelas coisas, sentir sua respiração suave,apenaspara se assegurardeque tudonãopassaradeuma ilusão,deque ela ainda possuía, na realidade, o corpo quente da verdadeiraPaminaqueeleamava.

—Eagora?—pensouemvozalta,ecomosesuaperguntativessesidoouvidaemalgum lugar (quemsabe talvez sejaassim, refletiu), aportaseabriueoguiaentrou.

—Jáserecuperaram,meusfilhos?Poderãoterumpoucomaisdetempo se assim o desejarem; não exigiremos que enfrentem ospróximosOrdáliossemquetenhamserecuperadodoúltimo.

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Tamino sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Que novasprovaçõesosesperavam?Sejaláoquefosse,nãosetornariamaisfácilcomoadiamento.

—SePaminaestápronta,estoupreparado.Percebeuumrápidobrilhoquandoelalevantouosolhos,eneles

viuomedo.MostraratantaforçaepodernomaisrecentedosOrdálios,quenãoocorreraaelequeelatambémpudesseestarapavorada.

Dequalquer formamostraracapacidadedeação;elemesmonãofizeracoisaalguma. Jamais levariaemconsideraçãodeque talvezsuaatitude não se baseara na força e na confiança,mas no desespero doterror.

Todaviaavozdelasooucomoasua.—Istonãosetornarámaisfácilcomoadiamento.Estoupronta.— Então que assim seja — o sacerdote elevou suas mãos em

evocação.—Entrego-osaoOrdáliodasÁguas.Tamino fez um esforço para não recuar quando o guia bateu

palmas.Nestemomentonãoseouviusomdenenhumtrovão;apenasosilêncio e um som muito suave, o qual, horas mais tarde emretrospectiva,Taminoidentificou-ocomoumamúsicadechuvacaindo.

Desta vez não seria surpreendido; debatia-se entre ondas, comáguanosolhos,naboca,atordoadoeaturdidopelobarulhoviolentodarebentação. Sem dúvida. O Ordálio doAr lançara-os, despreparados,aospenhascos,ondesofreramoassaltodasrajadasdevento.Suabocaestavacheiadeáguasalgada,enoreflexodo impactoeleengoliuumpouco,queemseuspulmões,osufocou.

Bateuaspernaseestavanadando.AtrásdelePaminatambémsedebatia, lutandopara semanterà tonada rebentaçãodasondas;numdesviode rumo alcançou-a e puxou sua cabeçapara a superfície. Elaofegava,tossia,mas,conseguindobateraspernas,logoestavanadandoatrásdele.Seucabelomolhadocaíasobreosolhos,eelaosacudiu,comdificuldade,paraafastá-loeassimpoderenxergar.

—Querosóavisá-lo—ela falou, tossindo,eele surpreendeu-sedepoderouvi-latãoforteeclaramenteapesardobarulhodasondas—de quemesmo tocando a flauta nãome transformarei em peixe paralevarvocêparaterra!

Taminoviu-serindo,cuspindobolhasd’águadesuaboca.— Seria a minha vez de me transformar, mas temo que jamais

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dominarei a arte da mudança de forma. Qual é a prova aqui? Vocênadariaatéapraia?

—Quepraia?Tamino,vocêsabetantodistoquantoeu.Realmentedesejaria que nos deixassem saber o que estão testando em nós! —Pamina tossiu de novo; sem dúvida também engolira água nosprimeirosmomentosdesusto.—Nãopossoconceberqueaprenderounão a nadar diga respeito ao nosso progresso espiritual. Está com aflauta?

Taminotateouacinturacomumadasmãos.—Estáaqui.Maselaestáensopada—virou-secomcuidadopara

boiar,etentoutiraraflautadacintura.—SendoamágicaarmadoAr,qualseriasuautilidadenomeiodasÁguas?

—Nãosei.Massenãofosseintencionalqueativéssemos,nãonosteriampermitidotrazê-la.

Isso fazia certo sentido, elepensou.Mas como tocá-la, flutuandosobre as águas, e o que aconteceria se o fizesse? Hesitou, não sentiavontade de tentar algo errado. Como Pamina, não acreditava numasimples provade natação, tanto quanto não acreditava que oOrdáliosobre os penhascos fosse um teste de sua habilidade em escalarmontanhas.Portanto,deviahaveralgomaisnesteOrdálio.Nãopodiaimaginaroqueseria.

—Vocêsabenadar?—eleperguntou.—Nãoquesejaimportanteparamimvocênãosaber—acrescentou,suamãolivreaindanoqueixode Pamina.—Mas se você realmente sabe nadar, teremos umpoucomaisdetempoparapensarnoqueesperamquefaçamos.

—Oh,sim,seinadar.QuandoeuerapequeninativeumacadelaHalfling como ama, e elame ensinou antesmesmode eu aprender aandar. Pobre Rawa — Pamina acrescentou. Tamino, percebendo atristezano rostodela,desejou saber emqueestavapensando.—Nãoprecisa me sustentar à toda, Tamino, nado tão bem quanto qualquerlontraHalflingouqualquerpovodomar.

Deixou-air,umpoucorelutantedeprivarsuamãodestefugazetangencialcontatocomseucorpo.Suamãemorreraantesqueelefossecapazde lembrar-se de como segurava amãodela nosmomentos demedo,massentiaqueumareconfortantecomunicaçãolheforanegada.

Todavia,casosobrevivessemaesteeaosoutrosOrdálios, teriamtodavidaparapartilhar suas lembranças.A flauta, emsuamão, tinha

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queserachave.Umaouduasvezes,quandoausara,osMensageirosapareceram. Talvez o teste deste Ordálio consistisse meramente emsaberquandochegariamaoslimitesdesuascapacidades—ecomoistoeraverdadeironestemomento!—equandopediriamajuda.

Tentou firmar-se sobre a água, para se livrar das ondas quequebravamsobreeleepôsa flautaemseus lábios.Quandoasoprou,saiu um som borbulhante, que para ele estava tão longe de umevocaçãomágicacomonenhumoutroquejamaisouvira.

Masconseguiuextrairumsommelhordaflautae,decertomodo,tocar, não propriamente uma melodia, mas algumas notas dispersasque,aospoucos,setransformaramnumapequenaáriaondulante.

Nos primeiros minutos nada aconteceu. Sentiu-se bastante tolo,tentandofirmar-senaáguaesoprandoumaflautanomeiodooceano.Asondascontinuavamasequebrarsobreseuqueixo,eacadaminutopelomenosmolhavammaisaflauta,apontodaáriamorrernumsomgorgolejante.

Então, muito tempo depois, sobre o som das ondas que sequebravamsobre ele e a flauta,Taminoouviualguma coisa,umsomdistante quase se assemelhando com o de vozes. Cantante. Um somsibilantemeioparecidocomopequenoassobiodePapagueno,masdealgummodo,sutilmentediferente.Ouviu-seumsomagudoeumrostorompeu a água a nãomais que duas braçadas de Tamino. Um rostolargo, quase tão bigodudo quanto o rosto de um gato, e levementepeludo, no nariz achatado e largo, líquidos olhos negros cobriam-secompestanasnegrasebelas.

—Umafocahalfling—Paminamurmurou.Eemvozaltadirigiu-seaela:

—Podenosguiaratéaterra,irmãdomar?Tamino não fazia idéia de como ela podia dizer que aquela

criaturamarinhafossefêmea.Umaintuição,supôs,melhorqueasua.Amulhersemi-humanarecuoudesconfiada,batendonaáguaepiscandoseusgrandesolhos.

—Terra?Naterraelesnosescravizam,masvocêsdaraçahumanadeixaram-nos em paz aqui, nomeio do oceano.O que estão fazendoaqui,ondeninguémdesuaespéciejamaisfoivisto?

—Não pertenço ao povo que faz de vocês escravos— Taminofalou,masnotouqueosolhosdamulher-focafixavamcomsuspeitaa

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flauta.—Vocênoschamoucomissoeeunãotiveescolhasenãovir.ETaminolembrou-sederepentedavezemquetocaraaflautana

escadaria do templo, quando todo tipo de Halfling aparecera paraouvir. A flauta tinha poder sobre os Halflings, bem como os sinosmágicosdePapagueno.

Era este o teste então? Demonstrar seu poder de comandar osHalflingsdesteelemento?Calculouquesetocasseaflautaeordenasseàmulher-focaqueos levasseparaa terra,elanãopoderia recuar.ViuquePamina tiritava.Elanadou semsequeixar ao seu lado,mas seusolhosmostravamcansaçoeseusmovimentoseramvagarosos.

— Sei nadar — ele falou -, mas não sei onde fica a terra.Entretanto...—eparouparapensar.Oqueseesperariadeleagora?Amulher-focaseafastaraenadavaemcírculosnãomuitolongedele.Umpoucoalémdela,umacabeçaapareceunasuperfície;umrostocomoodela, porémmaior,mais largo,mais densamente bigodudo. Comumsúbito estremecimento, Tamino lembrou-se de que as focas machostinham quatro vezes o tamanho das fêmeas, e talvez as focasmachoshalflingsguardassemamesmaproporção.Pegouaflauta;seumadelasoatacasse,seráquepoderiaproteger-secomamúsicadaflauta?

Ouviu outra vez o som sibilante. A água se abriu num únicoesguicho, e três formas, lisas, sem pêlos e cinzentas, romperam asuperfíciedomar,saltaramaltoecaíramentreeleePamina.Ummacho,Tamino notou, pois todas as três eram lisas, um outromacho e umafêmea,ostrêscomsuavesolhosredondosenarizesgrandes,deslizandolepidamente,semmovimentoaparente,atravésdasondas.Assobiaramde modo estridente uns para os outros, linguagem que Tamino malpôdeentender.Eumdosmachosperguntouàmulher-foca:

—Irmã,quemsãoessaspessoas,eoquefazemaquinosdomíniosdopovolivredomar?

Tamino percebeu a ameaça nas palavras. UmHalfling, sim, umHalflingdafamíliadodelfim.Masosdelfinsjamaisforamvassalosdoshomens;issoseviapelasuaatitude,aarrogânciacomaqualsuacabeçalisacomoumelmocortavaoar.

—Humano—elefalou-,háumaantigarivalidade,eumantigoacordoentreseupovoeomeu.Conquistamosaliberdadeaoseupovo,poisnãomaisqueríamosviveracorrentadosenaságuasparadasdeseu

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país, obrigados por seus malditos assobios a levar-lhes pedraspreciosas e pérolas dos campos escondidos no fundo do mar.Prometemos, em troca, que jamais comeríamos de sua comida nem apediríamos,fossemasestaçõesboasoumás:conseguimosapromessade que, não pedindo nada a vocês, também vocês não nos pediriamnada.Deboavontade teríamosdestruído,quandoos encontramos,osgrandes tubarões que ameaçavam suas praias, para que suas criançaspudessem nadar nos oceanos, livres do perigo, e também de boavontadeteríamosdivididocomvocêstodoopeixedomarparaquesealimentassem. Por que agora rompe este acordo conosco e vem aonossomundo?Vocêsabe,muitobem,queaindaestamossujeitosaesteobjetoemsuamão;toque-o,eninguémdopovodomarpoderáresistiraoseucomando.

—Nãosabiadisso—Pamina falou.—Creia-me,nãochamamosvocês com qualquer intenção demandar.— Ela flutuava, agarrada aTamino;comumadasmãoseleasustentava,eseguravaaflautacomaoutra.

— Quando chegaram aqui? — interrompeu o grande delfimmacho. -Agora vocês estão em nosso território, não no seu— nadourápida e furiosamente emdireção a Tamino, quemergulhou na ondaseguinte,edepoisemergiu,piscando,tentandotiraraáguadosolhos.

Percebeu, com repentina clareza, que Pamina estava em perigo.Nem de longe ela era tão boa nadadora quanto ele. Tamino levou aflautaàboca.Elesmesmosadmitiramqueelaaindaexerciapodersobreeles,edealgumaformadeviaprotegê-la.Irado, justificousuaatitude;não lhes faria mal, mas acreditavam que ele os deixaria magoarPamina?

AenormefocamachovistaàdistânciaporTaminomoveu-selestaemdireçãoaeles.Taminosegurouaflauta,segurando-aparasalvaraprópria vida, nadou para Pamina e procurou protegê-la com um deseusbraços.

—Segure-se.EstesHalflingsnãosãocomoosdacidade;nãosãodomesticados. Tenho que tentar controlá-los tocando a flauta. Nãoqueria fazer isto. São um povo livre. Mas não posso permitir que amachuquem.Segure-sefirme,porqueseinvestiremoutravez,fá-los-eiparar,nãoimportaoquetenhadefazer.

Sabiaqueelatambémestavaempânico.

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—Oquetemosavercomaantigarivalidadeentrenossospovos?Seráquenãopercebemquetudooquequeremoséumapequenaajuda,quenãolhesfarámalalgum?

Elecolocouaflautanoslábioseparou,vendoasfocasHalflingseos delfins nadando em círculos não muito longe deles. Mas não tãopertoaopontodeelecontinuarempânico.

Baixoua flauta.Deviahaverummeiomelhorde tratarcomeles.De algummodo, lembrando-se das palavras de Sarastro, não achavaque tivessem sidomandados a este lugar para recapturar o povo domarcomoescravo. IstoemnadasepareciacomoqueouviraentreossacerdotesnosdomíniosdeSarastro.

Fezumatentativa:—Vocêsobedeceriamàflauta?—Você sabe que sim, Filho doMacaco— respondeu a grande

focamacho,seusolhostristescheiosdeamargura.—Vocêtemnossasvidas e nossa gente como reféns. O que poderemos dizer em nossadefesa,enquantovocêdetémumaarmacontraaqualnãohánegociaçãonem defesa? Por que você pede quando detém o poder de ordenar?Comopodemos fugir, sevocêmantémemsuasmãosopoderdenostrazerdevoltacomobrinquedos?

Taminoretrucou.— Acredite ou não, irmão do mar, eu não sabia nada disso.

Chegueiaestepontocontraaminhavontade,masdevehaverummodomelhor.A flauta não éminha; estou obrigado pelomeu juramento aguardá-la.Masjuropelaminhavidaquenãoordenareinadaavocês...— interrompeu-se,olhandoparaPamina,que lutavapara semanteràtona.Elaestavaexausta,enãoeradeseadmirar,poisreceberatodaacargadoOrdáliodoAr,eelenãofizeraquasenadaparaajudá-la.

— Quanto a mim, meumaior desejo é deixar seu reino o maisrapidamentequepuder,enuncamaisvoltar.Seumdevocêspudermeapontarocaminho,partireilogo,emesentireieternamentegrato.

EstreitouseusbraçosaoredordePamina.—Tentareilevarminhacompanheira—Paminaoagüentara,sem

auxílio,nasalturasdoAr;sefossenecessáriodeveriacarregá-laatravésdas Águas. -Mas não conheço o caminho; um de vocês poderia meguiar,adistânciaseassimodesejarem,atémaispróximodaterra?

A mulher-foca, que viera à tona em primeiro lugar, falou

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guardandodistância.—Aterraficaparalá.Bemnalinhadohorizonte—cortouaágua,

nadandorapidamentenumadireçãoqueTaminonãopôde identificar;nadaindicavaseeranorte,sul,lesteouoeste.—Nadandoduranteumahora,maisoumenos,vocêschegarãoàterra.

Uma hora. Tamino sentiu seu coração estancar. Poderia nadartanto e aomesmo tempo carregar Pamina? Seria justo ou correto quesuavida,paranão falarnodomíniodosOrdálios,dependessedesuaespecialidadedenadar,quandonuncaantesemsuavidasepreocuparaem nadar ou boiar pouco mais que uns minutos numa piscinaresguardada?Eparaaumentaroseupavor,viuadistânciaumaestreitaedelgadabarbatana.Umtubarão?Não,istonãoerajustonemcorreto.Agoramesmoéquedeviadispordessascriaturascomaflauta.Senãoofizesseporelemesmo,aindaassimnãoerrariaemfazê-loporPamina.

Estreitou seus braços ao redor dela. A mulher-foca, nadandorapidamente, quasenãopodia servista.Ele levoua flauta aos lábios,sentindo-sejustificado.Nãopretendiafazer-lhesmal,equandoPaminaestivessesalvaemterra,eleoslibertariaimediatamente.

— Tamino — Pamina cochichou, pegando em seu braço. —Estamosperdidos?Vocêaomenossabeocaminhoparaaterra?Eunãosei.Masestepovosabe.Estoucertadequefoiporistoquenosderamaflauta;umtestededomíniosobreeles,humanosouHalflings.

Oapertodelanoseubraçofoi-lhedoloroso;suaaparênciaeradetantaexaustãoqueTaminoficouterrificadoporela.Seusolhosestavamvermelhoseinchadospelosal,seurostoestavadesfiguradodecansaçoe tensão e ela pesava muito em seu braço. Custasse o que custasse,ainda que não tivesse êxito nos Ordálios, tinha que levá-la emsegurança para a terra e descansar. Se tivesse que usar a flauta paraexigir ajuda aopovodomar, assim faria. Levou a flauta aos lábios eexperimentousoprarumanota.Ascriaturasdomar,afamíliadasfocas,ostrêsdelfinspararamsilenciososnaágua,seusgrandesolhosnegrosfixandoTamino,quetinhaaflautaemsuamão.

Então,comumlongosuspiro,osomenlanguesceuporquenessemomentoumaondasequebrousobre,seurosto,baixouaflautaoutravez.

— Como posso provar a vocês que não desejo tê-los em meupoder? Estamos a sua mercê, meus irmãos e minhas irmãs.

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Necessitamos de sua ajuda para alcançarmos a terra. Nós lhesimploramosistocomoumagraça;nãoosdominarei.

Sentiu Pamina contorcer-se de impaciência em seu braço, epercebeuqueadesapontara.Mas seopreçodo sucessonosOrdáliosera tornar-seum tiranoparaosHalflings, era tratá-los comoasdamasda Rainha Estrela os tratavam, ele recusaria tudo. A Rainha EstrelapassarapelosOrdálioseistonãoatornaraumapessoamaisdigna.

Odelfimlíderjorrouáguadesuabocaenrugadaefalou:—Entregue-nosoquetememseupodereguiaremosvocêatéa

terra;eumesmolevareisuacompanheira;vejoqueelaestáesgotada.—Nãopossodaroquenãoémeu—retrucouTamino,maspor

minhahonranãotirareiumasónotanela.—Nãoéobastante—disseaenormeepeludafocamacho.—O

que sabemos de sua honra? Vimos muito pouco dela entre ahumanidade— com seus pés chatos e planos fez a água esguichar emergulhouparao fundo,Pamina suspirou epesoumaisnobraçodeTamino;estavadesmaiada.

Taminodirigiu-seaohomem-delfim,quepareciaserolíderdeles.— Também eu nada sei de sua honra.A flauta foi confiada aos

meuscuidados;nãomepertenceparadá-la.Quegarantiastenhodequecomelaemsuasmãosnãoirãoemboraenosdeixarãomorrer?

—VocêpensaqueeusouoFilhodoMacacooudaSerpenteparadizeroquenãoéverdade?—perguntouodelfimhalfling.—vocênãomeconhece,masmeunomeéSentinela-da-Rocha, enuncanahistóriado mar alguém de meu povo faltou com a palavra. Se eu morrer acaminhodaterra,oufordevoradoportubarão,todosdemeupovolheprotegerãocomoriscodesuasprópriasvidas,paraqueminhapalavranão se perca nas ondas e se transforme em espuma do mar! Devochamar centenas de criaturasmarinhas para atestar se o que digo é averdade?

— Conheço-os tão bem quanto a você — Tamino retrucou,distraído;todooseuserestavaconcentradonocorpomoledePaminaemseubraço.-Asegurançadestaflautamefoiconfiada,masfareiumacordo com você.Ajude-nos a chegar à terra, e um membro de seupovo,emquemvocêconfie,poderálevaraflautapormim.Chegandoàterra,prometopelaminhahonracomopríncipequeelapermaneceráatéquetodosdeseupovoestejamoutravezforadoalcancedoseusom.

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Sentinela-da-Rochaassobiouestridentemente,incrédulo.— Jamais vi algumdemeus antepassados confiar numFilhodo

clãdoMacaco.— Entretanto — redargüiu Tamino — você falou que o antigo

pactoentrenossospovospermaneceu invioladoatéagora.Nãopossolhedaraflauta,poisSarastromaconfiou,masemnomedopactoquevocê citou, não confiará emmim comovocêdesejaria que confiassememvocê,irmãohalfling?

—Sarastro—outravezoassobioestridente,eSentinela-da-Rochafalou.—Queassimseja.Condutora-de-Ondas,venha,pegueaflautaealeveemsegurançaparaterra,sobagarantiademinhahonra.

OdelfimfêmeanadouatéTaminoeestendeuumcurtobraçoemformadebarbatana emdireção à flauta. Tamino a entregou relutante.Com toda aquela conversa sobre honra nada mais pôde fazer senãoconfiar nos delfins Halflings. Pareceu-lhe não haver alternativa. Seusolhos ardiam com o sol, e seus braços e pernas pesavam-lhe umatonelada.Condutora-de-Ondasagarrouaflautaenadouimediatamentepara longe, flutuando sobre as ondas emirando-o com seus grandesolhos. Tamino reparou em sua nudezmacia, os seios pequenos, nãomaiores que bicos salientes em seu ventre, a lisa cabeça bemproporcionada. Ela e o terceiro delfim nadavam juntos, seusmovimentos raramente agitando a água, e Tamino contrastou amovimentação lépida dos delfins, deslizando lado a lado, com seuspróprios avanços penosos e esguichantes, Enquanto nadavam juntos,seusmembros se entrelaçavame eles se roçavam comumaperfeita einocente sensualidade. Será queumdia ele e Pamina chegariama talintimidade? Por que estava pensando nisso agora, quando o maisimportanteerachegaremvivosàterra?

Sentinela-da-Rocha deslizou nas águas em direção a Tamino;segurouseubraço.

—Dê-ma—ordenou,edeslizouseusbraçosporbaixodocorpodePamina. — Argh, como esses ornamentos de vocês pesam na água,comopodemnadarcomtaiscoisas?—baixousuacabeça,puxoucomos dentes a túnica de Pamina e arrancou-a, jogando-a longe. Tamino,chocado,desviouseusolhosegritouemprotestoquandoumlisoenuhomem-delfimtomouobrancocorpodespidodePaminasobreoseu.Aseguirosoutrosdelfins,rindo,cercaramTamino,bicaramsuaroupaea

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arrancaram.—Agoravocêpodenadarconosco—zombaram,cutucando-ona

água.Taminovoltoua cabeçaparaolharPamina.Oqueelapensaria,será que ficaria muito assustada quando recobrasse os sentidos e sevissenuanosbraçosdeumHalflingestranho?Osdoisoutrosdelfinsdeslizavamaoladodele,unindoseuscorposaodele,impulsionando-o.

—Nãosedebatadestemodo—dissea fêmeadelfim...qualeramesmo o seu nome... Condutora-de-Ondas?—Não deixaremos vocêcair,tentenadarcomonós,deixeaágualevarvocê—elaenfatizavaaspalavras com um meneio um pouco sensual que Tamino achouintensamenteembaraçoso.Ooutrodelfimmachotambémopressionavana água, encostando-se nele, impulsionando-o com um toque,movimentando-se ao longo de seu corpo nu. Tamino tentava manteruma barreira em seu espírito contra a percepção de toda esta nudez,estaintimidadesensual.

Inocentes,eleseraminocentes,maselenão,esseeraoproblema,eele estava bastante consciente do fato. Embora parecessem perceberisto,odelfim fêmeapressionava contra ele suapele lisa, fria e suave,dandomostras de deleitar-se com o contato.Não havia nada que elepudessefazer,ecomotempoparoudetentareentregou-seaostoquese à água.Doisdeles carregavam-noparadiantemais rapidamentedoque ele poderia, nadando por si próprio; e o fato de não mais estarembaraçado com o peso de Pamina ajudava, embora o perturbasse avisão dela sendo levada nos braços de Sentinela-da-Rocha. Voltou acabeça para tentar vê-la, mas os dois delfins, um em cada lado,fuçavam-no para manter a cabeça na direção certa, assobiavamalegrementeemergulhavam-nonapróximaonda.

Seuspés roçaram terra.Condutora-de-Ondas inclinou-se e fuçoutodaaextensãodocorpodeTamino,prazerosamente,rindoaossilvos.Sentinela-da-Rocha arrastou-se até a areia, Pamina em seus braços,soltando-a gentilmente. Tamino ficou brutalmente assustado de ver omodo tão canhestro de o homem-delfim pisar em terra, depois daincomparávelgraçaexibidanomar.

ACondutora-de-Ondasaindatinhaaflautaemseupoder.Elaselançavanaarrebentação,apareciamaisadiante,levadaparacimaeparabaixopelasondas,seucinzentocorpolisoexprimindoconfiança.

Sentinela-da-Rocha mergulhou em direção a ela, irado, beliscou

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sua mão, seu pescoço, seus seios, até que ela deixasse a flautaescorregar de sua mão. Ele a pegou com sua boca, com o mesmodesembaraço de um homem que a pegasse com os dedos, e foi atéTamino.

— É contra a vontade demeu coração que devolvo a você esteinstrumentodeescravidão.Todavia,cumprireioqueprometi.Tome-a.—carrancudo,entregou-aaTamino.

Taminofalou,piscandoosaldosSeusolhos:—Devo-lheminhagratidão,irmãodomar.— Você não me deve nada; poderia ter exigido nossa ajuda e

depois bem poderia esquecê-la — retrucou Sentinela-da-Rocha,franzindoocenho.—JamaistornareiadizerqueumFilhodoMacaconãosabeserhonesto.

—Deminhaparte—Taminofalou,subitamentecônsciodenovodesuanudez(porquehaviadeestartãocientedela,quandoSentinela-da-Rocha a ostentava com esplêndida indiferença?)—prometo que oantigopactoentreahumanidadeeopovodomarjamaisserárompido.

— Que assim seja— disse Sentinela-da-Rocha, e assobiou umalonga nota aguda. Os três delfins saltavam, furavam as ondas edesapareciamembaixodelas.Tamino ficouolhando-os ir, atéqueumgritodeafliçãodePaminatrouxe-odevolta.

—Tamino!Oqueaconteceu?—eentãoelepercebeuqueestavamsós na praia, que estavam nus e que, até onde podia saber, haviamfracassadonoOrdáliodaÁgua.Umacabeçapeluda,comolhosgrandesebelos,emergiudaágua.Eraamulher-focatrazendoemsuamãoalgopreso,queestendeuaPamina.

— Para você — disse suavemente -, porque soube manter suapalavra,minhairmãdaterra.

Tratava-sedeumapérola,grandeebrilhante.Paminapassouseusbraços ao redor da mulher-foca e recebeu um comovido abraço. Emseguida, a mulher-foca também abraçou Tamino rapidamente,precipitou-separaasondasedesapareceu.

SubitamenteTaminonãomaissepreocupouporestaremnus,porestaremsósnapraiaepordeveremdealgummodotomarocaminhode volta para os domínios de Sarastro. Tinha a sensação de quevenceramoOrdáliodasÁguas; e coma flautaaindaemseupoder, ecomapérolanamãodePamina,nãosesaíramnadamal.

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Quando estava razoavelmente certodequeopovodomar já seachavaforadoalcancedosom,edessemodosegurodequecumprirasua promessa, pôs a flauta nos lábios de novo. Desta vez, comoimaginaraqueaconteceria,quandoasprimeirasnotastrinaramnoar,ostrêsMensageirosapareceramtremeluzindonaluz,mastodosinvisíveis.

—Oquedesejam,SenhoresdaÁgua?—inquiriram.—Equalarazãoparaessescuriosostrajes?

Pamina baixou os olhos;mas foi ela quem respondeu antes queTaminopudesseserecomporparafazê-lo.

— Estamos vestindo as roupas do povo do mar — falou comfirmeza -, embora não sejam apropriadas para a terra. Levem-nos aosnossosaposentosnotemplo,earranjem-nosroupascondizentes.

—Faremos isto imediatamente,SenhoresdoelementodaÁgua -retrucaramosMensageiroscomsuasvozesquesoavamcomoumcantoemcoro.-PoisoelementodoArestáàssuasordens.

Ouviu-seumlevesomparecidocomodegrandesasasbatendo,elogo estavam no pátio do templo.O guia de Tamino estava ali, bemcomo uma sacerdotisa que imediatamente cobriu Pamina com umagrandetúnicaatadacomcordõesazulemarrom,eumanovacor,verde.OguiacobriuTaminocomumatúnicaigual.

Pamina,segurandosuapérola,estavamuitopálida.— Reverendo Pai, se o último dos Ordálios, Ordálio do Fogo,

começa por nos colocarem numa cratera de um vulcão, ou algoparecido,entãonãopretendocontinuarcomosOrdálios.EvocêdevecomunicaristoaSarastropormim.

Oguiasorriu.Logoaseguirasacerdotisatambémsorriu.— Não precisa se preocupar com isso. O último dos Ordálios,

comooprimeiro,émetafórico;éapenasdemaneirasimbólicaquevocêprecisa enfrentar o fogo. Venham agora, meu irmão e minha irmã,descansem e se reanimem, pois amanhã deverão enfrentar as TerrasMutáveis. E depois que tiverem concluído esseOrdálio, Pamina, nãotenhodúvidadequesentiráquesercolocadafrenteafrentecomofogodovulcão,quevocêtantoteme,teriasidoumaprovamaisfácil.

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CAPÍTULODEZENOVE— A essência de um Ordálio — disse o guia — é que ele

invariavelmente acontece numa região deserta. O Ordálio da Terraexigia que vocês se enfrentassem num ambiente razoavelmenteconhecido, enquanto os Ordálios seguintes colocou-os emcircunstânciasestranhaseassustadoras.OOrdáliodoFogoacontecenamaisdistantedas regiõesdesertasdasTerrasMutáveis.Nãohá comovoltarem imutáveis; omáximo que podem esperar é que amudançanãosejaparapior.

Tamino imaginou que isto fora dito para reassegurá-los de quenão teriamquepassarpelo fogo literalmente.Oqueoassustavamaiseraqueaflautamágicaforaatadaasuacintura,comumatiradelinho,seu arco e suas flechas lhe foram restituídos, como também lhe foradadaumaespadanumabainha.ÀPamina foraentregueumpequenopunhalafiado.

—Possofazerumapergunta,SantoPai?—Paminafalou.Notaraque, entre todos os sacerdotes que usavam cordões tecidos em coresdiferentes nas suas cinturas, apenas ele usava quatro cordões,respectivamentemarrom,verde,azulevermelho.

—Certamentequepode—elerespondeusereno.—Sónãopossoprometer que responderei a pergunta se ela não for apropriada,masvocêpodeperguntarsempre.

—Porqueestamossendoinstruídosagora,sefomoslançadosaosOrdáliosdoAredaÁguacompletamentedespreparados.

Oguiasorriu.—Aissopossoresponder.Vocêsforamlançadosdespreparados,

porqueestaéanaturezadoAredaÁgua.Avidapareceperfeitamentecertaesegura,enoentanto,semomaisbreveaviso,vocêsevêlançadonuma situação onde seu sistema de vida, físico, espiritual e moral,transforma-se de modo tão inesperado que você nem tem apossibilidadedeprever.Éfácilassumirprincípiosmoraisquandotudovaibem,ouquandovocêtemachancederealizaroqueesperadevocê.SeMonostatos,porexemplo,soubessequesuacapacidadedecontrolarseudesejoestavasendotestada,nãotenhoamaislevedúvidadequeeleteriasecomportadoemrelaçãoavocêdemaneiratãocorretaquanto

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o próprio Sarastro.Mas fizê-mo-lo pensar que a essência do teste eraoutra; embora tivéssemos recomendado, obviamente, que ele deveriamostraromelhordesitodotempo.Assimtestado,comoportunidade,paraescolher,vocêsabequalfoiaescolhadele.

Era preciso ainda um longo tempo, Pamina pensou, antes quepudessepensaremMonostatossemumarrepioderepulsão.

Taminopegousuamão.Depoisqueelaocarregaraagarradoemseupeito,apesardeestarnaformadeumaavederapina,edepoisqueambos foram levados nus pelas águas por golfinhos de inocentesensualidade,seriaumatolahipocrisiapretenderqueosacerdotenãotivesseconhecimentodequeosdoisestavamcônsciosdeseuscorpos.O teste da Terra não consistira em não desejar Pamina, apenas eledeveria pôr a prova seu controle sobre o desejo até a ocasiãoapropriadaparasatisfazê-lo.

—NãocompreendonenhumdosOrdáliospelosquaispassamos—falou-,mascreioquenãomesejapermitidopedirmaisexplicação.

—Vocêtemessedireito,poispassoupelosOrdáliosemquestão—retrucouoguia.PorqueTaminoteriaaimpressãoleve,masdefinidadequetambémestavaretardandoumpoucooiníciodaprova?—NoOrdáliodoAr,vocêsdescobriramsuasqualidadesocultas.SoboSignoda Águia, Pamina percebeu seus próprios poderes. E você, Tamino,descobriu a vontade de ser ajudado por alguém que você semprejulgoumaisfraco.Comoaforçadenadaserviu,vocêacabouaceitandoque nem sempre poderia estar no comando ou com o controle dasituação.

—EoOrdáliodaÁgua?—foiavezdePaminaperguntar—Naocasiãodisseamimmesmaqueerapossívelquenumtestedenossasqualidades espirituais fosse importante saber se podíamos ou nãonadar. Era então uma prova de desembaraço, ou de habilidade emsobreviveràadversidade?

—Nãototalmente—respondeuoguia.—OprincipalerasabersevocêsdominariamatentaçãodeusarosHalflingsparaseuspropósitosindividuais.

—Nestecasoparecequefracassamos—falouTamino.—Elesnosdisseram que não tinham como nos impedir, e que nos ajudariamvoluntariamente, pois de qualquer maneira poderíamos exigir suaajuda,casonosdessemporsimesmos.

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—Épermitidonegociaroubarganhar,masmesmo sabendoqueestava em posição de poder, você barganhou sem ferir a dignidadedeles como sereshumanos;vocênãoos tratou comoescravosnemoshumilhou.Quandovocêentregouaflauta,destaformaimpedindo-odepensar que você ordenava quando na verdade pedia o auxílio deles.Tamino,vocêtriunfou.

Paminabaixouacabeça.— Eu quis que ele usasse a flauta para ordenar— falou quase

inaudivelmente.—Estavatãoassustada...— Mas você permitiu que ele tomasse a decisão — retrucou o

guia.—VocêéafilhadaRainhaEstrela;haviasempreapossibilidadedevocêarrebataraflautadasmãosdeleeassumiropoderproibido.

—Entãohouveummomento—dissePamina tristemente—emqueminhamãeresistiuàtentação...

Mas como ela já quase previra, o guia permaneceu em silêncio,balançandopesarosamentea cabeça.Quis saber se ele a conheceraoutalvezamarasuamãetambém.Jamaissaberia.

—ParaquesejamexperimentadosnoFogodasTerrasMutáveisoque sabem já é o suficiente, e, como nos testes anteriores, devemcontinuardandoomelhordevocês todoo tempo.E agoranãopossomaisdetê-los.

Oguiabateuasmãosumanaoutraeotemplodesapareceu.Estavam juntos num deserto estéril, ainda de mãos dadas.

Arbustosrasteirosefarfalhantesrodeavam-nos;sobresuascabeçasoSolbrilhava com a ofuscante luz do meio-dia. No horizonte distante,pareciaque se elevavamruínas, antigosmurosepilares,masTaminonãoestavasegurosesetratavaounãodeumamiragem.

Voltando-selentamente,Paminaviuemoutrapartedohorizonteasombradeumacidadequebempoderiaseracidadeladesuamãe;masnãopodiaafirmar.Apesardassandálias,sentiaqueaareiaqueimava.Jamais estivera neste lugar antes, mas tinha certeza, pois o guia lhedissera, de que estas eram as Terras Mutáveis. Nunca se aventuraranelas antes. Sua mãe lhe havia proibido, e até que fosse levada aopaláciodeSarastro,nuncalhepassarapelacabeçaquealguémpudesseousarircontraavontadedesuamãe.

—Bem—dirigiu-seaTaminocomum leve sorrisoondulante -,independente do que o guia diga, ainda acho istomelhor do que ser

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lançadaaumfogoverdadeiro.Tamino sentia-se reconfortado por ela poder brincar em tal

situação.Sentia-sereconfortadotambémpelofatodeoOrdáliodoFogonão haver começado, como o do Ar e da Água, com uma literalconfrontaçãocomoelementoemquestão.

Nãoeraumcovarde,ou,pelomenos,atéterentradonosOrdáliosnuncaseacharacovarde;masdequalquerformapensavaqueeramaisfácil saberoque fazerquandonão tinhaquedefenderaprópriavida.Acreditavaqueistoeraválidoparatodomundo.

Todavia, no resplendor do sol ardente, percebeu que havia umelemento tanto literalquantometafóricodoOrdáliodoFogo.Quandode sua jornada vindo do reino de seu pai, aventurara-se no sol dodeserto por um curto período que lhe pareceu interminável, e emconseqüênciaacabaraqueimadoequasecego.

—Tambémestou contentepornão se tratardo fogoverdadeiro,emboraparamimestesoljáqueimeosuficiente.

Arrancou uma tira de sua túnica e prendeu-a sobre sua cabeçacomoumsubstitutode capuzpara aliviarosolhos eoferecer algumaproteçãocontraocalor.

— Boa idéia. Devia ter pensado nisto — Pamina fezimediatamenteomesmo,mirando-osobocapuzimprovisado.—Destavez, jáquenãoestamossobperigo iminente, talvezpossamospararepensarsobreemqueseremostestados.Sabiaqueaquestãonãoestavaemsepodíamosnadaroudescerdepenhascos.Eutinharazão.Depois,elenosdizquedescobrimosqualidadesocultasemnós...

—Vocêdescobriu—Taminointerrompeu.—Segundooguia,euapenas aprendi a lhe deixar assumir o controle quando necessário—esboçou um leve sorriso. — Ensinaram-me que um príncipe deveriacuidardetodososseussúditosesempremanteraautoridade.Talvezfosseapenasumtestedemeuorgulho...

Paminadisseemvozbaixa:—Éistooquemaistemo,Tamino.Otestedoorgulho.Vocêsabe

queaRainhaEstrela,minhamãe,jápassouporessesOrdálios;elafoiaprimeiraeúltimamulherafazê-lo.Evejaoqueelasetornou.Sousuafilha.Nãoqueroconquistarpoder,nemterautoridadesetiverquemetornarcomoelaeterminardaquelemodo.Ejámesintotãoigualaela;Tamino,noOrdáliodaÁgua,euteriausadoaflautaouforçadovocêa

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usar,paraexercerpodersobreoclãdoDelfim.AchoquenãoestouaptaparaesteOrdálio,Tamino.

—Nãoacreditoqueos sacerdotesdeixassemvocêempreendê-losenãoestivesseapta,Pamina.Éobrigaçãodelessabertaiscoisas.

—Maselesseenganam.Devemter-seenganadocomminhamãe.Porque ela era aherdeiradoReinodaNoite, a futuraRainhaEstrela,deveriamter-secertificadodesuaaptidão,eveja,oqueaconteceu?—PaminabaixouosolhoseTaminonãopôdevê-los,massabiaqueseurostoestavabanhadodelágrimas.—Euacrediteinela.Deveterhavidoum tempo em que meu pai também acreditou nela. Serei como ela,Tamino?Tereiquesercomoela?

—Nãoconsigoimaginarqueumdiavocêsetransformasseassim.Taminodesejou,mais fortementequequalquer coisanomundo,

tomá-la em seus braços e confortá-la.Mas algo lhe dizia que superarseumedoeraumaparteimportantedoOrdáliodePamina;setentasseconfortá-la ou tranqüilizá-la, jamais ela teria a oportunidade deenfrentarplenamente seusprópriosmedos.Elea temera,na formadepássaro,quasetantoquantotemerasuamãe.Paraquesecasassem,dealgummodotambémeleteriaquesuperaraquelemedo;nãopodia,ounão queria imaginar-se vivendo tomado de constante pavor por seuspoderesmágicos.

Surpreendeu-sequerendosabercomoSarastroconseguirasuperaraquelemedo.

Porfim,disseemvozbaixa:—TalvezSarastroamassetantosuamãequenãosuportavanegar-

lhequalquercoisa.Eutambémamovocê,Pamina.Talvezfaçapartedoobjeto deste Ordálio nos ajudar a saber quando podemos usarlegitimamenteopoderequandonão.Quandoeleestavaparacomeçar,osacerdotenosdissequecadaumdenóspossuiforçasefraquezasqueseriam complementadas pelas do outro. Impedi que você usasse aflauta para dominar osHalflings domar, e isso estava correto; assimjuntosfizemosoqueestavacerto.Domesmomodo,vocêmedissuadiude tentardescerdopenhasco,e isso tambémestavacerto;assim,cadaumdenósafastouooutrodeumerroperigosoepossivelmentefatal.TenhocertezadequesuamãeeSarastroteriamfeitoomesmoumpelooutro,maspor alguma razãonãoo fizeram.Nemmesmo sabemos selhesfoipermitidoenfrentarjuntososOrdálios.Masvocêeeuestamos

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juntos,Pamina.Juntospodemostomardecisõeseevitaradesgraça.—Seiquevocêestá coma razão—ela falouquasegritando.—

MasSarastroamavaminhamãetambém,enãoconseguiuimpedirqueelasetornasse...setornasseoqueé.Oquehádebom,então,emamar?

—Sarastroamavasuamãe—Taminoretrucou,desejandomesmotomarasmãosdePaminaentreassuas-,masnãoestamoscertosdequeaRainhadaNoiteamasseSarastro.Pensandonamaneiracomoelamefalou dele, e comparando com a maneira de Sarastro falar dela, nãoacreditoqueoamasse,pelomenostantoquantoeleaamava.—Taminopensou,masnãodisse,quenãoacreditavaqueaRainhaEstrelaamassealguém,oufossecapazdeamar.

Entretanto lhe pareceu que Pamina ouviu as palavras não ditas,quetalvezelasoubesseoqueeleestavapensando,eistooamedrontoumuito.Nãoqueriatemê-la;queriaamá-la.Nãoqueriaquecoisaalgumafossemaisimportantequeseuamorporela.

Masagora,vendo-aabatidanaquelecalorterrível,percebeuqueapreocupação com ela, a necessidadede protegê-la, seria sempremaisimportante que tudo omais, e sem dúvidamais importante que seuprópriomedo.NãopodiaimaginaralguémtentandoprotegeraRainhaEstrela, ou a Rainha Estrela deixando-se proteger. Teria havido umtempoemqueelaforaumamulhervulnerável,comoPaminaeraagora?

— Devíamos tentar encontrar alguma sombra — ele falou. —Mesmo em se tratando de julgamento pelo fogo, duvido que nostornaríamos bons para o sacerdócio se acabássemos cozidos vivos.ComooOrdáliodaÁguanãoeraumtesteparasesabersepodíamosnadarounão,estoucertodequeestetambémnãoéumtestedenossahabilidadeemagüentarumainsolação.Paminasorriudebilmente.

—Nãohánadaque euqueiramaisqueuma sombra,masondeacharemos?

Taminoolhouemdireçãoàfileiradeárvoresnohorizonte.—Deve haver sombra em algum lugar. Certamente sob aquelas

árvores, se pudermos alcançá-las. Isto é, se não forem umamiragem.Emtodocaso,nãoháoutrolugaraondepareçavalerapenair.Vamostentaralcançá-loentão?

—Parece-merazoável—Paminaconcordoueelessepuseramacaminhonaqueladireção.

Tinha a sensação de caminharem há bastante tempo, mas como

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Taminojáesperava,asárvoresnãosetornavammaispróximas.Paminaestavapálidaeofegavacomocalor;maisquedesombra,precisavamdeágua.Taminolembrou-sedamiraculosatamareiraquelheapareceraquandomaisnecessitara.

—EstamosnasTerrasMutáveis—elefalou-,etalvezotesteaquiseja o de nossa capacidade de mudá-las num sentido apropriado àsnossasnecessidades.

—Parece-me—Pamina argumentou— que isto seria omesmoque usar a flautamágica para fazer os delfins obedecerem... o que éproibido.

Tamino pensava sobre isso com muito cuidado, enquantoenxugavaosuordesuatesta.Porfimfalou:

— Não posso crer nisto. Nem mesmo sabendo se as TerrasMutáveis são mesmo assim, ou se somos apenas nós que as vemosassim.Elaspareciamumdesertoestérilquandoaquiestivedaprimeiravez. Mas à medida que viajava através delas, alteravam-seconstantemente, e eunão sei qualdas aparências é real e qual éumailusão para testar-nos — e contou-lhe sobre a tamareira e sobre oantílopequesetornara,primeiro,umagazelaedepoisumesquilo.

—Etenhomeperguntado,desdequecomeceiosOrdálios,seelehaviamudado. Ele era um esquilo o tempo todo, e só semostrara amimnapeledeumoutro animalpor alguma razão toda sua, ouporalguma lei das Terras Mutáveis, desconhecida para nós? — falartornavasuagargantamaisseca;masistoeramaisfácildesuportardoquecarregaropesodetodosessespensamentossozinho.

— Não sei responder a sua pergunta, mas pelo menos temossombraaqui.Estávamosolhandonadireçãoerrada,étudo.

Tamino virou-se para olhar a moita com suas folhas grossas,escuras,verdesecobertasdeespinhos,tãodiferentesdasfolhascomunsforadodeserto.Podia jurarqueelanãoestavaalihápoucosminutos,masoquemaispodiaesperarnasTerrasMutáveis?Oqueeraaquilo,uma ilusão? Que importância tinha? Poderia uma sombra ilusóriaprotegê-los do sol real? Juntos, partindo as folhas, engatinharamprazerosamenteparaointeriordacoberturadefolhasgrossas.

Sobamoitaestavamaisescuroefrio.Paminadeitou-sedecostasnochãoseco,enxugandoo rostocomasmangas largasdesua túnica.Taminopensavano fatodeoOrdáliomal ter começado e ela já estar

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exausta.Ela notou sobre si o olhar de Tamino, e sorriu timidamente,

sentando-se.—Olha,nãoestamossósaqui—apontouaareia.Umaporçãodepequenoslagartos,nãomaioresqueumpalmode

mão, alguns nãomais gordos que o polegar de Tamino, corriam emváriasdireçõesnaareia,subiampequenaspedras,brigavam,lançavam-se rápidos sobre a areia quase invisível, copulavam, subiaminesperadamenteunssobreosoutros,porumoudoisminutos,depoisdesprendiam-seecorriamativosoutravez;lançavam-seàareiarápidos,brigavam,subiamna fêmeamaispróximaparaumcoito ligeiroenãopremeditado,erecomeçavamtudodenovo.

— São iguais aos cães Halflings. Ou Monostatos — Paminamurmurou.

— São comomuitas pessoas que conheço no reino demeu pai,Pamina.Pensoquemuitaspessoasagemassim,foradotemplo.

Elafalou,eocorreuaTaminoqueelaestavamuitopálida.—Nãodesejo isso.Seria terrívelvivercomoeles.Esteéomodo

de vida queminhamãe deseja para osHalflings. Penso que Sarastrodeseja que eles sejam algo mais. Mostrar-lhes do que são capazes.Detestoserdeslealcomminhamãe.Mas...—eleaviupararepassaralínguapeloslábios—...tenhomedodepensarqueSarastroestejacerto,eassimteria...teriaquemerejeitar.

Estavammuitopróximossobamoita,eTaminofezoqueestavaquerendofazerdesdeaprimeiravezqueavira;estendeuseusbraços,enlaçou Pamina e estreitou-a. Não pensou que desejasse algo mais,naquelemomento,doqueconfortá-la,afastaraquelaterríveldesolaçãodeseusolhos.

Então ocorreu-lhe que talvez aquele fosse o momento exato.Talvezomomentocertodecertificá-ladequeestariamsempre juntos,quetomariamjuntostodasasdecisões,fortalecidosereconfortadosporseuamormútuo.Equemeiomelhorhaveriapara selar aqueleamor?Eladeixou-seabraçar,eergueusuabocaparaquetrocassemoprimeirodeseusmuitosbeijos.

Noprimeiromomento,Paminasentiu-seumpoucoamedrontada;a lembrança das mãos rudes de Monostatos sobre ela fê-la tremer,quandoTaminoatocou;masquandosentiuasuavidadedesuaboca,a

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leve aspereza do rosto dele, tão diferente do seu, relaxou. Isto era ocerto, isto não ia contra sua vontade. Temeroso de que ela não odesejasse,Taminosequerfezumapequenatentativadeestreitá-lamais.Ela pressionou seu corpo contra o dele, abrindo seus lábios quaselicenciosamente para beijá-lo. E por uns poucos minutos, naquelafelicidade por tanto tempo postergada, eles quase se esqueciam deondeestavam,ouporque,ouoqueosestavaameaçando.

Quando finalmente fizeram uma pausa para respirar, Taminofalou,quasenumsussurro.

—Não consigome decidir, Pamina, se esta é a tentação final, otestefinaldeminharesolução...

—Sendoassim,tambéméumtesteparamim,Tamino—aparteouolhandoparaele.— IstonoseravedadoapenasnoOrdáliodaTerra.Ouvi,nãomuito,porquefuimantidaafastadadessascoisas,masouviaspessoasfalaremdoamorcomoumfogo.Talvezotestesejasabersesomoscorajososobastanteparaaceitá-lo.

Era uma incrível tentação tomá-la em seus braços outra vez eesquecerosOrdálios,esquecertudoquenãofosseadelgadafirmezadocorpodelacontraoseu.Maseleteveescrúpulos.

—NãoacreditoqueistopossafazerpartedosOrdálios—sentiuumdelicadosorrisoespumanteemergirdealgumafonteprofundaemsimesmo.-Disseram-nosqueoperigoestariaemquesentíssemosqueteriasidomaissimplessermos lançadosao fogo.Perigo...aqui,vindodevocê,minhaamada?Nãopossoacreditar!

— Ah, sim, há perigo — Pamina sussurrou, aproximando suacabeçaebaixandoadeleparaqueabeijassemaisumavez.—Queromeconsumirnoseufogo.

—Eeuno seu—ele sussurrou,mantendo suabocapróximaàsdelicadas dobras da pequena orelha de Pamina. — Mas você nãolembra como os sacerdotes sabiam de cada palavra dita por nós nomeio do oceano ou no alto do penhasco? Eles devem estar nosobservandoaquitambém.

—Queobservemenosinvejem—Paminarespondeu,atraindo-oparasi.—Nãomesintoenvergonhada.Vocêsim?

Ele?Nemqueria saber.Não era hábito em seupaís praticar taisatos ao ar livre, certamente não onde houvesse olhos observando.Estava a ponto de dizer: Eu me sentiria como um dos seus cães

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Halflings.mas conteve-se. Ela era umamenina tímida, pudera; agoraque superara aquela timidez e estava pronta para lançar-se aos seusbraços,poderiaelefrustrarsuaperfeitaalegriadeestaremjuntos?

Comosdedos trêmuloscomeçouadesatarocordãotrançadodatúnica de Pamina. Papagueno, que rejeitara os outros Ordálios,provavelmente jágozaraestemomento comsuaPapaguena, aopassoque ele e Pamina se negaram a esta felicidade. Por que, por quantotempo? Ela sorriu, imitando os movimentos dele com brincalhonadeliberação, enquanto seus dedos hábeis desmanchavam a trançacolorida.

Então ele tossiu e respirou com dificuldade. Vindo de algumlugar,umredemoinhodeventoabateu-sederepentesobreeles,agitoucomouma rajada as árvores, lançando poeira nos olhos e na boca deTamino. Pamina, sem conseguir respirar, arfando, virou rapidamentesua cabeçapara seprotegerda fúriadovento.Tamino, comgostodepoeiranaboca,tossiaetentavasemsucessocuspir.Asfolhaslargasdamoita foram arrancadas uma a uma; a moita foi minguando até setransformar numa plantinha pontuda que batia quase na altura dojoelhodeTamino.

Eleseesquecera.EstavamnasTerrasMutáveis.Paminaestavacurvada,lutandoparatiraraareiaquemachucava

seusolhos.Arfava,esfregandoorostocomamangadatúnica.— Veja, a moita se transformou numa planta minúscula para

proteger-sedovento.Teriasidorealmentegrandealgumavez?—Não sei, mas tendo sido ou não, gostaria que voltasse a ser

comoantes—elerespondeu.Emseguidalembrou-sedaflauta,presaasuacintura.

— Esta é uma arma do Ar. Já funcionou antes — ele falou ecurvou-se para quepudesse colocar a flauta na boca semque a areiapenetrasse em seus dentes. De onde viera aquilo tudo?NemmesmopodiaveroSol!

Começou a tocar, tentando respirar entre as rajadas de grãos deareia.SentiuasmãosdePamina,agarradasnele.Nãopodiavê-laagoraporcausadaareia,mesmoqueousasseabrirseusolhossemoiminenteperigode ficar cego.Nãopodiapassar seu braço emvoltadela; suasmãosseguravamaflauta,elhepareceuqueteriadefazeressaescolhamuitomais vezes do que gostaria. Esperava que algum dia pudesse

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cumulá-ladesuficienteatençãoparainduzi-laaperdoá-loporatitudescomoadeagora.

Tocou a flauta. Como esperava, aquele vento não era um ventonatural, quase às primeiras-notas a tempestade de areia começou acessar. “Não foi acidentalmente”, pensou soturno, “que aquiloaconteceu naquelemomento.” Seu instinto afinal estava certo. Queriamaisprivacidadeparaseuleitonupcial,eassim,tinhacerteza,Paminatambémdeviaquerer.

Oventocessou.ReinavaumsilêncioanormalnasTerrasMutáveis.A moita desaparecera, mesmo em sua forma raquítica; apenas unspoucoslagartospequenosaindacorriamsempararaoredordaspedras,brincando,arremetendo-se,copulando,brigando.

Pamina soltou-o. Podia vê-la agora, e embora os olhos delaestivessemvermelhoseinchadosporcausadaareia,imaginouquesuaaparência também não fosse dasmelhores. Ela atou o cordão de suatúnica,olhando-ocomumsorrisotímido.

—Você queria saber se esta era a ocasião certa. Penso que nosderam a resposta, e no momento exato. Imagine se passassem maiscincominutos!

Aalegriadelaeracontagiante,ea imagemdoventoabatendo-sesobre eles, enquanto estavam nus, completamente indefesos,absorvidosumcomooutro,fê-lorir,apesardesuagargantaestarsecaeirritada.

—Seodesertoassimjáéperversoobastante—eledisseafinal—como será depois de uma tempestade de areia? Tereimedo de fazerqualquercoisa,pormedodefazererrado!

Olhando, cética, para o deserto ao redor, após a tempestade,Paminafalou:

—Nãoconsigover comoqualquermudançaépossível semquehaja algum sentido de melhora. Se estas são as Terras Mutáveis,desejariasabercomomudá-las!

— É possível que seja isto o que pretendem que façamos? —cismava Tamino. — Que não seja mudá-las, mas ao menos fazê-lasmostrarsuaverdadeirasubstância,mostrarcomorealmentesão?

Pamina resolveu sentar-se no chão. Com este gesto pareceu aTaminoqueelaestivessemuitofatigadaparaficarempé.

—Estoucansadademepreocuparcomoobjetivodesteteste,ou

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com o que devemos fazer — falou dando mostras de profundoesgotamento. Por um momento chegara a acreditar que descobrira oobjetivodoOrdáliodoFogo,queeraodedeterminarseelaeTaminoteriam coragem de manter sua pretensão um quanto ao outro,defrontadoscomasTerrasMutáveis.Mudariammesmooamor?Estavaaterrorizadaanteaperspectivadedescobriristo.

—Talvezaflautapudessefazê-lasmudar.—MasaflautaéumaarmaencantadadoAr...— Sim, e é pelos elementos doAr que nos comunicamos com

todos os elementos — ela argumentou, lembrando-se do que osacerdote lhes dissera. No elemento do Ar, ela descobrira poderesocultos; no elemento da Água, Tamino aprendera que não estariasempre (não precisaria?) no comando. Como Tamino vencera estesOrdálios, ela tambémvencera, e tinhapoderes in-suspeitados sobreoelementodaÁgua.

Com um gesto seu, Tamino, obedientemente, levou a flauta aoslábiosecomeçouatocarsuavemente.Comoauxíliodosoproetéreodamelodia, Pamina começou a pensar no elemento da Água: hostil eraivoso,enchendosuabocacomáguasalgada,tragando-oseafogando-os; também salvando e reanimando.Agora desejava estar imersa emágua,lavandoaareiadesuabocaedeseucorpo,águaoculta,correndofurtiva pela terra, mesmo sob um deserto como este, escondida bemfundo no deserto arenoso, fluindo abundante da rocha... Então era omomentoeelasoube;rapidamentecurvou-seedeuumtapanapedra.

—Água!—ordenou,numavozque jamaisouvira, sentindosuagargantadoercomapalavradoPoder.

Aáguajorrou,batendonorostodela.Paminacurvou-seebebeu,bebeu, rindo e gritando de alívio. Borrifou água em seus olhosdoloridos, afastou-se um pouco para que Tamino pudesse fazer omesmo,umedeceuocapelodesuatúnicaquandoafonte,alargando-se,se transformounumpequeno tanquena rocha.Taminobebeue lavouseurostosujodeareia,tirouaareiadeseusdentes.Olhavamumparaoutro,rindodealegria.

Equandoeleseaproximouparasecurvare—elasentiu—beijá-la de novo, desta vez sensualmente,mas de pura alegria e satisfaçãopelos poderes mágicos, que mais uma vez os livraram do perigo,Paminanotouqueosolhosdelemudavam,tornavam-sefrios.Asmãos

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dele soltaram seus ombros, ele recuou e rapidamente preparou seuarco.Esticou-obem,efezumsinalparaqueelaficasseatrásdele.

Ela voltou-se para ver o que os ameaçava, e suspirou alto.Monostatos,seurostofeitoumamáscaradeódioimplacável,inflexívelanteoarcodeTamino.

—Vocêpensaqueeutenhomedodessebrinquedo?—Façamaisummovimento—Taminofalou—evocêsaberáse

temounãomotivoparatemê-lo.Seuslábiostorceram-seumpouconumlevesorrisodezombaria.—Souo filhodoGrandeDragão.PensaqueporqueSarastrome

expulsou não tenho poderesmágicos sobmeu comando?Agora vocêestáemmeusdomínios,PríncipedoOeste,nãonosseus,elhedigo:—Vá!Foradaqui,agora!

Elenãomexeuasmãos.Não fezmovimentoalgum.Masdo céuclaroouviu-seumtrovão;Paminaviu-se lançadanastrevas,eTaminodesaparecera.

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CAPÍTULOVINTETrevas. Tamino se fora. Pamina na escuridão contra um inimigo

invisível. Monostatos. Não, Monostatos era humano, pelo menosHalfling, e isto contra o que lutava não se parecia em nada com umhumano;envolvia-aemsuasasassufocantes,detexturacoriácea;garrasarranhavamseurosto,eohálitodacriaturaeranauseante,umhorrívelcheirodecadáverecloaca.

Semnadaenxergar,Paminaagarrouaadagaqueossacerdoteslhederam. Eles sabiam que neste Ordálio teriam que arrostar perigosfísicos também.Antesperguntaraao seupai seMonostatos seriaumadasprovocaçõesquedeveria enfrentar e ele lhedisseraquenão.MasMonostatos lançara-a nesta escuridão, e ela golpeava com sua adagacomoseestivesselutandocomopróprioMonostatos.

Comosabiaquenãoestavalutandocomele?Comosabiaqueele,comoelamesma,nãotinhaopoderdesetransformaremalgumaformaestranha e assustadora? Ela enfiou a adaga e a coisa guinchouhorrivelmente,umsomque feriu seusouvidos. Seaomenospudesseveroqueera;asasascoriáceasenvolviamseurostotãocompletamentequemesmoquehouvesseluznãopoderiaver.Sufocando,tossindoaocontatocomohálitoasquerosodacoisa,Paminatentouapanharocorpodacriatura,massuaadagaoatravessoucomosepenetrasseovazio.

Umagarraferiuobraçoquesustinhaaadagaeelasentiuosanguecorrer.Nunca antes fora ferida seriamente, e a dor quase a paralisou.Quasepiorqueadoreraohorror,opensamentodequeaqueleterrívelbicorasgariaseusolhos.Lutavanumafúriadepesadelo,comosetodooterrordesuavidaaestivesseatacando,imundície,sufocaçãoelevestoquesobscenos,naescuridão,muitasemuitasvezes;equandoatacavacomaadaga,pareciaqueoqueaadagatrespassavaeraonada.Todaviaa dor provocada pelas garras e o bico estripador, assaltando-a comfreqüência,eramuitoreal.

NoOrdáliodoArpodíamosterencontradonossamorte,enodaÁguapodíamoster-nosafogado,antesqueconhecêssemosaverdadeiranaturezadoOrdálio.Entretanto,operigofísiconadatinhaavercomaverdadeiraprova.

Qualeraoverdadeirotesteaqui?AmentedePaminalutava,tão

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ferozmente quanto seu corpo, contra a terrível coisa que a estavalacerandonoescuro.

Nada era mais real agora que a dor e o horror e o pesadelodaquelacoisaobscuracontraaqualestavalutandonoescuro.Obraçoquesustinhaaadagaestavacomeçandoacansareobraçocomoqualprotegiaorostodoassaltodacriaturaestava todoferidoearranhado.Tomboupara trás, sentiu seucalcanharpresoaalgumacoisaquenãopôde ver, e caiu desajeitada de cabeça, largando a adaga; em umsegundopercebeuqueacoisaestavasobreela.

“Pense,Pamina,”diziaenlouquecida,parasimesma.Devehaveralgumacoisaquevocêpossafazer.Pensenoquesesupõequevocêfaráou esta coisa lhematará antes que saiba a verdadeira natureza desteOrdálio!

Imaginouqueseesperavadelaquefizesseuso,contraaquilo,deseusrecém-descobertospoderesdemagia.MascomopodiasaberqueMonostatos também não tinha o poder de transformar-se em algodesconhecidoeincompreensível?EcomosabiaqueestacoisanãoeraopróprioMonostatos,horrivelmentetransfigurado?

FosseMonostatosouqualqueroutraformadepesadelovindadeseusterroresmaisíntimos,tinhaquevencê-lodealgummodo.Agoraacoisainvestiacontrasuacabeça,enquanto,aterrorizada,debatia-separaprotegerseusolhos;emesmosemaadaga,livrar-sedoataque.

Tamino!Onde ele estava, por que a abandonara?Ou estaria eletambém lutando sozinho contra algum adversário apavorante?Desesperadamente, Pamina tentava evocar os novos poderesdescobertos em si mesma. Nas trevas, esquivando-se daquele bico,livrando-serapidamentedaquelespés,clamou,comoantesclamaraporáguasobamoita.

—Luz!Fogo!Aluzsurgiudiantedeseusolhoscomooclarãodosol.Sentiu-se

dominandoaluzvindadealgumlugar,lançando-acontraacoisa,queagorapodiaverclaramenteemtodooseuhorrordasgarrasávidas,dobicopontudo tingidocomseusangue.A luzdensaatacou, fulgurantecomoumatocha.Ouviu-seumguinchohorrível,eacoisaadejouparaodeserto arenoso; tombou em meio a uma chuva de cinzas. Por fim,sobreaareiaestérildodeserto,haviaapenasumapequenamanchadecinza;Paminaestavasó.

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Caiucomoopássaro,pressionandoaareianummistodeterrorealívio.

Permaneceudeitadapor algum tempo, entorpecidapelo terror esuacessação.Porfim,levantouacabeçaepôs-seaverificarseuestado.Amangadesua túnicaestavarasgadaeseusbraçosdoíamporcausados vários ferimentos; em seu rosto, no lugar onde a coisa desferiraalguns golpes contra a vista, havia um grande e doloroso hematoma.Lembrou-se de como sua adaga trespassava a coisa como se fosse onada. Como era possível que algo tão in-substancial causasse tantosferimentos?

Concluiu que não estava ferida seriamente. Uma das mangasestava tão rasgada que acaboude arrancá-la fora; amanga, presa porunspoucosfios,estavatãosujaemanchadadesanguequenemmesmoserviria comobandagemparaos cortes. Esfregouo rosto comaoutramangaedesejouencontrarumafonte,paralavarseusferimentos.

OndeestáTamino?Estariaeletambémemalgumabatalhamortalcontra os perigos das Terras Mutáveis, sozinho, isolado não pelossacerdotes, mas pela astúcia de Monostatos? Como poderiam tersucesso com oOrdálio do Fogo, se aquele apóstata de doismundos,aquelemalditopatife,tinhapermissãodeinterferir?

Ou,adespeitodoqueseupailhedisse,istoeraapenasmaisumsimples teste? Via agora, embora seu pai lhe tivesse dito que não seplanejara fazerdaconcupiscênciadeMonostatosumadesuasprovas,queenfrentá-loenãosesubmeteraeletinha-seconstituídonumapartebastanterealdeseuteste.Istofortalecerasuaresolução.

NosOrdáliosanteriores,elaeTaminoestiveramjuntos,masdestavez os sacerdotes os separaram. Conteve as lágrimas de tristeza aolembrar-sedequehápoucotempo,emboranãofizesseidéiadequantotempo fora, ela e Tamino estavam juntos no abrigo de arbusto. Ele atocara,eladesataraocordãodacinturadele...

E então aconteceu a tempestade de areia, e os julgamentoscomeçaram. Não estava planejado que eles devessem consumar seuamor, não ainda. Este tempo chegaria? Pamina não sabia, agora, sealgumavezquisquechegasse.Aconteceramtantosjulgamentos,tantostestes.Teriamelesumfim?

—Pamina—disseumavozmuitoquerida-,vimparalevá-laparacasa,minhaquerida.

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Paminaergueuosolhoseviuamãediantedesi.Neste momento a Rainha Estrela aparecia despojada de sua

majestade,desua irae terrívelbeleza.Estaeraamãedesua infância,umamulherpequena,nãotãoaltaquantoPamina,vestidacomumtrajede macia seda cinza que a envolvia como uma nuvem. Não trazianenhumajóia,nemmesmoaprateadalâminalunarenroscadaentreasondasdeseucabelonegrosobresuassobrancelhas.Nemmesmoumaminúscula estrela em sua garganta, brotando de seu vestido cinza.Ocabelo negro agora estava prateado, e Pamina notou as marcas dosofrimento,bemcomoasprimeirasrugasdaidadenorostodesuamãe.

A Rainha Estrela estendeu sua mão ternamente para tocar oantebraçoeorosto,feridoseaindasangrando,dePamina.

—Minha pobre criança— sussurrou e cingiu Pamina com seusbraços. -Oqueele fezavocê,aquelehomemterrívele cruel?Porquedeixou Sarastro torturá-la destemodo?— com a cabeça encostada noombrodesuamãeeaconchegadaemseusbraços,Paminarompeunumgrandeacessodechoro,trêmulacomoumacriança,enquantosuamãeestreitava-acomonuncaofizeradurantesuainfância.

—Calma,calma,minhacriança,meuamor,jápassou,nãodeixareiqueeleamaltratenuncamais.

Toda a sua vida ansiara por ser tratada assim, reconfortada,acariciada,masagoraeratarde.Comumadorsemelhanteàdasgarrasdacriaturarasgandoseucoração,Paminalibertou-sedosbraçosdesuamãe.

ARainhaEstrelapassouseusdedosdelicadamentepelas feridasdobraçomaltratadoeosanguecessoudebrotardosferimentos.Adorseforatambém.Elatocouohorrívelmachucadosoboolhoealiviou-o.

—Vimparatirá-ladesteterríveldesertoelevá-laparacasa,meutesouro.Lembre-se,vocêétudooquetenho,vocêéminhaherdeira,umdiaseráaRainhaEstrela.Vocêrealmentepensouqueeuaabandonariaàs feitiçariasdeSarastro?Mas tudoacabou.Vem,meuamor,pegueaminha mão, em um segundo estaremos em nossa cidade outra vez.Agora você não é mais uma criança, mas uma mulher que devegovernar ao meu lado — estendeu a mão para Pamina, que seesquivou,hesitante,mirandoamãoestendidadesuamãe.Amãoerasuave,lisa,totalmentediferentedorostocinzentoeesmaecido;nãoeraamãodeumamulhertranqüila,suamãeencanecidadequemcomeçara

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asecompadecer;amão,percebeu-ocomumestremecimentoportodoocorpo,eraadaRainhaEstrela.

—Vem,vem—dissesuamãe,comumacentodeimpaciência.—Segureminhamão,criança,ounãopoderei tirá-ladestedeserto.Vocênãoquerirparacasa,meutesouro,minhaquerida?

Irparacasa...Paminasentiuquejamaisemsuavidadesejaratantoalguma coisa. Mas aquela alguma vez já fora sua casa? Algo nelachegaraa sermais realdoqueesta imagemdesuamãe, imagemquelhetraziatodasaslembrançasdesuainfância,equenãoeramaisrealquequalquerumadelas?Ansiarapor estas carícias: e quandovieramestavamvazias,nadasignificavam;podiasentireouvirnavozdesuamãe que elas não passavam de instrumentos para manipulá-la deacordocomavontadedaRainhaEstrela.

Respondeu,ouvindosuavoztremer:—Vocêdissequemerepudiaria,quejamaistornariaamechamar

de filha, se eu nãome apresentasse diante de você com o sangue demeupaiemminhasmãos.

—Euestavairada,Pamina.Nuncaesteveirada?Agoraquevocêémulher,nãocompreendeopoderdafúria?—olhoudiretamenteparaorostodePamina,eoutravez,àvistadassofridasmarcasdaidadeedopranto naquele rosto, Pamina sentiu-se impelida pela ternura; maslutoucontraestesentimento,poissabiaqueaRainhaEstrelaousaria,também,comoumaarmacontraela.

—EntãovocêmelevarádevoltasemcausarmalaSarastro?—Pamina—respondeusuamãe-,seráquevocêaindanãosabe

avaliaraverdade?TantoquantovocêeTaminoestãoligados,Sarastroeeu constituímos as duas faces do Poder, Luz e Trevas, Noite e Dia,Verdade eMentira, Vida eMorte. Se eu tivesse renunciado a você afavor dele, ele teria ordenado que você renunciasse a mim; ambosestávamos testandovocê;agoravocêprecisa se colocaracimada falsadivisão entre as trevas e odia— e outra vez estendeu suamãoparaPamina.—Vemrápido,criança,enquantohátempodefazeraescolha.

Este foi o mais doloroso teste; não era nisto que ela queriaacreditar, que de alguma forma podia escolher seguir a verdade deSarastrosemperderamãe,aquemelaaindaadoravaatéosofrimento?Como tudo isto parecia convincente; tudo não passaria de um testecomplicadoparaver se elapodia reconhecer a supremaverdade; sua

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mãe e Sarastro seriam as duas faces da verdade, a luz e as trevasentrelaçadas,enãohaverianecessidadedessasescolhasterríveis.

—Rápido,Pamina.Segureminhamão.Mas a mão da Rainha Estrela ainda era suave, lisa, acusando a

mentiradailusãodaidadeedosofrimentoqueelaforjara...sim,forjaraparailudir-me...ePaminarecuou.

—Sarastroapenasmedissequeeupossoverpormimmesmaoqueéaverdade,evocêsómedissementiras.Eossacrifícios,mamãe?Comoeupoderia reinar sobreummundoafogadoemsangue?E...—evocara deliberada-mente uma outra recordação muito mais fortedentrodela.—ERawa,mamãe?Porquemandousacrificá-la,depoisdemeprometerqueasalvaria?

— Rawa? — a Rainha Estrela franziu as sobrancelhas e oesquecimentode suamãepareceu a Paminamais terrível ainda, poisquenestecasoosacrifíciodeRawaeraapenasumentremilhares.—Doquevocêestáfalando,criança?

— De minha ama. Quando você salvou a vida de Papaguena,mandouRawaembora.Eunãosabiaentãoqueeraparasacrificá-la.

—Oh!Acadelahalfling.Ela foiamadeKamala também,senãomeengano.Aquela.Haviaesquecidoseunome—porummomentoaRainhaEstrelasecalou.—Porquenão?HáHalflingsobastante.Terialhelevadoumadúziadecãeshalflings,sesoubessequevocêosqueria.

PaminaesteveapontodedizerqueamavaRawa,maslembrou-sederepentequeparasuamãeaspalavrasnãofaziamsentido.Eissoerao pior de tudo. Se a Rainha Estrela não podia compreender que elaamaraRawa,quevalorteriamsuasprópriasdeclaraçõesdeamor?

Sua mãe ainda a estava encarando, aquela mão estendida, ePaminanãotinhacoragemdeenfrentá-laerecusar-seair.Emsuamentejápodiaouvirogritofurioso,ostrovõesdeódio,asoberbamajestadedaRainhaEstrela.Paminarecuou.Nuncamaisterqueverafúriaoutravez, nuncamais ter que ouvir os trovões da ira.Nuncamais ter queescolher.

Posso mudar a mim mesma; estas são realmente as TerrasMutáveis,eninguémretornadelassemsermudado.Podiatransformar-senumpássaroevoarlivre...

Mas bem antes de ter escapado num vôo, sua mãe teria voadoatrás dela, um grande pássaro-nuvem, suplicando e incitando-a a

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abandonarTamino.Nãopodiaescapardestemodo,indodiretoparaosdomíniosdesuamãe.

Experimentou uma repentina sensação de se transformar emárvore; sentiu seus pés criando raízes, estendendo-se pelo interior daterraboa,seusbraçosseespalhandoenelesbrotandogalhosefolhas;ospássaros,bonsemaus,bempodiamfazerseusninhosnosgalhos,semqueelajamaisprecisasseouvi-losouprestaratençãoàssuasfantasias,semqueprecisasseconheceroterrívelmistériodaescolha.Aguisadeexperiência,fincoumaisospésnaterra,sentindotodocorpoformigaràmedida que eles cresciam e se espalhavam pelo interior da areia dodeserto, buscando água. Abriu seus braços, desejando ardentementequerebentassemembrotos,quecriassemcascaefolhas...

—Fique,então.—gritouaRainhaEstrelanarepentinafúriaquetantoatormentaraa infânciaeameninicedePamina,enumpiscardeolhossubiuaoscéus,suavozesuasmãosespalhandotrovões.Paminacobriu-seentresuas folhas tentandodeterminar-seaoensurdecimento,ao silêncio e à passividade; silenciosa e imune àquela súplica, parasempre...

Derrotada. Paralisada.A Rainha Estrela vencera, e ela fracassarano teste do Fogo, recuando para a amedrontada passividade, comosempre desejara fazer. Algo em Pamina queria aquilo. Algo nelasemprequiseraestarcegoesurdoemrelaçãoasuamãe,masaPaminaverdadeira reagira, lutara nas trevas contra a terrível criatura.Abandonaria a luta agora, permitindo que as mentiras de sua mãetriunfassem?NãofoiissooqueaprenderanosdomíniosdeSarastro.

NãohaviacomoserefugiarnaTerra.Compesar,Paminaestendeusuas mãos, vendo suas folhas caírem tristemente ao chão, arrancoudolorosamentesuasraízesdaterraesentiu-sedesligadasobreseuspéshumanos. Respirou fundo, experimentando a sensação do fogo daconfiança,enchendoseuspulmões.

—Não!AmoTaminoeficareicomele!—gritou.Sua mãe ainda estava acima dela. fulgurante com as jóias e a

belezadaRainhaEstrela.Seurisosooucomoumraiodeverão,umsommaníacoeselvagem.

—Tamino!Vocêacreditaqueeledesejaoutracoisadevocêanãoser o poder de desposar a filha de Sarastro? Pobre tolinha, elebarganhoucomigosuamão,Pamina.Nãosabiaqueeleestavaemmeu

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reino e sob meu poder, e fui eu quem o mandou para salvá-la deSarastro?MasquandoSarastrolheofereceumaispoderdoqueeutinha,ou que o tolo do Tamino pensou que eu tivesse, ele me abandonouporqueSarastropoderialhedarmais!

—Não é verdade!— Pamina gritou de fúria e terror.—Não éverdade! Devia ter sabido. Se ela era filha de sua mãe, e portantocorrompidaecompletamentedesgraçada,oquepoderiaTaminoquererdelaexcetoopoderquepossuíacomofilhadeSarastro?

—Você que fala tanto de verdade—disse suamãe em tomdedesprezo -,vejoqueaindaa teme!Bem,você teráaverdade,Pamina.Fique em silêncio agora, e ouça enquanto eu ponho à prova o seupreciosoTamino;vocêveráquãosinceroéeste...—fezumapausa,como horrível sorriso que conhecia desde sua infância— ...este amor doqualvocêestátãosegura.

Fez um movimento. Pamina, com seus próprios e recém-descobertos poderes mágicos, reconheceu o gesto tarde demais parapoderescaparasuainfluência.Viu-senumabolhadeescuridão,oculta,impotente, esfregando-se inutilmente para se mover, falar, fazer-sereconhecer, e então, aparecendo lentamente diante de seus olhos, viuTamino.

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CAPÍTULOVINTEEUMQuandopercebeu,comumhorrívelsentimentodeapreensão,que

Pamina desaparecera e que estava só com Monostatos, Taminodesembainhouaespadaepreparou-se.Sentia-sepreparadoparaoqueviesse. Sendo filho do Imperador do Oeste, recebera treinamentointensivo como guerreiro, lutador; e agora que se deparava comMonostatosaoalcancedesuaespada,nãoestavacommedo.Masondeestavam as armas do bruxo?Monostatos estava diante dele, demãosvazias e zombando. Como poderia atacar um homem desarmado?Novamenteconfuso,Taminohesitava,eMonostatos,numrápidoclarãode luz, moveu-se para a orla do pequeno bosque de arbustos.Realmente ele não podia ter corrido tanto. Segurando sua espada,Tamino correu atrás dele, mas uma gargalhada zombeteira enchia asruínas,eláestavaMonostatosoutravezapoucospassosdedistância,escarnecendodele.

—Pareelute,covarde!—Taminoberrou.—Comsuasarmas?Vocêbemquegostaria,nãoé?—Monostatos

gargalhava ruidosamente. Vindo de algum lugar um chicote de fogovergastouatestadeTamino.Machucado,Taminolevantouseusbraçosparaseproteger,ouvindoosgritossarcásticosdobruxo.

—OquevocêfezcomPamina?—Vocêgostariadesaber?Baixesuaespadaetalvezeupossalhe

dizer!—outrachicotadade fogobateuemcheiono rostodeTamino,por pouco acertando seus olhos. Urrando, furioso com a dor que lhequeimava,TaminoavançouàscegasparaMonostatos,arremessando-secontraomago,ávidoporatracar-secomele,mastropeçounumarbustoeestatelou-senaareia.Sempoderfalardetantoódio,berrou,enquantochicotadas de fogo, uma após a outra, vergastavam-no, queimando aparte de trás de sua túnica. Lutava para se proteger, pensando comdesesperoquerealmenteesteeraumOrdáliodeFogo.MaseraaestetipodeOrdálioqueossacerdotessereferiram?

Dolorosas chicotadas de fogo se abatiam sobre ele. Devia haveralgumacoisaquepudessefazerparacessá-las.EPamina,ondeestava,que provas deste tipo estaria enfrentando sozinha? A imagem dePamina,indefesacontraestehomemperverso,ouHalfling,ouserpente,

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ousejaláoquefosse,magoava-lhemaisdoquesuaprópriador.Pôs-se de pé num arranco, correu para Monostatos, e pegou-o

desprevenido; desta vez o bruxo conseguiu escapar com dificuldadeem seu rápido clarão. Tamino fingiu atacar com sua espada, quedesapareceu numa explosão incandescente, queimando a mão deTamino.Ignorandoador,agarrouumtufodecabelodeMonostatos.Dealgum modo sabia que o bruxo não poderia fazer seu truque dedesaparecerseTaminootocasseefetivamente.

Suaespadasefora.Nãohaviaproblema.Agoraquetinhaemsuasmãos o odiosoMonostatos, não precisavamais dela. Forçou a cabeçadelepara trás comaoutramãonopescoçodoHalfling.Sentia-a seca,quente, não desagradavelmente escamosa, o que distinguia umaserpenteHalfling.

—OquevocêfezcomPamina?Faleeeupoupareisuamiserávelvida!

Sobsuamãoagargantaescamosacontorceu-se,alongou-se,presoem sua mão um dragão rugiu, e Tamino recuou à medida queMonostatosseempinavasobresipróprio.

Experimentou uma rápida e terrível sensação de déjà-vu. Semdúvidaistoaconteceraantes,quandochegarapelaprimeiravezaestasTerraseodragãoavançaracontraele.TeriasidotambémMonostatos?Naquele lampejo de memória, Tamino reconstruiu rapidamente aimagem do homem nas ruínas; mais alto que Monostatos, com umnobreemelancólicosemblante...não,nãoeraMonostatos.EstaseramasTerras Mutáveis, e Tamino, por um momento, diante do fervilhanteterror emsuasveias,oatávicohorrorà serpente sentidopor todososfilhosdoMacaco, ansiou encolher até se tornar algo tãopequeno, tãominúsculo,queumdragãonãopoderiaveroumatar...

Emvezdisso,sentindorepentinamenteofogoresplandecenteemsuamão,eopoderdofogoqueimando-lheinteiramente,abriu-seaessepoder e gritou... nunca soube o quê; mas a dor em sua mão fê-loconsciente de que tinha outra vez a espada. Ela não se consumira nofogo. Isso foiuma ilusão, comoemparteodragão tambémdevia ser.Desfechou um golpe forte com a espada ondeMonostatos seriamaisvulnerável, peito aberto contra a espada, e viu o clarão de luz.Monostatos,emformahumana,estavaempénumcantodasruínas.Emseguidadesapareceu.

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Taminobaixoulentamenteaespada.AlgumacoisanelediziaquenãovenceraMonostatos;apenasoexpulsaradoplanofísico.Aespadaemsuamãotrazialongosriscosprateados,comoseometaltivessesidofundidoeforjadooutravez.Tremeuquandoaobservou.OrdáliopeloFogo,realmente;equandoviuaferidacauterizadalatejandonapalmadesuamão,percebeuqueaquiloeraapenasocomeço.

Na furiosa tensãodabatalhacontraMonostatos,não tiveraplenaconsciência da agonia de estar sendo queimado.Agora agarrava seupulso com a outramão, como se de algummodo a pressão pudessefazer cessarahorríveldordaqueimadura.Ouviuseugemidoaltodeagonia,eprecipitou-separaafontequePaminaordenaraquebrotassedarochaparaquelavassemseuscorposdepoisdatempestadedeareia.Pamina.OndeestavaPamina?Emseudesesperoqueriagritarporela,quando se lembrou, e isto acontecera em outra vida há milhares deanos, de Papagueno berrando o nome de Papaguena.Nada havia nomundoquenãofosseestadoreestaprivação,adoragudaemsuamão.Precipitou-se para a fonte, estendeu sua mão, e a areia correu pelaqueimadura, provocando uma dor que fez com que tudo queaconteceraantesparecesseagradável.

Gritou comoquandochamara suaespada, comoquandoPaminagritarabatendonaareia:“Água!”

Houve um momento de desespero, um momento de silenciosaagoniaepavor—seráquemorrerianasTerrasMutáveis,queimadoporumdragão?—eantesquesentisseofluxosobresuamão,acalmandoealiviando a dor: água fria, gelada. Mas não era a fonte que Paminaordenaraquesurgissenarocha.Descansavadecorpointeirosobaáguaàmedidaqueelaaliviavasuamãoqueimadaeas feridasprovocadaspelochicotedefogonorosto,nopescoçoenascostas,e,deitadaaoladodelenotanque,estavaamulher-lontra.

Então não foi só Pamina quem desenvolvera poderes demagia.Ele mesmo era um mago, um mago como Monostatos. Por ummomentosentiurepulsapeloquesetornara.SentiramedodePamina,quando pela primeira vez a vira transformada magicamente numagrandeáguia.Agoratemiaasipróprio.Chegouadesejarqueestivessenasterrasdeseupai,quejamaistivessevindoaestemundodemoníacoe de poderesmágicos. Estava sendo corrompido também. O que lheacontecera?NãosetornariamelhorqueMonostatos.

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Nunca quisera poderes mágicos. Não acreditava que pudessemresultar emoutra coisaquenão fossemaldade.Noentanto, foram-lheconcedidos,semqueosquisesse,semqueosexigisse.AspalavrasdeSarastroedoguiasoavamdesagradavelmenteirônicasemseuespírito:Nada será exigidodevocê, salvoquedêomelhorde simesmo todotempo.

Era isto o melhor de si, ordenar ao fogo que queimasse seuinimigocomoforaqueimado?Eisumenigmaassustador.

Suas roupas encharcadas pesavam-lhe agora como antes lhepesaram no mar entre os delfins, e ele achou que o remédio seria omesmoadotadonomar.Moveu-secomgestoslassosparaamargemesentou-senarelva,tirandoatúnicaensopadaeascalças.

Todo atrapalhado para tirar a roupa molhada, seus dedosprenderam-se por um momento no cordão a sua cintura. Apouquíssimo tempo — e no entanto já parecia distante! — Paminadesatara completamente este cordão. Fora o início de tudo queacontecera. Não, para ser franco, o ponto de partida fora quandocomeçara a desejá-la.MalditosOrdálios que excitam o desejo de umhomem e o punem por ceder a este desejo! “Injusto,” -pensouamargamente—aquiloera injustocomotudooquelheaconteceranoreinodeSarastro.

Desembaraçouocordão.ÁguaeFogoconsumiramtudo,menosalembrança daquele desejo. Sentiria ele novamente um desejo sem oterrordoquelheaconteceria?Atadaàcordaestavaaflautamágica.

Fitou-acomamargor.Deveriatocá-laoutravezepedirajudaaosMensageiros mágicos uma vez mais? Estava cansado de fazer o queesperavamquefizesse;queriaagircomoantes,porsuaprópriacontaeemseupróprionome.OguialhedisseraquenosOrdáliosdoAredaÁguaaprenderaquenemsemprepoderiamanterocontrolesobretudo.Seráque jamais tornariaasedominar?Pousoua flautaaoseu lado,evoltousuaatençãoparaasroupasmolhadasespalhadasnarelvaparasecar.

Deondesaíraarelva?Estavamnumdesertodeareia,eagoraseencontrava numa floresta densa e chuvosa onde vira amulher-lontra.Elaestavasubmersanotanque,apenasseusolhoseseucabelonegroemacioeramvisíveis,masseuolharnegroeintensoconstrangeu-o.

Comoousavaolharparaeledaquelemodo?Eleeraumhomem,e

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afinal já fora encarado por Halflings mais do que o suficiente nosúltimos dias. Monostatos, arrogante, brutal, ousara feri-lo comchibatadas de fogo num duelo de feiticeiro no qual Tamino jamaistencionaraseengajar,eolevaraapagarcomamesmamoeda.Sentia-seusado, humilhado, queimado, despido diante do olhar da mulherHalfling.

Perguntourudemente:—Porqueestámeolhandoassim?Ela imergiu totalmente na água, e diante de seu medo algo

horrível seagitouno fundodamentedeTamino.EssesHalflingsquecontinuamenteosobrepujavam,queoatormentavam,Monostatoscomsuas chibatadas de fogo, os delfins que o forçaram a ceder e a serebaixar... ele era um homem, estava farto de se sentir oprimido poressesHalflings.Elaeraumamulher.SemdúvidaqueosOrdáliosnãoforam planejados para privá-lo de sua virilidade, e o teste aqui, épossível, foi mais sutil do que ele imaginara. A mais simples dasmetáforas do fogo era simplesmente sexual; e então, sentindonovamenteodesejocrescerdentrodele,pegouaflautamágicaetocouumaúnicanota.

Ela tem poder sobre os Halflings. Posso fazê-la vir até a mim.Talvezotestefosseapenaseste,queondetudopareciaconspirarcontraele para privá-lo de virilidade, de poder, de vontade oudesejo, paraimpedi-lo de tomar a iniciativa, neste momento deveria afirmar eprovarodomíniodoHumanosobreoHalfling.Realmente,sóentãoelepoderiaprovar seudomínio sobre o elemento final do fogo, odesejoquesentiaardernoseucorpo.

Experimentou soprar uma outra nota na flauta, e ainda umaterceira.Amulher-lontra, seusolhos fixosnele,arrastou-se lentamenteparaforad’água,tãologoasnotasisoladasconvergiramnumapequenaária.Porqueelaoestavaolhandoassim?ElapertenciaàinfelizespéciedosHalflings,ecomoMonostatosbempoderiaimportuná-loeatacá-locaso ele nãomantivesse seu poder com a flauta. Continuou tocando,enquantoamulher-lontrasemovialentaerelutantementeparaabordado tanque. Estava nua. Bom... agora ela pagaria por sua humilhaçãodiante dos delfins. Repousava passiva, estendida na frente dele. Seucorponãoeraodeumamulher,absolutamente,maserafemininoeelenãosepreocupouemimpedirodesejoenvolventeatiçadonele.Ofogo

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estava queimando dentro dele, um fogo violento. Mas ela não eraPamina...

Pamina. Para proteger Pamina não hesitaria em tocar a flauta eexplorarosHalflings.Entãofariaestemauusodaflauta,sabendoquemesmo por esse motivo era proibido? Com um berro de desesperojogouaflautaparaoladoecobriuorostocomasmãos.Oquefizera,depoisdetodoestetempo,parafracassaragoradestemodo?Amulher-lontraaindaestavaali,deitadacomosmembrosestendidos,passivaeinsensível,seusolhosarregaladosdeterror.Semsevoltar,Taminofezsinalparaquesefosse.

—Nãovou lhemachucar.Vá!Vá...—e, lembrando-sedoqueodelfimlhedissera-,vá,irmã!

Olhouaflautacomhorror.Queatitudeelaquaselhefizeratomar?Jálhehaviamditoqueeraumaarmapoderosa.Mesmoemsuamãoelaquase o traiu.Nessemomento, se não estivesse commedode tocá-laoutravez,ateriaatiradonotanque.

Suaroupa, sujadesangueequeimadapelaschibatadasde fogo,estava ali, embolada e fétida, sobre a relva,mas teria que vesti-la dequalquermodo.Quãovulneráveleinsignificantelhepareciaagorasuanudez. Podia ver ainda, do outro lado do tanque, a mulher-lontrafitando-odesconfiada.Nãoacensurava.Tampoucopodiaconfiaremsimesmo. Jamais em toda sua vida se sentira tão miserável eenvergonhado.Passouocordãodetrêscorespelasuacintura,lutandocomascordasúmidaserebeldes.Nãoasmereceu.

Sua mão ainda latejava, apesar de a angústia ter aliviado umpoucoadordosferimentoscausadospelochicote.Amarrouaespadaasua cintura.Aomenos não degradara esta arma como o fizera com aflauta confiada a ele. Olhou-a, interrogativamente, querendo saber seela traria Pamina de volta; já os ajudara antes, mas isto aconteceraquandoaindanãohaviaabusadogrosseiramentedaconfiançaque lhefora depositada. Se ao menos tivesse pensado em tocar a flauta epedidoaosMensageirosqueajudassematrazerPaminadevoltaparaele.SeaomenostivesseainocênciadePapagueno!

Deitou sobre a borda relvosa do tanque, punindo-serepetidamente. O tempo passava, ele ouvia os bebês peludos damulher-lontra brincando descuidadamente no tanque, mas não lhesprestava atenção. Lembrou-se das lontras que lhe deram banho no

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paláciodaRainhaEstrela,oquepareceuterocorridohámuitotempo,numaépocaemqueeleeraapenasummenino,umainocênciahámuitotempoperdida.

Ir tão longe com os Ordálios e fracassar no final, sob aquelamesma Terra onde antes triunfara! Orgulho e confiança, em excesso,provocaram sua queda. Fracassara para sempre? Teria sido por nãoconseguirchamarPaminadevolta,mesmocomseuspoderesmágicosrecém-adquiridosenãodesejados?

Deixou-se ficar ali ainda um longo tempo, até que, sob o solardente, uma sombra cruzou seu campo de visão e pousou, escura,sobrearelva.EntãoMonostatosretornaraparazombardeleaindamais?AbriuosolhoseviuaRainhaEstrelaaoseulado.

Destavez,nadademajestadeougrandeza,nenhum trovão,nemmesmoumcírculodeestrelas.Elaeraapenasumamulherenvelhecida,pequena, curvada, envolvida nummanto de névoa cinzenta, um véucobrindoseucabelogrisalhocomoconvinhaaumamatronajánãotãojovem. Pôs-se de pé, cautelosamente, recuando e cumprimentando-acomumareverência.

—Estácommedodemim,meufilho?—elaperguntouemtomderepreensão.

Taminonãofaziaamenoridéiadoquedeveriaresponder.Fez-seumlongosilêncio.

—Tambémvocême traiu—eladissepor fim.—Não lhepedique salvasse minha filha Pamina? Você nãome jurou que a salvariamesmoàcustadesuamorte?

Taminocurvouacabeça.—Jurei—respondeunumsuspiro.—Eu confiei em vocêmeu amigo.Não tinha razão para confiar

desdequevocêjurousermeuamigo,PríncipeTamino?Oquedeveriadizeraela?Realmentesecomprometera,masnem

bemchegaraaoreinodeSarastro,foraconquistadopeloRei-Sacerdote.Nãosepreocupouemsaberporquevieraadesconfiardela,ouporquequebrarasuapromessadesalvarsuafilha.PorquenãosalvaraPamina?PorquechegaraàconclusãodequePaminanãoprecisavasersalva?

Nãopodiaselembrar.— Você foi seduzido por Sarastro, assim como todos os meus

amigos foram seduzidos por aquele homem pérfido. Todo o país de

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Atlas-Alamésiosestásobsuatirania,umatiraniaqueperverteeseduzaprópriamente, que estabeleceria o governodosHalflings sobrenós edestruiriatodoosaberdosCriadores.Masaindahátempo,meufilho,pararenunciarasualealdadeaomaiordostiranos.Aindanãopercebeucomoelementiuparavocê,usouvocê,seduziuvocêcomaperspectivada mão de Pamina em casamento? Mas isto pode resolver tudo.RenuncieaSarastro,eeusereisuaaliada.

DerepenteosolhosdeTaminodesviaram-separaaflautamágica,que jazia sobre a relva. Não tivera ânimo para amarrá-la outra vez àcintura.Maseracomoseelenãoconseguissereconhecerumavozque—avozdePamina?Não sabiadizer—estivessegritandonas trevasparaele:

—A flauta, Tamino. Toque a flauta. Ela é a arma encantada daVerdade,enenhumamentirapodeserditaemsuapresença.

DesviouosolhosdaRainhaEstrela.Comoesperavainterromperoqueelaestavadizendoapenasseabaixandoparapegaraflauta?Oqueo faziapensar que eramuito importante ter a flauta em suasmãos, etocá-laantesqueaRainhaEstrelavisse?

—Tamino,meu filho, olheparamim.Ouçaminha voz. Sarastroenfeitiçouvocê,manipulouseuorgulho.Paminavoltouparamim;elaagorasabeaverdade,esabecomoSarastromentiuparavocês.

—Tamino.Aflauta.Toqueaflauta.SeguramenteeraavozdePamina.Eledeuumpasso,curvou-see

apanhou a flauta, mas não podia interrompê-la começando a tocarrepentinamente a flauta. Entretanto, sentia-semelhor com ela em suamão.

—Bem,Tamino,nãotemnadaamedizer?Virácomigoparameupalácio,ondePaminaestáasuaespera?Sarastronãolhepodedarsuamão,elarenunciouaele.Masseviercomigo,euosunirei.Aquiestãosuasirmãs;elasoconduzirãoatéPamina.NãosabiaqueeramasirmãsdePamina,queridofilho?

Tamino agora via nas sombras atrás dela as três mulheres, etornou a se lembrar de seus nomes: Disa, Zeshi e Kamala, que lhedissera que como guerreira trocaria sua espada, lança e escudo pelaflauta.PorqueKamalatraziasualançaemposiçãodecombate?Astrêsusavamvestesnegrascomonuvensdetempestade,maisnegrasqueadaRainhaEstrela.

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—Venha comigo, querido filho. Prometi-lhe a mão de Pamina,vocêeminha filha reinarãosobre todasas terras,epor fimdestruirãoSarastro.

—Gostariadeouvir istodospróprios lábiosdePamina—disseTamino.

—Masvocênão sabe— retrucouaRainhaEstrela,num tomdedocepersuasão—queeusouPamina,comosoutodasasmulheres?

E diante de seus olhos assombrados, aquela figura curvada eencolhida empertigou-se, o cabelo cinzento tornou-se dourado eondulante,eograciosorostodePaminasorriu-lhe.

—Meuamado—elasussurrou-,veja,estouaquicomvocêoutravez, e juntos destruiremos o grande tirano. Venha, pegue emminhamão,meuúnicoamor,juntosdominaremos.

Estendeusuamãoparaele.— Pegue em minha mão. Esqueça os ardis de outros bruxos.

Estamosjuntosdenovo.Podia acreditar nisto? Pamina já lhe aparecera antes totalmente

irreconhecívelgraçasassuasartesmágicaseaindaassimacreditaraqueera ela. Qual seria a verdade? Seria tudo uma charada mágica,abusandodesuainocência,suacredulidade?

— Pegue em minha mão — ela ordenou, desta vez um poucoasperamente—etornaremosanosunir...

Tamino começou a estender sua mão para ela. Sem dúvida eraPamina.TeriasidoaRainhaEstrelaotempotodo?Começouaestendersuamãoparaela.MaspercebeuqueestavasegurandoaFlautamágicaemsuamão.

“EmtodoOrdálioantesdestepediquevocêtocasseaflauta,paraquenos trouxesse auxílio e conforto emnossasdificuldades. Tamino,toqueaflauta.”

OlhouparaPaminaàsuafrente.Nãopercebeuqueelafalara.Mascertamenteforasuavoz.Hesitou,ePaminafaloufuriosa.

— Apresse-se! Segure em minha mão, enquanto ainda possomudarseudestino!

Atrásdelapareciaqueasnuvensdetempestadecorriampelocéu,queastrevasestavamacairsobretudo.

Trovejou,eemseguidaumraiocortouosares.—Quemestáfalandoemtraição?—eraavozdeMonostatos.—

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foraamimquevocêprometeuPamina!Amim!Eagoraestávocêoutravez fazendo propostas a este desprezível forasteiro do oeste, estejoguete de Sarastro! Pamina é minha, você assim jurou, e agora estámentindodenovo,comomentiuparameupai...

OcorpodePaminabruxuleou,seurostoempalideceu;olhando-osdoaltodesuamajestade,estavaoutravezaRainhaEstrela.

— Você, Monostatos? Você... Halfling? — cuspiudesdenhosamenteemseurosto.

Monostatos limpouo rostovagarosamente. Suas feições estavampálidasdeódio,

—Senhora,nemmesmoaRainhaEstrelapodebrincardestemodocomofilhodaGrandeSerpente!

A Rainha Estrela deu de ombros com desdém. Nesse momentoouviu-seumgranderugido,dolugarondeMonostatosestavaergueu-se novamente o dragão, e um hálito de chama passou sobre eles.Tamino já presenciara a transformação. Desta vez não ficaraaterrorizado;masaRainhaEstrelareagiucomfúriaeespanto.Fezsinalàstrêsdamasquepairavamaofundo.

—Matem-no!—gritou.—Matem-no,rápido!Ouviu-seogritodedesesperoeangústiadeDisa.

— Ela nos traiu também! Nosso pai! Nosso pai, e nós jamaissoubemos!-TaminopercebeuderepenteadimensãodadeslealdadedaRainhaEstrela.

Eraaterceiravezqueviaestametamorfosedehomememdragão,estaterríveltransformação.AntesforaMonostatos;masdaprimeiravez,quando chegara a este país, lutara com um dragão, e as três damas,agorasabia,mataramodragãoparasalvarsuavida...

Aquele não era Monostatos, mas o Grande Dragão. Por razõespessoaisaRainhaEstrelaordenaraàssuasfilhasquematassemaqueleque fora seu consorte, aquele que gerara suas filhas. Duplamentefuriosoagora,MonostatosnaformadedragãoavançouparaaRainha;Tamino, porém, ainda vendo alguns traços de Pamina no rosto daRainhaEstrela,lançou-se,espadanamão,entreelaeodragão.

—Monostatos— bradou -, não lute commulheres! Tenho umasériarixacomvocêenãoodeixareilutarcomaRainhaEstrela;vire-separamim,poislutareicomvocê.

LevantousuaespadaeouviuatrásdesiagargalhadadaRainha

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Estrela.—Ah,quecavalheirismo!Quetolo!Comoseeuotemesse,como

dragão ou humano, Halfling! — suas palavras ardiam de sarcasmo.Voltou-separasuastrêsfilhas.—Oqueestãoesperando?Suaslançasmepertencem,meninastolas:matem-no!

Todaviaelasseesquivaram,eDisagritoudeangústia.— Por você matamos nosso pai. Devemos matar nosso irmão

também,Senhora?Tamino!Toqueaflauta!Pelaúltimavez,eulheimploro!Tamino

colocouaflautanoslábiosecomeçouatocar.ARainhaEstrelagritou:—Tirem-nadele!Tirem-na,elafoiroubadademim,éminha...—

masTaminocontinuoutocando.TinhapodersobreosHalflings,ecomtodaasuaformadedragão,comtodasasfeitiçarias,MonostatoseraumHalfling. A música da flauta espalhou-se pelas Terras Mutáveis. Amulher-lontra tornou a se arrastar para fora do tanque, seus filhotespeludos e de cabeças redondas atrás, mas desta vez Tamino nemchegouaolhá-la;Monostatos,aindacomodragão,começouaencolherlentamente,aténãomaispassardaalturadaRainha.

PaminaapareceuaoladodaRainha,cobrindoosolhoscomoseosprotegesse da luz. Era a verdadeira Pamina em sua túnica encardidapelaareia,ocordãotrançadoqueelemesmodesatara.

ElaapontouparaMonostatos.—FilhodaSerpente—exclamou -, emnomedaVerdade, torne

agoraaoquerealmenteé!Eulheordeno.Por um momento Monostatos, o homem, permaneceu parado

diante deles, seu rosto contorcido por um esgar de terror. A seguircomeçouaencolher,adiminuirmaisemais.Nãoeramaishomem,nãoera mais dragão; curvou-se até ficar de quatro, tornando-se cada vezmenor.As escamas ficavam cada vezmais ásperas àmedida que elediminuía,atéquediantedetodosumpequenolagartopôs-seacorreremcírculos; e enquanto todosolhavam,ele subia sobreoutro lagarto,copulavarapidamente,descia,afastava-secorrendoecomeçavaalutarcomoutrolagarto.

Pamina estava pálida de terror, mas olhava para Tamino semlágrimasnosolhos.

—Eleencontrousuaverdadeiraforma—sussurrou.—Comoerasuaalma,agoraéoseucorpo.

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Tamino estremeceu. O destino de Monostatos o colhera tãovelozmentequeaRainhaEstrelaaindaseachavainerte.Porfimdirigiu-seaPamina:

— Jamais o deixaria machucar você—mas as palavras soaramvazias,ePaminafitousuamãecomumrostopétreo.

— Você mentiu para mim e mentiu para Tamino.Alguma vezvocêjáfoicapazdedizeraverdade?

AvozdaRainhaEstrelaerapurodesdém.—Verdade?Vocêéumatola,Pamina.Fizoquedeviafazerenão

mejustifico.Haveráguerraentrenóstambém,Pamina?—fezumsinalparaastrêsdamas.

—Levem-naparaopalácioenquantoeumeocupocomestetolo.Astrêsdamasnãosemexeram.

—Vocêmentiuparanóstambém—Zeshifalou.—Durantetodaanossavidavocênosmentiu.Nóslheservimoslealmente;etodooseuamorecarinhoforamparaPamina.Paravocêsomosapenasservas,quedevemserexploradasparaobemdenossairmã.

—Comopode falarassim!Você sempreesteveàminhadestraeparticipoudemeupoder—afirmouaRainhaEstrela.—Noquetangeaestatolainútil,comseussonhos,euarenegotambém.Kamala!Suasarmassempremeserviramprontamente...

—Mas não mais a servirão — murmurou Kamala — Pamina...irmã...nãotenhosidoumaboairmã,maslhesuplico,ajude-me.

Paminasussurrou:—Irmã,sejaoquevocêrealmenteseria...Kamala silenciou por um instante, Então, diante da aterrorizada

Pamina, Kamala começou a encolher. Suas roupas escorreram pelochão,vazias;suaspernasjáestavammeioafundadasnaareia,ePamina,lembrando-se do momento em que criara raízes, estremeceu decompaixão.OsbraçosdeKamala,muitopequenosagora,seesticaram,tornaram-severdes,exibiramosespinhosdeumcactododeserto.Elatremeu ainda uma vez e calou-se para sempre, cercada pelas armasinúteisquerenegara.

Ohorrorparalisantedurouapenasumminuto.Logoouviu-seumtrovão, um grito de fúria, e a Rainha Estrela, com todo o seu ódio,avançousobreeles,prontaparadestruir.

—Finalmentevocêsestãoemmeupoder—gritou.

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Gelado,Taminoobservou-a inclinar-sedeumaalturagigantesca,suasmãoseramasmãosdeumgiganteprontasparaesmagá-loscomopoeira.

MasPamina,comumgesto,bradounumavozquepareceuenchertodoocéu,ouniversointeiro.

—Não!QueosCriadoressedecidamporumadenós!Vocêfoiasenhora da terra, da Água, do Ar e do Fogo, como agora eu sou.Tamino!Toqueaflauta!—equandoTaminopôsaflautanoslábiosecomeçouatocar,Paminaexclamou:

—EmnomedaVerdade!Vocêtambém,Senhora,mostre-nossuaverdadeiraforma.Sejaoqueforédeverdade.

Porummomentoviram-seasascinza,imensas,terríveis,baterem,grandes garras investirem para arrebatar, e Tamino recuou. Então ovento encapelou asTerrasMutáveis, e uma coruja rosa bateu asas napoeira, piscando melancólica e repetitivamente. Pamina engoliu emseco,masparaTaminoelaestavasoluçandoemsilêncio.

— Pássaro da Noite — Pamina sussurrou, soluçando -, voe naescuridão, grite suasmentirasparaquemquiser ouvir, até quevenhaumgrandepredador...Oh, Tamino, Tamino, ela se foi!— e desabou,soluçando, em seus braços.—Acabou, e ela se foi, ela era a RainhaEstrela... era minha mãe, eu a amei mesmo que ela jamais tenha meamado,mesmoqueelajamaistivesseamadoalguém...

Tamino mantinha-a em seus braços, sem ter uma palavra quepudessedizerparaaliviarasuador.Minutosdepoiscomeçouatocaraflauta, sabendoquedestavezosMensageirosviriampara levá-losdevolta, triunfantes, à cidade. Todavia, tanto para Pamina, quanto paraele, por um longo tempo, o triunfo seria amargo e desprovido desentido.

Àmedida que tocava, experimentava uma curiosa antevisão doqueaconteceriadaliparafrente.PodiaverPaminapedindodevoltaaPapaguenoos sinosmágicos, epodiamesmoouviroquePapaguenodiriaquandoelalhepedisseperdãoportomá-losdele.

— Está tudo bem, Senhora, prefiro mesmo meu apito, objetosmágicosnãosãoparapessoascomoeu.Papaguenaeeunãoprecisamosdetaiscoisas.

Podia ver a procissãomágica pela cidade daRainha Estrela, eletocando a flauta e Pamina tocandoos sinosmágicos, a proclamar aos

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Halflings que os sacrifícios terminaram para sempre. Alguns delesfugiriam da cidade em busca de novas moradias na floresta, ondeviveriam, livres dos homens, até queAtlas-Alamésios desaparecessesobasondasnumderradeiroterremoto.Outrosficariam,dependentesda proteção e dos cuidados da humanidade, um homem deveriaassumiraresponsabilidade,eele,TaminoaassumiriaquandoSarastrosefosse.

Os Mensageiros estavam diante dele, com sua voz mágica emusical.ElesoaclamaramcomoSenhordaTerra,doAr,daÁguaedoFogo. ComoPamina os saudasse com gravidade, ele tentou abrir umsorrisoparaela.Afinal,eraodiaemquesecasariam.

—Masoquefaremos?—Zeshiperguntou.—NãoqueromorrercomoKamala...

Paminarespondeuséria:—Vocêélivreparafazeroquequiser,irmã.Disa olhava aterrorizada para o céu, onde a Rainha Estrela

desaparecera,elançou-seaospésdePamina.— Irmã! Irmã! Não me transforme em pássaro, ou em qualquer

outracoisaterrível,porfavor,oh,porfavor...—Nãolhefareimal—Paminasuspirou.—Oquequerfazer?—Você...vocêsetornoutãopoderosa...—Disamurmurou.—Se

eu fosse para o templo de Sarastro, será que seria admitida aosOrdálios?

PaminaolhouparaosMensageirossemsaberoqueresponder.OsMensageirosfalaramaumasóvoz.

—OsOrdáliosestãoabertosa todosquequeiramsesubmeteraeles. Desde o Grande Dragão nenhum Halfling passou pelos quatroOrdálios em triunfo; mas se ela deseja tentar, poderá fazê-lo. Entre,mulherhalfling,ondePapaguenoentrouantesdevocê.

Paminaestendeusilenciosamenteamãoparasuairmã.Sabiaquese Disa ingressava nos Ordálios em busca de poder não iria muitolonge,nãoalémdeMonostatos.Mas comopodia saber?Disapoderiamostrar-semaisfortedoquePaminaimaginava;afinaldecontas,eraafilhamaisvelhadaRainhaEstrela.

PaminacontemplouasTerrasMutáveisaoredor,eseperguntouse algum dia voltaria a elas. Seu coração estava vazio da antigaadoração, e onde antes trazia sua mãe havia uma ferida aberta. Mas

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nestediadetriunfonãoseesquivariaàalegriadeTamino.SegurouamãodeTaminoeesperouosMensageiros levá-losde

voltaemtriunfoaoTemplodeSarastro,ondeherdariamoreinocomoRei-SacerdoteeRainhadeAtlas-Alamésios.

—Nãoestivemosdentrodeumvulcão,querido—elasussurrou-,massuasroupasestãoqueimadascomosevocêtivessesidolançadoaofogo.Oqueachaqueoguiadirá?

Comumsentimentodeprofundagratidão,ouviu-orir.

Fim

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NOTADAAUTORANOTA DAAUTORA sobreA FILHA DA NOITE eA FLAUTA

MÁGICA,deMozart:A primeira apresentação da ópera A flauta mágica ocorreu em

1791, trabalho realizado em conjuntopelo compositor e seu libretista,palhaçopopulareatornatradiçãoKasperidacomédiadeViena.Desdeaprimeiraexibiçãodaópera,observou-senoenredodecontodefadasumaalegoriadeconteúdosério.Desdeentão,nosúltimosdoisséculos,opúblicoatentotemperguntado:“Quesignificaisto?”

Caí sob o encantamento da flauta mágica quando ainda eracriança. (Na realidade, como escritora de ficção científica paraadolescentes,adoteiporumcurtoespaçode tempoopseudônimodeAstrafiammante, em homenagem à Rainha da Noite, e embora logotivesse deixadodeusá-lo, primeiro abreviando-oparaAstra e depoissimplesmente suprimindo-o, nenhum dos meus leitores na épocajamais me deixou esquecê-lo. Em reuniões de escritores de ficçãocientíficaháquemaindamexacomigoporcausadisso.)

Dediquei muito de minha vida adulta a escrever histórias defantasiaeficçãocientífica;éclaroqueconceboanarrativasobessaluz.

Nestarecriação,usei,pornecessidade,muitasfontes.Semdúvida,li comentários sobre o simbolismo “maçom” da ópera — Mozart eShikanedererammaçons—eviofilmedeIngmarBergman,quefezdeHaakonHagegaardumastro.Gostariadedizer logode imediatoquetireideBergmanapenasumaidéia:adequePaminaerafilhadaRainhada Noite com Sarastro. Isto dá sentido toda a trama de relações, emesmo à rivalidade entre oRei-Sacerdote e aRainha, de outromodoincompreensível.

Entreasoutrasinfluênciassobreminhaversãoestáalendadeumaantigacivilizaçãoanteriorànossaquefoidestruídapelomauusodasciências;como,porexemplo,atentativablasfemadecruzarhomemcomanimal.A luz da atual pesquisa sobre a recombinação deADN, estapossibilidadenãoparecetãofantásticacomosoouquandodaprimeiravezqueliarespeito.

Mencionei acima a criação de ficção científica; há um lugar-comum, uma observação bem-humorada de que “a realidade é uma

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muletaparaaquelesquenãosabemescreverficçãocientífica”.Algumaspessoas, desesperadas porque sua leitura preferida é considerada“respeitável” — isto é, em pé de igualdade com a ficção popularbaseada em adultério provinciano -. ficam realmente furiosas quandoouvem tal observação.Masmeu leitor predileto é aquele que lê comtodaasuacapacidadeperceptiva,semprecisar,paraficaràvontade,deambientes familiares ou personagens que podem ser encontrados naesquinaounanoveladerádiodomundocotidiano.

Assim, indomais longe,diria que a ficção científica é, por si só,uma muleta para aqueles que não sabem lidar com a fantasia. Domesmo modo que a ficção científica força as pessoas a imaginar atecnologiaeculturadofuturosemamuletadoaquieagora—contosdeadultérioprovincianoeafamiliar“novelacor-de-rosa”-,tambémafantasia força o leitor a se confrontar com seus arquétipos, com asimagensquesemovimentamnosubconsciente,mesmosemo“futuroimaginado” ligando-nos ao nosso próprio mundo. Aqui nosmovimentamos entre nossos arquétipos, as necessidades interiores denossamenteeespírito.NaspalavrasdeMichaelStraight,comentandoJ.R.R.Tolkien,“Afantasianãoobscurece,antesiluminaanaturezamaisprofunda da realidade.” Tais criaturas da eterna imaginação, como ohomem-pássaro Papagueno ou a Rainha da Noite, não precisam serexplicadas pelos chavões imaginários da vida mundana com arecombinaçãodeADN:comooGatodeCheshireeaMadrastaMalvada,elasexistemnaimaginaçãocoletiva,senãodetodaaraçahumana,pelomenosnouniversodelínguainglesa.

Eestelivroumafantasia,umaficçãocientífica,umaparábola,umaalegoria ou simplesmenteum contode fadaspara contentar a criançaquehabitanossointerior?

Deixo a resposta a cargo do leitor. Como escritora estou aquiapenascomminhaflautamágica,etocoparavocêsumaáriaencantada.

MarionZimmerBradley

Berkeley,CalifórniaDezembro,1983