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Freyre, Gilberto. Casa grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Apresentação Fernando Henrique Cardoso - 51ª ed. Ver. – São Paulo: Global, 2006. – (Introdução da história da sociedade patriarcal no Brasil; 1). Por Isac Justino Miranda 4º semestre de Ciências Sociais pela UFMT UM LIVRO PERENE Fernando Henrique Cardoso discute o trajeto da obra sob os olhares dos críticos, que destaca as contradições ali procedentes, porém, destaca que “Casa grande & senzala foi, é e será referência para compreensão do Brasil”. Sua analise é de que a obra apresenta “construções hiper-realistas mescladas com perspectivas surrealistas que tornam o real fugidio. (...) essas caracterizações, embora expressivas, simplificam e podem iludir o leitor. Mas, com elas, o livro não ganha apenas força descritiva como se torna quase uma novela, e das melhores já escrita e ao mesmo tempo, ganha força explicativa”. (p. 20). Casa grande & senzala eleva à condição de mito um paradigma que mostra o movimento da sociedade escravocrata e ilumina o patriarcalismo vigente no Brasil pré-urbano-industrial”. Considera que “Gilberto Freyre inova nas análises sociais da época: sua sociologia incorpora a vida cotidiana. Não apenas a vida pública ou o exercício de funções sociais definidas (...), mas a vida privada”, posto que na época do escrito

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Freyre, Gilberto. Casa grande & Senzala: formação da família brasileira sob o

regime da economia patriarcal. Apresentação Fernando Henrique Cardoso - 51ª ed.

Ver. – São Paulo: Global, 2006. – (Introdução da história da sociedade patriarcal no

Brasil; 1).

Por Isac Justino Miranda

4º semestre de Ciências Sociais pela UFMT

UM LIVRO PERENE

Fernando Henrique Cardoso discute o trajeto da obra sob os olhares dos

críticos, que destaca as contradições ali procedentes, porém, destaca que “Casa

grande & senzala foi, é e será referência para compreensão do Brasil”. Sua analise

é de que a obra apresenta “construções hiper-realistas mescladas com

perspectivas surrealistas que tornam o real fugidio. (...) essas caracterizações,

embora expressivas, simplificam e podem iludir o leitor. Mas, com elas, o livro não

ganha apenas força descritiva como se torna quase uma novela, e das melhores já

escrita e ao mesmo tempo, ganha força explicativa”. (p. 20).

“Casa grande & senzala eleva à condição de mito um paradigma que mostra

o movimento da sociedade escravocrata e ilumina o patriarcalismo vigente no Brasil

pré-urbano-industrial”. Considera que “Gilberto Freyre inova nas análises sociais da

época: sua sociologia incorpora a vida cotidiana. Não apenas a vida pública ou o

exercício de funções sociais definidas (...), mas a vida privada”, posto que na época

do escrito descrever hábitos e costumes, “e, sobretudo, a vida sexual, era

inusitado”. (p.21).

“a obra é eterna?”, “Talvez porque ao enunciar tão abertamente como

valiosa uma situação cheia de aspectos horrorosos, Gilberto Freyre desvende uma

dimensão que, gostemos ou não, conviveu com quase todos os brasileiros até o

advento da sociedade urbanizada, competitiva e industrializada. (...) a história que

ele conta era a história que os brasileiros, ou pelo menos a elite que lia e escrevia

sobre o Brasil, queria ouvir. (...). A história que está sendo contada é a história de

muitos de nós, de quase todos nós, senhores e escravos”. (p. 22).

“Gilberto Freyre seria o mestre do equilíbrio dos contrários. Sua obra está

perpassada por antagonismos. Mas dessas contradições não nasce uma dialética,

não há superação dos contrários, nem por conseqüência se vislumbra qualquer

sentido da História. Os contrários se ajustam frequentemente de forma ambígua, e

convivem em harmonia.” (p.23).

Destaca que Gilberto Freyre “não visava propriamente demonstrar, mas

convencer. (...) vencer junto, autor e leitor”. Fernando Henrique prossegue

enfatizando que “essa característica vem sendo notada desde as primeiras edições

de Casa grande & senzala”, em que o autor “não conclui. Sugere, é incompleto, é

introspectivo, mostra o percurso, talvez mostre o arcabouço de uma sociedade.

Mas não ‘totaliza’. Não oferece, nem pretende uma explicação global. Analisa

fragmentos e com eles faz-nos construir pistas para entender partes da sociedade e

da história.” (p.24).

No que se refere às “oposições simplificadoras, os contrários em equilíbrio,

se não explicam logicamente o movimento da sociedade, servem para salientar

características fundamentais. São, nesse aspecto, instrumentos heurísticos cuja

fundamentação na realidade conta menos do que a inspiração derivada delas, que

permite captar o que é essencial para a interpretação proposta. (...) E como, apesar

disso, a obra de Freyre sobrevive, e suas interpretações não só são repetidas (...),

como continua a incomodar muitos, é preciso indagar mais o porquê de tanta

resistência para aceitar e louvar o que de positivo existe nela”. (p. 25).

Quanto à visão da evolução política do país, observa que na obra gilbertiana

“a grande eloqüência, o tom exclamatório dos ‘grandes ideais’, messiânicos, (...) é

posto à margem e substituído pela valorização das práticas econômicas e humanas

que (...) refletem a experiência comprovada de muitas pessoas”. Observa que ”com

as características culturais e com a situação social dos habitantes do latifúndio, não

se constrói uma nação, não se desenvolve capitalísticamente um país e, menos

ainda, poder-se-ia construir uma sociedade democrática”. Diferentemente da

“intelectualidade universitária e dos autores, pesquisadores e ensaístas pós-Estado

Novo (...) que queriam construir a democracia, Gilberto Freyre foi, repetindo José

Guilherme Merquior, ‘nosso mais completo anti-Rui Barbosa’”. (p.26).

Com relação à visão de pensadores mais democráticos do passado, citando

Sérgio Buarque, Florestam Fernandes, Simon Schwartzman e José Murilo de

Carvalho, estes formulam as suas críticas à obra gilbertiana quanto “ao iberismo e

à visão de uma ‘cultura nacional’, mais próxima da emoção do que da razão”.

Fernando Henrique pensa que “terá sido mais fácil assimilar Weber da Ética

protestante e da crítica ao patrimonialismo do que ver no tradicionalismo um

caminho fiel às identidades nacionais para uma construção do Brasil moderno”.

Infere que “o Brasil (...) vivendo uma situação social na qual as massas estão

presentes e são reivindicantes de cidadania e ansiosas por melhores condições de

vida, vai continuar lendo Gilberto Freyre. Aprenderá com ele algo do que fomos ou

do que ainda somos em parte. Mas não o que queremos ser no futuro.” (p. 27).

A título de conclusão sintetiza que em sua obra, “Gilberto Freyre nos faz

fazer as pazes com o que somos. Valorizou o negro. Chamou atenção para a

região. Reinterpretou a raça pela cultura e até pelo meio físico. Mostrou, com mais

força do que todos, que a mestiçagem, o hibridismo, e mesmo (mistificação à parte)

a plasticidade cultural da convivência entre contrários, não são apenas uma

característica, mas uma vantagem do Brasil”. (p.28).

Prefácio à 1ª Edição

Gilberto Freyre fala das suas viagens, a partir de 1930, começando pela

Bahia; depois para Portugal e África; passando pela Universidade de Stanford,

viagens que caracterizou como “ideal para os estudos e as preocupações que este

ensaio reflete” (p. 29).

Em oportunidade de fazer rota através do Novo México, do Arizona, e do

Texas, considera o reconhecimento “de toda uma região que ao brasileiro do Norte

recorda, nos seus trechos mais acres, os nossos sertões ouriçados de mandacarus

e de xiquexiques. Descampados em que a vegetação parece uns enormes cacos

de garrafa, de um verde duro, às vezes sinistro, espetados na areia seca”. Porém

seu interesse estende-se para além da paisagem sertaneja, voltando-se para o

“velho Sul escravocrata”. Infere que “a todo estudioso da formação patriarcal e da

economia escravocrata do Brasil impõe-se o conhecimento do chamado ‘deep

South’” (p. 30-1).

Freyre avalia a importância do encontro e companhia de estudiosos

(estrangeiros) de assunto correlato, que lhe proporcionaram sugestões valiosas

para seu trabalho. Do seu encontro com Franz Boas, destaca que através de

orientação de estudo antropológico, “me revelou o negro e o mulato no seu justo

valor (...) a considerar fundamental diferença entre raça e cultura; a discriminar

entre os efeitos de relações puramente genéticas e os de influências sociais, de

herança cultural e de meio.” (p. 32).

Do materialismo histórico destaca, “temos que admitir influência considerável

(...) da técnica de produção econômica sobre a estrutura das sociedades: na

caracterização da sua fisionomia moral (...) sujeita à capacidade de aristocratizar ou

de democratizar sociedades; de desenvolver tendências para a poligamia ou a

monogamia; para a estratificação ou a mobilidade”. Considera que ainda que

estudos em desenvolvimento sobre eugenia e cacogenia, estes como que sendo

“resultado de traços ou taras hereditárias preponderando sobre outras influências,

deve-se antes associar à persistência, através de gerações, de condições

econômicas e sociais, favoráveis ou desfavoráveis ao desenvolvimento humano”.

(p. 32).

Freyre considera que, no Brasil, os “europeus e seus descendentes tiveram

(...) de transigir com índios e africanos quanto às relações genéticas e sociais”.

Dado à escassez de mulheres, “sem deixarem de ser relações (...) de ‘superiores’

com ‘inferiores’, surgiu a necessidade experimentada por muitos colonos de

constituírem família. (...). A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a

distância social que de outro modo se teria conservado enorme entre a casa-

grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala”. (p. 33).

Nos moldes do sistema patriarcal e escravocrata de colonização, Freyre

estuda a importância do processo alimentar das ‘raças inferiores’, que resulta num

quadro de hiponutrição, ou ‘fome crônica’, decorrente “dos defeitos da qualidade

dos alimentos”. Desse fato decorre “entre as conseqüências (...) a diminuição da

estatura, do peso e do perímetro torácico; deformações esqueléticas;

descalcificação dos dentes; insuficiêcias tiróidea, hipofisária e gonadial

provocadoras de velhice prematura, fertilidade em geral pobre, apatia, não raro

infecundidade”. Lembra também outras influências desse sistema como a sífilis,

destacando que a “economia e organização social (...) às vezes contrariaram não

só a moral sexual católica como as tendências semitas do portugês aventureiro

para a mercania e o tráfico”. (p. 34).

Freyre infere que “o sistema patriarcal de colonização portuguesa do Brasil,

(...) ao mesmo tempo que exprimiu uma imposição imperialista da raça adiantada à

atrasada, (...) de formas européias ao meio tropical, representou um

contemporização com as novas condições de vida e ambiente”. (p. 35).

Nesse prefácio o autor fala da diferença entre o português do reino e o

português do Brasil, tornado luso-brasileiro que, citando Capistrano de Abreu,

provém do ‘transacionismo’ e torna-se “fundador de uma nova ordem econômica e

social; o criador de um novo tipo de habitação”. Este, “na formação brasileira, agiu

do alto das casas-grandes, que foram centros de coesão patriarcal e religiosa: os

pontos de apoio para a organização nacional”. (p. 36).

I.Características gerais da colonização portuguesa do Brasil: formação de

uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida

Neste primeiro capítulo de Casa-grande & senzala, Gilberto Freyre faz uma

análise dos fatores que possibilitaram a fixação e colonização portuguesa no Brasil.

Essa análise tem como ponto de partida as características do português que define

como:

“A singular predisposição do português para a colonização híbrida e

escravocrata dos trópicos, explica-a em grande parte o seu passado étnico,

ou antes, cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África” (p.66).

Essa posição de “indecisão étnica”, por vezes traduzidos em

“bicontinentalidade” ou “dualismo de cultura e raça”, tornaram-se fatores que

dotaram o português de atributos essenciais à colonização dos trópicos ao delinear

no seu caráter a flexibilidade. Sobre o equilíbrio entre os antagonismos resultantes

das duas culturas, a européia e a africana, Freyre destaca que entre:

“(...) a católica e a maometana, a dinâmica e a fatalista encontrando-

se no português, fazendo dele, de sua vida, de sua moral, de sua economia,

de sua arte um regime de influências que se alternam, se equilibram ou se

hostilizam. Tomando em conta tais antagonismos de cultura, a flexibilidade,

a indecisão, o equilíbrio ou a desarmonia deles resultantes, é que bem se

compreende o especialíssimo caráter que tomou a colonização brasileira,

igualmente equilibrada nos seus começos e ainda hoje sobre

antagonismos.” (p.69).

Freyre chama a atenção para uma das heranças recebidas pelos portugueses:

“(...) gente de uma mobilidade, de uma plasticidade, de uma

adaptabilidade tanto social como física (...). (...) o elemento semita, (...), terá

dado ao colonizador português do Brasil algumas das suas principais

condições físicas e psíquicas de êxito e de resistência.” (p. 60-70).

Dessa herança é que Portugal, reino de parco capital humano, enfraquecido

por epidemias, fome e guerras, conseguiu superar-se e impor-se quanto

colonizadores. Assim assinala Freyre a esse ímpeto de superação:

“dominando espaços enormes e onde quer que pousassem, na África

ou na América, emprenhando mulheres e fazendo filhos, em uma atividade

genésica que tanto tinha de violentamente instintiva da parte do indivíduo

quanto de política, de calculada, de estimulada por evidentes razões

econômicas e políticas da parte do Estado. (...) A miscibilidade, mais do que

a mobilidade, foi o processo pelos quais os portugueses compensaram-se

da deficiência em massa ou volume humano para a colonização em larga

escala e sobre áreas extensíssimas.” (p.70-71).

Quando Gilberto Freyre conduz sua análise para a colonização do Brasil,

avalia como outro fator favorável de adaptação do português nesta terra, a

aclimatabilidade:

“Nas condições físicas de solo e de temperatura, Portugal é antes

África do que Europa. O chamado ‘clima português’ de Martone, único na

Europa, é um clima aproximado do africano. Estava assim o português

predisposto pela sua mesma mesologia ao contato vitorioso com os trópicos:

seu deslocamento para as regiões quentes da América não traria as graves

perturbações da adaptação nem as profundas dificuldades de aclimatação

experimentadas pelos colonizadores vindos de países de clima frio.” (p72).

No percurso de avaliação da formação colonizadora portuguesa, Freyre usa

constantemente de comparação com a forma de colonização inglesa, espanhola,

holandesa e outros países europeus. Destes destaca que estudos demonstram que

todas as tentativas de estabelecerem-se nos trópicos resultaram em fracassos.

Além do fator climático, menciona estudos que atribuem esse fracasso em razão

desses europeus terem o objetivo de estabelecer no Brasil uma “colônia

exclusivamente branca”. Outros, por sua vez, discordam desse “caráter de genuína

expansão étnica” atribuindo-lhes antes interesses de “exploração econômica ou

domínio político”. Porém, dentre os aspectos que se fizeram favoráveis ou

desfavoráveis à colonização nos trópicos o autor assinala:

“de formação portuguesa é a primeira sociedade moderna constituída

nos trópicos com características nacionais e qualidades de permanência.”

(p.73).

Quando se refere às condições locais, sejam morfológicas, meteorológicas

ou geológicas, com as quais se deparam o colonizador, Freyre destaca que há que

se considerar o:

“clima irregular, palustre, perturbador do sistema digestivo: clima na

sua relação com o solo desfavorável ao homem agrícola e particularmente

ao homem europeu, por não permitir nem a prática de sua lavoura tradicional

regulada pelas quatro estações do ano nem a cultura vantajosa daquelas

plantas alimentares a que ele estava desde há muitos séculos habituado.”

(p.76).

Prossegue destacando que a realidade que aqui o colonizador encontrou

difere do “entusiasmo do primeiro cronista” (Pero Vaz de Caminha):

“Tudo aqui era desequilíbrio. Grandes excessos e grandes

deficiências, as da nova terra. O solo, excetuadas as manchas de terra preta

ou roxa, de excepcional fertilidade, estava longe de ser o bom de se plantar

nele tudo o que se quisesse, (...). Em grande parte rebelde à disciplina

agrícola. Os rios outros inimigos da regularidade do esforço agrícola e da

estabilidade da vida da família. Enchentes mortíferas e secas esterilizantes –

tal o regime das suas águas. E pelas terras e matagais de tão difícil cultura

como pelos rios quase impossíveis de ser aproveitados economicamente na

lavoura, na indústria ou no transporte regular de produtos agrícolas – viveiros

de larvas, multidões de insetos e de vermes nocivos ao homem.” (p.77).

Avalia que foi dentro dessas condições adversas que se empreendeu o

processo civilizador da colonização portuguesa. Também ao português coube a

inovação no processo de exploração dos trópicos que até então se atinha ao

comércio através de feitorias ou extração de riqueza mineral para a criação local de

riqueza. Destaca a diferença política de colonização entre portugueses e espanhóis

e ingleses, sendo que estes adotaram a de “extermínio e segregação” das raças

nativas:

“No Brasil os portugueses iniciaram a colonização em larga escala

dos trópicos por uma técnica econômica e por uma política social

inteiramente novas (...). A primeira: a utilização e o desenvolvimento de

riqueza vegetal pelo capital e pelo esforço do particular; a sesmaria; a

grande lavoura escravocrata. A segunda: o aproveitamento da gente nativa,

principalmente da mulher, não só como instrumento de trabalho, mas como

elemento de formação de família.” (p. 79).

Quanto ao processo de formação social infere:

“A nossa verdadeira formação social se processa a partir de 1532 em

diante, tendo a família rural ou semi-rural por unidade (...). Vivo e absorvente

órgão da formação social brasileira, a família colonial reuniu, sobre a base

econômica da riqueza agrícola e do trabalho escravo, uma variedade de

funções sociais e econômicas. Inclusive, (...), a do mando político: o

oligarquismo ou nepotismo, que aqui madrugou, chocando-se ainda em

meados do século XVI com o clericalismo dos padres da Companhia.” (p.85).

Freyre esclarece que:

“Pela presença de um tão forte elemento ponderador como a família

rural ou, antes, latifundiária, é que a colonização portuguesa do Brasil tomou

desde cedo rumo e aspectos sociais tão diversos da teocrática, idealizada

pelos jesuítas.” (p.85).

Essa mudança de postura saída da base de colonização comercial para a

rural não ocorreu de forma espontânea, mas pelas circunstâncias, dado que no

Brasil “terra e homem estavam em estado bruto”, desfavorecendo-lhes o intercurso

comercial, conforme se procedia no oriente. Assim, definida a base de fixação dos

colonizadores, delinearam o modo de instalação onde:

“Tanto mais rica em qualidade e condições de permanência foi a

nossa vida rural do século XVI ao XIX onde mais regular foi o suprimento de

água; onde mais equilibrados os rios ou mananciais.” (p.88).

Porém, salienta Freyre, “prolongou-se no brasileiro a tendência de derramar-

se em vez de condensar-se. (...) derramamo-nos em superfície antes de nos

desenvolvermos”, referindo-se à expansão colonial através da fundação de

subcolônias na ânsia da extensão populacional aventureira ou em empresa

capitalista. Desta feita Freyre também aponta os antagonismos vividos:

“Se é certo que o furor expansionista dos bandeirantes conquistou-nos

verdadeiros luxos de terras, é também exato que nesse desadoro de

expansão comprometeu-se a nossa saúde econômica e quase se

comprometia a nossa unidade política.”, porém, complementa Freyre: “A

mesma mobilidade que nos dispersa desde o século XVI em paulistas e

pernambucanos, ou paulistas e baianos, e daí ao século XIX em vários

subgrupos, mantém-nos em contato, em comunhão mesmo, através de difícil

mas nem por isso infreqüente intercomunicação colonial.” (p.89).

Freyre argumenta que:

“os portugueses não trazem para o Brasil sem separatismos políticos,

como os espanhóis para o seu domínio americano, nem divergências

religiosas, como ingleses e franceses para as suas colônias”. (p. 90).

Complementado que às autoridades o que importava era a religião. Contato

que fossem cristãos católicos a colônia do Brasil encontrou-se aberta, inclusive a

estrangeiros, em quase todo o século XV. Quanto a esse pressuposto Freyre

coloca que:

“Temia-se no adventício acatólico o inimigo político capaz de quebrar

ou enfraquecer aquela solidariedade que em Portugal se desenvolvera junto

com a religião católica. Essa solidariedade manteve-se entre nós

esplendidamente através de toda nossa formação colonial, reunindo-nos

contra calvinistas franceses, contra os reformados holandeses, contra os

protestantes ingleses. Daí ser tão difícil, (...), separar o brasileiro do católico:

o catolicismo foi realmente o cimento da nossa unidade.” (p.91-92).

A colônia brasileira passa então a ser regionalista, cada qual se adaptando

às características locais, porém mantendo-se a tendência à uniformização. O

antagonismo se manifestaria de outra forma, conforme observa Freyre:

“O antagonismo econômico se esboçaria mais tarde entre os homens

de maior capital, que podiam suportar os custos da agricultura da cana e da

indústria do açúcar, e os menos favorecidos de recursos, obrigados a se

espalhar pelos sertões em busca de escravos – espécie de capital vivo – ou

a ficarem por lá, como criadores de gado. Antagonismo vasto que a terra

pôde tolerar sem quebra do equilíbrio econômico. Dele resultaria, entretanto

o Brasil antiescravocrata ou indiferente aos interesses da escravidão

representados pelo Ceará em particular, e de modo geral pelo sertanejo ou

vaqueiro.” (p.93).

As diferenças econômicas regionais se apresentam com o deslocamento do

cultivo da cana-de-açucar para a exploração de minas na capitânia de Minas Gerais

e cultivo cafeeiro em São Paulo, mantendo-se o primeiro no nordeste. Ao nordeste

coube maior e intensa exploração da mão-de-obra escrava, argumenta Freyre, o

que resultou “em profunda diferença de cultura regional”.

De modo geral, argumenta Freyre:

“Na formação da nossa sociedade, o mau regime alimentar decorrente

da monocultura, por um lado, e por outro da inadaptação ao clima, agiu

sobre o desenvolvimento físico e sobre a eficiência econômica do brasileiro

no mesmo mau sentido do clima deprimente e solo quimicamente pobre. A

mesma economia latifundiária e escravocrata que tornou possível o

desenvolvimento econômico do Brasil, sua relativa estabilidade em contraste

com as turbulências nos países vizinhos, envenenou-o e perverteu-o nas

suas fontes de nutrição.” (p. 96).

Freyre desmistifica de maneira incisiva o país da narrativa de Capistrano de

Abreu:

“País de Cocagne coisa nenhuma: terra de alimentação incerta e vida

difícil é que foi o Brasil dos três séculos coloniais. A sombra da monocultura

esterilizando tudo. Os grandes senhores rurais sempre endividados. As

saúvas, as enchentes, as secas dificultando ao grosso da população o

suprimento de víveres.” (p. 101).

Sob essas condições Freyre infere:

“Não só na Bahia, em Pernambuco e no Maranhão como em Sergipe

del-Rei e no Rio de Janeiro verificou-se com maior ou menor intensidade,

através do período colonial, o fenômeno, tão perturbador da eugenia

brasileira, da escassez de víveres frescos, que animais quer vegetais.”

(p.103).

A exceção Freyre apresenta São Paulo, atribuindo-lhe favoravelmente

condições geológicas e meteorológicas que contribuem para o desenvolvimento

agrícola generalizado, inclusive do trigo, bem como provável superioridade química

do solo, o que propiciam maior enriquecimento na qualidade alimentar. Além

desses fatores o paulista diferencia-se por não ser gente dada ao ruralismo, e sim

“semi-ruralistas e gregária”; ainda, por não se aterem `monocultura latifundiária,

prevalecendo entre eles a atividade tanto agrária quanto pastoril.

Precisamente, na formação nutricional do brasileiro, a melhor influência

Freyre atribui ao africano:

“quer através dos valiosos alimentos, principalmente vegetais, que por

seu intermédio vieram-nos da África, quer através do seu regime alimentar,

melhor equilibrado do que o do branco.” (p.107).

Além dessa peculiaridade do africano, o senhor de engenho tinha o interesse

deles retirar o máximo de esforço possível com relação à capacidade produtiva da

sua mão-de-obra, daí fornecer-lhes alimentação farta, dentro das possibilidades de

então. A estes havia a abundância de milho, toucinho e feijão. Daí Freyre

considerar o escravo negro no Brasil como “o elemento melhor nutrido em nossa

sociedade patriarcal”.

Quanto à mistura de raças, Freyre fala da mistura das três raças, do branco,

do índio e do negro:

“A suposta imunidade absoluta do sertanejo do sangue ou da

influência africana não resiste ao exame demorado. (...). Um estudo

interessantíssimo a fazer seria a localização de redutos de antigos escravos

que teriam borrado de preto, hoje empalidecido, muita região central do

Brasil. Essas concentrações de negros puros correspondem

necessariamente a manchas negróides no seio de populações afastadas dos

centros de escravaria. Escasseavam entre os escravos fugidos as mulheres

de sua cor, recorrendo eles, para suprir a falta, ‘ao rapto das índias’ ou

caboclas de povoados e aldeamentos próximos(...).” (p.109).

Sobre o escravo africano o autor coloca que:

“Os escravos negros gozaram sobre os caboclos e brancarões livres

da vantagem e condições de vida antes conservadoras que

desprestigiadoras da sua eugenia: puderam resistir melhor às influências

patogênicas, sociais e do meio físico e perpetuar-se assim em

descendências, mais sadias e vigorosas.” (p. 109)

Freyre infere que “à vantagem da miscigenação correspondeu no Brasil a

desvantagem tremenda da sifilização”. Como deformação patológica e social Freyre

coloca a sifilização ante a civilização do colonizador europeu:

“De todas as influências sócias talvez a sífilis tenha sido, depois da

má nutrição, a mais deformadora plástica e a mais depauperadora da

energia econômica do mestiço brasileiro. Sua ação começou ao mesmo

tempo que da miscigenação; vem, segundo parece, das primeiras uniões de

europeus, desgarrados à-toa pelas nossas praias, com índias que iam elas

próprias oferecer-se ao amplexo sexual dos brancos.” (p.110).

É sob esse ponto de vista da miscigenação que Freyre coloca como

preparador para o processo de colonização que resultaria numa formação

poligâmica do brasileiro. Adentrando a abordagem sobre a vida sexual no Brasil

colônia, Freyre destaca que:

“Uma espécie de sadismo do branco e de masoquismo da índia ou da

negra terá predominado nas relações sexuais como nas sociais do europeu

com as mulheres das submetidas ao seu domínio. (...) Através da submissão

do moleque, seu companheiro de brinquedos e expressivamente chamado

leva pancadas, iniciou-se muitas vezes o menino branco no amor físico.”

(p.113).

Desse comportamento Gilberto Freyre vislumbra heranças do período

colonial:

“Resultado da ação persistente desse sadismo, de conquistador sobre

conquistado, de senhor sobre escravo, parece-nos de fato, ligado

naturalmente à circunstância econômica da nossa formação patriarcal, da

mulher ser tantas vezes no Brasil vítima inerme do domínio ou do abuso do

homem; (...). Por outro lado,, a tradição conservadora no Brasil sempre se

tem sustentado do sadismo do mando, disfarçado em ‘princípio de

Autoridade’ ou ‘defesa da Ordem’. Entre essas duas místicas – a da Ordem e

a da Liberdade, a da Autoridade e a da Democracia – é que se vem

equilibrando entre nós a vida política, precocemente saída do regime de

senhores e escravos.” (p. 114-115).

Enfim, Freire avalia:

“(...) resta-nos destacar na formação brasileira: a de não se ter

processado no puro sentido da europeização. Em vez de dura e seca,

rangendo do esforço de adaptar-se a condições inteiramente estranhas, a

cultura européia se pões em contato com a indígena, amaciada pelo óleo da

mediação africana.” (p.115).

Gilberto Freyre neste primeiro capítulo de Casa-grande & senzala nos

leva à compreensão da formação da sociedade brasileira e do movimento da

sociedade escravocrata. Numa linguagem única nos faz conhecer esse

constante “processo de equilíbrio e antagonismos”.

II.O indígena na formação da família brasileira

Gilberto Freyre inicia este capítulo constatando o fato de que:

“com a intrusão européia desorganiza-se entre os indígenas da América a

vida social e econômica; desfaz-se o equilíbrio nas relações do homem com

o meio físico.” (p. 157).

Inicia-se então o processo civilizatório dessa raça. Freyre destaca que

diferentemente dos espanhóis que se engendraram num processo de “dissolução

dos valores nativos”; os ingleses que demonstraram aversão à proximidade com os

nativos por preconceito de raça e moral cristã; por sua vez, os portugueses

desprovidos do espírito de fúria dos primeiros e menos rígidos que os segundos,

dotados de um espírito aventureiro, ao se depararem com uma cultura

“adolescente”, sem esboçarem resistências, ao contrário, demonstrando-se

receptivos e dóceis, permitiram-se então (os portugueses) contemporizar com os

nativos.

“(...) entre os indígenas das terras do pau-de-tinta outras foram as condições

de resistência ao europeu: resistência não mineral mas vegetal. Por sua vez

o invasor pouco numeroso foi desde logo contemporizando com o elemento

nativo; servindo-se do homem para as necessidades de trabalho e

principalmente de guerra, de conquista dos sertões e desbravamento de

mata virgem; e da mulher para as de geração e de formação da família.” (p.

158).

Segundo Freyre, a falta de capacidade técnica e política de reação por

parte dos indígenas não é contestada por estes em forma de agressividade o que

desperta a sensibilização por parte dos portugueses. O autor destaca quatro

características atribuídas às regiões em vias de colonização da América, com

observações de Ruediger Bilden:

“O primeiro grupo seria o formado pelas repúblicas (...) do Prata e do

Chile. (...), [onde] ‘o clima e as condições físicas em geral encorajaram o tipo

de colonização mais favorável ao desenvolvimento da sociedade

predominantemente européia.’ (...).

O segundo grupo seria ‘o que o Brasil tipifica quase sozinho (...);

região onde o elemento europeu nunca se encontrou em “situação de

absoluto domínio”. “Por mais rígido, (...), que fosse o seu domínio econômico

e político sobre os outros elementos étnicos, social e culturalmente os

portugueses foram forçados pelo meio geográfico e pelas exigências da

política colonizadora a competirem com aqueles numa base

aproximadamente igual.”

O terceiro grupo seria o representado pelo México ou pelo Peru, onde

o conflito do europeu com as civilizações indígenas já desenvolvidas, a

presença de riquezas minerais, o sistema colonial de exploração resultaram

antes em ‘justaposição e antagonismo de raças’ do que em ‘harmonioso

amalgamento’; (...).

O quarto grupo seria o constituído pelo Paraguai, pelo Haiti e

‘possivelmente pela República dominicana’. (...) ‘o elemento europeu é

quando muito um verniz’. Representa uma ‘incongruente mistura cultural de

substância francamente índia ou negróide com fragmentos ou elementos

mal-assimilados de origem européia’.” (p. 159).

Freyre dá ênfase ao hibridismo no Brasil, por ser a sociedade brasileira entre

“todas da América a que se constituiu mais harmoniosamente quanto às relações

de raça”. Entre os vários autores estudados, observa a prevalência do pensamento

de que o homem português encontra na mulher índia não só o abrasamento de

suas necessidades sexuais, mas também uma forma política de aumentar o

povoamento em terras brasileiras, tendo em vista a escassez de mulheres brancas.

Além de que os portugueses que para cá vieram eram plebeus e economicamente

desprovidos e sem a consciência social dos fidalgos. Citando Basílio de Guimarães,

considera que:

“só a partir do século XVI (...) pode considerar-se formada, (...), ‘a primeira

geração de mamelucos’; os mestiços de portugueses com índios, com

definido valor demogênico e social.” (p. 162).

Da mulher índia, Freyre destaca:

“À mulher gentia temos que considerá-la não só a base física da

família brasileira, (...), mas valioso elemento de cultura, pelo menos material,

na formação brasileira. Por seu intermédio enriqueceu-se a vida no Brasil,

(...), de uma série de alimentos ainda hoje em uso, de drogas e remédios

caseiros, de tradições ligadas ao desenvolvimento da criança, de um

conjunto de utensílios de cozinha, de processos de higiene tropical. (...). (...)

[o uso da] rede. (...). O brasileiro de hoje, amante do banho e sempre de

pente e espelhinho no bolso, o cabelo brilhante de loção de coco, reflete a

influência de tão remotos avós.” (p. 162-3).

Do homem índio, seu estudo leva a considerar:

“(...) a contribuição (...) do homem. Foi formidável: mas só na obra de

devastamento e de conquista dos sertões, de que ele foi o guia, o canoeiro,

o guerreiro, o caçador e pescador. Muito auxiliou o índio ao bandeirante

mameluco, os dois excedendo ao português em mobilidade, atrevimento e

ardor de guerreiro; sua capacidade de ação e de trabalho falhou, (...).

Compensou-se o índio, amigo ou escravo dos portugueses, da inutilidade no

esforço estável e contínuo pela extrema bravura no heróico militar. Na obra

de sertanismo e de defesa da colônia contra espanhóis, contra tribos

inimigas dos portugueses, contra corsários.” (p. 163).

Quanto à contribuição do sistema de plantação indígena, o aproveitamento

da colonização agrária foi tão somente quanto ao processo de queimada para

preparação do solo com fins agrícolas, a coivara. Contribuição mínima pelo fato de

uma cultura nômade, aliado ao fator de que o pouco de lavoura que se cultivava era

uma função desdenhada pelos índios e atribuída às mulheres em suas atividades

consideradas domésticas. “Daí não terem as mulheres índias dado tão boas

escravas domésticas quanto as africanas”.

No que diz respeito à cultura, Freyre da ênfase aos traços das tribos do

Nordeste do Brasil, por considerar muitos deles extensivos a quase todo o Brasil,

observando, porém, a sua não generalização por existirem singularidades em

outras regiões. Destaca a observação minuciosa de Whiffen que sintetiza as

culturas indígenas com base na cultura das tribos do Nordeste do Brasil, assim

descrita:

“caça, pesca, cultura de mandioca, tabaco e coca, e em menor extensão o

milho, inhame ou cará, jerimum, pimenta; os campos clareados a fogo e

cavados a pau e não à enxada; nenhum animal doméstico; toda vida animal

aproveitada como alimento; uso do mel, havendo certa domesticação de

abelhas; (...); hábito de comer barro; canibalismo; sinais por meio de

tambores; decorações fálicas, redes de fibra de palmeira; cerâmica; cestos;

nenhum metal; pouco uso da pedra; instrumentos de madeira; canoas

cavadas na madeira; árvores derrubadas por meio de cunhas; grandes pilões

de pau para pisar coca, tabaco e milho; freqüente deslocamento de

habitações e de lavouras; comunidades inteiras em uma casa só, grande e

quadrangular, coberta de palha, quatro caibros sustentando-a no interior,

sem chaminé; o terreno em redor da casa limpo, mas esta escondida no

meio do mato e só acessível por caminhos e veredas confusas; nenhuma

indumentária, a não ser de casca de árvore para os homens; pentes para as

mulheres feitos de pedaços de palmeira; colares de dentes humanos;

ligaduras decorativas para o corpo, fusos atravessados no nariz, chocalho

atado às pernas, pintura elaborada do corpo; espécie de conferência ou

conclave em torno de uma bebida negra; de tabaco, antes de iniciar-se

qualquer empresa importante, de guerra ou de paz; couvade; proibição às

mulheres de se associarem às cerimônias mais sérias e de estarem

presentes às de iniciação dos meninos na puberdade; os nomes de pessoa

não pronunciados alto e os dos caracteres míticos apenas sussurrados;

principal função seria, entretanto, tirar espíritos maus; duas grandes

cerimônias para celebrar épocas de colheita ou de amadurecimento de

frutas, a da mandioca e do abacaxi; os meninos cruelmente espancados nas

cerimônias de puberdade; prova das formigas mordedeiras; os

ressentimentos ou mágoas do indivíduo por ele formalmente apresentados

ao grupo; uma espécie de dança de ciranda; gaita, flauta, castanhola e

maracá; cada um dos grupos acomodados em uma só habitação, exógamo;

descendência por via paterna; monogamia; cada habitação com um chefe,

sendo o conselho formado por todos os adultos do sexo masculino; contos

com semelhança ao do folclore europeu; contos de animais fazendo lembrar

os do lore africano; o Sol e a Lua, venerados; os mortos sepultados.” (p. 166-

7)

Freyre a seguir dará relevância aos “traços que se comunicaram à cultura e

à vida do colonizador português”, como:

“(...) esse de variar marido de mulher e mulher de marido, com o qual não

podia transigir, nem transigia no Brasil , a moral católica (...). (...) o

desregramento do conquistador europeu veio encontrar-se em nossas praias

com a sensualidade (...) da índia (...)” (p.168-9).

“Longe de ser o livre animal imaginado pelos românticos, o selvagem da

América, aqui surpreendido em plena nudez e nomadismo, vivia no meio de

sombras de preconceito e medo; muitos dos quais nossa cultura mestiça

absorveu, (...). É assim que a noção de caiporismo, (...), deriva-se da crença

ameríndia no gênio agourento do caipora; este era um cabloquinho nu,

andando de uma banda só, e que quando aparecia aos grandes era sinal

certo de desgraça. Sumiu-se o caipora, deixando em seu lugar o caiporismo,

do mesmo modo que desapareceram os pajés, deixando atrás de si primeiro

as ‘santidades’ do século XVI, depois várias formas de terapêutica e de

animismo, muitas delas hoje incorporadas, junto com sobrevivências de

magia ou de religião africana, ao baixo espiritismo, que tanta concorrência à

medicina à européia e ao exorcismo dos padres, nas principais cidades e por

todo o interior do Brasil.” (p. 172).

“No trajo popular do brasileiro rural e suburbano – a gente pobre moradora

do mucambo ou de tapujar – como na sua dieta, na vida íntima, na arte

doméstica, na atitude para com as doenças, os mortos, as crianças recém-

nascidas, as plantas, os animais, os minerais, os astros etc., subsiste muita

influência do fetichismo, do totemismo, da astrologia em começo e dos tabus

ameríndios.” (p. 172).

Ao considerar o choque entre a cultura européia e a amerínda, Freyre

destaca a predominância européia e católica. O contato com o europeu representou

para a cultura indígena a sua dissolução.

“Entre as populações nativas da América, dominadas pelo colono e

missionário, a degradação moral foi completa, como sempre acontece ao

juntar-se uma cultura, já adiantada, com outra atrasada.” (p. 177).

Freyre observa que as ações dos missionários incumbem-se do poder

destruidor de culturas que não as européias. Com fins que consideravam de

puritanismo, procederam sufocando muitos dos costumes indígenas:

“os cantos indígenas, de um agreste sabor, substituíram-nos os jesuítas por

outros, compostos por eles, secos e mecânicos, cantos devotos, sem falar

de amor, apenas em Nossa Senhora e nos santos. À naturalidade das

diferentes línguas regionais superimpuseram uma só, a ‘geral’. Entre os

cablocos ao alcance da sua catequese acabaram com as danças e os

festivais mais impregnados dos instintos, dos interesses e da energia animal

da raça conquistada, só conservando uma ou outra dança, apenas graciosa,

de culumins. (...) Ainda mais, procuraram destruir, ou pelo menos castrar,

tudo o que fosse expressão viril de cultura artística ou religiosa em

desacordo com a moral católica e com as convenções européias. (...). (...)

povos acostumados à vida dispersa e nômade sempre se degradam quando

forçados à grande concentração e à sedentariedade absoluta.” (p. 178-9).

O autor assinala que o propósito europeizante dos missionários católicos dos

séculos XVI e XVII, foram substituídos posteriormente pela maior rigidez dos

presbiterianos e metodistas. Freyre considera destacável a classificação de pelo

menos nove ajustes de responsabilidades européias na degradação da raça e da

cultura indígena no Brasil, a saber:

“1) a concentração dos aborígenes em grandes aldeias (...); 2) vestuário à

européia (...); 3) segregação nas plantações; 4) obstáculo ao casamento à

moda indígena; 5) aplicação de legislação penal européia a supostos crimes

de fornicação; 6) abolição de guerras entre as tribos; 7) abolição da

poligamia; 8) aumento da mortalidade infantil devido as novas condições de

vida; 9) abolição do sistema comunal e da autoridade dos chefes

(acrescentemos: da autoridade dos pajés, mais visados que aqueles pela

rivalidade religiosa dos padres e mais importantes que os morubixabas).” (p.

179-80).

Freyre prossegue esmiuçando as conseqüências dessas ações e as

contradições apresentadas. Observa que a obrigatoriedade de vestimenta veio a

interferir no hábito de higiene indígena, que acostumados à nudez a ao banho por

diversas vezes ao dia, viram-se obrigados a cobrirem com uma única roupa de que

dispunham até que esta se desmanchasse pelo uso freqüente e sujeira acumulada.

Por trás da exigência moral os europeus, além da aversão pelo banho, ocultavam

por baixo de suas vestimentas as manchas de sífilis, doença contagiosa e

disseminada na Europa, e que viriam a transmitir para os índios.

Sobre a divisão sexual do trabalho, seu estudo assim descreve, algumas

atividades exclusivas de homens, outras exclusivas de mulheres, uma poucas

mistas, e, ainda, outras executadas pelo “homem invertido” ou bissexual. Descreve

as observações de Thomas:

“entre os primitivos o homem é a atividade violenta e esporádica; a mulher, a

estável, sólida, contínua. Funda-se esse antagonismo na organização física

da mulher, que a habilita antes à resistência que ao movimento. Antes à

agricultura e à indústria que à caça e à guerra. Daí a atividade agrícola e

industrial desenvolver-se quase sempre pela mulher; pela mulher

desenvolver-se a própria técnica da habitação, a casa; e em grande parte a

domesticação de animais. Mesmo a magia e a arte, se não se desenvolvem

principalmente pela mulher, desenvolvem-se pelo homem efeminado ou

bissexual, que à vida de movimento e de guerra de homem puro prefere à

doméstica e regular da mulher. Os indígenas do Brasil estavam, pela época

da descoberta, ainda na situação de relativo parasitismo do homem e

sobrecarga da mulher. (p. 186).

Quanto ao à homossexualidade ou bissexualidade, o autor esclarece que

esses povos desconheciam o preconceito, e que em vez de desprezo ou

ridicularização, os efeminados eram respeitados por serem considerados dotados

de poderes e virtudes extraordinárias. Assim descreve:

“(...) não raro assumirem os homo ou bissexuais posição de mando ou

influência nas sociedades primitivas; (...). (...) muitas das mais importantes

diferenciações de vida social teriam decorrido de variações de natureza

sexual; (...). Teriam os homo e os bissexuais desempenhado valiosa função

criadora, lançando as bases de ciências, artes e religiões. Teriam sido os

profetas, os videntes, os curandeiros, os médicos, os sacerdotes, os artistas

plásticos.” (p. 187-8)

Sobre a homomixia, Freyre fala das evidências em várias sociedades

primitivas da América, talvez pelo fato do ritmo guerreiro em que viviam e que

propiciasse o intercurso sexual de homem com homem e até mesmo de mulher

com mulher. Foram várias as hipóteses levantadas por estudiosos para essa

inclinação, porém nenhuma conclusiva. A de perversão congênita; a escassez ou

privação de mulher; segregação ou internato dos jovens nas casas secretas dos

homens. Porém, para o Santo Oficio considerado crime de Sodomia.

Num outro momento, Gilberto Freyre fala da culinária indígena em riqueza de

detalhes sobre costumes, preferências e influências na alimentação do brasileiro,

muitas vezes misturadas ou fundidas com a culinária africana. Os utensílios

utilizados era a própria inda quem os fabricava.

“Ainda hoje o vasilhame de qualquer casa brasileira do norte ou do centro do

Brasil contém numerosas peças de origem ou feitio puramente indígena. (...)

Das comidas preparadas pela mulher as pricipais eram as que faziam com a

massa ou a farinha de mandioca. (...) A farinha adotaram-na os colonos em

lugar do pão de trigo, (...). (...). Ainda hoje a mandioca é o alimento

fundamental do brasileiro e a técnica do seu fabrico permanece, entre

grande parte da população, quase a mesma dos indígenas.” (p. 190-1).

Freyre fala da influência pelo gosto de consumo do peixe, principalmente na

Amazônia. O modo de preparo que se generalizou no Brasil, o da pokeka

abrasileirado para moqueca. O gosto pelo consumo da tartaruga, sendo que no

extremo-norte há uma variedade de pratos dessa carne. Também o uso da

pimenta, muito utilizado na culinária brasileira, aguçado pela influência africana. O

consumo do palmito, tanto cru quanto cozido. Doa frutos, como a cultura do

mamoeiro e do araçazeiro, além do caju com uma série de aplicações medicinais e

culinárias.

Sobre plantas e ervas medicinais, Freyre destaca que se não fosse a

interferência dos missionários o aproveitamento pela cultura brasileira poderia ter

sido maior. Ainda assim, alguns estudiosos registram a influência de curativos

indígenas como:

“carimã desfeita na água para meninos que têm lombriga ou para indivíduo

tocado por peçonha (...); milho cozido para doentes de boubas; sumo de caju

pela manhã, em jejum, para ‘conservação do estômago’, higiene da boca

(...); olho de embaíba para curar feridas e chagas velhas; emplastros de

almécega para ‘soldar carne quebrada’; petume para mal do sesso e, sorvido

o seu fumo por um canudo de palha, aceso na ponta (...) excelente para

‘todo homem que se toma de vinho’.” (p. 197).

Entre outros conhecimentos e influências indígenas absorvidos pelos

colonizadores, o autor assim descreve:

“o conhecimento de várias fibras para tecelagem ou entrançado – o algodão,

o tucum, o caraguatá-bravo; o de peipeçaba para fazer vassouras; o de

abóboras semeadas pelo gentio especialmente para servirem-se dos

cabaços como vasilhas de carregar água e guardar farinha, como gamelas e

parece que como urinóis; o método de curar jerimum no fumo para durar o

ano inteiro; o conhecimento de várias madeiras e outros elementos vegetais

de construção, como cipó, o timbó e o sapé ou a palha de pindoba,

empregada por muito tempo na cobertura das casas: o de animais, pássaros,

peixes, mariscos etc., valiosos para a alimentação, prestando-se ao mesmo

tempo os seus cascos, penas, peles, lanugem ou couro a vários fins úteis na

vida íntima e diária da família colonial; para cuias, agasalho, enchimento de

travesseiros, almofadas, colchões, redes; o de junco de tábua, material

excelente para esteiras; o da tinta de várias cores, logo empregadas na

caiação das cascas, na tintura de panos, na pintura do rosto das mulheres,

no fabrico de tintas de escrever o branco de tabatinga, o encarnado de

araribá, de pau-brasil e de urucu; o preto de jenipapo, o amarelo de tatajuba;

o conhecimento de gomas e resinas diversas – prestando-se para grudar

papéis, cerrar cartas à maneira de lacre etc.” (p. 198).

Sobre o sistema de educação dos meninos, Freyre observa que tanto em

sociedades civilizadas quanto primitivas encontra-se alusão a maus tratos

atribuídos a fins moralizadores ou pedagógicos. Os indígenas inculcavam medo

aos meninos para incutir-lhes sentimentos de obediência e respeito. Exemplifica a

criação de personagens amendrontadores que dançavam usando máscaras,

simbolizando criaturas de outro mundo que aqui vieram para devorar ou arrebatar

meninos maus. Estes mascarados imitavam os movimentos e a voz de animal

demoníaco. Eles tinham o fim de manter em boa ordem tanto mulheres quanto

crianças. Pois, segundo Freyre, o menino indígena se via livre de castigos corporais

e de disciplina materna ou paterna, havendo, entretanto, severa disciplina por parte

dos mais velhos.

“São sobrevivências fáceis de identificar, uma vez raspado o verniz de

dissimulação ou simulação européia:e onde muito se acusam é em jogos e

brinquedos de criança com imitação de animais (...). Também nas histórias e

contos de bichos (...) Por uma espécie de memória social, como que

herdada, o brasileiro, sobretudo na infância, quando mais instintivo e menos

intelectualizado pela educação européia, se sente estranhamente próximo da

floresta viva, cheia de animais e monstros, que conhece pelos nomes

indígenas e, em grande parte, através das experiências e superstições dos

índios.” (p. 200)

Freyre destaca outras heranças da tradição indígena ao brasileiro:

“O gosto pelos jogos e brinquedos infantis de arremedo de animais: o próprio

jogo de azar, chamado do bicho, tão popular no Brasil, encontra-se na base

para tamanha popularidade no resíduo animista e totêmico de cultura

ameríndia reforçada depois pela africana. Há, entretanto, uma contribuição

ainda mais positiva do menino ameríndio aos jogos infantis e esportes

europeus: a da bola de borracha por ele usada em um jogo de cabeçada.” (p.

206).

Do processo de iniciação, Freyre revela a atividade era a de educação moral

e técnica do menino, bem como o seu preparo para as responsabilidades e

privilégios da vida adulta. A doutrinação contava com processos de flagelação

através de jejuns, vigílias e privações.

“Porque já possuíssem o complexo da flagelação, fácil lhes foi adaptarem-se

ao da penitência, introduzido pelos missionários, e no qual desde os

primeiros tempos se notabilizaram. (...). Vários jogos brasileiros de meninos

– entre os quais o da peia queimada e o da manja – refletem o complexo de

flagelação.” (p. 208-9).

Ainda, outros traços da vida indígena que sobrevivem na cultura brasileira,

aponta Freyre:

“também são freqüentes entre nós, os relapsos no furor selvagem, ou

primitivo de destruição, manifestando-se em assassinatos, saques, invasões

de fazendas por cangaceiros: (...). (...). Os relapsos em furor observamo-los

em movimentos de fins aparentemente políticos ou cívicos, mas na verdade

pretexto de regressão à cultura primitiva, recalcada porém não destruída.” (p.

212-3).

Freyre em outra observação (no mínimo intrigante), destaca:

“É natural que na noção de propriedade como na de outros valores, morais e

materiais, inclusive o da vida humana, seja ainda o Brasil um campo de

conflito entre antagonismos os mais violentos.” (p. 213).

No tocante à intercomunicação entre a cultura indígena e européia,

destacando que ao mesmo tempo em que eram mestres também eram discípulos

dos culumins, e estes também mestres dos seus pais, da sua gente:

“No Brasil o padre serviu-se principalmente do culumim, para recolher de sua

boca o material com que formou a língua tupi-guarani – o instrumento mais

poderoso de intercomunicação entre as duas culturas (...). Não somente de

intercomunicação moral como comercial e material. Língua que seria, com

toda a sua artificialidade, uma das bases mais sólidas da unidade do Brasil.”

(p. 219).

Da dualidade de línguas, o português e o tupi-guarani, sendo a primeira a

oficial e a outra a popular, revela:

“(...) dualidade que durou seguramente século e meio e que prolongou-se

depois, com outro caráter, no antagonismo entre a fala dos brancos das

casas-grandes e a dos negros das senzalas (...). (...). Tupis ficaram no Brasil

os nomes de quase todos os rios; de muitas das montanhas; de vários dos

utensílios domésticos.” (p. 220).

Sobre evasão dos índios, Freyre aponta:

“(...) fugindo não só à sedentariedade da segregação como à violências

civilizadoras, praticadas nas próprias aldeias de missionários, muitos dos

indígenas cristianizados deram para ganhar o mato (...). Situação que mais

se aguçou quando, desmontada a (...) máquina de civilização dos jesuítas,

os índios se encontraram, por um lado presos, pela moral que lhes fora

imposta, à obrigação de sustentar mulher e filhos, por outro lado em

condições econômicas de não poderem manter nem a si próprios. (...).

Causa de muito despovoamento foram ainda as guerras de repressão ou de

castigo levadas a efeito pelos portugueses contra os índios, com evidente

superioridade técnica.” (p. 225-6).

Quanto as doenças que foram acometendo os índios:

“As doenças novas, foram-nas atribuindo os índios, e não sem certa

razão, aos jesuítas. Em certos lugares, à aproximação dos padres,

queimavam pimenta e sal para esconjurá-los. (...) uma vez incorporados ao

sistema econômico do colonizador é que foi para eles demasiado brusca a

passagem do nomadismo à sedentariedade; da atividade esporádica à

contínua; é que neles se alterou desastrosamente o metabolismo ao novo

ritmo de vida econômica e de esforço físico.”” (p.227).

Freyre conclui este capítulo inferindo que:

“(...) o Brasil é dos países americanos onde mais se tem salvo da cultura e

dos valores nativos. O imperialismo português (...) se desde o primeiro

contato com a cultura indígena feriu-a de morte, não foi para abatê-la de

repente, com a mesma fúria dos ingleses na América do Norte. Deu-lhe

tempo de perpetuar-se em várias sobrevivências úteis.” (p. 231).

III.O colonizador português: antecedentes e predisposições

Neste capítulo Freyre irá discorrer sobre seu estudo, de forma mais profunda

e esmiuçada, buscando delinear a figura do colonizador português, já tratada no

capítulo I. Descreve o perfil do colonizador português, usando de parâmetro as

figuras dos espanhóis e ingleses, estes sim manifestamente hegemônicos em

detrimento à postura exagerada e parasitária do primeiro. Porém, apesar dessa

crítica, e da sua postura frouxa e aventureira, de quem valorizava mais o título de

doutor ao de imperador, o português conseguiu imprimir contornos de eficiência no

imperialismo colonizador. O Autor usa de uma linguagem rebuscada e até mesmo

literária para narrar o perfil do português e a sua empreitada colonizadora.

“O tipo contemporizador. Nem ideais absolutos, nem preconceitos

inflexíveis. O escravocrata que só faltou transportar da África para a América, (...), a

população inteira de negros, foi por outro lado o colonizador europeu que melhor

confraternizou com as raças chamadas inferiores. (...) Sem aguçar no

aristocratismo do castelhano, no que o português se antecipou aos europeu foi no

burguesismo. (...). Aristocrático, patriarcal, escravocrata. O português fez-se aqui

senhor de terras mais vastas, dono de homens mais numerosos que qualquer outro

colonizador da América. Essencialmente plebeu, ele teria falhado na esfera

aristocrática em que teve de desenvolver-se seu domínio colonial no Brasil. Não

falhou, antes fundou a maior civilização moderna nos trópicos.” (p.265-6-7).

No que se refere como motivo para o avanço colonizador peninsular, a

princípio sob o respaldo de profilaxia religiosa e civilizatória, estudos apontam não

serem estes o real fundamento. A mística religiosa fora sim utilizada como

instrumento de reconquista, um dos fatores que deu maior prestígio ao setor

eclesiástico em relação ao civil no espírito dessa gente peninsular:

“(...) a verdade é que o capital de instalação desse elemento aventureiro foi

muitas vezes o cativo de guerra moçárabe, e portanto cristão; o gado, a terra

e os bens desses seus correligionários, e não apenas infiéis.” (p. 270).

Já, no Brasil, isso não se sucederia dessa forma em razão de:

“As condições de colonização criadas pelo sistema político das

capitanias hereditárias e mantidas pelo econômico, das sesmarias e da

grande lavoura – condições francamente feudais – o que acentuaram de

superior aos governos e à justiça del-Rei foi o abuso do coito ou homizio

pelos grandes proprietários de engenhos; e não pelas catedrais e pelos

mosteiros.” (p. 270-1)

Mais adiante Freyre observa a repercussão dessa postura na constituição da

nossa formação social, informando que no Brasil não chega a haver clericalismo, e

que a igreja que age aqui é a de mosteiro e abadia, a capela de engenho:

“No Brasil, a catedral ou a igreja mais poderosa que o próprio rei seria

substituída pela casa-grande do engenho. Nossa formação social, tanto

quanto a portuguesa, fez-se pela solidariedade de ideal ou fé religiosa, que

nos supriu a lassidão de nexo político ou de mística ou consciência de raça.”

(p. 271)

Estudos mostram a possibilidade de subserviência, questionada, dos jesuítas

aos senhores de engenho, bem como a insinuação da sua aproximação de

excessiva de negras e mulatas.

“Em certas zonas do interior de Pernambuco, tradições maliciosas atribuem

aos antigos capelães de engenho a função útil, embora nada seráfica, de

procriadores.” (p. 272).

Freyre informa que o português, no Brasil, fez da ortodoxia uma condição de

unidade política:

“O Direito português iniciou-se, não sufocando e abafando as minorias

étnicas dentro do reino – os mouros e os judeus – suas tradições e

costumes, mas, reconhecendo-lhes a faculdade de se regerem por seu

mérito próprio e até permitindo-lhes magistrados à parte, como mais tare no

Brasil colonial, com relação aos ingleses protestantes.” (p. 273).

A essa postura Freyre deduz:

“É que a luta contra os mouros, como mais tarde o movimento separatista de

que resulta a Independência, são eles mesmos favoráveis ao cosmopolitismo

que se desenvolve no português ao lado, e em harmonia, com seu precoce

nacionalismo. De modo que a nenhum desses dois ódios ou antagonismo –

o ódio ao mouro e o ódio ao espanhol – pode-se atribuir ter atuado no

português em um só sentido e este inferior: o de crispa-lo.” (p. 273).

Sobre o mercantilismo burguês português, Freyre observa que a falta de

fronteiras naturais ou físicas, houve a necessidade em suprir com pura resistência

ou tensão humana, agressões e absorvências externas, para o que se valeram do

concurso de estrangeiros, o que veio a favorecer o seu nacionalismo e

cosmopolitismo. O que a princípio eram agentes de diferenciação, essa variedade

de contatos estrangeiros, resultou-se propícia à ascendência das classes marítimas

e comerciais na economia e na política portuguesa. Segundo estudos, Portugal

cedo esboça o antagonismo entre a classe comercial das cidades marítimas e a

aristocracia territorial do centro. Desse antagonismo econômico e de classe

acentua-se a divergência entre interesses rurais e marítimos, situação que se

revela interessante para a política dos reis. Estes promulgam leis para proteger o

comércio marítimo e animar a construção naval, iniciativas que favorecem a

ascendência burguesa:

“no desejo de libertar-se de tudo que fosse pressão aristocrática sobre o

poder real, inclinou-se para a burguesia e para o povo das cidades.” (p. 275).

Em decorrência do propósito do reinado português em processar uma

colonização aristocrática e agrária é que a colonização do Brasil afasta-se dos

objetivos comerciais e burgueses do primeiro século do imperialismo português

iniciado com a viagem para a Índia. Daí o “corpo mole”, a falta de interesse em vir

para o Brasil, só mudando essa postura após o início da sua colonização

propriamente dita.

Porém, a proposta de Freyre em seu ensaio aponta para o interesse pela

formação social da colonização do Brasil:

“Não nos interessa, porém, senão indiretamente, neste ensaio, o aspecto

econômico ou político da colonização portuguesa do Brasil. Diretamente, só

nos interessa o social, no sentido particular de social que coincide com o

sociológico. E nenhum antecedente social mais importante a considerar no

colonizador português que a sua extraordinária riqueza e variedade de

antagonismos étnicos e de cultura; que o seu cosmopolitismo.” (p. 276).

Assim, prossegue seu estudo direcionando-se para a chegada, posterior à

dos portugueses, de estrangeiros de proveniência inglesa, francesa, florentina,

genovesa, alemã, flamenga, espanhóis, ocasionando uma mistura livre, cujas

conseqüências e heranças lhe interessam a análise. Mistura essa cujas diferenças

de nacionalidade ou de raça não se colocaram como empecilhos, tendo como

principal exigência para que se adquirisse sesmaria no Brasil a de que o colono

professasse a religião católica, sendo essa exigência apresentada como uma

dificuldade, mas não impedimento de imigração. Essa liberalidade é resultado da

formação cosmopolita e heterogênea desse povo marítimo. Daí não estabelecer-se

em Portugal nenhuma hegemonia, nenhum exclusivismo de raça ou cultura. Da

heterogeneidade portuguesa pouco se sabe, a não ser que se encontrava nas

origens remotas do português. O substrato da nacionalidade portuguesa, segundo

Freyre, fora constituída sob a forma moçárabe, ou seja, militar e politicamente

fundada por outros, mas por eles constituída econômica e socialmente.

Dando continuidade ao processo de miscibilidade, destaca Freyre que o

prestígio social e econômico da ascendente burguesia portuguesa ofuscou o viço

da nobreza. Estes, debilitados, foram buscar na classe média, “moça rica para

casar”. Assim:

“(...) a mobilidade de famílias e de indivíduos de uma classe para outra foi

constante. Impossível concluir por estratificações étnico-sociais em um povo que se

conservou sempre tão plástico e inquieto.” (p.287).

Destaca Freyre:

“Estava alias no interesse dos reis, que tão cedo se afirmaram em

Portugal contra os vagos esboços de feudalismo, nivelar o mais possível as

classes sociais;(...). (...). Depois de cinco séculos não se haviam estratificado

as classes sociais em Portugal em exclusivismos intransponíveis. (...). O que

vem reforçar a nossa convicção de ter sido a sociedade portuguesa móvel e

flutuante como nenhuma outra, constituindo-se e desenvolvendo-se por uma

intensa circulação tanto vertical como horizontal de elementos os mais

diversos de procedência.” (p. 294-5).

Quanto à colonização do Brasil, argumenta Freyre que o ponto a destacar

quanto aos que para aqui vieram, revela:

“Vindos para o Brasil, os descendentes de moçárabes e de mouros

cristianizados, (...), já não viriam diretos da servidão da gleba, mas do

serviço de poderosos e das ocupações urbanas a que muitos se acolheram

(...). Outros, do trabalho livre de lavoura em terra de coito. Ainda outros, dos

ofícios úteis, dos ofícios úteis de sapateiro e alfaiate. Nas cidades e nos

povoados, muitos já teriam chegado (...) engrandecidos, econômica e

socialmente, pelo comércio de peles de coelho e pelo exercício da arte (...)

como de ferreiro e peleteiro. (...) alguns (...) anciosos por uma oportunidade

de melhorarem de vida. (...). (...) é a presença, não esporádica porém farta,

de descendentes moçárabes, de representantes da plebe enérgica e

criadora, entre os povoadores e primeiros colonizadores do Brasil. Através

desse elemento moçárabe é que tantos traços de cultura (...) se transmitiram

ao Brasil. (...) cultura moral e material.” (p. 296-7).

Estudos esboçam referências a esses traços assim descritos:

“(...) a doçura no tratamento dos escravos que, na verdade, foram entre os

brasileiros, tanto quanto entre os mouros, mais gente de casa do que besta

de trabalho. (...) o ideal de mulher gorda e bonita de que tanto de que tanto

se impregnaram as gerações coloniais e do Império. (...) o gosto dos

voluptuosos banhos de gamela ou de ‘canoa’; o gosto da água corrente

cantando nos jardins das casas-grandes. (...). O sistema das crianças

cantarem todas ao mesmo tempo suas lições de tabuada e de soletração

(...). (...) o hábito de mulheres irem à missa de mantilha, o rosto quase

tapado, como o das mulheres árabes. (...). (...) de que nossas avós coloniais

preferiram sempre ao requinte europeu das poltronas e dos sofás, o oriental,

dos tapetes e das esteiras. (...). (...) a arte do azulejo que tanto relevo tomou

em nossas igrejas, conventos, residências, banheiros, bicas, chafarizes; a

telha mourisca; a janela quadriculada ou em xadrez; a gelosia; o abalcoado;

as paredes grossas. Também o conhecimento de vários quitutes e processos

culinários; certo gosto pelas comidas oleosas, gordas, ricas em açúcar. O

cuscuz, hoje tão brasileiro é de origem norte-africana.” (p. 299).

Ainda:

“(...) outra influência moura sobre a vida e o caráter português: a da moral

maometana sobre a moral cristã (...). (...) Nenhum resultado mais

interessante dos muitos séculos de contato do cristianismo com a religião do

profeta (...) que o caráter militar tomado por alguns santos no cristianismo

português e mais tarde no Brasil.” (p. 303).

Freyre pontua que com relação a Portugal, que sua formação nacional fora

toda agrária, depois modificada pela atividade comercial dos judeus e pela política

imperialista dos reis. Assim:

“Constituíram-se os judeus em Portugal em grande força e sutil

influência pelo comércio, pela agiotagem, pelo exercício de altos cargos

técnicos na administração, pelas ligações de sangue com a velha nobreza

guerreira e territorial, pela superioridade de sua cultura intelectual e

científica. (...). Concorreram os judeus em Portugal, (...), para o horror à

atividade manual e para o regime do trabalho escravo – tão característico da

Espanha e Portugal.” (p. 306-9).

Dessa aversão pelo trabalho manual decorre a pobreza percebida em

Portugal, não provinda da natureza do país, mas da índole dos seus habitantes,

que contrastava entre a atividade dos mouriscos e os desmazelos e ócio dos

hispânicos que não possuíam amor pela terra, cujos interesses manifestos eram

por guerras e aventuras comerciais nas Índias. Assim Freyre coloca:

“Colonizou o Brasil uma nação de homens mal-nutridos. É falsa a idéia que

geralmente se faz do português: um superalimentado. (...). (...) se deve

distinguir entre comezainas e banquetes e a alimentação dos dias comuns.

Entre o regime de reduzido número de ricos e o da grande maioria – o da

plebe rural e o das cidades. (p. 313-4).

Porém, assim como os espanhóis os portugueses ostentavam mais do que

possuíam em casa, também observado no Brasil, conforme relatos:

“(...) onde o esplendor das sedas e ao número excessivo de escravos

raramente correspondia o conforto doméstico das nações do Norte da

Europa. (...) Daí as casas-grandes de senhores de engenho (...) no Brasil –

todas de escasso mobiliário.” (p. 319).

Daí conclui Freyre que:

“O comércio marítimo precedeu ao imperialismo colonizador e é

provável que, independente deste, só pelos desmandos daquele, Portugal se

tivesse arruinado como país agrícola e economicamente autônomo. A

escravidão que o corrompeu não foi a colonial mas a doméstica. (...). (...)

quando a economia portuguesa deixou-se empolgar pela fúria parasitária de

explorar e transportar riqueza, em vez de produzi-la, não é fácil de dizer com

precisão” (p. 319).

Com relação à colonização do Brasil, Freyre coloca o entusiasmo religioso

em primeiro plano, depois os interesses econômicos por parte dos colonizadores

portugueses. Porém, estes ao perceberem a escassez na exploração de riquezas e

compreenderem a tendência para a estabilização agrícola dentro de um sistema de

latifúndios, justifica a necessidade da mão-de-obra escrava africana:

“No caso brasileiro, (...), parece-nos injusto acusar o português de ter

manchado, com instituição que hoje tanto nos repugna, sua obra grandiosa

de colonização tropical. O meio e as circunstâncias exigiram o escravo. A

princípio o índio. Quando este, por incapaz e molengo, mostrou não

corresponder às necessidades da agricultura colonial – o negro.” (p. 322).

Observa que:

“(...) a economia colonial praticada no Brasil durante os primeiros dois

séculos restituiu a Portugal cores e saúde há muito desaparecidas sob a

fúria mórbida de exploração de riqueza, de rapina, de saque.” (p. 324).

Porém, conforme pontua Freyre:

“A escravidão, de que sempre se serviu a economia portuguesa,

mesmo nos seus tempo de rija saúde, tomou aspecto acentuadamente

mórbido ao tornar-se a monarquia mercantil e imperialista. (...). (...) devido a

necessidade de corrigir-se a todo custo o desequilíbrio demográfico e

econômico causado pelas conquistas de ultramar. (...). (...) sob novos

estímulos, os senhores foram os primeiros a favorecer a dissolução ‘para

aumentar o número das crias, como quem promove o acréscimo de um

rebanho’. (...). As necessidades de braços, tanto no reino, desfalcado pela

imigração, como nas colônias agrícolas, tornavam proveitosíssimo o

comércio de gente.” (p. 332-2).

Sobre críticas elaboradas frente à dissolução moral e a devassidão

experimentadas pelos portugueses, Freyre justifica:

“Reconhecendo essa influência geral do imperialismo sobre a vida e a

moral sexual dos povos hispânicos, devemos, entretanto, recordar que sobre

eles atuaram condições de meio físico de situação geográfica, de

desenvolvimento histórico particularmente perturbadoras da moralidade

cristã (...); a instabilidade econômica, os contatos cosmopolitas por via

marítima; a convivência com os maometanos polígamos. (...) certa

disparidade, nos vestuários e nas práticas de higiene doméstica, entre as

exigências ou normas de moral sexual cristã no norte da Europa e o clima

africano de Portugal e de grande parte da Espanha. Todas essas influências

devem ter concorrido para o fato de excitar-se mais cedo que no norte a

fome sexual nos adolescentes espanhóis e portugueses.” (p. 334).

Assim também, atribui Freyre, entre nós, brasileiros, atuou a influência do

clima tropical para a superexcitação sexual de meninos e adolescentes.

IV.O escravo negro na vida sexual do brasileiro

Gilberto Freyre introduz este capítulo discorrendo, superficialmente, sobre a

influência da raça negra através do convívio escravo com o colonizador do Brasil.

Sobre a assimilação de certas características singulares; sobre as heranças

culturais absorvidas; a importância do negro na vida estética; sua parcela de

contribuição na vida econômica; sobre a diferença entre o índio e o negro africano.

Para então iniciar o seu propósito de esmiuçar a cultura africana, com o cuidado de

não incorrer nos erros de generalizações apresentados por alguns estudos:

“Nem da cultura nativa da América pode-se falar sem muita e rigorosa

discriminação (...) nem da África basta excluir o Egito, com a sua opulência

inconfundível de civilização, para falar-se então da cultura africana, chata e

uma só. Esta se apresenta com notáveis diferenças de relevo, variando seus

valores na quantidade e na elaboração.” (p. 369).

Freyre demonstra-se avesso às avaliações de classificatórias de

inferioridade ou superioridade a que alguns estudiosos preocuparam-se em

teorizar, do negro em relação ao indígena ou do indígena em relação ao negro.

“O critério histórico-cultural, porém, que tantas vezes tem retificado o

fisiológico e o psíquico na discriminação de característicos étnicos, mostra-

nos ter havido da parte dos ameríndios incapacidade antes social e técnica

que psíquica e biológica. Embora não se devam desprezar as indisposições

psíquicas, o fato que avulta é o do nomadismo, da vida econômica atuando

poderosamente sobre os ameríndios; incapacitando-os para o trabalho

agrícola regular. Ora, a esse trabalho e ao da criação de gado e utilização de

sua carne e leite, já se tinham afeito várias sociedades africanas de onde

nos vieram escravos em grandes massas.” (p. 371).

O autor esclarece que:

“(...) não pretendemos negar ao critério de tipos psicológicos a possibilidade

de vantajosa aplicação à discriminação de traços étnicos. A introversão do

índio, em contraste com a extroversão do negro da África, pode-se verificar a

qualquer momento no fácil laboratório que, para experiências desse gênero,

é o Brasil.” (p. 371-2).

A esse contraste de disposição psíquica e de adaptação talvez biológica ao

clima quente, segundo Freyre, explicam em parte ter sido o negro na América

portuguesa o maior e mais plástico colaborador do europeu na colonização agrária.

A essa extroversão teria sido atribuída até mesmo certa influência europeizante por

parte dos negros aos indígenas. Porém, sem que lhes sejam atribuídas influências

absolutas, argumentando que:

“Os antecedentes e as predisposições de cultura do africano é que devem

ser tomados em maior conta. E dentro desses e predisposições de cultura, a

dieta ou o regime alimentar. (...) No caso dos negros, comparados com os

indígenas do Brasil, pode-se talvez atribuir parte de sua superioridade de

eficiência econômica e eugênica ao regime alimentar mais equilibrado e rico

que o dos outros, povos ainda nômades, sem agricultura regular nem criação

de gado. Devendo-se acrescentar que vários dos mais característicos

valores nutritivos dos negros (...) acompanharam-nos à América,

concorrendo para o processo como que de africanização aqui sofrido por

brancos e indígenas; e amaciando para os africanos os efeitos os efeitos

perturbadores da transplantação” (p.373).

Freyre dirige seu olhar para os africanos vindos para o Brasil do início do

século XVI até meados do XIX, considerando a preocupação com o grau e o

momento em que as culturas se comunicaram, levando em conta que:

“(...) importaram-se para o Brasil, da área mais penetrante pelo islamismo,

negros maometanos de cultura superior não só à dos indígenas como à da

grande maioria dos colonos brancos – portugueses e filhos de portugueses

quase sem instrução nenhuma, analfabetos uns, semi-analfabetos na maior

parte.” (p. 382).

Mas, discorda de estudiosos que apontaram essa superioridade como fator

de revolução libertária, atribuindo-lhes o “sentido religioso, social ou cultural”. Esse

argumento baseia-se no fato que de outras áreas e cultura da africana também

foram transportados para o Brasil grande número de escravos. Ainda, estudos

apontam para o fato da política de distribuição de negros na colônia de modo a não

permitir concentração de uma mesma nação africana em uma capitania, o que

poderia trazer conseqüência de rebeliões indesejáveis.

“Infelizmente as pesquisas em torno da imigração de escravos negros

para o Brasil tornaram-se extremamente difíceis, em torno de certos pontos

de interesse histórico e antropológico, depois que o eminente baiano,

conselheiro Rui Barbosa, ministro do Governo Provisório após a

proclamação da República de 1889, por motivos de ordem ostensivamente

de ordem econômica (...) mandou queimar os arquivos da escravidão.”

(p.384).

Freyre ressalta ao ressaltar seu interesse pelo estudo de antropologia

cultural e de história social africana, como indicadores de que o Brasil beneficiou-se

melhor de colonização africana que outros países da América. Suas pesquisas o

levam a considerar que:

“Os escravos vindos das áreas de cultura negra mais adiantada foram

um elemento ativo, criador, e quase que se pode acrescentar nobre na

colonização do Brasil; degradados apenas pela sua condição de escravos.

Longe de terem sido apenas animais de tração e operários da enxada, a

serviço da agricultura, desempenharam uma função civilizadora. Foram a

mão direita da formação agrária brasileira, os índios, e sob certo ponto de

vista, os portugueses, a mão esquerda.” (p. 390).

Estudos apontam que não só a formação agrária, mas, também, a mineração

de ferro fora aprendida com os africanos, bem como a criação de gado. Quanto a

questão da religiosidade, fala que “da África vieram mestres e pregadores a fim de

ensinarem a ler no árabe os livros ao Alcorão”, estimulando o ardor religioso entre

os escravos, propagando o islamismo que se ramificou no Brasil em seita poderosa

nos escuros das senzalas.

“Encontramos traços de influência maometana nos papéis com oração

para livrar o corpo da morte e a casa dos ladrões e dos malfeitores; papel

que ainda se costumam atar ao pescoço das pessoas ou grudar às portas e

janelas das casas, no interior do Brasil. (...) O catolicismo das casas-grandes

aqui se enriqueceu de influências muçulmanas contra as quais tão impotente

foi o padre-capelão quanto o padre-mestre contra as corrupções do

português pelos dialetos indígenas e africanos. (...). Na Bahia, no Rio de

Janeiro, no Recife, em Minas, o trajo africano (...).” (p. 395-6).

Ao passar a considerar “aspectos mais íntimos” da influência e do contágio

com o negro africano, o autor considera:

“Sempre que consideramos a influência do negro sobre a vida íntima

do brasileiro, e a ação do escravo, e não a do negro por si, que apreciamos.”

(p. 397).

Argumenta, então:

“Diz-se geralmente que a negra corrompeu a vida sexual da

sociedade brasileira, iniciando precocemente no amor físico os filhos de

família. Mas essa corrupção não foi pela negra que se realizou, mas pela

escrava. (...). É absurdo responsabilizar-se o negro pelo que não foi obra sua

(...) mas do sistema social e econômico em que funcionaram passiva e

mecanicamente. Não há escravidão sem depravação sexual. (...). Nada nos

autoriza a concluir ter sido o negro quem trouxe para o Brasil a pegajenta

luxúria em que nos sentimos todos prender, mal atingida a adolescência. (...)

” (p. 398-9).

Freyre evidencia sua seu olhar ao africano como a de um herói:

“O negro foi patogênico, mas a serviço do branco; como parte

irresponsável de um sistema articulado por outros. (...). (...) entre os próprios

portugueses e espanhóis, e entre os judeus e mouriscos da Península,

lavrara intensamente essa forma de luxúria ao descobrir-se e colonizar-se o

Brasil, figurando nos processos frades, clérigos, fidalgos, desembargadores,

professores, escravos.” (p. 404-5).

Observa Freyre que sobre a influência da feitiçaria e da magia sexual entre

nós, apontados como de origem africana, esclarece que de Portugal foram trazidas

várias dessas crenças e magias, conforme registro do Santo Ofício dos vários

casos de bruxas portuguesas.

“Mas o grosso das crenças e práticas da magia sexual que se

desenvolveram no Brasil foram coloridas pelo misticismo do negro(...). (...)

Foi a perícia no preparo de feitiços sexuais e afrodisíacos que deu tanto

prestígio a escravos macumbeiros junto a senhores brancos já velhos e

gastos.” (p. 407-8).

Mas, Freyre coloca que:

“Não só para fins amorosos, como em torno ao recém-nascido

reuniram-se, no Brasil, as duas correntes místicas: a portuguesa, de um

lado; a africana ou a ameríndia do outro. Aquela representada pelo pai ou

pelo pai e mãe brancos; esta, pela mãe índia ou negra, pela ama-de-leite,

pela mãe de criação, pela mãe-preta, pela escrava africana.(...)”. (p. 409).

Sobre a ama negra, Freyre destaca:

“Também as canções de berço portuguesas, modificou-as a boca da

ama negra, ligando-as às crenças dos índios e às suas. (...). Novos medos

trazidos da África, ou assimilados dos índios pelos colonos brancos e pelos

negros, juntaram-se aos portugueses (...). (...). Foram as negras que se

tornaram entre nós as grandes contadoras de histórias.”. (p. 410-11,13).

Na figura da ama negra também se encontram associados, além do papel de

ama-de-leite que tinha sob seus os cuidados de embalá-lo na rede ou no berço, o

de ensinar-lhe as primeiras palavras, a primeira oração, experimentava-lhe o

primeiro alimento que não o leite do seio.

“Quanto às mães-pretas, referem as tradições o lugar

verdadeiramente de honra que ficavam ocupando no seio das famílias

patriarcais.” (p. 435).

Sobre o abrasileiramento do africano, Freyre observa:

“Na ordem de sua influência, as forças que de dentro do sistema

escravocrata atuaram no Brasil sobre o africano recém-chegado foram: a

igreja (menos a igreja com I grande, que a outra com i pequeno,

dependência do engenho ou da fazenda patriarcal); a senzala; a casa-

grande propriamente dita – isto é, considerada como parte, e não dominador

do sistema de colonização e formação patriarcal do Brasil.” (p. 440).

Dos molequinhos das casas-grandes, Freyre chama a atenção para:

“Tanto o excesso de mimo de mulher na criação dos meninos e até

dos mulatinhos, como o extremo oposto – a liberdade para os meninos

brancos cedo vadiarem com os moleques safados na bagaceira, deflorarem

negrinhas, emprenharem escravas, abusarem de animais, constituíram

vícios de educação, talvez inseparáveis do regime de economia

escravocrata, dentro do qual se formou o Brasil.” (p. 459).

V.O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro (continuação)

“Nos engenhos, tanto nas plantações como dentro de casa, nos tanques de

bater roupa, nas cozinhas, lavando roupa, enxugando prato, fazendo doce,

pilando café; nas cidades, carregando sacos de açúcar, pianos, sofás de

jacarandá de ioiô brancos – os negros trabalharam sempre cantando: os

seus cantos de trabalho, tanto quanto os de xangô, os de festas, os de ninar

menino pequeno, encheram de alegria africana a vida brasileira.” (p. 551)