CHAAUIOqueeIdeologia_20150226192752

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O QUE E IDEOLOGIA? Marilena Chaui A divisão social do trabalho, ao separar os homens em proprietários e não proprietários dão aos primeiros poder sobre os segundos. Estes são explorados economicamente e dominados politicamente. Estamos diante de classes sociais e da dominação de uma classe por outra. Ora, a classe que explora economicamente só poderá manter seus privilégios se dominar politicamente e, portanto, se dispuser de instrumentos para essa dominação. Esses instrumentos são dois: o Estado e a Ideologia. Através do Estado, a classe dominante monta um aparelho de coerção e de repressão social que lhe permite exercer o poder sobre toda a sociedade, fazendo-a submeter-se às regras políticas. O grande instrumento do Estado é o Direito, isto é, o estabelecimento das leis que regulam as relações sociais em proveito dos dominantes. Através do Direito, o Estado aparece como legal, ou seja, como “Estado de direito”. O papel do Direito ou das leis é o de fazer com que a dominação não seja tida como uma violência, mas como legal, e por ser legal e não violenta deve ser aceita. Ora, se o Estado e o Direito fossem percebidos nessa sua realidade real, isto é, como instrumentos para o exercício consentido da violência, evidentemente ambos não seriam respeitados e os dominados se revoltariam. A função da Ideologia consiste em impedir essa revolta fazendo com que o legal apareça para os homens como legítimo, isto é, como justo e bom. Assim, a ideologia substitui a realidade do Estado pela idéia do Estado ou seja, a dominação de uma classe é substituída pela idéia de interesse geral encarnado pelo Estado. E substitui a realidade do Direito pela idéia do Direito ou seja, a dominação de uma classe por meio das leis é substituída pela representação ou idéias dessas leis como legítimas, justas, boas e válidas para todos. Não se trata de supor que os dominantes se reúnam e decidam fazer uma ideologia, pois esta seria, então, uma pura maquinação diabólica dos poderosos. E, se assim fosse, seria muito fácil acabar com uma ideologia. A ideologia resulta da prática social, nasce da atividade social dos homens no momento em que estes representam para si mesmos essa atividade, e vimos que essa representação é sempre necessariamente invertida. O que ocorre, porém, é o seguinte processo: as diferentes classes sociais representam para si mesmas o seu modo de existência tal como é vivido diretamente por

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Psicologia Sòcio-Histórica

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  • O QUE E IDEOLOGIA?

    Marilena Chaui

    A diviso social do trabalho, ao separar os homens em proprietrios e no proprietrios do aos

    primeiros poder sobre os segundos. Estes so explorados economicamente e dominados

    politicamente. Estamos diante de classes sociais e da dominao de uma classe por outra. Ora, a

    classe que explora economicamente s poder manter seus privilgios se dominar politicamente

    e, portanto, se dispuser de instrumentos para essa dominao. Esses instrumentos so dois: o

    Estado e a Ideologia. Atravs do Estado, a classe dominante monta um aparelho de coero e de

    represso social que lhe permite exercer o poder sobre toda a sociedade, fazendo-a submeter-se

    s regras polticas. O grande instrumento do Estado o Direito, isto , o estabelecimento das leis

    que regulam as relaes sociais em proveito dos dominantes. Atravs do Direito, o Estado

    aparece como legal, ou seja, como Estado de direito. O papel do Direito ou das leis o de fazer

    com que a dominao no seja tida como uma violncia, mas como legal, e por ser legal e no

    violenta deve ser aceita. Ora, se o Estado e o Direito fossem percebidos nessa sua realidade real,

    isto , como instrumentos para o exerccio consentido da violncia, evidentemente ambos no

    seriam respeitados e os dominados se revoltariam.

    A funo da Ideologia consiste em impedir essa revolta fazendo com que o legal aparea para os

    homens como legtimo, isto , como justo e bom. Assim, a ideologia substitui a realidade do

    Estado pela idia do Estado ou seja, a dominao de uma classe substituda pela idia de

    interesse geral encarnado pelo Estado. E substitui a realidade do Direito pela idia do Direito

    ou seja, a dominao de uma classe por meio das leis substituda pela representao ou idias

    dessas leis como legtimas, justas, boas e vlidas para todos. No se trata de supor que os

    dominantes se renam e decidam fazer uma ideologia, pois esta seria, ento, uma pura

    maquinao diablica dos poderosos. E, se assim fosse, seria muito fcil acabar com uma

    ideologia.

    A ideologia resulta da prtica social, nasce da atividade social dos homens no momento em que

    estes representam para si mesmos essa atividade, e vimos que essa representao sempre

    necessariamente invertida. O que ocorre, porm, o seguinte processo: as diferentes classes

    sociais representam para si mesmas o seu modo de existncia tal como vivido diretamente por

  • elas, de sorte que as representaes ou idias (todas elas invertidas) diferem segundo as classes e

    segundo as experincias que cada uma delas tem de sua existncia nas relaes de produo. No

    entanto, as idias dominantes em uma sociedade numa poca determinada no so todas as idias

    existentes nessa sociedade, mas sero apenas as idias da classe dominante dessa sociedade nessa

    poca. Ou seja, a maneira pela qual a classe dominante representa a si mesma (sua idia a

    respeito de si mesma), representa sua relao com a Natureza, com os demais homens, tornar-se-

    a maneira pela qual todos os membros dessa sociedade iro pensar. A ideologia o processo

    pelo qual as idias da classe dominante se tornam idias de todas as classes sociais, se tornam

    idias dominantes. E esse processo que nos interessa agora.

    As idias da classe dominante so, em cada poca, as idias dominantes, isto , a classe que a

    fora material dominante da sociedade , ao mesmo tempo, sua fora espiritual. A classe que tem

    sua disposio os meios de produo material dispe, ao mesmo tempo, dos meios de produo

    espiritual, o que faz com que a ela sejam submetidas, ao mesmo tempo e em mdia, as idias

    daqueles aos quais faltam os meios de produo espiritual. As idias dominantes nada mais so

    do que a expresso ideal das relaes materiais dominantes, as relaes materiais dominantes

    concebidas como idias. Os indivduos que constituem a classe dominante possuem, entre outras

    coisas, tambm conscincia e, por isso, pensam. Na medida em que dominam como classe e

    determinam todo o mbito de uma poca histrica, evidente que o faam em toda a sua

    extenso e, conseqentemente, entre outras coisas, dominem tambm como pensadores, como

    produtores de idias; que regulem a produo e distribuio das idias de seu tempo e que suas

    idias sejam, por isso mesmo, as idias dominantes da poca.

    A ideologia consiste precisamente na transformao das idias da classe dominante em idias

    dominantes para a sociedade como um todo, de modo que a classe que domina no plano material

    (econmico, social e poltico) tambm domina no plano espiritual (das idias). Isto significa que:

    1) Embora a sociedade esteja dividida em classes e cada qual devesse ter suas prprias idias, a

    dominao de uma classe sobre as outras faz com que s sejam consideradas vlidas, verdadeiras

    e racionais as idias da classe dominante;

    2) Para que isto ocorra, preciso que os membros da sociedade no se percebam como estando

    divididos em classes, mas se vejam como tendo certas caractersticas humanas comuns a todos e

    que tomam as diferenas sociais algo derivado ou de menor importncia;

  • 3) Para que todos os membros da sociedade se identifiquem com essas caractersticas

    supostamente comuns a todos, preciso que elas sejam convertidas em idias comuns a todos.

    Para que isto ocorra preciso que a classe dominante, alm de produzir suas prprias idias,

    tambm possa distribu-las, o que feito, por exemplo, atravs da educao, da religio, dos

    costumes, dos meios de comunicao disponveis;

    4) Como tais idias no exprimem a realidade real, mas representam a aparncia social, a

    imagem das coisas e dos homens, possvel passar a consider-las como independentes da

    realidade e, mais do que isto, inverter a 'relao fazendo com que a. realidade concreta seja tida

    como a realizao dessas idias.

    Todos esses procedimentos consistem naquilo que a operao intelectual por excelncia da

    ideologia: a criao de universais abstratos, isto , a transformao das idias particulares da

    classe dominante em idias universais de todos e para todos os membros da sociedade. Essa

    'universalidade das idias abstrata porque no corresponde a nada real e concreto, visto que no

    real existem concretamente classes particulares e no a universalidade humana. As idias da

    ideologia so, pois, universais abstratos.

    Os idelogos so aqueles membros da classe dominante ou da classe mdia (aliada natural da

    classe dominante) que, em decorrncia da diviso social do trabalho em trabalho material e

    espiritual, constituem a camada dos pensadores ou dos intelectuais. Esto encarregados, por meio

    da sistematizao das idias, de transformar as iluses da classe dominante (isto , a viso que a

    classe dominante tem de si mesma e da sociedade) em representaes coletivas ou universais.

    Assim, a classe dominante (e sua aliada, a classe mdia) se divide em pensadores e no

    pensadores, ou em produtores ativos de idias e consumidores passivos de idias.

    Uma histria concreta no perde de vista a origem de classe das idias de uma poca, nem perde

    de vista que a ideologia nasce para servir aos interesses de uma classe e que s pode faz-lo

    transformando as idias dessa classe particular em idias universais. No perde de vista, tambm,

    que a produo e distribuio dessas idias ficam sob controle da classe dominante, que usa as

    instituies sociais para sua implantao famlia, escola, igrejas, partidos polticos,

    magistraturas, meios de comunicao da cultura, permanecem atrelados conservao do poder

    dos dominantes.

  • O processo histrico real, escrevem Marx e Engels, no o do predomnio de certas idias em

    certas pocas, mas um outro e que o seguinte: Cada classe emergente, dizamos, precisa

    formular seus interesses de modo sistemtico e, para ganhar o apoio do restante da sociedade

    contra a classe dominante existente, precisa fazer com que tais interesses apaream como

    interesses de toda a sociedade. Assim, por exemplo, a burguesia, ao elaborar as idias de

    igualdade e de liberdade como essncia do homem faz com que se coloquem de seu lado como

    aliados todos os membros da sociedade feudal submetido ao poder da nobreza, que encarnava o

    princpio da desigualdade e da servido. Para poder ser o representante de toda a sociedade

    contra uma classe particular que est no poder, a Nobreza, a nova classe emergente precisa dar s

    suas idias a maior universalidade possvel, fazendo com que apaream como verdadeiras e

    justas para o maior nmero possvel de membros da sociedade. Precisa apresentar tais idias

    como as nicas racionais e as nicas vlidas para todos. Ou seja, a classe ascendente no pode

    aparecer como uma classe particular contra outra classe particular, mas precisa aparecer como

    representante de toda a sociedade, dos interesses de todos contra os interesses da classe particular

    dominante. E consegue aparecer assim universalizada graas s idias que defende como

    universais.

    No incio do processo de ascenso verdade que a nova classe representa um interesse coletivo:

    o interesse de todas as classes no dominantes. Porm, uma vez alcanada a vitria e a classe

    ascendente tomando-se classe dominante, seus interesses passam a ser particulares, isto , so

    apenas seus interesses de classe. No entanto, agora, tais interesses precisam ser mantidos com a

    aparncia de universais, porque precisam legitimar o domnio que exerce sobre o restante da

    sociedade. Em uma palavra: as idias universais da ideologia no so uma inveno arbitrria ou

    diablica, mas so a conservao de uma universalidade que j foi real num certo momento

    (quando a classe ascendente realmente representava os interesses de todos os no dominantes),

    mas agora uma universalidade ilusria (pois a classe dominante tornou-se representante apenas

    de seus interesses particulares).

    Cada nova classe estabelece sua dominao sempre sobre uma base mais extensa do que a

    classe que at ento dominava, ao passo que, mais tarde, a oposio entre a nova classe

    dominante e a no dominante se agrava e se aprofunda ainda mais. Isto significa que cada nova

    classe dominante, enquanto estava em ascenso, apontava para a possibilidade de um maior

  • nmero de indivduos exercerem a dominao e, por isso, quando toma o poder, usa de

    procedimentos mais radicais do que os j existentes para afastar as possibilidades de exerccio do

    poder por parte dos dominados. Por isso distncia entre dominantes e dominados aumenta

    ainda mais e os dominados, afinal, tero que lutar pelo trmino de toda e qualquer forma de

    dominao.

    Estamos agora em condies de compreender as determinaes gerais da ideologia (recordando

    que determinao significa: caractersticas intrnsecas a uma realidade e que foram sendo

    produzidas pelo processo que deu origem a essa realidade). Podemos agora compreender o que

    a ideologia porque acompanhamos o processo que a produz concretamente. As principais

    determinaes que constituem o fenmeno da ideologia so:

    1) A ideologia resultado da diviso social do trabalho e, em particular, da separao entre

    trabalho material/manual e trabalho espiritual/intelectual;

    2) Essa separao dos trabalhos estabelece a aparente autonomia do trabalho intelectual face ao

    trabalho material;

    3) Essa autonomia aparente do trabalho intelectual aparece como autonomia dos produtores

    desse trabalho, isto , dos pensadores;

    4) Essa autonomia dos produtores do trabalho intelectual aparece como autonomia dos produtos

    desse trabalho, isto , das idias;

    5) Essas idias autonomizadas so as idias da classe dominante de uma poca e tal autonomia

    produzida no momento em que se faz uma separao entre os indivduos que dominam e as

    idias que dominam, de tal modo que a dominao de homens sobre homens no seja percebida

    porque aparece como dominao das idias sobre todos os homens;

    6) A ideologia , pois, um instrumento de dominao de classe e, como tal, sua origem a

    existncia da diviso da sociedade em classes contraditrias e em luta;

    7) A diviso da sociedade em classes se realiza como separao entre proprietrios e no

    proprietrios das condies e dos produtos do trabalho, como diviso entre exploradores e

    explorados, dominantes e dominados e, portanto, se realiza como luta de classes. Esta no deve

  • ser entendida apenas como os momentos de confronto armado entre as classes, mas como o

    conjunto de procedimentos institucionais, jurdicos, polticos, policiais, 'pedaggicos,

    morais, psicolgicos, culturais, religiosos, artsticos, usados pela classe dominante para

    manter a dominao. A ideologia ' um instrumento de dominao de classe;

    8) Se a dominao e a explorao de uma classe for perceptvel como violncia, isto , como

    poder injusto e ilegtimo, os explorados e dominados se sentem no justo e legtimo direito de

    recus-la, revoltando-se. Por este motivo, o papel especfico da ideologia como instrumento da

    luta de classes impedir que a dominao e a explorao sejam percebidas em sua realidade

    concretas. Para tanto, funo da ideologia dissimular e ocultar a existncia das divises sociais

    como divises de classes, escondendo, assim, sua prpria origem.

    9) Por ser o instrumento encarregado de ocultar as divises sociais, a ideologia deve transformar

    as idias particulares da classe dominante em idias universais, vlidas igualmente para toda a

    sociedade;

    10) A universalidade dessas idias abstrata, pois no concreto existem idias particulares de

    cada classe. Por ser uma abstrao, a ideologia constri uma rede imaginria de idias e de

    valores que possuem base real (a diviso social), mas de tal modo que essa base seja reconstruda

    de modo invertido e imaginrio. Assim, por exemplo, quando os homens admitem que so

    desiguais porque Deus ou a Natureza os fez desiguais, esto tomando a desigualdade como causa

    de sua situao social e no como tendo sido produzida pelas relaes sociais e, portanto, por

    eles prprios, sem que o desejassem e sem que o soubessem;

    11 - Para percebermos que a ideologia no o mero reflexo invertido da realidade na

    conscincia dos homens, basta nos lembrarmos do modo como Marx define a religio. Em geral,

    todos conhecem a famosa frmula segundo a qual a religio o pio do povo, isto , um

    mecanismo para fazer com que o povo aceite a misria e o sofrimento sem se revoltar porque

    acredita que ser recompensado na vida futura (cristianismo) ou porque acredita que tais dores

    so uma punio por erros cometidos numa vida anterior (religies baseadas na idia de

    reencarnao). Aceitando a injustia social com a esperana da recompensa ou com a resignao

    do pecador, o homem religioso fica anestesiado como o fumador de pio, alheio realidade.

    12) A ideologia produzida em trs momentos fundamentais:

  • a) ela se inicia como um conjunto sistemtico de idias que os pensadores de uma classe em

    ascenso produzem para que essa nova classe aparea como representante dos interesses de toda

    a sociedade, representando os interesses de todos os no dominantes. Nesse primeiro momento, a

    ideologia se encarrega de produzir uma universalidade com base real para legitimar a luta da

    nova classe pelo poder;

    b) ela prossegue tornando-se aquilo que Gramsci denomina de senso comum, isto , ela se

    populariza, torna-se um conjunto de idias e de valores concatenados e coerentes, aceitos por

    todos os que so contrrios dominao existente e que imaginam uma nova sociedade que

    realize essas idias e esses valores. Ou seja, o momento essencial de consolidao social da

    ideologia ocorre quando as idias e valores da classe emergente so interiorizados pela

    conscincia de todos os membros no dominantes da sociedade;

    c) uma vez sedimentada e interiorizada como senso comum, a ideologia se mantm, mesmo aps

    a vitria da classe emergente, que se torna, ento, classe dominante. Isto significa que, mesmo

    quando os interesses anteriores, que eram interesses de todos os no dominantes, so negados

    pela realidade da nova dominao isto , a nova dominao converte os interesses da classe

    emergente em interesses particulares da classe dominante e, portanto, nega a possibilidade de

    que se realizem como interesses de toda a sociedade , tal negao no impede que as idias e

    valores anteriores dominao permaneam como algo verdadeiro para os dominados. Ou seja,

    mesmo que a classe dominante seja percebida como tal pelos dominados, mesmo que estes

    percebam que tal classe defende interesses que so exclusivamente dela, essa percepo no

    afeta a aceitao das idias e valores dos dominantes, pois a tarefa da ideologia consiste

    justamente em separar os indivduos dominantes e as idias dominantes, fazendo com que

    apaream como independentes uns dos outros.

    Uma classe hegemnica no s porque detm a propriedade dos meios de produo e o poder

    do Estado (isto , o controle jurdico, poltico e policial da sociedade), mas ela hegemnica,

    sobretudo porque suas idias e valores so dominantes, e mantidos pelos dominados at mesmo

    quando lutam contra essa dominao. Em geral, fala-se muito em crise de hegemonia (conceito

    gramsciano) para caracterizar momentos de crise econmica e poltica nos quais a classe

    dirigente (aquela frao da classe dominante que dirige a sociedade) forada a repensar sua

    ao econmica e poltica se quiser conservar o poder dirigente. Ora, crise de hegemonia no

  • isto. A crise de hegemonia s ocorre quando, alm da crise econmica e poltica que afeta os

    dirigentes, h uma crise das idias e dos valores dominantes, fazendo com que toda a sociedade,

    na qualidade de no dirigente, recuse a totalidade da forma de dominao existente.

    13) A ideologia um conjunto lgico, sistemtico e coerente de representaes (idias e valores)

    e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que

    devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que

    devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela , portanto, um

    corpo explicativo (representaes) e prtico (normas, regras, preceitos) de carter prescritivo,

    normativo, regulador, cuja funo dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma

    explicao racional para as diferenas sociais, polticas e culturais, sem jamais atribuir tais

    diferenas diviso da sociedade em classes, a partir das divises na esfera da produo.

    Pelo contrrio, a funo da ideologia a de apagar as diferenas como de classes e de fornecer

    aos membros da sociedade o sentimento da identidade social, encontrando certos referenciais

    identificadores de todos e para todos, como, por exemplo, a Humanidade, a Liberdade, a

    Igualdade, a Nao, ou o Estado. Isto significa que: a) na qualidade de explicao terica do real

    (atravs das cincias, sobretudo hoje em dia, ou das filosofias ou das religies), a ideologia

    nunca pode explicitar sua prpria origem, pois, se o fizesse, faria vir tona a diviso social em

    classes e perderia, assim, sua razo de ser que a de dar explicaes racionais e universais que

    devem esconder as diferenas e particularidades reais. Ou seja, nascida por causa da luta de

    classes e nascida da luta de classes, a ideologia um corpo terico (religioso, filosfico ou

    cientfico) que no pode pensar realmente a luta de classes que lhe deu origem; b) na qualidade

    de corpo terico e de conjunto de regras prticas, a ideologia possui uma coerncia racional pela

    qual precisa pagar um preo. Esse preo a existncia de brancos, de lacunas ou de

    silncios que nunca podero ser preenchidos sob pena de destruir a coerncia ideolgica. O

    discurso ideolgico coerente e racional porque entre suas partes ou entre suas frases h

    brancos ou vazios responsveis pela coerncia. Assim, ela coerente no apesar das lacunas,

    mas por causa ou graas s lacunas. Ela coerente como cincia, como moral, como tecnologia,

    como filosofia, como religio, como pedagogia, como explicao e como ao apenas porque

    no diz tudo e no pode dizer tudo. Se dissesse tudo, se quebraria por dentro.

  • Vejamos o que significa a afirmao de que a ideologia no pode dizer tudo porque se o dissesse

    se destruiria por dentro. Por exemplo, se mostrasse que a famlia pequeno-burguesa tem a

    finalidade de reproduzir os ideais e valores burgueses para toda a sociedade e que, por isto,

    nela que a idia de famlia mais forte do que nas outras classes, teria que mostrar que a famlia

    pequeno-burguesa est encarregada de oferecer ao pai uma autoridade substitutiva que o

    compense de sua real falta de poder na sociedade, e que, por isto, ele aparece como devendo

    encarnar para toda a sociedade o ideal do Pai. Que esta famlia tambm est encarregada de dar

    me um lugar honroso que a retenha fora do mercado de trabalho para no competir com o pai e

    no lhe roubar a autoridade ilusria, e que, por isto, a mulher desta famlia est destinada a

    encarnar para toda a sociedade o ideal de Me. Que, finalmente, esta famlia pequeno-burguesa

    est encarregada de conservar' a autoridade paterna e a domesticidade materna como foras para

    reter por mais tempo fora do mercado de trabalho os jovens, para us-los apenas quando se

    tornam arrimos econmicos de garantia de unidade familiar, e que, por este motivo, retarda o

    maior tempo passvel a constituio de novas famlias, e que este o motivo da defesa do ideal

    da virgindade para as meninas e da recusa do homossexualismo feminino e masculino (pois no

    homossexualismo no h reproduo e vnculo familiar).

    Se a ideologia mostrasse todos os aspectos que constituem a realidade das famlias no sistema

    capitalista, se mostrasse como a represso da sexualidade est ligada a essas estruturas familiares

    (condenao do adultrio, do homossexualismo, do aborto, defesa da virgindade e do

    heterossexualismo, diminuio do prazer sexual para o trabalhador porque o sexo diminui a

    rentabilidade e produtividade do trabalho alienado), como, ento, a ideologia manteria a idia e o

    ideal da Famlia? Como faria, por exemplo, para justificar uma sexualidade que no estivesse

    legitimada pela procriao, pelo Pai e pela Me? No pode fazer isto. No pode dizer isto;

    14) A ideologia no tem histria, afirmam Engels e Marx. Isto no quer dizer que houve, h e

    haver sempre uma s e mesma ideologia. Tanto assim que a prpria ideologia burguesa, que

    uma das formas histricas da ideologia, tambm no sempre a mesma. No perodo da livre

    concorrncia, que definia as relaes econmicas e sociais pelas relaes de contrato no mercado

    e pela liberdade de empresa, a ideologia burguesa assumir a forma do liberalismo, enquanto

    atualmente, com o fim da livre concorrncia, com o advento do capitalismo monopolista de

  • Estado ou dos oligoplios, a ideologia burguesa assume a forma da ideologia da' Organizao,

    do Planejamento e da Administrao; Dizer que a ideologia no tem histria significa que:

    a) a transformao das idias no depende delas mesmas, de alguma fora interna que teriam,

    mas depende da transformao das relaes sociais e, portanto, das relaes econmicas e

    polticas. Com isto, podemos perceber que h entre a ideologia e a estrutura de uma sociedade

    aquilo que Louis Althusser chama de contemporaneidade ou de correspondncia temporal

    entre a estrutura social e, as idias ideolgicas. Para se tornar o previsvel (aquilo que os homens

    devero realizar), o saber histrico mantm as diferenas temporais como diferenas intrnsecas;

    b) a ideologia fabrica uma histria imaginria (aquela que reduz o passado e o futuro s

    coordenadas do presente), na medida em que atribui o movimento da histria a agentes ou

    sujeitos que no podem realiz-lo. Assim, por exemplo, a ideologia nacionalista faz da Nao o

    sujeito da histria, ocultando que a Nao uma unidade imaginria, pois constituda

    efetivamente por classes sociais em luta. A ideologia estadista faz do Estado ou da ao dos

    governantes ou das mudanas de regimes polticos o sujeito da histria, ocultando que o Estado

    no um sujeito autnomo, mas instrumento de dominao de uma classe social e que, portanto,

    o sujeito dessa histria estadista imaginria , afinal, apenas a classe dominante.

    A ideologia racionalista (e, atualmente, a ideologia cientificista) faz da Razo (e, hoje em dia, da

    Cincia) o sujeito da histria, esquecendo-se de que a idia da Razo (e de Cincia)

    determinada por aquilo que numa sociedade entendido como racional e como irracional, e que

    a idia de racionalidade determinada pela forma das relaes sociais.

    de grande importncia a afirmao de Marx e de Engels acerca da ideologia como algo que

    no tem histria. Por qu? Porque a ideologia burguesa tem o culto da histria entendida como

    progresso. Para a ideologia burguesa, toda a histria o progresso das naes, dos estados, das

    cincias, das artes, das tcnicas. E que o historiador burgus aceita a imagem progressista que a

    burguesia tem de si mesma, na medida em que a burguesia considera um progresso seu modo de

    dominar a Natureza e de dominar os outros homens. Com esse culto do progresso, a burguesia e

    seus idelogos justificam o direito do capitalismo de colonizar os povos ditos primitivos ou

    atrasados para que se beneficiem dos progressos da civilizao.

  • A ideologia no tem histria, mas fabrica histrias imaginrias que nada mais so do que uma

    forma de legitimar a dominao da classe dominante, compreende-se por que a histria

    ideolgica (aquela que aprendemos na escola e nos livros) seja sempre uma histria narrada do

    ponto de vista do vencedor ou dos poderosos. No possumos a histria dos escravos, nem a dos

    servos, nem a dos trabalhadores vencidos no s suas aes no so registradas pelo

    historiador, mas os dominantes tambm no permitem que restem vestgios (documentos,

    monumentos) dessa histria. Por isso os dominados aparecem nos textos dos historiadores

    sempre a partir do modo como eram vistos e compreendidos pelos prprios vencedores. O

    vencedor ou poderoso transformado em nico sujeito da histria no s porque impediu que

    houvesse a histria dos vencidos (ao serem derrotados, os vencidos perderam o direito

    histria), mas simplesmente porque sua ao histrica consiste em eliminar fisicamente os

    vencidos ou, ento, se precisa do trabalho deles, elimina sua memria, fazendo com que se

    lembrem apenas dos feitos dos vencedores. No , assim, por exemplo, que os estudantes negros

    ficam sabendo que a Abolio foi um feito da Princesa Isabel? As lutas dos escravos esto sem

    registro e tudo que delas sabemos est registrado pelos senhores brancos. No h direito

    memria para o negro. Nem para o ndio. Nem para os camponeses. Nem para os operrios.

    Histria dos grandes homens, dos grandes feitos, das grandes descobertas, dos grandes

    progressos, a ideologia nunca nos diz o que so esses grandes. Grandes em qu? Grandes por

    qu? Grandes em relao a qu? No entanto, o saber histrico nos dir que esses grandes,

    agentes da histria e do progresso, so os grandes e poderosos, isto , os dominantes, cuja

    grandeza depende sempre da explorao e dominao dos pequenos, Alis, a prpria idia

    de que os outros so os pequenos j um pacto que fazemos com a ideologia dominante.

    Graas a esse tipo de histria, a ideologia burguesa pode manter sua hegemonia mesmo sobre os

    vencidos, pois estes interiorizam a suposio de que no so sujeitos da histria, mas apenas seus

    pacientes.