O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

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O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS ANO 2002 MARCOS PEREIRA MAGALHÃES PESQUISADOR DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI

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O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

ANO 2002

MARCOS PEREIRA MAGALHÃES

PESQUISADOR DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI

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ÍNDICE

BEM-VINDO À AVENTURA ARQUEOLÓGICA.......................................3

O ACHAMENTO DO HOMEM DE CARAJÁS..........................................11

O HOMEM DE CARAJÁS NA AMAZÔNIA..............................................24

A CHEGADA DO HOMEM ........................................................................36

FALANDO SÉRIO........................................................................................36

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................41

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BEM-VINDO À AVENTURA ARQUEOLÓGICA

A arqueologia é uma ciência surpreendente. Senão vejamos: sua finalidade é a

produção de conhecimento através do estudo de objetos, cujas referências encontram-se

quase sempre no passado (a palavra arqueologia vem do grego antigo – archeologia – e

quer dizer: archeo = antigo; logia = estudo; isto é, estudo do antigo.). Por outro lado, esses

mesmos objetos têm por origem a cultura produzida pelas sociedades humanas. Ou seja, a

metafísica da arqueologia é extremamente subjetiva já que lida com conceitos de tempo, no

entanto seus objetos, especialmente aqueles provenientes da cultura material, são bastante

concretos. É dessa dialética entre a leitura subjetiva do tempo e a leitura objetiva da

produção cultural do homem, que é gerado o conhecimento arqueológico.

Mas esta não é a única peculiaridade da arqueologia. Ela também surpreende pela

capacidade de despertar a imaginação de leigos e curiosos. Quem nunca imaginou o

passado? Quem nunca questionou suas origens? Pois bem, tanto esta curiosidade quanto

estas questões são tão antigas quanto o próprio homem. É a velha pergunta: de onde

viemos, quem somos, para onde iremos? Isto dá margem a diferentes abordagens, sejam

elas religiosas, científicas ou mesmo especulativas. Por isso, pessoas leigas gostam de

opinar sobre nossas origens e acabam por desenvolver pseudo-ciências, como por exemplo

aquelas que defendem as origens extraterrestres das altas culturas pré-históricas, ou a

origem fenícia de algumas civilizações americanas. Porém, o único ponto em comum entre

a pesquisa leiga e as pesquisa controlada e sistemática dos arqueólogos é a vida de

aventuras, riscos e descobertas.

A literatura e especialmente o cinema sabem muito bem tirar proveito deste último

aspecto da arqueologia. Filmes como “A Múmia” e “Indiana Jones”, por exemplo, sem

manter qualquer compromisso com a realidade, são cheios de aventuras, que cativam e

divertem o público. Na verdade, a aventura faz parte da vida do arqueólogo de campo e a

poesia da arqueologia só pode ser construída por quem arrisca. Podemos afirmar que

nenhuma descoberta é livre de riscos, pelo menos, de se cometerem enganos. Pode parecer

pouco, mas um erro científico pode ser fatal: não morre o autor, mas sua credibilidade

pode ser duramente atingida.

Mas o que se entende por arqueologia científica? Antes de mais nada vamos

esclarecer o seguinte: a História do Brasil não começa com a conquista das Américas pelos

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europeus. Nem mesmo com o início da colonização portuguesa. Muito antes disto (na

verdade milhares de anos antes) o Brasil já existia, mas enquanto um imenso território sem

fronteiras políticas definidas, colonizado por centenas de povos com línguas, etnias e

costumes diferentes. Esses povos, de mesma origem genética, mais precisamente,

mongolóides provenientes do nordeste asiático, chegaram aqui há mais de 10.000 anos.

Dizem até que nem mesmo eles teriam sido os primeiros. Há quem defenda que os

primeiros habitantes do que hoje conhecemos como Brasil, foram povos pleistocênicos,

provenientes do sudeste da Ásia, mas de origem negróide. Com isso, é até possível que a

história do Brasil tenha começado bem antes da formação do mundo Ocidental e tenha se

consolidado quando os povos mongolóides holocênicos, finalmente substituem os

primeiros habitantes negróides ao se adaptarem com sucesso às nossas florestas úmidas.

Ficamos sabendo disto tudo porque a metafísica da arqueologia tem a capacidade

de perscrutar as entranhas mais profundas do tempo histórico. Graças à Arqueologia

tomamos conhecimento que todos os continentes americanos, além de terem sido

colonizados há muitos milhares de anos atrás, foram ocupados por grandes e importantes

civilizações. Civilizações que desenvolveram culturas importantíssimas para a nossa

evolução social e que, inclusive, no Brasil, prosperaram e alcançaram uma grande

população, cujo legado, muitas vezes ignorado, se manifesta na nossa própria identidade

nacional.

Ora, o estudo da Arqueologia, assim como o da História, tem como pano de fundo a

sucessão temporal. Mas enquanto a História estuda acontecimentos que contam com

documentos escritos (e hoje gravados, filmados, digitalizados e etc.), os objetos de

pesquisa da arqueologia não necessitam desses tipos de documentos para serem estudados.

Por conta disto, diz-se que a História do Brasil começa com a chegada dos portugueses em

1500, porque só a partir de então são produzidos documentos escritos que relatam os

acontecimentos históricos a nós relacionados. Daí, tudo que aconteceu aqui antes de 1500

chamamos de Pré-história. A Pré-História Brasileira, por sua vez, teve início quando o

homem chega aqui, isto talvez, uns 50.000 anos atrás, como indicam datações provenientes

de sítios localizados em São Raimundo Nonato, no Piauí. Aliás, aqui como em qualquer

outro lugar do planeta, a Pré-História começa quando o Homo sapiens sapiens aparece,

fato que só acontece 60 milhões de anos depois da extinção dos dinossauros e há apenas

100.000 anos atrás.

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Toda sucessão temporal histórica, por sua vez, tem uma duração. Por outro lado,

toda duração tem início, meio e fim. Daí, mesmo podendo ser divididos até o infinito, os

instantes que compõem uma duração podem ter um início e um fim identificável, que

caracterizará, objetivamente, a duração de um evento e ou a de um acontecimento

histórico. Além disto, um acontecimento pode ter uma duração tão longa, que embora

aconteça em um passado remoto, o seu fim não pode ser identificado no presente, já que

pode se prolongar até um futuro imprevisível.

É a duração, portanto, que vai dar à Arqueologia a sua finalidade objetiva. Com a

possibilidade de identificar e compreender um acontecimento de longa duração, a

Arqueologia pode produzir conhecimento capaz de transformar a realidade. A finalidade da

Arqueologia, conseqüentemente, como a de toda ciência enfim, é a de produzir

conhecimento capaz de transformar uma dada realidade.

A prática da pesquisa arqueológica se dá, fundamentalmente, naquilo que

chamamos de sítio arqueológico. Sítio arqueológico é uma unidade de espaço contendo

objetos, estruturas ou interferências culturais produzidas ou construídas propositalmente, e

que podem ser devidamente investigados. É dos sítios arqueológicos que todas as

informações produzidas no passado são recuperadas e depois estudadas e compreendidas.

Por isto ele deve possuir um mínimo de objeto intacto para que possa ser estudado. Um

sítio destruído não fornece informação de qualidade.

Voltando à Carajás. As pesquisas arqueológicas efetuadas lá incluíram todos os

ingredientes que geralmente cativam o público leigo: aventuras, riscos e descobertas. As

aventuras, geralmente relacionadas a contratempos imprevisíveis, não podem ser

consideradas agradáveis por nós que as vivenciamos. Porém, os riscos fizeram parte de

nossa decisão de descobrir aquilo que, conforme pensávamos, poderia mudar o rumo das

pesquisas arqueológicas na Amazônia. O nosso objetivo foi alcançado com sucesso.

Arriscado foi, mas valeu a pena. Assim, além de termos colocado Carajás no mapa da

arqueologia sul- americana, através das descobertas efetuadas, reconstruímos o

entendimento que se possuía até então sobre a pré-história da Amazônia.

Isto foi possível porque durante muito tempo os pesquisadores da Amazônia só

estudavam a presença de sociedades com evidências de organização tribal, com agricultura

e aparato tecnológico voltado para o processamento de produtos cultivados e para rituais

funerários. Na verdade, tomavam como base as sociedades étnicas históricas, compostas

por diferentes culturas que ocupavam (e ainda ocupam) grandes extensões de terra (as

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chamadas reservas indígenas) da Região Norte. Por outro lado, esses mesmos estudos

mostraram que as sociedades pré-históricas, das quais os índios atuais tiveram origem, por

sua vez, gozaram de maior riqueza cultural, população e melhor organização sociopolítica

que seus descendentes.

A principal cultura material estudada pelos arqueólogos, relacionada a essas

sociedades, geralmente é representada por fragmentos de cerâmica, que desde a década de

40 do século passado conta com métodos e técnicas de estudos especialmente

desenvolvidos para ela. Assim, as primeiras pesquisas sistemáticas voltadas para o estudo

das sociedades pré-históricas da Amazônia tiveram como referência apenas as sociedades

que produziram objetos de cerâmica para uso cerimonial ou cotidiano. Os demais vestígios

eram considerados secundários e os sítios não ceramistas, isto é, resultado de outras formas

de organização socioeconômica, eram tidos como inexistentes ou de difícil comprovação.

Até a década de 1980, a maioria dos arqueólogos acreditava que a Amazônia

sempre fora inóspita ao homem, impedindo que ele desenvolvesse cultura própria e

sociedade original na floresta tropical. Ou seja, a natureza da Amazônia teria exercido

severas restrições ambientais sobre grupos humanos sem agricultura. Por isso, povos que

viviam da caça, da coleta e da pesca, não teriam tido grandes perspectivas, porque os

recursos naturais seriam dispersos e de baixo teor nutricional, dificultando assim, qualquer

sucesso na domesticação local de plantas que pudessem ser extensamente cultivadas.

Este insucesso poderia ser explicado pela falta de um crescimento populacional que

tivesse levado à necessidade de domínio da natureza para produzir excedentes agrícolas.

Sem população significativa, já que os parcos recursos existentes só sustentariam grupos

reduzidos, o máximo alcançado teria sido uma espécie de horticultura itinerante, quando

cultivaram, em pequena escala, raízes e tubérculos comestíveis.

Mesmo assim alguns arqueólogos ainda tinham dúvida sobre as origens desses

horticultores. Para alguns eles eram o resultado da decadência de sociedades agrícolas mais

avançadas e provenientes de outras regiões, que não teriam conseguido adaptar-se à

Amazônia. Para outros, os horticultores poderiam representar o resultado limitado da

evolução de populações nativas, condicionadas pela baixa pressão populacional.

Conseqüentemente, as populações nativas pré-agriculturas, representadas

basicamente por pequenos e dispersos grupos de caçadores-coletores, cujos vestígios são

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de difícil localização, eram superficialmente considerados quando se elaboravam sínteses

sobre a ocupação pré-histórica da Amazônia. Inclusive, a exclusão desses pequenos grupos

era considerada normal no processo histórico que deu origem às culturas Amazônicas, de

antes da conquista européia.

Porém, a partir dessa mesma década de 80, a teoria que explicava a origem das

sociedades indígenas agricultoras na Amazônia, entrou em contradição com novas

evidências científicas. Segundo a teoria até então mais aceita, formulada pela arqueóloga

norte- americana Betty Meggers, as sociedades indígenas da Amazônia teriam tido origem

em sociedades que por sua vez seriam herdeiras de culturas desenvolvidas em regiões

periféricas à floresta tropical, como as regiões dos Andes e do Caribe. Acontece que

inúmeras evidências mostraram que, tanto no que se refere aos traços estilísticos, quanto à

sua tecnologia, a produção da cerâmica na Amazônia não só era própria, como inclusive

mantinha ascendência cronológica sobre todas as outras da América do Sul. Pelo menos

esta foi a conclusão que Anna Roosevelt, uma famosa arqueóloga norte-americana chegou.

Ora, esta idéia alterou completamente o entendimento sobre a ocupação humana da

Amazônia, abrindo um novo campo de possibilidades. Afinal, se realmente o homem não

só adaptou-se à floresta tropical, como também foi capaz de gerar aparatos materiais que

acabaram sendo exportados para além de suas fronteiras naturais, como ele se adaptou e

quais aspectos socioculturais precederam as conquistas mais tardes alcançadas? Enfim,

como e quando o homem chegou e evoluiu culturalmente na Amazônia?

Pois bem, as primeiras respostas para essas questões começaram a ser formuladas

justamente em Carajás, a partir da segunda metade da década de 1980. Havia inúmeras

razões para acreditarmos no potencial pré-histórico de Carajás, especialmente na

possibilidade de encontrarmos vestígios de antigas sociedades de caçadores-coletores, bem

mais antigas que as sociedades ceramistas conhecidas. Primeiro, que em áreas periféricas

da Amazônia, alguns arqueólogos haviam encontrado vestígios de sociedades formadas por

caçadores-coletores com mais de 7.000 anos de existência. Segundo, que a paisagem de

Carajás, com suas numerosas grutas, deveria favorecer a preservação de sítios

arqueológicos bastante antigos.

Assim, além de realizarmos todo o levantamento arqueológico nas margens dos

principais rios da região, apostamos todas as nossas fichas no potencial das grutas

localizadas nas bordas dos platôs de Carajás. Foi assim que localizamos, identificamos e

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pesquisamos mais de 12 sítios em gruta, todos de caçadores-coletores e alguns com mais

de 8.000 anos de idade.

Com a confirmação e divulgação de tais descobertas, a data de presença do homem

na Amazônia foi recuando cada vez mais, atingindo o final do período Pleistocênico e o

início do período Holocênico, o que já era reconhecido em outras áreas do Brasil e da

América do Sul. Isto obrigou a revisão das antigas teorias, principalmente nos pontos em

que discordavam da possibilidade da adaptação do homem antigo às peculiaridades

ambientais da Amazônia.

Mas para reforçar ainda mais a necessidade de uma revisão nas teorias em voga,

estudos paralelos relacionados à evolução da paisagem amazônica, mostraram que boa

parte daquilo que se acreditava ser paisagem natural, na verdade era o resultado da milenar

interferência humana sobre os diferentes ecossistemas regionais. Chegou-se a esta

conclusão porque, se por um lado, estudos diversos demonstram que o Pleistoceno

Superior, caracterizado pelo último estágio glacial, trouxe sensíveis modificações no

quadro paisagístico da Amazônia, invertendo formas tradicionais de paisagens, refletida

notadamente no quadro vegetal e na biomassa animal, criando condições para o

delineamento do quadro atual; por outro, o homem chega na região junto com essas

transformações e desenvolve suas práticas culturais juntamente com a consolidação da

paisagem regional. Assim, desde 10.000 anos atrás a Amazônia já teria sido conquistada

por grupos humanos organizados em sociedades de caçador-coletores que exploravam seus

diferentes nichos e, em especial os de floresta, interferindo nela quanto mais o clima se

estabilizava, a conheciam e dependiam de seus recursos.

Mas estes primeiros conquistadores teriam chegado à Amazônia através das áreas

abertas, representadas especialmente pelos cerrados que cobriam seus baixos chapadões,

ainda no final do Pleistoceno, que na Amazônia significou um clima mais seco e menos

quente. Com o aumento da umidade e do calor, as florestas retomam parte do espaço

ocupado por cerrados e outros ecossistemas. Isto representou, por exemplo, o

confinamento dos cerrados nas áreas onde o solo era mais pobre em nutrientes. Por isto, as

paisagens amazônicas onde hoje encontramos o sistema de cerrado ou elementos típicos do

mesmo, indicam que elas, além de originais, não teriam sofrido modificações significativas

em suas características fundamentais, nem mesmo durante as oscilações climáticas

registradas entre o final do Pleistoceno e início do Holoceno. Deste modo, seria justamente

nessas paisagens que encontraríamos os sítios arqueológicos mais antigos da Amazônia,

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visto elas terem sido a referência e o caminho natural dos seus primeiros habitantes. E não

por coincidência, as datações mais antigas para a presença humana na Amazônia são

justamente provenientes de áreas onde existem elementos de cerrado, incluído aí as

datações dos sítios em grutas de Carajás, localizados nas bordas dos platôs cobertos por

uma vegetação de canga, onde sobressaem espécimes de cerrado e de caatinga.

Paralelamente aos corredores pleistocênicos de cerrado dos baixos chapadões

amazônicos, a floresta também já estava instalada nas áreas de maior umidade, como nas

margens dos rios e nas áreas de solo mais rico. Assim, essas florestas também constituíam

paisagens originais que, com o advento das condições favoráveis do Holoceno, se

expandiram sobre outras formações, inclusive aquelas onde até então predominavam

coberturas típicas de cerrado. Em síntese pode-se dizer que todo lugar onde há cerrado,

sempre houve cerrado, mas nem todo lugar onde há floresta, sempre houve floresta

(Barbosa, 2002). Com o confinamento das paisagens de cerrado, cercadas por florestas por

todos os lados, tal como ocorre em Carajás, o homem foi forçado a sair do isolamento

penetrando e explorando a floresta. Deste modo, foram aqueles que obtiveram sucesso

neste empreendimento, que forjaram as características fundamentais das futuras culturas

amazônicas.

Sem dúvida, pesquisas recentes têm demonstrado que muitos dos aparatos

tecnológicos sociais e culturais típicos das sociedades complexas amazônicas também são

encontrados em sociedades sem estrutura tribal. Conseqüentemente, tem-se concluído que

a evolução sociocultural dos povos Amazônicos, além de ser o resultado de experiências

ordinárias do homem junto aos ecossistemas locais e com processos históricos próprios, foi

organizada durante um período de longa duração.

A importância arqueológica de Carajás é que ali, como em nenhum outro lugar, é

possível obter-se a confirmação científica para boa parte das novas teorias em elaboração.

Aliás, diga-se de passagem, as descobertas feitas em Carajás antecederam à formulação

dessas novas teorias. Elas vieram a reboque das evidências ali encontradas e inclusive

inspiraram outros pesquisadores a trabalharem outras áreas da Amazônia, atrás de vestígios

milenares de populações mais antigas de caçadores-coletores.

Infelizmente, passado o entusiasmo inicial, a arqueologia da Amazônia começa o

Século XXI retornando aos seus velhos hábitos: o estudo de sítios ceramistas. No entanto é

verdade que agora as pesquisas apresentam novas abordagens para antigos problemas. Até

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aí tudo bem, porém é de lamentar que os grupos de caçadores-coletores, que

desenvolveram as sociedades sobre as quais todas as demais se basearam, continuem em

segundo plano no interesse de especialistas e do público em geral.

A explicação para isto não é nada científica, na verdade é até prosaica. Acontece

que os sítios ceramistas da Amazônia são aqueles que apresentam as coleções mais belas

no Brasil. Existem urnas funerárias de diversos formatos e motivos decorativos, como as

de Maracá (AP) e Marajó (PA); vários objetos como estatuetas e tangas que, além disso,

alcançam altos valores no mercado ilegal de peças arqueológicas. Enquanto isto a herança

deixada pelos caçador-coletores não passa de simples lascas de quartzo, sem qualquer

apelo visual ou mesmo museológico. A concorrência, portanto, é desleal.

Bem, não é que eu esteja “puxando a brasa para minha sardinha”, mas justamente

por ser a menos conhecida e apresentar um potencial de respostas capaz de reformular tudo

quanto compreendemos sobre a evolução sociocultural do homem na Amazônia, que a

herança deixada pelos caçadores-coletores é de fundamental importância para o

desenvolvimento do conhecimento da arqueologia regional.

É por causa de mais este fato que a importância arqueológica de Carajás aumenta,

na medida em que é uma das poucas áreas de ocorrência de restos milenares deixados por

caçadores-coletores, com pesquisas em curso (apesar de que, quando escrevia estas linhas,

estarem temporariamente paralisadas à espera de recursos financeiros).

Juntando as duas vertentes de estudos, esta voltada para as sociedades ceramistas

com aquela voltada para as sociedades de caçadores-coletores, podemos formular uma

teoria unificada que mostra como uma produziu a outra, apesar de serem completamente

diferentes.

De fato, as experiências de longa duração das populações humanas com os diversos

ecossistemas amazônicos resultaram na evolução de dois períodos históricos diferentes: (i)

aquele relacionado à ocupação da região Amazônica por caçadores-coletores, com sistemas

socioculturais relacionados à exploração experimental dos recursos naturais, e (ii) aquele

relacionado às sociedades agricultoras, com sistemas socioculturais relacionados à

exploração controlada dos recursos naturais.

Os estudos arqueológicos realizados em Carajás foram de fundamental importância

para chegarmos à montagem deste quadro teórico. Realmente, a presença de vestígios de

antigos caçadores-coletores tem contribuído para o esclarecimento da nova hipótese que

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se apresenta. Em Carajás, cuja presença humana mais antiga data de 9.000 anos A.P.,

observamos o desenvolvimento de sociedades de caçadores-coletores que passavam parte

de suas vidas em grutas no alto dos platôs e o de sociedades agricultoras, cujo cotidiano

desenvolvia-se nos vales dos principais rios da região.

Enquanto o estudo das primeiras sociedades tem revelado características antes

somente atribuídas à organizações tribais, como a presença de cerâmica e de práticas

agricultoras, o estudo das segundas, revela uma continuidade de hábitos e costumes que

demandou bastante tempo para ser consolidado e cognitivamente organizado.

O ACHAMENTO DO HOMEM DE CARAJÁS

A história antiga da região de Carajás começou a ser conhecida a partir da década

de 1960, quando Napoleão Figueiredo (1965), antropólogo do Museu Paraense Emílio

Goeldi, analisou uma coleção cerâmica coletada por Protásio Frikel (1963) em antigas

aldeias Xikrin, nas margens do rio Itacaiúnas. Diagnosticada como uma antiga cultura

indígena, distinta da Kaiapó-Xikrin, que tem ocupado a área em tempos históricos, a

coleção apresentava traços da cerâmica Tupiguarani. Por isso ela foi relacionada à

Tradição Tupiguarani, sendo denominada de Fase Itacaiúnas por um dos primeiros

arqueólogos do Museu Goeldi, Mário Simões, em 1972. Mas foi somente a partir de 1983

que o Itacaiúnas e o seu afluente Parauapebas, tornaram-se de fato arqueologicamente

conhecidos.

Pesquisas realizadas por Simões e seu assistente Daniel Lopes (1985) identificaram

em suas margens sítios de antigas aldeias com o mesmo tipo de cultura material encontrado

no Itacaiúnas, ampliando então o território de ocorrência cultural da denominada Fase

Itacaiúnas. Assim, embora o rio Parauapebas e mesmo o Itacaiúnas não tenham sido

completamente prospectados, concluiu-se que toda a região banhada por suas águas e seus

tributários teria sido habitada ou potencialmente influenciada por povos que

desenvolveram a cultura que definiu a fase arqueológica denominada Itacaiúnas, filiada à

Tradição Tupiguarani.

A Fase Itacaiúnas representa um padrão arqueológico caracterizado por sociedades

agrícolas com alto grau de conhecimento sobre o ambiente explorado, com o domínio da

tecnologia de produção de cerâmica e processamento de alimentos (produção de farinha e

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outros produtos extraídos de diversos tubérculos e outras plantas). A sociedade se reunia

em conjuntos de aldeias muito bem organizadas e possuía complexas regras de

comportamento cultural e religioso. A idade alcançada pela fase Itacaiúnas é de nossa era e

atinge aproximadamente 1300 anos (280 +/- 80 DC.).

Como ficamos sabendo de tudo isto? Antes de mais nada foi graças ao convênio

firmado em 1983, entre o MPEG (Museu Paraense Emílio Goeldi)/CNPq (Conselho

Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e a CVRD (Companhia Vale do

Rio Doce), visando o estudo de impacto ambiental durante a implantação do projeto de

exploração do minério de ferro em Carajás.

A Área de Arqueologia do MPEG liderada por Mário Simões, ao desenvolver o seu

“Sub-Projeto de Salvamento Arqueológico”, previu a possibilidade de finalmente investir-

se no estudo sistemático de vestígios de caçadores-coletores na Amazônia.

Conseqüentemente, após diversos contratempos, atrasos, negociações e “ralação” em

campo e em laboratório, começamos (eu fazia parte da equipe como bolsista do Projeto) a

compreender a pré-história de Carajás

As pesquisas feitas nas margens dos rios Parauapebas e Itacaiúnas resultaram na

identificação e estudo de 52 sítios cerâmicos, espalhados não apenas nestes rios mas

também em seus principais afluentes. Com a constatação da presença de cavernas na Serra

Norte em Carajás, a partir de 1985 efetivaram-se prospecções em duas grutas encontradas

nos platôs N1 e N4.

A esperança de se descobrirem vestígios de caçadores-coletores era grande,

principalmente por conta dos antigos projéteis achados fora de contexto, alguns anos antes,

no vale do médio e baixo rio Tapajós e na ilha de Cotijuba (PA) (Simões 1981/82). E

também pelos níveis pré-cerâmicos encontrados pelo arqueólogo gaúcho Mentz Ribeiro em

1985 no sítio da Pedra Pintada, em Roraima.

Por outro lado já corriam notícias, não oficiais, de que outro gaúcho chamado

Miller, encontrara na Chapada dos Perecís, norte do Mato Grosso, outras evidências pré-

ceramistas. Assim, em 1986 Lopes, que acabara de assumir a coordenação das pesquisas e

equipe iniciaram a exploração da borda do platô N1 e descobriram aquela que seria o

marco da nova potencialidade arqueológica da Amazônia: a Gruta do Gavião.

Claro, nada disto foi conseguido livre de riscos. Em primeiro lugar tivemos

problemas com os equipamentos fornecidos. Por algum motivo não esclarecido, o motor da

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lancha voadeira cedida pelo empreendedor e financiador das pesquisas, geralmente

recusava-se a funcionar. Houve ocasião de ficarmos mais de dez dias parados, curtindo a

“Casa de Pedra”, que era o nosso alojamento oficial no acampamento do platô N1. Ela até

que era uma casa agradável, apesar de, vez ou outra prescindir de água para tomarmos

banho. A casa era de pedra, muito feia e úmida. Havia uma casa melhor, a tal de “Casa de

Hóspedes”, com uma paisagem fantástica, mas esta era reservada para os privilegiados

senhores de negócio, autoridades e engenheiros do alto escalão da CVRD. A casa ficava

isolada no alto de um morro, mas no núcleo principal, além de refeitório, havia até um

cinema. O problema é que era um cinema “só para homens”, ou seja, só passava filme

pornô.

Nós pesquisadores éramos facilmente confundidos com peões. Sabe-se lá por que, o

empreendedor achava que deveríamos compartilhar o alojamento dos operários. Logo na

nossa primeira excursão o anfitrião alojou os homens e a mulher da equipe em barracões

coletivos. Só escapou o “Dr”. Simões, que foi alojado num “apartamento”. Bem, se nós

houvéssemos sido presos, por termos curso superior, teríamos sido melhor tratados. Mas,

após a intervenção do chefe da equipe, o Dr. Simões, esclareceu-se tudo e finalmente

ganhamos um alojamento adequado.

Bem, voltando à voadeira. Ela servia a várias equipes, mas nós dependíamos dela

porque estávamos fazendo pesquisas nas margens dos rios, cujo acesso só era possível por

via fluvial. Por isso entrávamos em conflito com a administração, já que às vezes, a

“voadeira” era reservada para mais de uma equipe no mesmo dia. Mas a pior performance

da voadeira foi quando o motor enguiçou quatro horas de viagem rio abaixo. E nem

tínhamos remo. Isto ocorreu por volta das 16h, quando, após localizar e identificar um sítio

na margem esquerda do Parauapebas, nos preparávamos para voltar à base. Éramos seis

pessoas, uma mulher, (a Vera Guapindáia, que ficou encolhida no fundo do barco o tempo

todo) e cinco homens. O chefe da equipe era o Daniel Lopes. Todas as tentativas para

consertar o motor foram em vão, não houve jeito, tivemos que fabricar remos. Isto levou

aproximadamente uma hora. Começamos a remar rio acima por volta das cinco horas da

tarde.

A nossa colega foi a única que não remou, para piorar ela tinha pavor de cobras e

por molecagem do destino, toda vez que ela levantava a cabeça aparecia uma, fosse

atravessando o rio, na margem dele ou, pasmem, no ar, voando nas garras de um gavião. A

noite chegou e não tínhamos lanterna. Ora entrávamos mato adentro, ora tínhamos que

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levantar o barco (com a Vera dentro dele) para atravessar uma cachoeira, sem enxergar um

palmo adiante. Residências por perto, nem pensar. E as piranhas? E as arraias? E o jacaré,

que de tão grande eu achava tratar-se do tronco de uma gigantesca árvore caída na margem

do rio. Mas árvores caídas não mudam de lugar. Era um jacaré mesmo, muito velho e

muito grande. Mesmo assim passamos por cobras, piranhas, arraias e jacarés sem qualquer

incidente. Por volta das 21h a agradável surpresa: a lua cheia despontou no horizonte

iluminando o leito do rio. Daí em diante a viagem foi simplesmente linda. Nem por isso

menos cansativa.

Por questões práticas, não carregávamos almoço quando íamos para o campo.

Apenas água e um lanche. Portanto, almoço e jantar eram para nós uma única refeição.

Pois bem, a água acabou não lembro a hora, mas beber água do rio jamais, devido à

possível contaminação por mercúrio despejado pelos garimpeiros. Sede, fome, essas eram

as nossas sensações. Ah! E dor, muita dor na palma da mão, já em carne viva de tanto

remar, quando, por volta das seis horas da manhã finalmente chegamos ao local onde o

motorista nos esperava com a Kombi. Mais quarenta minutos e chegamos ao hotel, no N5

(nesta etapa o alojamento do N1 já estava lotado por outras equipes do Museu Goeldi)).

Quarto, cadê o quarto? Surpresa! O gerente, preocupado em dar os melhores quartos para

os engenheiros da Vale, nos desalojou, deixando-nos perplexos. Sabem como são os

valentes? Parti para cima do sujeito, mas fui contido e impedido de cometer um desatino.

Fim do episódio, mas não dos problemas.

A nossa relação com os ribeirinhos era muito amistosa. Mas também aconteciam

coisas bizarras. Certa vez investigávamos a margem esquerda do rio Parauapebas, num

trecho pertencente à Fazenda Marimbondo, cujo proprietário era o Sr. Pedro Miranda (nada

a ver com a Avenida Pedro Miranda, em Belém). Além de não termos sidos recebidos com

muita simpatia, o “seu” Miranda, muito crítico, disse que “o progresso não era feito com

mato e nem com onça. Que esses ecologistas defendem os animais, mas não dispensam

uma picanha”. Bem, eu sou vegetariano... Pois é, mas o progresso do “seu” Miranda usava

técnicas muito primitivas. Para começar, ele ampliava a pastagem incendiando a mata,

deixando em pé, mas completamente queimadas, apenas as castanheiras. Contudo, como se

sabe essa técnica é uma herança indígena, que tem o nome original de coivara. A coivara é

a derrubada e queima de um trecho da mata para a plantação. Essa técnica tem origem

arqueológica e nos sítios que escavamos encontramos algumas evidências do uso dela na

região (carvão esparso na área do sítio, ferramentas relacionadas ao cultivo e utensílios

Page 15: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

15

para processamento). A coivara dos indígenas nunca era extensa e geralmente a área

queimada era cercada de mata ou margeada pelo rio. Logo, a escala de destruição era

insignificante em relação à escala das queimadas para ampliação de pastagens, cujos

limites são definidos pelo grau de ganância do proprietário das terras. A história do sul do

Pará foi construída à mercúrio, ferro, gado e fogo.

Outros hábitos dos ribeirinhos também surpreendiam. Em certo trecho do rio

Itacaiúnas, por 30 dias consecutivos assistimos a construção de uma casa feita de sopapo

(barro sobre pau-a-pique) por um caboclo. Nos últimos dias de nossa etapa de campo a

casa ficou pronta. Notamos, porém, que ela continuava vazia. Coincidentemente, no último

dia de campo encontramos com a família dona da casa em outro local bastante afastado,

mas com várias residências. Perguntamos ao caboclo quando ele mudaria.

Surpreendentemente ele nos disse que a casa foi abandonada porque ficava muito longe e

isolada. O problema é que a casa fora construída em terras sem dono e a família

permaneceu em terras de uma fazenda. Ou seja, eles não tinham noção de propriedade.

Fato interessante, já que em nossas pesquisas observamos que as populações arqueológicas

da região migravam constantemente, abandonando antigas áreas de ocupação por outras

novas. As áreas abandonadas, por sua vez, às vezes eram ocupadas por outras populações,

com culturas semelhantes, mas diferenciadas.

Isto nos levou a concluir que esses povos pré-históricos não detinham a noção de

propriedade e nem noção de fronteira, tal como as compreendemos hoje. Esta conclusão

nos levou a conjecturar sobre os possíveis modos de organização política das antigas

sociedades amazônicas, as quais não teriam nem poderosos sistemas centrais de

organização e nem sistemas de defesa de fronteira. Por outro lado a geopolítica deles

apresentava uma organização que permitiu não só ocupação, por diferentes etnias, de

grandes extensões territoriais com diversos ecossistemas, como também a convivência

entre elas, além de relações comerciais e inter-influências que deixaram todas com a

mesma noção comum geral de cultura.

Outro episódio marcou a nossa experiência em Carajás. Certo dia, quando

voltávamos para a base fomos surpreendidos por uma revoltada turba de garimpeiros

provenientes do garimpo (paralisado) de Serra Pelada. Eles haviam ateado fogo em tudo

que estava pelo caminho. A Cia. Vale do Rio Doce tinha construído próximo à entrada de

acesso ao alto da Serra de Carajás uma delegacia, uma escola e até um hospital. Era um

pequeno núcleo urbano externo às terras exploradas pela CVRD, o qual então ardia em

Page 16: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

16

chamas. O nosso carro foi perseguido e parado pelo grupo de “sem ouro”. Felizmente,

antes que eles incendiassem o carro com a gente dentro dele, os convencemos que não

éramos da Vale e sim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Perdoados, porém, fomos

impedidos de subir a serra.

A solução foi tentar subir de carro pelo leito da ferrovia que ainda não estava com

os trilhos assentados. Para tanto esperamos a noite cair, na esperança de ver os ânimos

serenarem. Entretanto, não tínhamos rodado nem trezentos metros de estrada quando

percebemos que esta estava bloqueada por uma enorme cratera escavada pelo pessoal da

Vale, justamente para impedir que a turba revoltada utilizasse a mesma via de subida.

O jeito foi abandonar o carro e seguir à pé. Eram aproximadamente duas horas da

madrugada quando chegamos na chamada pêra ferroviária, lá em cima. Perigo: escondidos

pela escuridão a guarda armada da CVRD pensou que éramos garimpeiros invasores e nos

recebeu com uma saraivada de tiros. Mas a mulher de nossa equipe, a Maura Imázio da

Silveira, aos gritos acabou convencendo a guarda que não éramos inimigos.

É claro que diante de tanto sufoco certos fins de semana eram brindados com um

passeio noturno até a vila de Parauapebas. Mas tinha que ter muita vontade para ir lá. Para

começar, quando ainda ficávamos na Casa de Pedra, do platô N1 até a vila gastavam-se

umas duas horas de carro em estrada cuja metade do percurso era de terra. Depois, que na

vila a diversão se resumia a visitar alguns “puteiros” ou, se tivéssemos sorte, certa

danceteria onde de vez em quando rolava uma festa. Tivemos sorte, estava havendo uma

festa na danceteria. Mas a sorte não durou muito. Nem bem chegamos e eu, que escrevo

estas linhas, fui surpreendido por três metralhadoras na cabeça. Na época eu usava cabelos

longos e os elementos armados, por me acharem diferente resolveram “investigar”. Por

sorte o Daniel Lopes percebeu o ocorrido e teve a iniciativa de dar uma bela “carteirada”

nos sujeitos. Dificilmente eles leram o que estava escrito na carteira, mas por ela ser

federal e pertencer ao “Doutor” Daniel, fui salvo pelo gongo. Daí em diante as nossas

noites de lazer foram passadas na própria Casa de Pedra, com violão e cachaça, que

ninguém é de ferro. Aliás, era impossível ter cerveja na geladeira porque (1) não tinha

onde comprar e (2) a geladeira era literalmente ocupada por bichos mortos, do pessoal da

zoologia.

Quando finalmente começamos a fazer o levantamento arqueológico das grutas de

Carajás, a situação era outra. O convênio do MPEG com a CVRD estava em fase

Page 17: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

17

conclusiva e só nós da arqueologia continuávamos com o mesmo volume de trabalho do

início. O nosso alojamento há muito foi transferido para o platô N5 e a Casa de Pedra não

mais existia. Todo o platô N1 fora abandonado e agora era um lugar fantasma, porém,

como veremos adiante, contendo os mais importantes sítios da região.

O levantamento das grutas divide a história das pesquisas em duas etapas. A

primeira iniciou-se quando o Daniel Lopes ainda era o coordenador. O grande mérito desta

etapa foi a descoberta da Gruta do Gavião. No próprio platô N1 havia uma gruta

conhecida, descoberta no início dos 80 por pesquisadores da USP. Entretanto, ela só foi

pesquisada por nós em 1987. No platô N5 havia outra gruta conhecida, a Gruta da Onça,

onde ficava a antena de retransmissão de TV. Ali também existiam evidências

arqueológicas. Entretanto, a Vale do Rio Doce, sempre muito prestativa, atendendo a uma

solicitação de uma equipe inglesa que fazia cenas do filme “Em busca da Esmeralda

Perdida”, lavou e dedetizou toda a gruta para que os gringos não sujassem os pés e nem

fossem picados por insetos.

Mas tinha sido no ano de 1995, porém, ao sabermos da existência de uma grande

gruta em plena área de exploração de minério no N4, que descobrimos a Gruta do Gavião.

Liderados pelo Daniel chegamos até ela, aproveitando o acesso aberto pelas pesadas

máquinas mineradoras, cerca de trezentos metros encosta acima. Quando chegamos ao

local havia um gavião pousado na entrada da caverna. Daí seu nome, embora ela também

servisse de dormitório para uma onça. Felizmente o felino saía sedo e chegava tarde, de

modo que nunca chegamos a nos encontrar cara-a-cara, embora ela, vez ou outra, rondasse

a gruta durante o dia.

A Gruta do Gavião, localizada na parte leste de platô N4, revelou-se um sítio

arqueológico efetivamente formado pela ação de antigos caçadores-coletores, com grande

quantidade de vestígios compostos de lascas de quartzo de variados tipos e matéria

orgânica processada pelo homem. Esta descoberta permitiu pela primeira vez o estudo

sistemático de antigos caçadores-coletores ambientados à Amazônia, recuando a presença

destes grupos para milhares de anos antes do presente.

A partir desta descoberta as novidades se multiplicaram. Assim, para confirmar a

milenar presença evolutiva da cultura humana na Amazônia como um todo, Miller (entre

outros) confirma suas descobertas em 1987; Hilbert faz novos achados em 1988 no sítio

Buracão do Laranjal no Amapá; Roosevelt, no ano de 1993/96, descobre outros vestígios

Page 18: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

18

em Taperinha e na Caverna da Pedra Pintada (PA), respectivamente; entre 1990/94 Edithe

Pereira faz vasto levantamento da presença de grafismos diversos feitos sobre rochas e,

finalmente, entre 1992 e 1996, uma nova equipe do MPEG, agora coordenada por mim,

conclui o levantamento de todo o potencial arqueológico deixado por caçadores-coletores

em Carajás (Serra Norte), prospectando 15 novos sítios em grutas.

O “Sub-Projeto Arqueológico” então elaborado por Mário Simões, dava ênfase ao

levantamento dos sítios existentes, principalmente no alto do rio Itacaiúnas e na bacia do

médio Parauapebas (todos ceramistas), segundo preceitos comuns na arqueologia

amazônica da época. De fato, os achados encontrados nas margens dos rios de Carajás não

se diferenciavam muito do que se conhecia sobre a pré-história da Amazônia.

Muito pelo contrário, outras regiões da Amazônia, como a ilha de Marajó e o

município de Santarém apresentavam evidências muito mais ricas e interessantes. Mas a

Gruta do Gavião era um sítio rico em material lítico, cuja matéria-prima básica era o

quartzo lascado bipolarmente e tinha uma ocupação que datava de 8.000 anos de idade.

Isto implicava numa novidade, não necessariamente inédita, mas realmente

importante porque, pela primeira vez na Amazônia, este tipo de ocorrência era encontrado

dentro de um contexto arqueológico incontestável e perfeitamente verificável. Além disto,

nos níveis superficiais encontramos a presença de cerâmica, o que poderia implicar numa

antigüidade maior para ela.

Mas a presença de restos componentes da dieta alimentar arqueológica, compostos

de vários fragmentos de ossos, escamas de peixe, carapaças de moluscos e sementes,

revelaram os costumes alimentares e, principalmente, os procedimentos relacionados a

eles. Estas ocorrências alargaram o horizonte das pesquisas possíveis, mudando

definitivamente o rumo inicial do “Projeto Arqueológico Carajás”.

Com as análises feitas na cultura material coletada foi possível estudar a

distribuição espacial do material lítico, inclusive identificando-se a organização e uso

espacial da gruta (Hilbert, 1993). Identificaram-se as espécies mais comuns de caça na

dieta alimentar, relacionando-as com seus ambientes de ocorrência e, por fim, algumas

sementes foram identificadas assim como também o próprio ambiente delas (Silveira,

1995).

Com o estudo dos restos de recursos naturais encontrados na Gruta do Gavião

pôde-se observar que os diferentes ecossistemas de Carajás foram igualmente explorados e

Page 19: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

19

de certa forma até manipulados. Evidentemente que tais informações eram minimizadas

diante do potencial pré-histórico da região Amazônica, mas daí em diante passamos a

contar com muito mais dados e com a certeza de que a presença humana na Amazônia

apresenta uma evolução local muito antiga.

A segunda etapa das pesquisas foi iniciada de modo, digamos, acidental. Corria o

ano de 1992, da Eco-Rio. Naquela ocasião recebemos a visita de um alto funcionário da

CVRD com a qual a diretoria do MPEG tentava estabelecer um novo convênio. O discurso

ensaiado do funcionário era dizer que a colaboração da Vale seria relacionada apenas com

a logística, mas ressaltando que nem todas áreas de nosso interesse poderiam ser visitadas,

pois muitas delas haviam sido alteradas pela movimentação de máquinas e construções

diversas ... e que, inclusive, a própria Gruta do Gavião talvez nem existisse mais. Pronto,

daí veio a confusão. Acontece que a Gruta do Gavião era um patrimônio arqueológico,

bem da União, que jamais poderia ser destruída antes da conclusão de pesquisas exaustivas

indispensáveis. O caso foi parar no Ministério Público e envolveu a interferência decisiva

do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

Felizmente o alto funcionário estava enganado e na verdade a Gruta do Gavião,

continuava intacta. Por causa daquela confusão toda, além de termos concluído a

escavação deste sítio, tivemos que fazer um vasto levantamento em todas as grutas

existentes nos platôs de Carajás (na Serra Norte, onde exploravam o minério), desta vez

com o apoio logístico e financeiro da CVRD.

As pesquisas iniciaram-se em 1993 e foram concluídas em 1996, quando

descobrimos quinze novas grutas com vestígios arqueológicos deixados por antigos

caçador-coletores. Embora não fôssemos mais tratados como peões e as condições

logísticas tivessem melhorado bastante, o esforço físico necessário para subir e descer

morros, o uso de técnicas de montanhismo para alcançar algumas grutas, as chuvas

imprevistas, os animais peçonhentos e os selvagens (onças e queixadas), a vegetação

fechada e espinhenta e a pequena equipe composta de apenas quatro pessoas, tornaram a

empreitada uma verdadeira façanha. Principalmente porque só contávamos com a nossa

capacidade e vontade já que não dispúnhamos de absolutamente nenhum equipamento

além daqueles de nossa propriedade (máquinas fotográficas e o luxo de uma filmadora).

O esforço, porém, valeu a pena - descobrimos um sítio com a magnitude da Gruta

do Gavião: a Gruta do Pequiá. A Gruta do Pequiá, localizada no platô N5 e distante

Page 20: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

20

aproximadamente dois mil metros da Gruta do Gavião, fora ocupada cerca de 1.000 anos

antes e também era rica em restos alimentares processados pelo homem. Porém, o platô

com as ocorrências mais significantes, até mesmo pelo nível de conservação do ambiente

circundante, foi o N1. No N1 foram identificadas onze grutas e dessas, três foram total ou

parcialmente estudadas.

Estes três sítios composto pelas Grutas da Guarita, Mapinguarí e Rato, por sua vez,

revelaram uma interessante interação inter-espacial. Nessa interação, cada gruta pareceu

exercer um papel diferente na organização sociocultural dos grupos humanos que as

ocuparam. Já a ocupação, ao longo do tempo, deu-se quer para moradia temporária, quer

como apoio para exploração dos recursos naturais disponíveis no alto do platô e nas matas

altas que cobriam a encosta da serra.

Em todos esses sítios a cultura material predominante foi o lítico lascado a partir de

núcleos de quartzo (hialino, leitoso, ametista, citrino) e de sílica microcristalina (opala).

Este material era extraído de veios encontrados nas terras baixas da região. As ametistas

em particular, cujos cristais foram muito apreciados e lascados na maioria dos sítios,

provinham de distâncias de até 10.000 metros em linha reta.

Além do lítico a cerâmica também se fazia presente. Embora pertencendo à fase

final de ocupação das grutas, a riqueza no número de formas e tipos definidos indica uma

adaptação através do uso cotidiano e ritualísticos, às condições socioculturais ali

desenvolvidas. Recentemente, peças lascadas através das mesmas técnicas (bipolar,

utilizadas para o quartzo), porém feitas de hematita com alta concentração de ferro, foram

encontradas na superfície da canga que cobre o platô N1. Esta ocorrência, de grande

raridade, abre outra perspectiva de pesquisa.

A Gruta do Pequiá, localizada no platô N5, é um sítio que foi ocupado segundo

critérios que denotam grande organização espacial. . Neste sítio percebemos que houve um

gradual aumento de atividade no interior da gruta ao longo do tempo. No início as

atividades eram exercidas ocupando-se pequeno espaço e privilegiando-se as áreas

naturalmente iluminadas. Com o tempo, a organização do espaço foi-se ampliando e

sofisticando. Locais foram definidos para o processamento de alimentos e descarte de

restos. Outros foram definidos para o trabalho artesanal. Por outro lado foram encontradas

sementes que parecem indicar alguma manipulação dos recursos de flora. Por exemplo,

enquanto coletávamos, em diferentes níveis estratigráficos, sementes de cariocaráceas

Page 21: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

21

encontradas isoladas ou em estruturas de antigas fogueiras, enormes pés de Caryocar

villosun (pequiá) eram observados no entorno da gruta.

O principal período de atividade no interior da gruta aconteceu há três mil anos

atrás, porém é interessante notar que a evolução de tal ocupação foi constante desde 9.000,

até cerca de 1.000 anos atrás. Mais recentemente ocorreram ocupações aparentemente

esporádicas, certamente efetuadas por grupos humanos pertencentes a sociedades

agricultoras, mas que exerciam atividades sazonais de caça e coleta nas encostas e alto dos

platôs de Carajás, utilizando as grutas como base de apoio.

Gruta do Pequiá:

DATAÇÃO REFERÊNCIA QUADRANTE NÍVEL(cm) CAMADA

8.119 AP. Beta 110700 I8 20 II

8.340 AP. Beta 110702 M8 25 II

8.520 AP. Beta 110701 O9 40 III

9.000 AP. Beta 110699 N5 50 III

Já no platô N1, os sítios até aqui estudados, como as Grutas da Guarita, do

Mapinguarí e do Rato, parecem ter sido utilizados para outros fins ou por estratos sociais

diferentes. Essa diferença foi observada tanto na matéria-prima quanto na distribuição das

ocorrências. No caso da matéria-prima, por exemplo, ao contrário da Gruta da Guarita, na

qual o quartzo leitoso só teve uma pequena incidência na Camada I, na Gruta do Rato ele

não só é a matéria-prima predominante, como também está presente em grande quantidade

(relativa) em todas as camadas.

SÍTIO DATAÇÃO REFERÊNC

IA

QUADRAN

TE

NÍVEL(cm) CAMADA

Rato 7.040 AP. Beta 110705 E2 20 II

Guarita 8.260 AP. Beta 110703 A8 25 II

Rato 8.470 AP. Beta 110706 C4 40 III

Page 22: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

22

Quando observamos a distribuição espacial do material lítico, constatamos uma

variação quanto às áreas privilegiadas de lascamento. No início da ocupação (8.400 A.P.)

ainda não é possível observar qualquer área de concentração, que só se manifesta talvez

cerca de quinhentos anos depois. A partir daí observamos concentrações cada vez maiores

de resíduos de lascamento de produto bipolar, que variavam de posição e de matéria-prima

utilizada, conforme o tempo e o local, no interior da gruta. Quanto à matéria-prima, além

de podermos constatar que ao longo do tempo houve uma mudança na preferência pelo

tipo de quartzo, também observamos que mesmo numa mesma camada de ocupação, cada

concentração privilegiou um tipo diferente.

Estes sítios não podem ser considerados isoladamente. Provavelmente as três grutas

constituíam um mesmo conjunto de ocupação, o qual foi organizado paralelamente,

segundo costumes e tradições que ainda não podemos inferir. Diferente do que ocorreu na

Gruta do Gavião, cuja área externa foi a que apresentou maior concentração de material

lítico, o interior destas foi a área privilegiada da atividade artesanal. A datação alcançada

na Gruta da Guarita de 8.260 anos A.P., está inserida dentro daquelas alcançadas na Gruta

do Rato, entre 8.470 e 7.040 anos A.P. Diga-se de passagem, datações estas que estão de

acordo com as da Gruta do Gavião, entre 3.000 e 8000 anos A.P. (Magalhães, 1993).

Dessas, a Gruta da Guarita é a principal, a do Mapinguari talvez tenha sido ocupada

em momentos especiais e a do Rato, pelo seu reduzido tamanho, com eqüilibrada

distribuição da cultura material lítica ao longo do tempo, cumpriu importante papel na

organização social dos homens que por ali passaram. Cada uma das grutas foi ocupada

segundo determinadas finalidades, certamente complementares. A base da organização

social teria sido, provavelmente, familiar.

Pela análise do material lítico, não foi detectado sinal de ação de fogo sobre as

peças. Podemos inferir em princípio, que o calor não foi empregado no processo de

lascamento, já que efetivamente não contribui para a melhora da lascabilidade do quartzo.

Mas poderiam ter sido encontrado sinais de causas indiretas, devido ao descarte de peças

em áreas de fogueira ou por terem armado fogueiras sobre antigas áreas de descarte.

Mesmo assim nada de significante foi constatado.

Tirando-se desta conclusão a Gruta da Guarita - pela pouca área escavada e também

pela localização das duas trincheiras dentro da gruta - inferimos igualmente, que a ausência

de estruturas de fogueira na Gruta do Rato não foi causada pela ação das intempéries ou da

Page 23: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

23

qualidade do solo, mas sim pela inexistência delas no passado. Ou seja, a Gruta do Rato

teria sido uma área privilegiada para o trabalho artesanal do lascamento lítico,

simultaneamente à ocupação da Gruta da Guarita e da Mapinguari.

Durante o lascamento no interior da Gruta do Rato, cada área de trabalho poderia

suportar até duas pessoas. É possível que grupos de até seis pessoas a ocupassem nos

momentos de maior atividade. Pela distribuição diferenciada da matéria-prima, essas

pessoas poderiam ser separadas em dois subgrupos, com status ou níveis de parentesco

também diferenciados. Assim, a organização social do espaço em Carajás, não só se dava

entre as grutas como inclusive no interior delas, segundo usos e status particulares. Porém,

devido à falta de quaisquer outras evidências, ainda não é possível compreender o status

que cada área gozava dentro da organização geral do espaço social.

De qualquer modo, tais grutas, como inclusive todas as demais encontradas em

Carajás, não serviam de residência permanente, nem mesmo por uma suposta troca de

gruta ao longo do tempo. O grau de umidade que algumas apresentam seria

definitivamente insalubre.

Quando a Gruta da Guarita foi descoberta, parte do solo de seu interior estava

literalmente submerso. Durante a nossa etapa de campo, que ocorreu em pleno período de

chuvas, fomos testemunhas do desconforto que era permanecer dentro dela, debaixo de

incessante gotejamento, durante e após grandes enxurradas – provavelmente não tão

intensas quanto às que teriam ocorrido no passado. Pode-se ter a certeza de que a vida do

homem das cavernas não era de facilidades. O conceito de conforto, que inclusive

utilizamos como critério para identificar os sítios, era bastante relativo. O fato de não haver

uma estalactite na mira da cabeça, um pedregulho no meio do caminho e nem alagamento

no interior da gruta, eram talvez o máximo de conforto obtido.

Continuando o que realmente interessa... A presença dominante da cerâmica na

Gruta do Mapinguari e a pequena quantidade dela na Gruta do Rato, mais as diferentes

freqüências das matérias-primas dominantes, indicam que a sociedade humana que por ali

passou possuía um desenvolvido grau de organização social do espaço, o qual não se

resumia àquele local. A ocupação das grutas era possivelmente sazonal e outras áreas, não

serranas, seriam alternadamente ocupadas.

A matéria-prima principal, o quartzo, não é encontrada na serra, e sim como já foi

dito, em distantes veios que ocorrem nos vales e morros mais baixos em distâncias que

Page 24: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

24

alcançam mais de 10 quilômetros. Por exemplo, um garimpo de ametista por nós visitado

está localizado à 100 km, por estrada, do platô N5. Conseqüentemente, estes grupos muito

provavelmente deveriam ter desenvolvido táticas de ocupação e estratégias de exploração

dos recursos naturais não só complexas como também bastante diversificadas.

Os pequenos igarapés que nascem nos platôs de Carajás eram caminhos naturais de

chegada e de partida. E todos eles fazem parte da bacia do Itacaiúnas sendo ou tributário

deste, ou do rio Parauapebas, seu principal afluente, que juntos, cortam grandes extensões

territoriais até que o Itacaiúnas deságüe no Tocantins.

Para atingir as fontes de matéria-prima, as sociedades humanas que ocuparam

Carajás, passavam por diversos (diferentes) domínios ecológicos, tais como campos,

savanas, florestas de terra firme e de várzea. Com isto, o lugar de ocupação íntimo e

familiar representado pelas grutas associava-se, em contrapartida, ao grande espaço

exterior representado pelos vales, rios, fontes de matéria-prima e recursos naturais

complementares.

O HOMEM DE CARAJÁS NA AMAZÔNIA

A presença de artefatos de cerâmica nas grutas de Carajás, causou certa surpresa

inicial aos pesquisadores que os estudaram. Mas Lopes (1989/1994), Hilbert (1993) e

Silveira (1995) não viram nelas mais do que o resultado da visita esporádica de caçadores

de sociedades ceramistas horticultoras ribeirinhas de origem bem mais recente. Chegaram

a esta conclusão antes mesmo que a cerâmica fosse analisada. Entretanto, a presença delas

em tantas outras grutas e em níveis e camadas de ocupação cronologicamente

diferenciadas, descarta este pessimismo inicial.

De acordo com nossos estudos, o provável uso ritualístico inicial da cerâmica e a

sua posterior popularidade, pode explicar o fato dela ocorrer nos níveis superficiais de

certas grutas, estando ausente nos níveis inferiores. Possivelmente o uso ritualístico da

cerâmica era próprio de certos locais privilegiados. Quando posteriormente ela se

populariza, assumindo usos profanos ligados ao cotidiano, os espaços privilegiados perdem

seu sentido primordial, enquanto novos espaços são tardiamente conquistados.

As descobertas de Roosevelt (1996) na Caverna da Pedra Pintada em Monte Alegre

(PA,) com ocupação datada entre 11.200 e 10.000 anos atrás, que encontrou cerâmica

Page 25: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

25

também associada a artefatos líticos em quartzo e datada em 8.000 anos A.P. (Fase

Paituna), mostram que a presença dela entre caçadores-coletores de terras altas, do passado

mais recuado, era bem mais comum do que se imaginava.

Carajás (por enquanto) não confirma a antigüidade da cerâmica, mas sua presença

no período tardio de ocupação das grutas, independente dos fragmentos associados às

sociedades agrícolas bem mais recentes que em excursão de caça por lá passaram, insere

seus antigos habitantes num contexto histórico amazônico bem mais amplo.

Esse contexto se amplia no tempo e no espaço ao considerarmos as antiqüíssimas

cerâmicas encontradas nos sambaquís do litoral paraense (Salgado) e de Santarém

(Taperinha), datadas, respectivamente, de entre 3.000 e 7.500 anos A.P. Por outro lado,

ainda que não completamente aceita, a descoberta de cerâmica datada de 8.900 anos A.P.

na Toca do Sítio do Meio na Serra da Capivara no Piauí, associada à uma cultura integrada

a um ambiente tropical seco (Pessis, 1999), não só recua em muito a presença dela na

América do Sul, como nos permite vislumbrar uma possível antigüidade maior para a

cerâmica em Carajás.

A Dra. Anna Roosevelt, que esteve recentemente em moda na arqueologia da

Amazônia, dividiu o horizonte histórico cultural mais antigo da Amazônia em duas fases

iniciais: o período paleoíndio e proto-arcaico, ligados ao fim do Pleistoceno e período

arcaico pré-cerâmico e cerâmico incipiente relacionado ao início do Holoceno (Roosevelt,

1992). Ela agrupou os achados de Carajás ao período arcaico pré-cerâmico. Mas com os

novos dados percebemos, primeiramente, que a fase pré-ceramista em Carajás apresenta

evolução local. Portanto, os caçadores-coletores de Carajás apresentam duas fases “intra-

contínuas”: a pré-ceramista e a ceramista, mas todas essencialmente de floresta tropical.

Por ser uma área ecologicamente diversificada e com ambientes contrastantes os

quais foram estrategicamente explorados e possivelmente manipulados, os caçadores-

coletores teriam tido grandes possibilidades para se tornarem agricultores. Antes disto,

porém, a economia básica de consumo incluía cristais de quartzo (como o principal

material lítico utilizado), frutos de palmeiras, castanhas, leguminosas e raízes, pequenos

mamíferos (macacos, roedores, etc.), répteis, anfíbios e peixes, grandes mamíferos

(veados, antas e onças) e moluscos; sendo que os animais de pequeno porte, além dos

peixes e moluscos constituíam o alimento mais comum..

Page 26: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

26

Ainda segundo Roosevelt, seguindo-se ao arcaico ceramista, teria ocorrido o

período definido como estilos de horizontes antigos ou formativos, relativo às mais antigas

cerâmicas encontradas em áreas de várzea relacionadas ao cultivo de raízes, isto há 5.000

anos A.P. (Ibid.). Segundo a própria autora e também Meggers (1987), só então teria

havido uma comunicação maior entre as áreas de terras baixas e as áreas de terras altas,

quando finalmente os estilos cerâmicos se espalharam supra-regionalmente. Entretanto, a

presença da cerâmica tanto no litoral, quanto no interior serrano, milhares de anos antes

(como em Taperinha, Pedra Pintada e região do Salgado), indicam que o intercâmbio inter-

regional já poderia ter-se iniciado há muito mais tempo.

Além disso, a idéia de uma seqüência temporal linear, subdividida entre os

períodos Paleoíndio, Arcaico e Formativo, exige uma revisão. As evidências arqueológicas

encontradas em Carajás, especialmente as que se referem à cultura material, implicam em

práticas e costumes sociais que em nada lembram aqueles relacionados às culturas

pleistocênicas. Muito pela contrário. As magníficas pontas de projéteis feitas de quartzo

encontradas fora de contexto (Simões, 1976) não apresentam qualquer relação com aquelas

“pré-pontas” típicas de Carajás e Monte Alegre. Estas últimas são fundamentalmente

holocênicas. Isto pode significar que os povos que as produziram, foram realmente os

ancestrais mais antigos das populações indígenas atuais. Ou seja, já estavam plenamente

adaptados aos recursos da floresta tropical circundante.

É possível que existam sítios na Amazônia que constituam o produto de povos

pleistocênicos. Mas os sítios de caçadores-coletores até agora estudados na Amazônia

incluídos os de Carajás, são holocênicos e, consequentemente, tropicais e indígenas. Penso

que, a idéia do Arcaico e do Formativo também deve ser melhor definida, já que, por

exemplo, os grupos humanos de Carajás inseridos no contexto do chamado arcaico pré-

cerâmico, efetivamente possuíam cerâmica e relações sociais complexas.

As possibilidades múltiplas permitidas pela exploração dos diferentes ecossistemas

de Carajás, oferecem subsídios para supormos que, apesar da aparente invariabilidade dos

hábitos e costumes constatados, as grutas e os aspectos culturais nelas encontrados, eram

apenas uma variável do modo de vida dos habitantes da região, que deveriam possuir

amplas estratégias de exploração dos recursos naturais e táticas diversas de ocupação

espacial. Ou seja, em Carajás, os recursos serranos talvez fossem importantes fontes para

suprir as necessidades de subsistência.

Page 27: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

27

Dentro do seu universo cultural, as grutas seriam um elemento de destaque na

cosmogonia da sociedade. Entretanto, possivelmente não era o único e as atividades

ligadas às grutas seriam apenas uma parte das relações socioeconômicas desenvolvidas.

Assim, haveria um horizonte bem mais amplo ligado ao espaço exterior, que teria

permitido experiências bem diferentes daquelas vivenciadas no seio familiar das grutas.

A verificação em Carajás de que houve uma exploração diversificada de

ecossistemas distintos e de que o espaço exterior à serra exerceu papel fundamental no

desenvolvimento da sociedade lá instalada - tal como podemos concluir através da

cerâmica, que só apresentou evolução local na forma, mas chegou na serra pronta e

acabada – nos leva a considerar a idéia da exploração diversificada de ecossistemas

distintos prefigurada pelo sistema forrageiro, que é um conceito definido por um norte

americano chamado Binford (1980). Segundo ele, as atividades de caça e coleta

organizam-se em resposta às variações ambientais entre uma série de recursos. Este

sistema ainda se caracteriza pela mobilidade residencial e utilização de estratégias

específicas para obtenção de alimentos.

Há ainda o modelo sugerido pelo brasileiro Miranda (1984), que propôs duas

categorias espaciais básicas: área nuclear ou focal e território tributário. A primeira

corresponderia ao receptáculo natural capaz de acomodar os grupos humanos, perfazendo

um mínimo de condições necessárias à ocupação, de onde partiriam as empresas de caça e

coleta para explorar o território tributário. Este, extensivo à área nuclear, relaciona-se às

áreas circunvizinhas ajustadas aos contextos econômicos de caça e de coleta. O território

tributário, por sua vez, variava em extensão conforme a concentração dos recursos naturais

e a capacidade dos grupos de explorá-los. O território não tinha fronteiras definidas e, por

conseguinte, podia ser explorado, inclusive, por grupos étnicos distintos, o que permitiria

intercâmbios e assimilações diversas por conquista, comércio ou difusão cultural.

Entretanto, o conceito de área focal versus território tributário, em Carajás, não

pode ser considerado com muita rigidez. Afinal, a manufatura da cerâmica, especialmente

quando ela se torna popular, não era realizada no âmbito domiciliar das grutas, mas além

delas, num outro lugar que pode ser considerado a sua área focal. Por outro lado, o período

final da ocupação serrana, quando observa-se a introdução de instrumentos e produtos

horticultores (polidores e fusos), pode ter sido antecedido por um outro no qual teria

havido uma gradual transformação da antiga área focal serrana para uma das áreas do

território tributário.

Page 28: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

28

Conseqüentemente, áreas do antigo território tributário ter-se-iam tornado focais.

Mas na região de Carajás não deveria haver divisões muito claras entre essas duas

territorialidades, especialmente considerando-se o período de desenvolvimento da cultura

ceramista pré-horticultora. Se esta hipótese estiver correta, é possível que as sociedades

humanas de Carajás tenham explorado com igual importância, mas diferentemente, tanto

as terras altas quanto as terras baixas. E confirmaria, de certo modo, que a manipulação dos

diversos ambientes amazônicos pela atividade humana, teria sido bastante complexa.

Sabe-se que a diversidade ecológica Amazônica é muito rica e ampla (Pires e

Prance, 1985); que a várzea, assim como a terra firme, é bastante heterogênea (Moran,

1993); e, principalmente, que as sociedades nativas não foram feitas de sujeitos passivos às

limitações ambientais. Pelo contrário, há evidências não só de que os diversos ecossistemas

eram explorados associativamente segundo uma estratégia de exploração adequada às

características ambientais amazônicas, como inclusive que os nativos exerciam uma

poderosa influência criativa sobre o meio ambiente.

Estas evidências constatadas em outras regiões além de Carajás, revelam que parte do que

se vê hoje como floresta “primária” é, muito provavelmente, paisagem cultural, resultado

do manejo (manipulação humana de componentes orgânicos e não orgânicos do meio

ambiente) consciente ou da atividade humana inconsciente ao longo de milhares de anos

(Smith, 1980; Balée, 1994, 1995; Denevan, 1992b; Stahl, 1996).

Esses estudos desenvolvidos à margem da arqueologia, especialmente pela

etnoecologia, mostram que ao longo dos tempos desenvolveram-se técnicas com as quais

as sociedades nativas superaram inteirativamente as limitações ecológicas. Considerando

que este inteirar com o ambiente não é passivo (ou seja, não é tornar-se com a árvore mais

uma árvore na floresta), a inteiração é, antes de tudo, o fortalecimento da natureza pela

ação histórica do homem.

Sem dúvida que a evidência crescente sobre as origens antropogênicas (Balée,

Ibid.) das férteis terras pretas, que ocorrem em diversos ecossistemas, implica numa

importante ação ecologicamente orientada da ancestral atividade humana junto ao

ambiente amazônico.

A ação histórica do ameríndio sobre a ecologia Amazônica, segundo Balée,

produziu um interessante padrão de manejo e uso de recursos naturais que teve

fundamental importância na relação entre sociedades humanas e seus meios ambientes

Page 29: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

29

circundantes, fazendo aumentar, ao invés de reduzir, a diversidade ecológica nas áreas

onde viviam.

Essa diversidade ecológica, como bem mostram as origens antropogênicas das

terras pretas, foi em grande parte o produto da ação humana milenar. Só quando, por

motivações diversas, essa ação torna-se consciente através da experiência cognitiva,

estabelecem-se estratégias socioculturais relacionadas ao cultivo de plantas domesticadas,

resultado da ancestral inteiração co-evolutiva inconsciente entre plantas e homens durante

um longo período de tempo (Rindos, 1984).

Carajás também aponta para essa direção quando observamos o resultado de

possíveis cultivares de diversas plantas, como a bacaba, o inajá, a castanheira, que ocorrem

em grandes concentrações. E outras não tão extensas, mas igualmente importantes, como o

pequiazeiro e diversas “ilhas de vegetação” ricas em frutíferas, freqüentes na serra, no

meio da canga.

A percepção, enfim, de que haveria ambientes ótimos versus marginais ou de

lugares disponíveis para assentamento, fundamentalmente diferentes entre caçadores-

coletores versus horticultores e/ou entre horticultores versus agricultores intensivos, não é

universal, pois em Carajás, assim como em outras áreas da Amazônia, constata-se outra

realidade.

Parece que a questão resume-se apenas às estratégias de ocupação territorial, numa

mesma região ecologicamente diversificada, cujos padrões socioeconômicos possíveis, por

razões internas e ou de difusão cultural, são o de aperfeiçoamento de costumes e de

práticas típicas ancestrais.

Tais questões são, caro leitor, de fundamental importância. Imagine que até durante

os revolucionários anos de 1980 (para a arqueologia da Amazônia, é claro), ainda era

acalorada a discussão sobre se a Amazônia teria favorecido ou não a ocupação e a

evolução de sociedades de caçadores-coletores. Discutia-se também sobre a possibilidade

da origem antrópica de algumas paisagens amazônicas. Então, quando as evidências

começaram a apontar para a confirmação de que o homem não só ocupou e explorou,

precocemente os ecossistemas amazônicos, bem como interferiu na composição

paisagística deles, muita gente séria foi forçada a rever os seus conceitos.

Principalmente porque, ao contrário do pensamento generalizado, os caçadores-

coletores eram capazes de desenvolver culturas complexas, que preparavam as condições

necessárias para o surgimento de novas sociedades humanas mais organizadas. Talvez seja

Page 30: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

30

por causa disto que os estudos sobre os caçador-coletores estejam sendo levados em

banho-maria, e sejam solenemente ignorados por todas as publicações recentes sobre a

arqueologia desta grande região.

Quando os antigos caçador-coletores, tais como aqueles encontrados em Carajás,

foram agrupados como complexos culturais arcaicos e formativos pela arqueóloga Anna

Roosevelt (1992a; et al, 1996), desconhecia-se que entre eles havia sociedades organizadas

em torno da exploração diversificada do ambiente e que detinham o conhecimento da

manufatura da cerâmica há milhares de anos.

Assim, o padrão arqueológico constatado em Carajás, esclarece melhor este quadro

e mostra que a formação cultural da sociedade ali instalada não era arcaica e já apontava na

direção do futuro padrão horticultor. Deste modo, a capacidade de estratégia social

regional identificada em Carajás já possuía os fundamentos das bases das sociedades

agrícolas posteriores, que não necessariamente na serra, vieram a cultivar mandioca e

outros tubérculos e plantas.

A relação entre o espaço e o lugar na Amazônia parece então vir de experiências

cujas práticas já incluíam cultivares associativos, onde diversas plantas eram diversamente

cultivadas, e isto bem antes daquelas atribuídas às sociedades tribais (tal como verificamos

nas “ilhas de vegetação” encontradas no platô N5 da Serra Norte de Carajás).

Em Carajás, já disse que a cerâmica não foi desenvolvida nas grutas, elas lá

chegaram prontas e acabadas. Conseqüentemente eram produzidas em outro local,

provavelmente ribeirinho. O solo serrano, dominado pela canga dura e incultivável e pela

floresta em declive, poderia ter sido facilmente preterido em favor dos solos mais férteis

dos vales que afloram ao longo dos rios da região.

Como resultado, podemos supor que o salto histórico cultural - resultado dos milhares de

anos de exploração dos recursos naturais e da manipulação deles - não poderia dar-se na

serra, mas nos vales, em outros locais do espaço exterior. Esses locais exteriores, talvez

fossem compartilhados por outras etnias com comportamentos e práticas particulares mais

adequadas para o universo horticultor.

Até recentemente os Xikrin (que pertencem ao grupo Jê, vivem na região e não

produzem cerâmica) eram aliados de um grupo Tupi com os quais mantinham alianças

comerciais e guerreiras. Segundo a antropóloga Lux Vidal (1977), embora construíssem

aldeias permanentes, os Xikrin passavam a maior parte do ano percorrendo o seu território

Page 31: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

31

(entre o Araguaia e o Xingu) caçando, pescando e coletando, sendo que no inverno

(período de chuvas, entre novembro e março) ocupavam o alto das serras.

Em troca de diversas matérias-primas coletadas durante estas andanças, seus

parceiros tupi forneciam cerâmica e produtos agrícolas. Este modelo desenvolvido pelos

Xikrin e seus aliados pode ter sido fruto de uma longa tradição local, apropriada para a

melhor exploração dos recursos regionais, entretanto, a ancestralidade Kaiapó dos Xikrin

indica que suas origens mais recuadas são da região dos campos a oeste do Tocantins-

Araguaia (Ibid: 25).

O padrão arqueológico de Carajás nos permite concluir que ali, as táticas de

ocupação e as estratégias de exploração dos ecossistemas serranos permaneceram

inalteradas durante milhares de anos, sem que inovações tecnológicas (introdução e uso da

cerâmica) alterassem os seus tradicionais modos de uso.

Paralelamente, nas áreas em que eram exigidas outras táticas ocupacionais, com o

passar do tempo, essas mesmas tecnologias poderiam ter resultado em inovações que

acabaram por alterar o padrão tradicional, fazendo as sociedades serranas abandonarem um

modo de vida já não mais satisfatório. Este é o salto histórico, provavelmente realizado

pelos antigos habitantes das grutas de Carajás, quando finalmente as abandonaram, há

cerca de três mil anos atrás, em favor de uma organização social dominada por novas

necessidades, possivelmente agricultoras, provavelmente tribais.

Com tudo isto, podemos supor o seguinte quadro: em tempos bastante recuados,

pequenos grupos humanos compostos de até quatro famílias, já bastante integrados às

características tropicais da Amazônia, passaram a freqüentar periodicamente a região de

Carajás, em busca da caça de pequenos e da coleta de diversos frutos, vegetais e moluscos.

Os animais caçados eram de pequeno porte e provenientes da savana que cobria o topo das

serras e também das bordas das florestas. Havia uma predileção pela coleta de coquinhos,

uma vez que estes eram um importante combustível para a manutenção do fogo. Para a

caça e demais tarefas domésticas confeccionavam artefatos de quartzo muito toscamente

lascados, cujo tipo predileto variava em função da família ou do artesão. Esses

instrumentos serviam para o abate e corte da caça, além de constituírem ferramentas para o

trabalho da madeira.

Enquanto dedicavam-se à coleta de frutos, ervas e tubérculos iam, natural e

lentamente, selecionando áreas privilegiadas onde protegiam as mudas das plantas que

Page 32: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

32

faziam parte da sua dieta alimentar, da sua saúde e de seus rituais, e também da caça

herbívora, que por elas era atraída.

Entretanto, apesar de se satisfazerem com os recursos serranos, estes eram apenas

complementares àqueles encontrados nos vales, que exigiam táticas de ação bem

diferentes. Esta subdivisão das áreas ficou ainda mais importante, quando prontamente

perceberam que havia diferença na ocorrência quantitativa e qualitativa dos recursos

naturais, durante as duas estações climáticas da região: estiagem e chuvas. Se durante as

chuvas a caça era mais fácil na serra, durante a estiagem era mais abundante nos vales.

Durante muitos anos permaneceram nesse vai-e-vem, alternando a ocupação das grutas no

período de chuva, com a ocupação dos vales no período de seca.

Conforme o número de famílias ia crescendo, outras grutas iam sendo ocupadas,

formando enfim uma grande comunidade com o mesmo padrão sociocultural. Já as

técnicas de confecção dos artefatos não mudavam. O lascamento tosco das peças de

quartzo parecia suficiente para alcançar seus objetivos. Contudo, a preferência sobre certos

tipos de quartzo, permanecia dentro da mesma comunidade (ainda que até o momento,

ignoremos quais seriam os critérios dessa preferência: se por faixa etária, status ou por

preferência familiar).

Durante o passar dos séculos, ainda que as técnicas de lascamento não tivessem se

alterado, os recursos de caça foram-se ampliando, uma vez que não havia mais preferência

para a origem deles: tanto os animais de savana quanto os de florestas eram abatidos na

mesma proporção, demonstrando que os humanos já estavam perfeitamente integrados aos

diferentes ecossistemas de Carajás. Os recursos vegetais das florestas também são mais

explorados e a variedade de sementes coletadas se amplia. E mais, passam a cultivar

algumas delas, como por exemplo, o inajá e o pequiá. A organização do espaço da gruta se

aperfeiçoa. Certas áreas são dedicadas para o preparo de alimento, outras para o descarte

de restos e outras ainda para a confecção de artefatos.

O processo de manutenção do fogo foi-se sofisticando, não sendo mais necessária

uma quantidade tão grande de sementes ricas em óleo. Porém o modo de preparo do

alimento, as fogueiras compostas de pequenas rochas circundadas de chamas e sobre as

quais assavam a caça, tornou-se uma técnica de longa persistência. É possível que cada

família se responsabilizasse pela manutenção da sua própria fogueira. O que implicaria

numa organização social do espaço e interna do grupo.

Page 33: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

33

Num período posterior, há cerca de 3.000 ou 4.000 anos atrás, passam a manter

contato com sociedades que dominam a tecnologia da cerâmica, dos quais absorvem as

técnicas de manufatura. No entanto, a cerâmica foi introduzida (ou conquistada) sem que

esta mudança tecnológica tivesse influência imediata sobre o modo de vida do grupo, o que

retira da arte ceramista a capacidade de estimular alterações na organização sociocultural,

pelo menos no caso dos caçadores-coletores de Carajás.

A evolução do uso da cerâmica parece ter partido de uma posição especial no seio

da sociedade, quando possivelmente apenas alguns poucos privilegiados dominavam seus

processos de produção e relacionavam-na a ritos funerários de pessoas especiais dentro da

comunidade. Posteriormente, ela se populariza e torna-se de domínio cotidiano, entretanto

sem relação com práticas relacionadas à agricultura, como o processamento de tubérculos.

Além disto, também não eram usadas para o preparo de alimentos, resumindo-se, ao que

tudo indica, no armazenamento de água, objetos, sementes e frutos.

Com o tempo, os antigos habitantes de Carajás tornam-se povos cada vez mais

organizados, com táticas de ocupação para as áreas locais e para as áreas do espaço

exterior, bem mais amplas, aperfeiçoando-se na exploração dos mais diversos ecossistemas

e recursos naturais.

Na seqüência, sem abandonar os traços mais típicos do seu padrão cultural,

estabeleceram um intercâmbio mais intensivo com outras sociedades, inclusive

agricultoras, importando ferramentas líticas mais sofisticadas e com finalidades bem

distintas das suas necessidades mais tradicionais.

Foi com a introdução dessas novas práticas e fundamentalmente, das experiências

relacionadas a elas, que a organização social dessa comunidade humana finalmente

incorporou novos comportamentos culturais. Como resultado, as grutas tornaram-se cada

vez menos importantes para o seu desenvolvimento social. Assim é que, finalmente, depois

do primeiro grupo humano ter-se alojado nas grutas de Carajás, estas foram abandonadas

definitivamente, tornando-se, provavelmente, apenas um elemento mitológico no universo

cosmogônico daquela milenar sociedade, que se transformou, privilegiando outras áreas de

ocupação.

Notamos nas sociedades de caçadores-coletores de Carajás, uma clara disposição

para a organização do espaço, o que naturalmente terá influência direta sobre a sociedade.

Difícil dizer quem veio primeiro, se a organização do espaço ou se ao contrário, foi a

Page 34: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

34

organização da sociedade que acabou por estabelecer valores espaciais culturalmente

diferenciados. É muito provável que esta questão seja menor diante do estágio da

experiência cognitiva dos grupos humanos pioneiros na ocupação das grutas.

Sabemos que existem animais que se organizam socialmente, com finalidades

passageiras e estratégicas. Chimpanzés e gorilas, por exemplo, o fazem. Os chimpanzés,

inclusive, organizam-se para a conquista de novos territórios, lutando contra inimigos da

sua própria espécie.

Portanto, pode-se afirmar sem risco de erro, que determinadas características da

organização social humana são inerentes à espécie e se manifestam em qualquer indivíduo,

desde que sob condições normais de existência. Muitas das experiências sensoriais são tão

comuns para nós quanto para outras espécies de mamíferos. Porém, diferente dos demais

animais, essas experiências sensoriais, por serem cumulativas podem tornar-se

experiências cognitivas, que são capazes de criar novas necessidades. Quando isto

acontece, o ser humano toma consciência dela e assim a institucionaliza ou a transforma.

Ao tornar-se consciente pela “educação”, a comunidade apreende a experiência

sensorial, incorporando-a aos valores e comportamentos sociais, ou institucionalizando-a

através de regras de comportamento. O que fica na memória, sem esforço educativo, é

pobre e insignificante na formação social do homem. Entretanto, para neutralizar isto,

existem os processos inconscientes que permitem a manutenção de certos comportamentos.

Mas tão somente quando esses comportamentos são compreendidos e transmitidos

cognitivamente, eles são incorporados socioculturalmente pelo grupo.

Compreende-se assim, que apesar do rudimento material da uma sociedade, ela

possui uma organização social básica muito complexa, que abrange diversos patamares de

status entre as famílias e as funções. Quando essa complexidade passa a ser dominada

cognitivamente pelo grupo, este desenvolve elementos materiais e cosmogônicos que

revelam toda a sua potencialidade. É neste momento também que alterações importantes

no comportamento e costumes da sociedade são cristalizados. Quando, por outro lado,

novas experiências sensoriais incorporadas no comportamento social do grupo (quer

através do comércio, da conquista ou do domínio), são finalmente dominadas pela

experiência prática e posteriormente cognitiva, então uma nova ordem se estabelece,

alterando antigos costumes e hábitos seculares.

Enfim, possivelmente foi a experiência cognitiva que alterou os padrões de

comportamento tradicionais dos caçadores-coletores de Carajás, e não a introdução de

Page 35: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

35

técnicas, recursos materiais ou conflitos sociais. Portanto, tão somente quando os recursos

tecnológicos introduzidos e as técnicas de exploração dos recursos naturais foram

plenamente dominados pela experiência prática e cognitiva dos habitantes de Carajás, que

a cultura deles se transforma, levando-os a novas e imprevisíveis vivências, para o espaço

mais amplo da sua existência, exterior à intimidade das grutas.

As escavações nas Grutas do Pequiá, do Rato e do Gavião revelaram uma série de

relações intercontextuais típicas, como o uso organizado do espaço, a exploração

diferenciada de recursos naturais (floresta e savana), a manipulação dos mesmos e de

domínio tecnológico (produção de cerâmica). São estas relações que fundamentam um

claro padrão arqueológico para Carajás. Os traços típicos deste padrão, por sua vez,

constituem os fundamentos de longa duração que estão nas bases de formação da Cultura

Neotropical na região (Magalhães, 1994): a exploração simultânea e não especializada de

recursos biodiversificados, inclusive com cultivo associado, sendo a cerâmica um marco da

longa passagem do uso “casual” para o uso controlado deles.

Foi assim que, centenas de anos antes dos Xikrin, sociedades agricultoras e com a

tecnologia de produção de cerâmica (com predomínio da utilitária), ocuparam as terras

firmes altas a as várzeas dos principais rios da região. O ambiente já era de floresta tropical

e a cultura desenvolvida ali foi própria da inteiração deles com este ambiente não se

diferenciando, em essência, das demais populações de floresta úmida da Amazônia.

Em Carajás, essas sociedades organizavam-se em aldeias compostas por mais de

uma maloca, tinham áreas especiais para cultivo e rituais funerários sofisticados

(enterramento secundário em urnas funerárias). Por outro lado, a geopolítica desses povos

ignorava a idéia de fronteira, pois havia uma movimentação inter-aldeia bastante

acentuada. Isto deveria favorecer alianças políticas e intercâmbios culturais significativos,

mas poderes centrais muito frágeis.

Eles exploravam não só os vales, porém, eventualmente, faziam excursões de caça

no alto das serras. Os recursos explorados também eram bastante diversificados e algumas

plantas importantes para a dieta e ou economia deles eram, indiretamente, cultivadas em

larga escala.

A CHEGADA DO HOMEM MODERNO

Page 36: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

36

No fim do primeiro terço do Século XX os castanhais nativos passaram a ser

disputado pelos Xikrin (ali presentes desde o século XVIII) e pelo migrante nordestino. E é

do século XVIII o registro mais antigo da presença do homem de origem européia nas

aldeias do baixo Itacaiúnas e Parauapebas. Foi após a visita do padre Manuel da Mota, em

1721, que se acentuaram as entradas e a ocupação de alguns trechos da região da bacia do

Itacaiúnas. Isto foi registrado por Coudreau entre 1895/1896, quando este realizou o

levantamento geográfico dos rios Itacaiúnas e Parauapebas. Já na primeira década do

século XX, uma população de origem brasileira alcançava o alto Itacaiúnas, segundo

testemunho de Manuel Pernambuco da Gama, que por ali viveu entre 1903 e 1913,

mantendo contato com os índios Caiapós-Xikrin.

Foi, entretanto, a partir de 1930, que ocorreu uma forte migração para a região. De

fato, atraídos pelos grandes castanhais, houve uma grande migração de retirantes da seca

do sertão nordestino, os quais invadiram e saquearam o alto Itacaiúnas, então território

Xikrín. Isto ocasionou conflitos entre índios e invasores, com mortes em ambos os lados,

com desvantagem para os primeiros.

Só a partir de 1952, o então Serviço de Proteção aos Índios (SPI) interveio, criando

o posto indígena Las Casas, no rio Cateté. Dois anos depois um grupo Xikrin vivia sob a

tutela do SPI (Moraes Rego, 1933). O equilíbrio populacional estabelecido desde então só

foi alterado com a descoberta do potencial mineral de Carajás, em 1967.

Nas décadas seguintes, especialmente entre 1970/80, graças ao ouro da serra Pelada

e ao ferro da serra de Carajás, houve um significativo aumento populacional, com

alterações profundas no fenótipo predominante, que apesar da origem heterogênea,

apresenta a supremacia do nordestino.

FALANDO SÉRIO

A idéia básica obtida com os resultados das pesquisas até agora realizadas em

Carajás, é que possivelmente haveria não apenas uma seqüência histórica na Amazônia,

mas sim muitas outras. E que para cada história, haveria ritmos de relações com escalas e

conceitos temporais distintos. Assim, em termos gerais, as escalas de valores e os conceitos

temporais dos povos nativos da Amazônia apresentam a sua particularidade, cuja evolução

só é compreensível no lugar de suas manifestações.

Page 37: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

37

A arqueologia de Carajás tem mostrado que, de fato, o selo da tropicalidade esteve

marcado nos comportamentos e produtos dos homens que lá viveram há muitos milênios

atrás. A formação do homem de Carajás, assim como também da Amazônia em geral, teria

resultado de milhares de anos de experiência cumulativa, cujos primeiros representantes

organizavam-se em sociedades de caçadores-coletores, ainda sem o pleno domínio

institucional dos valores tribais, mas que indubitavelmente caminhavam neste rumo.

Em Carajás encontramos manifestações que apontam para a formação desses

valores, inclusive através de evidências materiais e comportamentais, muito tempo antes

delas serem dominadas por sociedades tribais. A introdução de novas tecnologias

(produção de cerâmica) não acarretou, automaticamente, novas condutas sociais ou

culturais. Ou seja, essa conquista tecnológica não implicou necessariamente em mudanças.

Além disto, verificamos que houve lugares próprios a atividades particulares, cuja

importância dentro do espaço regional mudou conforme a evolução dos acontecimentos.

Havia, dentro da cultura desses grupos, elementos virtuais com grande potência de

transformação, a qual só ocorreu quando eles foram plenamente dominados pela

experiência cognitiva. Isto teria gerado saltos históricos regionais, quando as áreas focais

serranas foram preteridas em favor de outras mais adequadas à sua nova realidade agrícola.

Enfim, as experiências sensoriais e práticas indicadoras dos caminhos possíveis

precederam as mudanças até que a plena consciência foi alcançada. Essas experiências

ocorreram não somente no nível material, mas também no nível dos valores e das

estruturas sociais.

A organização do espaço, identificada tanto em termos intra-sítios quanto inter-

sítios, apóia a hipótese de que, organizações sociais mais avançadas já estariam

prefiguradas em sociedades precedentes. Como resultado, é lícito supor que as

organizações sociais indígenas mais complexas1, que vieram a se desenvolver na

Amazônia muitos séculos depois, nada mais seriam do que a continuidade de uma tradição

de longa duração, iniciada com a ascensão das sociedades horticultoras, por sua vez,

herdeiras da cultura tropical precedente, já dominada pelos caçadores-coletores de Carajás

há 9.000 anos A.P. Por isso reúno as diversas culturas tribais amazônicas posteriores, e

suas variáveis culturais mais sofisticadas, dentro da noção comum definida como Cultura

Neotropical.

1A Cultura Marajoara em Marajó, a Tapajônica na região de Santarém e outras.

Page 38: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

38

A Cultura Neotropical nada mais seria do que um processo civilizador. Isto retira

das etnias amazônicas qualquer tipo de insuficiência cultural para desenvolver uma

civilização, ao mesmo tempo em que confere a elas a capacidade de produzirem

experiências convergentes, conseqüência da milenar inteiração do homem com os diversos

ecossistemas amazônicos.

A caracterização dos objetos sociais típicos identificados em Carajás: o lascamento

bipolar do quartzo para a confecção de instrumentos de caça e de trabalho na madeira; a

presença da cerâmica desde centenas de anos, para uso ritualístico e posteriormente para

uso cotidiano; a exploração de ecossistemas diferenciados e do manejo de alguns deles; a

organização do espaço social inter-sítio e intra-sítio, mais o intercâmbio interétnico

registrado, em síntese, estabelecem um padrão arqueológico que não é nem excepcional

nem único por ser evidentemente tropical.

Por outro lado, este padrão demonstra a inteiração entre a sociedade e seus

processos com o lugar, ao mesmo tempo em que reafirma a sua originalidade sociocultural,

convergindo para uma mesma noção comum cultural de larga escala espaço-temporal na

Amazônia. O padrão arqueológico de Carajás define seus representantes como caçador-

coletores pré-horticultores tropicais. As suas experiências práticas estão virtual e

conseqüentemente, na base dos padrões formativos da Cultura Neotropical, cujo

desenvolvimento resultou num sentido sociopolítico de grande intensidade, subentendido

na maioria das evidências arqueológicas encontradas nos sítios das sociedades agricultoras

existentes na Amazônia.

Todas as regiões de fronteiras geográficas e culturais definidas possuem uma

virtual potencialidade para fundamentar um processo civilizador singular. Porém, os

movimentos de expansão, motivados pela conquista territorial ou econômica, que

desterritorializam as manifestações socioculturais próprias do lugar, massificando todas

num mesmo processo cultural, em geral resumido na regulamentação religiosa ou

ideológica, são comumente fundamentados em valores antinaturais. Sem dúvida, estes

movimentos estão, como em tantas outras, no início da desestruturação dos processos

civilizadores reunidos na Cultura Neotropical, quando teve início a colonização européia

no Brasil.

Mas, se por um lado é difícil identificar o universo das atividades práticas de uma

sociedade, por outro, em termos macro-cósmicos, é perfeitamente possível identificar o

período no qual diversas sociedades, independentes do nível de organização social e do

Page 39: O HOMEM DAS CAVERNAS DE CARAJÁS

39

aparato material particular que tenham, compreendem um processo civilizador2 de longa

duração.

Deste modo, a gênese das sociedades antigas da Amazônia pode ser identificada

quando constatamos a integração delas à floresta tropical. O processo civilizador na

Amazônia teve início quando o homem, provavelmente de origem mongolóide, interagiu

com a floresta úmida, produzindo práticas e costumes sociais específicos, ao longo de

muitos séculos de exploração e manipulação dos recursos naturais. Ora, como este

processo civilizador envolveu grupos sociais distintos, em tempos e espaços diferentes,

logo a evolução foi heterogênea, não só no espaço, como também no tempo. Deste modo, o

início deste acontecimento pode ter partido de grupos humanos que aqui chegaram ainda

no Pleistoceno (existem datações, para áreas fora da Amazônia, que registram a presença

do homem há mais de 20.000 anos). Já em pleno Holoceno (cujo início variou

regionalmente, mas que na Amazônia talvez tenha se iniciado uns 12.000 anos atrás), a

organização social de muitos grupos poderia encontrar-se apenas em seus primórdios.

A este período vamos chamar de Tropical, que envolve experiências práticas e

sensoriais ainda não perfeitamente dominadas pela experiência cognitiva, mas que de longe

supera o período anterior, onde as experiências limitavam-se à satisfação das necessidades

relacionadas à subsistência e submetida aos fenômenos da natureza, tal como teria sido

vivenciado pelas populações pleistocênicas.

Na verdade esse processo civilizador rompe radicalmente com as tradições anteriores e

aponta o caminho para o sucesso definitivo das atividades humanas junto à floresta

tropical, que apesar de bastante antiga, alcança a sua plenitude durante o Holoceno. Ao

inteirar-se com a floresta o homem co-evoluiu com a mesma e garantiu a continuidade de

ambos. Assim, quando finalmente a acumulação das experiências práticas e sensíveis do

homem tropical foram dominadas pela experiência cognitiva, através da institucionalização

de hábitos e costumes muitos antigos, agora reorganizados em relações tribais com

agricultura e relações políticas bem definidas, surgiu outro período histórico, com outro e

mais sofisticado processo civilizador, a Cultura Neotropical.

A gênese das sociedades antigas da Amazônia, efetivou-se assim na floresta

tropical e teve início com populações de origem mongolóides, talvez há mais de 12.000

anos atrás. Ela constituiu um acontecimento histórico de longa duração, cujo auge foi

2 Entende-se como civilização grupos sociais que se identificam com uma noção comum cultural, delimitados por um espaço geográfico e um sentido histórico. Entretanto na civilização, a idéia de padrões

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alcançado quando já suficientemente conhecedores das riquezas e dos limites da floresta,

os quais eram capazes de superar através da manipulação de ecossistemas com os quais

interagiam, fizeram florescer sociedades muito complexas, com relações inter-étnicas e

políticas, talvez únicas no mundo.

É a chegada de uma nova migração populacional, com hábitos, costumes e práticas

socioculturais completamente inadequados à floresta tropical, mas com interesses

comerciais e métodos poderosos, ao substituir o natural selvagem pela eficiência dos

artifícios normativos, que interrompe a evolução da civilização neotropical. É assim que

tem início a colonização européia no Brasil, inaugurando então, outro processo civilizador,

que acaba por desenvolver a cultura brasileira.

Se você conseguiu, caro leitor, chegar até aqui eu agradeço muito a sua paciência.

Porém gostaria de alertar que esses conclusões não são definitivas. Como em qualquer

ciência, nenhuma conclusão é definitiva, já que nada é tão perfeito que não possa ser

aperfeiçoado, ou mesmo substituído por coisa melhor. Assim, sobre os caçadores-coletores

tão bem representados em Carajás, muita coisa ainda precisa ser esclarecida.

As pesquisas precisam ser continuadas para que possamos melhor amarrar algumas

das hipóteses aqui apresentadas. Entretanto as dificuldades de um arqueólogo não se

resumem às aventuras vividas em campo nem aos riscos de suas afirmações. Existem

outras que ocorrem a nível de gabinete e que às vezes são um verdadeiro transtorno.

Imagine, por exemplo, se um médico-cirurgião, que tem sob sua responsabilidade a vida do

paciente, tivesse que solicitar autorização a uma instituição pública, controlada não

necessariamente por médicos, para fazer uma interferência cirúrgica. Será que o paciente

resistiria até a chegada da resposta? E se a solicitação caísse em exigência? E se a

autoridade que analisou a solicitação não concordasse com os procedimentos propostos?

Você, certamente, já ouviu falar da obrigação de um engenheiro civil (cujo erro de cálculo

pode ocasionar prejuízos materiais e até fatalidades) colocar sua metodologia de trabalho à

apreciação de uma autoridade com poder de veto, mas que não tem, necessariamente,

conhecimento prático de engenharia? Claro que isto não existe. Porém, nós arqueólogos,

estamos sujeitos a tudo isto.

Infelizmente o reconhecimento da profissão de arqueólogo foi vetado pelo

presidente sociólogo. É possível que as prostitutas tenham sua milenar profissão

reconhecida antes da gente. Espero que não tenhamos que esperar milhares de anos, como

culturais religiosos ou não, não é suficiente para definí-la, quando apresentada isoladamente.

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elas têm esperado, para sermos reconhecidos. Enquanto isto ficamos à mercê de certas

situações estapafúrdias.

Embora a preservação do patrimônio arqueológico no Brasil tenha sido uma

bandeira de luta levantada desde o início pelos primeiros arqueólogos sérios, e tenha-se

transformado em lei após muita labuta, leis complementares recentes, especialmente sobre

o estudo de impacto têm ocasionado, em certas situações, a paralisação de pesquisas por

motivos às vezes meramente subjetivos, devido às diversas interpretações legais e ao poder

de veto das autoridades responsáveis.

Lamentavelmente nossas pesquisas têm sofrido atrasos por conta das dificuldades

da CVRD compreender a sua obrigação com o patrimônio arqueológico de Carajás e da

interferência confusa da instituição fiscalizadora. Este é mais um capítulo das crônicas de

Carajás sem final definido e que em breve pretendo contar.

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