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CADERNO CRH, Salvador, v. 20, n. 49, p. 107-122, Jan./Abr. 2007 107 Any B. L. Ivo 107 CIDADE - MÍDIA E ARTE DE RUA Any B. L. Ivo * Os espaços urbanos construídos, indepen- dentemente de suas dimensões, constituem meios de comunicação capazes tanto de edificar como de registrar mensagens, transformando-se em ferramen- ta de comunicação, de imagem e expressão de insti- tuições, grupos e (ou) do próprio indivíduo. O seu uso como ferramenta de comunicação pode gerar efeitos de coesão identitária e cultural (e integração, proximidade e resistência), mas também de domi- nação. O espaço urbano das cidades (edifícios, ca- sas, prédios, lojas, conjunto arquitetônico, muros, paredes, praças, sistemas de transporte, etc.) e suas apropriações compõem, assim, uma das dimensões estratégicas de manifestação ou expressão de diver- sos grupos sociais – meios empresariais, agentes públicos governamentais, publicitários –, mas tam- bém de minorias culturais ou indivíduos. Isso se dá na medida em que ele abriga, registra e é fonte de representação, de identidade e de relacionamento entre os atores e a cidade, e vice-versa. A cidade, caracterizada pela concentração de população, como centro cultural e político, com- preende uma infinidade de manifestações de uma complexa rede, algumas contraditórias e mesmo paradoxais, sendo a expressão de atores sociais diversificados, meio de comunicação e desvendamento de formas locais específicas de comunicação, transcendendo a sua concreção físi- ca para se tornar mídia 1 e mensagem de si mesma. Tradicionalmente, diferentes atores urbanos, políticos ou culturais, têm se apropriado de su- perfícies das cidades para difundir imagens ou mensagens próprias. Essa manifestação cultural, sob a forma de grafite, vem sendo reconhecida como expressão de identidade e resistência cultural de jovens de centros urbanos, mas gera, em alguns 1 Entende-se por mídia ou média toda forma ou meio de expressão: os meios de comunicação, as formas ou veí- culos usados para essa expressão e comunicação. A mídia é tanto uma forma como um sistema e um processo de comunicação. Corresponde a uma complexa rede articu- lada de formas de comunicação e expressão, continua- mente mutantes: “...mídias dentro de mídias”, “...mídias fortalecendo outras mídias”, “....mídias surgindo, englo- bando ou unificando mídias”, novas mídias, etc. Ver, Briggs; Burke, 2002. * Mestranda em Arquitetura e Urbanismo da Universida- de Federal da Bahia. Rua Caetano Moura, 121 - Federação Cep: 40210-350. Salvador - Bahia - Brasil. Telefones: 55 (71)3247.3511/3235.7614. [email protected]

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Os espaços urbanos construídos, indepen-dentemente de suas dimensões, constituem meiosde comunicação capazes tanto de edificar como deregistrar mensagens, transformando-se em ferramen-ta de comunicação, de imagem e expressão de insti-tuições, grupos e (ou) do próprio indivíduo. O seuuso como ferramenta de comunicação pode gerarefeitos de coesão identitária e cultural (e integração,proximidade e resistência), mas também de domi-nação. O espaço urbano das cidades (edifícios, ca-sas, prédios, lojas, conjunto arquitetônico, muros,paredes, praças, sistemas de transporte, etc.) e suasapropriações compõem, assim, uma das dimensõesestratégicas de manifestação ou expressão de diver-sos grupos sociais – meios empresariais, agentespúblicos governamentais, publicitários –, mas tam-bém de minorias culturais ou indivíduos. Isso sedá na medida em que ele abriga, registra e é fonte derepresentação, de identidade e de relacionamentoentre os atores e a cidade, e vice-versa.

A cidade, caracterizada pela concentraçãode população, como centro cultural e político, com-preende uma infinidade de manifestações de umacomplexa rede, algumas contraditórias e mesmoparadoxais, sendo a expressão de atores sociaisdiversificados, meio de comunicação edesvendamento de formas locais específicas decomunicação, transcendendo a sua concreção físi-ca para se tornar mídia1 e mensagem de si mesma.

Tradicionalmente, diferentes atores urbanos,políticos ou culturais, têm se apropriado de su-perfícies das cidades para difundir imagens oumensagens próprias. Essa manifestação cultural,sob a forma de grafite, vem sendo reconhecida comoexpressão de identidade e resistência cultural dejovens de centros urbanos, mas gera, em alguns

1 Entende-se por mídia ou média toda forma ou meio deexpressão: os meios de comunicação, as formas ou veí-culos usados para essa expressão e comunicação. A mídiaé tanto uma forma como um sistema e um processo decomunicação. Corresponde a uma complexa rede articu-lada de formas de comunicação e expressão, continua-mente mutantes: “...mídias dentro de mídias”, “...mídiasfortalecendo outras mídias”, “....mídias surgindo, englo-bando ou unificando mídias”, novas mídias, etc. Ver,Briggs; Burke, 2002.

* Mestranda em Arquitetura e Urbanismo da Universida-de Federal da Bahia. Rua Caetano Moura, 121 - FederaçãoCep: 40210-350. Salvador - Bahia - Brasil. Telefones: 55(71)3247.3511/3235.7614. [email protected]

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casos, poluição visual, uma imagem de desordemurbana e, inclusive, descaracterização de monu-mentos da cidade via intervenção física. Com vis-tas a regular o uso dessas expressões públicas, al-gumas prefeituras, recentemente, têm desenvolvi-do ações educativas e de valorização do potencialartístico desses jovens grafiteiros, como mecanis-mo de inclusão social e desenvolvimento da cida-dania. Em Salvador, desde 2004, a Prefeitura Mu-nicipal vem buscando regular a participação dejovens grafiteiros na imagem urbana, com vista adisciplinar e integrar o grafite como forma de in-tervenção e expressão da arte urbana na cidade.

Este artigo discute alguns aspectos envolvi-dos na construção desses projetos e seus possí-veis efeitos na transformação da cidade como mídiaou como espaço de inclusão social. Na primeiraparte, apresenta um conjunto de argumentos quearticula a noção de cidade como espaço construído,como mídia e forma de expressão comunicativa eassocia a arte de rua ao uso e à produção desseespaço midiático. A segunda parte caracteriza asnovas estratégias empresariais corporativas sobreas cidades, num contexto de crise do financiamentopúblico e emergência de parcerias entre público eprivado. Conclui reconhecendo que, embora essasações possam oferecer alguns resultados positivosno plano das realizações e da economia, elas po-dem se constituir em estratégias de dominação ereduzir o espaço de autonomia da cidade, ao subor-dinar projetos culturais e artísticos e transformá-losem estratégias comunicacionais de mercado. A ter-ceira circunscreve historicamente a emergência e asdiversas dimensões da arte do grafite. O quarto sub-título caracteriza o projeto Grafita Salvador, discu-tindo algumas formas de ação e resultadospadronizadores sobre a criação dos artistas de rua.A quinta parte apresenta as relações entre as estra-tégias e a natureza dos “factóides” na produção domarketing político. Finalmente, na conclusão, o ar-tigo retoma alguns argumentos sobre as relações te-óricas da cidade como mídia no contexto presente elevanta algumas dimensões que podem auxiliar aformação de uma percepção mais crítica sobre aadoção de estratégias de produção cultural e inclu-

são social dentro de um projeto de cidade.

A APROPRIAÇÃO DA CIDADE COMO MÍDIAUNIVERSAL E DEMOCRÁTICA

Na atualidade ouvimos, constantemente, aexpressão mídia. Ela vem sendo usada no sensocomum com sentidos variados, o que provoca pou-ca clareza quanto ao entendimento de seus signifi-cados: “a mídia determina gostos e costumes”, “o

tempo da mídia”, “pessoas da e (ou) na mídia”, “omídia”, “a influência da mídia na educação”, etc.Esses exemplos ilustram a importância e a diversi-dade de significados dos usos dessa expressão, quevem sendo adotada para representar não apenas osmeios de comunicação (estrutura e tecnologia), mastodo o processo e o sistema de comunicação: asmensagens, os emissores, as estruturas de comu-nicação, as estratégias comunicacionais, os gestores,etc., num mundo cada vez mais marcado pela for-ça das formas de “figurações” e (ou) “acontecimen-tos”. Como apontam os estudos elaborados porautores como Abraham Moles, Roland Barther,Theodor Adorno, Jean Baudrillard, WalterBenjamim, Hebert Marcuse, entre outros, os mei-os de comunicação devem ser pensados como partedo sistema de cultura e mídia de massa. Além dis-so, segundo Marshall McLuhan (1964), os siste-mas e meios de comunicação podem modificar asrelações sensoriais, alterando, assim, a percepçãodo mundo e, conseqüentemente, modificando assuas relações.

Apesar da importância das mídias de mas-sa na sociedade contemporânea, existem outras ma-neiras de expressão que podem se constituir empossibilidade de comunicação contra-hegemônica.Nós mesmos (nossos corpos, nossos gestos, nos-sas falas, nossas vestimentas) somos mídia,

estamos constantemente nos comunicando e emi-tindo mensagens. Nesse sentido, o espaço passa ase constituir em “palco” dessas atuações, e a cida-de, como espaço construído, mas também comoespaço da vida, abriga todas as formas de manifes-tações de grupos culturais, políticos, ideológicos,

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religiosos, etc. Ao mesmo tempo, é mensagem erepresentação dessas forças e dinâmicasdiversificadas.

Efetivamente, é importante esclarecer que,como apontam Arendt, Habermans, Harvey, entreoutros, apesar de já se observar, desde a Antigüi-dade, o uso e a exposição de elementos e ações deexpressão em espaços públicos, nos últimos anos,a hegemonia do mercado tem se expandido maisfortemente a outros meios de relações com a socie-dade, objetivando a comunicação.

Com o papel que a informação e comunicaçãoalcançaram em todos os aspectos da vida social,o cotidiano de todas as pessoas assim se enrique-ce de novas dimensões. Entre estas, ganha relevoa sua dimensão espacial, ao mesmo tempo emque esse cotidiano enriquecido se impõe comouma espécie de quinta dimensão do espaço ba-nal, o espaço dos geógrafos (Santos, 1996).

Os meios de comunicação de massa, a pu-blicidade e a propaganda, pela divulgação de estu-dos críticos, muitas vezes estão associados a idéi-as de manipulação, dominação, hegemonia, etc.Do mesmo modo, avanços tecnológicos – osZappings, Tvs a cabo, Internet, DVD, etc. – permi-tem que os espectadores mudem com facilidadede canais, personifiquem a programação, utilizemoutros meios de entretenimento, etc., não garan-tindo a audiência das mensagens nesses meios.Assim, sob a lógica de ampliação das possibilida-des de comunicação, de sedução e relacionamen-to, as empresas vêm adotando outras estratégiasde comunicação e promoção, tendo o espaço e suasapropriações recebido especial atenção, a exemplodas situações a seguir indicadas:§ Com o objetivo de reforçar uma marca, um pro-

duto ou uma empresa, o espaço urbano é inva-dido maciçamente por anúncios, faixas, lumi-nosos – qualquer superfície, elemento ou vazioé ou pode ser explorado como espaço publicitá-rio – deixando de ser o local de representação eexpressão social, moradia e abrigo, para ser umaárea potencial de exposição e expressão empre-sarial. Assim, o espaço urbano e a sua paisagempassam a ser vistos e analisados como vitrinesde marcas, de anúncios e de empresas.

§ Os pontos de vendas e os espaços de ligaçãodireta com clientes ou consumidores podem serdecisivos para a formação da imagem empresari-al. A localização, a acessibilidade, a dimensão, aarquitetura, a estrutura espacial, a ambientação,etc. podem tanto gerar desconforto e uma ima-gem desfavorável da empresa, quanto podem fa-vorecer a idéia de eficiência, responsabilidade,atenção, importância, proximidade, etc. (imagempositiva e competitiva). Por outro lado, a padro-nização desses pontos espaciais de relacionamen-tos e a implantação de identidades coorporativaspodem impor à cidade uma arquitetura sem re-ferência ou identidade local.

§ No caso de eventos culturais e esportivos, o tra-tamento dos espaços também é fonte formadorada imagem empresarial. Além da essência doevento em si, a maneira como a empresa patroci-nadora se apresenta no evento e como se relaci-ona condicionam a sua imagem e qualificam oevento. A depender da participação e evidênciada empresa, a imagem pode ser de dominaçãosobre o próprio evento, subordinando os finsaos meios. Um bom exemplo é o carnaval deSalvador, que deixa de ser apenasum espaço de-mocrático e fruto de expressão espontânea degrupos culturais, para ser um espaçocomercializado e vendido a grandes empresas.O carnaval perde a sua característica de espaçodemocrático e igualitário para ser um grande es-paço de merchandising e promoção empresarial.

É neste sentido e sob essa lógica que, nesteartigo, tomamos a cidade e suas apropriações tam-bém como elementos midiáticos estratégicos, queintegram um complexo sistema de comunicação.Assim, a compreensão das relações e nexos entresuas formas de expressão, outras mídias e os agen-tes urbanos são fundamentais para o entendimen-to das suas dinâmicas e da dimensão midiática dacidade.

Em vários períodos da história, a arte tam-bém desempenhou o papel de mídia, de transmis-são de conhecimento, de persuasão. No entanto, ovalor da obra de arte prevalece sobre o valor comu-nicativo do objeto.

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Imagens, especialmente estátuas, eram outra im-portante forma de comunicação e mesmo propa-ganda no mundo antigo, sobretudo em Roma naera de Augusto (Briggs; Burke, 2002).

As pessoas aprendiam com as imagens

...tudo que era necessário saber – a história domundo desde a criação, os dogmas da religião, osexemplos dos santos, a hierarquia das virtudes, oâmbito das ciências, artes e ofícios: tudo era en-sinado pelas janelas das igrejas ou pelas estátuasdos pórticos (Briggs; Burke, 2002).

A partir do movimento moderno e do maiorinteresse acadêmico pelo estudo da propaganda, dasociedade do consumo e das mídias de “massas”,observa-se uma distinção entre os meios de comu-nicação e a mídia. De forma resumida, a arte e amídia distinguem-se nos seguintes pontos:

§ a intenção de criação – enquanto a obra de artenão tem obrigatoriamente um objetivo além davontade do criador, a mídia objetiva a transmis-são de uma mensagem;

§ a temporalidade – apesar de ser expressão doseu tempo, a obra de arte é atemporal, universal,enquanto que a mídia tem a sua mensagem des-tinada a um tempo, um lugar e um receptor;

§ o significado – a obra de arte tem infinitos signi-ficados, multiplicidades de interpretações e fun-damenta-se na subjetividade do observador (aobra de arte é única e atualizada constantementea cada contemplação), ao passo que a mídia esuas mensagens objetivam o significado e a in-terpretação de forma precisa e predeterminada.

Neste artigo, tomam-se os espaços e a cida-de como lugares de inter-relações complexas, ca-racterizadas pela diversidade de ações e efeitos deagentes. Esse entendimento central, do espaçoconstruído como meio de comunicação entre agen-tes, assumido neste artigo, é fundamental para apercepção crítica das múltiplas e paradoxais rela-ções que se tecem entre os diferentes grupos e suasformas de expressão sobre o espaço urbano. Ouseja, o conhecimento dessa perspectiva permitiráque profissionais de arquitetura, instituições,gestores e profissionais de áreas afins entendamas dinâmicas e dimensões dos espaços como sis-

temas comunicativos, frutos e determinantes dasações de agentes. É, também, elemento fundamen-tal para a criação e o fortalecimento da imagem dacidade como meio de expressão “universal”, com-prometido com valores da cultura local, assim comoreflexo das dinâmicas e estratégicas do mercado ede outras forças atuantes. Por último, responde àsnecessidades de comunicação e expressão das so-ciedades atuais.

O estabelecimento dessas relações é aindamais complexo na medida em que a arquitetura eo espaço construído, a cidade e suas apropriações,são também, em alguns casos, obras de arte quetranscendem a dimensão midiática e, ao seconstituirem em formas de expressão social e cul-tural, transcendem, também, os significadosmediáticos mais restritos. Dessa forma, compreen-der a trama dessas relações parece ser uma dasdimensões fundamentais para a análise dos novosprocessos de produção da cidade e de suas apro-priações como mídia, permitindo contribuir parao entendimento das suas dimensões e dos nexosentre cidade, mídias, estratégias de comunicação,arte, espaço público e as apropriações do espaçopor grupos específicos.

Assim, a análise do espaço urbano comomídia e as relações paradoxais entre as necessida-des empresariais mercadológicas, a identidade lo-cal e o espaço propriamente dito constituem umtema estratégico para se pensar o desafio e os dile-mas das cidades no contexto da hegemonia dosmercados de cultura, turismo, etc. O reconheci-mento da dimensão midiática da cidade e de suasapropriações explicita questões importantes paraa gestão do espaço urbano futuro, no sentido dealertar as instituições governamentais, os cidadãose os profissionais quanto aos efeitos e reflexos dasestratégias comunicativas espaciais sobre o tecidourbano, sobre a cidade e sobre as formas de rela-ção entre ela e seus habitantes, tanto em relaçãoaos movimentos de arte de rua, quanto como for-ma de representação da cidade. É com essas con-cepções e perspectivas analíticas que este artigobusca apresentar e levantar um conjunto de ques-tões que circunscreve a experiência governamen-

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tal de inclusão social e regulação da intervençãodos artistas de rua sobre a imagem urbana a partirde uma avaliação do Projeto Grafita Salvador .

Menos que aprofundar a capacidadeeducativa dessa experiência, que certamente podeter efeitos positivos de auto-estima e alguma inclu-são social sobre os jovens atendidos, além de pos-sibilitar formas concertadas na regulação do uso doespaço urbano, as questões levantadas sobre o pro-jeto Grafita Salvador podem constituir pistas im-portantes dessas dinâmicas entre grupos sociaisdistintos (poder municipal, empresas e artistas derua) e das conseqüências concretas sobre a imageme o tecido urbano da cidade. Ou seja, a partir dealgumas indagações sobre a estruturação e o alcan-ce do projeto, é possível pensar-se sobre as conse-qüências das estratégias de comunicação em rela-ção às formas de expressão artística, à cidade, aosmovimentos socioculturais, etc., assim como sepode, também, vislumbrar o potencial da dimen-são midiática da cidade e de suas apropriações.

AS CIDADES COMO MÍDIAS CORPORATIVAS:uma peça no complexo sistema de comuni-cação social

Salvador, assim como outras cidades con-temporâneas, é instrumento de representação deinstituições, grupos, organizações e dos própriossujeitos. É também o meio e o fim das estratégiasde diferentes atores e de suas formas de expres-são, seja quanto à existência física (a arquitetura eo espaço construído, que são meios de comunica-ção), seja quanto às estratégias comunicativas nomeio urbano (cartazes, outdoors, fachadas, placas,passeatas, comícios, etc.), seja ainda como formade apropriação e de expressão de movimentos so-ciais, artísticos e culturais. Essas estratégias de di-vulgação e expressão de rua surgem, muitas ve-zes, como uma alternativa a outros meios de co-municação, cada vez mais restritivos e inacessí-veis a grupos subalternos.

Por outro lado, num contexto altamente com-petitivo, as empresas vêm investindo, mais re-

centemente, na criação de imagens corporativas po-sitivas junto a seus clientes e demais públicos, comoestratégia de diferenciação entre empresas, integração,identidade, referência e aproximação com a socie-dade, da mesma forma como governos e políticos,seguindo essa mesma lógica, buscam a formação deimagens positivas junto à opinião pública.

Essas estratégias governamentais ocorremem meio a uma crise do financiamento públicodas cidades, e aos riscos de uma crise de legitimi-dade política.2 Esse cenário, marcado por dificul-dades de investimentos públicos contrapostas aamplas demandas, favorece a emergência de alter-nativas e estratégias que possibilitam alguma res-posta governamental à gestão das cidades, com basena construção de parcerias entre o setor público eo setor privado, através das quais se busca cons-truir alguma capacidade de resposta pública a ques-tões sociais, ao mesmo tempo em que se reforçauma imagem governamental positiva (de eficiênciana regulação do espaço público, comprometimen-to com a inclusão social de jovens), reiterando aidéia de responsabilidade social e pública (com-prometimento, participação e realizações) e a ima-gem de responsabilidade social de empresas eempresários para com a cidade.

Efetivamente, no contexto contemporâneode reestruturação produtiva e de crise do financia-mento público, as manifestações culturais e a ima-gem da cidade são “produtos estratégicos” e fun-damentais para a “indústria do turismo e do entre-tenimento”, que surgem como alternativas econô-micas e produtivas a esses processos. Da mesmaforma e nesse mesmo quadro, as estratégias de di-vulgação de marcas e empresas também geram in-vestimentos resultantes e dependentes de parceri-as entre o governo e o setor privado, esse último

2 A redução da capacidade de investimentos públicosmunicipais, a falta de condições para atender às históri-cas demandas sociais, enfraquece a base de legitimidadepolítica. Salvador é uma capital marcada por décadas deestagnação econômica, pela pobreza da população e porum processo de modernização excludente. O PDDU-2004estimou que o déficit habitacional seria de 91.000 uni-dades, sendo 82.000 para famílias com rendimento deaté 3 SM, e que a demanda demográfica calculada para2005 seria de 8.384 novas unidades, sendo 3.196 parafamílias com renda de até 3 SM (PMS-2000, apud Perei-ra; Souza (2006).

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como financiador ou patrocinador (de eventos, fes-tas, restauro, intervenções físicas), mediante a uti-lização de espaços públicos para publicidade em-presarial.

Esse processo de estruturação, transforma-ção e transfiguração urbana pode ter implicaçõessignificativas nas diversas relações da cidade e deseus habitantes, acentuando formas de segregaçãosocial e urbana. Se, por um lado, essas parceriaspodem permitir e suprir a carência do financia-mento público, permitindo que a cidade e seusespaços sejam elementos de identidade e referên-cia de grupos locais, como expressão da culturalocal, por outro lado, essa condição, juntamentecom as necessidades de gestão de “imagem” (querempresarial, quer governamental), pode subordi-nar ou, em alguns casos, determinar a percepçãodo espaço restrita à lógica dos elementos e aspec-tos comunicativos, fazendo com que o próprio te-cido urbano – a cidade e suas apropriações – sejadescaracterizado e alterado para responder aosimperativos dessa nova dinâmica.

Essa nova forma de regulação possibilita umcampo fértil de formação da imagem corporativadas empresas e do governo, com o risco de gerar adependência da iniciativa privada e, conseqüente-mente, uma possibilidade de dominação dessesetor sobre a gestão da cidade. Exemplo disso podeser observado no carnaval de Salvador: a luta dosfabricantes de cervejas e das empresas de telefo-nia, dos patrocinadores dos blocos de carnaval ede trios independentes e das redes de transmis-são, entre outros segmentos, que podem ditar ouaté determinar tendências, favorecer correntes cul-turais mais “afinadas” com as suas imagens, im-possibilitando que esse evento seja um espaçodemocrático e de todos.

Outro exemplo interessante em Salvador,que ilustra essa questão, refere-se à parceria e àexploração do mobiliário urbano. Se, por um lado,essa parceria viabiliza a instalação de equipamen-tos novos e sua manutenção, por outro, transfereao setor privado o direito de exploração do espaçopublicitário, o que pode ser entendido como a“privatização” de um bem público. Além disso, o

mobiliário urbano adotado é diferenciado na cida-de, demonstrando segregação espacial em funçãoda visibilidade e do poder aquisitivo das áreas, ouseja, em função da lógica do mercado.

As placas de sinalização de rua são outroexemplo interessante. Nesse caso, a parceria comempresas privadas viabiliza a sinalização das ruas.No entanto, é facilmente perceptível que as dimen-sões do informe publicitário são maiores do queas informações do logradouro, evidenciando umainversão de valores: a função de espaço publicitá-rio se sobrepõe à função de informe público.

Por último, os pontos de venda, de distri-buição ou de serviços de alguns segmentos em-presariais e as suas padronizações espaciais po-dem ser exemplos das estratégias de imagens e iden-tidades empresariais que modificam e se sobrepõemà arquitetura local. As lojas de fast food, comoMacDonald ou Pizza Hut, assim como as agênciasbancárias localizadas na cidade de Salvador po-dem ilustrar esse aspecto.

Apesar desse contexto, a função da cidadecomo elemento midiático ainda pode ser conside-rado democrático e universal, e, quanto a esse as-pecto, o grafite se revela como um movimento deexpressão e resistência da arte de rua. A análisedo projeto Grafita Salvador permite-nos avançarna sugestão dos nexos entre o entendimento domovimento grafite, as mídias, a ação do governo ea atuação empresarial.

O GRAFITE: movimento social, cultural ouartístico? (um breve histórico)

Entendemos o grafite como uma forma deexpressão artística de indivíduos ou grupos sobreas paredes e muros da cidade, que usa como maté-ria as tintas e como forma de expressão desenhose (ou) mensagens escritas e pinturas, aproprian-do-se de parte do espaço público (muros ou solo).Normalmente, o grafite é associado a aspectos ne-gativos, tais como o vandalismo, e a problemassociais urbanos, como delinqüência juvenil, gangs,desrespeito, violência urbana, etc. No entanto, o

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universo do grafite é muito mais diverso e comple-xo do que nos transmite essa idéia negativa dosenso comum. Se, por um lado, ele carrega essaimagem “negativa” (poluição visual, desordem ur-bana, gangs, etc.), por outro, representa tambémuma importante dimensão midiática contra-hegemônica, ou seja, significa uma forma de ex-pressão “livre” e democrática, que toma a cidadecomo espaço e meio de comunicação, integrando,de certa forma, o espaço público3 contemporâneo.

Retomando a noção de mídia ou média comotoda forma ou meio de expressão, fica clara a di-mensão midiática do grafite. Desde a pré-história,encontramos a utilização e o registro de artes sobreas superfícies de obras arquitetônicas. Assim o gra-fite pode ser considerado uma maneira de docu-mentar, de forma consciente ou não, fatos, posiçõese opiniões, com o uso de superfícies ou de espa-ços, ao longo do tempo (Cf. Gitahy,1999 e Downing,2002). Sob essa perspectiva, os rabiscos e gravaçõesda Antigüidade também seriam formas de grafite.Podemos lembrar, também, como exemplo político,os rabiscos feitos em sanitários masculinos de umauniversidade nigeriana, em 1991, num período deintensa repressão política por parte do governo, queserviram de registro de posições e crítica políticas.

Além de ser uma mídia alternativa e contra-hegemônica, o grafite representa e reflete tambémformas sociais de organização e movimentos cul-turais, sociais e artísticos. Apesar da generaliza-ção, o grafite, como linguagem, possui distintasformas de expressão: grafite, pichação e grapicho.Cada uma dessas formas possui aspectos diversose características distintas tanto quanto ao resulta-do final (a plástica), quanto às relações espaciais,humanas e culturais.

O grafite explora as imagens, usa como su-porte a cidade e seus elementos: postes, calçadas,vias, muros. A primeira grande exposição foi rea-lizada em Nova York, em 1975. Em 1981, veio asua consagração e o seu reconhecimento como arte,com a mostra New York/New Wave, em Nova York.Utiliza-se de humor e discutem-se temas diversos,e, hoje em dia, essa manifestação é reconhecidacomo arte – arte de rua. (Foto 1)

A pichação (Foto 2), uma das formas maisantigas de grafitar, caracteriza-se, fundamentalmen-te, pela exploração da escrita. Não é uma ação atu-al. Em Pompéia, encontraram-se paredes pichadascom xingamentos, poesias e anúncios políticos.Além de protesto, também se encontram frases bem-humoradas e personagens urbanos como “Tadeu –

o comedor de criancinhas”, personagem do grafitecriado nos muros de Salvador, na década de 80.

O grapicho data da década de 30, e é tam-bém conhecido como “estilo americano” ou spray

cam, caracterizado por letras e frases excessivamente

3 Segundo Hanna Arent, na antiga cidade-estado, a distin-ção entre a esfera privada (esfera do indivíduo e da so-brevivência da espécie) e a esfera pública (esfera política)era bem definida e clara. No mundo moderno, essas duasesferas confundem-se constantemente, e o termo “pú-blico” passa a ser entendido como tudo que é do conhe-cimento de todos (o que tem a maior divulgação possí-vel), e a esfera privada passa a ser mais relacionada àpropriedade.

Foto 1

Grafite na Rua Carlos Gomes. Salvador-BA, 2005.

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coloridas e de formas diversas. Surgiu como umamídia alternativa, usada pelos negros e hispânicosamericanos. Os jovens usavam essa forma de ex-pressão para divulgar idéias, ideais e até óbitos. Adiversidade de formas e cores desses símbolos (sãocódigos próprios de grupos) passa a constituir as-sinaturas e ícones identitários de grupos, usadospara demarcar seus territórios.

Apesar de distintas linguagens plásticas, ografite representa uma prática carregada de signifi-cados, nem sempre conhecidos e reconhecidospelos não atuantes. Esse ato é fundamentalmentemarginal, se considerados os aspectos relativos àtransgressão de normas regulatórias e questõescomo proibição, irreverência, perigo, protesto, con-fronto, liberdade e poder, que estão por trás dessemovimento.

O grafite está proibido no Brasil desde 1998,pela Lei 9.605, que declara crime contra o meioambiente o ato de grafitar. Possivelmente em fun-ção de romper com códigos legais de uso do espa-ço urbano e a sua dimensão de expressão da peri-feria, ele difere de outras estratégias e formas deação de outras manifestações sociais e culturais.

As atividades de pichar e grafitar, na maioriadas vezes, ocorrem à noite e de forma rápida. Inter-ferem, recriam, compõem e recompõem a paisagemurbana, ao mesmo tempo em que são compostas

pela cidade. Assim, o grafite é uma obraaberta – pode ser alterada continuamen-te e serve de base para novas interfe-rências, novas ações e novos atores. Éefêmera por “natureza”.

Com relação à apropriação dosespaços, integra à sua poética a super-fície urbana. A escolha das áreas é frutonão apenas do potencial de visibilida-de ou do potencial artístico (textura,luminosidade, dimensões, cor, etc.),mas responde à intencionalidade(comportamento) do sujeito ou grupo:difundir uma idéia (espaço visível), cri-ticar costumes ou uma pessoa pública(pichações em muros residenciais), de-marcar território, desafiar autoridade

(monumentos ou símbolos), demonstrar poder, en-tre outros.

A temática, ou melhor, a não-temática dografite, expressa a dimensão de liberdade e trans-gressão. Melhor dizendo, é impossível delimitarou reconhecer uma temática específica oupreestabelecida. Ao contrário, o grafite é marcadopela diversidade de mensagens e temas e pela li-berdade de expressão.

Nesse sentido, indagamos sobre a possibi-lidade de poder falar em grafite brasileiro. Melhordizendo, existem particularidades no grafite pro-duzido no Brasil, frente ao de outras metrópolesdo mundo? Essa é uma questão complexa e quedemandaria grande trabalho comparativo, mas épossível sugerir que o grafite produzido no Brasil(assim como alguns outros movimentos, como oHip Hop ou o Rap, referenciados e originados nacultura americana) tem a sua própria forma de ex-pressão. O grafite, como forma de expressão desujeitos ou grupos que têm a cidade como supor-te, provavelmente difere de lugar para lugar. Essahipótese parte de três pontos básicos: em primeirolugar, o jovem brasileiro grafiteiro-ator está condi-cionado pelas formas de sua inserção no âmbitodo seu próprio grupo social de referência e dascondições socioculturais e econômicas da cidadeem que vive, o que o diferencia da problemática de

Foto 2

Grafite no bairro da Graça. Salvador-BA, 2005.

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outros países. Nesse sentido, as problemáticas eos questionamentos de que tratam expressam di-ferentemente essa realidade multifacetada. E, porúltimo, a sua inserção e constituição sobre o espa-ço e suas relações com outros são distintos. As-sim, a plástica e a poética que expressam e a suarelação com o espaço e a paisagem urbana mudamde lugar para lugar (Foto 3).

O que caracteriza o grafite, de forma genéri-ca, é a ação de registrar e publicizar posições, como uso da cidade como suporte: “É uma guerra feitacom tintas, todos se conhecem e se identificampelo tipo de código pichado. Um grande abaixo-assinado para a posteridade, no qual cada um queparticipa deixa sua marca.” (Gitahy,1999).

O PROJETO GRAFITA SALVADOR

O projeto Grafita Salvador, implementadoa partir de 2005, dá continuidade à relaçãoestabelecida entre a Prefeitura de Salvador e osmovimentos de arte de rua. Durante a gestão ante-rior, a prefeitura da cidade de Salvador, com vistasa uma cultura de preservação e ações educativas,elaborou concursos para a pintura de painéis re-movíveis, em datas especiais, como o Carnaval e oNatal. A declaração de um dos artistas, Denis Sena,representante do Grafiarte, elucida essa relação,em homenagem ao Prefeito: “O prefeito sempre nos

deu apoio, abrindo espaço para nossa arte nas ruas

em datas importantes como o Natal e o Carnaval”(Site: PMS/SMCS).

O projeto Grafita tem porjustificativa promover e fortalecera cultura do grafitismo e, ao mes-mo tempo, a inclusão social de jo-vens e adolescente, além de dei-xar Salvador ainda mais bonita coma autêntica arte de rua. Segundodeclarações do Prefeito (2005):

Temos de olhar a cidade com maisamor, carinho e afeição, preservandoo bem público da nossa cidade que éa nossa casa. Queremos construir umacidadania da educação em Salvador,dando exemplo para todo o Brasil. Eisso começa pelo zelo com a nossa ci-dade (Site: PMS/SMCS)

Foto 3

Grafite no bairro Nordeste de Amaralina. Salvador-BA, 2006.

Foto 4

Grafite na Av. Manoel Dias da Silva. Salvador-BA, 2006.

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O projeto, desenvolvido pela Secretaria deDesenvolvimento Social (SEDES) da PrefeituraMunicipal de Salvador (PMS) e pela LIMPURB,teve o apoio da empresa Sherwin-Williams, no iní-cio do programa, em abril de 2005.

Além dos órgãos municipais envolvidos, aPMS mantém uma parceria com a UniversidadeFederal da Bahia (UFBA), que possibilita aos jo-vens do projeto a participação em oficinas de artese cursos de extensão na Escola de Belas Artes, vi-sando ao aprimoramento de suas habilidades ar-tísticas.

São aproximadamente 30 jovens contrata-dos pela Prefeitura, cuja idade varia entre 18 e 24anos. Eles recebem quatrocentos reais por cincohoras diárias de trabalho, vale-transporte e tíquete-alimentação. A participação no projeto tem aumen-tado sua oportunidade de trabalho nessa área: forado horário de trabalho, os grafiteiros vêm sendocontratados por particulares e já pensam em for-mar uma cooperativa de trabalho como alternativaao fim “dos muros da cidade”.

Segundo descrição do projeto, disponibi-lizada no site oficial da PMS:

Trata-se de uma proposta inclusiva, valorizandoa produção de jovens e abrindo espaços para quesua arte, de fato, ganhe as ruas. Atualmente, nãoestão abertas novas inscrições para concursos esimilares. Porém, os jovens grafiteiros interessa-dos devem comparecer à sede - CODEJU, parapreenchimento de cadastro reserva, para avalia-ção de projetos futuros (Site: PMS/SMCS).

Segundo o prefeito João Henrique Carneiro:“Vamos valorizar a arte e os artistas de rua, ofere-

cendo, especialmente aos jovens, uma oportunida-

de de apresentar seu trabalho sem causar danos ao

patrimônio público e privado.” (Revista Cidades...).Em informes veiculados pela Secretaria de

Comunicação Social - SMCS, a Prefeitura declaraque mais de três mil metros de muro na cidade jáforam trabalhados.

Tudo começou na Península Itapagipana, seguiupara a Barra, Orla, chegou na Avenida Contorno,Comércio e Calçada e vai de trem para o Subúr-bio, até Coutos, levando suas cores para as esta-ções de trem da CBTU. Em parceria com a CBTU,

o Grafite Salvador vai iniciar, hoje (dia 30), umlevantamento dos espaços pichados para sobre-por o grafite com temas de abordagem social, emtoda linha férrea. No último Sábado (dia 27) os28 grafiteiros contratados pela Prefeitura, depoisde terem participado de um concurso público,enfeitaram as paredes cinza do Moinho Salva-dor, na Calçada, utilizando a temática do auto-mobilismo. A ação visa embelezar o circuito daFórmula Renault em Salvador, que vai acontecerem outubro, entre a Avenida Contorno e Avenidada França (Site: PMS/SMCS - 30/09/2005).

Segundo a Coordenadora de Juventude daSEDES, as temáticas são variadas e relacionadascom o entorno do local dos painéis. Explica:

No Campo da Pólvora, por exemplo, o tema émetrô. Eles dão vida e cores aos madeirites queisolam a área da obra, onde está sendo construídaa estação do novo meio de transporte de Salvador(Site: PMS/SMCS - 14/09/2005).

A coordenadora explica, também, que ostemas são variados, tendo relação com a localiza-ção do painel. Por exemplo: na orla, os temas pre-feridos são geralmente o esporte, as praias, a faunae a flora marinha, enquanto que, no Campo daPólvora, a temática é o metrô.

Analisando algumas dessas intervenções, épossível registrar alguns aspectos percebíveis a par-tir do seu resultado plástico e do desenvolvimentodessas atividades (Fotos 5, 6, 7 e 8).

§ Em algumas superfícies trabalhadas pelo proje-to, as áreas são previamente preparadas (rece-bem coloração uniforme). Isso determina ou des-carta e dificulta a integração da superfície urba-na à poética da obra, assim como impede aintegração e interação entre as diversas atuações.É um resultado, em certa medida, estático.

§ Os espaços são precisamente delimitados pelopoder público para cada artista ou equipe. Issoreforça o sentimento de pouca mobilidade, dedisciplina, e condiciona a liberdade de expres-são, modificando as formas de integração einteração dessas obras na cidade.

§ Os painéis são freqüentemente refeitos, o que im-põe um aspecto sempre novo, e a sua nãointegração mais duradoura à paisagem urbana. Afuligem, o desgaste, outras intervenções, a pátina

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não são contemplados. Portanto, a produção ar-tística não se integra efetivamente à paisagem.

§ Os painéis constituem-se em lacunas4 constantesna imagem urbana, interferindo e modificando asua imagem. Ou seja, constituem ruptura do te-cido ou da imagem urbana por sobreposição econseqüente inversão de figura e fundo.

§ Os artistas passam a atuar em todo território dacidade, determinando certa disciplina na açãodos jovens por toda a cidade e uma padroniza-ção da sua ação.

§ Nas áreas e edificações tombadas ou identitáriase simbólicas da cidade, o projeto Grafita Salva-

dor interveio como em qualquer outro espaço dacidade.

4 Segundo Brandi [1977] 2004, “Uma lacuna, naquilo queconcerne à obra de arte, é uma interrupção no tecidofigurativo. Mas contrariamente àquilo que se acredita, omais grave, em relação à obra de arte, não é aquilo quefalta, quanto o que se insere de modo indevido. A lacu-na, com efeito, terá uma forma ou uma cor, não relacio-nadas com a figuratividade da imagem representada. In-sere-se, em outras palavras, como um corpo estranho.”

§ As temáticas são relacionadas à localização dopainel e, na sua maioria, lúdicas e algumas “in-fantis”.

§ As atividades ocorrem durante o dia e em etapas.Resumidamente, o projeto Grafita Salvador

tem como proposta a inclusão social de jovens e oembelezamento da cidade. Segundo os informesdisponibilizados pela Secretaria Municipal deComunicação Social – SMCS, em torno de apenas30 jovens são contratados pelo poder municipal eparticipam desse programa. As áreas de atuação,em sua maioria, são os corredores de grande circu-lação de tráfego – as avenidas de vale e outros pontosda cidade. As temáticas não são livres. As ativida-des são desenvolvidas durante o dia e em etapas eos jovens são contratados pela prefeitura.

Analisando os resultados plásticos dessasintervenções, podemos concluir que, de certa for-

Foto 5

Grafite na Av. Antonio Carlos Magalhães. Salvador-BA, 2006.

Foto 6

Grafite no Vale dos Barris. Salvador-BA, 2006.

Foto 7

Grafite no Largo do Mercado Modelo. Salvador-BA, 2006.

Foto 8

Grafite Conceição da Praia. Salvador-BA, 2006.

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ma, o programa influencia, de forma determinante,a imagem da cidade, nas suas relações e nas suasdimensões simbólica e identitária. A atuação indis-tinta sobre toda a cidade, como efeito da açãoregulatória do uso do espaço público, ainda quepositivo da perspectiva ambiental ou educativa,pode, também, por outro lado, enfraquecer a ex-pressão original de resistência e de crítica social dosjovens grafiteiros, ou mesmo as formas expressivasde identidade local (do bairro ou marco urbano,etc.). Uma grande área da cidade sofreu interferên-cia. A exposição, em grande escala, termina por“massificar” a “cidade” do ponto de vista de umtipo de intervenção urbana, contradizendo a expres-são da liberdade artística e as motivações identitáriasou contestatórias que caracterizavam as formas ori-ginais de expressão da arte de rua.

ESTRATÉGIA DE COMUNICAÇÃO: governo eempresas

 Nos últimos 15 anos, a cultura das organi-

zações foi marcada por uma diretriz: as corporaçõesproduzem e vendem idéia, marca, conceito, cultu-ra, experiência memorável, status, expressão soci-al, simbolismo, sentimento, comportamento, sig-nificados, ou seja, todo um conjunto de elemen-tos e signos que ultrapassam os próprios produ-tos concretos, elementos que transcendem o que éespiritual, alma, identidade, estilo de vida, ima-gem, entre outras formas de definir esse bem in-tangível, subjetivo e valoroso.

Da noite para o dia, “Marcas, não produtos!” tor-nou-se o grito de guerra de um renascimento domarketing liderado por uma nova estirpe deempresas, que se viam como “agentes de signifi-cado” em vez de fabricantes de produtos.... Se-gundo o velho paradigma, tudo o que o marketingvendia era produto. De acordo com o novo mode-lo, contudo, o produto sempre é secundário aoverdadeiro produto, a marca, e a venda de umamarca adquire um componente adicional que sópode ser descrito como espiritual. A publicida-de trata de apregoar o produto. O Branding, emsuas encarnações mais autênticas e avançadas,trata da transcendência corporativa (Klein, 2003,p. 45).

A equiparação tecnológica, a qualidade dos

produtos e serviços, a competição dos mercados ea modernização das empresas, no contexto con-temporâneo, têm impulsionado empresas a inves-tirem na formação das suas imagens corporativas,como mecanismo estratégico de diferenciação, va-lorização, consolidação e fidelização de clientes,garantindo, conseqüentemente, ganhos reais, atra-vés de estratégias empresariais para a criação oufortalecimento de suas imagens.

Nesse sentido, a maneira como uma organi-zação específica é vista (no sentido de ser entendi-da pelo público em geral) e o caráter de sua organi-zação são elementos fundamentais no contexto dasmudanças empresariais. Esse entendimento con-templa não somente os elementos físicos, visuaise racionais, como também aspectos subjetivos, quetêm a ver com as posturas e compromissos dessesorganismos com questões públicas. Dessa forma,toda e qualquer atuação ou forma de expressão,relacionamentos e associações adotados por umaempresa, durante sua atividade, influenciam naconstrução de sua imagem pública. Uma imagempositiva, forte e responsável social e culturalmen-te, possivelmente pode favorecer preferências porparte de consumidores, ampliar mercados, forta-lecer a marca e, consequentemente, produzir gan-hos reais de mercado.

Nesse sentido, as corporações têm buscadoassociar às suas marcas ações comprometidas coma preservação e a valorização do patrimônio, domeio ambiente, da educação, da saúde, da cidada-nia, entre outras, além de essas ações seremretraduzidas na sua relação pública com isençõesou benefícios indiretos na área fiscal. Essas açõespermitem a veiculação de campanhas institucionaisque exploram idéias, como responsabilidade soci-al, comprometimento social, preocupação com ofuturo, valorização e preservação de tradições, iden-tidade com o local, respeito ao meio ambiente, se-riedade, solidariedade, responsabilidade, proximi-dade, etc.

Essa dimensão tem sido operacionalizadaou facilitada pela nova figura jurídica das parceri-as púbico-privadas, nas quais convergem interes-ses distintos na produção de resultados específi-

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cos. Com isso, cresce o número de parcerias entreos setores público e privado. Ou seja, as estratégi-as de divulgação de marcas e empresas, se, porum lado, atendem a estratégias próprias de merca-do, por outro, também têm sido utilizadas comoalternativas à crise do financiamento público.

Se os esforços convergentes podem serexitosos, ao permitirem a produção de alguns re-sultados específicos, por outro lado, e como con-seqüência, as ações governamentais passam a sercada vez mais dependentes de parcerias com o setorprivado (eventos, empreendimentos, etc.) e con-dicionadas pela lógica que move a ação das em-presas. Essa nova forma de regulação pública pos-sibilita um campo fértil de formação da imagemcorporativa das empresas, mas, por outro lado, aação pública pode perder sua capacidaderegulatória e de autonomia em relação à iniciativaprivada, ao condicionar a imagem e a estruturaçãoda cidade à ação empresarial e à sua gestão. Seessa foi uma realidade quanto à forma como osempreendimentos imobiliários na área habitacionalorganizaram o processo de modernização das ci-dades, nas décadas de 80, hoje a ação das parceri-as incide também sobre o patrimônio histórico ecultural; sobre a oferta de infra-estrutura urbana eturismo, condicionando o desenho e a imagemurbana, a cidade e sua gestão.

Se essas parcerias atendem às necessidadespublicitárias das empresas, permitem, também, aosórgãos governamentais explorarem ou gerarem fa-tos significativos, como respostas ou notícias fa-voráveis dos seus governos, ou mesmo favorecer a“imagem pessoal” de políticos ou partidos políti-cos, quer pelo fato ou ação ser relevante e noticia-do pelos meios de comunicação, como televisão,jornais e rádios (gerando notícias favoráveis), querpor permitir também resposta governamental oupolítica e, finalmente, pela própria ação em si mes-ma, que demonstra atuação efetiva e real do gover-no (publicidade e propaganda).

Depois do marketing comercial, o marketingpolítico; não se trata mais de convencer ideologi-camente os cidadãos, mas de vender um “produ-to” na melhor embalagem possível (...) A política

mudou de registro, foi em grande parte anexadapela sedução: tudo é feito para dar de nossos diri-gentes uma imagem de marca simpática, caloro-sa, competente (Lipovetsky, 2006, p.198).

Sob essa ótica, tanto o poder público quan-to o setor empresarial usam e exploram as inter-venções e atuações relacionadas às questões urba-nas, objetivando gerar fatos e ações que possamtambém ser explorados de maneira positiva porsuas estratégias de comunicação, permitindo a for-mação de uma opinião pública favorável. Em ou-tras palavras, permite que a população, de umaforma geral, receba “boas” notícias e informaçõessobre a participação e execução governamental eempresarial, no que diz respeito à paisagem e aoembelezamento da cidade, assim como à atuaçãona área de responsabilidade e inclusão social dejovens carentes.

Com relação às estratégicas midiáticas e po-líticas pessoais, vale destacar uma terminologia am-plamente usada nos noticiários e na imprensa es-pecializada atual: “o factóide”. Esse termo passoua ser vulgarmente usado pela imprensa nacionalapós a sua utilização pelo prefeito do Rio de Janei-ro em 2005, o Sr. César Maia, que, em entrevistaao jornal Folha de São Paulo, comentou: “Fui sim-plesmente o introdutor do termo no país e ummero aprendiz” (3 abr. 2005).

É possível dizer que se tem notícia do usodo termo factóide na década de cinqüenta. Umfactóide é um fato divulgado com sensacionalismopela imprensa. Trata-se de uma estratégia política,visando a gerar, deliberadamente, um impacto di-ante da opinião pública, de forma a usá-la de acor-do com as aspirações, quer de políticos, quer depoderosos grupos na mídia. Nesse sentido, temcaráter pejorativo. Algumas ações ou intervençõesurbanas são amplamente noticiadas, gerando notí-cias que representam a abertura de canais de dis-cussão com a sociedade civil e a formação de umaimagem favorável ou não junto à opinião pública,e influenciam a formação da imagem dos envolvi-dos (quer de políticos, quer da administração ougestão, quer de empresas).

Por outro lado, a estratégia do factóide tam-

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bém pode ser usada por minorias, em geral semacesso à grande mídia, com vistas a atrair a atençãopara questões cruciais da vida pública, gerando,dessa forma, notícias próprias e tendo acesso aosmeios de comunicação hegemônicos.5 Um bomexemplo desse tipo de atuação são as ações do gru-po GreenPeace. Nesses casos, a intenção é de que ofato gerado e noticiado desperte a opinião públicapara questões contrárias ou discordantes dos inte-resses de grupos hegemônicos ou dominantes.

O projeto Grafita Salvador situa-se dentreas “temáticas do momento”, contrapondo a ima-gem da violência das periferias, veiculada pelamídia televisiva, à ação pública e empresarial res-ponsável e convergente, no sentido de atuar juntoà juventude das periferias urbanas, tema altamen-te relevante para a sociedade, para as imagens dopoder municipal, assim como para as das empre-sas parceiras.

A maior preocupação, nessa nova dinâmi-ca, refere-se, fundamentalmente, à possibilidadede as ações do poder municipal, assim como dasparcerias com o setor privado inibirem a expres-são criativa, condicionando-as ou priorizando-assegundo uma nova lógica, distinta da inspiraçãocultural original, e orientada pelas lógicas do pa-trocínio (estratégias de comunicação, objetivandoa construção ou fortalecimento de imagens favorá-veis) na escolha de áreas, temas e grupos contem-plados, nem sempre correspondendo e responden-do, em termos de grandeza, às reais demandassociais, de caráter estrutural, mas atuando apenaspontualmente e segundo as oportunidades aleató-rias do mercado, na agenda social.

Seguindo o “ritmo da mídia”, possivelmen-te as ações implementadas sob essa ótica e sob es-sas perspectivas são “superficiais” e de curto pra-zo. As ações de inclusão no longo prazo, dereestruturação e de mudanças nas estruturas soci-ais urbanas, não atendem ao apelo da mídia e dasestratégias de comunicação imediatas.

Se, por um lado, esses programas podemestimular e educar a vivência de jovens na cidadee viabilizar intervenções importantes na regulaçãoe gestão da cidade, por outro, pode suscitar preo-cupações quanto aos resultados práticos e eficazesdessa atuação, seja em termos da autonomia deum projeto para a cidade, da construção da ima-gem urbana ou de resultados quanto à eficácia deprojetos sociais de inclusão da juventude.

CONCLUSÃO: algumas questões sobre oprojeto Grafita Salvador

Este trabalho, ainda de caráter exploratório,buscou delimitar questões de fundo na área daprodução cultural e da relação da cidade comomídia e conclui levantando problemáticas que en-volvem discussão sobre o alcance das ações depromoção educativa e inclusão social de jovensde periferia, como o faz o Projeto Grafita Salvador,identificando algumas questões paradoxais quan-to às relações entre cidade, arte, mídia e inclusãosocial.

Neste sentido, a sua conclusão abre algu-mas questões:

Primeira questão. No que se refere à pro-posta do projeto, podemos considerar o Grafita

Salvador um projeto de inclusão social, embora onúmero de jovens atingidos seja extremamentereduzido, em face da grande população jovem ca-rente de Salvador.

Segunda questão. Se relembrarmos que oProjeto Grafita Salvador atua em toda a cidade “comos mesmos artistas” (ele rompe a relação do artistacom o “lugar” e sua relação identitária territorial),tem uma temática preestabelecida (disciplinandoou mesmo anulando a expressão de liberdade dacriação artística), os artistas são contratados (o quemodifica a relação do grafiteiro com o poder muni-cipal, a partir de um vínculo contratual). Assim,como entendê-lo dentro de seu objetivo de realvalorização da arte de rua? Nesse sentido, os par-ticipantes do projeto fazem grafite ou painéis ur-

5 Pode-se destacar, recentemente, a greve de fome do Bis-po Luiz Flávio Cappio, como protesto contra o projeto detransposição do Rio São Francisco proposto pelo Gover-no Federal.

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banos? Poderia dizer que, em relação aos ritos, aostemas e ao tratamento dado, eles perdem a “aura”ou motivações criadoras originais?

Terceira questão. Com relação à paisagemurbana, quais as conseqüências para a cidade esuas paisagens, uma vez que, as superfícies doprojeto prevalecem sobre a própria cidade, consti-tuindo-se em uma lacuna visual (inversão da figu-ra e fundo)?

Quarta questão. Em relação à importânciasimbólica e identitária da cidade, suas imagens eseus marcos, quais as conseqüências da padroni-zação das paisagens, uma vez que a atuação é uni-forme, sem distinções locais?

Quinta questão. Em relação às áreas traba-lhadas pelo projeto, ressalta-se a referência especi-al à área do comércio, por ocasião da Fórmula

Renault. As intervenções do projeto, nessas áre-as, modificaram direta ou indiretamente o conjun-to arquitetônico pré-existente, na medida em que“quebraram” a paisagem, e as relações entre o cita-dino, o evento, o estrangeiro e a imagem urbana.Em alguns casos, descaracterizou e atuou direta-mente sobre o elemento arquitetônico, constituin-do-se em dano ao patrimônio artístico local. Alémdisso, essa área (Avenida Contorno e Comércio) éreferencial turístico da cidade e paisagem identitáriae significante para a sociedade de Salvador. A in-tervenção do Projeto Grafita Salvador apareceu,pois, como uma lacuna (Cf. Brandi, 2004) na rela-ção entre os elementos e a paisagem - quer pelaação direta sobre edificações tombadas, quer pordestacar elementos de infra- estrutura frente à pai-sagem. Nesse sentido, o potencial de notícia (visi-bilidade) da atuação do projeto num evento de por-te internacional, como a Fórmula Renault, preva-leceu sobre o valor do patrimônio artístico e sobreo valor simbólico dessa área para cidade?

Sexta questão. Por fim, do ponto de vistados objetivos de inclusão social o projeto, por to-das suas características, informações, propostas epor sua prática, responde às demandas sociais eaos seus objetivos, ou vem ao encontro de fortale-cer a imagem de responsabilidade pública do po-der municipal e empresarial? Em outras palavras,

o Grafita Salvador é apenas um instrumento daestratégia de comunicação (“factóide”) dos pode-res públicos, ou, realmente, é um projeto de in-clusão de jovens carentes e de valorização da artede rua - o grafite?

(Recebido para publicação em janeiro de 2006)(Aceito em agosto de 2006)

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Any Brito Leal Ivo - Arquiteta pela Universidade Federal da Bahia (1994) com Pós-graduação em Marketing eComunicação Promocional (2002) pela FJA- Bahia. Atuou como assessora do Centro de Planejamento Munici-pal da Prefeitura de Salvador (1994-1996) e sub-gerente de Geoprocessamento da Fundação Mário Leal Ferreirada Secretaria de Planejamento da Prefeitura de Salvador (1996-97). Atualmente está finalizando o mestrado noPrograma de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia, com bolsa daCAPES. Sua área de interesse de pesquisa refere-se à dimensão mediática das cidades.

CIDADE - MÍDIA E ARTE DE RUA

Any Brito Leal Ivo

O trabalho busca, a partir do Pro-jeto Graffita Salvador, ilustrar as com-plexas relações entre arte, espaço públi-co e suas apropriações, através da di-mensão midiática da cidade, permitin-do o estabelecimento de nexos entre:cidade, arte, mídia e estratégiacomunicacional (de empresas e do po-der público). A cidade e suas apropria-ções constitui-se em elemento midiáticoestratégico e faz parte de um complexosistema de comunicação. A arte tambémcomunica e persuade. Ademais, as em-presas e os governos vêm investindo nacriação de imagens corporativas positi-vas junto à opinião pública, objetivadofortalecer suas imagens a partir da cons-tituição de símbolos de referência cultu-rais e coletivos da cidade. Num quadrode dificuldades do financiamento pú-blico, favorecem alternativas e estraté-gias baseadas em parcerias entre o pú-blico e o privado na gestão das cidades,reforçando-se positivamente as imagenstanto governamental (idéia de compro-metimento, participação e eficiência)como empresarial (responsabilidade so-cial). As indagações relativas ao ProjetoGrafita Salvador podem ajudar na com-preensão dessas dinâmicas e suas con-seqüências. A partir delas é possível es-tabelecer-se nexos entre as estratégiasde comunicação, as formas de expres-são artísticas, a cidade, os movimentossócio culturais, a arte de rua, e a consti-tuição do espaço público e suas apropri-ações, no contexto contemporâneo.

PALAVRAS-CHAVE: cidade, mídia, arte de rua,juventude, política pública.

CITY - MEDIA AND STREET ART

Any Brito Leal Ivo

This study tries to illustrate,starting from the Projeto Graffita Salva-dor, the complex relations among art,public space and their appropriations,through the mediatic dimension of thecity, allowing the establishment ofconnections among: city, art, media andcomuni-cational strategy (both fromprivate and public sectors). The city andits appropriations are an strategic mediaticelement and are part of a complexcommunication system. Art alsocommunicates and persuades. Besides,the public and private sectors are investingin the creation of positive corporateimages for the public opinion, aimed atstrengthening their images from theconstitution of cultural and collectivereference symbols of the city. In aframework of public financingdifficulties, alternatives and strategiesbased in partnerships between the publicand the private sectors are favored in theadministration of the cities, positivelyreinforcing the images both ofgovernment (idea of commitment,participation and efficiency) and privatesector (social responsibility). Theinquiries regarding the Projeto Grafita Sal-vador can help in the understanding ofthose dynamics and their consequences.Starting from them it is possible toestablish connections among thecommunication strategies, the artisticexpression forms, the city, the social andcultural movements, street art, and theconstitution of the public space and itsappropriations, in the contemporarycontext.

KEYWORDS: city, media, street art, youth,public policies.

LA VILLE – LES MEDIAS ET L’ART DE LA RUE

Any Brito Leal Ivo

Ce travail se veut d’illustrer, àpartir du Projet Graffita Salvador, lesrelations complexes entre l’art, l’espacepublic et ses appropriations, au traversd’une dimension médiatique de la villepermettant l’établissement de rapportsentre: ville, art, médias et stratégiecommunicationnelle (des entreprises etdes pouvoirs publics). La ville et sesappropriations sont des élémentsmédiatiques stratégiques et font partie d’unsystème complexe de communication.L’art aussi commu-nique et convainc.De plus, les e00ntre-prises et les gouver-nements investissent dans la créationd’images corporatives positives auprèsde l’opinion publique, cherchant àconsolider ces images à partir de laconstitution de symboles de référenceculturels et collectifs de la ville. Lecontexte des difficultés de financementpublic favorise les options et les stratégiesbasées sur des partenariats entre le publicet le privé pour la gestion des villes etrenforce positivement autant l’image dugouvernement (l’idée de compromis, laparticipation et l’efficacité) que celle desentreprises (responsabilité sociale). Lesquestions liées au Projet Graffita Salva-dor peuvent aider à comprendre cesdynamiques et leurs conséquences. Apartir de celles-ci, il est possible d’établirdes liens entre les stratégies decommunication, les formes d’expressionartistiques, la ville, les mouvementssocioculturels, l’art de la rue et laconstitution de l’espace public et de sesappropriations dans le contextecontemporain.

MOTS-CLÉS: ville, art de la rue, jeunesse,politique publique.