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PASSAGENS Chávez (1954-2013) no seu contexto Rubens Ricupero Numa perspectiva histórica de longo prazo, o lugar definitivo de Hugo Chá vez permanecerá inseparável do processo de afirmação e ascensão de um ator político novo na América Latina: as periferias das metrópoles nascidas da urbanização explosiva das últimas décadas. Nesse sentido, ele se diferencia de maneira expressiva da primeira vaga de líderes civis que assumiu o poder nos países do Cone Sul em substituição aos regimes militares durante a década de 1980. Homens como Tancredo Neves (1910-1985), Patrício Aylwin (1918), Ulysses Guimarães (1916- 1992), José Sarney (1930), até o mais jovem, Júlio Sanguinetti (1936), pertenciam a uma ou duas gerações anteriores a Chávez, nascido em 1954, menos de um mês antes do suicídio de Getúlio Vargas. Profissionais liberais de classe média, advogados, ou melhor, políticos de profissão, vinham de décadas de militância em partidos tradicionais anteriores às ditaduras militares, alguns com mais de cem anos de existência, como os Radicais de Alfonsín ou os Colorados de Sanguinetti. A redemocratização, a volta ao sistema constitucional, a reconstrução das instituições e dos partidos, o revigoramento dos direitos humanos forneciam-Ihes a pauta política prioritária. No demais, a herança maldita da dívida externa e do risco de hiperinflação (menos no Chile e em certo grau no Uruguai) lhes criava limitações que se revelaram em alguns casos insuperáveis e desgastariam a maioria desses governos. Apesar desse fracasso parcial, os regimes civis acabaram por se consolidar no sul do continen- te e gradualmente dominaram os problemas econômicos herdados dos militares. Num segundo momento, governos como o de Carlos Menem, na Argentina, e Fernando Henrique Cardoso, no Brasil, sem esquecer as sucessivas administrações da Concertação Democrática no Chile (quem se lembra ainda de Gonzalo Sánchez de Lozada, ou Goni, na Bolívia?) contribuíram para criar a re- putação internacional de que a ortodoxia macroeconômica não era incompatível com o sucesso eleitoral. Generalizou-se a ilusão de que a combinação da democracia representativa esclarecida com políticas econômicas atribuídas correta ou erradamente ao Consenso de Washington se havia convertido na onda do futuro na América Latina. A primeira grande revolta popular contra o chamado neoliberalismo, a ortodoxia do Consenso e do Fundo Monetário Internacional (FMI), é que iria fornecer a alavanca da irresistível ascensão de Hugo Chávez, cuja circunstância nacional contrasta em quase tudo com a dos países meridio- nais. Ele não teve de reagir contra uma ditadura militar, a última das quais terminara em seu país em 1958. A redemocratização venezuelana, com a consolidação dos dois grandes partidos, a Ação Democrática, de inspiração socialdemocrática e liderança de Romulo Bettancourt, depois Ribens Ricupero é diplomata; foi ministro da Fazenda do Brasil, secretário-geral da UNCTAD e embaixador do Brasil em Washington, entre outros cargos. 191 VOL 21 N" 4 ABR/MAI/jUN 2013

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  • PASSAGENS

    Chávez (1954-2013) no seu contextoRubens Ricupero

    Numa perspectiva histórica de longo prazo, o lugar definitivo de Hugo Chá vez permaneceráinseparável do processo de afirmação e ascensão de um ator político novo na América Latina: asperiferias das metrópoles nascidas da urbanização explosiva das últimas décadas. Nesse sentido,ele se diferencia de maneira expressiva da primeira vaga de líderes civis que assumiu o poder nospaíses do Cone Sul em substituição aos regimes militares durante a década de 1980.

    Homens como Tancredo Neves (1910-1985), Patrício Aylwin (1918), Ulysses Guimarães (1916-1992), José Sarney (1930), até o mais jovem, Júlio Sanguinetti (1936), pertenciam a uma ou duasgerações anteriores a Chávez, nascido em 1954, menos de um mês antes do suicídio de Getúlio

    Vargas. Profissionais liberais de classe média, advogados, ou melhor, políticos de profissão, vinhamde décadas de militância em partidos tradicionais anteriores às ditaduras militares, alguns com maisde cem anos de existência, como os Radicais de Alfonsín ou os Colorados de Sanguinetti.

    A redemocratização, a volta ao sistema constitucional, a reconstrução das instituições e dospartidos, o revigoramento dos direitos humanos forneciam-Ihes a pauta política prioritária. Nodemais, a herança maldita da dívida externa e do risco de hiperinflação (menos no Chile e emcerto grau no Uruguai) lhes criava limitações que se revelaram em alguns casos insuperáveis edesgastariam a maioria desses governos.

    Apesar desse fracasso parcial, os regimes civis acabaram por se consolidar no sul do continen-te e gradualmente dominaram os problemas econômicos herdados dos militares. Num segundomomento, governos como o de Carlos Menem, na Argentina, e Fernando Henrique Cardoso, noBrasil, sem esquecer as sucessivas administrações da Concertação Democrática no Chile (quem selembra ainda de Gonzalo Sánchez de Lozada, ou Goni, na Bolívia?) contribuíram para criar a re-putação internacional de que a ortodoxia macroeconômica não era incompatível com o sucessoeleitoral. Generalizou-se a ilusão de que a combinação da democracia representativa esclarecidacom políticas econômicas atribuídas correta ou erradamente ao Consenso de Washington se haviaconvertido na onda do futuro na América Latina.

    A primeira grande revolta popular contra o chamado neoliberalismo, a ortodoxia do Consensoe do Fundo Monetário Internacional (FMI), é que iria fornecer a alavanca da irresistível ascensãode Hugo Chávez, cuja circunstância nacional contrasta em quase tudo com a dos países meridio-nais. Ele não teve de reagir contra uma ditadura militar, a última das quais terminara em seupaís em 1958. A redemocratização venezuelana, com a consolidação dos dois grandes partidos,a Ação Democrática, de inspiração socialdemocrática e liderança de Romulo Bettancourt, depois

    Ribens Ricupero é diplomata; foi ministro da Fazenda do Brasil, secretário-geral da UNCTAD e embaixador do Brasilem Washington, entre outros cargos.

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  • IPASSAGENS

    de Carlos Andrés Pérez e o COPEI, a democracia cristã de Rafael Cal dera, datava de 25 a 30 anos

    antes das redemocratizações de Argentina, Brasil, Uruguai e Chile. No instante em que Chávezaparece na cena política, esses partidos já tinham sofrido longos anos de erosão e descrédito,fruto da corrupção e do fracasso em extrair da bonança dos preços do petróleo dos anos de 1970benefícios tangíveis para as massas.

    Em 1989, o duro ajuste negociado por Pérez com o FMI ocasionou a violenta reação populardo "caracazo". A brutal repressão desencadeada pelo governo fez centenas de mortos entre ospopulares que haviam descido dos morros e ocupado as ruas da capital, inspirando a frase racista:"los monos han bajado de los cerros" (os macacos desceram dos morros)!

    Mestiço, também de extração popular, militar esquerdista, o jovem tenente-coronel paraque-dista Hugo Chávez Frias foi dos primeiros a intuir que esses "monos" das periferias não se sen-tiam representados pelos partidos tradicionais de atuação econômica e social incapaz de melhorara vida das maiorias. Condenado após frustrada tentativa de golpe contra o governo, a prisão lheproporcionou o vagar para leituras marxistas e a elaboração de uma filosofia revolucionária.

    A mola de sua inspiração proveio do desejo de preencher o vácuo criado pela desmoraliza-ção dos partidos e instituições. Seu objetivo era canalizar as aspirações das periferias para ummovimento de drástica redistribuição do poder político e da riqueza, juntamente com a conces-são imediata de benefícios concretos aos mais carentes: saúde, educação, moradia, alimentos.

    Percebeu igualmente que as periferias criavam culturas e estilos próprios, que nem as igrejasestabelecidas, nem os partidos convencionais compreendiam e apreciavam.

    Tivesse surgido 20 ou 30 anos antes, Chávez quase certamente teria seguido o destino de umalegião de líderes populares que, de Jacobo Árbenz, na Guatemala, a Salvador Allende, no Chile,

    viram seus propósitos de radical reforma social distorcidos pelo prisma da Guerra Fria e suprimi-dos pelo medo do comunismo. Seu tempo histórico mostrou-se muito mais propício, do mesmomodo que tinha ocorrido com sua circunstância nacional. Temporalmente, ele foi o primeiro atentar uma reforma radical após a Guerra Fria e o fim do comunismo.

    Ao ser eleito regularmente em 1999, já se havia dissipado a aliança anticomunista não escri-ta entre militares e setores dirigentes latino-americanos com os responsáveis pelos interessesestratégicos norte-americanos no continente. Desaparecido o temor do contágio do comunismoe do alinhamento ideológico com a União Soviética, exorcizado o perigo de Cuba revolucioná-ria, liquidadas as guerrilhas na América Central, deixavam de existir obstáculos à aceitação daeventual vitória eleitoral de candidatos radicais e progressistas. Pela primeira vez autorizava-seo sufrágio universal a produzir seus efeitos.

    Logo depois, a partir dos atentados de setembro de 2001, a concentração estratégica ameri-cana no Oriente Médio fez o resto e explica que os Estados Unidos tenham se acomodado,embora de mau grado, ao anti-imperialismo chavista.

    A diferença de tempo histórico e de circunstância nacional permite entender que para ele odesafio político não fosse a redemocratização liberal já existente, mas a refundação da República.Ao mesmo tempo, no plano econômico, sua prioridade tinha a ver não com a crise da dívida

    externa e a inflação, como no sul, mas com a adoção de uma política econômica e social de signooposto ao Consenso neoliberal.

    A palavra refundação sugere que a independência promovida por Bolívar havia sido no últi-mo minuto confiscada pela oligarquia. Impunha-se, portanto, entregá-Ia de volta às mãos dopovo através da "refundação" da nação. O ponto de partida dos refundadores é a necessidade

    de abandonar as constituições do passado mediante reformas rad~2ais que rompam com osmecanismos eleitorais, legislativos e judiciários responsáveis pela perpetuação das oligarquiasno poder. Tendo chegado ao governo por eleições, líderes refundadores como Chávez creem

    indispensável instaurar processos constituintes semirrevolucionários, respaldados pelo recursofrequente a referendos e plebiscitos de consulta direta aos cidadãos por cima dos partidos e deoutras organizações intermediárias.

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  • CHÁVEZ (1954-2013) NO SEU CONTEXTO

    A refundação chavista tencionava inventar uma democracia nova, de participação direta, nãomais do tipo representativo clássico, de partidos e representação indireta. Uma das consequên-cias mais visíveis dessa abordagem foi autorizar reeleições sucessivas do presidente, que nãoescondia a aspifàção de governar até 2031! Desapareceu na prática o sistema de pesos e contra-pesos e reduziu-se muito a credibilidade da alternância real no poder, características da demo-cracia representativa.

    Na visão chavista, seria essa a única maneira de transformar a economia no sentido de uma

    radical redistribuição da riqueza e dos recursos naturais em favor da maioria pobre e mestiça.Para isso criaram-se mais de 30 programas assistenciais ou de transferência de renda, as chamadas

    misiones bolivarianas. Os preços altos do petróleo forneceram a Chávez os meios para realizar esseprograma, conquistando o apoio dedicado de mais da metade da população.

    Multiplicaram-se nacionalizações e intervenções nas atividades produtivas sem que tivessehavido real transformação das estruturas da economia. Apesar do ambicioso objetivo de construiro Socialismo do Século 21, a Venezuela continua a ser o que sempre foi ao longo desses cem anos:uma economia rentista de petróleo. O que mudou foi o setor que se apropria agora da maiorparcela dessa renda.

    O petróleo financiou também a ajuda a Cuba, aos caribenhos, e a criação da ALBA, AliançaBolivariana. Embora haja alguma semelhança entre os bolivarianos, as diferenças são ainda mais

    acentuadas. No fundo o modelo chavista não se mostrou exportável devido à especificidadepetrolífera venezuelana.

    Dotado de grande habilidade tática, Chávez sobreviveu ao golpe de 2002, à greve geral daque-le ano e à derrota de sua reforma constitucional de 2007. A maioria do chavismo é indiscutível,

    mas a oposição oscila em torno de significativa parcela de 40% do eleitorado, expressão de socie-dade polarizada e radicalizada em dois segmentos diferenciados pela classe social e até pelo graude miscigenação racial.

    O desaparecimento de Chá vez não significará provavelmente a extinção do movimento de

    autêntica base popular que fundou, da mesma forma que não se apagaram os legados de Vargas,Perón ou Haya de La Torre com a morte desses líderes. Não é impossível que, num primeiromomento, sua morte gere (como no suicídio de Getúlio ou na morte de Néstor Kirchner) um

    efeito de simpatia em favor dos sucessores. É o que parece ter ocorrido nas eleições regionais dedezembro em que a oposição só conseguiu manter três dos sete governos estaduais que detinha.

    O desafio do chavismo virá cedo ou tarde da sua incapacidade de efetivar muitas das refor-

    mas políticas e sociais que tentou introduzir e do seu fracasso na economia. Essa, aliás, parece asina se não de todos, da maioria dos movimentos de emancipação das periferias. Têm eles se re-velado incomparavelmente mais eficazes na redistribuição, nas políticas sociais, de igualdaderacial, de promoção de minorias, nas verdadeiras "revoluções culturais" que representam nahistória latino-americana do que na qualidade e no resultado de suas políticas macroeconômicase de produção.

    É como se estivéssemos condenados a passar pela experiência oposta ao que dizia o generalEmílio Garrastazu Médici sobre o "milagre econômico brasileiro": "0 Brasil vai bem, mas o povovai mal". A sensação agora é que o povo vai bem, mas o Brasil, a Argentina, a Venezuela vão mal...

    Não obstante essa grave e real deficiência, a ascensão dos setores populares próximos dalinha de pobreza, sua exigência não apenas de melhores condições de vida, mas também dedignidade e protagonismo político constituem inelutável necessidade histórica. Os movimentosque se esforçam por facilitar a realização dessa exigência da evolução social e da consciência

    ética não se esgotarão na Venezuela e na América Latina até que a promessa e a aspiração seconvertam em realidade.

    O fenômeno apresenta mais de uma analogia com o sucedido na Europa ocidental nas déca-das posteriores à Revolução Industrial, em particular entre 1830 e 1880. O aparecimento de umator social novo, o operário industrial ou proletário, deu origem à busca de melhores condições

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    salariais e de trabalho, juntamente com a reivindicação de voz e voto que lhe eram negadospelos sistemas eleitorais de então. Esse conflito produziu a era das revoluções, das barricadasdo Faubourg Saint Antoine consagradas nos Miseráveis de Victor Hugo, o Manifesto Comunista,as insurreições de 1830 e 1848, até a Comuna de Paris de 1871.

    Quase invariavelmente, os revoltados se viram derrotados e esmagados. Pouco a pouco, toda-via, desses episódios sanguinários emergiria a aceitação em fins do século XIX dos sindicatos, dospartidos social democratas, das ampliações dos direitos trabalhistas e eleitorais e eventualmentedo sufrágio universal. O período se caracterizou pela instabilidade, a ânsia de mudança, a reação,a repressão, ao embate, como se comentava na época, do partido do movimento contra o partidoda resistência.

    Então, como agora, era provavelmente inevitável atravessar décadas e décadas de desestabi-lização, uma vez que o surgimento de um ator novo e sua conquista de um lugar ao sol inevita-velmente acarretam mudanças nas posições relativas de outros atores, na perda de privilégios edominações tradicionais, no acirramento da competição. Depende da visão histórica dos setoresdirigentes (como em alguns países de tradição anglo-saxônica), de sua moderação, do equilíbrioe senso de compromisso abreviar a fase de desestabilização e conflito, torná-Ia menos traumáticae violenta.

    Não se pode pretender que, desse ponto de vista, o líder venezuelano desaparecido hajaencarnado um exemplo a imitar. A aguda divisão da sociedade de seu país constitui um dosaspectos menos atraentes de seu legado. Por temperamento ou convicção, por haver optadopelo confronto como tática mais efetiva ou por haver sido a isso forçado pela insensibilidadedos antigos setores dominantes, a verdade é que muitas de suas atitudes nos impressionamcomo inspiradas por desejo de provocação gratuita e desnecessária.

    Ainda assim, seria pecar por superficialidade subestimar Chávez devido a seus dotes histriô-nicos ou descartá-Io como mais um caudilho populista latino-americano, ignorando a profundaaspiração de transformação social e cultural à qual buscou dar expressão e a genuína base socialque lhe aportava sustentação e legitimidade.

    Não compreender por que milhões de venezuelanos se desesperaram com a morte de Chá vezé repetir a experiência narrada por Ernesto Sabato sobre a queda de Perón em 1955. O escritorcomemorava com amigos intelectuais e profissionais liberais o fim do ditador que envergonhavaa Argentina até que, em certo momento, teve de entrar na cozinha. Lá, todos os empregadoschoravam ...

    Março de 2013

    194 POLíTICA EXTERNA

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