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CÍRCULO HERMENÊUTICO E INTEGRIDADE – A INTERPRETAÇÃO NO DIREITO COM BASE EM HANS-GEORG GADAMER E RONALD DWORKIN HERMENEUTIC CIRCLE AND INTEGRITY - INTERPRETATION BASED ON HANS-GEORG GADAMER AND RONALD DWORKIN Ricardo Araujo Dib Taxi RESUMO Este trabalho pretende ver a interpretação no Direito com base na Hermenêutica Filosófica de Hans-Georg Gadamer e na teoria interpretativa de Ronald Dworkin, mostrando a relação entre as duas e usando-as de modo a fundamentar filosoficamente a necessidade de se recorrer à continuidade histórica de formação dos direitos para a sua plena efetivação. Busca-se mostrar que toda interpretação é pautada em pré- compreensões, as quais são justamente a condição histórica do interprete. Tais pré- compreensões precisam ser trazidas à tona para que se possa saber até que ponto coadunam-se efetivamente com a contínua afirmação histórica dos direitos fundamentais, para a qual deve se voltar a compreensão jurídica, sendo a via do Direito como integridade de Ronald Dworkin o caminho explorado pelo presente trabalho em busca de uma interpretação do Direito que efetivamente reconstrua os valores morais sob o fio condutor da ética. PALAVRAS-CHAVES: HERMENÊUTICA FILOSÓFICA. TEORIA INTERPRETATIVA. RONALD DWORKIN. ABSTRACT This article intends to analyze the interpretation within the Law science based on the philosophical hermeneutics of Hans-Georg Gadamer and on the interpretative theory made by Ronald Dworkin, showing the connection between both and using them to make a philosophical sustentation on the need of recurring to the Law’s historical chain for it’s full implementation. It pursues the objective of showing that all interpretation is based on previous comprehensions, which are the historical situation of the reviewer. Such previous comprehensions must be brought to surface in order to discuss them for a continuous improvement in Law’s interpretation, using the theory of Law as integrity established by Dworkin as the way that this article uses to chase a interpretation that effectively rebuilds the moral values being guided by ethics. KEYWORDS: PHILOSOPHICAL HERMENEUTICS. INTERPRETATIVE THEORY. RONALD DWORKIN 1. INTRODUÇÃO 4855

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CÍRCULO HERMENÊUTICO E INTEGRIDADE – A INTERPRETAÇÃO NO DIREITO COM BASE EM HANS-GEORG GADAMER E RONALD DWORKIN

HERMENEUTIC CIRCLE AND INTEGRITY - INTERPRETATION BASED ON HANS-GEORG GADAMER AND RONALD DWORKIN

Ricardo Araujo Dib Taxi

RESUMO

Este trabalho pretende ver a interpretação no Direito com base na Hermenêutica Filosófica de Hans-Georg Gadamer e na teoria interpretativa de Ronald Dworkin, mostrando a relação entre as duas e usando-as de modo a fundamentar filosoficamente a necessidade de se recorrer à continuidade histórica de formação dos direitos para a sua plena efetivação. Busca-se mostrar que toda interpretação é pautada em pré-compreensões, as quais são justamente a condição histórica do interprete. Tais pré-compreensões precisam ser trazidas à tona para que se possa saber até que ponto coadunam-se efetivamente com a contínua afirmação histórica dos direitos fundamentais, para a qual deve se voltar a compreensão jurídica, sendo a via do Direito como integridade de Ronald Dworkin o caminho explorado pelo presente trabalho em busca de uma interpretação do Direito que efetivamente reconstrua os valores morais sob o fio condutor da ética.

PALAVRAS-CHAVES: HERMENÊUTICA FILOSÓFICA. TEORIA INTERPRETATIVA. RONALD DWORKIN.

ABSTRACT

This article intends to analyze the interpretation within the Law science based on the philosophical hermeneutics of Hans-Georg Gadamer and on the interpretative theory made by Ronald Dworkin, showing the connection between both and using them to make a philosophical sustentation on the need of recurring to the Law’s historical chain for it’s full implementation. It pursues the objective of showing that all interpretation is based on previous comprehensions, which are the historical situation of the reviewer. Such previous comprehensions must be brought to surface in order to discuss them for a continuous improvement in Law’s interpretation, using the theory of Law as integrity established by Dworkin as the way that this article uses to chase a interpretation that effectively rebuilds the moral values being guided by ethics.

KEYWORDS: PHILOSOPHICAL HERMENEUTICS. INTERPRETATIVE THEORY. RONALD DWORKIN

1. INTRODUÇÃO

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Na antiguidade clássica, hermenêutica representava, sobretudo, uma arte. A transmissão da vontade dos deuses à compreensão humana que o Deus Hermes realizava era equiparada à arte de adivinhar e prever o futuro (GADAMER, 2002).

Muito embora o termo "arte" possa sugerir um caráter místico ou próximo a uma espécie de entretenimento, é fundamental ressaltar o caráter cognitivo que pautava a compreensão artística. Em suma, as artes, incluindo a hermenêutica, possuíam valência cognitiva.

Com a modernidade, sobretudo após a ilustração, essa visão cognitiva da hermenêutica perdeu drasticamente sua função e a metodologia científica de conhecimento tornou-se o método hermenêutico.

Assim, de "arte de interpretar o sentido de algo", a hermenêutica passou a ser uma metodologia da correta compreensão, fixando parâmetros técnicos e lógicos para tanto.

Como conseqüência, também o fenômeno jurídico foi abrangido por essa cientificidade, fazendo da hermenêutica jurídica o método científico de descrever os diferentes modos de interpretação de uma norma.

Esse cientificismo gerou as mais diversas conseqüências para o fenômeno jurídico. Não foi por outra razão que o positivismo estabeleceu como ponto final da descrição pura do Direito o momento em que o Juiz se encontra frente à moldura que é a norma e tem, portanto, que interpretá-la (KELSEN, 1998). A impossibilidade de explicar cientificamente o processo interpretativo fez o positivismo excluí-lo de uma análise mais contundente.

O contentamento positivista de restringir o Direito a aspectos cientificamente experimentáveis entrou em contradição com expectativas materiais em relação ao Direito, especialmente a questão de que, para além de forma, aquele deve buscar a aplicação da justiça e a materialização dos direitos fundamentais.

A emergência dessa contradição fez-se notar de modo especial após a segunda grande guerra. O impacto inesquecível de Auschwitz-Birkenau[1], considerando o fato de Alemanha ser um Estado de Direito, denunciou a insuficiência da pureza a-valorativa do positivismo (KELSEN, 2006) e colaborou com o compromisso de um Direito engajado na construção de valores éticos e na concretização de Direitos fundamentais.

Dessa forma, o Direito de um modo geral precisou novamente embasar-se em valores morais, engajar-se em posicionamentos que revigorassem o fio condutor ético perdido. A interpretação voltou a ser vista como preocupação fundamental do Direito.

Todavia, embora tal reviravolta tenha projetado um vasto campo de aplicação e problematização das bases do positivismo jurídico, um dos pontos filosóficos centrais sob o qual a pretensão positivista se ergueu permaneceu inalterado, qual seja o império da racionalidade metódica destacada a partir do Aufklärung.

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Desse modo, embora se tenha avançado em relação às pretensões do positivismo, tal avanço se deu ainda sob as bases lógicas que o constituíram. As teorias da argumentação jurídica são herdeiras dessa concepção.

Sem negar a importância ou mesmo a validade das modernas teorias lógico-analíticas acerca do Direito, pretende-se aqui debater o fenômeno interpretativo sobre o ponto de vista filosófico, é dizer, pensar o próprio acontecer do processo interpretativo enquanto um processo de abertura histórica do interprete (GADAMER, 1999).

Sob este cerne hermenêutico, pretende-se analisar a historicidade da interpretação e defender um modo construtivo de interpretar o Direito, tendo como fio condutor a tradição histórica que erigiu os valores fundamentais explicitados na Constituição.

Para tanto, será analisada a Teoria do Direito como Integridade de Ronald Dworkin (DWORKIN, 1986) sob a luz ontológico-histórica da Hermenêutica Filosófica de Hans-Georg Gadamer, mostrando que a melhor interpretação e aplicação da teoria de Dworkin pode ser tida lendo-se a mesma a partir da Hermenêutica Filosófica, bem como mostrando uma efetiva proximidade entre ambas e sua capacidade de aprimorar a construção interpretativa do Direito sob o fio condutor ético que lhe é hoje considerado inseparável.

2 - A ONTOLOGIA DA INTEPRETAÇÃO E A QUESTÃO DOS PRÉ-CONCEITOS

Em nossos dias, cada vez mais se incorpora ao imaginário jurídico a idéia de que a finalidade do Direito é conferir lógica ao discurso jurídico e que, portanto, a verdadeira legitimidade do Direito está em conferir uma coerência discursiva que permita à população controlar as decisões judiciais através de métodos racionais.

Ao se fixar o cerne deste trabalho em uma visão filosófica da interpretação, tal escolha se dá como questionamento crítico à questão de um método racional e correto de se interpretar/aplicar proposições jurídicas.

Sob o enfoque filosófico, pretende-se mostrar como de fato ocorre a interpretação, isto é, trazer à tona um acontecer anterior à escolha metodológica e mesmo a questão jurídica estritamente considerada.

Por isso, faz-se necessário estudar a ontologia da interpretação.

Partindo das reflexões gadamerianas (GADAMER, 1999), vê-se que a razão sempre põe em marcha quando da compreensão uma intenção, a qual por sua vez é fundada no conhecimento prévio que temos sobre algo. Desse modo, a racionalidade não pode ser vista como uma ferramenta mágica em prol do verdadeiro conhecimento, livre de preconceitos. Vê-se que conhecer algo já é sempre interpretar, posto que a visão é sempre feita a partir dos pré-conceitos do interprete.

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Desde já, deve-se deixar claro que tais pré-conceitos não são vistos de maneira pejorativa e tampouco como uma limitação à interpretação tida como correta. De fato, a constatação de que a compreensão flui pela via dos conhecimentos prévios que temos sob o ente a ser compreendido só deixa claro que a interpretação sempre se funda em intencionalidades moldadas por essas pré-compreensões.

Todavia, ao contrário de um embasamento que veria nas pré-compreensões uma barreira ao conhecimento puro, parte-se aqui da constatação de que os preconceitos são na realidade a condição de possibilidade do conhecimento. Partindo da circularidade hermenêutica (HEIDEGGER, 2008), elimina-se qualquer possibilidade de uma "tabula rasa" pré-interpretativa.

Vejamos como Heidegger, já no primeiro capítulo de Ser e Tempo, trata circularidade da questão acerca do sentido do ser:

Enquanto busca, o questionar necessita de uma orientação prévia do que busca. Para isso, o sentido de ser já nos deve estar, de alguma maneira, à disposição. Já se aludiu que sempre nos movemos numa compreensão de ser. É dela que brota a questão explícita do sentido de ser e a tendência para o seu conceito. Não sabemos o que diz ser. Mas já quando perguntamos o que é "ser", mantemo-nos numa compreensão do "é", sem que possamos fixar conceitualmente o que significa esse "é". Nós nem sequer conhecemos o horizonte em que poderíamos apreender e fixar-lhe o sentido. Essa compreensão vaga e meditada de ser é um fato. (HEIDEGGER, 2008, p. 41)

A partir da vislumbração dessa circularidade como condição precípua da compreensão, poder-se-ia enxergar tal círculo como vicioso, como um eterno movimento de pressuposição que iria impedir o verdadeiro conhecimento na medida em que só se poderia buscar o que já se sabe e, assim, estaria atada a capacidade humana de modificar e de efetivamente fugir de uma tradição em busca de um conhecimento livre das amarras desveladas pelo círculo hermenêutico. Entretanto, é exatamente o contrário disso que Heidegger visa. O círculo hermenêutico, ao contrário de aprisionar, revela a abertura da presença. Se toda busca retira do que se busca a sua direção prévia, é preciso então conscientizar-se de da historicidade imanente e da temporalidade como sentido do ser, para então poder projetar o pré-conceito legitimamente.

Jean-Cassien Billier, ao tratar das influências advindas à reflexão jus-filosófica contemporânea a partir da idéia do círculo hermenêutico (BILLIER, 2005. pág. 390), expõe a relação entre o todo (ordenamento jurídico) e as partes (proposições ou enunciados normativos). Com efeito, é um cânone interpretativo particularmente fecundo ao Direito a necessidade, para se compreender uma norma, de situá-la na ordem jurídica da qual a mesma faz parte. Da mesma forma, a única maneira de se ver a ordem jurídica é através dos enunciados que a compõem. A análise de cada uma das normas possibilita uma interpretação de seu todo, o qual é também a ferramenta interpretativa de interpretação das normas singularmente consideradas. Esse condicionamento recíproco é obviamente modificável à medida em que as novas respostas não se

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coadunem com as que se partiu anteriormente, sendo portanto a noção do todo e das partes sempre provisória e sujeita a reflexões.

A partir dessa circularidade do conhecimento, inverte-se o dever do interprete. Ao invés de buscar se ver livre de intencionalidades prévias ao interpretar algo, deve o mesmo buscar tornar-se consciente de suas pré-concepções, trazendo-as ao debate e, assim, possibilitando sua revisão em prol de outras que venham a parecer mais coerentes. Contribui-se, desse modo, com a auto-reflexividade no Direito, cada vez mais fundamental em uma ordem que parece estar sendo estruturada em direção a um papel cada vez mais relevante por parte do Judiciário e dos juízes de maneira singular.

Nesse sentido, a presente reflexão defende não só o desvelamento dessas intencionalidades, mas também a necessidade de o interprete (para estes fins considera-se o interprete das normas jurídicas) expressar essas intencionalidades, assumindo-as como a intenção sob a qual interpretou tal ente, como resultado de sua condição histórica.

Por outro lado, ao se fixar a reflexão em métodos que levem à interpretação, se deixa de lado esse aspecto fundamental humano, que é a sua abertura histórica, tratando-o como um ser a-histórico. A objetivação do conhecimento jurídico e a dicotomia sujeito cognoscente - objeto cognoscível são fruto dessa separação.

A historicidade de todo conhecimento e a condição histórica de qualquer método tido como correto são a condição de possibilidade de seu próprio aprimoramento e também de se ver suas vulnerabilidades.

Antes de adentrar propriamente à interpretação construtiva ao lado da historicidade, é fundamental que seja examinado outro aspecto que embasa a compreensão do fenômeno interpretativo, qual seja o seu caráter existencial, enquanto autêntico modo de ser do homem. Embora a finalidade do presente artigo seja primeiramente jurídica, é fundamental estabelecer as premissas filosóficas que pautam a análise, uma vez que as mesmas são indispensáveis ao desenvolvimento das teorias aqui defendidas.

Partindo de um paralelo com o exemplo trazido por Billier acerca do todo e das partes, pode-se dizer que Gadamer, ao longo de sua obra Verdade e Método (GADAMER, 1999), edifica e amplia a premissa heideggeriana de que a compreensão não é um modo de agir, mas o próprio modo de ser do homem enquanto ser jogado no mundo. Dessa forma, alçando-se o compreender à atividade fundamental humana, a relação entre o todo e as partes adquire um caráter existencial. A interpretação jurídica, para usar o exemplo que aqui buscamos explorar, passa agora a interpretar a norma a partir da totalidade da vivência do interprete.

Consequentemente, a partir da ampliação da interpretação à atividade que põe em jogo a existência humana, a questão dos preconceitos é também radicalmente ampliada. A tarefa de por em jogo as intencionalidades exigirá por parte do interprete um exercício de auto-compreensão, mediado pela exigência de um "olhar-se em perspectiva", é dizer, admitir a quando de sua interpretação as suas inevitáveis vulnerabilidades, abrindo-se desse modo à constante crítica dos resultados provisoriamente alcançados.

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3. RECONSTRUÇÃO E INTEGRAÇÃO INTERPRETATIVA

Apontadas essas breves reflexões acerca da ontologia da interpretação, faz-se agora necessário discutir a sua finalidade frente ao conteúdo de sentido a ser interpretado (neste caso os comandos legais).

No final da primeira parte de sua obra Verdade e Método (GADAMER, 1999), o autor apresenta de forma sintética dois modos de se responder à pergunta acima trazida. Tal dialética é realizada contrapondo-se os parâmetros fundamentais das concepções hermenêuticas de Schleiermacher e Hegel.

Nessa análise, Gadamer expõe como cânone principal da teoria hermenêutica de Schleiermacher a questão da interpretação através da reconstrução das idéias do autor. Sob esta perspectiva (que pode ser reconhecida no historicismo de Savigny), a interpretação visa reconstruir as idéias do autor ao realizar seu ato criativo. Para tanto, faz-se necessária uma transferência para dentro da constituição completa do autor, um pensar que reconstrua mentalmente a individualidade alheia e assim seja capaz de reconstruir a unidade de sentido primariamente criada.

Ademais, na medida em que tal transporte para a individualidade alheia é mediada por um período histórico entre a criação e a interpretação, o interprete, através desse olhar em distância, poderia compreender historicamente o pensamento interpretado e assim entender a obra do autor melhor do que o próprio autor a compreendeu (GADAMER, 1999), tendo em vista que este pode ter posto em marcha diversos elementos inconscientes em sua criação, os quais poderão ser vislumbrados pelo interprete através desse olhar em perspectiva.

Frente a essa perspectiva, a qual foi também tratada por diversos outros teóricos de diferentes áreas[2], Gadamer defende ao longo de sua obra um ponto de vista distinto do acima exposto, e o faz com base em dois argumentos centrais que são aqui de extrema importância.

Como primeiro óbice à reconstrução das intenções do autor, aparece a questão da impossibilidade fática de se reconstruir com precisão tais intenções, considerando que as possíveis conclusões a que chegue o interprete, por mais trabalhadas que sejam e fruto de um esforço reconstrutivo, serão sempre vistas a partir de um momento histórico distinto, o qual o interprete está impreterivelmente inserido e do qual não pode escapar.

Como exemplo, um Juiz que busque interpretar uma lei mediante a reconstrução da intenção do legislador, transportando-se para o contexto e tentando pensar tal qual aquele autor, jamais poderá revitalizar o contexto histórico, as pré-compreensões do legislador, bem como os diversos fatores que podem ser incluídos em se pensando as peculiaridades de contextos históricos diversos e de interpretes diversos. Essa reconstrução é, desde o começo, uma tarefa inalcançável, muito embora seja inegável que tal busca auxilia no processo interpretativo.

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A falibilidade desta tarefa objetivante de apropriação reconstrutivista do passado restou evidenciada sobretudo a partir da questão do acima explicado círculo hermenêutico. Os pré-conceitos do interprete, enquanto possibilidade de abertura deste para a compreensão, refletem um momento histórico de vivência que não pode ser afastado, ademais porque a história e assim os acontecimentos como um texto ou uma obra de arte não se apresentam ao interprete como um objeto a ser analisado pelo sujeito. Com efeito, o interprete está imerso na história e movimenta-se no seu interior. Tal constatação, ao mesmo tempo em que possibilita que se analise filosoficamente a história e se busque compreender-se dentro dela e compreendê-la, condiciona o olhar a partir do instante em que tal imersão se dá.

Entretanto, a constatação da impossibilidade metódica de reconstruir o passado como um objeto plenamente apropriável à razão cognoscente do interprete, não necessariamente deve ser vista de forma negativa ou limitadora. É limitadora somente se a intenção for tornar interior algo que é inescapavelmente exterior. Ver-se-á que há outras possibilidades de se relacionar com a interpretação e com o valor do que pode ser alcançando pela mesma.

Neste sentido, em oposição à reconstrução discutida sob o referencial de Schleiermacher, Gadamer busca em Hegel uma nova noção de história e um novo modo de considerar a relação entre interpretação e distância histórica (GADAMER, 1999).

À princípio, constata-se que efetivamente as condições históricas em que ocorreu determinada criação são agora inacessíveis ao interprete. Entretanto, ao contrário de pensar incansavelmente em um método para tornar acessível ta realidade, a interpretação volta-se para o presente. Já não se trata então de buscar reconstruir a intenção do autor em seu contexto, mas sim de interpretar a obra de modo que a mesma diga alguma coisa ao interprete em seu momento presente, ou seja, que o sentido expresso ali possa ser lido a partir das perspectivas presentes, realizando assim uma mediação entre o passado e o presente, a qual é trazida em Hegel como integração. (GADAMER, 1999, pág. 268).

Seguindo a construção integrativa aqui descrita, não se está a dizer que o modo correto de analisar um evento histórico é olhando-o com base no contexto presente e ignorando o contexto em que foi escrito. Em verdade é o contrário. Analisar uma obra ou texto buscando a compreensão de seu contexto para melhor poder pensá-la, e não para estipular qual o seu sentido "correto".

Em todo caso, resta claro que essa interpretação como mediação entre passado e presente exige um processo também criativo do interprete. É a inserção da perspectiva em que o mesmo vive. Tal criação não deturpa o sentido, mas busca-o. Pretende-se reinterpretar no presente algo antes pensado, buscando fazer do ente interpretado algo contínuo, e que portanto pressupõe as mudanças de sentido como naturalmente constituintes da mediação realizada pela tradição.

O ponto de partida que possibilitou semelhante construção veio indubitavelmente através do romantismo alemão, de onde floresceu a concepção de história como um movimento contínuo, pelo qual o devir dos acontecimentos não é vislumbrado como um conjunto de fatos isolados, mas como uma continuidade. A idéia de mediação histórica

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só é possível a partir dessa vislumbração de um movimento contínuo, o qual se torna visível ao interprete a partir do diálogo com a tradição. (BLEICHER, 1992).

A partir dessas reflexões acerca da interpretação, tal fenômeno perde o seu caráter definitivo e passa a ser um eterno desafio ao interprete. A crítica da idéia de que o valor de uma obra se esgote nas intenções do autor sobre aquela, por mais que abra espaço para contínuas re-interpretações do mesmo conteúdo, enxerga uma relação dialogal entre as sucessivas interpretações daquele conteúdo, a qual é fundamental para o tema aqui desenvolvido.

Com efeito, a interpretação de uma lei promulgada na década de 40 obviamente não poderá se contentar com a intenção que tinha o legislador ao criá-la. Gadamer também nos lembra que uma lei não é feita para ser entendida historicamente, mas sim para ser aplicada, razão pela qual o autor utiliza o exemplo da aplicação de uma lei justamente para demonstrar que a intenção do autor (no caso o legislador) não pode bastar para que a interpretação chegue à sua finalidade. A tensão entre um comando de sentido já realizado no passado e a necessidade de aplicá-lo no presente exige do interprete sempre uma re-interpretação do conteúdo do comando a fim de solucionar a questão que naquele momento move a interpretação.

4 - RONALD DWORKIN E A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO COMO INTEGRIDADE

Neste ponto, fixadas as linhas gerais da hermenêutica gadameriana, mostrar-se-á como a mesma possui semelhanças estreitas com a teoria de Ronald Dworkin, propondo-se em seguida um diálogo entre ambas com vistas a enriquecer os debates relativos à interpretação no Direito.

Deve-se ressaltar, contudo, que não se está a defender uma adaptação de Dworkin da teoria gadameriana. A constatação da que ambas comungam pontos fundamentais ao Direito e que portanto estudá-las em conjunto pode ser de especial interesse à interpretação jurídica satisfaz os anseios aqui trazidos.

Dito isso, passemos então à também sucinta exposição das linhas gerais da teoria dworkiniana.

Sucessor de H.L.A Hart na cátedra de teoria e filosofia do Direito na Universidade de Oxford, Dworkin é acima de tudo um teórico do direito e pensador político, herdeiro e seguidor do liberalismo, que parte de decisões e problemas postos no seio jurídico e busca embasamentos filosóficos para além do Direito na medida em que as questões internas do fenômeno jurídico assim o exigem e o faz para responder a tais questões.

Em sua obra O império do Direito (DWORKIN, 2003) o autor inicia seus argumentos objetando as teorias que pretendem definir o Direito em termos fáticos, como se houvesse um consenso acerca do que significa conceitualmente o Direito.

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Dworkin, em contraposição, vê o Direito como um fenômeno interpretativo, de modo que quando se conceitua o Direito se está interpretando as práticas jurídicas e ao mesmo tempo expondo uma maneira de interpretá-las. Por essa razão, o jus-filósofo vê a necessidade de debater filosoficamente a questão da interpretação, de modo a clarificar a maneira que a mesma ocorre no Direito e erguer sua teoria frente aos dois grandes adversários que o mesmo elenca em sua obra, quais sejam o convencionalismo e o pragmatismo.

Nos moldes traçados pelo autor na obra acima citada, o convencionalismo possui como característica marcante a recorrência ao passado para fundamentar suas decisões. O modo como os Juízes decidiram o caso é o parâmetro para decidir um caso semelhante que se apresente no futuro. Como pode ser visto (e Dworkin expõe isso ao longo da obra), tal concepção se assemelha à teoria hermenêutica que busca reconstruir a intenção do autor, remontando às premissas da já aqui tratada reconstrução do autor, a qual Gadamer expôs através de Schleiermacher.

Em todo caso, a razão pela qual o Império do Direito parece rejeitar o convencionalismo foca-se em questões mais normativas que ontológicas.

Como já ressaltado, Dworkin constrói seu pensamento a partir dos problemas jurídicos. Como um liberal, privilegia argumentos pautados em consensos firmados para além das divergências entre os praticantes e teóricos do Direito.

Assim, muito embora a questão interpretativa seja abordada também sob o ponto de vista filosófico, qual seja o da natureza mediadora entre a compreensão do passado frente às perspectivas para o futuro, Dworkin prefere fundamentar tal intenção interpretativa sob o ponto de vista das finalidades do Direito. Seria portanto mais um dever do interprete do que a constituição ontológica do ato de interpretar.

Em todo caso, o que se está a defender aqui são justamente os méritos da teoria de Dworkin frente à questão filosófica. A justificativa prática que Dworkin dá para defender sua teoria é em certos pontos idêntica à construção filosófica gadameriana, que remonta à tradição hermenêutica européia e sobretudo alemã.

Obviamente, deve-se ter em conta que ambos os autores partem de tradições amplamente distintas e, como já salientado, buscam responder a questionamentos amplamente diversos em suas obras. Todavia, tal não impede o diálogo enriquecedor entre ambas as construções, mas o propicia. Nesse sentido, a visualização das distinções contextuais é extremamente necessária para que não se compreenda o pensamento dos autores reportando-os à um diálogo do qual não fizeram parte.

Voltando à perspectiva de Dworkin, nota-se que o desafio do mesmo em responder à questão positivista do decisionismo discricionário leva o autor a enfrentar o segundo adversário, qual seja o pragmatismo.

Sob tal enfoque, defender-se-ia a decisão judicial como voltada unicamente para o futuro, não havendo qualquer valoração acerca da o alcance de determinada norma ou da interpretação já realizada. O interprete seria livre para decidir do modo que quisesse, contanto que tal decisão se mostrasse mais condizente com respeito ao futuro. Uma espécie de utilitarismo.

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Este enfoque, criticará Dworkin, choca-se com os anseios de uma comunidade acerca de um princípio que Dworkin chama de integridade, e que é o cerne de sua teoria (DWORKIN, 2003).

Segundo tal idéia, por mais divergente e plural que reconhecidamente seja determinada comunidade, a mesma reconhece legitimidade à princípios básicos de moralidade, liberdade, igualdade etc.., os quais nessa medida seriam cânones à interpretação das leis dessa comunidade caso se queira tê-las vistas como legítimas para tal comunidade.

Muito embora haja divergências quanto ao alcance e conteúdo de tais princípios, a comunidade concordaria em ver o Direito decidido não só isoladamente com base em algum desses princípios, mas de um modo coerente. Nesse sentido, Dworkin considera atraente a visão do Direito e da comunidade política como um organismo singular, o qual precisa ser coerente com o percurso interpretativo que, em consonância com os princípios, segue. Tal coerência, aparecendo como um princípio autônomo, se choca inclusive com a Justiça, se considerada singularmente em um caso. É dizer, em um caso no qual a decisão justa seria x, é possível se decidir de maneira Y de modo a respeitar a integridade do Direito naquela comunidade. Tal decisão será considerada legítima na medida em que a integridade é autonomamente um princípio legítimo (DWORKIN, 2003).

Neste cerne, deve-se ressaltar que a teoria de Dworkin une à pretensão deontológica de que o Direito se conforme a tal modelo, juntamente com constatações fáticas de que a integridade é efetivamente vislumbrada pelas pessoas de uma comunidade (no caso os EUA) e reconhecida.

Assim, concordando que a interpretação do direito não é e nem poderia ser silogística logicamente mas que também não pode ser desvinculada da história e nem das perspectivas presentes e futuras, Dworkin defende a integridade como uma atitude do Juiz frente ao passado e ao futuro. Vejamos a explicação de Jean Billier acerca da tese dworkiniana:

A aplicação de toda regra a uma situação concreta não se dá jamais de maneira irrefletida. Uma regra jurídica a aplicar fará sentido tanto á luz da situação no presente quanto à luz da história de uma prática social que, com o passar do tempo, forjou uma certa concepção de justiça. O conceito de direito, afirmará Dworkin, nunca é independente de uma concepção do direito e da justiça. Nunca é independente da concepção do direito que têm os participantes dessa mesma prática. A doutrina do filósofo americano se liga ao enfoque hermenêutico que, com relação à aplicação do direito, considera a dimensão da história (as decisões judiciárias anteriores, os trabalhos preparatórios de legislação) para aplicá-la no presente, uma vez que isso serve de guia para melhor compreender e até mesmo melhor se apropriar do passado (BILLIER, 2005, p.422).

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Desse modo, a interpretação seria uma espécie de romance em cadeia, (DWORKIN, 2003. pág. 275) no qual o interprete do Direito encontra-se tal qual um escritor que recebe um livro já escrito até determinado ponto e que deve nesse momento continuar a ser escrito. Tal exigência imporá ao autor, obrigatoriamente, que crie algo novo, todavia de modo a fazer sentido com as páginas anteriores, de modo que se possa reconhecer tratar-se da mesma obra. Nesse caso, uma criação totalmente livre (como o pragmatismo) não seria tolerada não só em razão da continuidade que se exige de um livro como em razão da coerência horizontal da obra, ou seja, das expectativas que os futuros leitores têm em relação ao acontecimento. Essas expectativas, vale dizer, estão intimamente ligadas aos princípios da comunidade na qual estão inseridos os leitores.

Por essa definição, resta claro que a teoria de Dworkin resulta em uma interpretação como integração, mediando o passado e o presente sob um ponto de vista de continuidade. Aqui, o embasamento ontológico - que novamente não é o fundamento central dessa teoria - aparece ainda mais como capaz de dar coerência filosófica ao diálogo interpretativo no Direito. Partindo de direções opostas (Gadamer da filosofia para o Direito e Dworkin pelo caminho inverso) ambos os autores defendem teorias convergentes e que sob o ponto de vista jurídico devem ser vistas em conjunto.

5 - CRÍTICA AO RACIONALIDADE METÓDICA NA ESTEIRA DE GADAMER E DWORKIN

Por fim, resta abordar a questão do método interpretativo e assim dialogar com críticas à essa visão não metódica da interpretação.

Pode-se objetar à construção até agora exposta que os conceitos de continuidade histórica, integridade, mediação integradora etc. são interessantes mas são por demais vagos, não possuindo assim eficácia frente à uma questão difícil que se apresente em um caso concreto. (Desde já deve-se fazer o adendo, embora não seja o enfoque do presente trabalho, que aqui não se defende a conhecida tese dworkininana de que há apenas uma resposta correta em casos controvertidos.)

Essa objeção, que não é a única à teoria do Direito como Integridade mas sob o presente enfoque é a mais importante, pressupõe a existência de métodos capazes de chegar à uma interpretação legítima do Direito. Os objetores de Dworkin geralmente socorrem-se em teorias da argumentação jurídica para mostrar que nessas últimas há meios de se apresentar uma decisão aceitável, muito embora o conceito de aceitável seja também polêmico.

Obviamente, nenhum teórico da argumentação defenderia que há meios lógicos de garantir sempre a decisão correta ou justa, ou que há meios de interpretar de maneira sempre correta. Seu ponto é que critérios lógicos e formais podem apresentar a legitimidade que se espera das decisões quanto ao seu fundamento, muito embora a

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interpretação sob o ponto de vista até agora abordado seja também um campo não passível de ser metodologicamente definível.

Sob esse enfoque, a teoria de Dworkin seria forte caso possuísse maneiras de conduzir o interprete aos objetivos que mesma propõe, não sendo atraente, todavia, do modo aberto e conceitual como é tratada pelo autor.

No intuito de dialogar com essa crítica, será aqui utilizada a explanação gadameriana acerca do saber ético de Aristóteles.

Gadamer utiliza Aristóteles para defender o fato de que a interpretação não é uma técnica. Por técnica entende-se um ofício que possa ser previamente aprendido e que, ao ser executado, possua os passos e meios de se chegar ao modo correto. A arte de um carpinteiro é paradigmática a esse respeito.

Ao contrário desse tipo de saber, a ética aparece como uma arte, ligada ao senso de tato e a sensibilidade de um modo geral. Não pode haver um meio pré-estipulado de se considerar tal pessoa como dotada de ética uma vez que a ética é uma exigência prática referente ao agir. No caso concreto, a pessoa não sabe de antemão como deve ser o comportamento ético, o qual só mediante um caso prático pode ser vislumbrado. (GADAMER, 1999, pág. 645)

Do mesmo modo, a interpretação não é uma técnica como a carpintaria, mas uma atividade voltada ao senso de tato, uma espécie de arte. A equidade não é uma adequação necessária frente à impossibilidade de se conseguir tecnicamente a adequação entre a regra geral e o caso concreto, mas o próprio método de vislumbrar o caso concreto frente à parâmetros que guiem a intenção interpretativa.

Sob essa ótica, a legitimidade conseguida por métodos argumentativos é importante sob um aspecto tão somente formal. A interpretação, enquanto processo muito mais amplo e não logicamente delimitável, está melhor vislumbrada a partir de um diálogo que efetivamente penetre em sua amplitude, que ao invés de abdicar de considerar as pré-compreensões do interprete, traga-as ao debate.

Desse modo, a teoria do Direito como integridade passa de uma resposta tímida ao problema da interpretação e das decisões jurídicas para uma alternativa ousada, que envolve elementos completamente distintos dos modos científicos que o positivismo se valeu e deixou como herança para boa parte das teorias contemporâneas. Por essa razão, ganha importância também o socorro à hermenêutica gadameriana, cujo principal e declarado objetivo é expor a compreensão nas ciências humanas com base em algo parâmetros não metódicos, deixando este método para as ciências naturais, nas quais não funciona como é imprescindível.

4 - CONCLUSÃO

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A conclusão deste trabalho, como já demonstrado a partir de suas bases, não poderia ser uma resposta.

Não se buscou descobrir o método certo e definitivo de tratar a interpretação jurídica. O reconhecimento da historicidade de qualquer interpretação e qualquer método é o anseio deste trabalho e esse conhecimento é fundamental para afastar qualquer pretensão estatizante. Tal qual Gadamer, não se tem a pretensão de querer dar a última resposta acerca de algo.

A possibilidade de que a verdade não se encontre só no cientificismo metódico, mas que possua um campo próprio nas ciências humanas, não deve desanimar-nos frente aos impasses interpretativos do Direito. O Estudo aprofundado do Direito sob a base aqui tratada é vasto e não se encontra reduzido frente a esse panorama. Trata-se tão somente de mudança de perspectiva.

A teoria do Direito como Integridade foi aqui defendida não somente pela possibilidade de aproximar suas premissas à ontologia gadameriana. Defende-se aqui o conteúdo moral da teoria de Dworkin como legítimo e atraente à prática jurídica. Não é o caso de considerá-lo como a última resposta ou como metafisicamente válido, mas sim como uma perspectiva de interpretar o Direito. O próprio Ronald Dworkin permanece escrevendo e nesse sentido modificando pensamentos trazidos na obra aqui trabalhada.

Também não se teve a intenção, vale frisar, de negar qualquer valor às teorias analíticas do Direito e em especial às teorias da argumentação jurídica, mas sim de restringi-las a meios de apresentar formalmente uma decisão jurídica, os quais jamais podem prescindir da análise de como se chegar a tais decisões.

Por uma questão de corte metodológico, não se realizou aqui propriamente um diálogo entre essas duas vertentes jus-filosóficas, o qual certamente seria fecundo. De igual maneira, não foi abordada a questão gadameriana relativa à experiência da arte, a qual é também basilar para defender a questão do método especial às ciências do espírito. Para a finalidade aqui apresentada, a questão da estrutura da compreensão como abertura histórica e a interpretação enquanto integração são sem dúvida os pontos centrais para por os dois autores em diálogo.

No mais, a vislumbração dessa tradição histórica, que ocorre sobretudo na linguagem, precisa também de reflexão ímpar.

Por tudo, a conclusão a que se chega aqui alude para uma amplitude de abordagem do Direito, a partir do reconhecimento deste como parte da universalidade hermenêutica e impreterivelmente imbricado na questão interpretativa. Tal amplitude não seria necessária em teorias formais do Direito, sobretudo a positivista. Nesse sentido, a base para toda essa preocupação reside na constatação da necessidade de engajamento em valores éticos e na exigência de interpretações que possuam consonância com os princípios do Direito, com ênfase na integridade.

Nunca é demais destacar que este trabalho não é e nem quer ser a única via adequada a essas finalidades. A sua possível re-interpretação em outro contexto, inclusive com conseqüências diversas das aqui queridas, aparecerá não só como

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inevitável mas é desde já vislumbrada como uma qualidade impreterível frente ao dinamismo do Direito e do pensamento de um modo geral.

8 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] Local na Polônia onde foram construídos diversos campos de concentração, nos quais foram exterminadas milhões de pessoas pelo regime nazista. O termo é aqui utilizado como sinônimo do Holocausto ocorrido na Alemanha de Hitler.

[2] O historiador Quentin Skinner (SKINNER, 1996), por exemplo, defende em suas obras a idéia de que o melhor modo de se compreender um evento histórico é através de um recuo ao contexto em que as fontes foram escritas, com a intenção de compreender melhor as intenções do autor de determinado escrito, as perguntas que o mesmo queria responder com seu texto.

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