China, Brasil, América Latina e a esquerda no contexto da atual crise econômica mundial

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Entrevista a GUILLERMO ALMEYRA� realizada porMurilo Leal�

Em sua opinião, qual a natureza da atual crise econômica do capitalismo mundial e por que ainda não se fizeram sentir em países como o Brasil efeitos da crise de grande amplitude?

Esta crise mundial do capitalismo não é apenas financeira. Ou seja, tem como detonador as aventuras e malabarismos com as hipotecas e as cotizações para o futuro, sobretudo nos Estados Unidos, mas é igualmente uma crise de superprodução mundial (ou de insuficiência do poder aquisitivo para comprar a produção) devido ao aumento enorme da produtividade junto à redução dos salários reais e ao aumento da extração de mais-valia relativa e também de mais-valia absoluta, fazendo crescer a intensidade do trabalho e os horários, piorando as condições de trabalho, destruindo as resistências sindicais, levando as empresas aos países com menores salários diretos e indiretos e menor legislação de proteção.

Se Brasil ou Argentina até agora sofreram menos que os países imperialistas, isso se deve a que têm uma maior diversificação de seus mercados para as matérias-primas (Mercosul, China, sobretudo e a que China mantém seu crescimento e necessita desses bens primários (soja, couros, petróleo, etc). A situação poderia mudar se a China exportasse mais produtos da indústria leve a estes países em vez de investir neles em bens de capital. Quanto à Índia e à China, suportaram melhor a crise porque não aplicaram as receitas neoliberais, mantendo um

� Professor de Relações Sociais na UAM - Xochimilcol e professor de Política Contemporânea na UNAM e editorialista do La Jornada, México. Membro do Conselho Editorial do Sin Permiso. � Doutor em História Social pela USP. Coordenador do Curso de História da Faccamp (Faculdade Campo Limpo Paulista).

grande papel do Estado na economia. Rússia, por sua vez, se safou porque é produtora de gás e de óleo cru e exportadora de tecnologia militar ao Pacto de Xangai. Mas uma nova onda de crise (sobretudo a crise européia, que obrigará os governos a sustentar bancos como Santander ou BBVA, que têm grandes interesses na América Latina e daí obtém seus maiores lucros) afetaria mais estes países, cujo aparato financeiro está em mãos estrangeiras, assim

como a grande indústria e, portanto, está fora das decisões estatais.

Você argumenta, em texto recente, que os “mal chamados governos “progressistas” continuam a aplicar essencialmente as mesmas políticas neoliberais dos anos 90”, uma opinião que nos parece bem acertada especialmente em relação a Lula. Perguntamos: a partir da dinâmica da atual crise mundial, que perspectivas você enxerga para governos que persistem em políticas que levaram ao desastre mundial?

O neoliberalismo tem muitos graus (níveis?). O do Brasil não é igual ao da Argentina ou da Bolívia. Nesses países a livre ação do mercado teorizada pelos neoliberais se combina com as políticas sociais estatais destinadas a sustentar o mercado interno e com ações neo-desenvolvimentistas (sobretudo, investimentos em infra-estrutura) dos governos que, como na Bolívia ou na Venezuela (que também mantém o neoliberalismo modificado), podem chegar a tomar a forma de capitalismo de Estado. Os governos argentino e brasileiro tratam de manter o poder aquisitivo dos trabalhadores para dar mercado às empresas capitalistas industriais que produzem para o mercado interno e subsidiam serviços e salários indiretos para manter baixos os salários (ou seja, aumento nos lucros) e frear as lutas independentes dos assalariados. Daí a grande luta inter-burguesa

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Contra a Corrente �

que caracteriza esses países apesar dos escassos conflitos entre trabalhadores e capitalistas e daí o ódio dos principais setores burgueses aos Lula e os Kirchner, apesar do neoliberalismo modificado dos mesmos.

De todo modo, o fato de que todas as alavancas a economia e os recursos principais estejam em mãos dos imperialistas, de que esses países mantenham uma política extrativista igual às do passado e não construam uma alternativa econômica e política, prepara as condições de futuras crises.

Referindo-se à atual crise mundial, você argumentou, em texto de 2008 (As sete vacas, magérrimas) que a Rússia e a China estão atados ao futuro estadunidense como ladrões amarrados por uma mesma corda e, ao mesmo tempo, ressaltou que são os Estados Unidos que dependem daqueles países e argumentou que Washington hoje está em liberdade vigiada; você poderia tecer algumas considerações mais sobre este tema?

Estados Unidos mantém não apenas sua grande superioridade militar (tem mais armas que todas as demais potências juntas) como também sua superioridade tecnológica no plano dos armamentos e os apoios logísticos aos mesmos. Além disso, tem a hegemonia cultural e dita, por exemplo, à China ou à Rússia quais devem ser as idéias corretas, os modos de vida, os consumos.

A China acaba de vender 35 bilhões de dólares em bônus do Tesouro ianqui, em parte para enviar uma ameaça a Washington pelo reconhecimento do Dalai Lama (e, implicitamente, do separatismo tibetano) e em parte porque está cansada de sustentar o dólar. A alternativa à dependência do mercado estadunidense e dos investimentos imperialistas ocidentais seria uma sinergia real e firme com a Rússia e todos os países do sudeste asiático que entraram em sua órbita, incluindo o Japão, mas este não é o caso.

Se não estamos enganados você parece imaginar que a China tem como tornar-se uma potência tecnológica, financeira e industrial dentro de poucos anos e de criar um grande setor tecnológico de ponta deslocando o centro do capitalismo mundial para o Oriente. Poderia nos falar sobre este ponto, inclusive considerando o aspecto de que os Estados Unidos são a maior potência militar do planeta e que – com outros países imperialistas – controlam o essencial da

tecnologia mundial? A China já tem fortes posições na África e está

ampliando as que conquistou na América Latina. Os países do Extremo Oriente dependem da China, mas o nacionalismo chinês lhes assusta. De todo modo, o Pacto de Xangai reforça a aliança de defensa, mas também o desenvolvimento militar entre a China e a Rússia e ameaça a política dos Estados Unidos no Afeganistão e as repúblicas da ex-União Soviética. Ali estão postas as bases de um conflito futuro.

Você defende, com muito brilho, a Trotski como o advogado do socialismo dos conselhos e que foi assassinado pela burocracia – dentre outras coisas – porque era inassimilável e incorruptível defensor do socialismo dos sovietes, do socialismo que não seja construído de cima para baixo, ou como você argumenta muito bem, do socialismo que não seja construído “desde arriba, com el aparato estatal, desde el aparato estatal, con los trabajadores actuando apenas como coro” (Trotsky, el socialismo e y la democracia, agosto 2009). Em sua opinião, faz-se necessária uma esquerda marxista contemporânea que defenda claramente e na tática cotidiana a estratégia soviética, do socialismo sem burguesia, baseado nos conselhos e na classe operária como sujeito hegemônico do processo? Que expectativas você guarda em relação a essa possibilidade?

Aquele que acredita que o Estado ou os governos construirão o socialismo não é marxista. A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores. Ao falar de trabalhadores não me refiro apenas aos operários, mas a todos os que formam o trabalhador coletivo, social, sobre o qual falava Marx. Os conselhos ou as organizações de tipo conselhistas, tanto operários como camponeses, apareceram em muitas formas diferentes em todo período de construção de um poder dual e, precisamente, servem para superar essa fase levando à construção de um Estado dos trabalhadores, de acordo com a peculiaridade histórico-cultural de cada país, porque permitem aos trabalhadores fazer experiências frente ao Estado capitalista e de construção de outro Estado debaixo para cima. A idéia de que esses conselhos devem estar subordinados ao partido revolucionário (como acreditavam os bolcheviques em �905 e no começo de �9�7) ou ao Estado (como acreditam os cubanos ou os venezuelanos) é falsa e criminosa: a iniciativa

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dos trabalhadores, sua pluralidade democrática, sua criatividade, não admitem dogmas nem direções impostas. É preciso criar uma corrente realmente marxista que confia na capacidade criativa dos trabalhadores, estude os germes do poder real, de autonomia, de autogestão, que eles acreditem e não dependam nem de governos nem de aparatos partidários, os quais devem ser transitórios e devem estar a serviço daqueles, os únicos protagonistas do socialismo e os únicos internacionalistas, pois eles não dependem, como os governos e seus partidos, do estreito quadro nacional.

A América Latina recente vem sendo marcada por vitórias eleitorais da direita, mas também de coligações políticas nas quais aparece um perfil/discurso de esquerda (Frente Ampla no Uruguai, FSLN na Nicarágua, FMLN em El Salvador e até o PT no Brasil dentre outros), mas que praticam uma política econômica de base neoliberal com suas nuances nacionais. Invariavelmente, tais processos primam pela ausência de uma virada na direção anticapitalista. Qual a sua interpretação para este processo? O que é que ele pode nos trazer de lição, se nos colocamos numa perspectiva de interpretação revolucionária?

Os governos capitalistas de centro-esquerda poderiam criar ilusões nos trabalhadores e levar a uma substituição destes, mas também expressam a crise de dominação do capitalismo e do imperialismo. Não são a solução, mas obstaculizam parcialmente os planos imperialistas, como se viu na Conferência de Mar del Plata que enterrou a ALCA e abriu caminho à ALBA. Serra não é igual ao PT, nem Cristina Kirchner à oligarquia argentina. Contudo, ao mesmo tempo que se deve evitar todo seguidismo ao governo burguês “progressista”, há que se defender o que o temor aos trabalhadores ou a necessidade de apoiar-se nestes os obriga a fazer e aproveitar espaços democráticos para educar os trabalhadores para a necessidade de sua independência política e para organizá-los, por conseguinte, se não detrás do partido revolucionário, ao menos detrás de um organismo de classe e, se possível, de organismos de poder dual, como os conselhos.

Fundamentos y límites del capitalismo

O livro de Louis Gill, , discute, a partir de O capital de Marx,

a realidade do sistema capitalista contemporâneo. Editorial Trotta, Espanha.

O livro sobre a vida do jovem Lenin, escrito por Leon Trotski,

desmistifica e desmumifica o Lenin que vem sendo biografado por liberais como Robert Service ou Richard Pipes. Edições CEIP,

Buenos Aires, �009. Autor: León Trotsky

À esquerda da esquerda, Trotskistas, Comunistas e

Populistas no Brasil Contemporâneo (1952-1966)Murilo Leal doutor em história

pela USP, analisa o trotskismo em um determinado período das lutas sociais no Brasil, os férteis anos

50 e 60; Editora Paz e Terra.