Cavernas Da Contemporaneidade 2014

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    Cavernas da contemporaneidade1 

    Sílvia Pinto

    Figura 1 Grutas de Altamira, Espanha, 15.000-35.000 a.C. Figura 2 Rebecca Horn, A luz prisioneira no

    ventre da baleia, 2002.

    […] não estamos feitos para receber tanta luz, estamos feitos para a luz do

    crepúsculo. Até estarmos expostos a uma luz de baixa intensidade não se

    dilatam as pupilas. Quando por fim o fazemos, começamos a sentir a luz como

     se fosse algo táctil.

    James Turrel

    As mais recentes características individuadas no dispositivo parietal e na arte egípcia

    relacionam-se com as instalações e os ambientes projetados, que a partir da década de

    1960 do século XX, contribuíram para a redefinição da linguagem artística

    contemporânea. O desafio a que nos propomos é o de aproximar estas duas práticas,

    separadas por vários milhares de anos, pela aproximação dos seus espaços e, em

     particular, dos seus efeitos de iluminação. Em nosso entender, a longa cadeia operativa

    da conquista do espaço subterrâneo, através da apropriação de aspetos do espaçoarquitetónico, de efeitos de iluminação, de animação e de pontos de vista topográficos

    específicos, põe em prática (sem as nomear), noções que presidem à prática artística

    contemporânea, como a poética de integração arte-vida, o conceito de intertextualidade

    e a ativação de espaços/ambientes através de projeções de luz e sombra. Ao ressurgirem

    no século XX, estas características ancestrais colocam-se como problema artístico num

    momento decisivo da redefinição da arte contemporânea.

    1  Este texto resulta do desenvolvimento do artigo “Cavernas da contemporaneidade: deslocamentos a partir dodispositivo parietal”, redigido para NEVES, Eduarda (ed.), Revista Persona #2, ESAP, Porto 2014.

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    O sol é um facto incontornável no Egipto: penetrante, implacável e altamente

    contrastante  –   cegante, escaldante, e de repente, a sua ausência: sombria e fria. A

    alvorada e o pôr-do-sol são momentos breves, repentinos e espetaculares. Todavia,segundo Kim Levin (1971), a luz é um tema que tem sido praticamente ignorado pelos

    Egiptólogos modernos2. Para os arqueólogos e os egiptólogos, as pirâmides são apenas

    os túmulos dos reis. Sempre foram estudadas na área da geometria; até a geometria da

    sua sombra foi cuidadosamente estudada. Contudo, as pirâmides, em si mesmas, nunca

    foram consideradas como objetos iluminados, não obstante, por todo o lado, haver

    indícios desta consciência fundamental da luz  –  materiais que atraem e refletem o sol,

    superfícies luminosas que brilham e resplandecem, obeliscos completamente banhadosde ouro, pirâmides revestidas de calcário branco, e o mais extraordinário, templos

    orientados milimetricamente para, em dias especiais, serem penetrados pelo sol. Os

    Egípcios não só adoravam o sol através de imagens e formas muito diferentes, como

    incorporaram a luz real nas suas obras, uma vez que o que viam na luz era a presença

    animada dos deuses.

    À exceção dos templos de Akhenaton, que não tinham telhados, os templos eram

    inteiramente cobertos de pedra, sem janelas. Quanto mais se penetravam, mais se

    tornavam escuros e estreitos, levando gradualmente até à escuridão quase total. O

    santuário da estátua do deus-sol transmitia, como descreve Kim Levi, “uma sensação de

    clausura e mistério escurecido numa terra luminosa cercada por desertos ilimitados”.

     Não obstante a extraordinária quantidade de luz solar, ou talvez por isso mesmo, o

    interesse dos criadores Egípcios estava especificamente na “luz visível”3  –  controlada e

    dirigida por visíveis feixes de luz, refletida e alternada por mudanças repentinas de luz e

    sombra, claridade e escuridão. A luz entrava nos templos através de pequenas fendas notelhado, quadradas ou retangulares. Essas aberturas, estreitas no topo e largas na base,

    como pirâmides cortadas, canalizavam a luz do sol através de um ponto de luz e

    dirigiam-na, em forma de holofote, para os objetos específicos, vivificando-os

    simbolicamente.

    2 Em 1971, apenas a luz de um lugar havia sido estudado  –  Abu Simbel  –  e apenas um livro havia considerado o papel da luz nos templos egípcios: Cenival, J. L. de (1964)  Living Architectures: Egyptian, New York: Grosset &Dunlap, Inc.

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      A luz, a menos que incida diretamente sobre um objeto, permanece invisível. Aquilo que hoje se denomina“iluminação” existe somente se e quando a palavra serve para dar nome a um fenómeno que os olhos podemdiscernir. 

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    Sabemos desde as cavernas paleolíticas, que as figuras em alto-relevo podem ser

    realçadas ou adormecidas pelo enfoque da luz, em função das escolhas topográficas. Há

    templos egípcios com pórticos cobertos de altos-relevos, para os quais a fonte de

    iluminação é vital: o sol começa por iluminar uma parte das figuras em relevo, depois

    ilumina outra parte das mesmas figuras, tirando partido da mesma técnica iluminista das

    cavernas. As inscrições egípcias, que são muito profundas, são visíveis todo o dia,

    enquanto os altos-relevos sofrem transformações graduais, sendo alguns deles visíveis

    apenas em algumas alturas do ano, ou somente no Verão, quando o sol é mais alto.

    Entre a seleção de alguns templos que aqui apresentamos, talvez o efeito ótico mais

    inesperado e assustador seja o que se pode ver em Karnak, num pequeno quarto escuro

    do Templo de Ptah, que se assemelha a uma verdadeira “câmara escura”. O quarto  éiluminado por uma pequena abertura no centro do teto, que permite a iluminação da

    estátua através de um cone de luz azulada. A luz funciona como uma projeção do céu,

    que em dias nublados cria uma imagem em movimento das nuvens sobre a estátua,

    como se o próprio deus residisse na estátua e nela se manifestasse, tornando-a branca,

    azul, ou desaparecendo subitamente. Por outro lado, no Templo de Rameses II, em Abu

    Simbel, a porta é a única fonte de luz. O sol nascente começa por iluminar o topo da

    fachada, movendo-se, então, para baixo, até iluminar a porta e penetrar, em apenas doisdias no ano4, o interior do santuário onde estão sentadas quatro estátuas. Os dois deuses-

    sol, Rá e Amon, com Rameses entre eles, são iluminados pelo sol, e apenas a estátua de

    Ptah, deus das regiões inferiores, permanece na escuridão. Assim, exceto as duas

     pirâmides em Dahsur, as pirâmides do velho reino têm uma inclinação de cerca de 52º,

    graças à qual os raios de sol atingem a superfície inclinada exatamente no solstício de

    Inverno. Assim, no dia mais curto do ano, quando o sol está mais fraco e mais baixo no

    céu, parecendo querer morrer, as pirâmides estão no máximo da sua claridade, brilhando

    como espelhos em direção ao céu, podendo assim devolver ao sol a sua força,

    revivificando-o.

    Desde Plínio que se acredita que o obelisco representa um raio de sol. Feitos em granito

    rosa e guarnecidos a ouro, os obeliscos refletem os primeiros indícios da luz solar na

    sua forma piramidal, antes que os seus raios atinjam o solo, predizendo assim, a sua

    4 Em 19 de Outubro e 21 de Fevereiro, os mesmos dias em que o mesmo fenómeno se dá em At Dahsur . 

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    chegada5. Por esse motivo, os obeliscos surgem em lugares associados ao culto do sol

    com inscrições referentes a ele. O obelisco, desenhado em hieróglifos com o sol na sua

     ponta, como se estivesse empoleirado nele, foi pensado como o trono para o sol

    nascente e os seus raios, ao contrário da pirâmide, que terá sido pensada como o túmulo

    do pôr-do-sol. Uma vez que os raios de sol eram representados sob a forma de cadeias

    de triângulos e as aberturas de luz nos templos eram fendas em forma piramidal, a

    associação das pirâmides-obeliscos-luz parece ser inequívoca.

    A forma dos obeliscos terá sido uma derivação do mais antigo e sagrado objeto egípcio

     –  a pedra benben de Heliópolis. Segundo a lenda, o deus-sol ou phoenix, pousou uma

    madrugada na pedra. O phoenix é representado pelos Egípcios como um grande pássaro

    azul-claro, e existe pelo menos uma representação sua imitando um halo de luz azulada.Pouco se sabe sobre esta pedra, mas a lenda parece ter mais factos do que ficção. Uma

    vez que o obelisco é uma forma prismática de quatro lados, pontiaguda, mudando o

    ângulo no topo para convergir para um ponto, e uma vez que os Egípcios obtinham

    outros efeitos sofisticados por meios simples, não é impossível que a pedra considerada

    sagrada fosse uma pedra altamente polida, semitransparente como o quartzo,

    funcionando como um perfeito prisma que separa a luz branca em cores diferentes. A

    extremidade azul do espectro, de maior flexão, seria, provavelmente, para separarvisivelmente através de um prisma como esse. De madrugada, os raios de sol atingiriam

    a forma prismática do obelisco num ângulo, produzindo um flash de cor azul. Talvez

    este seja o significado do phoenix azul e o seu halo azul.

    Ao contrário dos espetaculares efeitos cénicos e teatrais criados hoje para fins turísticos,

    o mais antigo uso da luz pelos antigos egípcios não era destinado a um público

    indiferenciado, mas apenas aos participantes do culto, para quem um feixe de luz não

    era apenas a fonte primordial de luz, mas a emanação dos raios do olho do deus Rá.

    * * *

     Nos nossos dias, as pinturas que remontam ao paleolítico superior, realizadas há cerca

    de 30.000  –   10.000 anos atrás, continuam a ser fenómenos singulares na história da

    5 O poder vivificador do sol era considerado tão importante que os mais elaborados rituais diários que tinham lugarno templo eram feitos de madrugada, no momento da alba. Eram sobretudo cerimónias de purificação que envolviam

    o lago sagrado - um autêntico refletor natural - antes da exposição da estátua do deus à luz do sol. Rituais mais breveseram celebrados ao meio-dia e ao pôr-do-sol, mas o sol nascente, simbolizando o aparecimento da luz a partir dastrevas, era o momento mais importante.

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     perceção humana. “É uma estranha experiência descer nessas cavernas, por vezes

    através de corredores baixos e estreitos, mergulhar na escuridão do ventre da montanha

    e, de súbito, ver a lanterna do guia iluminar a imagem de um touro” (Gombrich, 1985:

    22). A aparente incoerência do dispositivo parietal6 e a sobreposição das imagens, umas

    sobre as outras, terá sido, durante muito tempo, motivo de evidência da ausência

     provável de qualquer função expressiva ou decorativa na sua origem. Para além disso,

    dada a sua inacessibilidade e total ausência de luz, tudo levava a crer que estas imagens

    não teriam sido feitas para serem vistas. Como defende Walter Benjamin,

    “Nos primórdios, a obra de arte, devido ao peso absoluto que assentava sobre o seu

    valor de culto, transformou-se, principalmente, num instrumento da magia que só mais

    tarde foi, em certa medida, reconhecido como obra de arte. Da mesma forma,

    actualmente, a obra de arte devido ao peso absoluto que assenta sobre o seu valor de

    exposição, passou a ser uma composição com funções totalmente novas, das quais se

    destaca a que nos é familiar, a artística, e que posteriormente, talvez venha a ser

    reconhecida como acidental.” (Benjamin, 1992: 86-87).

    Independentemente da distância que nos separa do dispositivo parietal, em termos de

    conceção artística7, estudos recentes (Groenen, 2003)8  indicam que a conquista do

    espaço subterrâneo não se realizou de maneira homogénea ou aleatória e,

    contrariamente ao que se pensou durante muito tempo, a distribuição das diferentes

    categorias de grafismos no espaço não só se pode ler hoje como uma coerência

     particular do dispositivo parietal, como se supõe a existência de uma autêntica

    cenografia integradora dos elementos figurativos e da arquitetura subterrânea9. Somos

    6 A arte parietal é considerada cronologicamente paleolítica (pelo menos a partir do século XX), uma vez que, desdeo seu reconhecimento, a arte paleolítica subdividiu-se em arte móvel e arte parietal. A noção de arte parietal enquantoarte paleolítica opôs-se, por vezes, dogmaticamente, à arte rupestre, considerada de períodos mais recentes. Adescoberta de figuras gravadas em afloramentos rochosos ao ar livre, atribuídas ao Paleolítico, veio mostrar que a arte

    rupestre é tão significativa na era paleolítica quanto a arte móvel ou a arte parietal (Groenen, 2003: 21-22).  7  A maioria dos autores (Groenen, 2003: 15) reconhece o valor simbólico da arte parietal, admitindo a vocaçãomitográfica dos motivos figurados e conservando, pelo menos implicitamente, o fundamento “mágico -religioso”(nomeadamente, xamânico), que os antigos investigadores haviam avançado. Em síntese, o pintor da era paleolítica ésimultaneamente o caçador que acredita encontrar-se na posse do objeto a partir do momento em que possuí a suaimagem. A sua representação não tem o valor de um objeto de contemplação, mas é um projeto de ação que antecipao efeito desejado (Hauser, 1989: 20-21). Do ponto de vista da utilidade, não existe qualquer diferença entre aconstrução de uma cabana, a celebração de um ritual fúnebre ou a produção de imagens. Qualquer uma destasatividades servia para proteger o homem das forças da natureza, e das outras. A arte está aqui inteiramente ao serviçoda vida –  a representação e a coisa representada são uma e a mesma coisa, assim como o desejo e a sua realização(Gombrich, 1985: 21). A única diferenciação entre a imagem e a realidade estaria no tempo que as separa.8 Baseamo-nos em particular nos capítulos 7. “La puesta en escena del dispositivo parietal”; 8. “Realismo y realidad;9. El punto de vista de los paleolíticos; 10. “De la luz a la sombra: una aproximación a la metafísica paleolítica; 11.

    Utilización de los espácios subterrâneos; e 12. “Funcionalidade del arte parietal. 9 Não é nosso intento desenvolver aqui um estudo aprofundado da arte parietal, mas apenas fazer o levantamento dealguns aspetos comuns do seu funcionamento, motivo pelo qual adotamos a designação de “dispositivo”. Dada a

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    inclusivamente levados a crer que o dispositivo parietal não só foi concebido para ser

    visto como foi concebido para ser “observado” segundo específicas modalidades do

    olhar: o conjunto da composição exige do observador distância, enquanto motivos

     particulares exigem intimidade. Quer ao nível dos motivos, quer ao nível da organização

    espacial, as figuras distribuem-se segundo uma vocação própria. A obra parietal

    constitui um circuito-evento para iniciados no culto, uma autêntica “obra em situação”

    (Robert Morris)10.

    As fontes de luz da época –  lâmpadas de azeite, tochas e lareiras escavadas no chão, que

     produzem uma iluminação movimentada –  contribuem para animar os motivos pintados

    ou gravados, produzindo níveis de visibilidade distintos consoante se trate de

    superfícies continuadas, descontinuidades, aberturas ou fendas, ativando, assim, todo o potencial espacial. Nem os motivos nem os espaços parecem ter igual valor. Uma

    dialética de luz e sombra é posta em cena pelo pintor paleolítico, que como um

    verdadeiro cenógrafo, tira partido das sombras projetadas para completar o contorno das

    figuras e deforma certas proporções reais para sugerir específicos posicionamentos do

    olhar. A iluminação assim dirigida ativa ou desativa o espaço à medida que vivifica ou

    adormece as figuras a partir das escolhas topográficas. A dicotomia de luz e sombra

    realça as duas realidades omnipresentes no mundo subterrâneo da qual os mitos dãotestemunho –  o plano do visível e o plano do invisível.

    Como salienta Gombrich (1986: 93-94), se refletirmos sobre o poder que as “imagens

    no céu” ainda exercem sobre a imaginação do homem ocidental, certamente ficaremos

    menos relutantes em aceitar o papel da projeção nas origens da arte. A mais leve

    semelhança basta para ditar a identificação dessas imagens que todos os povos vêm no

    firmamento, a partir das estrelas e das constelações. O homem primitivo pode ter estado

    tão propenso quanto nós ainda estamos a projetar a sua visão e imaginação em qualquer

    extensão e complexidade dos estudos de campo, o autor Marc Groenen (2003) dedica todo o segundo capítulo à“distribuição dos sítios” fornecendo numerosos exemplos, em muitos casos, ilustrados e sistematizados em quadroscomparativos, assim como uma extensa bibliografia para cada uma das situações que descreve, das quais fazemosapenas uma breve síntese conclusiva, em função dos objetivos traçados.10 De acordo com a nossa ótica de hoje, o espaço subterrâneo, integrando as mais variadas disciplinas artísticas (dasclássicas belas artes à cenografia e ao cinema), é inteiramente “intertextual” (Julia Kristeva). O facto que não é deadmirar, uma vez que a fragmentação disciplinar é uma exigência modernista afastada da  poiesis  da vida. Aarquitetura subterrânea funciona como o “ventre da baleia” de Rebecca Horn, o “santuário ideal” (Groenen, 2003: 53)que vai receber todas as outras intervenções: o desenho e a pintura, que criam o palimpsesto dos grafismossobrepostos, cujo suporte é a escultura pré-existente ou recriada sobre as paredes e os tetos; a exigência de específicas

     posições do olhar pede a arte do fotógrafo, porém o percurso descreve o princípio da arte em processo, característicada instalação; a projeção de sombras em movimento leva-nos, para o mundo da cenografia, do teatro, do cinema, oumais especificamente, para os ambientes projetados da arte contemporânea.

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    forma que permitisse essa identificação, pelo que não nos parece de todo improvável

    que touros e cavalos tenham sido “descobertos” pelo homem, nesses misteriosos covis,

    antes de se tornarem visíveis através de terra colorida.

    Enfatizando ainda o aspeto cenográfico da iluminação rupestre, o arqueólogo e cineastaMarc Azéma (2012)11 coloca-nos, inclusivamente, perante a possibilidade dos nossos

    antepassados longínquos terem criado intencionalmente a ilusão do movimento com

    finalidades narrativas, lançando a hipótese da criação do cinema antes da escrita. As

    últimas investigações sugerem que os artistas pré-históricos utilizavam nas suas pinturas

    técnicas de animação das figuras, acompanhando-as, muito provavelmente, com sons

     produzidos por instrumentos feitos de osso, madeira e pele. O efeito ótico era

    conseguido através do recurso a sinédoques, mas também através da desconstrução domovimento, quer por sobreposição quer por justaposição de imagens sequenciais de

    uma determinada história. A prova mais inequívoca desta tese foi a descoberta, em

    2008, de discos de osso furados e atravessados por um fio, entre os quais, um estaria

    gravado com a mesma figura herbívora numa posição diferente em cada lado do disco,

    um objeto ótico (também denominado por “brinquedo ótico”), conhecido no século XIX

    como thaumatrope12.

    A iluminação artificial é, desde sempre, parte integrante do culto dos mortos, dos

    mistérios, das celebrações, das festas noturnas e das representações teatrais. Segundo

    Giulio Carlo Argan (2000: 1), a esta fase do paleolítico associa-se o culto dos mortos,

    que pressupõe, antes de mais, como salienta José Mattoso (2013: 19), a crença de que os

    mortos não sejam atingidos por um aniquilamento total, mas passem a outra forma de

    existência. Esta prática com origem nas sociedades dominadas pelo pensamento

    simbólico, estende-se às práticas funerárias cristãs que se perpetuam até aos nossos dias.

    De acordo com Régis Debray (1994: 21, 33), na sua origem, a imagem assumiu, devolta em volta, a função de mediadora entre os vivos e os mortos, o homem e os deuses,

    as comunidades e as cosmologias, o visível e o invisível. O nascimento da imagem

    11 Em conferência pública no auditório da Escola Superior Artística do Porto, no lançamento na FNAC do livro  La Préhistoire du Cinéma. Origines paléolithiques de la narration graphique et du cinématographe, Maio de 2012.12 O thaumatrope é um dos brinquedos óticos mecânicos reconhecidos como importantes antecedentes da fotografia edo cinema de animação. Construído a partir de um disco ou de um cartão com uma imagem diferente em cada um doslados e ligado a dois pedaços de corda, quando as cordas giram rapidamente, o cartão gira sobre o seu eixo e as duasimagens parecem juntar-se numa única imagem. O thaumatrope foi o primeiro instrumento a explorar a persistência

    das imagens na retina. Em 2012, foi registado um thaumatrope pré-histórico descoberto nas grutas de Lascaux emFrança. Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Thaumatrope;http://www.mhs.ox.ac.uk/exhibits/fancy-names-and-fun-toys/thaumatropes/

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     parece estar, efetivamente, envolvido com a morte, uma vez que a primeira escultura

    que se conhece é a própria múmia, destinada ao túmulo. Assim, às cavernas paleolíticas

    e ao culto dos mistérios sucedem-se os túmulos, os templos e as catedrais, que

    assumirão a mesma função cultual dos espaços subterrâneos.

    Segundo Sedlmayer (1985: 50), é a partir desta iluminação, produzida por velas,

    archotes e candeeiros a óleo, que até ao século XIX é mais ou menos movimentada, que

    se desenvolve uma arte que compõe as próprias obras, valendo-se das fontes

    luminescentes. Esta culminará no fogo-de-artifício das festas barrocas, o que durante

    um breve período de tempo, assume a importância de uma arte maior. É no Barroco que

    assistiremos à transformação não apenas das praças públicas e da arte em geral, em

    “palcos” de uma luminosidade exuberante, e paradoxalmente, à revolução estilística queinaugurará os dois estilos mais escuros e cenográficos da história da pintura  –  a pintura

    noturna e a pintura tenebrista de Caravaggio.

    * * *

    Figura 3 Entrada para túmulo egípcio. Figura 4 Palco de teatro barroco.

    Denominamos “cavernas da contemporaneidade”: o teatro, o cinema e as instalações ou

    ambientes projetados da arte contemporânea. Para Sedlmayer (1985: 50), a partir do

    Barroco, a “última caverna” é o espaço sem janelas do teatro, uma vez que a cena é para

    o encenador, o campo da arte de iluminação, por excelência. Seguindo o raciocínio do

    autor, o “espaço sem janelas” do cinema levar -nos-á a atravessar ainda mais

     profundamente, o limiar da escuridão para a luz. No cinema também entramos, no dizer

    de Edgar Morin, “nas trevas de uma gruta artificial” para, franquear o espaço e o tempo

    numa aventura errante (Morin, 1997: 21). Porém, as características individuadas no

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    dispositivo parietal, na última década, relacionam-se ainda mais intimamente com a arte

     projetada dos anos 1960-70, em virtude dos mecanismos de perceção que essa desperta.

    O aspeto cenográfico, tanto do dispositivo parietal como do espaço/ambiente projetado,

    é tão estrutural e decisivo para a aproximação dos dois espaços, que nos parecerelevante fazer, antes de mais, o levantamento etimológico da terminologia associada a

    esta luminosidade cenográfico-teatral. A palavra “teatro” deriva do grego theatron, que

    significa “lugar para olhar”. Curiosamente, o termo  hebraico para “luz”, mechezah, 

    significa, “lugar da visão” e simultaneamente, “janela”. Pelo contrário, a palavra “cena”

    deriva do grego  skena, que significa “tenda” ou “cabana” e pertence à mesma família

    etimológica de  skia, “sombra”, “abrigo”, “algo que protege do sol”. Assim, podemos

    dizer que a “cenografia” concebe (desenha/escreve) o lugar para onde se vai olhar; olugar onde os homens se refugiam na escuridão para aguardarem o momento da

    aparição da “luz” (or , do hebraico, “ser ou tornar -se luz”), pela qual, algo em nós se

    transforma e na qual, supostamente, nos transformaríamos.

    * * *

    A exposição “Into the Light: the projected image in American art”, no Whitney Museum

    em 2001, que tomamos aqui como referência, veio mostrar o papel crucial das

    imagens/instalações projetadas, onde a interatividade é chamada a desempenhar um

     papel, na criação da nova linguagem artística e na redefinição da própria arte.

    Seguindo o aprofundado estudo de Chrissie Iles (2001), a partir do momento em que os

    artistas começaram a utilizar diapositivos, vídeo e projeções holográficas para

    documentar, refletir e transformar os parâmetros do espaço físico, o espaço pictórico

    fundado na perspetiva linear, onde o ponto de fuga fixo ditava há quatrocentos anos a

     posição do espectador, começou a ser abalado. Na década de 1960, o espaço pictóricofoi fisicamente desmantelado pelo Minimalismo. Os artistas minimalistas, como Donald

    Judd, Dan Flavin, Carl Andre, Robert Smithson, Sol LeWitt, entre outros, envolveram o

    espectador numa experiência de relação espácio-temporal entre os objetos e a galeria,

    transformando o espaço tridimensional num campo percetivo.

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    “É muito importante observar que as dimensões geralmente grandes da obra e a escala

    arquitetónica permitem que o escultor domine o ambiente. Por vezes é a escultura que

    invade o espaço do espectador, outras é o espectador que é introduzido no espaço

    escultórico. Frequentemente, a escultura funciona de um modo ambíguo, isto é, gera uma

    deslocação espacial do espectador, com valores complexos. Como a maior parte dessas

    esculturas é feita para interiores, é precisamente na sua enorme dimensão, no seu assalto à

    escala íntima que está implicitamente contida uma crítica social. Os colecionadores e

    mesmo a maioria dos museus não possuem o espaço necessário para estas obras.” 

    McShine, Primary Strutures13 

    Torna-se claro em que medida a instalação, que o Minimalismo inaugura, é

    indissociável de um determinado espaço  –   que invade a obra ou é invadido por ela  –  

     podendo transformar-se consideravelmente em função do espaço em que é apresentada.

    Por esse motivo, a instalação é uma atividade que muitas vezes sai do estúdio ou da

    galeria para utilizar espaços alternativos, ativando o seu potencial ou significado

    reprimido. No coração da instalação está o “Espaço como Praxis” (Goldberg) –  o espaço

    em diálogo com as pessoas e as coisas.

    Assim, o cubo branco da galeria foi desmantelado pela escala dos objetos. Por sua vez,

    com a imagem projetada pós-minimalista, os artistas deslocam as coordenadas do novocampo de perceção –  o cubo branco da galeria  –  para a caixa negra do cinema, criando

    um híbrido no qual cada modelo passa a informar e a modificar as características do

    outro. Neste tipo de instalações, a fenomenologia do espaço, tal como é definido pela

    escultura minimalista, funde-se com o “inconsciente ótico” definido por Benjamin: 

    “Com o grande plano aumenta-se o espaço, com o ralenti o movimento adquire novas

    dimensões. […] Assim se torna compreensível que a natureza da linguagem da câmara

    seja diferente da do olho humano. Diferente, principalmente, porque em vez de umespaço preenchido conscientemente pelo homem, surge outro preenchido

    inconscientemente. […] a câmara intervém com os seus meios auxiliares, os seus

    “mergulhos” e subidas, as suas interrupções e isolamentos, os seus alongamentos e

    acelerações, as suas ampliações e reduções. A câmara leva-nos ao inconsciente óptico,

    tal como a psicanálise ao inconsciente das pulsões.” (Benjamin, 1992: 104-105).

    13 McShine, Kynaston,  Primary Structures: Younger American and British Sculptors, Jewish Museum: New York,1966. 

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     Na década de 1970, sob a influência de obras decisivas de Marcel Duchamp, (como La

     Mariée Mise à Nu par Ses Célibataires, Même, comumente conhecida por Grande

    Vidro  (1915-23) e  A Regarder (L’Autre Côte du Verre) d’Un Œil, De Prés, Pendant

     Presque une Heure, conhecido por   Pequeno Vidro  (1918)), onde as superfícies

    transparentes sugerem tanto a ideia de projeção como a da quarta dimensão do tempo,

    assim como pelas suas experiências óticas com múltiplas perspetivas, Robert Morris,

    Bruce Nauman e Dan Graham estão entre os primeiros artistas a interessarem-se pela

    fisiologia da perceção que servirá de base à arte projetada.

    As imagens/instalações projetadas questionam e redefinem tanto o espaço escuro do

    cinema como o cubo branco da galeria. Enquanto o cinema induz, graças à penumbra do

    ambiente e à quantidade de informação a percecionar, a um estado de hipnose, as projeções e os ecrãs de vídeo cobrem as paredes, os ângulos e os tetos das galerias,

    como autênticos  frescos de luz . Os ambientes projetados moldaram a nossa perceção,

    transformando radicalmente a forma como passamos a olhar e a pensar a arte

    contemporânea. Dan Flavin, James Turrel e Rebecca Horn estão entre os artistas mais

    relevantes desta arte no panorama atual da contemporaneidade.

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    ARGAN, Giulio Carlo [1970]  L’arte moderna. Dall’Illuminismo ai movimenti contemporanei.

    Firenze: Sanzoni Editore, 2000.

    AZÉMA, Marc, La Préhistoire du Cinéma. Origines paléolithiques de la narration graphique et

    du cinématographe. Conferência Pública, 29 de Maio de 2012, Auditório da Escola

    Superior Artística do Porto, 2012.

    BENJAMIN, Walter [1936-1939] “A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica”,

    Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Lisboa: Relógio d'Água, 1992.

    BOHME, Hartmut, “The Philosophical Light and the Light of Art”, in  Parket , no 38/1993, pp.

    16-21, 1993.

    DEBRAY, Régis [1992] Vida e morte da imagem. Uma história do olhar no Ocidente .

    Petrópolis: Vozes, 1994.

    GOMBRICH, Ernest H. [1950] A História da Arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1985.

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    12

    GROENEN, Marc, Sombra y luz en el arte paleolítico, Barcelona: Ariel Pré-história, 2003.

    HAUSER, Arnold [1951]  História Social da Arte e da Cultura, Volume 1: Os Tempos Pré-

     Históricos. Grécia e Roma. Lisboa: Veja, 1989.

    ILES, Chrissie,  Into the Light: the projected image in American art, 1964-1977 , New York:Whitney Museum of American Art, 2001.

    LEVIN, Kim, “The Eye of Ra”, in Ashbery, J. & Hiess, T. B. (eds.) [1969]  Light in Art , New

    York: Collier Books, pp. 23-36, 1971.

    McSHINE, Kynaston,  Primary Structures: Younger American and British Sculptors, Jewish

    Museum: New York, 1966.

    MATTOSO, José,  Poderes Invisíveis. O Imaginário Medieval , Lisboa: Círculo de Leitores,

    2013.MORIN, Edgar [1956] O Cinema ou o Homem Imaginário, Lisboa: Relógio d’Água: 1997.

    OLIVEIRA, Nicolas et al , Installation Art , London: Thames and Hudson, 1996.

    SEDLMAYR, Hans [1979]  La luce nelle sue manifestazioni artistiche, R., Palermo:

    Aesthetica/pre-print. Centro internazionale studi di estetica, 1985.

    TURREL, James (2004) “La Fisicidade de la Luz”, CIRCO. Boletín Técnico 2004. 117 , Madrid,

    Editado por: Luis M. Mansilla, Luis Rojo y Emilio Tunón.

    VIRILIO, Paul, Art as Far as the Eye can See, Oxford –  New York: Berg, 2005.

    CONFERÊNCIAS 

    AZÉMA, Marc, La Préhistoire du Cinéma. Origines paléolithiques de la narration graphique et

    du cinématographe. Conferência Pública, 29 de Maio de 2012, Auditório da Escola Superior

    Artística do Porto, 2012.

    SÍTIOS WEB

    http://en.wikipedia.org/wiki/Thaumatrope 

    http://www.mhs.ox.ac.uk/exhibits/fancy-names-and-fun-toys/thaumatropes 

    http://www.rebecca-horn.de/index.html 

    http://en.wikipedia.org/wiki/Thaumatropehttp://en.wikipedia.org/wiki/Thaumatropehttp://www.mhs.ox.ac.uk/exhibits/fancy-names-and-fun-toys/thaumatropeshttp://www.mhs.ox.ac.uk/exhibits/fancy-names-and-fun-toys/thaumatropeshttp://www.rebecca-horn.de/index.htmlhttp://www.rebecca-horn.de/index.htmlhttp://www.rebecca-horn.de/index.htmlhttp://www.mhs.ox.ac.uk/exhibits/fancy-names-and-fun-toys/thaumatropeshttp://en.wikipedia.org/wiki/Thaumatrope